Universidade de São Paulo
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Instituto de Estudos Brasileiros
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Revista do Instituto de Estudos Brasileiros
issn 0020-3874
número 50, 2010 set./mar.
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Sumário
9
Editorial
Artigos
13
Economia (e política) do moderno
Ettore Finazzi-Agrò
27 Odisseias do conceito moderno de história
Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, de Capistrano
de Abreu, e O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos, de Sérgio Buarque de Holanda, revisitados
Mateus Henrique de Faria Pereira
Pedro Afonso Cristovão dos Santos
79
Transfigurações Cívicas
A terra fluminense, Contos pátrios e A pátria brasileira
Cleber Santos Vieira
103
Antonio Candido em Assis e depois
Rodrigo Martins Ramassote
129
Noite profunda, esperança rasa
Carlos Frederico Barrère Martin
Resenhas
145 Formação econômica do Brasil , cinquenta anos depois
Alexandre de Freitas Barbosa
Documentação
165
Belo Horizonte
o museu histórico da cidade e sua atual política de acervo
Thaïs Velloso Cougo Pimentel
José Neves Bittencourt
Luciana Maria Abdalla Ferron
179
Tecnologia & Memória
Marcos Galindo
Notícias
193
István Jancsó
195
Critérios para a apresentação e publicação de artigos
Table of contents
9
Editorial
Articles
13
Economics (and politics) of the Modern
Ettore Finazzi-Agrò
27 Journeys of the modern conception of history
Capistrano de Abreu’s Necrológio de Francisco Adolfo de
Varnhagen and Sérgio Buarque de Holanda’s O pensamento
histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos revisited
Mateus Henrique de Faria Pereira
Pedro Afonso Cristovão dos Santos
79
Civic Transfigurations
A terra fluminense, Contos pátrios and A pátria brasileira
Cleber Santos Vieira
103
Antonio Candido in Assis and his afterwards
Rodrigo Martins Ramassote
129
Deep night, little hope
Carlos Frederico Barrère Martin
Book reviews
145 Celso Furtado’s Formação Econômica do Brasil fifty years later
Alexandre de Freitas Barbosa
Documents
165
The Belo Horizonte
Historical Museum and its permanent collection policy
Thaïs Velloso Cougo Pimentel
José Neves Bittencourt
Luciana Maria Abdalla Ferron
179
Technology & Memory
Marcos Galindo
News
193
István Jancsó
195
Instructions to Authors
O
presente número da Revista do IEB traz um conjunto de estudos sobre a cultura brasileira no século XX, abrangendo uma
multiplicidade de temas que vão da identidade nacional na Primeira República, do modernismo de Oswald de Andrade e do conceito moderno de história
de Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda, à trajetória intelectual
de Antonio Candido, à “poesia marginal” de Cacaso e aos sentidos da leitura
hoje do clássico de Celso Furtado, Formação econômica do Brasil. Além disso,
apresenta textos que trazem questões sobre políticas de acervo e tecnologia
na atualidade, e que enfrentam o desafio de tratar criticamente a memória,
procurando zelar, por outro lado, por sua preservação e democratização.
Na seção Artigos, Ettore Finazzi-Agrò (Universidade de Roma – La
Sapienza) revisita o tema do intercâmbio cultural entre o Brasil modernista e a Europa das vanguardas, a partir da análise dos manifestos de Oswald
de Andrade, perpetrando uma densa reflexão teórica sobre a construção de
um espaço “econômico” do Moderno e suas relações com o esforço político
de construção de uma identidade nacional nos anos 1920. Mateus Henrique de Faria Pereira (UFOP) e Pedro Afonso Cristóvão dos Santos (Mestre
em História – USP) recuperam a questão do Moderno sob outra perspectiva, apoiando-se nas proposições de Reinhart Koselleck e François Hartog.
Focalizam as tensões do conceito moderno de história, concentrando-se
no estudo de dois textos clássicos (que se encontram reproduzidos como
anexo ao artigo), de Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda: o
9
revista ieb n50 2010 set./mar.
“Necrológio” de Varnhagen e O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. Cleber Santos Vieira (Universidade São Francisco,
Itatiba–SP) empreende uma análise genealógica de um conjunto de textos
didáticos de autoria de Olavo Bilac e Coelho Neto que, marcados inicialmente pela face regional da educação cívica, foram “transfigurados”, no
contexto da Primeira República, no sentido de adequar-se ao imaginário
ligado à construção da identidade nacional. Rodrigo Martins Ramassote
(Doutorando – Unicamp; antropólogo do IPHAN–MA) debruça-se sobre
a pouca conhecida passagem de Antonio Candido pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis–SP, entre 1958 e 1960, destacando seu
significado do prisma do estudo da trajetória intelectual e acadêmica do
crítico literário. Carlos Frederico Barrère Martin (Doutorando – USP) fecha a seção, examinando poemas de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso,
figura central da chamada “poesia marginal”, os quais abordam o tema da
repressão, expressando dúvidas, incertezas, violências, fraturas, em meio
ao contexto social e político da Ditadura Militar nos anos 1970.
A seção Documentação encerra dois textos apresentados no seminário Memória das culturas, organizado pelo IEB em 2008: Thaïs Velloso
Cougo Pimentel, José Neves Bittencourt e Luciana Maria Abdalla Ferron
narram suas experiências no Museu Histórico de Belo Horizonte, explicitando sua política de acervo. Esta nutriu-se, segundo os autores, de um
questionamento acerca do modo como um museu poderia ultrapassar a
visão meramente “evocativa e celebrativa”, transformando seu acervo em
objeto de conhecimento. Em seguida, Marcos Galindo (UFPE) procura
explorar os impasses e desafios teóricos e práticos trazidos pelas novas
tecnologias no que se refere às possibilidades que vêm abrindo no tocante à organização e disponibilização de acervos documentais, baseandose também em experiências concretas, como a do Líber – Laboratório de
Tecnologia do Conhecimento da UFPE. Destaque-se que estes textos se
somam ao de Anthony Seeger, Uma história de dois arquivos: aquisição,
preservação, digitalização e divulgação de acervos audiovisuais, apresentado no mesmo Seminário e publicado no n. 48 desta revista (p. 31-52).
Na seção Resenhas, Alexandre de Freitas Barbosa (IEB-USP) escreve uma resenha/ensaio sobre o livro Formação econômica do Brasil, de
Celso Furtado, republicado em 2009 em edição comemorativa de seus cinquenta anos, com grande fortuna e aparato crítico. Explora, em seu texto,
dentre outros aspectos, alguns dos possíveis significados da (re)leitura do
livro no Brasil contemporâneo.
10
revista ieb n50 2010 set./mar.
Paulo Iumatti
Editor
Artigos
Economia (e política) do moderno
1
Ettore Finazzi-Agrò 2
Resumo
Na análise do intercâmbio cultural entre o Brasil modernista e a Europa das vanguardas devemos, a meu ver, sempre ter em conta certo
unilateralismo do desejo, construindo um fetiche (um totem, na terminologia de Freud utilizada por Oswald de Andrade) do ausente e do
barrado (do tabu, sempre no re-uso, feito pelo escritor brasileiro do vocabulário freudiano), que ou pode ser incorporado através do ato canibalesco, ou permanecer no seu estado latência, de objeto inalcançável,
produzindo, por isso, aquela dobra melancólica que atravessa os anos
20 do século passado (e se prolonga no começo da década seguinte), se
cruzando, aliás, com a euforização da ausência e com a exaltação da
mestiçagem. A análise é centrada na análise contrastiva dos manifestos oswaldianos, definindo o espaço “econômico” do Moderno nos seus
embates com a construção “política” de uma cultura autenticamente
nacional.
Palavras-chave
Modernismo, vanguardas, Dom, troca.
Recebido em 30 de novembro de 2009
Aprovado em 22 de dezembro de 2009
13
1
Texto da palestra proferida pela autor no IEB a 7 de outubro de 2009, por ocasião
do lançamento do número 49 desta revista. Numa versão semelhante, apareceu em
livro coletivo publicado pela Abralic.
2
Professor da Universidade “La Sapienza” de Roma, Itália. E-mail: [email protected]
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 13-26
Economics (and politics) of the Modern
Ettore Finazzi-Agrò
Abstract
In the analysis of the cultural exchange between modernist Brazil and
avant-garde Europe, one must, in my view, always bear in mind a certain unilateralism of desire, constructing a fetish (a totem, in Freud’s
terminology used by Oswald de Andrade) of the absent and of the barred (of the taboo, to stay with the re-use of the Freudian vocabulary
made by the Brazilian writer). This may either be incorporated through
the cannibalistic act or remain in its latent state, that of an unreachable
object, thus producing that melancholic fold throughout the 1920s (and
stretching into the following decade), which, incidentally, blends with
the ‘euphorization’ of absence and the exaltation of human admixture.
The analysis is centered on contrasting the Oswaldian manifestos, defining the “economic” space of the Modern in its battles with the “political” construction of an authentically national culture.
Keywords
Modernism, avant-gardes, Gift, exchange.
14
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 13-26
É
De seu, nada conservara, a não ser
a antiga, forme e enorme casa [...]: e
de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro, sempre com
um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos. Nada. Talvez não.
Fazia de conta nada ter; fazia-se, a
si mesmo, de conta.
João Guimarães Rosa,
Nada e a nossa condição
curioso, às vezes, o modo como os lugares atravessados pela lógica crítica ou pela hermenêutica chegam a se juntar numa
rede emblemática de significantes vazios, que a nossa curiosidade e o
nosso saber trabalham por encher de significados estáveis. Pretensão absurda e absolutamente humana aquela de voltar a repisar um chão consistente de pensamento em tempos de práticas culturais esfarrapadas, de
saberes caóticos e de escombros ideológicos, entre os quais erramos procurando detectar a identidade dentro das diferenças, juntando cacos dispersos para recompor a unidade de um desenho que, na sua organicidade,
existe apenas no nosso desejo ou na nossa lembrança.
Achei-me, justamente, numa dessas encruzilhadas entre a vontade
de conhecer e o velho hábito de re-conhecer no momento em que, tendo
recebido o convite para falar com vocês sobre e em torno do Modernismo, estava preparando uma aula sobre a melancolia no Brasil. Relendo, de
fato, o famoso texto de Freud sobre Luto e melancolia deparei-me com
a relação que ele estabeleceu (na esteira de Karl Abraham) entre essa
doença saturnina e “a fase oral ou canibalesca da evolução da libido”3 ,
isto é, com o período em que o Eu tenta incorporar o objeto desejado
3
15
FREUD, Sigmund. Lutto e melanconia. In: Opere (1915–17). Torino: Boringhieri, 1976. v. 8, p. 109.
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devorando-o. Naquela altura, eu já tinha, por um lado, decidido falar aqui
da relação entre o Dom e a Troca, a partir do modernismo paulista, e, por
outro, eu estava relendo, para a minha aula, o Retrato do Brasil e outros
clássicos de interpretação da Nação, publicados pouco depois dele. Nessa conjuntura, a interpretação freudiana da melancolia calhava de modo
inesperado, redistribuindo, de forma totalmente nova, os dados da questão
colocada pelos modernistas. Que eu saiba, com efeito, muitos apontaram
para o papel desempenhado por Paulo Prado não só na organização da
Semana, mas, em sentido mais geral, na construção e apoio ao movimento
intelectual e artístico paulista. Aquilo que sempre ficou na sombra, aquilo
que ficou substancialmente não dito foi o modo como funciona a proposta
de uma leitura “melancólica” do Brasil, avançada pelo ilustre cafeicultor
dentro do panorama substancialmente eufórico da época.
No mesmo ano-chave de 1928 foram de fato publicados, como se
sabe, por um lado, o Manifesto antropófago e Martim Cererê, e, pelo outro, Macunaíma e, justamente, Retrato do Brasil: o problema é saber, de
saída, de que modo esses textos germinais funcionam e inter-agem entre si, isto é, se seria enfim legítimo agrupá-los e distanciá-los como fiz,
colocando-os em lugares distintos, desenhando, em boa medida, um paradigma textual. Nessa perspectiva, a leitura de Freud consegue embaralhar as cartas do imaginário modernista, apontando para um elemento
que junta todos esses textos (e muitos outros) numa outra constelação
de sentido, que não tem apenas a ver com a reafirmação polimorfa da
identidade nacional (identidade triste e resignada em Paulo Prado, identidade alegre e agressiva em Oswald, identidade mestiça em Cassiano
Ricardo, identidade plural e, ao mesmo tempo, ausente em Mário), mas
que projeta a questão identitária em sua relação complexa com a alteridade. Com efeito – e não sem algum embaraço – Freud aponta para uma
diferença importante entre o luto e a melancolia, visto que a segunda
denuncia uma perda “mas sem que se consiga saber claramente aquilo
que se perdeu”4 . Um conhecido filósofo italiano (Giorgio Agamben), comentando esse aspecto, escreveu:
Poderia se dizer que a retração da libido melancólica não tenha
outro fim que o de tornar possível uma apropriação numa situação
em que nenhuma posse é, na realidade, possível. Nesta perspectiva, a melancolia não seria tanto a reação regressiva à perda do
4
16
FREUD, Sigmund. op. cit., p. 104.
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objeto do amor, quanto a capacidade fantasmática de apresentar
como perdido um objeto de que não podemos nos apoderar. 5
O Outro, na impossibilidade de ser alcançado no plano real, torna-se, então, o objeto recalcado do desejo: um fantasma alimentando,
por isso, a fantasia de uma apropriação que só pode ser realizada na
assimilação – no canibalismo, enfim, destruindo e, ao mesmo tempo,
incorporando aquilo que se deseja. Nesse sentido, não por acaso Freud
incluía entre os casos de excesso de humor negro de sua época os atos de
antropofagia, constelando as crônicas dos jornais europeus e os boletins
de psiquiatria legal dos finais do século XIX6 .
Na análise do intercâmbio cultural entre o Brasil modernista e a
Europa das vanguardas devemos, a meu ver, sempre ter em conta esse
unilateralismo do desejo, construindo um fetiche (um totem, na terminologia de Freud utilizada por Oswald de Andrade) do ausente e do barrado
(do tabu, sempre no re-uso, feito pelo escritor paulista, do vocabulário
freudiano), que ou pode ser incorporado por meio do ato canibalesco, ou
permanecer no seu estado de latência, de objeto inalcançável, produzindo, por isso, aquela dobra melancólica que atravessa os anos 20 do século
passado (e se prolonga no começo da década seguinte), se cruzando, aliás, com a euforização da ausência e com a exaltação da mestiçagem. Nessa constelação de sentidos heterogêneos, nada fica, obviamente, estável,
mas tudo balança e muda de posição dentro de um paradigma de relações momentâneas e plurais em que o nexo entre identidade e diferença
transforma-se em novelo, em trama emaranhada da qual é impossível
extrair um significado uno e irreversível, que não seja, justamente, a
organização arlequinal do sujeito de que nos fala Mário na sua primeira
produção poética.
No âmbito das diferenças e das trocas culturais, a questão fundamental, nessa perspectiva, fica a posse e as relações de poder entre o Eu,
que fala e deseja, e o objeto falado/desejado – questão na qual está dobrado também o problema, propriamente histórico, da relação entre passado e presente, entre arcaico e moderno, entre memória e esquecimento,
entre tradição e inovação. Ou seja, as relações entre culturas não são
apenas ditadas por uma situação de supremacia e/ou de dependência (o
que é óbvio), mas nelas se inscreve também um projeto de comunidade,
17
5
AGAMBEN, Giorgio. Stanze: la parola e il fantasma nella cultura occidentale. Torino: Einaudi, 1977. p. 25-26.
6
Sobre este aspecto e sobre a relação entre melencolia e fetichismo, cf. ainda AGAMBEN, Giorgio. Stanze: la parola e il fantasma nella cultura occidentale. op.cit., p. 27.
