FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: ELEMENTO ESTRUTURADOR OU LIMITADOR? Silvana Fortes da Silveira1 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo traçar, em linhas gerais, o estudo sobre a função social da propriedade no Brasil e dos dispositivos legais a ela pertinentes, inseridos na Constituição Federal e no atual Código Civil. PALAVRAS-CHAVES: propriedade, função social, Constituição Federal, Código Civil. Introdução A função da propriedade condicionada ao bem da sociedade é um conceito moderno, surgiu apenas em 1919 com a Constituição de Weimar, cujo artigo 153 estabeleceu: A propriedade obriga. Seu uso constitui, consequentemente, um serviço para o bem comum. Foi a partir dessa época2, ou seja, em 1919, que ocorreram reformas agrárias na Alemanha, Áustria, Checoslováquia, Estônia, Iugoslávia e Polônia, em 1920 na Grécia, Hungria e Letônia, em1921 na Bulgária e em 1922 na Finlândia e Lituânia, além de outros países. No Brasil, a previsão da reforma agrária foi tímida e tardia, ou seja, a Constituição de 1946 exigiu através de seus artigos 141, §16 e 147 a promoção da justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos, mas somente em 1962, ou seja, 16 anos após, foi editada a Lei n. 4.132, que regulou a desapropriação por interesse social, muito embora de forma ainda insuficiente, no que tange aos imóveis rurais para fins agrários. A função social da propriedade foi instituída somente com a Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional n. 1. 1 Graduada em direito pelo Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Cursa mestrado em Direito, área de concentração Direito Privado, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias. Advogada. Professora de Direito das Obrigações pela Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato. 2 ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992. p. 72. 1 Finalmente, com a Constituição Federal de 1988 a propriedade perdeu seu caráter exclusivista de outrora e adquiriu status de direito fundamental do indivíduo, ao prever no caput do art. 5º a garantia da propriedade como algo inviolável, muito embora, tenha sido previsto no inciso XXIII do mesmo artigo que a propriedade atenderá a sua função social. Conforme cita Silva3, a ordem social que a Lei Maior instituiu tem por base a construção desses objetos e o intérprete da lei deve pautar-se por eles. Pelo que, pode-se concluir que os Direitos e Garantias Fundamentais enfatizados no rol do artigo 5º e assegurados pelo art. 3º da Constituição Federal de1988 são a viga mestra de todo o ordenamento jurídico, pois somente com sua observância e cumprimento é que se possibilitará o desenvolvimento social, político e jurídico do país. Dentre estes direitos consagrados no caput do art. 5º da Constituição Federal encontra-se o direito à propriedade, todavia ainda no art. 5º, também está consagrado o direito de propriedade, conceitos estes que não se equiparam, muito embora a distinção entre eles passe desapercebida por muitos, tanto no que concerne à doutrina como à jurisprudência nacionais. Assim, a garantia preconizada pela Constituição Federal visa a garantir à função social da propriedade e não o direito de cada cidadão brasileiro ser proprietário. Ressalta-se, ainda que dentre os bens jurídicos suscetíveis de apropriação, os imóveis tem maior expressão, dada a relevância de sua utilização, enquanto a propriedade imobiliária pode ser utilizada tanto para a subsistência e/ou moradia, quanto para a realização de atividade econômica especulativa e/ou produtiva. Afirmar que, na propriedade imobiliária que visa a realização de atividade econômica, sobressai a sua função econômica, não significa, evidentemente, que esta também não deva cumprir uma função social, até porque o artigo 170 da Constituição Federal que trata da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da propriedade privada e da função social da propriedade. Apesar da dificuldade de se estabelecer um liame em caso de conflito entre função econômica e social, a Constituição brasileira de 1988 demonstra o prestigio da função social, a qual se encontra incluída não mais apenas como princípio da ordem 3 SILVA, Rafael Egídio Leal e. “Função social da propriedade rural: aspectos constitucionais e sociológicos”. Revista de Direito Constitucional e Internaciona. São Paulo, v, 37, ano 9, out./dez. 2001.p.259. 