Prefácio “Eu só acreditaria em um Deus que soubesse dançar.” Friedrich Nietzsche O que nasceu primeiro: a filosofia ou a religião? Resposta difícil. O livro que você tem em mãos não pretende oferecer essa resposta. Talvez ajude você a caminhar na busca de mais perguntas; no entanto, serão perguntas maravilhosas, com sentido, necessárias. Como seria bom se toda ciência tivesse a coragem de dialogar com a filosofia, entendendo que não seria um diálogo, como muitas vezes acontece, para procurar o que diz Sócrates ou Platão, por exemplo, sobre justiça, medicina etc. Não! Isso é um uso banal da filosofia. Esse diálogo de que falo é mais que um diálogo; é a coragem para deixar-se questionar e buscar sentido em todas as ciências e aí, sim, acreditar que pode haver uma filosofia do direito, uma filosofia da administração e uma filosofia da religião. Quando uma ciência busca questionar-se por sua essência, dimensão teleológica e papel no mundo atual, então podemos dialogar com a filosofia. O texto que você tem em mãos procura fazer exatamente isso. O autor não “utiliza” a filosofia ou a religião para doutrinar interessados no assunto. Trata-se de uma busca questionadora. O texto tem a coragem de mostrar aspectos que nem sempre teólogos e religiosos estão interessados em destacar. E, ao assim proceder, o faz questionando. Eis talvez a primeira grande função da filosofia e dos filósofos: questionar e deixar-se questionar, não ter medo de receber a pergunta, encará-la e voltar a aprender com os dois grandes mestres da maiêutica, Sócrates e Jesus, que questionar é viver! 7 Trata-se de uma busca crítica. O texto é crítico porque estabelece critérios. Essa é a primeira função da crítica: estabelecer critérios. Nesse sentido, o texto é claro, pedagógico, indica caminhos, propõe problemas, indica bibliografia para aprofundar os temas, propõe exercícios e deseja que todos aprofundem a reflexão. Nossa sociedade está assentada na cultura da não crítica. Desde crianças, aprendemos que viver em sociedade é estar conformado com tudo; é assim na família, na escola, no namoro, no casamento e ainda mais nas igrejas e religiões. Esquecemos que nossos fundadores, tanto os da filosofia como os da religião, foram grandes críticos de seu tempo e de sua sociedade e por essa razão entenderam que, se questionar é viver, criticar é viver com sentido. Trata-se de uma busca radical. É no próprio texto que encontramos esse significado tão profundo e caro para a filosofia: toda filosofia só pode ser filosofia se for radical, ou seja, se buscar as verdades desde suas raízes. Aqui não pode haver superficialidade, cosméticos, suborno e nenhuma forma de corrupção. A natureza deste livro exige radicalidade, e o autor a segue de maneira brilhante. Não escamoteia as críticas que a religião, Deus, as igrejas e a espiritualidade sofrem na sociedade contemporânea, e por essa mesma razão consegue caminhar, não na linha da solução ou de apresentar teologias apologéticas, mas buscando, na própria essência humana, as razões para erguer as mãos e clamar pelo mistério, pelo inefável, pelo desconhecido. Então podemos afirmar que, se questionar é viver e criticar é viver com sentido, ser radical é questionar, criticar e, ainda mais, é bailar à música mágica do amanhã. Desejo uma excelente, prazerosa, religiosa e filosófica leitura! Luiz Longuini Neto Professor de filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie Rio de Janeiro 8 Introdução A religião tem proporcionado ao longo de sua história as experiências mais profundas e paradoxais que um ser humano pode experimentar. Qualquer pergunta sobre a cultura, a política, as artes, a economia, as ideologias pode muito bem ser argumentada tomando por base a presença e a influência da religião, seja em sua expressão individual, seja em sua representação institucional. Portanto, falar sobre a existência humana constitui um desafio de falar também sobre as expressões religiosas presentes em toda a sua radicalidade. Em certo sentido, quando Marx diz que a crítica à religião é a última e mais importante crítica, ele está demonstrando a centralidade do elemento religioso