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fundado sobre a reivindicação de uma autonomia, pretendendo, por sua
vez, uma profundidade temporal e uma autonomia territorial. Poderíamos até afirmar, nesse sentido, que o reconhecimento das diferenças
pressupõe a aceitação da “indiferença”, isto é, da assimilação dos semelhantes dentro de um contexto comum em que tudo se iguala, ou pelo
menos, circunscreve um “lugar comum”, no qual uma história, finalmente, se instala7.
Para explicar tudo isso, basta talvez citar um trecho, aliás muito
conhecido, do Manifesto antropófago:
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A
idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju.
A tentativa de criar uma tradição, de deitar uma ponte entre o arcaico e o moderno para “construir uma comunidade”, é aqui explícita
e leva ao reconhecimento de um “nós” anterior a qualquer influência
ideológica ou fluxo cultural proveniente de um fora, que é, deste modo,
reafirmado e negado na sua diferença. Oswald, então, reconhecendo a
importância duma ideologia e duma poética “estrangeiras”, que chegam
de um espaço e de um tempo diferentes, reinscreve tudo isso na indiferença de um “ter já”, fundando assim uma espécie de koiné cultural que
identifica e é identificada por uma lógica, por uma história, por uma linguagem peculiares, recortadas, por sua vez, dentro de uma visão alheia.
Ou seja, a identidade postulada pelos modernistas é, ao mesmo tempo,
fruto de uma extroversão, acolhendo a alteridade, e de uma introversão
que a nega, tornando o Outro uma espécie de fantasma, manifestando-se
nas entranhas do corpo próprio – e tudo isso, repare-se, graças a uma
inversão temporal que torna atual o arcaico e vice-versa, dentro, enfim,
de um improvável futuro do passado.
A identidade nacional, a base sobre a qual assenta o “nós” consistiria, de fato, nesse caráter residual, não apenas enquanto produto de uma
devoração e metabolização da diferença, mas também como sobrevivência do antigo no novo e como emergência contínua do novo no antigo,
7
18
Em geral, sobre a questão da comunidade como aquilo que se define na “indiferença”,
no “qualquer-que-seja”, cf. AGAMBEN, Giorgio. La comunità che viene. Torino: Einaudi, 2000; FIMIANI, Mariapaola. Paradossi dell’indifferenza. Milano: Angeli, 1994.
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anulando ou reduzindo a puro escombro o hiato temporal entre passado
e presente. Não por caso as obras-primas do Modernismo alimentam-se
de uma confrontação incessante entre espaços e tempos diferentes (Macunaíma deve ser, nesse sentido, considerado exemplar), ficando, todavia,
inscritas dentro de uma lógica paradoxal (isto é, fora e longe de qualquer
doxa habitual), atualizando a cultura autóctone e empurrando a modernidade para um horizonte mítico que faz dela um tempo que sobra e que
resta, uma espécie de avesso da tradição ou de tradição do avesso.
Nessa ótica, ao interrogar sobre a dinâmica dos fluxos culturais
dentro de um contexto histórico decisivo como o modernista (tempo de
construção de uma dialética intercultural que vai desembocar, com a
interferência, claro, de variáveis inesperadas e independentes, na situação atual de globalização e, por outro lado, de sublimação do local), acho
que seria bom tentar identificar os modos pelos quais os intelectuais e
artistas brasileiros daquela época colocaram-se diante da questão crucial do relacionamento com a cultura europeia e, mais em particular, da
apropriação ou distanciamento daquela cultura, no sentido de uma valorização do nacional. Assunto, aliás, muito estudado, mas que eu proporia
reler, aqui, na ótica que acabo de esboçar, balançando entre diferença e
indiferença, entre exaltação e melancolia, entre desafio e harmonização,
entre, enfim, despesa e negociação. Em outras palavras, o ponto de partida poderia ser aquele que indica Renato Cordeiro Gomes – recompondo,
por sua vez, outras propostas de “localização” das culturas marginais,
apoiando-se em outras hipóteses avançadas, em tempos e lugares distintos, por Silviano Santiago e Homi Bhabha:
Entre assimilação e agressividade, aprendizagem e reação, obediência e rebelião, realiza-se o ritual antropofágico da cultura latino-americana, como sugere Silviano Santiago, aquele que se faz
de temporalidades disjuntivas, múltiplas e tensas, temporalidades
de entre-lugar, o que desestabiliza o significado da cultura nacional como homogênea, pois é uma cultura dividida no interior dela
própria, articulando sua heterogeneidade e seu hibridismo, como
sugere Bhabha. 8
8
19
GOMES, R. Cordeiro. Deslocamento e distância: viagens e fronteiras na cultura
Latino-americana – dramatização de marcas identitárias. In: ABDALA JR, B.;
SCARPELLI, M. Fantini (Org.) Portos flutuantes: trânsitos ibero-afro-americanos.
São Paulo: Ateliê Editorial/CAPES, 2004. p. 29-30.
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O tema secular das relações entre margem e centro, a questão da
dinâmica dos fluxos e refluxos culturais é, como se vê, colocada dentro
de um contexto problemático – “flutuante”, justamente 9 – negando a homogeneidade das culturas nacionais e sublinhando, em sentido contrário, o hibridismo na articulação das diferenças, o entre-lugar que se cava
no interior de uma situação de acumulação de lugares e tempos heterogêneos e plurais. E, nessa ótica, a proposta modernista de construção
de uma atualidade periférica, de uma centralidade deslocada, resulta
com certeza decisiva, apontando para a eventualidade de um “sentido
comum” e interposto, no qual se reconhece na sua diferença indiferente,
na sua exaltação melancólica.
Mas, exatamente porque alimentada pela hibridação de saberes
anacrônicos e projetada num horizonte mítico, em que se recupera uma
lógica outra e arcaica (“Já tínhamos a língua surrealista. A idade de
ouro”...), acho que a relação entre essa cultura marginal e um hipotético centro civilizador possa ser relida também do ponto de vista dos
mecanismos de mediação e intercâmbio, tanto econômico-sociais quanto antropológicos e culturais. E, nesse sentido, volta a ser importante e
elucidativa a diferença entre a prática do Dom e a sua codificação mercantilista, isto é, entre a dádiva e o hábito jurídico da troca, postulada,
primeiro, por Marcel Mauss e estudada, depois, em diversos âmbitos históricos e em diversas perspectivas, por muitos outros estudiosos10 . Não
quero, evidentemente, retomar aqui a noção de largesse, de “dádiva”,
ao pé da letra, mas apontar apenas para o espaço ambíguo aberto pelo
uso (também linguístico, como é mostrado pela antilogia Gift/Gift, i.e.,
“dom”/“veneno”, nas línguas germânicas), pela presença ambivalente,
então, desse “Dom envenenado”, que encontramos nas culturas arcaicas e em que, talvez, poderia ser resumido também o caráter liminar da
cultura brasileira em relação à cultura europeia, a partir da constatação
que no ato de doar está presente o duplo movimento de ligação e de antagonismo, de “assimilação e agressividade” – para usar as palavras de
Renato Cordeiro Gomes.
9
A referência implícita é, obviamente, ao título do livro citado na nota anterior. No interior dele, gostaria, pelo menos, de ressaltar o belo ensaio (funcional, aliás, à minha análise dos fluxos culturais) de ABDALA JR, Benjamin. Globalização e novas perspectivas
comunitárias. In: ABDALA JR, B.; SCARPELLI, M. Fantini (Org.) op. cit., p. 61-72.
10 O famoso Essai sur le don, de Marcel Mauss, publicado pela primeira vez em 1925,
abriu, como se sabe, uma ampla discussão, não apenas em âmbito etnológico,
continuando até os nossos dias: basta aqui lembrar a existência de La revue du
M.A.U.S.S., na qual se continuam debatendo, até hoje, as teorias do famoso antropólogo francês sobre o Dom.
20
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Poderia ser reinterpretada, nessa perspectiva, a passagem entre a
“proposta Pau-Brasil” e a opção pela Antropofagia. De fato, a lógica que
superintende o primeiro manifesto oswaldiano é ensopada, como se sabe,
por considerações de caráter econômico (“Toda a história bandeirante
é a história comercial do Brasil”): baseando-se, enfim, no crescimento
impressionante das exportações cafeeiras e na afirmação montante de
um ethos capitalista, o autor imposta a relação cultural entre centro e
periferia no sentido de uma troca, finalmente perfeita e regulamentada,
de bens. A razão econômica aplicada ao universo das relações culturais
nos fala, por intermédio de Oswald de Andrade, de um mundo de (id)
entidades finalmente (e aparentemente) iguais, subvertendo a lógica da
exploração colonialista para implantar, justamente, o domínio da oikonomía, da norma e administração domésticas, pela qual tudo é pactuado
a partir do interesse interno, local e nacional que, por sua vez, é fruto
duma sobreposição caótica de fenômenos heterogêneos:
O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros. Rails.
Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiares com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade.
[...]
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro
compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No
jornal anda todo o presente.
Esse discurso, já em si marcado pelo acúmulo desafinado de elementos diversos, parece ainda atravessado pela mão-dupla de um movimento de dar/receber que não afeta apenas a relação com o Outro
externo, com a cultura (até então) hegemônica, mas convoca também
restos de uma civilização aparentemente apagada, aquela “originalidade nativa” que se contrapõe à “adesão acadêmica”, à arte da “cópia”:
“Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar.
A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco
sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar.
Pau-Brasil.”
21
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Oswald, então, parece colocar-se dentro dessa dimensão misturada (ou “sincopada”)11, em que se amontoam e se combinam lugares e
tempos diferentes, para negociar, a partir dela, uma identidade própria e
exclusiva, riscada pela alteridade e pelo arcaísmo e todavia não (ou não
mais) dependente de outras instâncias culturais12 .
A nomía do oíkos, a ordem do próprio, embora híbrida, embora
fruto de uma negociação, por assim dizer, interna, guarda, todavia, a
sua auto-nomia (em sentido pleno, etimológico), em confronto, no plano
da troca e do intercâmbio, com uma alteridade que dá e recebe – que dá,
sobretudo, a modernidade e recebe, em permuta, o arcaico, ou melhor,
o arcaico moderno, o popular enaltecido, retrabalhado artisticamente
pela cultura brasileira. Já quatro anos depois, a posição de Oswald parece mudar de modo sensível, visto que no Manifesto antropófago não
há mais essa confiança na possibilidade de dialogar, de modo paritário,
com a cultura europeia. De fato, aquilo que está em jogo na antropofagia
é, justamente, a noção de Dom e, na sua forma extrema, de sacrifício,
enquanto entrega, sem contrapartida, de si mesmo. Quase como numa
espécie de rito eucarístico, teríamos, nesse sentido, a ver tanto com um
sujeito que se sacrifica quanto com um objeto que se compartilha, criando, por isso, uma comunidade, uma oikuméne (termo em que volta, não
por acaso, a noção de oíkos, de dimensão doméstica, de “sala de jantar
domingueira”) que, no gesto melancólico de comer o corpo do Outro,
reafirma, por um lado, a sua identidade, o seu ser como parte integrante
de uma “pátria”, e marca, pelo outro, a sua dependência, o seu estado de
submissão a outras, possíveis “pátrias”.
O manifesto de 1928, então, parece abrir aquele espaço, ao mesmo
tempo, “generoso” e antagônico, que caracteriza o “código do Dom”, em
que aquilo que está em jogo é justamente o jogo da luta e do pacto. Se, em
outros termos, como apontou Marcel Mauss13 , a essência do Dom é marcada por uma tríplice obrigação (doar, receber e contracambiar), esse
lugar heterogêneo em que ele se coloca é, sim, atravessado pela gratui-
11 Cf. PINCHERLE, M. Caterina. La città sincopata: poesia e identità culturale nella
San Paolo degli anni Venti. Roma: Bulzoni, 1999.
12 Como se sabe, Homi Bhabha utiliza o termo negotiation “to convey a temporality
that makes it possible to conceive of the articulation of antagonistic or contradictory elements: a dialectic without the emergence of a teleological or transcendent
History” (BHABHA, Homi. The location of culture. London; New York: 1994, p. 25).
A meu ver, é esta dialética imperfeita aquela na qual parece instalar-se também
o discurso oswaldiano, desembocando, quatro anos depois, numa outra forma de
“negociação” – desta vez ainda menos ligada a um desenvolvimento dialético –
como é o “dom”.
13 MAUSS, Marcel. Saggio sul dono. Torino: Einaudi, 3. ed., 2002. p. 20-30.
22
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 13-26
dade e pela necessidade, pela cumplicidade e pelo enfrentamento, mas
sem que isso consiga apagar “a condição de assimetria e de desequilíbrio
entre as diferenças”14 , que é constitutivo dessa forma antiga de contrato.
Com efeito, considerando que “aquilo que se dá na cessão é apenas o
ato de ceder e o desafio a destruir”, que “aquilo que se move é apenas a
força que prende e confunde coisas e pessoas”15 , então, a Antropofagia
oswaldiana indicaria uma fase peculiar (“fluida”) da dinâmica dos fluxos culturais: uma fase em que ao fechamento na “indiferença”, na propriedade e autonomia da Nação, corresponde o gesto gracioso e gratuito
da expropriação, da entrega de si mesmo, da “despesa” descontrolada do
Eu16 . Para explicar melhor, à afirmação inicial “só a Antropofagia nos
une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” e ao desafio consequente “contra todos os importadores de consciência enlatada”, parece corresponder uma dispersão dos bens próprios, acumulados por esse
“Brasil Caraíba”, numa espécie de potlatch que o torna país ou sujeito
coletivo de referência para uma nova ordem mundial, do ponto de vista
social, econômico e cultural. Não por acaso será justamente esse caráter
de Dom, e o regime de dívida por ele instaurado, que Oswald continuará
sublinhando e reclamando até o fim de sua vida, mostrando até a exaustão como “o matriarcado de Pindorama” seja o “presente não podendo
se tornar presente”17 que a cultura brasileira reclama como Dom sem
contrapartida para a cultura europeia.
Na verdade, a situação apresenta-se mais complexa desde o início,
visto que, se é verdade que o movimento antropofágico antecede e nega a
possibilidade da troca regulamentada do “contrato” entre culturas diferentes, é também verdade que ele prevê um ato de apropriação e assimilação do Outro – ou seja, o Dom de si mesmo ao mundo é precedido por
um sacrifício do mundo sobre o altar do sujeito, por um “dom do Outro”,
14 FIMIANI, Mariapaola. L’arcaico e l’attuale. Lévy-Bruhl Mauss Foucault. Torino:
Bollati Boringhieri, 2000. p. 119.
15 Idem, ibidem, p. 120.
16 Sobre “A noção de dépense” no âmbito da estética e da ideologia de Georges Bataille, veja-se o ensaio com este título incluído na tradução italiana do seu livro
BATAILLE, Georges. La parte maledetta. Verona: Bertani, 1972. p. 41-57 (ed. or.: La
part maudite. Paris: Minuit, 1967). Mais em geral, sobre a relação entre as posturas
teóricas de Bataille e de Oswald, cf. LIMA, L. Costa. Antropofagia e controle do
imaginário. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, 1, p. 62-75, 1991.
17 Sobre o caráter “não (a)presentável” do Dom, cf. sobretudo DERRIDA, Jacques Derrida. Donare il tempo. Milano: Cortina, 1996. p. 11 (ed. or.: Donner le temps. Paris: Galilée, 1991). Sobre a ambiguidade semântica do “presente” nas línguas românicas, ver
também NANCY, Jean-Luc. L’esperienza della libertà. Torino: Einaudi, 2000. p. 153
(ed. or.: L’expérience de la liberté. Paris: Galilée, 1988) – análise levando à conclusão
que o Dom é aquilo cuja “apresentação não se esvai numa presença acabada”.
