Nome: Elma Júlia Gonçalves de Carvalho. Título: AUTONOMIA DA GESTÃO ESCOLAR: PRIVATIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO: DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA. Endereço: Universidade Estadual de Maringá - Departamento de Teoria e Prática da Educação, Av. Colombo 5790 Fone/Fax 261-4287, CEP- 87020.900, [email protected]. Introdução Os temas descentralização e autonomia da gestão escolar estão muito presente não só nos debates, mas também na tendência atual das reformas educacionais e nos encaminhamentos cotidianos da escola. No final da década de 80 e início da de 90, como conseqüência do rápido desenvolvimento tecnológico e da nova ordem globalizada, a educação passa a ser vista como elemento central na construção de um novo modelo econômico e de um novo padrão de competitividade entre os países no novo cenário econômico mundial. Os sistemas educativos, particularmente o da educação básica, devem buscar atender às novas exigências de qualificação do novo perfil da força de trabalho. Entre as alternativas para tornar a escola eficiente, torna-se crescente a crítica às medidas de centralização administrativa e pedagógica e ganham força cada vez maior as propostas de descentralização, caracterizando-se, assim, uma tendência mundial de redefinição da política educacional e de reordenamento da gestão educacional, visando fortalecer a autonomia das unidades escolares. Esta tendência mundial pode ser observada, por exemplo, na Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtiem, na Tâilandia, em março de 1990. Convocada simultaneamente por quatro agências internacionais: UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e Banco Mundial, desta conferência resultaram posições consensuais que se tornaram as bases dos Planos Decenais de Educação1, concebidos e elaborados para ser um instrumento de recuperação da educação básica. Dentre os compromissos assumidos pelos líderes dos países em desenvolvimento de maior população no mundo na Declaração Mundial de Educação para Todos, podemos citar principalmente os referentes à autonomia da gestão como, promover o desenvolvimento de um novo padrão de gestão educacional, com base na autonomia administrativa, financeira e pedagógica nas escolas públicas (para que possam elaborar e executar seus projetos político-pedagógicos) e fortalecer a gestão 1 “O Plano Decenal é um conjunto de diretrizes de política em processo contínuo de atualização e negociação, cujo horizonte deverá coincidir com a reconstrução do sistema nacional de educação básica (...) essas diretrizes de política servirão de referência e fundamentarão os processos de detalhamento e operacionalização dos correspondentes planos estaduais e municipais. As metas globais que ele apresenta serão detalhadas pelos Estados, pelos Municípios e pelas escolas, elegendo-se, em cada instância, as estratégias específicas mais adequadas a cada contexto e à consecução dos objetivos globais do Plano”. (Plano Decenal de Educação para Todos 1993-2003, Brasília: MEC, 1993, p.15). 1 democrática mediante a maior participação dos pais e da comunidade nos assuntos escolares, através de APMs e Conselhos Escolares. (Plano Decenal de Educação, 1993, p. 27, 40, 42 e 46). Neste contexto, a nova Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394-96)2 representa um passo decisivo na mudança das formas de organização da gestão escolar. As propostas de novas formas de gestão com base na descentralização e de participação da comunidade na vida da escola recebem um grande eco no setor educacional. A LDB trouxe profundas mudanças para o sistema educacional brasileiro, em relação a gestão, e ao consagrar princípios como liberdade, autonomia, flexibilidade e democracia. Centrando-se na concepção democrática, a proposta demanda mudanças não só no conceito de gestão escolar, que passa a se basear na descentralização administrativa e financeira, mas também no sentido pedagógico. Cada escola poderá construir seu próprio projeto políticopedagógico, estabelecer seu próprio sistema de avaliação, realizar a escolha administrativa de seus dirigentes e implantar o Conselho Escolar de forma a institucionalizar a participação da comunidade na gestão democrática. O destaque que a questão da autonomia e descentralização tem ganho na atualidade, tanto no Brasil como no resto do mundo, não significa que esta seja uma questão nova. Já no final do século XIX, o assunto já esta posto no campo educacional brasileiro