para a vida das pessoas e das sociedades. Tal importância justifica a contínua preocupação que a filosofia tem com a religião. Aliás, antes mesmo de qualquer outra reflexão menos ou mais científica, foi a filosofia que se debruçou sobre tal expressão da vida humana em relação à(s) divindade(s). Sem incorrer em nenhum equívoco, podemos dizer que na origem mesmo da filosofia está a experiência tipicamente religiosa do espanto acerca da realidade e do esforço por nomear suas origens. O que a filosofia fez foi desdobrar tal espanto e esforço em uma atividade mais racional e autônoma. Dos longínquos tempos anteriores a Sócrates até os fluidos dias de nossa cultura pós-moderna, a religião nunca saiu da pauta da filosofia. Ora como rainha, ora como vassala, sempre esteve ali impondo sua desejada ou incômoda presença. Ao longo deste livro, pretendemos olhar essa história de amores e ódios entre filosofia e religião através de lentes cristãs. Explicitar a perspectiva da qual pensamos é fundamental para que nossas colocações ganhem identidade própria: a do cristão que, sem abdicar dos instrumentais críticos, olha para tal história orientado por certa teleologia. Ou seja, mesmo tratando da religião em perspectiva 9 filosófica, fazemos isso sem intencionar nenhuma neutralidade, o que seria no final da contas mera ilusão. Refletimos, portanto, perguntando por Deus, que afinal subjaz às experiências religiosas presentes na história da humanidade. Já que confessamos partir de um lugar específico, não nos acanhamos em nomear o Real de Deus. Fazemos tal nomeação, contudo, sem imaginar que ela dê conta desse Real, mas ao menos de certa faceta dele. Assumimos certamente o anseio existencial relacionado à reflexão travada ao longo deste livro. Tentando melhor expressar essa condição que determina toda a nossa escrita, dizemos: Deus! Digo... De onde vens? Por que prossigo? Por que persigo E te chamo Se tu Em silêncio Não respondes ???????????????????? Não respondes Não queres Estás? Por que chamo? E persigo? Preciso ou não estou? Com certezas oscilantes ou dúvidas precisas, não nos furtamos em nenhuma página a enfrentar a presença de Deus na história da formação do pensamento ocidental, tanto em seus momentos úmidos quanto nos ventos áridos e ressequidos. Nas palavras de Mario Quintana: 10 Eles ergueram a Torre de Babel Para escalar o Céu, Mas Deus não estava lá! Estava ali mesmo, entre eles, Ajudando a construir a torre.1 Nosso convite despretensioso a você, caro leitor ou leitora, é de tomar pela mão direita a irmã dúvida — com suas vestes da cor do juízo — e pela mão esquerda a esperança — com seu véu bordado pelas contas da fé — e, dessa forma, caminhar nas sendas do Mistério gentilmente apresentado à razão humana. 1 QUINTANA, Mario. 80 anos de poesia. 13. ed. São Paulo: Globo, 2008. 11 RESUMO DO CAPÍTULO 1 Ao longo do capítulo 1, “Introdução à filosofia da religião”, trabalhamos a questão de aproximação a este importante campo da reflexão filosófica que é a filosofia da religião. Para tal aproximação, percorreremos ao longo deste capítulo os seguintes temas: • Algumas perspectivas acerca da religião • Alguns pressupostos da filosofia diante da religião • Conceituações descritivas da religião • O ser humano diante da religião: a formação do Homo religiosus • Relações entre filosofia e religião: uma primeira conclusão A principal intenção deste capítulo é oferecer ao leitor alguns instrumentos que possibilitem uma boa leitura de todo o livro. Capítulo 1 Introdução à filosofia da religião 1.1 Algumas perspectivas acerca da religião A religião, como fenômeno humano, está presente na história de todos os povos ao longo de todos os tempos. Essa presença, longe de ser secundária, estruturou — e ainda estrutura — culturas, sendo-lhes geradora de sentido e plausibilidade. Exatamente por isso, a religião vem sendo estudada pelas mais diversas expressões da ciência, sobretudo das ciências humanas e sociais. Dentre essas, queremos destacar algumas: teologia, apologética, fenomenologia e filosofia. Sem dúvida, ao longo da História foram essas expressões da ciência que de forma mais