23
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 13-26
que é necessário para a constituição e identificação do Eu. Isto, falando
não mais dentro de uma perspectiva econômica ou mercantilista, mas
do interior de uma economia do desejo, que delineia uma estranha circularidade na qual a subjetividade se doa, tendo, porém, incorporado o
objeto dentro de si mesma – e não, repare-se, o objeto real, mas, como já
sublinhei, o seu fantasma, alimentando por isso a fantasia de uma plenitude que é apenas reiteração da carência do sujeito, do seu ausentar-se
na reafirmação difícil e orgulhosa da presença.
Muitos (sobretudo a partir das análises de Derrida) sublinharam
esse caráter intransitável do Dom, essa aporia pela qual só se doa aquilo
que não se tem. Do mesmo modo, acho que se poderia afirmar que na
verdade o “dom do Outro” (na sua dupla acepção gramatical)18 , a sua
devoração por parte do Eu, configura apenas a apropriação de um nada-que-é, de um vazio que guarda, todavia, a capacidade de durar. E na
Antropofagia estaria, justamente, em ação este mecanismo: doar uma
cultura de que não se dispõe ou que já desapareceu (a indígena) e receber em troca um dom inexistente (a cultura europeia, considerada como
um corpus homogêneo, como um todo a ser consumido). Nesta paradoxal simetria do “duplo ausente” tudo parece esvair-se, deixando apenas
lugar para um trabalho inútil (melancólico) de elaboração do luto (do
Outro) e da falta (do Eu). Se assim não é, é porque neste lidar com a duplicidade, neste movimento de ida e volta entre nada e nada, nesse vaivém
entre fantasmas, alguma coisa fica – e aquilo que resta é, justamente,
o entre-lugar ou o entre-tempo, aquele limiar terceiro e fictício sobre o
qual se detém e se define a cultura brasileira, na sua natureza residual
e anacrônica19 . Para além do “desperdício” e do “contrato”, em suma, a
identidade brasileira se delineia, graças a uma economia do Dom, como
resultado precário e sempre inatual de uma mescla penosa entre Eu e
Outro, entre dentro e fora, que não nega a unidade, mas a penetra, a
atravessa e transcorre por ela, até chegar a tecer uma forma diferente de
união na diferença, uma trama peculiar de relações entre culturas que
existem apenas como polos de uma dialética inconclusa e inconcludente
– “gratuita” e “fastuosa” como o Dom, justamente 20 .
18 Cf. a esse respeito, ROVATTI, Pier Aldo. Il dono dell’altro. In: FERRETI, Giovanni
(Org). Il codice del dono: verità e gratuità nelle ontologie del novecento. Atti del IX
colloquio su filosofia e religione, Macerata 2002. Pisa-Roma: IEPI, 2003. p. 123-32.
19 Cf. ainda GOMES, R. Cordeiro. op. cit., p. 30. Veja-se também, sobre esse third space em
que se situam as culturas pós-coloniais, BHABHA, Homi. op. cit., p. 36-39 e 217-19.
20 Cf. FIMIANI, Mariapaola. L’arcaico e l’attuale. Lévy-Bruhl Mauss Foucault. op.
cit., p.128. Acho, por isso, não congruente com essa dialética imperfeita, a ligação
“necessária”, postulada por Paul Ricoeur, entre doar e perdoar (RICOEUR, Paul.
La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. p. 595-642): a própria etimologia –
24
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 13-26
Quero, com isso, dizer (como já disse em outro texto) 21 que o duplo que se cava na falta todavia delimita uma dimensão de sentido, um
tempo que sobra e que resta, assim como sobra e resta o produto dessa
antropofagia fantasmática teorizada por Oswald de Andrade: nada que
possa ser proposto como Dom real ou recebido como dádiva do Outro,
mas apenas esse restante impalpável que a metabolização da cultura europeia por parte da brasileira deixa atrás de si. Retomando a metáfora
do fluxo, eu diria que justamente dentro desse dinamismo das relações
entre sujeitos culturais, na fluência infinita das trocas ou dos dons de
objetos imateriais, a identidade cultural consegue se definir só enquanto
enseada ou charco, apenas como aquilo que precariamente se detém e
fica no interior do fluxo: pequeno grumo de resistência, que não tem tempo ou espaço próprios dentro da fluidez global dos contornos, mas que,
todavia, configura uma fresta, uma abertura, que não pode ser pactuada
ou definida, por ser ela mesma limite, margem de liberdade sobre a qual
devemos sem fim habitar. Porque (tanto na época do Modernismo, eu
diria, quanto na nossa era globalizada) é apenas esse entre, esse lugar
terceiro, ao mesmo tempo melancólico e “festivo”, aquilo que resta e que
nos salva. Posto que – parafraseando o título de uma famosa estória de
Guimarães Rosa em que assistimos, justamente, a um doar “de mãos
cheias”22 e sem contrapartida – porque, finalmente, esse quase-nada é
(só ele, na verdade, pode ser) a nossa incerta condição.
que volta idêntica em muitas línguas, como o próprio filósofo sublinha – indica, a
meu ver, que o segundo termo, rematando o primeiro, faz por isso do Giving um
For-giving, um “dar a” para apagar uma culpa e reconstruir, assim, uma situação
de equilíbrio, enquanto a economia do dom (já em Mauss) aparece como suspensa num espaço ambivalente e aberto, não permitindo nenhum perdão ou esquecimento, nenhuma estabilidade ou redenção. Quero, aliás, que esta afirmação seja
entendida como uma modesta homenagem – dialógica, porém, cheia de admiração
e gratidão – a um Mestre que nos encheu de “dons” e que acaba de nos deixar.
21 Veja-se o meu FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O duplo e a falta: construção do outro e identidade nacional na literatura brasileira. Revista Brasileira de Literatura Comparada, 1 (1991), p. 52-61, 1991.
22 Esta expressão alude ao título da tradução italiana (STAROBINSKI, Jean. A piene
mani: dono fastoso e dono perverso. Torino: Einaudi, 1999) do importante volume
de Jean Starobinski sobre a representação do Dom no âmbito artístico, originariamente intitulado Largesse ( ____. Largesse. Paris: Editions de la Réunion des Musées
nationaux, 1994).
25
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 13-26
Odisseias do conceito moderno de história:
Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen,
de Capistrano de Abreu, e O pensamento
histórico no Brasil nos últimos cinquenta
anos, de Sérgio Buarque de Holanda,
revisitados
Mateus Henrique de Faria Pereira1
Pedro Afonso Cristovão dos Santos 2
Resumo
Neste artigo, procuramos refletir sobre as tensões do conceito moderno
de história a partir de dois textos importantes enquanto avaliações da
historiografia brasileira e considerações sobre a escrita da história do
Brasil, a saber: Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen (1878), de
João Capistrano de Abreu, e O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos (1951), de Sérgio Buarque de Holanda. Pensandoos na chave do dito conceito moderno de história, isto é, como representativos de uma nova experiência do tempo, marcada pela diferença
em relação ao passado, e por um novo horizonte de expectativas em
relação ao futuro, que remodela a escrita da história, vemos nesses
textos, marcados por tensões por vezes dicotômicas, entre estudos particulares e obras de síntese, teoria e empiria, objetividade e subjetividade, inquietações ainda relevantes para os historiadores.
Palavras-chave
Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, conceito moderno
de história, historiografia brasileira.
Recebido em 15 de abril de 2009
Aprovado em 27 de outubro de 2009
27
1
Professor da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]
2
Mestre em História pelo Programa de História Social da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Bolsista CNPq durante a
elaboração deste artigo. E-mail: [email protected]
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78
Journeys of the modern conception of history:
Capistrano de Abreu’s Necrológio de Francisco
Adolfo de Varnhagen and Sérgio Buarque de
Holanda’s O pensamento histórico no Brasil
nos últimos cinquenta anos revisited
Mateus Henrique de Faria Pereira
Pedro Afonso Cristovão dos Santos
Abstract:
This article seeks to reflect on the tensions internal to the modern
conception of history through two important texts concerning Brazilian historiography and the writing of Brazilian history: Capistrano de
Abreu’s Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen (1878) and Sérgio
Buarque de Holanda’s O pensamento histórico no Brasil nos últimos
cinquenta anos (1951). Considering both in the light of the modern conception of history, as representatives of a new experience of time, characterized by the difference towards the past, and by a new horizon of
expectations about the future, which changes the way history is written, we see them both marked by tensions such as particular studies
and synthesis, theory and empirical work, objectivity and subjectivity,
still relevant to historians.
Keywords
Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, modern
conception of history, Brazilian historiography.
28
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78
N
N
Duas apropriações
do conceito moderno
de história no Brasil3
este artigo, propomo-nos a confrontar dois textos fundamentais da história da historiografia brasileira,
a saber: Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto
Seguro, escrito por Capistrano de Abreu e publicado quando da morte do
autor da História geral do Brasil, em 1878, e O pensamento histórico no
Brasil nos últimos cinquenta anos, de autoria de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 19514 . Ambos saíram originalmente na imprensa diária
do Rio de Janeiro (o Necrológio, no Jornal do Commercio; O pensamento
histórico em o Correio da Manhã) e têm como característica comum o
fato de proporcionarem aos leitores panoramas da produção historiográfica brasileira dos períodos de que tratam (mesmo no artigo de Capistrano, centrado em uma figura individual, encontramos uma avaliação mais
abrangente da historiografia brasileira até Varnhagen, assim como da historiografia contemporânea a esse autor). Embora a obra e o pensamento de
Capistrano de Abreu tenham sido importantes para a produção de Sérgio
Buarque de Holanda, em muitos aspectos e momentos, uma aproximação
desses dois textos, separados no tempo por mais de setenta anos, não é de
3
29
3
Agradecemos a Fernando Nicolazzi, Henrique Estrada Rodrigues, Juliana Melo,
Pedro Caldas, Paulo Teixeira Iumatti, Valdei Lopes de Araújo, além dos dois pareceristas da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, pelas leituras atenciosas e
sugestões. Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
4
Os dois textos encontram-se transcritos ao final deste artigo.
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78
forma alguma óbvia. Os momentos particulares da história do Brasil em
que esses textos foram escritos e publicados (os anos já de crise do Império, no caso de Capistrano, e a democracia pós-Estado Novo, quando Sérgio
Buarque escreveu) e as diferentes condições para os estudos históricos no
Brasil nesses momentos, com o surgimento das universidades, não podem
ser ignorados. Ambos os textos apresentam, mais do que avaliações específicas, considerações gerais sobre o fazer história e as características
que deve possuir um historiador, as quais cremos poderem ser pensadas a
partir de certas mudanças na forma de se vivenciar o tempo e conceber a
história. Desse modo, Capistrano de Abreu, em 1878, e Sérgio Buarque de
Holanda, em 1951, levantam questões que permanecem relevantes para a
história da historiografia, tais como: a relação entre monografia e obra de
síntese, teoria e empiria, objetividade e subjetividade, entre outras. Nossa
reflexão procura relacionar os textos em um escopo conceitual definido
principalmente a partir dos estudos de François Hartog e Reinhart Koselleck, discutindo o regime de historicidade e a experiência do tempo moderna, que se constituíram a partir do fim do século XVIII. Capistrano e
Sérgio estariam inseridos, assim, nessa espécie de “longa duração”.
Nessa direção, é preciso realçar que, da experiência do passado, das
histórias e crônicas que ensinavam as lições da história, emerge, após a Revolução Francesa, um conceito de história como realidade unificada e processual. Ela passa, então, a ser entendida como singular coletivo5; “além das
histórias há História”, escreve, no século XIX, Gustav Droysen6 . Nessa nova
forma de se relacionar com o tempo, as luzes vêm do futuro e o passado deve
ser avaliado, posto em dúvida. Surge daí uma consciência crítica em relação
ao espaço de experiência, traduzido por um sentimento de distância e diferença em relação ao passado. Num primeiro momento de dissociação entre
história e moral, em que a história como relato de acontecimentos únicos
impõe-se à história enquanto coletânea de exemplos, o historiador foi visto
como reprodutor da verdade nua, como um pintor, pois era possível imitar
os fatos por meio da representação7. Essa teoria do conhecimento histórico
começou a ser sofisticada a partir da segunda metade do século XIX. Desse
30
5
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992; HARTOG, François. Régimes d’historicité : présentisme et expériences du temps. Paris:
Seuil, 2003; KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC–Rio, 2006.
6
Essa perspectiva de Droysen é retomada por ARENDT, Hanna. op. cit.; HARTOG,
François. Régimes d’historicité : présentisme et expériences du temps. op. cit. e KOSELLECK, Reinhart. op. cit. Sobre Droysen, ver: CALDAS, Pedro S. P. A atualidade
de Johann Gustav Droysen: uma pequena história de seu esquecimento e de suas
interpretações. Lócus, Juiz de Fora: UFJF, v. 12, p. 95-111, 2006.
7
KOSELLECK, Reinhart. op. cit., p. 333.
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78
processo, extraímos uma das hipóteses de nosso texto, qual seja: a de que
o conceito moderno de história é marcado por tensões, muitas vezes apresentadas de forma dicotômica, entre concepções cientificistas e complexas;
dedutivas e indutivas; objetivistas e subjetivistas; generalistas e particularistas; continuistas e descontinuistas.
Em boa medida, e esta é nossa outra hipótese, os textos, publicados
em jornais8 , Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, escrito em 1878
por Capistrano de Abreu, e O pensamento histórico no Brasil nos últimos
cinquenta anos, por Sérgio Buarque de Holanda, em 1951, são vistos aqui
como exemplos paradigmáticos da consciência complexa da dimensão da
“história em si e para si” 9. Nossa leitura enfatizará, além do balanço crítico
contido nesses textos, o quanto eles revelam da concepção de história de
seus autores, marcada por tensões características do conceito moderno de
história. Nesse sentido, nossa intenção é refletir, ao final, sobre como esses dois historiadores perceberam a questão do progresso do conhecimento
histórico a partir da relação entre estudos particulares e obras de síntese.
Pensamos, dessa forma, que uma potencialidade comum aos dois textos que
serão analisados está em perceber os limites de certo tipo de concepção
moderna realista da história e em irem em direção a uma percepção mais
complexa e mais rica, fruto da pesquisa e da (re)escrita da história. Vale ressaltar que José Honório Rodrigues considerou os dois textos em questão, ao
lado de Os historiadores do Brasil no século XIX, de Alcides Bezerra, como
precursores da história da História do Brasil, por serem, em sua visão, as
primeiras análises críticas de nossa produção historiográfica10 .
Valendo-nos das contribuições da história cruzada, pretendemos
operar algumas articulações entre esses dois textos, procurando nos
apropriar, de forma criativa, da referida metodologia11. Apoiamo-nos
8
Sobre a importância de textos escritos em jornais para a história da historiografia,
ver, entre outros, GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
9
Para uma análise que procura articular a expressão “história em si e para si” com
o conceito moderno de história, ver KOSELLECK, Reinhart. op. cit., p. 81. A expressão surge, segundo o autor, no último terço do século XVIII.
10 RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. Primeira parte: historiografia colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2. ed., 1979. p. XV-XVI.
Em nota, o autor acrescentou ainda MELLO, Astrogildo Rodrigues de. Os Estudos
Históricos no Brasil. Revista de História, n. 6, 1951 (mesmo ano do artigo de Sérgio
Buarque de Holanda). Uma importante relação entre os dois textos aqui analisados
foi elaborada por GUIMARÃES, Lúcia M. P. Sérgio Buarque de Holanda na trilha
de Capistrano de Abreu: caminhos do historismo alemão. Cadernos do Núcleo de
Pesquisa e Estudos Históricos. Rio de Janeiro: UFRJ, v. 1, n. 1, p. 79-94, 1996.
11 Sobre a história cruzada, ver, entre outros, WERNER, Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte. Penser l’histoire croisée: entre empirie et réflexivité. Annales.
31
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78
também nas sugestões de Manoel Luiz Salgado Guimarães, para quem
a historiografia deve ter como objetivo a “interrogação sistemática das
memórias construídas”. Nesse sentido, a historiografia pode ser definida
“como investigação sistemática acerca das condições de emergência dos
diferentes discursos sobre o passado”12 .
