Prefácio
“Eu só acreditaria em um Deus que soubesse dançar.”
Friedrich Nietzsche
O que nasceu primeiro: a filosofia ou a religião? Resposta difícil.
O livro que você tem em mãos não pretende oferecer essa resposta.
Talvez ajude você a caminhar na busca de mais perguntas; no entanto,
serão perguntas maravilhosas, com sentido, necessárias.
Como seria bom se toda ciência tivesse a coragem de dialogar com
a filosofia, entendendo que não seria um diálogo, como muitas vezes
acontece, para procurar o que diz Sócrates ou Platão, por exemplo,
sobre justiça, medicina etc. Não! Isso é um uso banal da filosofia. Esse
diálogo de que falo é mais que um diálogo; é a coragem para deixar-se
questionar e buscar sentido em todas as ciências e aí, sim, acreditar que
pode haver uma filosofia do direito, uma filosofia da administração e
uma filosofia da religião.
Quando uma ciência busca questionar-se por sua essência, dimensão teleológica e papel no mundo atual, então podemos dialogar com a
filosofia. O texto que você tem em mãos procura fazer exatamente isso.
O autor não “utiliza” a filosofia ou a religião para doutrinar interessados
no assunto.
Trata-se de uma busca questionadora. O texto tem a coragem de
mostrar aspectos que nem sempre teólogos e religiosos estão interessados em destacar. E, ao assim proceder, o faz questionando. Eis talvez
a primeira grande função da filosofia e dos filósofos: questionar e deixar-se questionar, não ter medo de receber a pergunta, encará-la e voltar
a aprender com os dois grandes mestres da maiêutica, Sócrates e Jesus,
que questionar é viver!
7
Trata-se de uma busca crítica. O texto é crítico porque estabelece
critérios. Essa é a primeira função da crítica: estabelecer critérios. Nesse
sentido, o texto é claro, pedagógico, indica caminhos, propõe problemas,
indica bibliografia para aprofundar os temas, propõe exercícios e deseja
que todos aprofundem a reflexão. Nossa sociedade está assentada na cultura da não crítica. Desde crianças, aprendemos que viver em sociedade
é estar conformado com tudo; é assim na família, na escola, no namoro,
no casamento e ainda mais nas igrejas e religiões. Esquecemos que nossos fundadores, tanto os da filosofia como os da religião, foram grandes
críticos de seu tempo e de sua sociedade e por essa razão entenderam
que, se questionar é viver, criticar é viver com sentido.
Trata-se de uma busca radical. É no próprio texto que encontramos
esse significado tão profundo e caro para a filosofia: toda filosofia só pode
ser filosofia se for radical, ou seja, se buscar as verdades desde suas raízes.
Aqui não pode haver superficialidade, cosméticos, suborno e nenhuma
forma de corrupção. A natureza deste livro exige radicalidade, e o autor
a segue de maneira brilhante. Não escamoteia as críticas que a religião,
Deus, as igrejas e a espiritualidade sofrem na sociedade contemporânea,
e por essa mesma razão consegue caminhar, não na linha da solução ou
de apresentar teologias apologéticas, mas buscando, na própria essência humana, as razões para erguer as mãos e clamar pelo mistério, pelo
inefável, pelo desconhecido. Então podemos afirmar que, se questionar
é viver e criticar é viver com sentido, ser radical é questionar, criticar e,
ainda mais, é bailar à música mágica do amanhã.
Desejo uma excelente, prazerosa, religiosa e filosófica leitura!
Luiz Longuini Neto
Professor de filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rio de Janeiro
8
Introdução
A religião tem proporcionado ao longo de sua história as experiências
mais profundas e paradoxais que um ser humano pode experimentar.
Qualquer pergunta sobre a cultura, a política, as artes, a economia, as
ideologias pode muito bem ser argumentada tomando por base a presença
e a influência da religião, seja em sua expressão individual, seja em sua
representação institucional. Portanto, falar sobre a existência humana
constitui um desafio de falar também sobre as expressões religiosas
presentes em toda a sua radicalidade.
