História do
Pensamento Filosófico
Autora: Profa. Maria Alice Carnevalli
Colaboradores: Profa. Silmara Maria Machado
Prof. Nonato Assis de Miranda
Profa. Renata Viana de Barros Thomé
Professora conteudista: Maria Alice Carnevalli
Maria Alice Carnevalli é paulistana. Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, na área de concentração em Jornalismo, além de bacharel em Comunicação
Social com habilitação em Jornalismo e Rádio/TV pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
bacharel em Letras (inglês/português) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo e também licenciada em Letras pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Atualmente, é professora titular da UNIP, já tendo completado dez anos de docência em nível de graduação e de
pós-graduação em instituições de ensino como Universidade Lusófona, Uninove, Faculdades Integradas Rio Branco,
ministrando várias disciplinas nas áreas de comunicação, ciências sociais e filosofia. Além de professora universitária,
também é jornalista da Hífen Comunicação Empresarial, onde assumiu em 1998 o cargo de redatora-chefe da coluna
semanal, da revista e do site Sala do empresário. Também foi sócia-diretora da produtora de vídeo TTI-Tecnologia Texto
Imagem e roteirista da TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta.
Tem publicado vários artigos em diversas áreas das ciências humanas:
LOPES, D. F.; SOBRINHO, J. C.; PROENÇA, J. L. (orgs.) Notícias Populares. In: Edição em jornalismo impresso. São Paulo:
Edicon, 1998.
LIBERAL, M. M. C. (coord. e org.) Telejornalismo: a construção da ética imaginária. In: A ética a serviço da comunicação.
São Paulo: Altamira Editorial, 2009.
MARQUES, S. Prefácio. In: Hispaninismo e erotismo no cinema de Luis Buñuel. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2010.
Por toda essa vivência profissional e acadêmica e também pela ampla visão da sociedade atual, foi selecionada
para redigir este livro-texto sobre a história da filosofia, tendo em vista que suas aulas, gravadas nos estúdios da UNIP
Interativa, estão relacionadas a esse campo de estudo.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C289h
Carnevalli, Maria Alice
História do pensamento filosófico / Maria Alice Carnevalli. - São
Paulo: Editora Sol, 2011.
112 p., il.
Notas: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e
Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-047/11, ISSN 1517-9230.
1. Filosofia 2. História 3. Cultura grega I. Título
CDU 1 (091)
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Material Didático – EaD
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Cid Santos Gesteira (UFBA)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
Apoio:
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Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Andréia Andrade
Sumário
História do Pensamento Filosófico
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7
Unidade I
1 TEOGONIA VERSUS LOGOS.............................................................................................................................9
1.1 O conhecimento mítico ..................................................................................................................... 10
1.1.1 A história nos mostra que a filosofia é um produto da cultura grega ..............................11
2 A DIFUSÃO DA CULTURA GREGA .............................................................................................................. 12
2.1 O surgimento da filosofia ................................................................................................................. 15
2.2 Heráclito de Éfeso (mobilismo) e Parmênides (imobilismo) ................................................ 16
3 A TRÍADE GREGA ............................................................................................................................................. 17
3.1 Sócrates .................................................................................................................................................... 17
3.2 Platão ........................................................................................................................................................ 22
3.3 Aristóteles................................................................................................................................................ 25
4 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA .................................................................................................................. 28
4.1 A Patrística .............................................................................................................................................. 30
4.1.1 A filosofia de Agostinho....................................................................................................................... 31
4.2 A Escolástica ........................................................................................................................................... 34
4.2.1 O pensamento de Tomás de Aquino ............................................................................................... 36
Unidade II
5 A FILOSOFIA MODERNA ................................................................................................................................ 51
6 RENÉ DESCARTES: O RACIONALISMO..................................................................................................... 52
6.1 David Hume: o empirismo ................................................................................................................ 56
6.2 Immanuel Kant: o apriorismo e o conhecimento ................................................................... 60
6.3 Hegel: o idealismo alemão ............................................................................................................... 64
6.4 Marx: o materialismo histórico ...................................................................................................... 66
6.5 Augusto Comte: o positivismo ........................................................................................................71
7 A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ................................................................................................................ 74
7.1 Conhecimento e ciência .................................................................................................................... 76
7.2 Nietzsche: revolução e conhecimento......................................................................................... 77
7.3 Freud: os enigmas do inconsciente............................................................................................... 80
7.4 Sartre: o existencialista ...................................................................................................................... 84
7.5 Michel Foucault: conhecimento e biopolítica .......................................................................... 87
8 QUESTÕES ATUAIS EM FILOSOFIA ............................................................................................................. 89
APRESENTAÇÃO
Esta disciplina tem como objetivo geral contribuir para a compreensão dos princípios da
Sociologia como forma de conhecimento que se transformou em campo científico. Trata-se
de apresentar sua origem, seu desenvolvimento e sua especificidade, visando possibilitar o
desenvolvimento de habilidades que permitam compreender a vida cotidiana e os conceitos
específicos dessa ciência.
Objetivos
– Levar os alunos a compreender a vida em sociedade como fonte inesgotável de mudanças que
podem ser orientadas de acordo com objetivos pessoais e de grupos.
– Entender o conhecimento filosófico compreendendo seus principais conceitos e possibilidades de
aplicação à realidade.
– Tomar consciência dos aspectos importantes da vida humana e da realidade a qual se manifesta.
– Desenvolver uma visão filosófica do mundo.
– Assumir um comprometimento para com a realidade em que vive.
INTRODUÇÃO
Este livro-texto tem por finalidade servir como suporte didático para que as aulas sejam amparadas
por um conteúdo teórico-didádico e de fácil compreensão e acesso para os alunos. Foi dividido em
duas unidades básicas, para melhor expor o longo percurso do pensamento filosófico ocidental,
desde os primeiros pensadores da Grécia Antiga até os estudiosos da pós-modernidade. A Unidade
I, dividida em quatro capítulos, mostra não só como surgiu, mas também a evolução da filosofia até
a Era Moderna, marcada por acontecimentos históricos como a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial na Inglaterra, que trouxeram novas contribuições para a formação do homem como sujeito
individual e coletivo.
Já a Unidade II tem por objetivo mostrar a essência de filósofos que procuraram e ainda
procuram compreender como a humanidade vem se transformando e se comportando no que
diz respeito à origem da sua existência, uma vez que a relação entre passado, presente e futuro
vem se configurando de forma inédita, cabendo aos filósofos contemporâneos dar conta dessa
nova dinâmica entre espaço e tempo provocada pelos avanços tecnológicos, assim como a
noção de identidade e de progresso, que se encontram em total indefinição de sentidos, pois
não existem mais grandes projetos para o planeta como havia nos séculos anteriores, quando
se atribuía ao conhecimento científico e ao racionalismo a solução para todos os problemas e
conflitos.
Dessa forma, esse apanhado geral do pensamento filosófico é capaz de introduzir o aluno no
universo de indagações que sempre nortearam o rumo do pensamento humano sobre sua própria
condição, fornecendo subsídios para uma compreensão linear dessa trajetória, bem como dos nomes
7
mais representativos de cada época. Nesse sentido, é preciso ressaltar que estudar filosofia não se trata
simplesmente de entender os princípios básicos de mais uma disciplina; mas sim, por intermédio dessas
diversas interpretações do homem em sua perspectiva, tomar consciência das infinitas possibilidades
de reconhecer a si mesmo e os demais a partir de um mergulho no contexto pleno de um pensamento
profundo sobre a complexidade da condição humana.
8
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Unidade I
1 TEOGONIA VERSUS LOGOS
Qual o sentido da existência? De onde viemos e para onde vamos? Certamente, você já
deve ter se debatido com essas questões existenciais em algum momento da vida. O mais
interessante, porém, é saber que, desde que o ser humano tornou-se pensante e consciente da
sua própria condição no mundo, muitos foram os estudiosos que buscaram não uma resposta
derradeira para essas perguntas, mas sim explicar as perspectivas e os princípios éticos, morais
e religiosos que regem a trajetória do homem na face da Terra.
Para tentar entender seu papel, primeiramente surgiu a Teogonia, que vem do grego theos, deus, +
genea, origem, considerada como um grupo de deuses que constituíram a mitologia desses povos. Nesse
sentido, os primeiros pensadores foram os pré-socráticos da Escola Jônica, dividida em Escola Jônica
Antiga (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles, Anaxágoras).
No entanto, eles se preocupavam apenas com o elemento principal da constituição de
tudo aquilo que havia sem dar muita importância às causas das transformações. Para Tales,
por exemplo, o elemento primitivo era a água, que ele dizia ser divina; para Anaximandro era
o indefinido, e para Anaxímenes, o ar.
Já os pensadores da Escola Jônica Nova levantaram o problema das causas que surgem das
transformações no elemento primitivo, cuja origem não seria teológica, ou seja, explicada pelos mitos.
Nesse sentido, Heráclito firmou dois princípios contrários em ação, que ele chamava de guerra e paz. Ao
supor que o elemento primordial fosse o fogo, essas duas forças antagônicas o transformavam tanto na
direção da solidificação quanto na condição de retorno ao estado móvel do fogo.
De forma diferente, Empédocles denominou quatro elementos (fogo, ar, água e terra), e as duas forças
contrárias eram o amor e o ódio.
Figura 1
9
Unidade I
Anaxágoras de Colófon foi o último dos grandes jônios e partiu para Atenas, onde foi o filósofo do século
de Péricles. Ele não admitiu o dualismo dos contrários, estabelecendo uma multiplicidade de partículas
semelhantes que seriam movimentadas e ordenadas por uma delas, considerada inteligente, e por isso
chamada de Nous ou Logos. A partir dessa premissa, ele desenvolveu a ideia de um Deus exterior ao mundo
humano. O Logos, portanto, é algo entre as outras coisas e não exatamente um Deus. Trata-se, ainda assim,
de uma preocupação inteligente e atuante com a causa. A partir desse momento, encaminhava-se o
assunto para a discussão da existência de um Deus concebido pela filosofia. Apesar de renegar a mitologia,
Anaxágoras deu início à discussão metafísica sobre a divindade, inserida no contexto de causa.
1.1 O conhecimento mítico
Nas eras primordiais da civilização humana, o homem era nômade, ou seja, deslocava-se de forma
permanente, sempre acompanhando rios e águas e colhendo alimentos onde estes estavam disponíveis. Há
cerca de dez mil anos, ele passou a fixar-se em determinados locais e aprendeu a desenvolver meios para a
subsistência, como a agricultura, a pecuária e a cerâmica. Com isso, passou a se preocupar mais com questões
que, antes, por causa da sua condição rudimentar, não o incomodavam muito. Esse período foi chamado de
Revolução Verde, pois os primeiros questionamentos surgiram como resultado da vontade de conhecer os
mistérios da condição humana, bem como encontrar um meio de explicar os fenômenos naturais.
Mesmo sendo impossível responder às perguntas sobre o conhecimento de seus antepassados, o homem
criou a mitologia para tentar compreender sua existência de forma racional, embora dentro da limitação,
das questões primordiais. Nesse sentido, o mito apresenta características inerentes, como a religiosidade e
a fantasia, sem jamais deixar de ser racional, pois se trata de uma grande atividade intelectual humana.
Prometeu, por exemplo, é o caso de um semideus que levou o fogo do Olimpo para o domínio do homem, sendo
condenado pelos deuses gregos a ter o fígado devorado diariamente por uma ave de rapina, preso a um penhasco.
Para agravar seu sofrimento, o órgão se regenerava imediatamente, para que fosse devorado de forma perpétua.
Assim, o homem justificava como havia conseguido descobrir o fogo e a utilizá-lo para evoluir,
espantando o frio, os medos e as feras à noite, além de cozinhar alimentos e criar peças de cerâmica.
Ainda nos dias atuais, vários mitos persistem na vida dos habitantes das regiões rurais, com o intuito de
explicar os fenômenos da natureza.
A importância do pensamento mítico e da mitologia na perspectiva histórica da filosofia passa então a ser o
início de um pensamento mais exigente por respostas que viriam a ser reconhecidas como filosofia na fase seguinte
da evolução do pensamento humano, a Fase Cosmológica, protagonizada pelos filósofos pré-socráticos.
Se compreendermos o pensamento filosófico como forma de conceber a existência humana, seria
possível atestar que ela sempre se fez presente, uma vez que busca satisfazer a curiosidade do homem,
que procura sem cessar um motivo para explicar os mistérios da vida. Nesse sentido, todos os povos,
incluindo os mais primitivos, tinham, e ainda têm, uma maneira diferenciada de encarar o mundo. No
entanto, se a questão consiste em conferir à filosofia um significado próprio, atribuído a uma atividade
humana que se depara com o real, é preciso admitir que ela não teve seu espaço garantido em todas as
culturas antigas.
10
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
1.1.1 A história nos mostra que a filosofia é um produto da cultura grega
Apesar de a filosofia grega ter começado nas colônias, onde havia um intenso contato com outros povos,
existe um questionamento se ela não seria produto de filosofias orientais, de outras civilizações. Por essa
razão, existem duas correntes que se preocupam em demarcar essas influências. A primeira delas considera
a filosofia oriunda da Grécia como o resultado da influência cultural dessas outras civilizações. Já a segunda,
concebe a filosofia grega como um pensamento original e independente de qualquer cultura estrangeira.
Atualmente, a resposta mais adequada seria a combinação de ambas as correntes, uma vez que a filosofia
grega não pode ser compreendida apenas como o resultado das interferências de outros povos; mas também
não ficou alheia ao contato com elas. Por isso mesmo, é possível afirmar que se instaurou na Grécia uma
conduta humana de caráter mais racional, responsável pelo surgimento da filosofia típica do povo daquele
país. Portanto, ao contrário de outras culturas, os gregos não restringiram sua visão de mundo a uma atividade
prática ou mesmo a uma crença, pois conseguiram de fato estabelecer um rigor filosófico.
Além disso, existe a questão da influência religiosa no desenvolvimento da filosofia grega, que teve
sua origem nas colônias, onde não havia tanta presença da religiosidade como na Grécia Peninsular.
Porém, não é apenas esse fator que justifica o surgimento da filosofia nessas regiões, uma vez que os
habitantes tinham que viver mais por conta própria, o que acabou incentivando a coragem intelectual.
Foi assim que se deu a passagem da racionalidade mítica para um modo de pensar o mundo mais
racional, pois o desprendimento intelectual fez com que o homem desses locais meditasse sobre a razão
que está contida no mito, criando assim a filosofia baseada nessas reflexões existenciais.