O período entre 1878 e 1951 é visto aqui como um entre-lugar, ou
seja, entre duas institucionalizações da escrita da história, entre a história pensada e produzida pelo IHGB e pela Universidade, para tomarmos
aquelas que parecem ser as instituições mais marcantes de cada momento13 . Os dois textos sobre os quais nos debruçamos aqui são como eventos
que abrem e fecham caminhos. Textos elaborados por “homens-pontes”,
“elos”; passagens de gerações, marcos, símbolos e “monumentos” da historiografia brasileira. Capistrano de Abreu pode ser visto como um “elo”
entre duas formas de fazer história, a oitocentista (ou, mais precisamente,
a história de meados do Oitocentos), e a “modernista”, por assim dizer, já
das primeiras décadas do século XX. Em análise já clássica Alice P. Canabrava afirma que “a História como narrativa do empírico, dentro do juízo
moral, [...] tem [em] Varnhagen, no Brasil, seu representante máximo”,
ao passo que “a história no quadro das ciências sociais, numa dimensão
nova” tem na figura de Capistrano “a significação de um elo entre essas
duas gerações”, sendo que Capistrano deve ser entendido ainda no contexto de sua época, a mesma de intelectuais como Silvio Romero, Tobias Barreto e Euclides da Cunha. Essa geração expressou por meio de produções
individuais a “inquietude em compreender a realidade brasileira com o
apelo das novas correntes científicas que, ao seu tempo, se desenvolviam
vigorosamente no campo das ciências do Homem”14 .
Paris: EHESS, v. 58, n. 1, p. 7-36, 2003 e De la comparaison à l’histoire croisée. Le
Genre Humain, Seuil, n. 42, 2004.
12 GUIMARÃES, Manoel L. S. Memória, história e historiografia. In: BITTENCOURT,
José Neves; BENCHETRIT, Sara Fassa; TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. (Orgs.). História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional,
2003. p. 92. Nossa investigação está também bastante próxima do que Valdei de
Araújo define como sendo história da historiografia. A esse respeito, ver ARAÚJO,
Valdei Lopes. Sobre o lugar da história da historiografia como disciplina autônoma.
Lócus, Juiz de Fora: UFJF, v. 12, p. 79-94, 2006.
13 Embora, em ambos os momentos, a produção historiográfica não tenha sido exclusividade dessas duas instituições. Para 1878, talvez seja correto acrescentar a Biblioteca Nacional e o Colégio Pedro II, se considerarmos a biografia de Capistrano,
e os institutos históricos regionais. Em 1951, também o Museu Paulista, o Museu
Histórico Nacional do Rio de Janeiro, e ainda o IHGB, os institutos regionais e a
Biblioteca Nacional, são componentes do campo de instituições existentes.
14 CANABRAVA, Alice. Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano. Revista de História, São Paulo: USP, n. 18 (88), out./dez. de 1971. p. 424.
32
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78
Capistrano de Abreu, quando escreveu e publicou o texto que será
analisado, começava a afirmar-se no campo dos estudos históricos. Um
ano depois de publicado o Necrológio, Capistrano passaria em concurso
para o corpo de funcionários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
onde entraria em contato com estudiosos como Ramiz Galvão e Alfredo
do Vale Cabral. Provavelmente frequentador da Biblioteca desde sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1875, vindo do Ceará, Capistrano ampliaria
seus conhecimentos de paleografia e de história por meio do contato com
os documentos daquele acervo. Sua entrada para a Biblioteca Nacional foi
comumente vista por seus biógrafos como a afirmação de sua “vocação”
para a história, como um ponto decisivo em sua trajetória na direção dos
estudos históricos15 . No entanto, já em 1877 encontravam-se, na imprensa,
textos de Capistrano de Abreu sobre história e mesmo sobre historiografia16 . A partir de 1879, cada vez mais publicará pesquisas originais suas17.
Quando, em 1882, tornou-se vaga a cadeira de História do Brasil no Imperial Colégio Pedro II, a mais prestigiosa instituição de ensino daquele
tempo, Capistrano candidatou-se, e foi aprovado em concurso, com aquele
que foi seu primeiro grande trabalho em história: uma tese sobre o descobrimento do Brasil, escrita e publicada em 1883, considerada muito superior aos trabalhos concorrentes, e mesmo muito à frente da produção
contemporânea em estudos históricos. A tese, fundamentada em fontes
primárias e discutindo de forma crítica as próprias fontes e as hipóteses
levantadas por outros historiadores, rejeita uma apresentação dos fatos
históricos como dados, encarando o passado como um espaço diverso do
presente e desconhecido, sondável apenas mediante investigação sistemática, e, mesmo assim, suscetível a um conhecimento imperfeito18 .
15 Ver, por exemplo, as biografias de VIANA, Hélio. Capistrano de Abreu: ensaio bibliográfico. Rio de Janeiro: MEC, 1955, e a de MENEZES, Raimundo de. Capistrano
de Abreu: um homem que estudou. São Paulo: Melhoramentos, 1956. É Viana quem
afirma que a entrada para a Biblioteca Nacional “iria decidir, definitivamente, sua
[de Capistrano] vocação de historiador” (p. 14).
16 Como uma resenha crítica da obra História da fundação do Império brasileiro,
de João Manuel Pereira da Silva, publicada em O Globo, de 10 de março de 1877, e
reproduzida em ABREU, João Capistrano de. Ensaios e estudos: crítica e história.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, quarta série, 1976. p. 37-41.
17 Como a série de artigos denominada Gravetos de história pátria, publicada na Gazeta de Notícias entre 1881 e 1882 e também reproduzida em ABREU, João Capistrano de. Ensaios e estudos: crítica e história. op. cit., p. 291-316.
18 Relatos do concurso e comparações entre o trabalho apresentado por Capistrano
e o de seus concorrentes podem ser encontrados nos biógrafos citados (o alemão
Carl Von Koseritz, em viagem pela Corte naquele momento, presenciou o concurso
e produziu um depoimento comumente usado pelos biógrafos de Capistrano). A
tese em si foi objeto de estudo de ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda Noturna:
33
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Comungamos da ideia de que Sérgio Buarque de Holanda, por sua
vez, também pode ser interpretado como um elo: “poder-se-ia dizer que
Sérgio Buarque foi um homem-ponte entre os intelectuais da ‘rua’ e os
das ‘instituições’”19 , pontes entre o modernismo, o ensaísmo e a história
acadêmica. Entre 1946 e 1956, Sérgio Buarque de Holanda dedicou-se à
direção do Museu Paulista e ingressou na Escola de Sociologia e Política
de São Paulo. Foi nesse ínterim, que o autor escreveu uma série de textos
em defesa da institucionalização universitária e da profissionalização
acadêmica. Não por acaso seus três principais livros tidos como “históricos” foram publicados nas décadas de 1940 e 1950. São eles: Monções
(1945), Caminhos e fronteiras (1957) e Visões do paraíso (1957) 20 . Esse
movimento é denominado por Robert Wegner de “do ensaísmo à historiografia”. Para Wegner, “se antes a atividade intelectual era vista como
‘missão’, agora [trata-se do comentário de um texto buarquiano de 1948]
Sérgio Buarque enxerga a possibilidade de que tal atividade seja concebida como ‘profissão’”21. Wegner ainda afirma: “Sérgio Buarque saúda a
institucionalização das ciências humanas, advogando por sua novidade
no contexto cultural brasileiro e defendendo a importância do intelectual
moldado pela atividade miúda da inquirição”22 . Nessa direção, o texto O
pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos (1951) é lido
por nós como uma defesa da especialização, que é ao mesmo tempo uma
defesa da institucionalização. O referido artigo não deixa de ser uma forma de intervenção em um projeto aberto, em disputa, inconcluso e em
construção. Para Sérgio Buarque, como veremos, a história só teria a
ganhar com tal processo.
narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, n. 1, 1988, p. 28-54, justamente à luz do conceito moderno de história e da
moderna experiência do tempo.
19 WEGNER, Robert. Latas de leite em pó e garrafas de uísque: um modernista na
universidade. In: EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas: Editora da Unicamp/Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2008. p. 483.
20 Ver, entre outros, DIAS, Maria Odila da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP.
Estudos Avançados, v. 8, n. 22, 1994; WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2000; _____ . Da generalidade à poeira dos arquivos: Sérgio Buarque de Holanda nos
anos 1940. Revista contemporaneidade e educação, Rio de Janeiro, ano VII, n. 11,
2002; GUIMARÃES, Eduardo Lima. A modernidade brasileira reconta as tradições
paulistas. In: EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio Buarque
de Holanda: perspectivas. op. cit., p. 37-62.
21 WEGNER, Robert. Latas de leite em pó e garrafas de uísque: um modernista na
universidade. op. cit., p. 491.
22 Idem, ibidem.
34
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O Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen e
aspectos da complexidade do conceito moderno de história
No final do século XIX, conviviam no Brasil, segundo Francisco
Iglésias, três formas de se representar o passado: “1) autores e obras na antiga orientação de crônica; 2) cultivo do eruditismo, cujo nome principal
foi Varnhagen; 3) autores e obras com nível moderno, de pesquisa intensa,
metodologia segura, temática original, elaboração superior”23 . Nesse último grupo, do qual Capistrano de Abreu fazia parte, encontramos também
Silvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Lima, Tobias Barreto, Eduardo Prado, Manoel Bomfim, João Ribeiro, entre outros. Tais autores foram
marcados pelas transformações dos anos 1870, o período do Gabinete Rio
Branco, da Lei do Ventre Livre, do fim da Guerra do Paraguai e do início
do movimento republicano.
Essa época conturbada abriu espaço para o questionamento da relação de continuidade histórica entre Portugal e Brasil, e/ou a inversão do
sentido de seu valor, no âmbito dos estudos históricos. Isto significa dizer
que, no momento da crise do Império começou-se a se questionar se o Brasil era, como país, um desdobramento de Portugal, sua antiga metrópole
(uma das premissas da historiografia oitocentista, organizada em torno do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), ou uma nação própria, fruto de
desenvolvimento particular e autônomo24 . Questionou-se também se essa
continuidade, caso existisse, não seria justamente a raiz de nossos problemas sociais e políticos, ou seja, se não seria a herança portuguesa a causa
dos males da sociedade brasileira. Índice dessa reavaliação é a grande popularidade, entre os autores da geração de 1870, no Brasil, da obra O Brasil e
as colônias portuguesas (1880), do historiador português Oliveira Martins,
conforme aponta Angela Alonso. Segundo a autora, nesse livro,
Oliveira Martins observa que a colonização do Brasil acontecera em
meio à decadência da metrópole. As incursões de Portugal na África e
no Brasil são descritas como uma triangulação, formando um sistema
de exploração colonial: bem-sucedido por redundar em colonização,
malogrado por estar na raiz do declínio do Império português.25
23 IGLÉSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000. p. 94-95.
24 Sobre essa historiografia na primeira metade do oitocentos, o posicionamento em
relação a Portugal e à experiência moderna do tempo, ver ARAÚJO, Valdei Lopes. A
experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (18131845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild (Hucitec), 2008.
25 ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império.
São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 193.
35
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Essa obra teria sido fundamental para Joaquim Nabuco, por exemplo, na elaboração de O abolicionismo; pois o teria ajudado a ver que “os
problemas brasileiros seriam estruturais, resultados da colonização”26 .
Destarte, se compararmos algumas das ideias em voga na historiografia no momento em que Capistrano de Abreu se pôs a estudar e a
escrever estudos históricos, com as da geração de Varnhagen, observamos que, se Varnhagen escreveu quando a monarquia se consolidava, a
“geração 1870” escreveu quando a monarquia e a escravidão estavam
sendo seriamente questionadas. Esses autores começaram a se defrontar
com as problemáticas relativas à construção da Nação em um novo momento, repensando o problema da identidade nacional 27.
Tendo em vista os aspectos aqui levantados, como o próprio Capistrano avaliou a historiografia varnhageniana? Para Capistrano, em O Necrológio de Varnhagen, publicado inicialmente em duas partes no Jornal
do Commercio, Varnhagen era o “grande exemplo a seguir e a venerar”28;
podia se gabar “de que um só facto não existia que não tivesse pessoalmente examinado, ao passo que os factos materiaes por elle descobertos,
ou rectificados, igualavam, si não execediam, aos que todos os seus predecessores tinham adduzido”, como escreve na primeira parte, publicada
no dia 16 de dezembro de 1878 29 . Quatro dias depois, em 20 de dezembro,
saía a segunda parte do estudo, a mais famosa e crítica. Nela, Capistrano
caracteriza Varnhagen como um trabalhador possante, explorador incansável, trazendo nas mãos pérolas e corais, isto é, documentos importantes extraídos dos arquivos europeus, sendo fundamental seu trabalho
de exposição factual. Entretanto, “Varnhagen não primava pelo espírito
compreensivo e sympathico, que, imbuindo o historiador dos sentimentos e situações que atravessa – o torna contemporaneo e confidente dos
26 Idem, ibidem, p. 194. Capistrano de Abreu escreveu uma resenha desse livro de
Oliveira Martins para a Gazeta de Notícias, publicada em duas partes; uma, a 19,
outra, a 22 de outubro de 1880. Na resenha, apontou inexatidões factuais da obra, visando colaborar para uma segunda edição, pois, “apesar de todos os seus defeitos,
o Brasil e as colônias portuguesas têm idéias novas e considerações de muito alcance, que apresentam a história do Brasil sob faces ainda não estudadas”. ABREU,
Capistrano de. Ensaios e estudos: crítica e história. op. cit., p. 160.
27 Ver, entre outros, SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989; DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica
brasileira (do IHGB aos anos 1930). Passo Fundo: EDIUPF, 1998; CARVALHO, Jose
Murilo de. Pontos e bordados. Belo Horizonte: UFMG, 2001 e REIS, José Carlos.
Identidades do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
28 ABREU, Capistrano de. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen. Ensaios e estudos: crítica e história, Primeira série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931. p. 133.
29 Idem, ibidem, p. 130.
36
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homens e acontecimentos. A falta de espirito plastico e sympatico – eis o
maior defeito do Visconde de Porto-Seguro”30 .
Os méritos de Varnhagen, para Capistrano, enfatizados, sobretudo, na primeira parte do Necrológio, provêm das suas pesquisas documentais, que revelaram textos fundamentais para a escrita da história
do Brasil, por vezes mediante edições conscienciosas, isto é, aquelas que,
além do próprio texto, já de grande valor, trazem ainda um aparato crítico que aprofunda sua compreensão, como é o caso do Roteiro de Gabriel Soares de Sousa, que Porto Seguro editou pelo Instituto Histórico
em 1851. Mais do que um grande pesquisador de arquivos, foi Varnhagen
um precursor de novos temas na historiografia, superando abordagens
superficiais. Porque ele, segundo Capistrano,
não se limitou a dar o rol dos reis, governadores, capitães-móres e generaes; a lista das batalhas, a chronica das questiunculas e intrigas que
referviam no periodo colonial. Attendeu sem duvida a estes aspectos,
a uns porque dão meio util e empirico de grupar os acontecimentos, a
outros, porque rememoram datas que são doces ao orgulho nacional,
ou melhor esclarecem as molas que actuam sob differentes acções. Fez
mais. As explorações do territorio, a cruzada cruenta contra os Tupis,
o augmento da população, os começos da industria, as descobertas das
minas, as obras e associações literarias, as communicações com outras nações, assumem logar importante em sua obra.31
Portanto, mais do que a divulgação de documentos, pré-condição
básica para a escrita da História, Varnhagen superou uma forma de escrita que toca a superfície dos eventos e fixa-se nos grandes indivíduos, para
atingir aspectos mais abrangentes da vida social. Vemos que, pelos temas
destacados por Capistrano, Varnhagen foi por ele definido como precursor
para a própria história que o autor cearense viria a escrever. O estudo do
território e da população, marcas da produção capistraneana, destacadas
inclusive no texto de Sérgio Buarque de Holanda, que iremos abordar no
próximo tópico, é aqui remetido ao Visconde de Porto Seguro.