tornando-se, durante o século XX, um de seus grandes temas. Para situar e delimitar nosso objeto de investigação importa, portanto, refletir sobre a produção dessa polêmica no tempo. Nesse sentido, e, por isso, ainda que de forma muito breve, faremos uma incursão sobre os debates que envolveram a questão desde o século XIX. Autonomia e Descentralização na Educação: Uma breve incursão histórica. Talvez a primeira realização em favor da descentralização da educação tenha ocorrido em 1834, três anos após a abdicação de D. Pedro I (07/04/1831). Nesse momento o parlamento aprovou o Ato Adicional à Constituição de 1824, determinando a descentralização/autonomia, quando através do Art. 10, § 2°, atribuiu às províncias o direito de promover e legislar sobre a instrução pública primária e média nas suas próprias jurisdições, deixando ao poder central a função de promover e regulamentar o ensino superior (Faculdades de Medicina e Direito, Academias e, quaisquer outros estabelecimentos que no futuro fossem criados por lei geral) em todo o Império. No final do período imperial, a centralização/unificação do ensino passou a ser enfaticamente defendida entre os parlamentares, educadores e intelectuais. Por exemplo, na obra A Província, publicada pela primeira vez em 1870, Tavares Bastos (1975, p.58) advogava a favor da intervenção 2 Os artigos 3°, inciso VIII, 12,13,14,15 prescrevem medidas relativas à gestão democrática e à autonomia da escola. 2 do Estado na propagação da instrução popular. Embora contrário a qualquer idéia de centralização política, ele reconhecia que o Estado não poderia deixar de intervir no ramo da instrução. Rui Barbosa, em 1882, em parecer à Reforma “Leôncio de Carvalho” (19/04/1874), foi o primeiro a sugerir a criação de um órgão de coordenação e difusão do ensino e objetivando a organização de um sistema nacional de educação declarou-se favorável à “interferência do governo central para a difusão do ensino elementar (...) (Apud, Paiva, 1985, p.77). Assim, desenvolve-se no Brasil uma tendência de defesa da centralização/intervenção do Estado na educação. Propunha-se que o Governo Central organizasse uma educação nacional com vistas à formação do cidadão necessário à transformação do país em uma nação moderna, civilizada e produtiva. Apesar disso, a Constituição de 1891 não alterou a organização do ensino no Brasil. Preservando a descentralização/autonomia, continuou reservando ao Governo Central a competência para promover e legislar sobre o ensino superior (Art. 34°), deixando a cargo dos estados a instrução primária e profissional (Art.35°). No entanto, desde o final do século XIX, consolidou-se um movimento a favor da intervenção do Estado na organização do ensino em nível nacional, ocorrendo nos anos 20/30 uma defesa mais acirrada da centralização e, nesse sentido, de uma política nacional de educação. Nas Conferências Nacionais da Educação, realizadas nos anos 20, promovidas pela ABE (Associação Brasileira de Educação), aflora um debate intenso em torno da necessidade da “intervenção direta do Estado na instrução”. A instrução considerada “um fator de progresso” e essencial para a formação do homem, “elemento primordial da nacionalidade, o qual não deve ficar abandonado a si mesmo para se educar, nem tampouco sob a autoridade paterna, limitada dentro das exigências legais”. (CNE, 1927, p.160). Estava em marcha uma luta por uma política nacional de educação. Questão que podemos observar através d’O manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, lançado em 1932, tinha como objetivo principal interceder junto ao governo para que fossem promovidas reformas na educação. No entanto, a intervenção do Estado na educação não se opunha a soluções regionais e descentralizadas devendo limitar-se a uma ação coordenadora e estimuladora. A Constituição de 34 contemplou as reivindicações e orientações dos Pioneiros da Educação Nova, atribuindo à União a competência para “traçar as diretrizes da educação nacional” (art. 5°, XIV), bem como para “fixar o plano nacional de educação” (art. 150, a), enquanto aos Estados e Distrito Federal competia “organizar e manter seus sistemas de ensino, nos territórios respectivos, respeitar as diretrizes estabelecidas pela União” (art. 151). A Constituição de 1937, imposta ao país como ordenamento legal, produzida pela tecnocracia getuliana, diferia da Constituição anterior, estabelecendo que “compete privativamente à União a competência e o poder de legislar