De forma crescente, os pré-socráticos adquirem maior importância para os filósofos da atualidade,
assim por meio das várias vertentes dos seus pensamentos, que tantos séculos depois ainda trazem
novas luzes para a filosofia.
Estes são os principais aspectos dos primeiros filósofos, denominados de físicos ou pré-socráticos:
• resposta à pergunta: o que existe? Para a qual a resposta é: as coisas existem.
• de que são feitas as coisas? Cada filósofo pré-socrático encontrou uma resposta diferente, na
busca do elemento fundamental constitutivo de todas as coisas.
Nesse cenário histórico e cultural, nasceu Tales, na cidade de Mileto. Ele ficou conhecido como o
primeiro filósofo grego, pois deixou o legado do seu pensamento, que deu início à filosofia ocidental.
Entretanto, muito pouco é conhecido sobre suas ideias, sendo provável que nunca as tenha registrado em
livro. Aristóteles deu a Tales o mérito de ter sido o fundador da filosofia e lembrou sua doutrina de que “a
água é o elemento primordial de todas as coisas e que a terra flutua sobre a água”. O que diferencia Tales
dos demais pensadores da época é que ele soube transformar conhecimentos práticos em teóricos.
Nesse sentido, é essa diferença entre conhecer o que é observado e procurar entender aquilo que se
conhece que distingue o filósofo dos demais seres humanos, e foi por esse motivo que foi conferido a
Tales o status de filósofo. Seu discípulo e sucessor, Anaximandro de Muleto, desenvolveu as doutrinas
11
Unidade I
de seu mestre. Para ele, o princípio de tudo é o ilimitado (apeiron), o que dá origem a uma unidade
primordial, da qual nascem todas as coisas do universo e a qual elas retornam. Portanto, deve haver
um princípio anterior que possibilita compreender tudo que é limitado por meio do ilimitado, de onde
surgem vários mundos, o que estabelece a multiplicidade.
Já Pitágoras nasceu no ano 570 a.C., na Ilha de Samos, próximo da cidade de Mileto. Por ser curioso
e habilidoso, foi o primeiro filósofo grego a sugerir que a origem de todas as coisas, quer dizer, o ser em
si, não é coisa alguma. Portanto, trata-se de algo inacessível aos sentidos humanos: os números.
Para esse filósofo, a essência, em última instância, de tudo aquilo que percebemos pelos sentidos
está no número, pois as coisas são números e escondem números em si, além de se distinguirem umas
das outras por diferenças quantitativas e numéricas. Também foi ele quem descobriu a oitava, a quinta e
a sétima notas musicais, por meio da observação numérica. Há, ainda, o famoso Teorema de Pitágoras:
a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.
Figura 2 – Pitágoras
2 A DIFUSÃO DA CULTURA GREGA
O termo Grécia Antiga é largamente usado para descrever, em seu período clássico antigo, o mundo
grego e áreas próximas, como a Ilha de Chipre, a Anatólia, o sul da Itália, da França e a costa do Mar
Egeu, além de assentamentos gregos no litoral de outros países, como o Egito.
Não há uma data específica ou até mesmo um acordo com relação ao período em que teve início
e terminou a Grécia Antiga. Costuma-se situá-la antes do Império Romano, mas os historiadores
empregam o termo Grécia Antiga de modo mais preciso, abrangendo desde os primeiros Jogos Olímpicos,
realizados em 776 a.C., até a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C. O período seguinte é chamado
de helenismo, com a difusão da cultura grega. Todas essas datas são convenções dos historiadores; no
entanto, vários estudiosos consideram a Grécia Antiga como um período presente até o advento do
12
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
cristianismo, no terceiro século da era cristã. Do ponto de vista geográfico, o território ocupado pela
antiga civilização grega não se identifica plenamente com a região da Grécia contemporânea, e também
não existiu um estado politicamente unificado entre os gregos antigos.
Localizado no sul da Península Balcânica, o território da Grécia Continental destaca-se pelo relevo
montanhoso. A cordilheira dominante é a dos Montes Pindo, que separa a costa oriental, banhada pelo
Mar Egeu, da costa ocidental, banhada pelo Mar Adriático. Na Grécia Central, entre o Golfo de Corinto
e o Mar da Eubeia, situa-se a Beócia, cuja principal cidade na antiguidade era Tebas. Os Montes Citéron
separavam a Beócia da Península da Ática, onde se encontram as cadeias do Himeto, do Pentélico e
do Parnes. No Peloponeso, distinguiam-se também várias regiões. Ao centro, situa-se a Arcádia, uma
planície rodeada por montanhas. A Lacônia situa-se na Região Sudeste, compreendendo o Vale do
Rio Eurotas, delimitado a oeste pelo Monte Taígeto e a oriente pelo Monte Párnon. No sudoeste do
Peloponeso, encontra-se a Messénia.
História
O povo grego originou-se de outros povos que migraram para a Península Balcânica em várias fases,
começando no terceiro milênio a.C. Entre eles, merecem destaque os aqueus, os jônicos, os dóricos e
os eólios, todos indo-arianos provenientes da Europa Oriental. As populações invasoras são, em geral,
conhecidas como “helênicas”, pois sua organização de clãs fundamentava-se, no que concerne à mítica,
na crença de que descendiam do herói Heleno, filho de Deucalião e de Pirra. A última das invasões foi a
dos dóricos, no final do segundo milênio a.C.
Divisão dos períodos
• Pré-Homérico (1900-1100 a.C.) – anterior à formação do homem grego e da chegada cretense
e fenícia. Nesse período, estavam se desenvolvendo as civilizações cretense ou minoica (Ilha de
Creta) e micênica (continental).
• Homérico (1100-700 a.C.) – tem início com a chegada de Homero, considerado um marco na
história por suas obras, Odisseia e Ilíada. Essa fase deu início à ruralização e à formação de
comunidades gentílicas (nas quais um ajuda o outro na produção e na colheita). Só plantavam o
que seria consumido e, quando a terra não estava mais fértil, saíam em busca de novos locais.
• Obscuro (1150-800 a.C.) – começa com chegada dos aqueus, dos dóricos, dos eólios e dos jônicos.
Caracteriza-se pela formação dos génos e pela ausência da escrita.
• Arcaico (800-500 a.C.) – destaque para a formação da pólis, para a colonização grega, para o
aparecimento do alfabeto fonético, da arte e da literatura, incluindo o progresso econômico
com a expansão da divisão do trabalho, do comércio, da indústria e do processo de urbanização,
definindo a estrutura interna de cada cidade-estado.
• Clássico (500-338 a.C.) – foi o período de maior esplendor da civilização grega. As duas cidades
consideradas mais importantes foram Esparta e Atenas, além de Tebas, Corinto e Siracusa. Nessa
fase, a história da Grécia é marcada por uma série de conflitos externos (Guerras Médicas) e
interno (Guerra do Peloponeso).
13
Unidade I
• Helenístico (338-146 a.C.) – período de crise da pólis grega. Com a invasão macedônica, a
expansão militar e cultural helenística, a civilização grega se difunde pelo Mediterrâneo e se
mescla com outras culturas.
O helenismo é um termo usado para demarcar o período histórico e cultural durante o qual a
civilização grega se difundiu no mundo mediterrânico, no euro-asiático e no Oriente, misturando-se
com a cultura local. Da união da cultura grega com as culturas da Ásia Menor, da Eurásia, da Ásia
Central, da Síria, da África do Norte, da Fenícia, da Mesopotâmia, da Índia e do Irã, surgiu a civilização
helenística, que obteve grande destaque do ponto de vista artístico, filosófico, religioso, econômico e
científico. O helenismo se difundiu do Atlântico até o Rio Indo. Cronologicamente, desenvolveu-se da
morte de Alexandre, o Grande, da Macedônia (323 a.C.) até 147 a.C., com a anexação da península grega
e de ilhas por Roma.
É interessante observar que boa parte do que os gregos criaram não era original, uma vez que
herdaram muitos elementos das culturas dos cretenses e do Oriente Médio. Mesmo assim, conseguiram
expressar na arte uma preocupação ímpar com a condição humana acima de todas as outras criações
da natureza. Em comparação com as criações das civilizações do Oriente Médio, a arte grega era
considerada relativamente simples, e foi essa característica a base da arte clássica. Devemos aos gregos
a criação de quase todos os gêneros literários, de diferentes formas de expressão por meio da escrita.
Além dos poemas homéricos, houve também o surgimento da poesia lírica. Já o teatro surgiu nas festas
que se realizavam anualmente para homenagear Dionísio, o deus do vinho. Nessas festas, os gregos
organizavam cortejos com pessoas fantasiadas com peles de cabra, chamadas de tragedis. Elas davam
voltas ao redor do templo e dialogavam com o público. Assim nasceu a tragédia grega.
No que se refere à comédia, podemos afirmar que ela colaborou para a educação popular, porque
satirizava os defeitos dos representantes do poder público. Os gregos foram também os primeiros a se
preocupar com a história, e Heródoto, o primeiro historiador, foi chamado de “pai da história”. Graças a ele,
temos relatos de como era a vida grega durante o século V a.C. Os gregos se dedicaram ainda ao estudo
das causas da saúde e das doenças, impulsionando o estudo da medicina. Hipócrates foi considerado
o “pai da medicina”. Mas o grande legado dessa civilização foi ter dado origem à filosofia. Foi lá que
surgiram os pensadores que se preocupavam em saber a origem e o destino da existência humana, como
Sócrates, um ateniense que afirmava que a fonte da sabedoria está no próprio homem, Platão, discípulo
de Sócrates, e Aristóteles, criador da lógica, um macedônio que foi professor de Alexandre Magno.
Alexandre Magno foi um personagem histórico que deu origem a muitas lendas e mitos. Ele foi
chamado de “o grande” pelas incríveis façanhas que realizou como rei e guerreiro e pela cultura que
adquiriu ao longo de sua vida. Além de ser um excelente orador, tinha paixão pelos esportes. Depois de
conquistar a Grécia e o Egito, Alexandre fundou a cidade de Alexandria, na desembocadura do Rio Nilo,
em homenagem às suas vitórias. Em 331 a.C., toda a Mesopotâmia se rendeu ao seu exército.
Depois da morte precoce de Alexandre, aos 33 anos, os generais que o haviam acompanhado em suas
conquistas iniciaram uma batalha para repartir o império, que acabou sendo dividido em três grandes
partes: Egito, Síria e Macedônia. Por sua vez, as cidades gregas atravessavam um período de lutas e de
rivalidades, até serem tomadas pelos romanos. O grande feito de Alexandre Magno foi levar o helenismo
14
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
a todas as regiões por onde passou. Junto com suas tropas de soldados, chegavam também os sábios, os
artistas e os pesquisadores gregos. Portanto, a civilização helenística foi a difusão da cultura grega no
Oriente em conjunto com a assimilação de costumes orientais no Mediterrâneo. Ao se misturar com as
culturas do Oriente, a arte grega passou a ser universal e se transformou no berço do Ocidente.
2.1 O surgimento da filosofia
O nascimento do pensamento filosófico se deu na cidade de Mileto, com o primeiro filósofo, Tales de
Mileto, concebido como uma cosmologia, ou seja, buscava o conhecimento racional da ordem do mundo
entendido como natureza. É muito importante ressaltar que, em um período da história humana em que
o saber filosófico e o saber científico eram quase a mesma coisa, é fundamental o conceito formulado
pelos filósofos naturalistas como um marco central de evolução em relação ao conhecimento mítico.
Para começar, o esforço de buscar elementos naturais para então formular teorias a respeito do universo
está contido na base da formulação sobre os conceitos iniciais da sofisticada descoberta do átomo. Por isso,
as abstrações de Anaximandro geram surpresa pela genialidade de lidar com um princípio natural como
fonte de todos os demais processos naturais, revelando um nível de maturidade bastante desenvolvido.
Até mesmo sua teoria sobre a ordem do mundo, coordenada por opostos, encontra parâmetros
com os princípios atuais da dialética. Também o equilíbrio pela relação entre os opostos possui uma
equivalente no pensamento oriental nos princípios do Tao, que ainda hoje fundamenta a medicina
tradicional oriental. Entre as principais características da cosmologia, está uma explicação racional e
sistemática sobre a origem, a ordem e a transformação da natureza, da qual o homem faz parte, pois
humanos e natureza, pela sua identidade, são explicados filosoficamente. Essa natureza é eterna e tudo
se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer. No entanto, não é possível afirmar que o mundo
tenha vindo de algo, uma vez que se apresenta eternamente. Esse fundo de eternidade passa então a ser
o elemento primordial da natureza e chama-se physis, sendo visível apenas ao pensamento e não aos
nossos sentidos. Mesmo que physis seja imortal, é dele que vêm todos os seres mais variados e diferentes
do mundo, que, ao contrário do seu princípio gerador, são mortais.
Outro princípio comum aos filósofos desse período é que todos os seres vivos, além de serem
gerados e mortais, encontram-se em transformação constante, mudando em todos os sentidos; mas
sem por isso perder sua forma e sua estabilidade. Esse processo todo é percebido como movimento,
sendo denominado de devir, ou seja, a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário não
é caótica; mas obedece a leis determinadas pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo. Os
filósofos escolheram diferentes physis em seus modelos, isto é, cada um encontrou justificativas para
alegar qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da natureza e de suas transformações.
Tales, por exemplo, dizia que o princípio era a água ou o úmido; já Anaximandro tomava o ilimitado
sem qualidades definidas. Para Anaxímenes, era o ar ou o frio e Heráclito considerou o fogo. Já Leucipo
e Demócrito acreditaram que eram os átomos.
Fazem parte da escola pitagórica muitos filósofos famosos, com destaque para Filolao, que dizem
ser o primeiro a indicar o movimento da Terra ao redor do Sol, e Hicetas, que indicou o movimento da
Terra em redor de seu eixo. Essa doutrina, reproduzida por Aristarco de Samios, no século III a.C., foi
15
Unidade I
desacreditada depois pela autoridade de Aristóteles, e retomada e desenvolvida cientificamente por
Copérnico, que confirmou ter sido inspirado por Hicetas, que conheceu nos escritos de Cícero.
Os primeiros filósofos gregos preocupavam-se apenas com o mundo exterior, em detrimento dos
aspectos psicológicos e éticos dos problemas humanos. Até o surgimento de Sócrates, a filosofia grega não
possuía um centro comum, sendo desenvolvida em diversas regiões, que dão origem ao termo “as quatro
escolas”: Jônica em Mileto, Pitagórica ou Itálica, Eleática na Elea e Abderítica ou Atomística na Abdera.