Contudo, segundo Capistrano, faltavam ainda a Varnhagen aspectos decisivos que constituiriam o trabalho do historiador; do historiador
“moderno”, considerando-se as características que reúne Capistrano em
sua análise, isto é, dimensões do olhar sociológico, da erudição histórica e da moderna experiência do tempo. Enfim, Porto Seguro não possuía
30 Idem, ibidem, p. 138.
31 Idem, ibidem, p. 136-137.
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a “objetividade necessária”, e, mais do que isso, faltavam-lhe o atributo da
compreensão e o domínio da sociologia contemporânea (ou seja, a sociologia
oitocentista, de Comte e Spencer). A primeira lhe permitiria um relato mais
“simpático” do processo histórico; não mais favorável, mas sim menos anacrônico. Parece-nos ser o senso de distância, a diferença histórica, traço do
conceito moderno de história, uma das formas da nova relação com o tempo,
que Capistrano evoca aqui. Por sua vez, a sociologia do século XIX, o “seculo
de Comte e Herbert Spencer”32 , permitiria a Varnhagen o efetivo salto para
além da superfície da história: o salto para seu segredo íntimo. “Inspirado
pela theoria da evolução, [que o historiador que a possuir] mostre a unidade
que ata os tres seculos que vivemos. Guiado pela lei do consensus, mostrenos o rationale de nossa civilização, aponte-nos a interdependência organica
dos phenomenos, e esclareça uns pelos outros”33; pede Capistrano ao fim do
Necrológio, ao indicar como deve proceder o historiador que assumir o lugar
de Varnhagen na tarefa de escrever uma história geral do Brasil.
Não se trata mais de aprender as lições do passado: de produzir, como
escrita da história, uma coleção de exemplos, mas de estudar um passado
diverso do presente, desconhecido, mas dotado de lógica, de uma racionalidade que, essa sim, desemboca no presente, revelando também a sua estrutura íntima. Fernando Nicolazzi sugere, a partir da crítica de Capistrano
citada acima, certa passagem da história filosófica à francesa que os membros do IHGB defendiam, para algum tipo de “síntese sociológica”, característica da recepção brasileira do cientificismo. Nessa passagem, por sua vez,
ocorreria uma separação entre escrita e método, entre narrativa e erudição,
que possibilitaria, para outros autores, a emergência de um gênero como
o ensaio histórico34 . Capistrano, no entanto, esquiva-se da “síntese”, ou ao
menos a protela, até a conclusão de estudos particulares suficientes sobre
diversos pontos ainda pouco conhecidos. De algum modo, o próprio Necrológio apresenta alguns pressupostos dessa escolha fugidia. Vale dizer ainda,
retomando proposição de Valdei de Araújo, que é um dos traços do “cronótopo moderno” a percepção de que a geração anterior não foi moderna o
suficiente, daí a busca de uma constante e necessária superação35; postura
que pode ser vista no Capistrano do Necrológio, em relação a Varnhagen.
32 Idem, ibidem, p. 140.
33 Idem, ibidem, p. 140. Apesar da diferença temporal, conceitual e de vocabulário, a
passagem acima nos faz recordar a seguinte passagem de R. Koselleck: “A forma
mais adequada para se apreender o caráter processual da história moderna é o esclarecimento recíproco dos eventos pelas estruturas e vice-versa” (KOSELLECK,
Reinhart. op. cit., p. 139).
34 NICOLAZZI, Fernando F. O ensaísmo no Brasil (mimeo).
35 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). op. cit.
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Varnhagen publicou a primeira edição da História geral do Brasil em dois volumes entre 1854 e 1857. A obra, dedicada ao imperador D.
Pedro II, não foi bem recebida inicialmente. Depois de novas pesquisas
e constantes revisões que levaram mais de vinte anos, em 1877, o autor
publicou a segunda edição. Para Lúcia Paschoal Guimarães, o Necrológio
de Capistrano acabou sendo muito importante para que a obra de Varnhagen ganhasse o prestígio que desfrutaria. Segundo a autora, o Visconde de
Porto Seguro era adepto das regras estabelecidas pelo historismo alemão;
o historiador deveria se concentrar nos fatos que efetivamente ocorreram
e estabelecer a verdade deles, por meio da erudição e da crítica das fontes.
Desde 1838, o IHGB vinha construindo a memória do Brasil. Porém, tratava-se de uma “memória marcada pelo traço da continuidade” com o Império Português36 . Segundo Manoel Guimarães, sendo um “momento mesmo
de passagem, esta historiografia [do IHGB] abriga aspectos de uma visão
antiga e de uma visão moderna de se pensar a história”. A história é percebida, ao mesmo tempo, como marcha linear e progressiva que articula
futuro, presente e passado; e é essa concepção que possibilitaria a aprendizagem pragmática da experiência passada. Intelectuais como Varnhagen,
“não se furtava[m] a prestar consultas e a elaborar pareceres para órgãos
do Estado Imperial, na qualidade de historiador[es]”. A história passou a
legitimar uma série de “decisões de natureza política, mormente aquelas
ligadas às questões de limites e fronteiras, vale dizer, aquelas ligadas à
identidade e singularidade física da Nação em construção”37.
A nosso ver, o Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen é fundamental, pois sistematiza uma série de experiências do tempo nas quais
se percebe que a história é, em grande medida, reconstrução, no presente,
da experiência única e múltipla no tempo, a partir da pesquisa empírica38 .
Essas considerações, sobre a importância da pesquisa documental e do
36 GUIMARÃES, Lúcia M. P. Francisco Adolfo de Varnhagen: a História geral do Brasil.
In: MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico 2.
São Paulo: SENAC, 2001. p. 95-96. Ver, também, CEZAR, Temístocles. Como deveria ser
escrita a história do Brasil no século XIX. Ensaio de história intelectual. In: PESAVENTO, Sandra. (Org.). História cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2003; _____ . O poeta e o historiador. Southey e Varnhagen e a experiência
historiográfica no Brasil do século XIX. História Unisinos, v. 11, p. 306-312, 2007.
37 GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o
projeto de uma História nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, jan. 1988,
p. 15. Para uma análise deste “momento de passagem” posterior ao clássico texto
de Manoel Salgado Guimarães ver, sobretudo, ARAÚJO, Valdei L.; PIMENTA, João
Paulo G. História (conceito de). In: JÚNIOR, João Feres. (Org.). Léxico da história dos
conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009. p. 119-140.
38 Trata-se, nesse ponto, de uma complexa tentativa de dissociação da história da
memória. A respeito das relações entre memória e história, ver RICOEUR, Paul. A
memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
39
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contato com as fontes primárias, os conhecimentos teóricos necessários
ao historiador, a postura do historiador diante de fatos e personagens do
passado, entre outros pontos, remetem, essencialmente, na nossa leitura,
às práticas que permitem tal recriação. Capistrano lamentava que Varnhagen desconhecesse o corpo de “doutrinas criadoras”, as quais, nos últimos anos, denominavam-se sociologia. “Sem esse facho luminoso, elle
não podia ver o modo por que se elabora a vida social. Sem elle as relações
que ligam os momentos successivos da vida de um povo não podiam desenhar-se em seu espírito de modo a esclarecer as differentes feições e factores reciprocamente”39 . Para Capistrano, era preciso escrever a história
do Brasil “digna do seculo de Comte e Herbert Spencer” a fim de arrancar
“das entranhas do passado o segredo angustioso do presente”, e libertarnos do “empirismo crasso em que tripudiamos”40 . Não mais se extraem do
passado lições para o presente, mas sim seu “segredo angustioso”. Para
Capistrano, seria necessária, assim, uma teoria para interpretar o passado
em sua singularidade, manifestada por meio dos fatos, ou, talvez, revelar
a sua “evolução” orgânica e necessária.
Capistrano compreendeu o cerne da tensão epistemológica que
constitui a complexidade do conhecimento histórico; nos termos de Koselleck, ser capaz de “fazer afirmações verdadeiras e, apesar disso, admitir e
considerar a relatividade delas”41. Para o mesmo autor, “aquilo que faz da
história, história não poderá jamais ser deduzido a partir das fontes. Para
que estas finalmente falem, faz-se necessária uma teoria da história possível”. Há, assim, uma “tensão entre a construção do pensamento teórico
sobre história e a crítica das fontes. Uma é completamente inútil sem a
outra”42 . Pensamento teórico e crítica de fontes são duas dimensões complementares, em constante tensão. Capistrano percebeu a referida ambiguidade; porém, acreditava que a interpretação é dissociada da crítica das
fontes43 . Para Koselleck, trata-se de um processo dinâmico44 . Além disto, a
39 ABREU, João Capistrano de. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen. In: Ensaios e estudos: crítica e história. op. cit., p. 139.
40 Idem, ibidem, p. 140.
41 KOSELLECK, op. cit., p. 161.
42 Idem, ibidem, p. 188.
43 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. op. cit., em especial p. 34: “Como se vê, o estabelecimento dos fatos
parece representar para Capistrano uma etapa completamente distinta da interpretação, esta sim, orientada por leis e regras derivadas da sociologia”. Benzaquen refere-se
à tese sobre o descobrimento do Brasil, escrita cinco anos após o Necrológio, que valeu
a Capistrano a entrada no Colégio Pedro II.
44 A questão da teoria e da empiria em Capistrano é marcada pelo debate acerca da relação entre cientificismo e historismo em sua obra. Arno Wehling defende que, após
1880, Capistrano passa a se afastar do cientificismo, marcando sua produção menos
40
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dimensão da teoria para Capistrano não tem uma função relativista, como
tem, por exemplo, para Koselleck; aparece, no Necrológio, com o sentido
de revelar as leis da história. No entanto, o importante é destacar que Capistrano compreende, ao enfatizar a importância da relação entre teoria e
empiria, dimensões da complexidade do conceito moderno de história e,
sobretudo, do fazer histórico45 .
pela teoria sociológica oitocentista e mais pela pesquisa empírica (WEHLING, Arno.
Capistrano de Abreu: a fase cientificista. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, n. 311, p. 43-91, 1976). José Honório Rodrigues, por sua vez, aponta evolução semelhante, marcando a entrada na Biblioteca Nacional, em 1879, como ponto
inaugural do predomínio da empiria no trabalho de Capistrano e a tendência para o
pensamento historista alemão (ABREU, João Capistrano de. Correspondência de Capistrano de Abreu. Edição organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 2 ed. v. I 1977. p. XL-XLII). O texto
que analisamos, portanto, pertenceria ainda à fase “cientificista” de Capistrano. Cremos que, embora existam diferenças visíveis entre os primeiros textos publicados de
Capistrano, nos anos 1870, e a produção, principalmente historiográfica, das décadas
seguintes, a demarcação dessas “fases” necessita explicar a permanência de determinadas ideias e concepções em seu pensamento, mesmo após maior contato com
as fontes (explicitar melhor esse ponto fugiria de nossos propósitos aqui – deixamos
apenas a sugestão, indicando que A. Wehling apontou as divergências, entre os comentadores de Capistrano, a respeito de ruptura ou permanência em sua obra; WEHLING,
Arno. Capistrano de Abreu – a fase cientificista. op. cit.). Acreditamos que tanto o termo
“cientificismo” quanto o termo “historismo” apresentam problema semelhante: agrupam diversas tendências e autores, e, num olhar menos minucioso, podem sugerir
univocidade. Arno Wehing aproxima Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda a partir do conceito de tradição hermenêutica: “diferente de Gilberto Freyre, Caio
Prado Jr. ou Roberto Simonsen, Sérgio Buarque inseriu-se na tradição hermenêutica
que teve, como seu antecessor imediato, o ‘segundo Capistrano’, aquele dos amadurecidos textos dos Capítulos de história colonial e Caminhos antigos e povoamentos
do Brasil, não apenas pela aproximação temática, mas pela fundamentação teóricometodológica” (WEHLING, Arno. Notas sobre a questão da hermenêutica em Sérgio
Buarque de Holanda. In: EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio
Buarque de Holanda: perspectivas. op. cit., p. 394). Nossa hipótese de trabalho aqui
recai sobre uma experiência comum do tempo, uma nova forma de articular passado,
presente e futuro vivenciada a partir de fins do século XVIII. Nesse sentido, as correntes ditas “cientificistas” e as “historistas” compartilham dessa mesma experiência;
fundamentalmente, do conceito moderno de história, ou fazem parte dele: são produto
e produtoras desse conceito. Desse ponto de vista, o debate a respeito de Capistrano
não impede nossa investigação.
45 Sobre a relação entre pesquisa empírica e escrita em Capistrano de Abreu, ver:
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853–1927), 183 fl. Dissertação (Mestrado em História), Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2006. Da mesma autora, ver também ____. A anotação
e a escrita: sobre a história em capítulos de João Capistrano de Abreu. História da
historiografia (revista on-line), n. 2, p. 86-99, março de 2009.
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O pensamento histórico no Brasil nos últimos
cinquenta anos : Necrológio de Capistrano? 46
Analisando os livros Um estadista do Império, publicado entre
1897 e 1899, de Joaquim Nabuco, e D. João VI no Brasil, publicado em
1908, de Oliveira Lima, Sérgio Buarque de Holanda afirmou, em O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos, artigo de 1951, que
não faltou naquele último meio século obras históricas sobre o passado
escritas a partir da atividade de um indivíduo. O livro de Nabuco “oferece-nos um opulento painel do segundo reinado, onde o calor e a devoção
filial não chegam a perturbar a visão nítida do historiador”; ao passo que
a obra de Lima, “Escrita necessariamente com outro espírito, e principalmente com as vantagens – e as desvantagens – da maior distância no
tempo”, continua sendo o mais amplo estudo sobre o “Brasil Reino”47.
Podemos propor, talvez, leitura semelhante para o próprio artigo de Sérgio Buarque de Holanda, enquanto análise da historiografia brasileira a
partir da obra seminal de um autor: Capistrano de Abreu.
46 Este artigo também foi analisado por Lúcia M. P. Guimarães, na conferência “A propósito do centenário de Sérgio Buarque de Holanda”, disponível em www.rj.anpuh.org/
Anais/2002/Conferencias/Guimaraes%20Lúcia%20M%20P.doc. Acesso em dez. 2008.
A autora observa, notadamente, a relação entre Sérgio Buarque de Holanda e Capistrano de Abreu a partir do artigo, em função de suas ligações com o historismo alemão
e das conexões entre a produção de ambos os estudiosos. Trata-se de obras de Sérgio
Buarque, como Monções ou Caminhos e fronteiras (essa última, composta de monografias, escritas por volta da época em que foi publicado o texto: O pensamento histórico no Brasil durante os últimos cinquenta anos, que não só recuperavam temáticas a
que dedicou grande atenção Capistrano (a ocupação e povoamento do interior), como
também ressaltavam sua forma de abordá-las (por meio da cultura material e da vida
cotidiana), conforme bem observa Lúcia Guimarães. Sobre o historismo no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, ver: DIAS, Maria Odila Leite da Silva (Org.). Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, n.
51) e a conferência citada na nota abaixo, além, fundamentalmente, do texto do próprio
Sérgio Buarque sobre Ranke: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O atual e o inatual em
Leopold von Ranke. In: ____ .(Org.), Ranke. São Paulo: Ática, 1979. p.8 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 8). Também a tese de doutoramento de GONTIJO, Rebeca. O
velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador. Niterói: UFF,
2006, contém uma análise sobre a importância dada por Sérgio Buarque a Capistrano
no artigo de 1951. A autora procura, principalmente, apontar a forma como Capistrano
foi tomado como referencial pela historiografia do século XX, resultado inclusive da
memória constituída desse historiador (processo iniciado ainda durante sua existência, e muito bem estudado na tese). Desse modo, Gontijo mostra as características que
possuiria Capistrano (pessoais e de trabalho), que passaram a ser entendidas como
pressupostos do historiador em geral (cf., em especial, p. 269-272).