sobre (...) as diretrizes da educação nacional” (art. 5°, XV); como também “fixar as bases e determinar os quadros da educação nacional, traçando as 3 diretrizes a que deve obedecer a formação física, intelectual e moral da infância e da juventude” (art. 15, IX). A política do Estado Novo, segundo Ribeiro (1998, p.129), “dispensava o sistema representativo, enquadrava os demais poderes no executivo e liquidava com o federalismo, com os governos estaduais, com a pluralidade sindical etc.” Ou seja, a política educacional inseria-se na proposta centralizadora do poder então existente. Em 1946, no momento de redemocratização do país após o fim do Estado Novo, foi promulgada a 4ª Constituição da República, que reafirmava, em muitos pontos, os princípios anteriores da “democratização” e descentralização, deixando nas mãos dos estados a competência para organizar seus respectivos sistemas de ensino (Art. 6), enquanto à União cabia a tarefa de “legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional”(Art. 5°, XV). A partir desse momento, intensificam-se os debates para a elaboração do projeto de Diretrizes e Bases da Educação, que culmina em 1961, com a criação e organização de um sistema nacional de educação. No primeiro período de discussão do projeto até 1958, as principais divergências incidem exatamente sobre a questão da centralização/descentralização da educação. Dentre os que defendiam a descentralização, encontramos o então ministro da Educação e Saúde, Clemente Mariani, que encaminhou ao Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, em outubro de 1948, o projeto da LDB. Segundo Mariani “é preciso descentralizar (...) porque o país é demasiado extenso e variado para ter um modelo único” (Apud, Buffa,1989, p.18 ). Dentre os que defendem a centralização, destaca-se o deputado Gustavo Capanema para quem “a União não deve não só estabelecer normas gerais do ensino, como também dar-lhes estrutura e disciplina, organização e regime” (Apud Buffa, 1989, p.20). No segundo período, de 1958 a 1961 predomina a crítica incisiva ao centralismo administrativo e a defesa da descentralização. Isto fica explícito no Manifesto dos Pioneiros Mais uma Vez Convocados, de 1959. De acordo com o documento “(...) o excesso de centralização; o desinterêsse ou conforme os casos, a intervenção tantas vêzes pertubadora da política; a falta de espírito público, o diletantismo e a improvização conjugaram-se nesse complexo de fatores, para criarem a situação a que resvalou a educação pública no país (...)” (Apud, Ghiraldelli,1990, p.142). Finalmente, a Lei de Diretrizes e Bases 4.024/61 fundamentou-se na idéia de descentralização/autonomia da educação. Merece considerável atenção o Art. 107, que define caber ao poder público estimular a colaboração popular em favor das fundações e instituições, culturais e educativas e o Art. 115 que atribui à escola a responsabilidade de estimular a formação de associações de pais e professores. Todavia, a partir de 1964, esse espírito descentralizador fica esmaecido. De acordo com o Art. 8° da Constituição de 69, compete à União: “legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional; normas gerais sobre desportos” (XVII, q) e “estabelecer planos nacionais de educação e 4 saúde, bem como planos regionais de desenvolvimento” (XIV). Segundo os comentários de José Silvério Baia Horta (1989, p.11), “com efeito, a partir de 1964, entramos numa fase em que, junto com a legislação, e de forma mais importante do que ela, a intervenção do Estado em educação passa a ser feita através de planejamento, concebida em uma perspectiva tecnocrática e economicista (...)”. Também a esse respeito Jônathas Silva (1992, p.179) diz que, “nos textos constitucionais de 67 e 69, fortalece-se excessivamente a União, sob a justificativa de preservar a ordem, a paz, a segurança e o desenvolvimento (...) em prejuízo das unidades federadas e dos municípios, convertendo as suas autonomias em figura de retórica”. Com a provação da Lei 5692/71, a vertente da descentralização reaparece no que diz respeito ao ensino de 1° grau. Apesar da centralização do poder decisório, promoveu-se a descentralização do sistema de ensino de 1° grau, visando “à progressiva passagem para a responsabilidade municipal os encargos e serviços da educação”, conforme Art. 58, Parágrafo Único. O espírito descentralizador acentua-se a partir do final dos anos 70, no interior da discussão sobre municipalização do ensino já sugerida na Lei de