Ainda nesse contexto, vale destacar que o tema central dos pré-socráticos, herança dos antigos mitos
cosmológicos, foi o problema do mundo que os assombrava, em especial o movimento, compreendido a
partir de um sentido amplo equivalente à mudança ou à variação. Com relação a esse questionamento,
podemos separar a filosofia pré-socrática em três estudos: o primeiro como sendo o cosmológico dos
jônicos e pitagóricos, o segundo como a antinomia do ser e devir de Heráclito e dos eleatas e, em
terceiro, vêm as novas cosmologias mecanicistas dos atomistas.
Divisão da filosofia antiga
• Primeiro período: estende-se desde o século VII até o ano de 450 a.C., de Tales até Sócrates.
Período de formação ou juventude, já que é nele que se estuda principalmente a natureza, e passa
a se chamar Cosmológico.
• Segundo período: estende-se desde 450 a.C. até o século III d.C., desde Sócrates até o ecletismo.
Destaca-se pela perfeição ou pela virilidade da antiga filosofia. Como seu objetivo predominante
é o homem, esse período recebe o nome de Antropológico.
• Terceiro período: estende-se desde o século I até o século VI d.C. e, durante três séculos, coincide
com o período antropológico. Traz a decadência da filosofia grega, e seu objetivo principal é Deus
ou a união teosófica com Deus. Por isso, denomina-se período Teosófico.
2.2 Heráclito de Éfeso (mobilismo) e Parmênides (imobilismo)
Não há registros sobre as datas do nascimento e da morte de Heráclito, mas existem informações de
que ele atingiu o auge de sua existência durante a 69ª Olimpíada, que ocorreu entre 504 e 500 a.C. Essa
informação é suficiente para contextualizá-lo em uma geração após Xenófanes, ao qual fez oposição, e
uma anterior à de Parmênides, seu maior opositor. Pouco se sabe sobre a sua vida, além de ter nascido de
uma família aristocrática de Éfeso, que fundou a cidade. Tudo leva a crer que Heráclito não quis exercer
os direitos de participar do governo da sua terra natal. Ele expôs sua filosofia na obra Da Natureza, da
qual restam apenas fragmentos que suscitaram muitos temas da filosofia contemporânea.
Para Heráclito, tudo aquilo que vemos nunca mais será igual ao que era no momento anterior e
que, no instante seguinte, já não será mais o que foi antes. Com isso, ele afirmou que as coisas se
transformam permanentemente e que, quando se quer fixar algo e revelar sua essência, já não se
trata mais da mesma coisa, pois tudo parte da realidade que flui. É de autoria dele a frase: “Nunca nos
banhamos duas vezes no mesmo rio”.
16
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Assim, não existe um ser estático, mas sim dinâmico, que pode ser capturado num determinado
momento para que se diga como era naquele instante. Sendo assim, a essência dessa reflexão filosófica
consiste em determinar que nada existe, já que tudo existe num instante e no momento seguinte deixa
de existir, porque já sofreu um processo de transformação. Dessa maneira, a existência define-se como
uma eterna mutação e como um estado de mudança perene em que estão incluídas todas as coisas de
forma infinita.
O pensamento de Parmênides pode ser melhor compreendido por meio da sua inquietação diante
da solução proposta por Heráclito de que todas as coisas são e não são ao mesmo tempo, uma vez que
permanecem em constante mutação. Ele acreditava ser isso impossível, porque uma coisa é ou não é.
Por isso, raciocinava no sentido de afirmar que as coisas possuem um ser e este ser é. Com essa postura
reflexiva, Parmênides chegou ao princípio lógico que os filósofos atuais denominam de “princípio da
identidade”. Por meio dele, é possível afirmar que o ser é único, pois não pode haver mais de um para
cada coisa. Pode-se afirmar ainda que o ser é eterno, pois se ele tivesse um princípio, antes dele, haveria
o não ser, o que não é possível, porque o não ser inexiste. Caso existisse, ele também seria um ser, o que,
por si só, seria um erro, já que apenas o ser pode existir.
O filósofo observou também que o ser é imutável, uma vez que a mutabilidade resulta no não ser,
o que é inadmissível para Parmênides. Assim sendo, o ser é infinito, porque a finitude pressupõe o não
ser. Por último, ele declarou a imobilidade do ser, pois a mobilidade significaria a aceitação do não ser
heraclitiano, o que é insustentável para Parmênides.
3 A TRÍADE GREGA
3.1 Sócrates
Um divisor de águas na história da filosofia terrena
Figura 3 – A morte de Sócrates
17
Unidade I
O fundador do pensamento filosófico
A história da filosofia na Grécia Antiga divide-se entre os filósofos pré-socráticos e pós-socráticos,
tamanha foi a importância de Sócrates para a instauração do pensamento filosófico ocidental.
Considerado pelos homens do tempo como o mais sábio e inteligente, Sócrates demonstrava em
sua forma de pensar a necessidade de levar o conhecimento para os cidadãos gregos da época pelo
diálogo como forma de transmissão de sabedoria. Nascido em 470 ou 469 a.C., em Atenas, era filho
de um escultor e de uma parteira. Aprendeu a arte paterna; mas dedicou-se inteiramente à meditação
e ao ensino filosófico, apesar da pobreza. Ao desempenhar cargos políticos, sempre foi um modelo
irrepreensível de bom cidadão. Adquiriu sabedoria principalmente por intermédio da reflexão pessoal,
na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que havia de mais ilustre na época.
Por meio da palavra, ele se ocupava da missão de fazer conhecer as coisas do mundo e do ser humano.
Seus pensamentos e suas ideias atravessaram os séculos pelas obras de seus discípulos mais importantes:
Platão, Xenofontes e Aristóteles, porque ele mesmo nada deixou por escrito. Por defender ideias contrárias à
sociedade instaurada na Grécia, Sócrates não foi bem aceito por grande parte da aristocracia grega, uma vez
que a tônica do seu discurso criticava diversos aspectos da cultura grega, ressaltando que muitas tradições,
crenças religiosas e costumes não colaboravam para o desenvolvimento intelectual dos cidadãos.
A inovação presente nas suas ideias para a sociedade logo começou a chamar a atenção de jovens
atenienses, impressionados pelo seu dom de orador e pela sua inteligência, o que o tornou popular em
pouco tempo. No entanto, por temer mudanças na sociedade, a elite conservadora de Atenas viu em
Sócrates um inimigo público, além de um agitador da ordem pública. Por isso, ele foi preso, acusado de
subversão, de corromper a juventude e também de provocar mudanças na religião grega. Sua condenação
foi o suicídio por envenenamento, dentro da cela, em 399 a.C. Esse fim trágico, porém, não impediu
que esse filósofo ateniense, e um dos fundadores da atual filosofia ocidental, entrasse para a história de
forma definitiva; embora existam historiadores que afirmam que só é possível falar de Sócrates como
um personagem de Platão. Nos diálogos escritos por Platão, Sócrates aparece como mestre que se
recusava a ter discípulos, além de ser um homem piedoso que não valorizava os prazeres dos sentidos,
mas colocava o belo entre as maiores virtudes, juntamente com a bondade e a justiça.
Tanto o julgamento como a execução de Sócrates são episódios centrais da obra de Platão (Apologia
e Críton). Sócrates admitiu que poderia ter evitado sua condenação se tivesse desistido da vida justa
que levava e, mesmo depois de condenado, ele poderia ter evitado a morte por ingestão de cicuta, se
tivesse escapado com a ajuda de amigos. Nesse sentido, a vontade de colaborar com a justiça da pólis
e com seus próprios valores revela a grandiosidade do seu pensamento. Todos os detalhes a respeito da
vida e da morte de Sócrates que são historicamente conhecidos vêm dos diálogos de Platão, das peças
de Aristófanes e dos diálogos de Xenofonte. Não se sabe direito qual era a função de Sócrates, se ele se
ocupava de algo além da filosofia.
De acordo com os registros, aprendeu a profissão de oleiro com o pai e aparece na obra de Xenofonte
declarando que se dedicava àquilo que ele considerava a arte ou a ocupação mais importante de todas:
maiêutica, ou seja, o nascimento das ideias.
18
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Platão atesta que Sócrates não recebia pagamento algum por suas aulas, e sua pobreza consistia na
prova maior de que não era um sofista. Diversas fontes citam que ele tinha servido ao exército em várias
batalhas. Na Apologia, Sócrates compara seu período no serviço militar a seus problemas no tribunal, e
alega que qualquer jurado que achasse que ele deveria se retirar da filosofia, deveria também acreditar
que os soldados devessem se retirar do campo de batalha, quando era provável que pudessem morrer
lutando.
As crenças de Sócrates, em comparação às de Platão, são difíceis de diferenciar, uma vez que há
poucas diferenças entre os dois tipos de pensamento filosófico. Por essa razão, diferenciar as crenças
filosóficas de Sócrates, de Platão e de Xenofonte consiste em uma missão bastante difícil, devendo
sempre ter em mente que aquilo que é atribuído a Sócrates pode muito bem refletir o pensamento dos
outros autores.
Certamente, se existe algo que pode ser atestado sobre as ideias de Sócrates, é que ele se destacou
por ser moralmente, intelectualmente e filosoficamente diferente de seus contemporâneos. Quando
estava sendo julgado por heresia e por corromper a juventude, usou seu método de elenchos para
demonstrar as crenças errôneas de seus julgadores. Sócrates acreditava na imortalidade da alma e que
teria recebido, em um dado momento da sua vida, uma missão especial do deus Apolo, que pode ser
traduzida na defesa do logos apolíneo “conhece-te a ti mesmo”. Ele também tinha dúvidas sobre a
possibilidade de a arete (virtude) ser ensinada, considerando que a moral é uma questão de inspiração
e não de parentesco, uma vez que pais moralmente perfeitos não tinham filhos semelhantes a eles.
Sócrates alegou com frequência que suas ideias não eram próprias, mas sim de seus mestres, entre eles
Pródico e Anaxágoras de Clazômenas. Ele sempre dizia que sua sabedoria era limitada, assim como a sua
própria ignorância, atribuindo os atos errados como consequência da ignorância, embora nunca tenha
assumido ser um sábio.
O fundador do pensamento ocidental também acreditava que a maneira mais apropriada para as
pessoas viverem era se concentrando no próprio desenvolvimento intelectual, ao invés de buscar a
riqueza material. Ele costumava convidar outras pessoas a se concentrar na amizade e em um sentido
de comunidade, uma vez que acreditava ser esse o melhor modo de um povo evoluir. Suas ações são a
maior prova dessa crença, pois aceitou sua sentença de morte quando todos acreditavam que fugiria
de Atenas.
Para Sócrates, os seres humanos possuíam virtudes tanto no campo filosófico quanto no intelectual,
conferindo à virtude o papel mais importante para o desenvolvimento do ser humano. Segundo seus
discípulos, ele acreditava que as ideias faziam parte de um mundo que somente os sábios conseguiam
entender, fazendo com que o filósofo se tornasse o governante ideal para um Estado. Ao se opor
declaradamente à democracia aristocrática praticada em Atenas durante a sua época, ele afirmava que
a república perfeita deveria ser governada apenas por filósofos.
Os ideais libertários contidos nos discursos proferidos por Sócrates, assim como o rigor do seu caráter
e da sua postura crítica, acabaram gerando um mal-estar geral, além da rejeição popular, fazendo com
que ele contraísse inimigos pessoais. Diante do povo e de lideranças reacionárias, era considerado como
parte atuante da casta intelectual da época. Essa hostilidade toda manisfestou-se por meio jurídico
19
Unidade I
na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon, no sentido de subverter os jovens a renegar
os deuses da própria pátria, introduzindo novas crenças. Para não entrar em confronto com a justiça
humana, Sócrates humilhou-se e pediu perdão, pois tinha dentro da alma algo que ia muito mais longe
do que uma simples explicação para a vida na Terra, que era o juízo da razão destinado à eternidade. Por
esse motivo, ele preferiu abrir mão da própria vida a enfrentar o poder judiciário. Quando foi declarado
culpado, ficou em silêncio perante o tribunal, que o condenou à pena de morte pela maioria dos votos.
Tendo que esperar mais de um mês para ser executado na prisão, Sócrates aproveitou o tempo para
ministrar palestras espirituais aos amigos. Vem dessa fase o famoso diálogo a respeito da imortalidade da
alma, que ele teria proferido pouco antes de morrer e que foi relatado por Platão no Fédon. De acordo
com ele, as palavras derradeiras dirigidas pelo seu mestre aos discípulos, após ter ingerido o veneno,
foram: “Devemos um galo a Esculápio”, referindo-se ao Deus da medicina, que o tinha liberado do mal da
existência com o poder da morte. Apesar de gerar polêmica, Sócrates restabeleceu a possibilidade do saber
ao determinar o objeto real da ciência, que não é o sensível e o particular, como pensavam os sofistas.
De maneira contrária, ele acreditava no inteligível, um conceito que se expressa pela própria definição,
sendo obtido por intermédio de um processo dialético chamado de indução, que pode ser descrito pela
comparação de vários seres da mesma espécie, visando eliminar as diferenças individuais, bem como
as qualidades mutáveis, para atingir aquilo que existe de comum, estável e permanente na natureza e
na essência da coisa em si. Trata-se, portanto, de uma forma de generalização que parte do indivíduo à
concepção universal da natureza humana.
Durante a exposição didática dessas ideias, Sócrates sempre utilizava o diálogo, com a dupla função
de confrontar um oponente às suas ideias ou de instruir um discípulo. No primeiro caso, assumia de
forma humilde a postura de quem aprende e, com isso, conseguia aumentar o número de perguntas
até conseguir apanhar o adversário em uma contradição evidente para constrangê-lo à declaração
humilhante da ignorância. Essa estratégia era a ironia socrática. Já no segundo caso, por ser um discípulo,
ele mesmo multiplicava as perguntas, com a habilidade e o objetivo de obter, pelo processo indutivo, um
conceito e uma definição geral de um objeto. Esta era sua proposta pedagógica.