47 HOLANDA, Sérgio Buarque. O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. In: EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. op.cit. p. 608-609.
42
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Isso porque é a Capistrano que Sérgio Buarque remete o desenvolvimento da historiografia brasileira no meio século analisado, logo nos
primeiros parágrafos do artigo. Cabe aqui, portanto, investigar as razões dessa consideração. Capistrano é apresentado por Sérgio Buarque,
no início de seu texto, como o ponto inaugural de boa parte dos estudos
que viriam a ser feitos naqueles cinquenta anos. O restante do artigo é
dedicado à análise de estudos, organizados mais por tema (como biografias, ou estudos regionais) que dispostos em ordem cronológica, e acompanhados da crítica de Sérgio Buarque, a qual visava também assinalar
as tendências gerais que marcaram a bibliografia naquele período. Observemos, pois, a leitura de Sérgio Buarque de Capistrano de Abreu e da
historiografia brasileira no espaço de tempo delimitado por seu artigo.
Sérgio Buarque destaca os estudos regionais produzidos no meio
século que analisava, bem como estudos sobre temas específicos da história do Brasil, como os jesuítas, ou a Guerra do Paraguai. A ocupação da
terra também não foi problema estranho aos trabalhos históricos desse
período, e documentos foram publicados com rigoroso aparato crítico,
ampliando o acesso às fontes. Conforme Sérgio Buarque de Holanda, Capistrano é ponto inaugural de muitos desses esforços:
Com algumas reservas, talvez, na parte que se relaciona às campanhas sulinas do Império, o interesse por todos esses diferentes
problemas que, através deste meio século, puderam ser melhor
esclarecidos – descobrimento e ocupação da terra, atividade dos
jesuítas e conquista do sertão –, deveu muita coisa, sem dúvida, à
ação estimulante de Capistrano de Abreu. 48
Entretanto, “Independentemente desse estímulo, não faltaram, é
certo, as tentativas muitas vezes laboriosas, mas fundadas num critério de
apresentação sobretudo cumulativa dos fatos históricos”, isto é, tentativas
de se escrever uma história geral do Brasil49 . Sérgio Buarque cita, nesse
momento do texto, as obras de Rocha Pombo e João Ribeiro. O primeiro
cabe especialmente na descrição dada acima, da historiografia “cumulativa dos fatos históricos”; o segundo, porém, trouxe contribuição importante
para os estudos históricos: sua obra História do Brasil, destinada ao ensino superior, segue um plano, uma estrutura e um sistema de exposição, o
que diferencia sua síntese das demais. A teoria, portanto, traria essa diferença. De qualquer modo, o contraste feito no artigo é entre os trabalhos
48 Idem, ibidem, p. 607.
49 Idem, ibidem, p. 608.
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específicos sobre questões relevantes de nossa história (“descobrimento e
ocupação da terra, atividade dos jesuítas e conquista do sertão”, por exemplo), pensadas a partir de uma visão teórica que lhes atribua valor (no
caso de Capistrano, profundamente informada pela geografia e por teorias
sociológicas que lhe deram, nas palavras de Sérgio Buarque, “uma sensibilidade aguçada à importância de ação dos fatores cósmicos – da terra, do
meio e do clima – sobre as instituições humanas”)50 , e as sínteses fundadas num critério de exposição cumulativa dos fatos históricos.
Estudos regionais e estudos focados em indivíduos foram também
vistos por Sérgio Buarque. Ao chegar aos primeiros estudos sociológicos,
reaparece a questão da síntese. O autor destacou Populações meridionais
do Brasil, de Oliveira Vianna, como obra também de historiador. Vianna,
segundo Sérgio, popularizou o gênero do ensaio interpretativo, já empreendido com sucesso por Euclides da Cunha, em Contrastes e confrontos e
À margem da História. Esse tipo de ensaio recorre ao trabalho histórico.
Um marco desse gênero é o trabalho de Gilberto Freyre, que, com seu
Casa-grande & senzala, de 1933, deu “Novo e generoso impulso aos estudos interpretativos, com base em amplo material histórico”51.
“A bibliografia histórica do decênio de [19]30 é largamente ocupada
por escritos onde a interpretação elucidativa, e às vezes interessada e mesmo deformadora dos fatos, visa a explicar tais fatos ou a caracterizá-los em
sua configuração especificamente nacional”, escreve Sérgio, ressaltando,
porém, a importância desses trabalhos, surgidos em “uma época de crises
e transformações”, e o fato de que ajudaram a dar nova direção aos estudos
históricos52 . Cita como exemplo, abstendo-se de um estudo intensivo de
todas as obras, o que fugiria aos propósitos de seu artigo, Retrato do Brasil,
de Paulo Prado, autor que pertenceria à “escola Capistrano”53 . Sérgio Buarque atentou, por outro lado, para os estudos de inspiração totalitarista, numerosos também, segundo ele, nos anos 1930, mas que “mal interessam,
em sua generalidade, à pesquisa historiográfica”.
Para o autor, “Mais interessantes, por todos os aspectos, são sem
dúvida as tendências de explicações de paisagens regionais”54 . Ainda assim, voltamos a ter interpretações psicológicas e sociais gerais do Brasil,
como em O conceito de civilização brasileira (1936), de Afonso Arinos de
Melo Franco; A cultura brasileira (1943), de Fernando de Azevedo; e For50 Idem, ibidem, p. 602.
51 Idem, ibidem, p. 610.
52 Idem, ibidem, p. 611.
53 Aspas no original.
54 HOLANDA, Sérgio Buarque. O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. op.cit., p. 611.
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mação da sociedade brasileira (1944), de Nelson Werneck Sodré. Aqui,
afirmou Sérgio Buarque que,
por menos que esses trabalhos devam inscrever-se na literatura historiográfica, tomada a palavra stricto sensu, é forçoso admitir-se que
participam de uma tendência que se reflete vivamente em outras
obras da mesma época, onde a interpretação pessoal, endereçada a
um alvo determinado, cede passo ao puro esforço de elucidação;
isto é, estas obras não podem ser agrupadas com aquelas em que as intenções do autor distorcem os fatos – a “interpretação pessoal” aqui não
prevalece sobre a “elucidação”55 .
Entretanto, os ensaios interpretativos, de forma geral, na caracterização de Sérgio Buarque, têm em comum o fato de se distanciarem do
que é propriamente a produção historiográfica (stricto sensu), mesmo que
(ou quando) baseados nas fontes usadas pelos historiadores, ou valendo-se
de reconstruções históricas56 . Os trabalhos monográficos parecem estar
mais próximos do que efetivamente seria historiografia. Na categoria dos
estudos regionais, porém, devemos lembrar que um estudo regional não é
necessariamente um estudo monográfico, o que leva à consideração de que
as noções de geral (lugar da síntese) e de particular (lugar da monografia)
55 Idem, ibidem, p. 612.
56 Para Fernando Nicolazzi, a historiografia entre 1870–1940 “se encontrava diante de
uma dupla demanda: de um lado, realizar a síntese interpretativa sobre a formação
da nação brasileira, tarefa encampada sobretudo pela história literária tal como praticada por Silvio Romero e, de outro, corrigir as falhas nos aspectos da erudição crítica da geração anterior, tarefa propriamente da história stricto sensu. Capistrano de
Abreu é autor cuja noção de história permite reforçar este argumento”. O gênero ensaístico de interpretação histórica está, assim, relacionado com “a demanda por uma
espécie de síntese histórico-sociológica da nação, que vem suplantar, amparada pela
assimilação de todo um instrumental teórico renovado (naturalismo, evolucionismo, positivismo, etc.), os princípios da ‘história filosófica’ que orientaram em grande
parte a escrita da história no Brasil imperial; a consciência, motivada pela desilusão
com a república instaurada no país e também pela realidade social brasileira, de
uma crise na ordem do tempo que vai gerar todo um topos sobre o ‘atraso nacional’,
como se o Brasil estivesse em desarmonia com o movimento histórico moderno. O
ensaio histórico é uma resposta plausível para essa situação. A partir dos anos 1950,
todavia, evidencia-se uma crítica contundente dirigida à tradição ensaística das décadas precedentes, motivada, sobremaneira, pela institucionalização das ciências
sociais no Brasil. Exemplo claro disso é a postura de Florestan Fernandes ao longo
da década, em seu esforço por estabelecer os parâmetros definidores da sociologia
científica dentro da universidade”. NICOLAZZI, Fernando F. O ensaísmo no Brasil
(mimeo). Ver, também, NICOLAZZI, Fernando F. Um estilo de história: a viagem, a
memória, o ensaio. Sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. Tese
de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008.
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são relativas. A história de São Paulo, por exemplo, também é um estudo geral, abrangendo particulares como os bandeirantes ou os capitães
gerais. Quando dissemos anteriormente que Sérgio Buarque apontou os
estudos regionais como mais interessantes que os ensaios interpretativos,
omitimos que ele citou, entre seus exemplos de estudos regionais, Cassiano Ricardo e seu Marcha para o oeste, o qual caracterizou como análogo à
pesquisa de Gilberto Freyre em Nordeste. Contudo, no trecho supracitado,
Sérgio Buarque fez menção a uma “tendência” da época que discutia (os
anos 1930 e 1940, imediatamente anteriores ao momento em que escreve),
voltada para o “puro esforço de elucidação”. Interpretações subjetivas estariam dando lugar a análises mais objetivas e localizadas, sem os mesmos propósitos das primeiras, visando simplesmente o esclarecimento de
pontos de nossa história. Logo, para esse caminho estariam apontando
os estudos históricos no Brasil, naquele instante. Percebe-se que já não
havia, em 1951, “espaço” para grandes ensaios e sínteses, apesar da importância que tais trabalhos tiveram em seu tempo57.
Quando passou aos recentes estudos de história econômica, comentando os trabalhos de Caio Prado Jr. e Roberto Simonsen, Sérgio
Buarque apontou que
É inevitável pensar-se, hoje, que a abordagem dessas questões só
será realizável através de um trabalho prévio empreendido por diferentes especialistas que se dediquem, cada qual, a determinada
época e a determinados problemas, não por meio de outras sínteses onde o particular tende a esfumar-se e a perder-se em proveito
de alguma ilusória visão de conjunto. 58
Para Sérgio Buarque de Holanda, assim como para Capistrano de
Abreu quase setenta anos antes, a abordagem de determinadas questões
históricas passa pela realização de diversas monografias, que atentem
57 No prefácio à reedição de Caminhos e fronteiras, Fernando A. Novais destaca que
essa obra, primeiramente publicada em 1957, “é vista como a passagem da ‘sociologia’ para a ‘história’, e do ‘ensaísmo’ para a ‘pesquisa’”. Apesar das aspas, Novais
parece corroborar tal visão, pois, após sugerir uma leitura da obra sergiana que enfatize sua unidade, apontou que, no caso de Caminhos e fronteiras, “Trata-se agora
de uma análise vertical, num segmento específico daquele imenso conjunto” (grifo
nosso). NOVAIS, Fernando A. Prefácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos
e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.7-8. Vale dizer que essa obra
reúne estudos de caráter monográfico, escritos por Sérgio Buarque nos anos 1940 e
1950; portanto, contemporâneos do artigo que analisamos.
58 HOLANDA, Sérgio Buarque. O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. op.cit., p. 614.
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para a particularidade do que é estudado, colocando em questão a obra de
síntese. Dessa maneira, o “trabalho prévio”, acima exigido para a história
econômica, põe em suspensão a realização da síntese59. Para Holanda, as
pesquisas necessárias deveriam se dar por intermédio da “utilização dos
métodos que se vêm desenvolvendo em países onde existe longa tradição
de estudos históricos especializados”60 . O domínio desses métodos viria da
transmissão dos conhecimentos necessários por meio, principalmente, das
universidades, reforçadas pela presença de professores estrangeiros61.
O conceito moderno de história e
o progresso do conhecimento
A grande importância atribuída a Capistrano de Abreu, no texto de
Sérgio Buarque de Holanda, no desenvolvimento da historiografia brasileira ao longo da primeira metade do século XX, foi, em larga medida, descrita
em pontos análogos aos que Capistrano usara para salientar a importância
de Varnhagen para a historiografia do século XIX, no Necrológio de 1878:
a importância da pesquisa documental e o foco em novos temas históricos. Em outras palavras, os elogios de Sérgio a Capistrano lembram os
59 Nessa direção, o texto O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos
é um bom indício daquilo que Fernando Nicolazzi, op. cit., denominou de crise e
esgotamento do gênero ensaístico.
60 HOLANDA, Sérgio Buarque. O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. op.cit., p. 614.
61 Sérgio Buarque afirma: “no que se refere à história, inclusive à história do Brasil, em
seus diferentes setores, foi certamente decisiva e continua a sê-lo, sobre as novas gerações, a ação de alguns daqueles mestres: de um Jean Gagé, por exemplo, e de um
Fernand Braudel em São Paulo; de um Henri Hauser e de um Eugéne Albertini, na hoje
extinta Universidade do Distrito Federal. [...]. Não parece excessivo acreditar, entretanto,
que neles já se encontra o gérmen de um desenvolvimento novo e promissor dos estudos
históricos no Brasil”. Idem, ibidem, p. 615. É preciso realçar que Sérgio Buarque de Holanda participou do projeto da Universidade do Distrito Federal, entre 1936 e 1939, sendo
assistente do citado Henri Hauser, em História Econômica Contemporânea, e de Henri
Tronchon, em Literatura Comparada. Para alguns analistas, entre eles, Luiz da Costa
Lima, o livro Monções é um livro de “pura pesquisa histórica” e o “primeiro efeito de
seu contato profissional com H. Hauser”. LIMA, Luiz Costa. Sérgio Buarque de Holanda: Visão do Paraíso. In: EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio
Buarque de Holanda: perspectivas. op.cit. p. 520. Ver, também, RODRIGUES, Henrique
Estrada. Fronteiras da democracia em Sérgio Buarque de Holanda. Universidade de
São Paulo (Tese de Doutorado), 2005. Thiago Lima Nicodemo oferece uma interessante
reflexão sobre as questões da institucionalização e da profissionalização da história e da
contribuição de professores estrangeiros no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda,
a partir do mesmo artigo que ora analisamos; cf. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e
a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: Edusp, 2008. p. 193-195.
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de Capistrano a Varnhagen62 . Além desses pontos destacados, Capistrano
possuía maior objetividade, mantendo-se, segundo Sérgio Buarque, notavelmente impermeável a caprichos e interesses pessoais quando escrevia
história, como escreveu o último no início do terceiro parágrafo de O pensamento histórico. Sua formação teórica (autodidata, vale lembrar, pois Sérgio
escrevia em momento em que as faculdades de Filosofia proporcionavam
aparato significativamente diferente do que Capistrano e seus contemporâneos tiveram a seu dispor), remetida ao positivismo comteano e às doutrinas de Spencer, também diferencia sua produção e seu pensamento, embora
não os determinem. Seu conhecimento da geografia e da antropogeografia
alemãs contribuiu para acentuar a atenção aos fatores geográficos, que já
vinham do conhecimento da sociologia oitocentista63 .
Assim, divulgação de documentos (também segundo regras críticas), abertura de novas sendas para estudo, objetividade e domínio de
conhecimentos teóricos e conceituais de outras disciplinas são os aspectos que caracterizam a produção histórica de Capistrano de Abreu, no
texto de Sérgio Buarque de Holanda. Dessa forma, se observarmos que,
para Capistrano, Varnhagen tinha entre suas qualidades a pesquisa documental e a descrição factual, mas lhe faltavam objetividade e teoria,
Capistrano aparece, na visão de Sérgio Buarque, como dotado de todas
essas qualidades, as presentes e as ausentes em Varnhagen. Se lembrarmos ainda que, no Necrológio, Capistrano parece propor, a partir das
qualidades e defeitos de Varnhagen, um ideal de história e historiador,
temos que esse ideal não é muito diferente em Capistrano e Sérgio Buarque (considerando que o primeiro quase o personifica, para o segundo).