Em certo sentido, quando Marx diz que a crítica à religião é a
última e mais importante crítica, ele está demonstrando a centralidade
do elemento religioso para a vida das pessoas e das sociedades. Tal
importância justifica a contínua preocupação que a filosofia tem com
a religião. Aliás, antes mesmo de qualquer outra reflexão menos ou
mais científica, foi a filosofia que se debruçou sobre tal expressão da
vida humana em relação à(s) divindade(s). Sem incorrer em nenhum
equívoco, podemos dizer que na origem mesmo da filosofia está a
experiência tipicamente religiosa do espanto acerca da realidade e do
esforço por nomear suas origens. O que a filosofia fez foi desdobrar tal
espanto e esforço em uma atividade mais racional e autônoma.
Dos longínquos tempos anteriores a Sócrates até os fluidos dias de
nossa cultura pós-moderna, a religião nunca saiu da pauta da filosofia.
Ora como rainha, ora como vassala, sempre esteve ali impondo sua
desejada ou incômoda presença. Ao longo deste livro, pretendemos
olhar essa história de amores e ódios entre filosofia e religião através de
lentes cristãs. Explicitar a perspectiva da qual pensamos é fundamental
para que nossas colocações ganhem identidade própria: a do cristão que,
sem abdicar dos instrumentais críticos, olha para tal história orientado
por certa teleologia. Ou seja, mesmo tratando da religião em perspectiva
9
filosófica, fazemos isso sem intencionar nenhuma neutralidade, o que
seria no final da contas mera ilusão.
Refletimos, portanto, perguntando por Deus, que afinal subjaz às
experiências religiosas presentes na história da humanidade. Já que
confessamos partir de um lugar específico, não nos acanhamos em
nomear o Real de Deus. Fazemos tal nomeação, contudo, sem imaginar que ela dê conta desse Real, mas ao menos de certa faceta dele.
Assumimos certamente o anseio existencial relacionado à reflexão
travada ao longo deste livro. Tentando melhor expressar essa condição
que determina toda a nossa escrita, dizemos:
Deus!
Digo...
De onde vens?
Por que prossigo?
Por que persigo
E te chamo
Se tu
Em silêncio
Não respondes
????????????????????
Não respondes
Não queres
Estás?
Por que chamo?
E persigo?
Preciso ou não estou?
Com certezas oscilantes ou dúvidas precisas, não nos furtamos em
nenhuma página a enfrentar a presença de Deus na história da formação
do pensamento ocidental, tanto em seus momentos úmidos quanto nos
ventos áridos e ressequidos. Nas palavras de Mario Quintana:
10
Eles ergueram a Torre de Babel
Para escalar o Céu,
Mas Deus não estava lá!
Estava ali mesmo, entre eles,
Ajudando a construir a torre.1 Nosso convite despretensioso a você, caro leitor ou leitora, é de tomar
pela mão direita a irmã dúvida — com suas vestes da cor do juízo — e
pela mão esquerda a esperança — com seu véu bordado pelas contas
da fé — e, dessa forma, caminhar nas sendas do Mistério gentilmente
apresentado à razão humana.
1
QUINTANA, Mario. 80 anos de poesia. 13. ed. São Paulo: Globo, 2008.
11
RESUMO DO CAPÍTULO 1
Ao longo do capítulo 1, “Introdução à filosofia
da religião”, trabalhamos a questão de aproximação
a este importante campo da reflexão filosófica que
é a filosofia da religião.
Para tal aproximação, percorreremos ao longo
deste capítulo os seguintes temas:
• Algumas perspectivas acerca da religião
• Alguns pressupostos da filosofia diante da
religião
• Conceituações descritivas da religião
• O ser humano diante da religião: a formação
do Homo religiosus
• Relações entre filosofia e religião: uma primeira
conclusão
A principal intenção deste capítulo é oferecer ao
leitor alguns instrumentos que possibilitem uma boa
leitura de todo o livro.
Capítulo 1
Introdução à
filosofia da religião
1.1 Algumas perspectivas acerca da religião
A religião, como fenômeno humano, está presente na história
de todos os povos ao longo de todos os tempos. Essa presença, longe de
ser secundária, estruturou — e ainda estrutura — culturas, sendo-lhes
geradora de sentido e plausibilidade. Exatamente por isso, a religião vem
sendo estudada pelas mais diversas expressões da ciência, sobretudo
das ciências humanas e sociais. Dentre essas, queremos destacar algumas: teologia, apologética, fenomenologia e filosofia. Sem dúvida, ao
longo da História foram essas expressões da ciência que de forma mais
contundente se debruçaram sobre o estudo do fenômeno religioso.