A introspecção sempre foi uma característica marcante da filosofia de Sócrates, que se revela no
famoso lema “conhece-te a ti mesmo”, ou seja, que nos leva a entrar em contato com a nossa prória
ignorância. Alcançava em Sócrates uma importância tão grande que se personificava na voz interior
divina, que poderia ser de um gênio ou de um demônio. Como ele não deixou nada registrado, as
informações que temos de sua vida e de seu pensamento nos foram legadas pelos seus dois discípulos,
Xenofonte e Platão, de formação intelectual muito diferente. Xenofonte, ao escrever Anábase, em seus
Ditos Memoráveis, nos revelou mais os aspectos pragmáticos e morais do pensamento socrático. No
entanto, seu estilo simples e sem profundidade, apesar da sua devoção para com o mestre, deixam
claro que ele não compreendeu a complexidade do pensamento filosófico de Sócrates, por ser mais um
homem de ação do que um pensador legítimo da sua época.
É possível afirmar que Sócrates atua como protagonista de todas as obras platônicas, mesmo tendo
este conhecido seu mestre já idoso e na última década de vida. O conhecimento perfeito do ser humano
coloca-se como objetivo maior de todas as suas reflexões, assim como a moral está posicionada no centro
20
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
de tudo, para o qual convergem todas as vertentes filosóficas. No campo da psicologia, Sócrates deixou
sua contribuição ao pensar sobre a espiritualidade e a imortalidade da alma, destacando a diferença
entre as duas ordens de conhecimento, o sensitivo e o intelectual, sem definir a capacidade de escolha,
mas relacionando a vontade com a inteligência. Na teodiceia, ele admitiu a existência de Deus com o
seguinte argumento teológico: tudo aquilo que possui uma finalidade resulta de uma inteligência e, se
o homem é inteligente, também deve ser inteligente a causa eficiente que o concebeu.
Pela moral socrática, a lei natural pressupõe um ser superior ao homem, um legislador, que
a sancionou. Portanto, Deus não só existe, como também é Providência, uma vez que governa o
mundo com sabedoria, e o homem pode atingi-lo por meio de sacrifícios e com orações. Apesar da
elevação dessas doutrinas, Sócrates aceita os preconceitos contra a mitologia da sua época, que
ele pretendia reformular. Nesse aspecto, a moral constitui a parte crucial da filosofia socrática,
pois ensina a pensar para viver bem, mostrando que a única forma de alcançar a felicidade ou a
semelhança com Deus está na prática da virtude, que pode ser adquirida com a sabedoria ou com
a identificação com ela. Essa doutrina consiste em um desdobramento natural da falha psicológica
de não conceituar a vontade e a inteligência de maneira diferenciada. Sócrates reconhece ainda,
acima de todas as leis criadas, a existência de uma lei natural que não depende do conhecimento
humano, uma vez que é universal e se estabelece como fonte primordial de todo direito como
expressão da vontade divina ditada pela voz interior da consciência. Mesmo sublime na forma de
descrever os princípios gerais de sua ética, Sócrates, de fato, sempre atribui à utilidade a razão e o
estímulo de toda e qualquer virtude.
A filosofia socrática, portanto, está restrita à gnosiologia e à ética. A gnosiologia de Sócrates, que se
concretizava na sua doutrina dialógica, resume-se em seis aspectos fundamentais: a ironia, a maiêutica,
a introspecção, a ignorância, a indução e a definição. Porém, é necessário separar o espírito dos falsos
conhecimentos, dos preconceitos e das opiniões. Sócrates, juntamente com os sofistas, mesmo com
finalidade diversa, reclama pela libertação da autoridade e da tradição, tendo em vista a reflexão livre
e a crença na razão para tornar possível conceber o verdadeiro conhecimento e a ciência. Isso significa
que a instrução não deve consistir apenas na exposição de um assunto ao aluno, já que o mestre deve
retirá-lo da própria mente do discípulo, pela constituição inerente do espírito humano como um dado
estrutural e universal da sua existência.
Para Sócrates, a forma lógica para chegar ao conhecimento científico de fato consiste na indução,
quer dizer, no percurso do que é particular até o universal, do foco opinativo à ciência, do experimento
ao conceito, leva à definição, para demonstrar o ideal e a reflexão final do processo gnosiológico
socrático sobre a essência da realidade. Ele também é considerado o fundador da ciência, em especial da
ciência moral, defendendo a doutrina de que ética é sinônimo de racionalidade. Além disso, a virtude é
considerada como inteligência, razão e ciência, e não um sentimento, uma tradição, uma lei e o senso
comum. Isso tudo precisa ser superado, fazendo com que a razão prevaleça.
Diante do seu legado para a humanidade, torna-se visível que Sócrates não deixou um pensamento
filosófico fechado. Porém, cabe a ele o mérito de ter descoberto o método e de ter fundado uma
grande escola no campo da filosofia. Por esse motivo, dele depende, de forma direta ou indireta, a
evolução do pensamento na Grécia Antiga, que se desenvolveu a partir da linha socrática, valorizando
21
Unidade I
a herança dos pré-socráticos e organizando-se em sistemas originais e múltiplos. Mesmo diferentes
entre si, todas essas correntes possuem em comum a crença de que o bem maior do ser humano está
na sabedoria. A escola socrática mais expressiva é a platônica e seguiu a evolução lógica do objeto
central do pensamento socrático, que é o conceito, assim como com o aspecto fundamental do
pensamento antecessor, tendo seu auge em Aristóteles, discípulo de Platão, como o grande desfecho
da metafísica grega.
Observação
3.2 Platão
“Outros povos nos deram santos, os gregos nos deram sábios” (Nietzsche).
Figura 4 – Platão (detalhe de A Escola de Atenas)
O pensador das ideias
Platão nasceu em Atenas em 427 a.C., durante da Guerra do Peloponeso, no tempo da revolução
oligárquica e aristocrática que tirou os democratas do poder em Atenas, impondo o Conselho dos 400.
Nesse período, a Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, derrotou a Liga da Hélade, liderada por
Atenas, dando início ao governo dos Trinta Tiranos. No entanto, sua vida transcorreu entre a fase áurea
da democracia ateniense e o final do período helênico, o que confere ao seu legado filosófico a tônica
da liberdade e da expressão política. Ele fundou a Academia e foi mestre de Aristóteles. Aos 20 anos de
idade, conheceu Sócrates, de quem foi discípulo.
22
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
O interesse de Platão pelos assuntos políticos decorreu das condições em que vivia na Grécia Antiga,
onde a vida cultural foi se desenvolvendo muito vinculada aos acontecimentos da cidade-estado, a
pólis, e em torno da organização política, constituída por várias cidades-estados que mantinham suas
tradições e sua religiosidade. A própria dimensão dessas comunidades exigia o fortalecimento dos
vínculos solidários entre seus habitantes, ao mesmo tempo em que permitia a cada uma a construção
da sua fisionomia social particular como um patrimônio comum a todos os cidadãos. Os fenômenos
geográfico e político estavam tão associados que a palavra pólis servia para indicar tanto o lugar da
cidade quanto a natureza da soberania. Sendo assim, qualquer indivíduo nesse contexto pensava em si
mesmo como um ser político.
Perto de completar 40 anos, Platão partiu para a Magna Grécia com o intuito de entrar em contato
com as comunidades pitagóricas. Nessa jornada, foi convidado por Dionísio I para ir à Siracusa, na
Sicília. Ele partiu para essa região com a esperança de implementar seus ideais políticos; mas acabou
se desentendendo com o tirano local e retornou para Atenas, onde fundou a Academia de Física. A
instituição ganhou prestígio em pouco tempo, sendo procurada por um grande número de jovens que
buscavam instrução e até mesmo por homens já ilustres, com a finalidade de debater ideias. Ao regressar
para Atenas, em 360 a.C., Platão comandou a Academia até em 347 a.C., quando faleceu.
Grosso modo, Platão criou a noção de que o homem está em contato permanente com duas
realidades: a inteligível e a sensível, sendo a primeira concreta e imutável. Já a segunda, refere-se a
todas as coisas que afetam os sentidos do homem. São, portanto, realidades dependentes, mutáveis
e imagens das realidades inteligíveis. Essa concepção platônica de mundo também é conhecida
por Teoria das Ideias ou Teoria das Formas, tendo sido elaborada como hipótese no diálogo Fédon,
constituindo assim uma forma de assegurar a possibilidade do conhecimento, além de oferecer uma
inteligibilidade relativa aos fenômenos. Na visão platônica de mundo, aquilo que é captado pelos
sentidos humanos significa apenas uma cópia simplificada do mundo das ideias. Assim, tudo o que
existe de forma concreta faz parte, junto com todos os outros objetos semelhantes, de uma ideia
perfeita. Por exemplo, uma faca terá características próprias, como cor, forma, tamanho, entre outras.
Já outra terá outros atributos, sem deixar de ser faca, tanto quanto a outra. O que faz com que
ambas sejam facas consiste na ideia perfeita que se tem desse objeto, sendo capaz de conter todas as
possibilidades de ser aquilo que é.
De acordo com Platão, algo é na medida em que participa da ideia desse objeto, e seu foco se detém
em coisas como o ser humano, o bem ou a justiça. A teoria platônica explica a forma de conhecimento
das coisas, alegando que, ao ver um objeto muitas vezes, nos lembramos da ideia dele, que já vimos
no mundo das ideias. Para isso, Platão cria o mito de que, antes mesmo de nascer, a alma de cada um
habitava em uma estrela, onde estão as ideias. Ao nascer, seríamos arremessados em direção à Terra.
Com o impacto produzido, acabamos por esquecer o que vimos onde estávamos anteriormente. Porém, à
medida que vemos um objeto aparecer de várias maneiras, a alma recorda-se da ideia primordial daquele
objeto que foi visto na estrela de onde partiu. A essa recordação Platão dá o nome de anamnesis.
Assim sendo, uma das bases para a investigação sobre as ideias consiste em saber que não estamos
completamente ignorantes sobre elas. Isso se torna necessário para que tenhamos em nossa alma
um tipo de conhecimento ou de recordação do contato original com o mundo ideal antes do nosso
23
Unidade I
nascimento, para que possamos nos lembrar delas sendo reproduzidas no mundo concreto. Isso faz com
que toda a ciência platônica seja uma forma de reminiscência, pois a investigação das ideias supõe que
as almas preexistiram em uma região divina onde as contemplavam.
Platão acreditava que o filósofo deveria buscar a verdade plena, que poderia ser encontrada apenas
em uma instância superior, uma vez que a verdade é invariável, e, se existe uma verdade essencial para
a humanidade, ela deve valer para todos. Dessa maneira, a existência das coisas físicas deve ter outro
pressuposto, que transcende a forma de buscar essas realidades e que está no conhecimento daquilo
que está além das coisas. Em Platão, essa busca racional possui caráter contemplativo, o que significa
buscar a verdade no interior do próprio homem como um participante das verdades essenciais do ser.
Assim como seu mestre Sócrates, Platão dedicou-se à descoberta das verdades essenciais das coisas
pelo conhecimento, sempre destacando o homem não na condição de corpo, mas sim enquanto alma.
Na visão dele, a alma humana, por ser perfeita, faz parte do mundo perfeito das ideias, embora isso só
possa ser concretizado por intermédio dos sentidos. Nesse aspecto, também o conhecimento tinha fins
morais, com o intuito de levar o homem à bondade e à felicidade, o que faz do conhecimento uma forma
de reconhecimento capaz de fazer com que haja um reencontro com as verdades que sempre soubemos
existir, permitindo com isso diferenciar as aparências de verdades e as verdades. Sendo assim, a obtenção
do autoconhecimento apresentava-se como um caminho árduo a ser seguido de maneira meticulosa.
É interessante observar que Platão não defendia que todas as pessoas tivessem igualdade de acesso à
razão, pois ele reconhecia que, apesar de todos terem a alma perfeita, nem todos conseguiriam chegar à
contemplação absoluta do mundo das ideias, lembrando que o conhecimento para Platão tem fins morais.
De acordo com ele, existiam três tipos de virtude na alma humana – a sabedoria, que deveria ser o governo, a
coragem, que deveria equivaler à força dos soldados, e a temperança, que estaria relacionada ao baixo-ventre
do Estado, ou seja, aos trabalhadores, uma vez que a alma desses indivíduos é guiada pelos sentidos.
Na visão platônica, o homem divide-se entre corpo, matéria e alma – o imaterial e o divino. O
corpo vive em processo contínuo de mudança de aparência, mas a alma não muda nunca. A partir
do momento em que nascemos, apesar da alma perfeita, estamos aprisionados ao corpo e nos
esquecemos das verdades essenciais escritas eternamente na alma. Para Platão, a alma está dividida
em três partes: Racional: cabeça – tem que controlar as outras duas partes, e sua virtude está na
sabedoria ou na prudência (phrónesis); Irrascível: tórax – parte da impetuosidade, dos sentimentos.
A virtude está na coragem (andreía); e Concupiscente: relativa ao baixo-ventre, incluindo o apetite
e o desejo carnal ligado à libido.
Vale destacar que, para Platão, depois da morte, a alma reencarnava em outro corpo; mas se ocupava
com a filosofia, graças ao desapego material, estando a ela concedido o prazer de passar a eternidade ao
lado dos deuses. Assim, somente por meio da relação de sua alma com a Alma do Mundo o ser humano
pode acessar o mundo das ideias. A ação do homem pode atingir somente o mundo material, pois, no
mundo das ideias, ele não pode transformar nada, uma vez que já existe a perfeição.
A ascensão ao conhecimento está representada por Platão na Alegoria da Caverna, que
descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros
24
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
que, sem que perceba, são transportados à frente de uma fogueira, no sentido figurado. Como
sempre, as projeções do que existe acredita serem elas a realidade e permanece na ilusão. No
entanto, essa situação muda com a libertação desse homem, que reconhece seu engano ao
descobrir a encenação que o iludia. Depois de subir a rampa que leva à saída da caverna, ele
pode contemplar do lado de fora a verdadeira realidade. Acostumado às sombras, primeiro ele
enxerga através dos reflexos, até ter condições de olhar diretamente para a luz solar como fonte
de toda a realidade. Essa alegoria de dimensão emocional, filosófica, religiosa e científica guarda
também uma conotação política, ou seja, aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da
realidade é quem pode e deve governar para libertar os demais prisioneiros das sombras.
Trata-se do filósofo político, capaz de fazer da sua sabedoria um instrumento de libertação
de consciências e de justiça social. Sendo assim, o conhecimento no platonismo se constrói
como uma articulação entre o intelecto e a emoção, entre razão e vontade, como resultado da
inteligência e do sentimento de amor.
Lembrete
Desde que o ser humano tomou consciência da sua condição, muitos
estudiosos buscaram não uma resposta derradeira para o sentido da
existência, mas sim explicar os princípios éticos, morais e religiosos que
regem a trajetória do homem na Terra.