Diretrizes e Bases 5692/71. A partir daí cresce e mistura-se ao movimento em prol da democracia. A partir dos anos 80, o país entra numa fase de transição política, de redemocratização da máquina governamental, com eleições diretas, o fim do bipartidarismo etc. No bojo da luta pela redemocratização, parece existir um certo consenso quanto à negação das decisões centralizadas e autoritárias. A defesa da descentralização, fortemente associada à aspiração nacional de maior participação nos processos decisórios, é reivindicada por amplos setores da sociedade e defendida com veêmencia pelas forças progressistas. No campo educacional, a descentralização constitui-se também uma das principais preocupações dos educadores, pesquisadores, dirigentes educacionais, sendo inclusive tema do Congresso Mineiro de Educação ocorrido em 1983. Ganham fôlego as reivindicações no sentido da regulamentação da gestão democrática do ensino público. A legislação devia garantir uma estrutura democrática que contemplasse as competências e atribuições dos órgãos colegiados; a representação da comunidade escolar em órgãos colegiados deliberativos em todos os níveis do sistema educacional como, Conselho Nacional de Educação, Conselhos Estaduais de Educação, Conselhos Municipais de Educação e Conselhos Escolares; a participação das entidades representativas da comunidade escolar na decisão sobre os objetivos, currículos e métodos, a fim de que estes fossem mais adequados às suas necessidades e aspirações; eleição de dirigentes educacionais e autonomia pedagógica. Evidentemente isso exigiria uma revisão nas funções do Estado e da educação. A esse respeito Rodrigues (1986, p.44) diz: À medida que se deslocam do Estado para a escola as decisões a respeito de como fazer educação, os órgãos do Estado perdem o caráter impositivo e se tornam 5 órgãos que coordenam, organizam e dão suporte às atividades necessárias. Com isto, o verdadeiro poder de decisão se desloca do nível burocrático da administração para o pedagógico da ação. Os próprios discursos dos governantes revelam que, na perspectiva do Estado, a gestão escolar devia sofrer modificações. A mensagem apresentada ao Congresso Nacional pelo Presidente da República João Baptista de Oliveira Figueiredo, na abertura da sessão legislativa de 1981, já informava sobre a necessidade de “fazer a comunidade participar do processo educacional” (MEC/INEP, 1987, p.4945). No mesmo sentido, a mensagem apresentada ao Congresso Nacional pelo Presidente da República José Sarney, na abertura da sessão legislativa de 1986, torna bastante explícita a redução da interferência do Estado. Diz ele: À medida que se racionalizam normas e diretrizes para a administração de programas educacionais, as unidades da Federação e os municípios assumiram maior poder de decisão em todo o processo de ensino. Foi-lhes dispensado tratamento diferenciado, com oportunidade de autodeterminação quanto às decisões políticas e estratégias sobre o desenvolvimento de seus sistemas de ensino. (Ibid, p.528). No entanto, em meados dos anos 80 os educadores começam a ver a descentralização com cautela. Míriam Warde(1986, p.60) e Guiomar N. de Mello (1988, p.10), por exemplo, advertem que a descentralização e autonomia só contribuirão para tornar a escola mais democrática se forem repassados recursos para a “máquina da administração direta do ensino”. Portanto, defende-se a autonomia, mas não se dispensa o financiamento do Estado. Na Constituição de 88, verifica-se a tendência descentralizadora/participativa. Os artigos 206 e 211, por exemplo, redefinem a responsabilidade dos estados e municípios, que passam a ter autonomia para organizar seus respectivos sistemas de ensino em proporções maiores do que nas legislações anteriores. Ao final dos anos 80, manifesta-se entre os educadores o temor de que a descentralização em nível local, através da transferência da responsabilidade sobre as escolas públicas para as municipalidades, pudesse abrir caminho para a privatização. Esta preocupação é bastante explícita no debate aberto pela Revista ANDE, 1988, n° 13. Nos últimos anos, após a Constituição de 88 tem se definido cada vez mais a tendência para a descentralização do ensino. Tanto a nova LDB – Lei 9394/96 como os planos e projetos governamentais, como, por exemplo, o Planejamento Político Estratégico (1995-1998), o Plano Decenal de Educação (1993), Plano Nacional de Educação, o projeto “Acorda, Brasil, está na hora da escola!” (1995) e “Amigos da Escola” (1999), reforçam essa tendência descentralizadora através da gestão democrática ou compartilhada e de propostas de parceria. Como decorrência da grande ênfase dada à autonomia/descentralização nas reformas educacionais uma vasta bibliografia vem sendo produzida nos últimos anos. Elegemos uma parte dela 6 para introduzir a idéia de que os debates ganharam novos rumos e o conflito apresenta novas conotações em relação ao passado. Para alguns autores como: (Ramos, 1992; Martins: 2000; Neves:1995, Mello:1992, Bussan:1995, Cardoso, 1995; Moreira, 1995; Oliveira, 1998; Castro:1997;) a autonomia está relacionada a: maior competência, agilidade e efetividade na gestão; economia de tempo, recursos humanos, materiais e financeiros; melhoria da qualidade do ensino, requerida pelos novos paradigmas produtivos; resgate do espaço público da escola, através da participação, por meio de conselhos, colegiados e outros, dos que atuam nela, favorecendo a experiência coletiva e afastando o perigo das soluções centralizadas e desprovidas de compromissos com os reais interesses da comunidade; aproximação da escola e comunidade; construção da identidade da escola; responsabilização da comunidade escolar pelos resultados do ensino; construção de um referencial estável, garantindo a continuidade da política educacional ao longo de sucessivos governos; transparência no processo decisório e um exercício de democratização. No pólo oposto estão autores como (Frigotto:1995; Oliveira:1996; Nunes:1999, Coraggio, 1996; Jacobi:1996; Rosar: 1999; Gonçalves:1995; Gentilli:2000) que relacionam a autonomia à idéia de privatização da educação, com transferência da responsabilidade do Estado para entidades da sociedade civil, podendo, ao invés de significar uma democratização do poder do Estado ou da gestão da escola, resultar no abandono da escola pública por parte do Estado, responsabilizando os pais, através dos Conselhos Escolares e APMs pela manutenção do ensino público. Democratização e privatização no interior do capitalismo flexível: princípios contraditórios? Com base no exposto sentimos a necessidade de refletir um pouco mais sobre: o que é autonomia nos dias de hoje? Por que a autonomia se torna uma questão central nos encaminhamentos da política educacional atual? A abertura da escola à comunidade tem por base a gestão democrática da escola pública ou o repasse da responsabilidade do Estado para terceiros? Existe um nexo entre a aventura democratizante e a política neoliberal em curso, constituindo-se uma estratégia de privatização? Não seriam democratização e privatização os dois lados de uma mesma moeda, ou seja, dois pólos aparentemente incompatíveis, mas solidamente complementares, cuja associação estão impregnadas na formulação da política educacional? Seriam democratização e privatização princípios independentes ou unidade de uma mesma prática? Em outras palavras, seriam princípios que se contradizem e combatem-se, ou elementos de um processo unitário dinâmico que engloba a sua diversidade? Para responder as questões acima alinhadas na perspectiva de uma melhor compreensão das 7 características e tendência da atual reconfiguração do modelo de gestão da educação, com ênfase na descentralização autonomia da gestão, partimos do pressuposto de que todos os fenômenos carregam em si aspectos contraditórios, que se opõem por um lado e, por outro, estão ligados e se impregnam, interpenetram-se e dependem um do outro, coexistindo em uma unidade. Com base nesta perspectiva acreditamos ser possível pensar a interdependência a identidade ou conexão recíproca entre os princípios de privatização e democratização. Daí o nosso interesse em analisar a relação entre esses dois princípios. Para atingirmos esse conhecimento consideramos necessário compreender as contradições, isto é compreender não apenas as idéias ou posicionamentos que se contrapõem e se enfrentam marcando os conflitos que permeiam a produção das políticas educacionais, mas reconstruir o terreno da luta, ou seja, examinar as formas de vida que estão se opondo, com conflitos de ordem econômica, de trabalhos, de sobrevivência, de princípios e valores que envolvem a todos e dão dinamismo à história. Nesse sentido, pensar a contradição implica pensar o movimento de passagem de uma forma de acumulação de capital para outra, a passada (indústria da produção de massa, sob a regulação taylorista/fordista e política do bem-estar social) e a forma presente, reorganização