Em ambos os textos sobre os quais nos debruçamos sobressai uma
análise da produção historiográfica que não se limita aos dois autores
privilegiados (Varnhagen, para Capistrano e o próprio Capistrano, para
Sérgio Buarque de Holanda). Isso é mais forte no texto de Sérgio Buarque, evidentemente, porque é uma análise da historiografia brasileira
na primeira metade do século XX. Capistrano não é o tema, é seu ponto
de partida. No Necrológio, a análise da historiografia é, além de otimista (contrastando com outros registros, principalmente posteriores, de
Capistrano) 64 , centrada nas pesquisas particulares que viriam viabilizar
62 Lúcia M. P. Guimarães, na conferência que citamos acima, “A propósito do centenário de Sérgio Buarque de Holanda”, assinala ainda que as qualidades vistas por
Sérgio Buarque em Capistrano se assemelham às que Holanda apontou existirem em
Leopold von Ranke.
63 HOLANDA, Sérgio Buarque. O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. op.cit., p. 601-602.
64 Como em carta a João Lúcio de Azevedo, de 17 de maio de 1920, em que Capistrano
afirma, a respeito da solidez das pesquisas até então feitas em história do Brasil: “A
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a escrita de uma nova História geral do alcance da história escrita pelo
Visconde de Porto Seguro, com os avanços de concepção e conhecimento
ocorridos desde a publicação daquela obra. Capistrano já definira, como
vimos, o arcabouço teórico da obra: a sociologia oitocentista. Esperava
então os resultados de várias pesquisas particulares. Conforme o autor,
Signaes de renascimento nos estudos historicos já se podem perceber. Publicações periodicas vulgarizam velhos escriptos curiosos, ou memorias interessantes esclarecem pontos obscuros.
Muitas Provincias compõem as respectivas historias. Periodos
particulares, como a Revolução de 1817, a Conjuração Mineira, a
Independencia, o Primeiro Reinado, a Regencia, são tratados em
interessantes monographias. Por toda parte pullulam materiaes e
operarios; não tardará talvez o architecto. 65
Capistrano não perderia de vista, ao longo da vida, a necessidade dos estudos de divulgação de documentos e de monografias para a
escrita futura de uma nova síntese da história do Brasil 66 . No texto de
Sérgio Buarque, além do mesmo otimismo, ao final, relacionado à contribuição das universidades e, principalmente, professores estrangeiros
lecionando no país 67, observamos uma constante relação entre sínteses e
monografias. No seu caso, as sínteses têm ainda uma forma peculiar, característica dos anos 1930, os ensaios interpretativos (de que ele próprio
História do Brasil dá a idéia de uma casa edificada na areia. É uma pessoa encostarse numa parede, por mais reforçada que pareça, e lá vem abaixo toda a grampiola”.
ABREU, João Capistrano de. Correspondência de Capistrano de Abreu, v. 2, edição
organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 2. ed., 1977. p. 161-162.
65 ABREU, Capistrano de. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen. Ensaios e
estudos: crítica e história, Priemira série. op. cit., p. 140.
66 O que assinala Guillermo Zermeño Padilla para o período pós-indendência na América Latina continuaria, então, válido para o período posterior; segundo o autor “En
la medida en que el futuro no se manifieste, la experiencia moderna de la historia
irá tomando el perfil de una permanente transición. La inestabilidad se compensará
con la escritura de historias generales de la nación”. Porém, para Capistrano essa
história deverá ser escrita no futuro e não mais no presente. ZERMEÑO PADILLA,
Guillermo. Historia, experiencia y modernidad en Iberoamerica, 1750–1850. Almanack Braziliense [recurso eletrônico], São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo, n. 7, maio de 2008.
67 Lembramos, novamente, a conclusão do artigo: “Não parece excessivo acreditar, entretanto, que neles [isto é, no que denomia os ‘tipos de trabalho’ produzidos neste
meio universitário, como ‘cursos especiais, seminários, teses de concursos’] já se
encontra o gérmen de um desenvolvimento novo e promissor dos estudos históricos
no Brasil.” HOLANDA, Sérgio Buarque. O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. op.cit., p. 615.
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fora expoente, embora tenha omitido do artigo o seu Raízes do Brasil),
forma que o próprio Sérgio Buarque remete, entretanto, à geração de Capistrano, como vimos anteriormente (ao tratar de Oliveira Vianna e da
obra Populações meridionais do Brasil, Holanda afirma sê-la exemplar
do gênero já empreendido por Euclides da Cunha).
Sendo assim, surge uma questão: a atenção ao particular pressupõe regularidade ou singularidade dos fenômenos históricos? Segundo
François Hartog,
na moderna concepção de história, a exemplaridade cede lugar
ao unívoco. Algum dia, no futuro, alguém estabelecerá uma lei.
Ou, para empregar outra formulação típica de fins do século XIX,
algum dia no futuro virá o dia glorioso da “synthèse”, mas por
enquanto “c’est l’ordinaire ingrat de l’analyse”! 68
A síntese é resguardada para o futuro, para depois que todos os casos particulares, irredutíveis a qualquer padronização ou descrição por
tendências que dispense seus estudos individuais, tenham sido conhecidos. O momento é de análise (literalmente, de separação em partes) para
depois se elaborar a síntese.
A síntese, composta a partir de intenso levantamento documental,
e após variados estudos monográficos, é parte da concepção historiográfica oitocentista. A história é, então, concebida como edifício construído
sobre materiais (vimos Capistrano usar essa metáfora para a documentação); é uma grande criação coletiva que vai sendo completada com os
trabalhos particulares. Daniel Mesquita Pereira, em sua tese sobre Capistrano de Abreu, apontou que a prática historiadora, no século XIX, é
constituída pela ideia da acumulação de informação por meio da crítica
documental. No século XIX, isso passou a ocorrer “numa escala tão avassaladora que tendia a cobrir uma ‘história total’. As histórias parciais são
vistas como etapas necessárias para a articulação de um enredo mais
generalizante, ou, na fórmula de Koselleck, um singular coletivo”. A possibilidade de reunir as histórias particulares era vista como natural, e as
monografias, como uma etapa necessária nesse percurso. “Ligar num
todo coerente uma sequência de acontecimentos é uma das funções da
estrutura narrativa da historiografia moderna”69 . Como resumiu Manoel
Guimarães: “A História – coletivo singular – entendida segundo a nova
68 HARTOG, François. Tempo, história e a escrita da história: a ordem do tempo. Revista de História, n. 148, p. 13, primeiro semestre de 2003.
69 PEREIRA, Daniel Mesquita. Descobrimentos de Capistrano. A história do Brasil a
“grandes traços e largas malhas”. (Tese de Doutorado, PUC/RJ), 2002. p. 37.
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compreensão formulada pela Ilustração viria a se tornar a condição de
possibilidade das histórias particulares”70 .
A história não chega a ser conhecimento meramente cumulativo,
havendo espaço para crítica e para re-escrita. Conforme sugeriu Maria
da Glória de Oliveira, em dissertação de mestrado sobre Capistrano de
Abreu, a noção de “reescrita da história” é pertinente “como modo de legitimação do projeto historiográfico de Capistrano”. Segundo a autora,
Embora se considere evidente que em razão de seu caráter investigativo a história seja continuamente “corrigida”, a condição compulsória para a sua reescritura parece se estabelecer com o advento
da concepção moderna de um tempo especificamente “histórico”
[...] É a partir desta perspectiva, que o próprio saber histórico, em
sua acepção científica moderna, assume um caráter tanto cumulativo quanto provisório, na medida em que, ao pressupor acréscimos,
revisões e retificações, apresenta-se como processo infindável de
acumulação/superação de “verdades” parciais e relativas.71
A este respeito, Valdei Lopes de Araújo afirma que para a primeira geração do acontecimento Independência, o levantamento de fatos é
um procedimento suficiente, ao passo que, para a segunda geração, ele
é regulador:
nos anos iniciais do IHGB foi possível notar a tensão entre as demandas por um levantamento exaustivo dos fatos herdeira de
uma concepção de história ligada à crônica e à cronologia, e uma
compreensão hermenêutica e narrativa que, mesmo dependente
do estabelecimento factual, exigia uma abordagem seletiva e hierárquica dos eventos.72
70 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Entre as luzes e o romantismo: as tensões da
escrita da história no Brasil oitocentista. In: ____ . (Org.). Estudos sobre a escrita da
história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 69. O autor afirma ainda: “uma disciplina que tenha por objeto submeter o passado a procedimentos de conhecimento, à
investigação empírica, para extrair dele conhecimento, supõe primeiramente que
o passado tenha se transformado em História [...] a história na sua forma disciplinar deve ser considerada como apenas uma das inúmeras formas de elaboração
significativa do tempo decorrido, como parte de algo mais amplo que chamaria de
‘cultura histórica como parte de uma cultura da lembrança’” (p. 70).
71 OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853–1927). op. cit, p. 65.
72 ARAÚJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação
nacional brasileira (1813–1845). op. cit., p. 187.
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Essa busca de sentido era casada com a tentativa de monumentalização do presente finito. O Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen
mostra-nos claramente que a referida tensão atravessou a historiografia
oitocentista. Não sem razão, Araújo aponta que o conceito de evolução só
se torna dicionarizado em 1877–1878. Para o autor, “é apenas pelo conceito
histórico de evolução que os vestígios de um tempo cíclico poderão ser
substituídos por uma compreensão acumulativa e linear da história das
civilizações”73 .
Desse modo, a experiência do tempo que orienta a nova visão da
relação entre presente, passado e futuro atinge o próprio conhecimento histórico, pautado agora por um horizonte de expectativa que prevê o
acréscimo de novos conhecimentos e a revisão daqueles outrora estabelecidos, mediante novos progressos, como a descoberta de documentos
inéditos ou a reinterpretação dos já conhecidos à luz de novas teorias74 .
Conforme observa Thiago Lima Nicodemo, no artigo O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos, Sérgio Buarque de Holanda
apontou ainda duas tendências nos estudos históricos brasileiros: uma que
propõe remédios do passado para problemas do presente, e outra que procura “exorcizar” (segundo a metáfora que Nicodemo recupera de outros
textos de Sérgio Buarque) o passado do presente, tirar o primeiro dos ombros do segundo, na expressão de Goethe, de que também se valeria Sérgio
Buarque em outros momentos. Essa segunda tendência, exemplificada por
Caio Prado Jr, segundo Holanda em O pensamento histórico, pressupõe
um interesse do historiador pela vida contemporânea e um comprometimento com um projeto de futuro, na linha do que outros autores vinham
propondo desde o início do século, tais como Benedetto Croce, Marc Bloch,
Lucien Febvre e Johan Huizinga, conforme observa Nicodemo75 . Tratase de uma forma de pensar a história que não mais assume o passado
como fonte de exemplos para o presente, que olha criticamente para esse
passado, rejeitando sua monumentalização, como já vimos em Capistrano. Vale dizer que Sérgio Buarque comparou Capistrano a Marc Bloch no
artigo, sob a chave de que o primeiro compreendia e praticava aquilo que
o segundo viria a defender: que as fontes só falam se o historiador ousar
73 Idem, ibidem, p. 184. Ver também GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. Do
litoral para o interior: Capistrano de Abreu e a escrita da história oitocentista. In:
CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. (Orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009. p. 267-292.
74 Analisando a reflexão de R. Koselleck sobre o conceito moderno de história, Paul
Ricoeur afirmou: “existe tempo da história na medida em que há uma história una.
É a tese mestra de Koselleck” (RICOEUR, Paul. op. cit., p. 313).
75 NICODEMO, Thiago Lima, op. cit. p. 187-195.
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“formular-lhes perguntas precisas e bem pensadas”; que antes de qualquer investigação, há um problema a mover o historiador76 .
Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda, nos dois textos
em questão, parecem manter uma visão parecida quanto à questão monografia-síntese: aguardam os estudos particulares, rejeitam sínteses
precipitadas. Os dois autores apontaram a necessidade de estudos particulares, a partir da avaliação que fizeram de dois momentos específicos
da história da historiografia brasileira (o fim do século XIX e a primeira
metade do século XX), sem perder de vista a elaboração de uma história geral. Nos escritos dos dois autores, parece haver articulação entre
as duas formas de escrita, mas para ambos, em momentos diferentes, a
hora parecia ser das monografias.
Ainda que se possa encontrar regularidade entre os fenômenos históricos, para lhes dar seu caráter essencial, e, assim, sintetizar a história, a regularidade pode ser obtida no futuro a partir dos muitos estudos
particulares, e não de uma lei geral. Mas, nos textos em questão, parece
que a dimensão da reescrita da história e mesmo uma maior desconfiança em relação à síntese futura aparecem com maior clareza no texto de
Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo quando este afirmou, como vimos
anteriormente, ao tratar da história econômica, que o desenvolvimento
de seu conhecimento não viria “por meio de certas sínteses onde o particular tende a esfumar-se e a perder-se em proveito de alguma ilusória
visão de conjunto”. Importante também é a forma como o historiador
apresenta este juízo: “É inevitável pensar-se, hoje”... Isso sugere um momento específico do desenvolvimento dos estudos históricos no Brasil,
em que uma nova síntese é vista com cautela. No seu hoje (1951), o leitor
perguntava-se pelos estudos monográficos, a cargo de “especialistas”,
pelo “trabalho prévio” à elaboração da síntese. Em Capistrano, há uma
mais clara e esperançosa expectativa em relação à síntese futura, um
olhar que já procura articular a produção dispersa, que se realiza na sua
“atualidade” (no hoje de Capistrano, 1878), em uma obra única77.
76 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos. op.cit., p. 602.
77 Mas em ambos a elaboração da síntese parece ser pensada da mesma forma: dever-se-ia
fazer a articulação de diversos trabalhos monográficos, que preenchessem as lacunas da
história brasileira, isto é, que realizassem o estudo dos temas e problemas que compõem
(ou deveriam compor) uma História geral do Brasil. Escapando brevemente ao escopo
deste artigo, lembramos a obra coletiva História geral da civilização brasileira, que Sérgio Buarque começou a dirigir a partir de 1960, menos de dez anos após publicar o artigo
que analisamos. O autor afirmou, na introdução ao primeiro volume: “A verdade, no
entanto, está em que são de data recente e em número ainda relativamente escasso, as
pesquisas e análises monográficas que poderiam fornecer apoio seguro a muitas tenta-
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Outra hipótese para o cruzamento entre os textos, que, se correta,
pode ajudar a entender as semelhanças entre eles, é o fato de que ambos podem representar expressões da opção de seus autores pelos estudos históricos. Capistrano começa a largar os estudos de crítica literária e partir para a
história – que ele não faria exclusivamente até o fim da vida, tendo em vista
seus estudos de etnografia, geografia, etc. Sérgio Buarque de Holanda, por
sua vez, em seu texto, já se definia claramente como historiador profissional78 . Os dois textos podem ser lidos, assim, como expressões de uma opção
pela história como campo de estudo, compartilhando, desse modo, alguns
aspectos desta prática que ambos abraçam, mesmo separados no tempo: vivem contextos culturais, políticos e acadêmicos diferentes, mas uma similar
experiência moderna de tempo e escrita da história. É necessário destacar,
entretanto, que as posições de Capistrano após o Necrológio provavelmente
mudaram mais que as de Sérgio Buarque depois de O pensamento histórico.
Embora haja também continuidades, é notável a progressiva diminuição
do uso e da importância, nos escritos de Capistrano, da mesma sociologia
oitocentista que o historiador cobrara de Varnhagen. Autores como Spencer
e Comte passarão a aparecer cada vez menos em seus textos.
Se as observações acima forem corretas, o que ambos os textos
trazem são definições de atributos centrais do fazer histórico moderno.