3.3 Aristóteles
Figura 5 – Aristóteles (detalhe de A Escola de Atenas)
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Unidade I
O organizador do mundo
O filósofo grego Aristóteles colaborou em larga escala para o desenvolvimento de muitas ciências;
mas uma retrospectiva do legado do seu pensamento para a humanidade permite perceber que o valor
dessa contribuição foi bastante desigual. A sua química e a sua física são bem menos significativas
do que as investigações no domínio das ciências da vida. Isso ocorreu porque ele não possuía relógios
precisos nem qualquer tipo de instrumento de medição.
Aristóteles também não tinha consciência da importância da velocidade e da temperatura. Na
mesma medida em que seus escritos zoológicos continuavam a ser considerados impressionantes pelo
próprio Darwin, a sua física estava já ultrapassada no século VI d.C. Ao contrário do seu trabalho nas
ciências empíricas, há aspectos da filosofia teórica de Aristóteles que ainda têm muito a nos ensinar, com
destaque para suas afirmações sobre a natureza da linguagem, da realidade e da relação entre as duas.
Nas duas categorias, Aristóteles apresenta uma lista dos diferentes tipos de coisas que podem afirmar-se
a propósito de um indivíduo. Essa lista contém dez artigos: substância, quantidade, qualidade, relação,
espaço, tempo, postura, vestuário, atividade e passividade.
Considerado o pensador mais influente da filosofia ocidental, Aristóteles nasceu em Estagira, na
Calcídica, em 384 a.C. Por ser filho de Nicômaco, amigo e médico pessoal do rei macedônio Amintas
II, pai de Filipe II da Macedônia, é possível compreender seu interesse pela biologia e pela fisiologia, em
decorrência da atuação profissional exercida pelo pai e pelo tio. Ainda na adolescência, Aristóteles foi
morar em Atenas, maior reduto de intelectuais e artistas da Grécia, para dar prosseguimento aos estudos.
Das duas grandes instituições da preferência dos jovens da época, a escola de Isócrates e a Academia de
Platão, optou pela segunda e nela permaneceu por vinte anos, até 347 a.C., ano da morte do seu mestre.
Com a escolha do sobrinho de Platão, Espeusipo, para assumir a Academia, Aristóteles partiu para
Assos com alguns ex-alunos, talvez por que as ideias do novo diretor não lhe agradassem ou por ter se
sentido rejeitado, uma vez que se julgava o mais preparado para assumir a direção da Academia. Lá, ele
criou um círculo filosófico com a ajuda de Hérmias, tirano local. Depois da morte de Hérmias, Aristóteles
foi para Mitilene, na Ilha de Lesbos, onde realizou grande parte das suas investigações no campo da
biologia. Em 336 a.C., retornou a Atenas e fundou a Lykeion, que deu origem à palavra Liceu, uma escola
onde os alunos ficaram conhecidos como peripatéticos, ou seja, aqueles que passeiam, por causa do
hábito de Aristóteles de ensinar ao ar livre.
Diferentemente da Academia de Platão, o Liceu dava preferência às ciências naturais, que estudavam
exemplares da fauna e da flora das regiões conquistadas. Os estudos abrangiam as áreas do conhecimento
clássico da época, como a filosofia, procurando estabelecer as bases dessas disciplinas e também a
metodologia científica do estudo. Aristóteles foi diretor da escola até 324 a.C., depois da morte de
Alexandre. Com temor da postura antimacedônia dos atenienses, que o ameaçaram, ele deixou a cidade,
afirmando que os gregos estavam cometendo outro crime contra a filosofia, depois do julgamento e da
morte de Sócrates.
Como aluno de Platão, Aristóteles discordava de uma parte fundamental da filosofia do seu mestre.
Enquanto Platão concebia dois mundos existentes, um apreendido pelos sentidos humanos, em constante
26
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
mutação, e o outro concebido como sendo das ideias, acessível somente pelo pensamento intelectual,
imutável e atemporal, Aristóteles contemplava apenas a existência do mundo em que vivemos, alegando
que aquilo que estava além da experiência humana não poderia significar nada para o homem. Na visão
aristotélica, a lógica funciona como um elemento introdutório para o conhecimento, tendo como base
uma estrutura de raciocínio formal que compreende pressupostos criados previamente, para que se
possa chegar a uma conclusão. Como a dedução parte do universal para o particular e a indução, pelo
contrário, do particular para o universal, se forem verdadeiras as premissas, a conclusão, logicamente,
também deverá ser.
No campo da psicologia, Aristóteles toma como base os conceitos de alma e de intelecto, sendo a
primeira a essência de um corpo que possui vida em potencial. Já o intelecto, na visão dele, não fica
restrito somente a uma relação exclusiva com o corpo, uma vez que a sua ação vai mais longe. Nesse
contexto, o organismo desenvolvido assume a forma que vai lhe permitir a perfeição por intermédio da
ação. Essa seria a alma, que faz com que a flora cresça e a fauna se reproduza. Para o homem, além de a
alma apresentar atributos vegetativos e sensitivos, ela tem também a inteligência, que reúne condições
de captar a essência de tudo, independentemente da condição orgânica. O filósofo também acreditava
que a mulher era um ser incompleto e passivo, enquanto o homem seria o ser em ação.
Aristóteles foi o verdadeiro fundador da zoologia, dentro do campo de estudo da biologia, ao
estabelecer a primeira divisão do reino animal. Ele também é considerado o fundador da teoria da
abiogênese, que persistiu durante muitos séculos, atestando que um ser nascia a partir de um germe da
vida, sem que outro precisasse gerá-lo, exceção feita aos seres humanos. O que atualmente denominamos
de metafísica Aristóteles chamava de filosofia primeira, aquela que estuda fenômenos que acontecem
além do mundo físico, que podem ser compreendidos pelos sentidos. Nesse sentido, o conceito de
metafísica em Aristóteles apresenta-se de forma extremamente complexa, com quatro definições
possíveis, ou seja, a ciência que busca por causas e princípios, que busca o ser enquanto ser, a que apura
a substância e aquilo que está além dos sentidos. É importante destacar que a teoria aristotélica sobre
as causas abrange toda a natureza. Além disso, o filósofo distingue a essência do acidente em alguma
coisa. A definição de essência seria algo responsável pela identificação de um ser, sem a qual se torna
impossível reconhecê-lo como ele mesmo. Já o acidente é algo que pode ser parte estrutural ou não do
ser, mas que não o descaracteriza por sua falta.
Para Aristóteles, a ética pode ser considerada como a ciência das condutas, que estuda assuntos
que podem sofrer alteração. Sendo assim, ela se debate com aquilo que é essencial e imutável no
ser humano, com o que pode ser adquirido por atitudes repetidas ou por costumes que legitimam
as virtudes e os vícios. O seu objetivo último, portanto, consiste na garantia ou na possibilidade de
conquista da felicidade. Tomando como princípio as disposições naturais do homem, a função da moral
consiste em demonstrar como elas necessitam ser mudadas para se adaptar à razão. Ainda na visão
dele, as virtudes se realizam sempre na esfera do homem e perdem sentido quando as relações humanas
deixam de existir.
Já a virtude, seja ela especulativa ou intelectual, diferencia-se porque faz parte de um universo
filosófico limitado que, excluindo a vida moral, busca o conhecimento pelo conhecimento. Dessa
maneira, na filosofia aristotélica, a prática da contemplação volta o homem para Deus, sendo a política
27
Unidade I
uma consequência natural da ética. Para ele, ambas compõem a unidade denominada filosofia prática.
Nesse sentido, se a ética está preocupada com a felicidade individual do homem, a política se ocupa
em investigar as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva na
constituição do estado.
De acordo com Aristóteles (1973):
um problema de dialética é um tema de investigação que contribui para
a escolha ou a rejeição de alguma coisa, ou ainda para a verdade e o
conhecimento, e isso quer por si mesmo, quer como ajuda para a solução de
algum outro problema do mesmo tipo.
Ele também considerava como primordial o conhecimento da retórica, que consiste em uma técnica
relacionada à vida pública. Para ele, o discurso retórico opera no campo deliberativo, no campo judicial
e no campo epidítico (demonstrativo).
Saiba mais
Não deixe de ler o livro O Mundo de Sofia, de Josten Gaarder, que conta
de forma divertida e didática a história desses grandes filósofos gregos,
além de outros também.
GAARDER. J. O mundo de Sofia. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
4 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA
Figura 6 – Capa da Bíblia Moralisée, 1275 (Deus criando o universo através de princípios geométricos)
28
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
A filosofia da Idade Média pode ser considerada como o pensamento filosófico ocidental que preencheu
o espaço entre o fim do mundo antigo, determinado pela queda do Império Romano do Ocidente (476),
e pelo começo dos tempos modernos, que têm seu início a partir da conquista de Constantinopla (1453)
ou do princípio da Reforma Religiosa em 1517. A essa filosofia medieval costuma-se dar o nome de
filosofia escolástica, que começou mesmo no século IX. Por isso, vamos dividir a filosofia da Idade Média
em dois grandes períodos – a filosofia patrística e a filosofia escolástica.
Se formos traçar um perfil da filosofia medieval pelo seu conteúdo, naquilo que corresponde
à sua essência espiritual, podemos conceituá-la como o pensamento filosófico ocidental que vem
desde Santo Agostinho e de Anselmo de Cantuária, obedecendo ao mote: “saber para crer, crer para
poder saber”. Durante esse período, a filosofia, que tem por objetivo tratar dos grandes problemas
do mundo, do homem e de Deus só com as forças da razão, alia-se com a fé religiosa no pressuposto
de uma unidade ideológica. Nela, está representado o espírito de toda essa fase da história humana
e nada é mais significativo do que essa unidade espiritual. Como nunca, todos vivem na certeza
da existência de Deus, da sua sabedoria, do seu poder e da sua bondade. Nesse sentido, o homem
podia dizer com segurança que sabia da origem do mundo e da sua própria natureza, cheia de
sentido, bem como sua essência homem e sua posição no universo, tendo em vista a significação
da sua vida e a imortalidade. Enquanto na era moderna indaga-se a respeito da possibilidade da
ordem e da lei, na época medieval a ordem estabelece-se como algo evidente, sendo nossa a tarefa
de reconhecê-la. No início da patrística, a Idade Média encontrou seu direcionamento, que foi
preservado até o final.
Surge, porém, a indagação se ainda se trata de pura filosofia, quando o conhecimento não é
dominante, sendo guiado pela religião. Claro, pois como tudo já estava pronto e se repetia com frequência,
a filosofia não teria que solucionar qualquer tipo de problema, pois eles já estariam resolvidos no campo
da fé. Nesse sentido, é com base na fé que o filósofo deve pensar, e o pensamento filosófico deve servir
ao patrimônio da crença, aplicando-lhe a análise e a síntese pela ciência. Em resumo, trata-se de uma
filosofia comprometida com juízos de valor preconcebidos, o que deixa um rastro de dúvida quanto à
existência de uma filosofia de fato na Idade Média.
Atualmente, depois das investigações de DeniEle, Ehrle, Bauemker, M. De WUlf. Grabmann, MaNdoNNet,
Gilson e outros, sabemos que as realizações filosóficas pertinentes à Idade Média eram bem mais
abrangentes, interessantes e também individuais do que poderíamos imaginar. Além disso, também para o
homem medieval era livre o pensamento e a investigação. Mesmo sem fazer grande uso da sua liberdade,
o homem da Idade Média seguiu as pressuposições e também a opinião pública. Condenar a Idade Média,
alegando o fato de ela não ser “isenta de preconceitos”, é um paradoxo. Na realidade, em época alguma
houve ausência de preconceitos. Porém, existe o ideal ao qual devemos perseguir por amor à verdade, o
que também ocorreu na filosofia medieval, que buscou alcançar a verdade objetiva. Por isso, não devemos
subestimar a Idade Média; pois, quanto mais conhecemos melhor o homem moderno na sua forma de
pensar e de sentir, ele parece muitas vezes mais medieval que a própria Idade Média.
Possui ainda a Idade Média algum significado do ponto de vista filosófico? Com certeza, pois ela
conservou os antigos pressupostos teóricos, incluindo não apenas a ciência e a arte da antiguidade,
mas também garantiu nas suas escolas a continuidade do saber filosófico. Nesse aspecto, temas tão
29
Unidade I
fundamentais relativos à causalidade, à realidade, à finalidade, à universalidade, à individualidade, à
sensibilidade e ao mundo fenomenal, à compreensão e à razão, à alma e ao espírito, ao mundo e a Deus
foram transmitidos aos filósofos modernos pela Idade Média.
4.1 A Patrística
7 – Santo Agostinho
A filosofia cristã dos primeiros sete séculos foi denominada de patrística, por ter sido elaborada pelos
padres da Igreja, considerados como os primeiros teóricos. Ela consiste no conjunto de doutrina das verdades
da fé cristã e na sua defesa contra os “pagãos” e os hereges. Esse conjunto foi responsável pela defesa da fé e da
criação dos costumes que decidiram os rumos da Igreja no decorrer dos sete primeiros séculos do cristianismo.
A patrística também se ocupou da elucidação progressiva dos dogmas cristãos e daquilo que chamamos de
Tradição Católica. Quando o ocidentalismo, para defender-se de ataques de outros povos, religiões e culturas,
precisou esclarecer seus próprios dogmatismos, a pratística mostrou-se como a expressão acabada da verdade
que a filosofia grega havia buscado, enquanto o próprio Deus não havia ainda encarnado.
Se, por um lado, se procura interpretar o cristianismo por intermédio de conceitos tomados da
filosofia grega; do outro, encontra-se o significado que esta última dá ao cristianismo. Os primeiros
pensadores cristãos também se debateram com os filósofos, Platão, Aristóteles, sobretudo com os
estoicos e os epicureus. Sem perder de vista os ideais da doutrina cristã, eles buscaram encontrar, frente
à filosofia e aos filósofos, o local adequado da reflexão filosófica e do pensamento cristão.
Vale lembrar que o cristianismo primitivo recebeu influências de vários segmentos da filosofia grega,
já citados anteriormente, sem que se pudesse determinar com clareza a extensão provocada por esse
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HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
contato. Costuma-se dizer que os filósofos convertidos ao cristianismo buscaram conferir à doutrina
cristã um status filosófico, mas sem o cuidado de salientar as fontes filosóficas. Entre os autores que
se ocuparam dessa tarefa, estão Justino, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de
Nazianzo, Basílio de Cesareia e Gregório de Nissa.