• Teologia: estuda os fatos da experiência que são interpretados
em forma de doutrina. “Como ciência, a teologia parte do dado
da fé; por isso, pretende falar a partir de Deus, a partir da relação
que ele estabelece com o ser humano.”1 A teologia como ciência
utiliza os dados da fé (da revelação), mas se fundamenta na razão:
seu ponto de partida é a fé, mas seu método é racional.
• Apologética: demonstra que determinada perspectiva (doutrina)
da teologia é a verdade. Defende a veracidade daquilo que é
1
Croatto, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo:
Paulinas, 2001. p. 22.
15
crido em determinada denominação e expresso num código ou
declaração doutrinária. “Algumas pessoas fazem distinção entre
apologética positiva, que se propõe a provar a verdade do cristianismo, e apologética negativa, que apenas procura remover as
barreiras à fé respondendo às críticas.”2 • Fenomenologia da religião: estuda os fatos religiosos com base em
sua intencionalidade e pergunta pelo significado do fato religioso
para o Homo religiosus.3 “A fenomenologia parte necessariamente
dos fenômenos religiosos (fatos, testemunhos, documentos), contudo explora especificamente seu sentido, sua significação para o
ser humano específico que expressou ou expressa esses mesmos
fenômenos religiosos.”4 • Filosofia da religião: estuda as origens e o conteúdo dos fatos da experiência. Analisa a religião propriamente dita em
suas relações com outras fases da vida. A filosofia da religião preocupa-se com o Absoluto, não como encontro com
ele, nem como Deus, mas como o Ser e o fundamento da
realidade. A filosofia da religião,
Dicas de Leitura
como expressão do saber humano,
Croatto, José Severino. As linmuitas vezes estimulada pela racioguagens da experiência religiosa.
São Paulo: Paulinas, 2001.
nalidade crítica, fala de Deus e do ser
Evans, C. Stephen. Dicionário de
humano religioso. É um saber consapologética e filosofia da religião. São
truído com base na reflexão autônoPaulo: Vida, 2004.
Penna, Antônio Gomes. Em busca
ma, não um compromisso de fé. Por
de Deus: introdução à filosofia da reisso, não substitui o ato religioso, mas
ligião. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
reflete criticamente a respeito dele.5 2
3
4
5
16
Evans, C. Stephen. Dicionário de apologética e filosofia da religião. São Paulo:
Vida, 2004. p. 13.
Designação da fenomenologia da religião para o crente de determinada religião.
Croatto, op. cit., p. 25.
Cf. Ibid., p. 22.
Diferentes abordagens e ramos do saber dedicados ao estudo do fenômeno religioso
O esquema a seguir ajuda na visualização das diferentes abordagens
do fenômeno religioso e da relação que mantêm entre si:
{
{{
Estudo
positivo
do fenômeno
ou fato
religioso:
Ciência
das religiões
Reflexão
normativa
sobre o
fenômeno
ou fato
religioso
Nível científico:
Estudo analítico,
com base em
perspectivas
diferentes.
Nível
fenomenológico:
Estudo sintético,
global, do fenômeno
religioso.
{
{
História das
religiões
Perspectiva
histórica
Sociologia
da religião
Perspectiva
sociológica
Fenomenologia
da religião
Perspectiva
do fenômeno
tal como
se apresenta.
Filosofia da religião
Perspectiva filosófica
(questionamento e estudo do
fenômeno buscando as origens
e o conteúdo dos fatos da
experiência).
Teologia
Formação de doutrinas.
17
Exercício
Descreva as principais características da teologia, da apologética, da
fenomenologia da religião e da filosofia da religião. O que diferencia a
filosofia da religião das demais áreas de estudo da religião?
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1.2 Alguns pressupostos da filosofia diante da religião6
A filosofia da religião, como expressão crítica da reflexão humana
sobre o fenômeno religioso, norteia-se por um conjunto de pressupostos.
Identificar adequadamente esses pressupostos é fundamental para que
seu discurso não se confunda com o discurso religioso em si, aquele
que é feito pelo fiel — a quem estamos chamando de Homo religiosus.