2 econômica, como ocorria na ordem constitucional anterior, mas também entre os direitos e garantias individuais. Partindo desse princípio, o direito à propriedade imobiliária, que somente será instituído a partir do momento em que a propriedade imobiliária realmente atender à sua função social, exemplifica bem o fato de que para a sociedade brasileira é direito não concretizado para grandes coletividades. O direito de propriedade e a função social da propriedade A propriedade é apresentada como direito em torno do qual gravita todo o regramento jurídico do direito das coisas, além de se constituir como um dos sustentáculos do sistema liberal-burguês refletido no Código Civil de 1916 e mantido no tradicional Direito Privado, muito embora a CR/88 tenha reformado tal instituto ao trazer o instituto da função social da propriedade. A propriedade foi tratada nas diversas constituições brasileiras que antecederam a CR/1988 com enforque para o direito individual e absoluto e direito subjetivo do proprietário, como afirma o Prof. Adriano Stanley4. De uma certa forma, o direito de propriedade até a CF/1988 sempre foi tratado como um direito quase que sagrado. Não obstante as transformações sofridas pelo direito de propriedade em nosso ordenamento jurídico desde a Constituição Federal de 1937, a Constituição de 1988, seguramente, trouxe inovações substanciais a respeito, em conformidade com pensamento mundial atual. Como anota GUSTAVO TEPEDINO, a "Constituição anterior já denotava a preocupação do legislador com a função social, nos termos do art. 170, III. O que diferencia, provavelmente, o preceito pré-vigente do atual tecido constitucional - e a diferença não é insignificante nem secundária - é que o Texto vigente incluiu a matéria no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, no inc. XXIII do art. 5º, o qual dispõe (ao lado da proteção à propriedade privada, art. 5º, XXII), que 'a propriedade atenderá a sua função social'. Na Constituição de 1967, a função social da propriedade era princípio da ordem econômica e social. Pelo texto atual, na técnica adotada pelo constituinte, está inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo". Na verdade, a própria Constituição, nos seus princípios fundamentais, que determina que a função social seja conceito vinculado à busca da dignidade humana e à redistribuição de rendas, através da igualdade substancial de todos e a redução de 4 SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das Coisas. Coleção Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. 3 desigualdade significa que a isonomia constitucional, antes apenas formal, passou a ser substancial, ou seja, o tratamento legal será desigual sempre que necessário para a remoção das desigualdades de fato. Diante disso, a isonomia formal, conseqüência da Revolução burguesa, continua vigorando através do art. 5º, I, da CF, posto que aplicável às situações de igualdade, em face de desigualdades, todavia, é obrigação do Estado a redução dos desníveis econômicos, através de sua intervenção por meio das relações de produção e de trabalho para que se alcance a igualdade de todos no acesso aos bens materiais disponíveis. Perlingieri5, ao tratar da função social da propriedade e utilidade social da empresa afirma que: “Falar hoje de `função social’ em relação à iniciativa econômica privada significa falar de alguma coisa especial.” Para ele a “função social predeterminada para a propriedade privada não diz respeito exclusivamente aos seus limites”, pois é a lei que estabelece os modos de aquisição, de gozo, bem como os limites que asseguram a função social da propriedade, de forma que a função social decorra do “conteúdo global da disciplina proprietária, não apenas os limites”. Assim, a função social considerada decorrente da construção do conjunto de limites representaria um aspecto negativo que comprimiria os poderes dos proprietários, pois, inexistentes tais limites, estes proprietários seriam muito mais livres. Todavia, conforme ensina Perlingiere, a limitação ao direito de propriedade deve ser considerada dentro de um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ainda no pleno desenvolvimento da pessoa, pois a promoção do conteúdo da função social implica, necessariamente, na disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações, as quais, deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento, o que não ocorre ante a mera disciplina dos limites à função social. Tal questão deve ser apresentada não como uma intervenção negativa à propriedade privada, mas sim “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”. Para EROS ROBERTO GRAU6: "se a propriedade dotada de função social não estiver sendo atuada de modo que essa função seja atendida, teremos que o detentor de propriedade como tal já não será mais titular de direito (de propriedade) sobre ela". 