contundente se debruçaram sobre o estudo do fenômeno religioso. • Teologia: estuda os fatos da experiência que são interpretados em forma de doutrina. “Como ciência, a teologia parte do dado da fé; por isso, pretende falar a partir de Deus, a partir da relação que ele estabelece com o ser humano.”1 A teologia como ciência utiliza os dados da fé (da revelação), mas se fundamenta na razão: seu ponto de partida é a fé, mas seu método é racional. • Apologética: demonstra que determinada perspectiva (doutrina) da teologia é a verdade. Defende a veracidade daquilo que é 1 Croatto, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 22. 15 crido em determinada denominação e expresso num código ou declaração doutrinária. “Algumas pessoas fazem distinção entre apologética positiva, que se propõe a provar a verdade do cristianismo, e apologética negativa, que apenas procura remover as barreiras à fé respondendo às críticas.”2 • Fenomenologia da religião: estuda os fatos religiosos com base em sua intencionalidade e pergunta pelo significado do fato religioso para o Homo religiosus.3 “A fenomenologia parte necessariamente dos fenômenos religiosos (fatos, testemunhos, documentos), contudo explora especificamente seu sentido, sua significação para o ser humano específico que expressou ou expressa esses mesmos fenômenos religiosos.”4 • Filosofia da religião: estuda as origens e o conteúdo dos fatos da experiência. Analisa a religião propriamente dita em suas relações com outras fases da vida. A filosofia da religião preocupa-se com o Absoluto, não como encontro com ele, nem como Deus, mas como o Ser e o fundamento da realidade. A filosofia da religião, Dicas de Leitura como expressão do saber humano, Croatto, José Severino. As linmuitas vezes estimulada pela racioguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2001. nalidade crítica, fala de Deus e do ser Evans, C. Stephen. Dicionário de humano religioso. É um saber consapologética e filosofia da religião. São truído com base na reflexão autônoPaulo: Vida, 2004. Penna, Antônio Gomes. Em busca ma, não um compromisso de fé. Por de Deus: introdução à filosofia da reisso, não substitui o ato religioso, mas ligião. Rio de Janeiro: Imago, 1999. reflete criticamente a respeito dele.5 2 3 4 5 16 Evans, C. Stephen. Dicionário de apologética e filosofia da religião. São Paulo: Vida, 2004. p. 13. Designação da fenomenologia da religião para o crente de determinada religião. Croatto, op. cit., p. 25. Cf. Ibid., p. 22. Diferentes abordagens e ramos do saber dedicados ao estudo do fenômeno religioso O esquema a seguir ajuda na visualização das diferentes abordagens do fenômeno religioso e da relação que mantêm entre si: { {{ Estudo positivo do fenômeno ou fato religioso: Ciência das religiões Reflexão normativa sobre o fenômeno ou fato religioso Nível científico: Estudo analítico, com base em perspectivas diferentes. Nível fenomenológico: Estudo sintético, global, do fenômeno religioso. { { História das religiões Perspectiva histórica Sociologia da religião Perspectiva sociológica Fenomenologia da religião Perspectiva do fenômeno tal como se apresenta. Filosofia da religião Perspectiva filosófica (questionamento e estudo do fenômeno buscando as origens e o conteúdo dos fatos da experiência). Teologia Formação de doutrinas. 17 Exercício Descreva as principais características da teologia, da apologética, da fenomenologia da religião e da filosofia da religião. O que diferencia a filosofia da religião das demais áreas de estudo da religião? _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 1.2 Alguns pressupostos da filosofia diante da religião6 A filosofia da religião, como expressão crítica da reflexão humana sobre o fenômeno religioso, norteia-se por um conjunto de pressupostos. Identificar adequadamente esses pressupostos é fundamental para que seu discurso não se confunda com o discurso religioso em si, aquele que é feito pelo fiel — a quem estamos chamando de Homo religiosus. Sem pretender apresentar uma lista exaustiva de pressupostos para a reflexão filosófica acerca do fenômeno religioso, passamos à exposição de alguns que