Sem pretender apresentar uma lista exaustiva de pressupostos para a
reflexão filosófica acerca do fenômeno religioso, passamos à exposição
de alguns que julgamos fundamentais:
• A filosofia da religião ou o estudo filosófico da religião baseia-se na
pressuposição de que a religião e as ideias religiosas, pertencentes
primariamente à esfera do sentimento e à experiência prática, podem ser também objetos da interpretação científica ou racional.
• O estudo filosófico da religião pressupõe também que, embora a
religião e filosofia estudem os mesmos assuntos, a atitude humana
para com eles é diferente em cada caso. Na religião, esses assuntos
se apresentam como realidades imediatas e objeto de devoção e
gozo espiritual; ao passo que, na filosofia, esses mesmos assuntos
se apresentam como objeto de reflexão, apreensão intelectual e
mesmo pesquisa especulativa.
6
18
Cf. Zilles, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991. p. 17-19.
• Todo sentimento, seja moral, seja estético, seja religioso, por
sua própria natureza já envolve algum conhecimento, embora
seja este apenas implícito ou virtual. Cabe à filosofia elucidar
esse conhecimento implícito, trazendo-o da esfera da intuição
imediata, na qual a mente ainda é inativa e unida a seu próprio
objeto, para uma esfera mais elevada e consciente, na qual a mente
se distingue de seu objeto e busca unir-se a ele de modo mais
profundo e indissolúvel. É mediante uma interpretação racional
que o ser humano entra na posse do conteúdo de seu próprio
sentimento ou da experiência empírica.7
• O objetivo da filosofia da religião é alcançar a verdade (a realidade
em si) que está implícita ou oculta por trás dos fenômenos ou das
experiências religiosas empíricas. A filosofia da religião visa alcançar a essência ou o significado final dessas mesmas experiências.
A filosofia não se contenta com aquilo que apenas parece ser,
mas com aquilo que realmente é. Ela visa chegar, por meio do
raciocínio, ao conhecimento, positivo ou negativo,8 da causa da
experiência religiosa.
Exercício
Cite os principais pressupostos da filosofia diante da religião.
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7
8
Cf. Penna, Antônio Gomes. Em busca de Deus: introdução à filosofia da religião.
Rio de Janeiro: Imago, 1999. p. 23-36.
Ao longo da história da filosofia, surgiram diversos posicionamentos acerca da
religião e de sua plausibilidade. Esses posicionamentos são basicamente de natureza positiva, simpatia ou defesa da religião, ou de natureza negativa, descrendo
abertamente ou tomando como impossível a verificação da experiência humana
com alguma realidade transcendente. Para aprofundar essa temática, v. as obras
de Urbano Zilles, Filosofia da religião cit., e Teoria do conhecimento, Porto
Alegre: Edipucrs, 2005.
19
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1.3 Conceituações descritivas da religião
Este grupo de conceituações procura descrever a religião em termos
de seu significado central ou caráter essencial, não tendo como intenção
simplesmente desacreditá-la.9
• Religião é crença: a religião tem sido definida por muitos como
sendo aquilo que um indivíduo crê a respeito de coisas últimas.
Religião é “uma crença em um poder sobre-humano invisível
[...] juntamente com os sentimentos e práticas que decorrem
naturalmente de tal crença”.10 Mas, conquanto a crença e convicções sejam importantes elementos da religião, não representam sua globalidade.
• A religião pertence à natureza e estrutura humanas: assim como o ser
Dicas de Leitura
humano tem várias capacidades que
Boff, Leonardo. Tempo de transexpressam sua natureza e seu ser — por
cendência: o ser humano como um
exemplo, como pensador, técnico e
projeto infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
artista —, da mesma forma é dotado
Otto, Rudolf. O sagrado. Petróda capacidade religiosa. Ele não pode
polis: Vozes, 2007.
explicar direito essa capacidade, mas a
Schleiermacher, Friedrich. Sobre
tem. O ser religioso pertence ao equia religião. São Paulo: Novo Século,
2003.
pamento que a natureza lhe concedeu.