5 PERLINGIERE, Pietro..PERFIS DO DIREITO CIVIL. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2 Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 6 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: RT, 1983. 4 Quanto ao direito à propriedade, é inquestionável que se trata de direito subjetivo e de direito fundamental, de sorte que é a situação jurídica em que se encontra investido o titular de um bem, muito embora a doutrina civilística sustente que constitui um direito subjetivo, dada a complexidade de faculdades, do lado ativo, e também de deveres, pertinentes ao uso do bem, características atuais da propriedade de bem imóvel, daí porque vários teóricos, na área do Direito Público, vislumbram aí a presença de uma verdadeira "função privada". Em razão disso, pode-se afirmar que a propriedade seria hoje, não mais um direito subjetivo limitado ou condicionado, mas sim um "poder-dever", em que se apresenta, em conformidade ao interesse do seu titular, interesse de tal importância, que se configura uma função privada, tal como ocorre na esfera do Direito Civil, com a autoridade parental. MARCO AURÉLIO GRECO7 lembra que o "prestígio constitucional da cláusula da 'função social' traz em seu bojo o reconhecimento de que, sobre a propriedade, há uma confluência de interesses, sendo uns de cunho exclusivamente individual e outros de caráter coletivo. Na função, tem-se, em última análise, uma atividade pela qual alguém cuida de interesses alheios, mediante a realização de atos sobre bens que estejam ao seu alcance material". Deve-se ainda considerar que também para o proprietário a função social assume status de princípio geral, conforme ensina Perlingieri, ou seja, a autonomia não é livre arbítrio, pois os atos e as atividades não se limitam a perseguir fins antisociais ou não sociais, mas seu reconhecimento está condicionado à razão pela qual foi garantido e reconhecido o direito de propriedade. Lembre-se ainda que no caso da inadimplência, pelo proprietário, dos deveres atinentes ao uso do bem, consoante nosso sistema jurídico-constitucional, a propriedade torna-se ilícita, pelo que, passa a ser objeto de desapropriação para fins de reforma agrária, no caso de imóvel rural, ou de edificação ou parcelamento compulsórios, IPTU progressivo ou desapropriação para fins de reforma urbana, quando se tratar de imóvel urbano. Contudo, persiste o direito à expressão pecuniária integral do bem imóvel, ainda que em títulos da dívida pública. Inconteste que o direito de propriedade sobre um bem não se confunde com a expressão econômica de tal direito. De fato, fala-se na substituição da propriedade anteriormente existente pelo direito à percepção do valor do bem. O direito subjetivo pode ser definido como a permissão posta no ordenamento jurídico para a prática ou abstenção de um determinado ato, enquanto 7 GRECO, Marco Aurélio. "IPTU - Progressividade - Função social da propriedade". In Revista de Direito Tributário nº 52. São Paulo: RT, 1990, pp. 110-21. 5 tal permissão ou autorização podem ser limitadas por certos requisitos exigíveis para o seu exercício. A partir daí, pode-se identificar duas características acerca da natureza da função social da propriedade. Para uns ela opera na própria estrutura do direito de propriedade, como entendem CELSO ANTONIO, JOSÉ AFONSO DA SILVA, MARIA CELINA TEPEDINO, mas, para outros a propriedade possui um momento estático ou uma relação de pertinência (direito subjetivo) em um momento dinâmico ou de uso, como adota o Professor GUSTAVO TEPEDINO. Tal abordagem leva à idéia de que no primeiro caso, a propriedade poderia deixar de existir ipso iure em caso de descumprimento ou inadimplemento da função social, enquanto no segundo caso, se faria necessária declaração judicial, ante o comprovado mau uso da propriedade, a fim de que fosse desfeita a relação de pertinência, pois a função refere-se unicamente ao momento dinâmico da propriedade. Bem demonstra o posicionamento do Professor EROS GRAU, que o princípio da função social atualmente não tem apenas uma feição negativa, que implique na