Como observa Johannes Hirschberger (1966):
Tratando-se de filosofia patrística, não devemos, como outrora, pensar
somente nas obras de filósofos que só foram filósofos. A filosofia da patrística
está antes contida nos tratados dos pastores de alma, pregadores, exegetas,
teólogos, apologetas que buscam antes de tudo a exposição da sua doutrina
religiosa. Mas, ao mesmo tempo, levados pela natureza das cousas e dada a
ocasião, se põem a resolver problemas propriamente pertencentes à filosofia;
e então, pela força do assunto, versam a metodologia filosófica.
Divisão didática
Podemos dividir a Patrística em três fases:
• até o ano 200, ocupou-se em defender o cristianismo contra seus adversários (padres apologistas,
como São Justino Mártir).
• até o ano 450, consolida-se o período em que surgem as primeiras grandes teorias da filosofia
cristã, como a de Santo Agostinho e a de Clemente Alexandrino, entre outros.
• até o século VIII, são refeitas as doutrinas já formuladas e de cunho original.
Também é possível dividir a literatura patrística em três períodos, da seguinte forma:
• Período ante-niceno – corresponde ao período anterior ao Concílio Ecumênico de Niceia. Inclui
todos os escritos surgidos entre o século I e o início do século IV.
• Período niceno – faz menção ao período entre os anos anteriores até aqueles posteriores ao Concílio
Ecumênico de Niceia. Abrange os escritos que surgiram entre o início e o fim do século IV.
• Período pós-niceno – trata-se do período compreendido entre os séculos V e VIII.
4.1.1 A filosofia de Agostinho
Aurélio Agostinho foi um padre que merece destaque entre os representantes do clero, da mesma
forma que Tomás de Aquino se diferenciou entre os escolásticos. Enquanto Agostinho buscou inspiração
na filosofia platônica, Tomás de Aquino preferiu os pensamentos de Aristóteles para elaborar a filosofia
metafísica cristã. Por ser muito sensível e compreensivo, Agostinho revelou ter em si a mesma essência
da patrística grega, com o caráter pragmático da patrística latina, mesmo que os problemas que o
preocupassem fossem sempre de natureza prática e moral, como o mal, a liberdade e o destino.
31
Unidade I
Nascido em Tagasta, na Numídia, em 354, Agostinho pertencia a uma família burguesa comandada
pelo pai, que era pagão, tendo sido batizado somente antes de morrer. No entanto, a mãe era uma cristã
fervorosa que influenciou muito o filho nesse aspecto. Ele foi para Cartago para aperfeiçoar seus estudos
e, ao terminá-los, abriu uma escola lá mesmo. Em seguida, partiu para Roma e depois para Milão. Ele
deixou de ensinar aos 32 anos, por motivo de saúde e de natureza espiritual. Após uma reflexão crítica
e madura das suas ideias, acabou abandonando o maniqueísmo para adotar a filosofia neoplatônica,
que lhe ensinou a espiritualidade divina, bem como a negatividade do mal. Agostinho retirou-se do
mundo durante meses, visando ao isolamento, na companhia da mãe, do filho e de alguns discípulos,
nos arredores de Milão. Foi durante essa fase da sua vida que redigiu seus diálogos filosóficos.
Logo após a conversão aos 33 anos, Agostinho deixou Milão, doou tudo o que tinha para os pobres e
fundou um mosteiro em uma de suas propriedades. Foi ordenado padre em 391 e consagrado bispo em
395, tendo governado a igreja de Hipona até a morte, aos 75 anos, durante o assédio da cidade pelos
vândalos em 430. Ele também de dedicou, em tempo integral, a estudar a Bíblia e a redigir suas obras,
especialmente as de caráter filosófico. Entre elas, estão Contra os acadêmicos, Os solilóquios, Sobre a
imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre os costumes, Do livre arbítrio,
Sobre as duas almas, Da natureza do bem.
De acordo com Agostinho, a filosofia poderia resolver o problema da vida, a qual apenas o cristianismo
poderia dar uma solução real. Nesse sentido, seu grande interesse estava relacionado aos problemas de Deus
e da alma, por serem os mais importantes. No início, ele garantiu a certeza da própria existência espiritual,
de onde tirou uma verdade superior e imutável como condição e origem de toda verdade individual.
Mesmo ao desvalorizar o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, alegava
que os sentidos e o intelecto consistem nas fontes de conhecimento. Como para ver algo com os olhos
humanos, é necessária a luz física, da mesma forma, para o conhecimento intelectual, seria preciso uma
luz espiritual que vem de Deus, sendo esta a Verdade e o Verbo divino, para onde são levadas as ideias
do pensamento platônico.
Com relação à natureza de Deus, Agostinho demonstrou uma noção exata, ortodoxa e cristã, definindoo como um poder racional infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência. Para ele, Deus é
ainda ser, saber e amor, e, no tocante às relações mundanas, Deus é concebido como criador.
Vale lembrar que o pensamento clássico grego concebia uma dualidade metafísica. Já no pensamento
cristão agostiniano, esse dualismo persiste, mas agora incorporando a moral e os pecados dos espíritos
que se erguem contra Deus, preferindo o mundo a Ele. Portanto, no cristianismo, o mal estaria, do ponto
de vista metafísico, na negação e na privação. Basicamente, Agostinho tratou do problema das relações
entre Deus e o tempo, uma vez que este último é considerado uma criatura de Deus, porque passa a
existir a partir da criação das coisas.
Ainda é possível afirmar que a psicologia de Agostinho encontrou ressonância no seu platonismo
cristão. Nesse sentido, o corpo não é mau por natureza, uma vez que a matéria não pode ser essencialmente
má, por ter sido criada por Deus. No entanto, a união do corpo com a alma é acidental, pois alma e corpo
não formam a unidade metafísica, substancial, da doutrina da forma e da matéria.
32
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Entretanto, demonstrou indecisão entre o criacionismo e o traducionismo, ou seja, se a alma é
criada diretamente por Deus ou provém da alma dos pais. A única certeza é que ela é imortal pela
sua simplicidade. Agostinho a classificou platonicamente em vegetativa, sensitiva e intelectiva; mas
destacou que estão todas forjadas na substância humana. Dessa forma, a inteligência é divina em
intelecto intuitivo, a razão consiste em fruto da vontade. Enquanto no homem a vontade é amor, no
animal funciona como instinto, e nos seres inferiores está representada pelo apetite.
Sem sombra de dúvida, a moral agostiniana é cristã e transcendente. A característica mais
importante da sua moral está no voluntarismo, na ação própria do pensamento latino, de forma oposta
ao pensamento grego. Dessa forma, a vontade não é determinada pelo intelecto, pois vem antes dele.
Para a filosofia agostiniana, como a vontade é livre, pode querer o mal; pois se trata de um ser limitado,
capaz de ir ao encontro da vontade de Deus. O pecado, portanto, possui em si mesmo o dado estrutural
da pena da sua desordem e, como o homem não pode prejudicar Deus, acaba prejudicando a si mesmo,
dilacerado pela sua natureza. A teoria agostiniana sobre a liberdade em Adão, antes do pecado original,
consiste justamente em poder não pecar. Depois do pecado original cometido, está em não poder não
pecar e nos bem-aventurados será não poder pecar.
Exposta dessa maneira, a vontade humana parece impotente e sem graça. Já a questão da graça, que
perturbava Agostinho, apresenta um interesse filosófico, uma vez que trata de conciliar a causalidade
absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem.
Com relação à família, Agostinho, assim como o apóstolo Paulo, considerou o celibato superior ao
matrimônio. Se o mundo terminasse por causa do celibato, ele demonstraria alegria pela passagem
do tempo para a eternidade. Quanto à política, ele possui uma concepção negativa da função estatal,
pois se não houvesse pecado e os homens fossem todos corretos, o Estado de nada serviria. Na visão
de Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não natural. Também a escravidão não seria de
direito natural, e sim uma consequência do pecado original, que sempre incomodou toda a humanidade.
Por não poder ser vencida de forma racional, sua essência já é corrompida, podendo ser superada apenas
por meio do conformismo cristão, de quem é escravo, e da caridade, de quem é senhor.
Agostinho foi profundamente perturbado pelo problema do mal, do qual fornece uma rica
fenomenologia, e também por muito tempo desviado dessa questão pela solução maniqueísta, que
impediu seu acesso ao justo conceito de Deus e à possibilidade da vida moral. Ele descobriu a solução
para esse problema na libertação e na sua concepção filosófico-teológica, considerada como um marco
fundamental entre o pensamento grego e cristão. Inicialmente, ele refutou a realidade metafísica do
mal, alegando ser ela a privação do ser, da mesma forma que a escuridão consiste na ausência de
luz. Essa privação é necessária em qualquer criatura que não seja Deus. Já ao mal físico, que atinge a
perfeição natural dos seres, buscou explicá-lo argumentando que o contraste dos seres contribuiria para
a composição harmônica do todo.
No que se refere ao “mal moral”, existe de fato a má vontade que provoca livremente o mal; porém, ela
não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não ser, que pode vir do homem livre e limitado e não de
Deus, que é puro ser e cria apenas o ser. Como o mal moral chegou ao mundo humano pelo pecado original
e atual, a humanidade foi castigada com todo tipo de sofrimento, incluindo a perda dos dons divinos.
33
Unidade I
Dessa forma, o mal físico tem outra explicação mais profunda, uma vez que o mal moral foi remediado
pela redenção de Cristo, Homem-Deus, que devolveu à humanidade os dons divinos, bem como a
possibilidade do bem moral, mas deixou permanecer o sofrimento como consequência do pecado, como
meio de purificação e expiação.
Para explicar o mal moral e seus desdobramentos, Agostinho atestou o fato de ser muito mais glorioso
para Deus retirar o bem do mal, em vez de simplesmente impedir o mal. De maneira resumida, a doutrina
agostiniana sobre o mal consiste basicamente na privação do bem ou devido a uma natureza específica.
Agostinho divide em três partes a história que antecedeu a de Cristo. A primeira encontra-se
relacionada à história da Cidade de Deus e da Cidade Satânica após o pecado original, até se unirem em
um único mundo caótico humano, indo até a chegada de Abraão, com o começo da separação.
Já na segunda parte, ele se restringre à Cidade de Deus, instalada em Israel, de Abraão até Cristo.
Na terceira fase, o filósofo volta ao ponto em que tem início a história da Cidade de Deus desde seus
primórdios, para tratar da mesma forma a cidade do mundo que nos leva ao Império Romano. Apesar
de fragmentada, essa narrativa, na qual Satanás parece ter seu reino, representa, ao mesmo tempo, uma
unidade e uma perspectiva de progresso para Cristo, sempre mais aguardado e profetizado em Israel e
pelos povos pagãos, que também, de alguma forma, já preparavam a sua vinda.
Após a vinda de Cristo, acabou a divisão política entre as duas cidades, e elas acabam se entrelaçando
como nos primórdios da humanidade, sem ser mais uma união caótica, mas sim reformulada pela Igreja,
que está acima de todas as convenções humanas na unidade dos homens com Deus. Nesse sentido,
a Igreja passa a ser acessível às almas de boa vontade que dela não podem participar, indo além do
mundo terreno. Como todos os predestinados se encontram na prática unidos na Igreja, a divisão final
vai acontecer somente no fim dos tempos, depois da morte e do julgamento universal. Por ser uma visão
unitária e teológica da história, pertence ao terreno da teologia e não da filosofia.
4.2 A Escolástica
Figura 8 – Santo Agostinho
34
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
A escolástica possui um significado mais limitado quando comparada às disciplinas ministradas nas
escolas medievais, entre elas a gramática, a retórica e a dialética; a aritmética, a geometria, a astronomia
e a música, embora contemple uma conotação mais ampla ao se reportar à linha filosófica adotada pela
Igreja na Idade Média. Esse modo de pensar essencialmente cristão buscava respostas que justificassem
a fé na doutrina ensinada pelo clero, considerado como o guardião das verdades espirituais. Essa escola
filosófica prevaleceu do princípio do século IX até o final do século XVI, época que representou o declínio
da era medieval, sendo a escolástica o resultado de estudos mais profundos da arte dialética, assim
como a radicalização dessa prática. No início, ela foi disseminada nas catedrais e nos monastérios para
depois chegar às universidades.
Com isso, a filosofia da antiguidade clássica adquiriu características judaico-cristãs, já esboçadas a partir
do século V, com a necessidade urgente de fazer um mergulho profundo em uma cultura espiritual que
estava se desenvolvendo rapidamente, para assimilar a esses princípios religiosos uma essência filosófica
capaz de introduzir o cristianismo no campo da filosofia. A partir dessas tentativas de racionalização do
pensamento cristão, surgiram os dogmas católicos, que se infiltraram na mentalidade clássica dos conceitos
gregos, como ‘providência’, ‘revelação divina’, ‘criação proveniente do nada’, entre tantos outros.
A tarefa dos escolásticos consistia, portanto, em harmonizar ideais platônicos com fatores de natureza
espiritual, inseridos do cristianismo vigente ocidental. Mesmo quando Aristóteles é contemplado no
pensamento cristão por Tomás de Aquino, o neoplatonismo adotado pela Igreja ainda é preservado, fazendo
com que a escolástica seja permanentemente atravessada por dois universos distintos, o da fé herdada da
mentalidade platônica e a razão aristotélica. No caso de Agostinho, havia o clamor pelo predomínio da fé em
detrimento da razão, ao passo que, em Tomás de Aquino, se acreditava na independência da esfera racional
na busca de respostas mais apropriadas, embora não houvesse rejeição à primazia da fé sobre a razão.
O método adotado pela Escolástica se deu por meio do ensino, fundamentado no mestre com o
domínio da palavra e também no debate livre entre o professor e seu discípulo. Além disso, também
houve as formas literárias e, entre elas, predominam os comentários, nascidos das discussões, dos quais
se originam as summas, que permitem ao autor se ver um pouco mais livre dos textos. Uma das summas
mais renomadas é a Summa Theologica de São Tomás. A Opuscula é igualmente usada pelos escolásticos,
representando um caminho mais autônomo para se abordar uma questão.
Vale ressaltar que a escolástica foi nitidamente influenciada pela Bíblia Sagrada, pelos filósofos da
antiguidade e também pelos padres da Igreja, escritores do primeiro período do cristianismo oficial, que
dominavam a fé e a santidade. Ela ainda pode ser considerada como o último período do pensamento
cristão, que se estende desde o começo do século IX até o final do século XVI, abrangendo da constituição
do Império Romano até o final da Idade Média. Portanto, a escolástica era a filosofia ensinada nas
escolas dessa época pelos professores chamados de escolásticos. As disciplinas ensinadas nas escolas
medievais dividiam-se entre gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música.