Tillich, Paul. Dinâmica da fé. São
Isso não quer dizer, entretanto, que
Leopoldo: Sinodal, 2001.
todos têm o mesmo grau de percepção religiosa. Alguns têm um sentido
9
10
20
Em seguida, trataremos dos diversos posicionamentos filosóficos diante da
religião, incluindo as perspectivas antagônicas caracterizadas pelo ateísmo e
agnosticismo.
Dicionário Webster, verbete “Religião”.
mais profundo; outros, menos. Não se pode negar, contudo, que
o ser humano demonstra comportamento religioso.
• Religião é nossa consciência da responsabilidade moral:
Immanuel Kant defendeu a ideia de que a religião está arraigada
na consciência de nossa responsabilidade moral. Durante nossa
vida terrena, somos repetidamente confrontados com o “deves”
misterioso, o imperativo categórico que nos ordena a fazer
aquilo que é moralmente correto ou justificável.11 O ego procura
desculpar-se e escapar da tirania desse amo tão severo, mas
nunca é bem-sucedido na tentativa de silenciar essa voz acusadora.
A religião é o resultado do reconhecimento dessa autoridade por
parte do ser humano.
• A religião está relacionada com nosso caráter emocional:
a condição religiosa se dá porque o ser humano é capaz de
compreender que o Universo é grande diante de poderes que são
imensamente maiores que os seus próprios. O relacionamento
entre a humanidade e a natureza é recíproco; em sua imaginação
simplista, o ser humano supõe que este mundo fantástico está
cheio de poderes amigos e hostis.12
• Religião é o sentimento humano com relação às coisas de caráter último: há ainda afirmações que identificam a religião como
o modo de a humanidade expressar seus sentimentos sobre coisas
de caráter último. Friedrich Schleiermacher, teólogo alemão do
início do século XIX, deixou-nos uma nota de grande influência
quando conceituou religião como “um sentimento de dependência
absoluta”.13
11
12
13
Cf. Kant, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martin Claret, 2001.
p. 67-116; e, A religião nos limites da simples razão. Lisboa: Edições 70, 1985.
p. 101-129.
Essa é basicamente a definição de religião derivada do sentimento anímico próprio
das sociedades primitivas.
Cf. Schleiermacher, Friedrich. Sobre a religião. São Paulo: Novo Século, 2003.
21
Ênfase um tanto quanto semelhante foi dada por Rudolf Otto, em seu
livro O sagrado, no qual ele considera ser a religião essencialmente um
sentimento de temor e mistério resultante de alguma forma de contato
com o infinitamente OUTRO.14
Exercício
Escolha uma das caracterizações da religião e justifique sua predileção.
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• Religião é consciência do transcendental: para entender o significado da frase, é bom definirmos os termos, pois transcendente
pode significar duas coisas:
1. Diz-se que algo é transcendente se vai além, ou se é algo mais,
do que a consciência imediata de alguém.15
2. Algo é transcendente no sentido religioso quando é recebido
pelo indivíduo como possuindo um caráter último. No dizer de
Paul Tillich, é aquilo que toca a pessoa incondicionalmente e
que não se pode controlar.16
14
15
16
22
Cf. Otto, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 40-63.
Cf. Boff, Leonardo. Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto
infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. p. 41-52. No capítulo 7 deste livro,
intitulado “Lugares privilegiados de experiência da transcendência”, o autor
trabalha a ideia da transcendência que se dá nos limites da realidade propriamente
humana.
Respondendo à pergunta “O que é a fé”, Paul Tillich afirma: “Fé é estar possuído
por aquilo que nos toca incondicionalmente” (Dinâmica da fé. São Leopoldo:
Sinodal, 2001. p. 5).
1.4 O ser humano diante da religião: a formação do Homo
religiosus
A experiência religiosa, como expressão mais radical do ser humano
diante da realidade de sua existência, é estruturante. Em outras palavras,
a experiência religiosa é a espinha dorsal da vida dos que expressam
algum tipo de fé. Em razão de tal centralidade, elencamos algumas
características da forma do Homo religiosus:
• Somente o ser humano demonstra comportamento religioso
(o ser humano como Homo religiosus): somente o homem e
a mulher, dentre as várias formas de vida existentes, exibem
comportamento religioso. Todas as culturas pesquisadas e registradas pelos antropólogos parecem demonstrar algum tipo de sentimento religioso, embora diferentes em sua expressão cultural da
religião tradicional da cultura do Ocidente.