imposição de obrigações de não fazer ao proprietário, mas também uma feição positiva, haja vista que tal princípio resulta não apenas na imposição de limitações ao exercício do direito de propriedade, de forma que esta não venha a contrariar a sua utilidade social, mas compreende também em delimitações voltadas "à promoção do exercício da propriedade de modo mais compatível com aquela utilidade". Assim, o princípio da função social não apenas veda a utilização da propriedade de forma contrária à preconizada em nosso ordenamento jurídico, como também determina a utilização da propriedade de maneira a satisfazer tal princípio. Diante de tais argumentos, resta claro que a introdução do princípio da função social que, como vimos, é tida como componente estrutural e não simples limitação do direito de propriedade, implica, portanto, na superação de contraposição entre o público e o privado, e, como apregoa EROS GRAU, o que atualmente se divisa nas formas de propriedade impregnadas pelo princípio da função social - e tal é o caso exatamente da propriedade imobiliária - são verdadeiras "propriedades-função social" e não simples "propriedades". Outrossim, apesar da Constituição Federal de 1988 ter incluído a função social da propriedade entre os direitos e garantias individuais, ao lado da garantia da propriedade privada, deve-se atentar para a distinção feita por EROS GRAU entre os bens cuja titularidade geram obrigações no seu aspecto dinâmico, no que tange ao cumprimento da função social, e aqueles que não geram. Os primeiros são aqueles denominados bens de produção e não se limitam apenas aos imóveis, que possuem, de forma específica, uma função social decorrente da própria Constituição, mas todos 6 aqueles passíveis de exploração produtiva. Já os demais correspondem aos bens de consumo, cujo dinamismo esgota-se na sua própria fruição pelo seu proprietário e não geram quaisquer conseqüências na comunidade. Em suma, não é a coisa que tem função, mas sim o titular da propriedade de tal coisa, função esta exigida pela CR/88 e elevada à condição de princípio constitucional, pelo que, passou-se a exigir de toda a legislação infra-constitucional a reconstrução do conteúdo e estrutura de propriedade. Diante disso, o CC/2002 passou a refletir esta nova concepção, mostrandose coerente com tal instituto. O legislador do CC/2002, em total sintonia com o princípio constitucional da função social da propriedade, retirou desse direito toda aquela concepção indevida e materialista amparada pelo CC/1916 e imputou-lhe limites e funções, alterando profundamente a estrutura do direito de propriedade. O direito de propriedade, por sua vez, deixou de ser absoluto e passou a assegurar ao proprietário, o direito de usar, gozar , dispor, desde que em consonância com as finalidades econômicas e sociais e de modo a não prejudicar a coletividade, bem como de preservar não apenas o meio ambiente, como também o patrimônio histórico e artístico. Por isso que se pode afirmar que ao contrário da segurança dedicada ao proprietário pelo antigo ordenamento jurídico, destaca o novo ordenamento jurídico que o proprietário pode ser privado sim de seu exercício, em casos de necessidade pública. O direito de propriedade é protegido e resguardado desde que seu titular a utilize em benefício do desenvolvimento da sociedade. Pode-se afirmar que a nova codificação não mais garante a propriedade por si mesma, mas sim a “propriedade função”, a qual, encontra seu fundamento no bem estar social e não mais nos direitos individuais somente. O Código Civil instituiu no ordenamento brasileiro a propriedade função, ou seja, ao proprietário foi dada a faculdade de usar, gozar, fruir, dispor e reivindicar de sua propriedade. Todavia, essa mesma propriedade privada deve, necessariamente, atender à sociedade, desempenhando funções ambientais, econômicas, culturais e históricas, que representam a manutenção da qualidade de vida dos indivíduos dessa sociedade, através da preservação de sua cultura e consequentemente de sua história. Limites ao direito de propriedade 7 Ante à necessária função social a ser exercida pela propriedade, pode-se dizer que lhe foram impostos limites, já que apesar de assegurada constitucionalmente, deve, necessariamente atender à sua função social. Nelson Rosenvald8 bem lembra que a função social da propriedade não se confunde com as limitações ao direito de propriedade impostas pelo ordenamento jurídico, como