A escolástica veio a partir do desenvolvimento da dialética.
Junto com essa instrução, ainda existe, na Idade Média, uma educação militar, ministrada por
militares para militares. Também a Igreja preocupa-se no sentido de conferir ao seu sistema educacional
um sentido ético, religioso e católico. Pode-se afirmar que a história da filosofia escolástica começou
35
Unidade I
com o nome de João Scoto Erígena, que nasceu na Irlanda, em 874. Ele foi chamado à corte culta
de Carlos, o Calvo, para presidir e ministrar aulas na escola palatina. Sua obra principal consiste Da
Divisão da Natureza, dividida em cinco livros. Por apresentar características neoplatônicas, o esquema
especulativo da obra traz a descida da unidade à multiplicidade, bem como o retorno da multiplicidade
à unidade. A valorização conceitual das ideias, problema que tanto despertou o interesse da escolástica,
foi solucionado de maneira radical no pensamento escotista.
As soluções oferecidas pela escolástica podem ser basicamente divididas em três: a solução chamada
de realismo transcendente, a solução do realismo moderado e a solução nominalista. Segundo a solução
proposta pelo realismo transcendente, a ideia de uma realidade existe além da esfera mental e do objeto,
consistindo na solução platônica adotada pela escolástica iniciante. Já a solução do realismo moderado
traz em si uma realidade objetiva e fora do campo mental. Nesse sentido, a solução conceptualistanominalista destaca que o universal não possui existência objetiva, mas somente mental ou nominal.
Após a decadência cultural que se seguiu à renascença, começou a se manifestar nos séculos XI e XII um
renascimento especulativo, incluindo a luta dos teólogos e dos místicos, contra a ciência filosófica por
eles considerada um resíduo pagão e uma distração mundana contra os filósofos e os dialéticos que a
cultivavam. Também é importante destacar sua posição crítica com relação à pesquisa filosófica, pois a
dúvida nos leva à investigação, e a investigação nos leva à ciência.
Observação
“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã
filosofia” (Shakespeare).
4.2.1 O pensamento de Tomás de Aquino
Figura 9 – São Tomás de Aquino
36
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Podemos afirmar que o tomismo ou a doutrina escolástica de Tomás de Aquino, adotada
oficialmente pela Igreja Católica, caracteriza-se, principalmente, pela tentativa de conciliar a filosofia
de Aristóteles com o cristianismo, desfazendo-se das doutrinas que não estavam enquadradas de
acordo com os princípios aristotélicos.
A obra de Tomás de Aquino pode ser dividida em partes, tratados, questões e artigos, objeções
e respostas, em rigorosa ordem numérica, abordando em sua estrutura a composição do mundo
feudal, separado em classes e em estamentos sociais. Como a expressão máxima do apogeu do mundo
medieval, contemporânea dos castelos e das catedrais, o tomismo consiste em um manancial de ideias,
em que a teologia do século XIII encontrou sua forma mais coerente e sólida de formulação. Contudo,
o tomismo não foi totalmente aceito pelos escolásticos medievais, e apenas na segunda metade do
século XVI foi adotado como arma de defesa e ataque da Contrarreforma da Igreja Católica.
Coube a Tomás de Aquino a tarefa de mostrar a solução definitiva para o conflito existente nas
relações entre a razão e a fé. Estamos falando de duas ciências, a filosofia e a teologia, sendo que a
primeira baseia-se no exercício da razão humana, enquanto a segunda, na revelação divina. Apesar de
serem independentes, apresentam, por vezes, os objetos de estudo comuns, como a existência de Deus,
a essência da alma, entre outros. Por esse motivo, a distinção entre essas ciências tem origem mais do
objeto formal, pois a teologia estuda o dogma pelo método da autoridade ou da revelação, e a filosofia
o analisa pela demonstração científica ou pela razão. Portanto, teologia e filosofia não são ciências
contraditórias, pois ambas procuram a verdade, e esta é uma só. Na hipótese de uma contradição entre
a razão e a revelação, o erro não será jamais da teologia, mas sim da filosofia, pois nossas limitações do
ponto de vista do conhecimento racional desviaram-se e não conseguiram atingir a verdade.
Para Tomás de Aquino, nada está na inteligência que não tenha estado antes nos sentidos, motivo pelo
qual não podemos ter de Deus, de pronto, uma noção imediata. Com o objetivo de provar sua existência,
Tomás procede a posteriori, ou seja, não da ideia de Deus, mas sim dos efeitos por Ele proporcionados.
Dessa forma, ele utiliza o mundo sensível, cuja existência é dada pelos sentidos como ponto de
partida, bem como a metafísica de Aristóteles, para demonstrar a existência de Deus de cinco modos,
mais conhecidos como as famosas cinco vias:
1) A do “Movimento” – trata-se do argumento aristotélico do primeiro motor, que afirma “não ser
possível admitir uma série infinita de seres que se movem, movendo por sua vez outros seres; logo, é
preciso chegar a um motor que mova sem ser movido”. Portanto, o movimento existe e é uma evidência
para nossos sentidos. Tudo aquilo que se move é movido por outro motor; e se esse motor, por sua
vez, é movido, vai necessitar de um motor que o mova, e assim por diante de forma infinita, o que é
impossível, se não houver um primeiro motor imóvel, que move sem ser movido, que é Deus.
2) A da “Concatenação das Causas” – tudo está sujeito à lei de causa e efeito. Portanto, existe
uma série de causas e efeitos ao mesmo tempo. Sendo assim, torna-se impossível remontar
indefinidamente na série das causas. Logo, há uma causa primeira, não causada, que é Deus.
3) A da “Contingência” – todos os seres conhecidos são finitos, pois não possuem em si próprios
a razão de sua existência. São e deixam de ser. Se são todos mortais, em um prazo de tempo
37
Unidade I
deixariam de ser e nada mais existiria, o que é absurdo. Portanto, os seres contingentes implicam
o ser necessário, ou seja, Deus.
4) A dos “Graus de Perfeição” – todas as perfeições possuem graus, que se aproximam mais ou
menos da perfeição absoluta. Deve, pois, haver um ser supremo perfeito, que é Deus.
5) A da “Ordem Universal” – todos os seres tendem para uma ordem, não de forma aleatória, mas
por uma inteligência que os guia. Isso significa que há um ser inteligente que ordena a natureza
e a impulsiona para seu fim. Esse ente é Deus.
A partir desses conceitos, Tomás de Aquino concluiu o quanto podemos conhecer sobre a natureza e
as virtudes de Deus. No entanto, observou que esse conhecimento é imperfeito, pois sabemos que “Deus
é”, mas não “O que é”. Mesmo assim, podemos compreender que Deus é eterno, infinito e onipotente em
suas relações com o mundo, além de ser Criador e Providência.
Nesse sentido, a doutrina tomista acredita que a alma, como princípio espiritual, une-se ao corpo,
como princípio material, para constituir uma substância. Dessa forma, possuem alma as plantas, sendo
a “alma vegetativa” a responsável pelas funções de alimentação e reprodução. No caso dos animais, é
a “alma sensitiva” que responde às funções anteriores, mais à sensação e à mobilidade. Para o homem,
juntam-se todas as funções anteriores, acrescentando-se a racional.
No que diz respeito às propriedades da alma humana, ele admite o livre-arbítrio, que é estudado
sob todos seus aspectos, e os problemas dele derivados são resolvidos com seriedade e rigidez. Tomás de
Aquino considera a inteligência como a faculdade mais perfeita da alma humana.
Por intermédio dos seus princípios éticos, ele também adapta a doutrina de Aristóteles aos
princípios cristãos. Dessa forma, a ética passa a ser o “movimento da criatura racional para Deus”, que
busca a bem-aventurança e consiste na contemplação imediata de Deus. Para Tomás de Aquino, o
conhecimento tem dois momentos: o sensitivo e o intelectual. O conhecimento sensitivo do objeto está
fora de nós e acontece mediante a sensação, que consiste na impressão do objeto material em nossa
consciência. Ela processa-se pela assimilação das sensações do sujeito com o objeto conhecido. Já o
conhecimento intelectual depende do conhecimento sensitivo; mas ultrapassa-o por meio da abstração
e da generalização na busca da formulação de conceitos.
Considerado o maior representante da escolástica, Tomás de Aquino elaborou um sistema filosófico
sintético, coerente e fundamentado em Aristóteles, reformulando, assim, todo o pensamento cristão
e adquirindo plena consciência dos poderes racionais, o que permite ao cristianismo ser visto como
uma filosofia. Assim, podemos atribuir a Tomás de Aquino o pensamento escolástico, bem como o
pensamento patrístico, que teve seu ápice em Agostinho, repleto de elementos helenistas e neoplatônicos,
incluindo a herança da revelação judaico-cristã. A ele, deve-se diretamente o pensamento helênico na
sistematização do pensamento de Aristóteles, que chega a Tomás de Aquino acrescido pelas influências
de outras culturas.
Diferentemente do agostinianismo, e em sintonia com o pensamento aristotélico, Tomás de
Aquino considerava a filosofia como uma disciplina para resolver o problema do mundo e totalmente
38
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
distinta da teologia, mas sem ser oposta a ela. Pelo contrário, diversamente de Agostinho, ela estaria
em harmonia com a aristotélica, por ser empírica e racional, sem intervenções divinas.
Nesse contexto, o conhecimento humano passa por dois momentos, o sensível e o intelectual, e
o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós, acontece
por meio da impressão da imagem, ou seja, pela forma do objeto material na alma, o que representa
o objeto desprovido da matéria.
Já o conhecimento intelectual observa a natureza das coisas em nível mais profundido em
comparação aos sentidos humanos, sobre os quais exerce a sua função. Na forma sensível, que significa
o objeto material na sua individualidade, independentemente da matéria, o inteligível, o universal e
a essência estão retidos nele como potencial. Para que venha à tona, é preciso descontextualizá-lo
das condições materiais. Esse procedimento pode ser feito apenas por um agente intelectual capaz de
abstrair e desmaterializar o inteligível da representação sensível. Porém, esse conhecimento não possui
conteúdo ideal nem conceitos, como pretendia o inatismo agostiniano. Além disso, trata-se de uma
faculdade da alma individual, que não vem de fora.
É importante salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível é o meio pelo qual
a mente entende as coisas extramentais, e isso corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento,
que nos assegura conhecermos coisas e não ideias. Contudo, as coisas podem ser conhecidas somente
por meio das espécies e das imagens; mas sem entrar fisicamente no cérebro. Nesse aspecto, o conceito
tomista de verdade encontra-se em harmonia com a concepção realista do mundo, justificando-se pela
experiência prática e pela razão. Portanto, a verdade lógica encontra-se na adaptação entre a coisa e o
intelecto.
O indicativo pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente está na evidência e, como muitos
conhecimentos nossos não são evidentes, mas de natureza intuitiva, tornam-se verdadeiros quando
levados à evidência por intermédio da prática demonstrativa. Embora a demonstração seja um processo
dedutivo, os conceitos e as ideias não são inatos na mente humana, como defendia o agostinianismo, e
nem sequer nas suas relações lógicas. Elas consistem no resultado fundamental da experiência humana
mediante a indução, que chega à essência das coisas.
A metafísica geral tem por finalidade o ser em geral, as atribuições e as leis relativas, enquanto
a metafísica especial busca estudar o homem em suas grandes especificações, entre elas Deus, o
espírito e o mundo. Nesse sentido, a base do tomismo está na especificação do ser em potência e ato,
significando este a realidade e a perfeição, enquanto a potência representa o oposto. Nesse contexto, o
princípio de potência e ato vale para qualquer realidade material, sendo o princípio da matéria aquele
que interessa à cosmologia tomista.
Dessa maneira, a concretização da forma em vários indivíduos, que realmente existem, depende da
matéria, que representa o indivíduo no mundo concreto.
Além da matéria e da forma como causas constitutivas, os seres materiais possuem duas outras
causas – a eficiente e a final. A causa eficiente é responsável pelo surgimento de um ser na realidade,
39
Unidade I
sintetizando aquela matéria com a forma por ela determinada. Já a causa final determina a ordem
observada no universo. Em outras palavras, todo ser material existe por causa do cruzamento de quatro
causas – material, formal, eficiente e final, que constituem o ser na realidade e na ordem com os
demais seres vivos pertencentes ao universo.
Como o princípio da vida está dentro do ser, sendo denominado de alma, possuem uma alma
também as plantas e os animais. Porém, para a psicologia racional, que se ocupa com o homem,
interessa somente a alma racional. A alma racional desempenha as funções da alma vegetativa e
sensitiva, compreendendo e desejando; pois, na visão de Tomás de Aquino, existe uma forma só e,
consequentemente, apenas uma alma para cada indivíduo. No homem, existe uma alma espiritual,
unida com o corpo, que o transcende. Portanto, além das atividades já mencionadas, manifestam-se
ainda atividades espirituais, como o intelecto e a vontade. A atividade intelectual, por exemplo, está
direcionada para entidades imateriais, como os conceitos. No caso da vontade humana, ela é livre e
indeterminada, enquanto o mundo material segue regido por leis fundamentais. Assim sendo, a vontade
apresenta-se como um princípio imaterial e espiritual da alma racional, que é imortal, por ser imaterial
e espiritual.
Diferentemente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás de Aquino afirma que a alma, mesmo
espiritual, está junto do corpo material, que é a sua forma. Desse modo, como o corpo não pode existir
sem a alma, também a alma, mesmo imortal, não pode viver em sua plenitude sem o corpo, que lhe
serve como uma ferramenta crucial. Ao contrário da doutrina agostiniana, que pretendia ser Deus
conhecido imediatamente por intuição, Tomás de Aquino ressalta que Deus pode ser conhecido apenas
pela demonstração sólida e racional, sem que seja necessário recorrer a argumentações a priori, mas
unicamente a posteriori, partindo da experiência que, sem Ele, seria contraditória.
Cinco são as provas tomistas a respeito da experiência de Deus, mas todas elas preservam
em comum a evidência tanto sensível quanto racional para proceder à demonstração da lógica.
A primeira é fundamental e serve de modelo para as demais, pois se fundamenta na doutrina da
potência e do ato. Cada uma tem como base dois elementos sólidos que são incontestáveis.
É preciso ententer que, se Deus for conhecido indiretamente só pelas provas, será muito mais
limitado o nosso conhecimento da essência divina como sendo aquela que vai além do intelecto
humano de forma divina.