• Religião é a resposta dada às questões de caráter último do
Homo religiosus: um importante aspecto, de caráter distintivo,
do ser humano é que ele é um sujeito autoconsciente. Nunca o
homem é simplesmente uma peça de seu ambiente, mas ele tem
condições de destacar-se e até mesmo contraditar seu ambiente.
A religião é para esse ser consciente a resposta dada às questões
últimas, tais como: Qual o significado de minha existência? O
que fazer de minha vida? Por que estou aqui? Em suma, a religião
oferece respostas às questões de origem e finalidade do ser humano e do meio em que ele vive. Nesse sentido, a religião pode
ser descrita como o significado último da existência humana.
• O Homo religiosus e o desejo do absoluto: a resposta religiosa
possui a qualidade do absoluto, tem caráter último. Tillich descreveu a religião como uma atitude de preocupação última.17 Uma
resposta religiosa é absoluta ou última em dois sentidos: 1) ocupa
a prioridade mais elevada na hierarquia de preocupações que
constituem uma personalidade; 2) permeia a vida como um todo.
17
Dinâmica da fé cit.
23
Exercício
Diga o que você entende por Homo religiosus.
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• O Homo religiosus e a linguagem simbólica: a linguagem da
religião é fundamentalmente simbólica, diferentemente, por exemplo, da linguagem da ciência, que lida primordialmente com a
linguagem postulacional.18 A pessoa religiosa fala da realidade
última por meio de metáforas e analogias, buscando dizer aquilo
que é propriamente indizível.19 Daí ser a linguagem simbólica a
única adequada para expressar o fenômeno religioso.
1.5 Relações entre filosofia e religião: uma primeira conclusão
Segundo Martin Buber:
A religião, mesmo que o “Incriado” não seja expresso com boca e com
alma, fundamenta-se na dualidade Eu-Tu; a filosofia, mesmo quando o
ato filosófico desemboca em uma visão de unidade, fundamenta-se na
dualidade sujeito-objeto [...]. A primeira nasce da situação primordial do
18
19
24
Há, porém, uma discussão acerca da condição simbólico/analógica da própria ciência. Essa discussão se dá na contramão do modelo positivista da ciência
(cf. Alves, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São
Paulo: Loyola, 2005). Numa direção semelhante, podemos ainda citar a filosofia
pragmática, em especial o pensamento de Richard Rorty (Verdade e progresso.
Barueri: Manole, 2006.) A principal ideia dessa obra é que a ciência não lida
com o problema da verdade, mas com a resolução de problemas relacionados a
determinado tempo e espaço.
Falando sobre a natureza da linguagem religiosa, João Batista Libânio diz o seguinte:
“Prefere a linguagem simbólica, ama o ícone [...]. Fala à inteligência, mas pretende
aquecer as fibras do coração” (Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São
Paulo: Loyola, 1999. p. 89).
indivíduo: ele em presença do ente que aponta para ele e para quem ele
aponta; a segunda surge da divisão desse conjunto em duas maneiras de
ser inteiramente diferentes: um ser que esgota sua capacidade no observar e refletir, e outro que não consegue outra coisa senão ser observado
e ser refletido. Eu e Tu subsistem graças à concretude vivida e dentro
dessa concretude; sujeito e objeto, produtos da força de abstração, só
duram enquanto dura a abstração.20
Essa distinção buberniana de Eu-Tu e sujeito-objeto aponta para certa
especificidade tanto da religião quanto da filosofia. Enquanto a primeira
se inscreve na dimensão do vivido e do concreto, a segunda opera na
dimensão da abstração, ou seja, na reflexão distanciada acerca daquilo
que é vivido por outro.
MARTIN BUBER
(1878-1965)
Martin Buber nasceu em Viena,
em 1878. Foi um dos mais importantes filósofos judeus do século XX. Tal
era o poder de sua palavra escrita e
oral que, durante a Primeira Guerra
Mundial, muitos jovens escreveram-lhe procurando ajuda em difíceis
crises morais, religiosas e políticas.
Suas respostas eram vistas como as
de uma autoridade que estava acima
das ideologias da época. Martin Buber
é muito conhecido por sua principal
obra filosófica I and Thou [Eu e Tu],
publicada em 1923. Martin Buber morreu em 1965.