julgamos fundamentais: • A filosofia da religião ou o estudo filosófico da religião baseia-se na pressuposição de que a religião e as ideias religiosas, pertencentes primariamente à esfera do sentimento e à experiência prática, podem ser também objetos da interpretação científica ou racional. • O estudo filosófico da religião pressupõe também que, embora a religião e filosofia estudem os mesmos assuntos, a atitude humana para com eles é diferente em cada caso. Na religião, esses assuntos se apresentam como realidades imediatas e objeto de devoção e gozo espiritual; ao passo que, na filosofia, esses mesmos assuntos se apresentam como objeto de reflexão, apreensão intelectual e mesmo pesquisa especulativa. 6 18 Cf. Zilles, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991. p. 17-19. • Todo sentimento, seja moral, seja estético, seja religioso, por sua própria natureza já envolve algum conhecimento, embora seja este apenas implícito ou virtual. Cabe à filosofia elucidar esse conhecimento implícito, trazendo-o da esfera da intuição imediata, na qual a mente ainda é inativa e unida a seu próprio objeto, para uma esfera mais elevada e consciente, na qual a mente se distingue de seu objeto e busca unir-se a ele de modo mais profundo e indissolúvel. É mediante uma interpretação racional que o ser humano entra na posse do conteúdo de seu próprio sentimento ou da experiência empírica.7 • O objetivo da filosofia da religião é alcançar a verdade (a realidade em si) que está implícita ou oculta por trás dos fenômenos ou das experiências religiosas empíricas. A filosofia da religião visa alcançar a essência ou o significado final dessas mesmas experiências. A filosofia não se contenta com aquilo que apenas parece ser, mas com aquilo que realmente é. Ela visa chegar, por meio do raciocínio, ao conhecimento, positivo ou negativo,8 da causa da experiência religiosa. Exercício Cite os principais pressupostos da filosofia diante da religião. _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 7 8 Cf. Penna, Antônio Gomes. Em busca de Deus: introdução à filosofia da religião. Rio de Janeiro: Imago, 1999. p. 23-36. Ao longo da história da filosofia, surgiram diversos posicionamentos acerca da religião e de sua plausibilidade. Esses posicionamentos são basicamente de natureza positiva, simpatia ou defesa da religião, ou de natureza negativa, descrendo abertamente ou tomando como impossível a verificação da experiência humana com alguma realidade transcendente. Para aprofundar essa temática, v. as obras de Urbano Zilles, Filosofia da religião cit., e Teoria do conhecimento, Porto Alegre: Edipucrs, 2005. 19 _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 1.3 Conceituações descritivas da religião Este grupo de conceituações procura descrever a religião em termos de seu significado central ou caráter essencial, não tendo como intenção simplesmente desacreditá-la.9 • Religião é crença: a religião tem sido definida por muitos como sendo aquilo que um indivíduo crê a respeito de coisas últimas. Religião é “uma crença em um poder sobre-humano invisível [...] juntamente com os sentimentos e práticas que decorrem naturalmente de tal crença”.10 Mas, conquanto a crença e convicções sejam importantes elementos da religião, não representam sua globalidade. • A religião pertence à natureza e estrutura humanas: assim como o ser Dicas de Leitura humano tem várias capacidades que Boff, Leonardo. Tempo de transexpressam sua natureza e seu ser — por cendência: o ser humano como um exemplo, como pensador, técnico e projeto infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. artista —, da mesma forma é dotado Otto, Rudolf. O sagrado. Petróda capacidade religiosa. Ele não pode polis: Vozes, 2007. explicar direito essa capacidade, mas a Schleiermacher, Friedrich. Sobre tem. O ser religioso pertence ao equia religião. São Paulo: Novo Século, 2003. pamento que a natureza lhe concedeu. Tillich, Paul. Dinâmica da fé. São Isso não quer dizer, entretanto, que Leopoldo: Sinodal, 2001. todos têm o mesmo grau de percepção religiosa. Alguns têm um sentido 9 10 20 Em seguida, trataremos dos