por exemplo, direito de vizinhança (art. 1.277, CC). Tais restrições emanam de normas que impedem o exercício anormal do direito de propriedade e possuem conteúdo negativo no sentido de sacrificar a sua extensão, ao impedir que proprietários possam prejudicar ou desrespeitar direitos de outros proprietários, ante limitações impostas através de obrigações de não fazer. A função social vai além do direito de propriedade pois penetra em sua própria estrutura e substância, traduzindo-se em uma necessidade de atuação positiva por parte do titular, já que deve o direito de propriedade ser exercitado de forma a melhor atender à sua função social considerando o bem comum. Assim, deve ser considerada a função social como princípio básico que incide no próprio conteúdo do direito de propriedade que se soma às suas outras faculdades, quais sejam, usar, gozar, dispor e reivindicar. A introdução do princípio da função social é tida como componente estrutural e não simples limitação do direito de propriedade. Implica, portanto, "na superação de contraposição entre o público e o privado, ou seja, implica na evolução da propriedade em sentido social, uma verdadeira metamorfose qualitativa do direito na sua realização concreta, destinada à satisfação de exigências de caráter social, como define EROS GRAU. Pacífico, portanto, que a função social da propriedade além de ser uma garantia é o instrumento apto à realização do direito de manutenção da propriedade, conforme previsto no rol de direitos e garantias individuais da Constituição Federal de 1988. Numa interpretação topográfica, pela posição que o direito de propriedade ocupa na Constituição da República, poder-se-ia concluir tratar-se de direito fundamental, devendo ser promovido e salvaguardado pelo Estado da melhor forma possível, dentro das expectativas da sociedade, mas tal afirmação não é pacífica. Quando da inserção da função social como condição de proteção do sistema ao direito de propriedade, a sociedade, através de seus legisladores, determinou que tal propriedade apresentada ilimitada e absoluta como outrora, não seria mais tolerável ou tutelável amplamente. 8 Rosenvald, Nelson, Farias, Cristiano Chaves de, Direitos Reais, Lumen Juris, 6ª. Ed., 2009. 8 Em suma, a função social da propriedade não é mera limitação ao direito, mas sim, um de seus elementos essenciais e constitutivos, moldando o seu conceito desde o seu suporte fático. As limitações, no definir da doutrina mais abalizada, seriam “normas através das quais se assegura na prática a coincidência da atuação do titular com o interesse social” e que ocorreriam em momento diferido, afetando o exercício do direito, nunca a sua essência.”9 Portanto, limites não se confundem com funções. Toda relação jurídica possui limitações que podem ser intrínsecas ou heterônomas. Como exemplificação de limitação intrínseca basta ter-se em mente a vedação ao abuso de direito, e como exemplo de limitação heterônoma, as regras administrativas que atingem a propriedade. A função social atinge a própria essência do direito de propriedade, modificando o seu conteúdo e criando as condições propícias para a legitimidade das restrições impostas ao domínio. A função social também não representa um ônus para o proprietário, pois, na realidade, a mesma visa simplesmente fazer com que a propriedade seja utilizada de maneira normal, cumprindo o fim a que se destina". 10 Segundo Godinho, “As funções são os poderes que se exercem não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas por interesse de outrem ou por um interesse objetivo. Deles se encontram exemplos mesmo no Direito Privado (o pátrio poder, o ofício do executor testamentário, do tutor, etc.), mas no Direito Público sua figura é predominante.” 11 Tal raciocínio pode conduzir a uma análise mais aprofundada ou à conclusão de que a propriedade não tem uma função social, mas que ela é, em essência, uma função social. JOSÉ AFONSO DA SILVA leciona: "a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens” 12. Conclusões 9 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Direitos Reais, Coimbra Editora, 5ª Edição. GODINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. In Problemas de Direito Civil Constitucional. Coordenador: Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro. Renovar, 2000 11 ROMANO, Santi. Fragmentos de um Diccionário Jurídico. Buenos Aires 12 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992 