É próprio, portanto, da reflexão
filosófica sobre a religião certo distanciamento reflexivo que se justifica com base na tarefa crítica da
filosofia. A filosofia quer, portanto,
inquirir da religião suas razões. No
entanto, isso não se faz pelo olhar
do cristão, mas do olhar do crítico.
Ou seja, quem faz a pergunta a faz
não como quem vive certa prática, mas como quem a observa com
certa distância e abstração.
Nesse sentido, cabe a pergunta
pelo significado da religião. Afinal de
contas, o que é religião? Urbano Zilles propõe a seguinte conceituação:
20
Buber, Martin. Eclipse de Deus: considerações sobre a relação entre religião e
filosofia. Campinas: Verus, 2007. p. 32.
25
No fundo de toda a situação verdadeiramente religiosa, encontra-se a referência aos fundamentos últimos do homem: quanto à origem, quanto ao fim e quanto à profundidade. O problema religioso toca
o homem em sua raiz ontológica. Não se trata de fenômeno superficial,
mas implica a pessoa como um todo. Pode caracterizar-se o religioso
como zona do sentido da pessoa. Em outras palavras, a religião tem a
ver com o sentido último da pessoa, da história e do mundo.21
Ao falar de religião, ao menos do ponto de vista filosófico, não se
deveria reduzi-la a nenhuma outra realidade que não seja a si mesma.
É precisamente com base nessa experiência de incondicionalidade que a
filosofia da religião se aproxima do fenômeno religioso. Isso, porém, não
significa que a filosofia da religião deva ter o olhar do cristão, que seria
próprio do teólogo. A filosofia da religião intenta abstrair das funções
religiosas suas categorias centrais.
Dicas de leitura
Buber, Martin. Eclipse de Deus.
Campinas: Verus, 2007.
Croatto, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. São
Paulo: Paulinas, 2001. Cap. 1.
Zilles, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991.
Cap. 1.
Filosofia da religião é doutrina das funções religiosas e de suas categorias. Teologia é apresentação normativa e sistemática
da plenificação concreta do conceito de
religião.22
A distinção entre filosofia da religião e teologia é fundamental. Se ela
não for efetivamente realizada, acaba
havendo algum tipo de cooptação de
discurso, seguido de instrumentalização ideológica. Severino Croatto
faz a seguinte distinção:
A filosofia da religião preocupa-se com o Absoluto, não como “encontro” com ele, nem como Deus, mas como o Ser e o fundamento de
21
22
26
Zilles, Filosofia da religião cit., p. 6.
Ibid., p. 7.
toda realidade. O ponto de vista, ou a via de acesso, é sempre racional [...]. A filosofia da religião fala de Deus e do ser humano religioso.
É um saber, não um compromisso.23
Como ciência, a teologia parte do dado da fé; por isso, pretende
falar a partir de Deus, a partir da relação que ele estabelece com o
ser humano [...]. A teologia, como ciência, “utiliza” os dados da fé
(da revelação), mas se fundamenta (como a filosofia) na razão. Seu
ponto de partida é a experiência de fé (diferente da filosofia), mas
seu método é racional.24
A questão do ponto de partida é decisiva
A filosofia da religião parte da razão, enquanto a teologia
parte da experiência de fé. O ponto de partida da teologia pressupõe a revelação. No caso do cristianismo, por exemplo, a revelação significa a penetração do incondicionado
no condicionado. A filosofia da religião se encontra com
a revelação, não podendo dar a ela a mesma resposta que
a teologia. O que a filosofia da religião faz é estudar “a
consciência do homem e de sua autocompreensão a partir
do absoluto enquanto atingível pela inteligência”.25 Ela
tematiza a abertura humana para o mistério que o envolve
de maneira positiva, aceitando-o, ou de maneira negativa,
rejeitando-o. Tematiza, pois, a relação do ser humano com
o santo ou numinoso no horizonte da autocompreensão
humana.
23
24
25
Croatto, op. cit., p. 21-22.
Ibid., p. 22-23.
Zilles, Filosofia da religião cit., p. 5.
27
Exercício
Indique a principal diferença entre os posicionamentos da filosofia e
da religião diante da ideia de Deus.
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Uma Introdução à Filosofia da Religião