diversos posicionamentos filosóficos diante da religião, incluindo as perspectivas antagônicas caracterizadas pelo ateísmo e agnosticismo. Dicionário Webster, verbete “Religião”. mais profundo; outros, menos. Não se pode negar, contudo, que o ser humano demonstra comportamento religioso. • Religião é nossa consciência da responsabilidade moral: Immanuel Kant defendeu a ideia de que a religião está arraigada na consciência de nossa responsabilidade moral. Durante nossa vida terrena, somos repetidamente confrontados com o “deves” misterioso, o imperativo categórico que nos ordena a fazer aquilo que é moralmente correto ou justificável.11 O ego procura desculpar-se e escapar da tirania desse amo tão severo, mas nunca é bem-sucedido na tentativa de silenciar essa voz acusadora. A religião é o resultado do reconhecimento dessa autoridade por parte do ser humano. • A religião está relacionada com nosso caráter emocional: a condição religiosa se dá porque o ser humano é capaz de compreender que o Universo é grande diante de poderes que são imensamente maiores que os seus próprios. O relacionamento entre a humanidade e a natureza é recíproco; em sua imaginação simplista, o ser humano supõe que este mundo fantástico está cheio de poderes amigos e hostis.12 • Religião é o sentimento humano com relação às coisas de caráter último: há ainda afirmações que identificam a religião como o modo de a humanidade expressar seus sentimentos sobre coisas de caráter último. Friedrich Schleiermacher, teólogo alemão do início do século XIX, deixou-nos uma nota de grande influência quando conceituou religião como “um sentimento de dependência absoluta”.13 11 12 13 Cf. Kant, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 67-116; e, A religião nos limites da simples razão. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 101-129. Essa é basicamente a definição de religião derivada do sentimento anímico próprio das sociedades primitivas. Cf. Schleiermacher, Friedrich. Sobre a religião. São Paulo: Novo Século, 2003. 21 Ênfase um tanto quanto semelhante foi dada por Rudolf Otto, em seu livro O sagrado, no qual ele considera ser a religião essencialmente um sentimento de temor e mistério resultante de alguma forma de contato com o infinitamente OUTRO.14 Exercício Escolha uma das caracterizações da religião e justifique sua predileção. _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ • Religião é consciência do transcendental: para entender o significado da frase, é bom definirmos os termos, pois transcendente pode significar duas coisas: 1. Diz-se que algo é transcendente se vai além, ou se é algo mais, do que a consciência imediata de alguém.15 2. Algo é transcendente no sentido religioso quando é recebido pelo indivíduo como possuindo um caráter último. No dizer de Paul Tillich, é aquilo que toca a pessoa incondicionalmente e que não se pode controlar.16 14 15 16 22 Cf. Otto, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 40-63. Cf. Boff, Leonardo. Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. p. 41-52. No capítulo 7 deste livro, intitulado “Lugares privilegiados de experiência da transcendência”, o autor trabalha a ideia da transcendência que se dá nos limites da realidade propriamente humana. Respondendo à pergunta “O que é a fé”, Paul Tillich afirma: “Fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente” (Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 5). 1.4 O ser humano diante da religião: a formação do Homo religiosus A experiência religiosa, como expressão mais radical do ser humano diante da realidade de sua existência, é estruturante. Em outras palavras, a experiência religiosa é a espinha dorsal da vida dos que expressam algum tipo de fé. Em razão de tal centralidade, elencamos algumas características da forma do Homo religiosus: • Somente o ser humano demonstra comportamento religioso (o ser humano como Homo religiosus): somente o homem e a mulher, dentre as várias formas de vida existentes, exibem comportamento religioso. Todas as culturas pesquisadas e registradas pelos antropólogos parecem demonstrar algum tipo de sentimento religioso, embora