do mesmo sistema produtivo com base na produção flexível/enxuta, globalização, financeirização da economia e política do Estado-mínimo. Significa colocar em comparação as duas formas de trabalho, comportamentos humanos, hábitos e valores novos e velhos, a fim de aprofundar o significado e o (re) significado dos conceitos, tais como: descentralização, autonomia, democracia, participação e privatização. Assim, para analisar as políticas educacionais e, no bojo dessas, as discussões sobre autonomia, é necessário captar o movimento da sociedade, decorrentes da globalização da economia, reestruturação produtiva, crescente incorporação da ciência e tecnologia no setor produtivo, flexibilização da produção e desemprego estrutural, levando também em conta as modificações ocorridas nos padrões de intervenção estatal3 que resultam na emergência de novos mecanismos e formas de gestão (re) direcionando as políticas públicas e, particularmente da educação. No regime de produção flexível, as instituições devem ser mais flexíveis, fluídas e adaptáveis, para isso é preciso criar condições para a reconstrução da administração pública em bases modernas e racionais. Por isso, na nova proposta de administração pública o governo passa a ser visto como criador de oportunidades; regulador (pratica a regulação do mercado); prioriza o atendimento às necessidades dos clientes-cidadãos, com ênfase na qualidade e produtividade; promove da competição entre aos 3 O Estado é entendido enquanto uma instituição cujas práticas não só captam e expõe as transformações e contradições vivenciadas no mundo do trabalho, como também processa a viabilização das relações econômicas sob novas formas, dando origem a formas mais flexíveis de administrar os negócios públicos, em oposição à burocrática, centralizada, autoritária, considerada ineficiente, cara, impessoal e pouco ágil. 8 que prestam serviço ao público, permitindo ao cidadão consumidor escolher o que prefere; descentralizado não obedece a normas e regras rígidas, emprega mecanismos não-burocráticos para agir de forma mais criativa e eficaz; orienta-se por objetivos ao invés de regras e regulamentos; passa a se dedicar às questões de longo prazo, a atuar preventivamente e avaliar os resultados; é permeável a maior participação dos agentes privados e/ou de organizações da sociedade civil (setor público nãoestatal) aparecendo como parceiro da comunidade para o enfrentamento dos problemas; confia poder aos cidadãos ao invés de servi-los. Assim, amplia-se a democracia representativa (democracia liberal), através da autonomia administrativa e participação social através de conselhos recrutados ao nível da comunidade em que as organizações servem, com menor intervenção pública na função alocativa. A proposta de reforma do Estado do governo FHC segue esse novo modelo de administração denominada gerencial. Através do Plano Diretor de Reforma do Estado (1995), são criados mecanismos de flexibilização, descentralização, autonomia e parceria entre público e privado para os serviços entendidos como não-exclusivos do Estado, tais como: saúde, educação, cultura e pesquisa científica. Esses serviços podem ficar sob o controle do Estado, podem ser privatizados e podem ser financiados e subsidiados pelo Estado, mas devem ser controlados pelos cidadãos, através de agências autônomas, convertidas em organizações públicas não-estatais4. Ou seja, pública no sentido de se dedicar ao interesse público e não-estatal por que não faz parte do aparelho do Estado. Assim, o chamamento à participação da sociedade civil é coerente com a redefinição do papel do Estado. Deste modo, o Estado abandona o papel de executor e prestador de serviços sociais, mantendo-se, entretanto, no papel de regulador e coordenador (centralizador) promovendo a progressiva descentralização das funções para estados, municípios e instituições escolares, num processo onde usualmente a União se desresponsabiliza total ou parcialmente do custeio das políticas empreendida. Assim, a propalada democratização do setor público por meio dos envolvimentos das ONGs, associações de ajuda mútua e o “terceiro setor”, na condição de parceiros do Estado, contribuem para a hipertrofia da intervenção estatal abrindo caminho para o desmantelamento do estado do 4 Segundo Gentili (2000:2), embora a privatização esteja vinculada ao ajuste e diminuição do investimento estatal, ela vai muito além desse objetivo, podendo inclusive ser contrário a ele. Nesse sentido, “a