Antes de mais nada, sabemos o que Deus não é, mas conhecemos sua natureza positiva em função
da doutrina da analogia, com base no fato de que o conhecimento certo de Deus deve ser realizado
a partir das suas criaturas, fazendo com que o efeito tenha semelhança com a causa. A doutrina da
analogia remete a Deus, às perfeições criadas positivamente, retirando as imperfeições ou toda forma
de limitação.
Para concluir, aquilo que conhecemos sobre Deus consiste em um conjunto complexo e incompleto
de negações e de analogias. No que diz respeito à questão das relações entre Deus e o universo, o ponto
de partida para solucioná-las está na ideia de criação, ou seja, na produção livre e total do mundo por
parte de Deus e a partir do nada.
40
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Lembrete
No período medieval, enquanto Agostinho buscou sua inspiração na
filosofia platônica, Tomás de Aquino preferiu os pensamentos de Aristóteles
para elaborar a filosofia metafísica cristã.
Saiba mais
Leia o livro ou assista ao filme O nome da rosa, do escritor e pensador
italiano Umberto Eco.
ECO, U. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 2009.
Resumo
Quando se fixou na terra, o homem passou a viver de forma mais
segura e confortável, o que permitiu que ele passasse a refletir a respeito
de sua própria condição, indagando sobre suas origens e sobre os
fenômenos naturais. Na busca de compreender seu lugar no mundo, ele
concebeu primeiro a Teogonia, que vem do grego theos, deus, + genea,
origem, representada por um conjunto de deuses que constituíram o
saber mitológico desses povos. Os primeiros pensadores gregos foram os
pré-socráticos da Escola Jônica, dividida em Escola Jônica Antiga (Tales,
Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles e
Anaxágoras). Porém, eles se concentravam somente no primeiro elemento
formador de tudo aquilo que observavam, sem se preocupar com as causas
das mudanças.
O pensamento filosófico teve início nas colônias gregas, nos séculos
VI e V a.C., da região periférica (pré-socráticos) para o centro, em Atenas
(sofistas e filósofos socráticos). Há também um questionamento se a filosofia
na Grécia não seria produto de filosofias orientais, pertencentes a outras
civilizações. Como resposta, há basicamente duas correntes que se ocupam
em delimitar essas influências. Uma delas acredita que a filosofia grega seria
mesmo resultado da contaminação cultural com pensamento de outros
povos. Já a segunda, destaca que a filosofia grega revela-se como produto
único dos gregos, livre de qualquer influência estrangeira. Atualmente, o
mais correto seria considerar a combinação das duas possibilidades.
41
Unidade I
A filosofia antiga pode ser dividida em três períodos:
• Primeiro período: do século VII até o ano de 450 a.C., de Tales até
Sócrates. Caracteriza-se pela formação ou juventude, uma vez que
é durante ele que se estuda a natureza, passando a ser conhecido e
chamado de Período Cosmológico.
• Segundo período: de 450 a.C. até o século III d.C., de Sócrates até
o ecletismo. Seu foco central está no ser humano; por isso, essa fase
recebeu o nome de Período Antropológico.
• Terceiro período: do século I até o século VI d.C. Por três séculos
coincide com o período antropológico; mas deixa evidente a
decadência da filosofia grega, e seu foco passa a ser Deus ou a união
teosófica com Ele. Por essa razão, denomina-se Período Teosófico.
Sócrates foi um divisor de águas na história da filosofia na Grécia Antiga,
que se divide entre os filósofos pré-socráticos e pós-socráticos, tal foi sua
relevância para o pensamento filosófico ocidental. Consagrado na sua época
como o mais sábio e inteligente dos homens, Sócrates revelava na sua postura
filosófica o quanto era importante levar o conhecimento para os gregos por
meio do diálogo como forma pedagógica de transmissão de saber. Ele também
acreditava que a alma humana era imortal e que teria recebido a missão do
deus Apolo de alertar o homem sobre a necessidade de conhecer a si mesmo.
Além disso, duvidava da possibilidade de a virtude ser ensinada, uma vez que
a moral pressupõe uma questão de inspiração e não de parentesco, já que pais
moralmente perfeitos podem não gerar filhos iguais a eles. Sócrates destacou
ainda que suas ideias não eram próprias, mas sim de seus mestres, entre eles
Pródico e Anaxágoras de Clazômenas. Chamou a atenção para a limitação
da sua sabedoria e da própria ignorância, atribuindo os erros cometidos à
ignorância, pois jamais assumiu ser um homem sábio.
No pensamento filosófico de Platão, essa busca racional possui uma
natureza mais contemplativa, o que implica a busca da verdade no interior do
próprio homem como um agente participante da essência do ser. Da mesma
forma que Sócrates, ocupou-se em desvendar as verdades essenciais das
coisas por meio do conhecimento, desconsiderando o homem na condição de
corpo, mas ressaltando a sua alma pela perfeição e com direito a um lugar no
mundo perfeito das ideias. No entanto, esse formalismo pode ser encontrado
na experiência sensitiva. Para ele, também o conhecimento deve ser concebido
para uma finalidade moral, com o objetivo de elevar o homem à instância da
bondade e da felicidade. Assim sendo, a maneira de conhecer era, de fato, uma
forma de reconhecimento, possibilitando o reencontro do ser humano com as
verdades já conhecidas e capacitando-o a discernir sobre o que existe entre as
aparências de verdades e as verdades propriamente ditas.
42
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Conhecido como o pensador que mais influenciou a filosofia ocidental,
Aristóteles nasceu em Estagira, na Calcídica, em 384 a.C. Na condição de
discípulo de Platão, ele discordava de uma parte fundamental da filosofia
do seu mestre, que concebia dois mundos distintos, um dominado pelos
sentidos humanos, em processo de mutação perene, e o outro como sendo
das ideias, acessível apenas pelo pensamento intelectual, que é imutável
e atemporal. Aristóteles aceitava somente a existência do mundo em que
vivemos, alegando que aquilo que se encontra além da experiência humana
não poderia fazer sentido algum para o homem. Na filosofia aristotélica, a
lógica é considerada como uma introdução para o conhecimento, baseada
em uma estrutura de raciocínio que inclui pressupostos criados para que se
possa chegar à etapa conclusiva.
Se traçarmos um perfil da filosofia medieval pelo seu conteúdo,
naquilo que corresponde à sua essência espiritual, podemos conceituá-la
como o pensamento filosófico ocidental que vem desde Santo Agostinho
e de Anselmo de Cantuária, obedecendo ao mote: “saber para crer, crer
para poder saber”. Durante esse período, a filosofia, que tem por objetivo
tratar dos grandes problemas do mundo, do homem e de Deus só com as
forças da razão, alia-se com a fé religiosa no pressuposto de uma unidade
ideológica. Nela, está representado o espírito de toda essa fase da história
humana, e nada é mais significativo do que essa unidade espiritual. Como
nunca, todos vivem na certeza da existência de Deus, da sua sabedoria,
do seu poder e da sua bondade. Nesse sentido, o homem podia dizer, com
segurança, que sabia da origem do mundo e da sua própria natureza, cheia
de sentido, bem como a sua essência homem e a sua posição no universo,
tendo em vista a significação da sua vida e a imortalidade. Enquanto na
era moderna indaga-se a respeito da possibilidade da ordem e da lei, na
época medieval a ordem estabelece-se como algo evidente, sendo nossa
a tarefa de reconhecê-la. No início da patrística, a Idade Média encontrou
seu direcionamento, que foi preservado até o final.
O padre Agostinho destacou-se entre o clero, assim como Tomás de
Aquino entre os escolásticos. Pela sua imensa sensibilidade e pela sua
postura compreensiva, Agostinho juntou a patrística grega com o caráter
prático da patrística latina, mesmo que os problemas que o preocupassem
fossem de ordem prática e moral, como o mal, a liberdade e o destino.
Para ele, a filosofia era a solução para os problemas da vida, para os quais
apenas o cristianismo podia dar uma solução definitiva. Portanto, seu
maior interesse estava restrito aos problemas de Deus e da alma, por serem
os mais relevantes. Mesmo minimizando o conhecimento dos sentidos em
relação ao conhecimento intelectual, Agostinho afirmou que os sentidos,
assim como o intelecto, também consistem em fontes de conhecimento.
43
Unidade I
A escolástica possui um significado mais limitado quando comparada
às disciplinas ministradas nas escolas medievais, entre elas a gramática,
a retórica e dialética; a aritmética, a geometria, a astronomia e a música,
embora contemple uma conotação mais ampla ao se reportar à linha
filosófica adotada pela Igreja na Idade Média. Esse modo de pensar
essencialmente cristão buscava respostas que justificassem a fé na
doutrina ensinada pelo clero, considerado como o guardião das verdades
espirituais. Essa escola filosófica prevaleceu do princípio do século IX até
o final do século XVI, época que representou o declínio da Era Medieval,
sendo a escolástica o resultado de estudos mais profundos da arte dialética,
assim como a radicalização dessa prática. No início, ela foi disseminada nas
catedrais e nos monastérios, para depois chegar às universidades.
A tarefa dos escolásticos consistia, portanto, em harmonizar ideais
platônicos com fatores de natureza espiritual, inseridos no cristianismo
vigente ocidental. Mesmo quando Aristóteles é contemplado no pensamento
cristão por Tomás de Aquino, o neoplatonismo adotado pela Igreja ainda
é preservado, fazendo com que a escolástica seja permanentemente
atravessada por dois universos distintos – o da fé herdada da mentalidade
platônica e a razão aristotélica. No caso de Agostinho, havia o clamor pelo
predomínio da fé em detrimento da razão, ao passo que, em Tomás de
Aquino, se acreditava na independência da esfera racional na busca de
respostas mais apropriadas, embora não houvesse rejeição à primazia da
fé sobre a razão.
Podemos afirmar que o tomismo, ou a doutrina escolástica de Tomás
de Aquino, adotada oficialmente pela Igreja Católica, caracteriza-se,
principalmente, pela tentativa de conciliar a filosofia de Aristóteles com o
cristianismo, desfazendo-se das doutrinas que não estavam enquadradas
de acordo com os princípios aristotélicos. A obra de Tomás de Aquino pode
ser dividida em partes – tratados, questões, artigos, objeções e respostas –,
em rigorosa ordem numérica, abordando em sua estrutura a composição
do mundo feudal, separado em classes e em estamentos sociais. Como
expressão máxima do apogeu do mundo medieval, contemporânea dos
castelos e das catedrais, o tomismo consiste em um manancial de ideias,
em que a teologia do século XIII encontrou sua forma mais coerente e
sólida de formulação. Contudo, o tomismo não foi totalmente aceito pelos
escolásticos medievais, sendo adotado apenas na segunda metade do século
XVI como arma de defesa e ataque da Contrarreforma da Igreja Católica.
Coube a Tomás de Aquino a tarefa de mostrar a solução definitiva para
o conflito existente nas relações entre a razão e a fé. Estamos falando de
duas ciências – a filosofia e a teologia. A primeira baseia-se no exercício da
razão humana, enquanto a segunda, na revelação divina. Apesar de serem
44
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
independentes, apresentam, por vezes, objetos de estudo comuns, como
a existência de Deus, a essência da alma, entre outros. Por esse motivo, a
distinção entre essas ciências tem origem mais do objeto formal, pois a
teologia estuda o dogma pelo método da autoridade ou da revelação, e
a filosofia o analisa pela demonstração científica ou pela razão. Portanto,
teologia e filosofia não são ciências contraditórias, pois ambas procuram a
verdade, e esta é uma só. Na hipótese de uma contradição entre a razão e
a revelação, o erro não será jamais da teologia, mas sim da filosofia; pois
nossas limitações do ponto de vista do conhecimento racional desviaramse e não conseguiram atingir a verdade. Em resumo, todo ser material existe
por causa do cruzamento de quatro causas – material, formal, eficiente
e final, que constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais
seres vivos do universo.
Exercícios
A história em quadrinhos a seguir é uma homenagem de Mauricio de Sousa ao célebre texto de
Platão, Alegoria da caverna, que funciona como interpretação e adaptação do texto clássico da filosofia
para os dias atuais. Leia com atenção para responder às questões 1 e 2:
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Unidade I
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HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
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Unidade I
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HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Disponível em: <www.monica.com.br/comics/piteco/welcome.htm>. Acesso em: 15 ago. 2011.
Questão 1. Em relação à Alegoria da caverna de Platão, leia as interpretações a seguir:
I – Os homens presos no interior da caverna são as pessoas presas às crenças e aos hábitos do senso comum.
II – A saída da caverna é um processo lento e gradativo que poderá ser atingido por aqueles que
passem a questionar e a refletir filosoficamente sobre as crenças e os hábitos.
III – Aquele que sai da caverna é o filósofo ou sábio. Ao contemplar a verdade fora dela, ele se
lembrará de seus antigos companheiros. Ele não deve voltar à caverna para tentar libertar seus
companheiros, pois corre o risco de ser incompreendido e morto.
Está(ão) correta(s):
a) I.
b) I e II.
c) II.
d) I e III.
e) I, II e III.
Resposta correta: alternativa B.
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Unidade I
Análise das alternativas
a) A afirmativa I é verdadeira, porque, na alegoria, o mundo das sombras quer dizer justamente o
estado de engano daqueles que vivem acreditando em falsas verdades ou em ideologias.
b) A afirmativa II é verdadeira, porque na alegoria, quando o indivíduo sai do mundo do interior
da caverna e é ofuscado pela luz do mundo exterior, necessita de um tempo para se adaptar às
verdades que ele não conhecia. Por esse motivo, o processo “de saída do mundo das sombras”
deve ser lento e gradativo.
c) A afirmativa III é falsa, pois qualquer indivíduo pode passar pelo processo de reflexão e procurar
ajudar para que outros cheguem a ele, apesar da resistência inicial, que é natural, pois todos têm
a tendência de se agarrar às antigas crenças e valores.
Questão 2. Em relação ao pensamento filosófico na Idade Média:
I – Pode-se dizer que a filosofia não tinha relação com a religião cristã.
II – A filosofia tinha uma relação com a metafísica cristã.
III – Os conhecimentos produzidos pelas ciências particulares (ex.: biologia, física, química etc.)
tinham relação com a filosofia no que concernia a questões mais gerais.
Está(ao) correta(s) as afirmativas:
a) I.
b) I e II.
c) II.
d) I e III.
e) I, II e III.
Resolução desta questão na Plataforma.
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