diferentes em sua expressão cultural da religião tradicional da cultura do Ocidente. • Religião é a resposta dada às questões de caráter último do Homo religiosus: um importante aspecto, de caráter distintivo, do ser humano é que ele é um sujeito autoconsciente. Nunca o homem é simplesmente uma peça de seu ambiente, mas ele tem condições de destacar-se e até mesmo contraditar seu ambiente. A religião é para esse ser consciente a resposta dada às questões últimas, tais como: Qual o significado de minha existência? O que fazer de minha vida? Por que estou aqui? Em suma, a religião oferece respostas às questões de origem e finalidade do ser humano e do meio em que ele vive. Nesse sentido, a religião pode ser descrita como o significado último da existência humana. • O Homo religiosus e o desejo do absoluto: a resposta religiosa possui a qualidade do absoluto, tem caráter último. Tillich descreveu a religião como uma atitude de preocupação última.17 Uma resposta religiosa é absoluta ou última em dois sentidos: 1) ocupa a prioridade mais elevada na hierarquia de preocupações que constituem uma personalidade; 2) permeia a vida como um todo. 17 Dinâmica da fé cit. 23 Exercício Diga o que você entende por Homo religiosus. _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ • O Homo religiosus e a linguagem simbólica: a linguagem da religião é fundamentalmente simbólica, diferentemente, por exemplo, da linguagem da ciência, que lida primordialmente com a linguagem postulacional.18 A pessoa religiosa fala da realidade última por meio de metáforas e analogias, buscando dizer aquilo que é propriamente indizível.19 Daí ser a linguagem simbólica a única adequada para expressar o fenômeno religioso. 1.5 Relações entre filosofia e religião: uma primeira conclusão Segundo Martin Buber: A religião, mesmo que o “Incriado” não seja expresso com boca e com alma, fundamenta-se na dualidade Eu-Tu; a filosofia, mesmo quando o ato filosófico desemboca em uma visão de unidade, fundamenta-se na dualidade sujeito-objeto [...]. A primeira nasce da situação primordial do 18 19 24 Há, porém, uma discussão acerca da condição simbólico/analógica da própria ciência. Essa discussão se dá na contramão do modelo positivista da ciência (cf. Alves, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Loyola, 2005). Numa direção semelhante, podemos ainda citar a filosofia pragmática, em especial o pensamento de Richard Rorty (Verdade e progresso. Barueri: Manole, 2006.) A principal ideia dessa obra é que a ciência não lida com o problema da verdade, mas com a resolução de problemas relacionados a determinado tempo e espaço. Falando sobre a natureza da linguagem religiosa, João Batista Libânio diz o seguinte: “Prefere a linguagem simbólica, ama o ícone [...]. Fala à inteligência, mas pretende aquecer as fibras do coração” (Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola, 1999. p. 89). indivíduo: ele em presença do ente que aponta para ele e para quem ele aponta; a segunda surge da divisão desse conjunto em duas maneiras de ser inteiramente diferentes: um ser que esgota sua capacidade no observar e refletir, e outro que não consegue outra coisa senão ser observado e ser refletido. Eu e Tu subsistem graças à concretude vivida e dentro dessa concretude; sujeito e objeto, produtos da força de abstração, só duram enquanto dura a abstração.20 Essa distinção buberniana de Eu-Tu e sujeito-objeto aponta para certa especificidade tanto da religião quanto da filosofia. Enquanto a primeira se inscreve na dimensão do vivido e do concreto, a segunda opera na dimensão da abstração, ou seja, na reflexão distanciada acerca daquilo que é vivido por outro. MARTIN BUBER (1878-1965) Martin Buber nasceu em Viena, em 1878. Foi um dos mais importantes filósofos judeus do século XX. Tal era o poder de sua palavra escrita e oral que, durante a Primeira Guerra Mundial, muitos jovens escreveram-lhe procurando ajuda em difíceis crises morais, religiosas e políticas. Suas respostas eram vistas como as de uma autoridade que estava acima das ideologias da época. Martin Buber é muito conhecido por sua principal obra