10 9 Ante os posicionamentos pertinentes à natureza jurídica da propriedade e do princípio da função social a ela inerente, resta claro que a propriedade não se dissocia de tal princípio, posto que é a ela inerente, ou seja, é seu elemento estruturador. A função social da propriedade é garantia, bem como o instrumento apto à realização do direito à propriedade, ambos previstos no rol de direitos e garantias individuais da Constituição de 1988, cuja aplicabilidade imediata decorre do § 1º do art. 5º da Constituição Federal. Assim, não há que se falar em proteção ao direito de propriedade que não cumpre sua função social, pois tal direito não goza de proteção possessória. Ao Poder Judiciário, por força do artigo do Decreto-lei 3.365/1941, é “expressamente vedada a análise do conteúdo da desapropriação, ou seja, se é ou não de utilidade púbica, questão de competência exclusiva da administração pública, pois,é prerrogativa do chefe do Poder Executivo local decidir se determinada situação atende ou não aos interesses econômicos daquela administração pública ou daquela região. Caberá, portanto, ao Poder Judiciário a fixação de “justa indenização devida ao proprietário”, todavia, não há parâmetros para tal fixação, pois não há qualquer previsão no § 5º do art. 1.228 do Código Civil, sobre quem pagará tal indenização e como seria calculada, ou seja, se antes ou depois de eventual invasão de terreno cuja função social não tenha sido atendida por seu proprietário. Inexistente, portanto, respaldo constitucional ou mesmo civilista que ampare a interpretação restritiva pertinente à afirmação de que a função social da propriedade somente pode ser discutida em sede de procedimento administrativo de desapropriação, haja vista que toda discussão envolvendo a propriedade sobre um bem de produção decorrerá da discussão do cumprimento da sua função social. Mesmo que se considere que a função social limita-se ao aspecto dinâmico da propriedade e não à relação de pertinência, pois tal dinamismo acabará por determinála, uma vez que o bem é passível de desapropriação. Em sendo assim, a propriedade dos bens de produção é configurada pela Constituição de 1988, concomitantemente, direito subjetivo e função privada, ou seja, um, poder-dever atribuído ao particular desde que promova a satisfação de necessidades coletivas, como o direito à propriedade, o direito ao trabalho e o direito à moradia. Em razão disso, jamais poderia ser considerada a função social como elemento limitador da propriedade, uma vez que a caracteriza, ou seja, é parte integrante da propriedade, pelo que, pode-se afirmar que a função social é um 10 elemento regulamentador ou estruturador da propriedade, pois decorre da natureza da coisa. Referências bibliográficas ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Direitos Reais, Coimbra Editora, 5ª Edição. FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. GODINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. In Problemas de Direito Civil Constitucional. Coordenador: Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro. Renovar, 2000 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: RT, 1983. GRECO, Marco Aurélio. "IPTU - Progressividade - Função social da propriedade". In Revista de Direito Tributário nº 52. São Paulo: RT, 1990, pp. 110-21. LOBATO, Anderson Cavalcante. "O reconhecimento e as garantias constitucionais dos direitos fundamentais". In Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Ano XXVIII, nº 28. Curitiba, 1994-95, pp. 109-37. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. "Novos aspectos da função social da propriedade em Direito Público". In Revista de Direito Público nº 84. São Paulo: RT, 1987, pp. 3945. PERLINGIERE, Pietro.Perfis do direito civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.Tradução de: Maria Cristina De Cicco. ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992. p. 72. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. SILVA, Rafael Egídio Leal e. “Função social da propriedade rural: aspectos constitucionais e sociológicos”. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v, 37, ano 9, out./dez. 2001.p.259. SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das Coisas. Coleção Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. TEPEDINO, Gustavo. "A nova propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição)". In Revista Forense nº 306. Rio de Janeiro: Forense, 1989, pp. 73-8. 11