privatização educacional não se tem traduzido necessariamente numa redução dos recursos estatais destinados ao financiamentos dos serviços escolares, senão numa realocação de verbas que, em alguns casos, têm inclusive sofrido um significativo aumento (como as políticas de avaliação; reformas curriculares; a modernização periférica do sistema escolar mediante a compra de computadores e Atenas parabólicas; bem como o financiamento público de ações assistencialistas e filantrópicas desenvolvidas por entidades da sociedade civil (...) Privatizar significa de modo geral, delegar responsabilidades públicas para entidades privadas (...) Assim o que está em jogo não é o ‘ afastamento’ da ação estatal senão sua reconfiguração (...) Sob a influência dessas políticas, estimula-se uma série de ações delegatórias à sociedade civil (como a adoção de alunos e de escolas), consagra-se o discurso oficial acerca das virtudes do Terceiro Setor, incentivam-se as atividades do voluntariado e promovem iniciativas de filantropia empresarial destinadas a substituir ou a complementar as responsabilidades que os governos recusam, ou assumem apenas parcialmente”. 9 bem-estar intervencionista. Consideramos que é esse terreno racional e material que permite a unificação dos opostos. Sob essas bases as forças políticas são impelidas a modificar qualitativamente o conceito de autonomia, que assumindo uma nova conotação em relação ao passado, possibilita a interdependência entre os princípios de democratização e privatização. As esferas antagônicas tornam-se reconciliadas em um terreno comum, onde a oposição à administração burocrática/centralizada, próprias do regime militar, em nome da democracia/autonomia serve de sustentáculo para a combinação destes princípios antes contraditórios. Portanto, acompanhar as mudanças na forma do trabalho, assim como situar as formas políticas decorrentes desta nova etapa do capital, parece-nos ser o caminho para compreender a autonomia além de sua particularidade e descobrir os motivos sociais e históricos que a justificam. Para isso, é preciso ultrapassar a forma opositiva da análise sobre a centralização e descentralização e examinar a correspondência entre Estado, Sociedade e Educação, como uma relação que não se dá de forma direta, mas é mediada por contradições. As contradições imanentes à forma de ser do Estado decorrem da dicotomia entre a existência pública e privada na sociedade burguesa, entre as necessidades individuais e sociais. Ou seja, numa sociedade fundada em relações da propriedade privada, encaminhando-se para a constante concentração de capitais, na qual a força de trabalho humana torna-se cada vez mais obsoleta reforçando o individualismo crescente nas relações sociais, e que, ao mesmo tempo, apregoa nas regras do jogo político a democracia, participação, cooperação e solidariedade. Deste modo, a necessidade de entendimento da autonomia da gestão escolar a partir da análise das contradições presentes nas relações Estado, sociedade e educação decorre do fato destas contradições não terem sido objeto de estudo, e por entendermos que são elas em última instância que produzem as mudanças quer sociais, quer educacionais. Assim, consideramos necessários mais estudos sobre as necessidades sociais/históricas que produziram as políticas de descentralização/ autonomia na atualidade, de forma a contribuir para a compreensão das relações entre Estado, educação e sociedade, em seus aspectos contraditórios. Pois, este parece-nos ser o caminho mais apropriado ou a ferramenta teórico-metodológica necessária para enfrentar a discussão sobre a autonomia na sociedade atual e entender seu real significado. Bibliografia: BASTOS, Tavares. A Província. Estudos Sobre a Descentralização do Brasil. 3a ed. São Paulo, Ed. Nacional, 1975. BUFFA, Ester. O conflito centralização/descentralização na discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4.024/61). ANPED, no 2, 1989. 10 BRASIL. Constituições da República Federativa do Brasil, 1891-1988. CARDOSO, Jarbas J. Gestão Compartilhada da Educação: a Experiência Catarinense. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v.76, n° 182/183, 1995. FRIGOTTO, Gaudêncio. Propostas de Reformas Educativas e o Desmonte da Escola Pública. Autonomia da escola e neoliberalismo: Estado e escola pública. In: O público e o privado na educação: a experiência da privatização do ensino em Maringá e temas afins. 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