filosófica I and Thou [Eu e Tu], publicada em 1923. Martin Buber morreu em 1965. É próprio, portanto, da reflexão filosófica sobre a religião certo distanciamento reflexivo que se justifica com base na tarefa crítica da filosofia. A filosofia quer, portanto, inquirir da religião suas razões. No entanto, isso não se faz pelo olhar do cristão, mas do olhar do crítico. Ou seja, quem faz a pergunta a faz não como quem vive certa prática, mas como quem a observa com certa distância e abstração. Nesse sentido, cabe a pergunta pelo significado da religião. Afinal de contas, o que é religião? Urbano Zilles propõe a seguinte conceituação: 20 Buber, Martin. Eclipse de Deus: considerações sobre a relação entre religião e filosofia. Campinas: Verus, 2007. p. 32. 25 No fundo de toda a situação verdadeiramente religiosa, encontra-se a referência aos fundamentos últimos do homem: quanto à origem, quanto ao fim e quanto à profundidade. O problema religioso toca o homem em sua raiz ontológica. Não se trata de fenômeno superficial, mas implica a pessoa como um todo. Pode caracterizar-se o religioso como zona do sentido da pessoa. Em outras palavras, a religião tem a ver com o sentido último da pessoa, da história e do mundo.21 Ao falar de religião, ao menos do ponto de vista filosófico, não se deveria reduzi-la a nenhuma outra realidade que não seja a si mesma. É precisamente com base nessa experiência de incondicionalidade que a filosofia da religião se aproxima do fenômeno religioso. Isso, porém, não significa que a filosofia da religião deva ter o olhar do cristão, que seria próprio do teólogo. A filosofia da religião intenta abstrair das funções religiosas suas categorias centrais. Dicas de leitura Buber, Martin. Eclipse de Deus. Campinas: Verus, 2007. Croatto, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2001. Cap. 1. Zilles, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991. Cap. 1. Filosofia da religião é doutrina das funções religiosas e de suas categorias. Teologia é apresentação normativa e sistemática da plenificação concreta do conceito de religião.22 A distinção entre filosofia da religião e teologia é fundamental. Se ela não for efetivamente realizada, acaba havendo algum tipo de cooptação de discurso, seguido de instrumentalização ideológica. Severino Croatto faz a seguinte distinção: A filosofia da religião preocupa-se com o Absoluto, não como “encontro” com ele, nem como Deus, mas como o Ser e o fundamento de 21 22 26 Zilles, Filosofia da religião cit., p. 6. Ibid., p. 7. toda realidade. O ponto de vista, ou a via de acesso, é sempre racional [...]. A filosofia da religião fala de Deus e do ser humano religioso. É um saber, não um compromisso.23 Como ciência, a teologia parte do dado da fé; por isso, pretende falar a partir de Deus, a partir da relação que ele estabelece com o ser humano [...]. A teologia, como ciência, “utiliza” os dados da fé (da revelação), mas se fundamenta (como a filosofia) na razão. Seu ponto de partida é a experiência de fé (diferente da filosofia), mas seu método é racional.24 A questão do ponto de partida é decisiva A filosofia da religião parte da razão, enquanto a teologia parte da experiência de fé. O ponto de partida da teologia pressupõe a revelação. No caso do cristianismo, por exemplo, a revelação significa a penetração do incondicionado no condicionado. A filosofia da religião se encontra com a revelação, não podendo dar a ela a mesma resposta que a teologia. O que a filosofia da religião faz é estudar “a consciência do homem e de sua autocompreensão a partir do absoluto enquanto atingível pela inteligência”.25 Ela tematiza a abertura humana para o mistério que o envolve de maneira positiva, aceitando-o, ou de maneira negativa, rejeitando-o. Tematiza, pois, a relação do ser humano com o santo ou numinoso no horizonte da autocompreensão humana. 23 24 25 Croatto, op. cit., p. 21-22. Ibid., p. 22-23. Zilles, Filosofia da religião cit., p. 5. 27 Exercício Indique a principal diferença entre os posicionamentos da filosofia e da religião diante da ideia de Deus. _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 28