Em que pesem as diferenças de estilo, época, leitores e posicionamentos dos dois textos analisados (isto é, o diálogo contemporâneo
tivas de síntese. Lacunas e deficiências tornaram-se, por vêzes, inevitáveis na obra [...]”.
In: História geral da civilização brasileira. t. 1, v. 1. Sob a direção de Sérgio Buarque de
Holanda, assistido por Pedro Moacyr Campos, para os períodos colonial e monárquico,
e por Boris Fausto, para o período republicano. Introdução geral de Sérgio Buarque de
Holanda. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960. p. 8. Certamente, a análise dessa
obra permitiria uma abordagem mais aprofundada da síntese, do conceito de civilização e de história geral para Sérgio Buarque. Contudo, restringimo-nos aqui ao aspecto
que se relaciona com as ideias do artigo de 1951. Sobre Sérgio Buarque de Holanda e
a História geral da civilização brasileira, ver FAUSTO, Boris. Organizando a História
geral da civilização brasileira. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 162-166;
CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da
Civilização Brasileira. Notícia bibliográfica e histórica. Campinas, n. 34 (187), p. 307-313,
2002. Vale dizer que o IHGB já trazia a noção de um projeto coletivo de história geral, em
que cabia ao Instituto a coordenação deste esforço, articulando a coleta de documentos e
a produção de monografias sobre temas específicos, conforme a análise de Manoel Luiz
Salgado Guimarães do discurso do primeiro secretário perpétuo do IHGB, Januário da
Cunha Barbosa, no ato de estatuir-se o Instituto, no texto de GUIMARÃES, Manoel Luiz
Salgado. A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil. In: CARVALHO, José Murilo de. Nação e cidadania no império: novos horizontes. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, em especial p. 103.
78 É interessante destacar que Holanda em 1947 foi contratado para assumir funções
no Museu Paulista como “historiógrafo”. Cf.: EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. op.cit., p. 690.
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específico em que se inserem), percebemos que há neles concepções próximas em relação ao tempo histórico e, sobretudo, ao fazer histórico. Por
essa razão, como esperamos ter mostrado, os dois autores percebem e
utilizam o conceito moderno de história procurando enfatizar dimensões
que, do nosso ponto de vista, privilegiam a complexidade desse conceito.
No entanto, ao que parece, ambos os autores defendem explicitamente
posições que valorizam uma determinada escrita da história, aquela em
que a empiria está articulada à teoria.
No caso do texto de Capistrano, talvez possamos dizer que a primeira parte do Necrológio contém os atributos que Varnhagen possuía:
a pesquisa documental e a qualidade da leitura das fontes, que o tornava
capaz de extrair delas datas e fatos para a composição da narrativa histórica. A segunda parte contém principalmente as que não tinha: espírito
compreensivo e visão de conjunto. É preciso enfatizar que Varnhagen
tinha uma visão de conjunto, mas não do tipo que depois de sua obra
seria possível e desejável para a geração de Capistrano. Os dois textos
que analisamos aqui são embasados pelo conhecimento de seus autores
(Capistrano e Sérgio Buarque) da história da historiografia brasileira,
que culmina, em ambos, no que está por fazer. Nessa direção, talvez possamos nos arriscar a dizer que Sérgio Buarque sintetiza a experiência
de duas gerações (a do ensaísmo e a da história acadêmica, em sua consolidação) numa só vida. Essa experiência talvez seja diferenciada no
caso de Capistrano, pois não havia ainda em seu horizonte a questão da
institucionalização acadêmica. Desse modo, outra articulação possível
relaciona-se a certo otimismo no final dos textos, como se, para os dois,
em diferentes momentos, a historiografia brasileira estivesse no caminho certo, progredindo.
Como foi visto, Capistrano se apropria do conceito moderno de
história em sua complexidade, dialogando com autores da tradição histórica e sociológica alemã, francesa e inglesa, sem que sua “modernidade” venha, por isso, de “influências estrangeiras”. Pensamos que tanto
Capistrano de Abreu como Sérgio Buarque de Holanda, são de difícil enquadramento em tradições historiográficas nacionais (embora ambos os
textos analisados revelem o profundo conhecimento de seus autores da
historiografia nacional brasileira, e mesmo, nos autores que destacam,
certas “filiações”, se se pode falar assim); e também nos ismos historiográficos (positivismo, cientificismo, historismo, marxismo, etc.)79 . Talvez
79 Maria Odila Leite da Silva Dias o afirma, a respeito de Sérgio Buarque, em seu texto,
Dialogando com Sérgio Buarque de Holanda. Cienc. Cult., São Paulo, v. 54, n. 1, 2002. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252002000100036&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 dez. 2008.
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por isso ambos sejam “mestres do rigor”80 , na expressão de Paul Ricouer,
no que se refere à capacidade de compressão, explicação, interpretação e
desenvolvimento do conceito moderno de história. Paul Ricoeur afirma,
a partir de Koselleck, que no final do século XVIII e ao longo do século XIX houve um “estágio, que se pode qualificar de ingenuidade ou de
inocência, [em que] o termo história exibe um teor realista que garante
à história enquanto tal uma pretensão própria à verdade”81. A nosso ver,
a riqueza dos dois textos analisados estaria justamente em perceber os
limites desse tipo de concepção e em irem em direção a uma percepção
mais complexa e mais rica, fruto da pesquisa e da (re)escrita da história.
Capistrano e Sérgio Buarque não abandonaram uma concepção realista
de história, ou sua pretensão à verdade. Mas ambos perceberam dimensões da complexidade dessa tarefa, na presença constante da reescrita,
ou na perspectiva de que novos documentos e novas interpretações obriguem a uma revisão dos conhecimentos estabelecidos.
A releitura desses textos a partir do nosso presente coloca-nos
diante de dilemas ainda não resolvidos. Podem ser mesmo tensões constitutivas da escrita da história. Nesse sentido, os dois autores foram
mestres em explorar, ao limite, as potencialidades dessa escrita. Vislumbraram outras possibilidades, pois perceberam que a própria escritura
e re-escritura da história é plural. Em ambos, haveria a preocupação
com a relação entre síntese e estudo monográfico, teoria e empiria, objetividade e subjetividade, entre outras questões, que convergem para a
formulação de um ideal de historiador e de caminhos para os estudos
históricos, a partir do momento em que seus textos foram publicados,
configurando-se como intervenções na historiografia de seu tempo.
De todo modo, gostaríamos de salientar que as referidas tensões e/
ou oposições relativas à forma como o conceito moderno de história foi
pensado e utilizado permanecem 82 . Em entrevista recente, Maria Odila
Leite da Silva Dias afirmou: “Estamos cansados de generalidades. A meu
80 Cf. RICOEUR, Paul. op. cit.
81 Idem, ibidem, p. 315.
82 Muito provavelmente essas tensões e/ou oposições são fruto de uma contradição interna do conceito moderno de história apontada por Ricoeur, em seu diálogo com
Koselleck, nos seguintes termos: “a depreciação do passado não bastaria para minar
de dentro a afirmação da história como totalidade auto-suficiente se um efeito mais
devastador não tivesse se acrescido a ela, a saber, a historização de toda a experiência humana. A valorização do futuro teria permanecido uma fonte de certeza se não
tivesse sido acompanhada pela relativização de conteúdos de crenças considerados
imutáveis. Talvez esses dois efeitos sejam potencialmente antagonistas, na medida
em que o segundo – a relativização – contribui para minar o primeiro – a historização, até então acoplada a uma expectativa garantida por si mesma. É nesse ponto
que a história do conceito de história desemboca numa ambigüidade que a crise do
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ver, não faz nenhuma falta uma síntese ou mais uma teoria do Brasil.
[...]. É difícil pensar em fazer síntese quando ainda desconhecemos grande parte da história do Brasil”. Para Emília Viotti da Costa, no entanto, “as grandes sínteses são essenciais para o conhecimento do passado
e para a elaboração de um projeto político. Mais do que úteis, elas são
necessárias”83 . A esse respeito, em entrevista, em 2005, Reinhart Koselleck reafirmou as potencialidades do conceito moderno de história ao
afirmar crer que “essa pluralização de história [também uma parte da
experiência moderna, a seu ver] [...] prova a necessidade do coletivo singular ‘história’ como instrumento de análise”; ainda “que segue sendo
pertinente o estudo das mudanças globais em escala universal”84 . Esse
debate atual, rapidamente aludido, mostra-nos a contemporaneidade do
não-contemporâneo nos dois textos escolhidos como objeto de reflexão
deste estudo.
historicismo levará ao primeiro plano, mas que é como que um efeito perverso do
que Koselleck chama de historização do tempo” (Idem, ibidem, p. 319).
83 MORAES, José Geraldo Vinci de; REGO, José Marcio. Conversas com historiadores
brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 208 (Maria Odila) e p. 88 (Emília Viotti).
É preciso lembrar que, para Durval Muniz de Albuquerque Jr, um “traço constante da crítica historiográfica brasileira é a tendência a estabelecer maniqueísmos, a
resumir a pluralidade do campo historiográfico a uma espécie de jogo dual, onde
o leitor é conclamado a tomar partido por um dos lados litigiantes.” ALBUQUERQUE JR, Durval M. O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de
excomunhão. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (Org.). Estudos sobre a escrita
da história. op. cit., p. 193. Pensamos que, de algum modo, Capistrano e Sérgio, nos
textos analisados, procuraram ir além desse jogo.
84 Entrevista em http://www.institucional.us.es/araucaria/entrevistas/entrevista_1.
htm. Acesso out. 2008.
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Necrológio de Francisco Adolpho de Varnhagen,
Visconde de Porto-Seguro 85
I
A Pátria traja de luto pela morte de seu historia­dor, – morte irreparável, pois que a constância, o fer­vor e o desinteresse que o caracterizavam, dificilmente se hão de ver reunidos no mesmo indivíduo; morte
im­prevista, porque a energia com que acabara a reimpres­são de sua História, o vigor com que continuava novas empresas, a confiança com que
arquitetava novos pla­nos, embebedam numa doce esperança de que só
mais tarde nos seria roubado, depois de por algum tempo gozar do descanso a que lhe dava direito meio século de estudos e trabalhos nunca
interrompidos.
Filho da nobre Província de São Paulo, iluminava-lhe a fronte a
flama sombria de Anhanguera. O desconhecido atraía-o. Os problemas
não solvidos o apaixonavam. Códices corroídos pelo tempo; livros que
jaziam esquecidos ou extraviados; arquivos mar­c ados com o selo da confusão, tudo viu, tudo exami­nou. Pelo terreno fugidio das dúvidas e das
incerte­zas caminhava bravo e sereno, destemido bandeirante à busca de
mina de ouro da verdade.
Muito moço, tivera de acompanhar o pai a Portu­gal e no exílio, ao
hálito perfumoso da saudade, infiltrara-se-lhe um patriotismo profundo
e casto. A Pá­t ria aparecia-lhe suave e virginal, envolta em um nimbo
vago e puro, como a memória de um ente amado, que não tornamos a ver,
e pelos campos em que brincara, pelas matas, a cuja sombra, se acolhera,
pelos céus, sob cuja cúpula abrira os olhos à luz da existên­cia, eram as
suas mais ternas e mais cordiais aspi­rações.
A essas aspirações veio dar nova força a campa­n ha que fez sob
as ordens do Duque de Bragança, o herói legendário que a seus olhos
de férvido realista simbolizava a alma da Pátria. O estudo das ciências
físicas que então cursava, não conseguiu con­c entrar em si o pensamento
que, inquieto, almejava por outros objetos. Persistente, como já então nos
85 Publicado originalmente no Jornal do Commercio, de 16 e 20 de Dezembro de 1878,
e reproduzido em Apenso à Historia Geral do Brasil, de Varnhagen, tomo 1.°, ps.
502/508, 4. ed., 1927; ABREU, João Capistrano de. Ensaios e Estudos: crítica e história, 1. série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931; ABREU, João Capistrano de.
Ensaios e estudos: crítica e história, 1. série, 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. Aqui, utilizamos o texto da primeira edição dos Ensaios
e estudos, 1931, com grafia atualizada. Agradecemos a Ítala Byanca Morais da Silva
pelas informações sobre Capistrano de Abreu e o Necrológio.
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aparece, dominado pelo respeito do que considerava dever, pôde levar a
termo o tirocínio acadêmico; po­rém, no cultivo das ciências, não era o
esmero das ob­servações, a beleza do método e das experiências, a força e
o alcance das teorias e generalizações, que lhe despertavam o interesse
ou incitavam a atividade; era a aplicação que de seus conhecimentos podia fazer à Pátria, o dia que projetava sobre as coisas nacionais.
Um livro existia, vasto como uma enciclopédia, interessante como
um romance, fértil como um punha­do de verdades, roteiro, corografia,
história natu­ral, crônica. Longo tempo inédito, fora afinal publi­c ado pela
Academia das Ciências, porém mutilado, anônimo, inçado de erros, eivado de incorreções.
Varnhagen determinou as posições geográficas, identificou as espécies biológicas, corrigiu os erros dos copistas e do escritor, provou a
autenticidade do escrito de modo irrefragável, ao mesmo tempo que des­
cobriu o nome do autor – Gabriel Soares de Sousa.
Grande parte das Reflexões críticas sobre o livro deste – o primeiro
trabalho que imprimiu – perde­ram a atualidade em consequência de novos estudos posteriores, em que ninguém entrou com capital maior que
o dele. Quando foram publicadas produziram o efeito de uma revelação,
abriram um mundo novo às investigações de todos aqueles que se ocupavam de nossos anais.
Essa obra e a que de colaboração escreveu sobre a Corografia caboverdiana mostram-no indeciso, flutuando entre as ciências positivas
e a história. À história pertencem todas as outras publicações suas; a
contar do Diário da navegação de Martim Afonso, preito rendido a São
Paulo, na pessoa do povoador e primeiro donatário da capitania.
Depois, embarca para o Brasil, e durante o tempo que aqui demora,
comunica ao Instituto o fogo que o abrasava. Percorre a Província do seu
nascimento, mas não é só o sentimentalismo que lhe guia os passos na
peregrinação: é a sina do futuro historiador que in­vestiga os cartórios,
compulsa as bibliotecas dos mos­t eiros, examina os padrões das outras
eras, colhe glos­sários e tradições, e nas localidades comenta e veri­fica os
dizeres de Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus.
Voltando a Portugal, nomeado adido à nossa legação, não arrefece
um só instante. Na Revista do instituto pululam as memórias que envia,
como os do­cumentos que oferece, e quase não há sessão em que seu nome
não apareça. De frente com essas ocupações, que satisfariam outros menos ambiciosos, ou fatigariam outros menos diligentes, leva os encargos
de editor: reimprime o Caramurú e o Uruguai, e publi­ca a até então desconhecida Narrativa de Fernão Cardim, o provincial jovial, bonachão e
viveur, tão fami­liar aos leitores das Minas de prata de José de Alencar.
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Aos tempos que passou em Lisboa ou aos que de perto se seguem,
prendem-se duas obras importantes: O florilégio da poesia brasileira,
com um esboço de história literária, onde têm ido beber – muitas vezes
sem confessá-lo – todos os que se têm ocupado com o assunto, e a edição
do Roteiro do Brasil, de Gabriel Soares, um dos seus maiores e melhores
títulos à gra­t idão do porvir.
Em Madri, para onde mais tarde foi removido, possui-o o mesmo espírito febril, e a ideia, que se tor­nara fixa, da história pátria. Em
Simancas, como em Sevilha, na Biblioteca Columbiana, como na do Es­
corial, colige a messe opulenta que ninguém ainda teve tão completa,
e, quando enfim saiu à luz a sua História, podia gabar-se de que um só
fato não existia que não tivesse pessoalmente examinado, ao passo que
os fatos materiais por ele descobertos, ou retificados, igualavam, se não
excediam, aos que todos os seus pre­decessores tinham aduzido.
Esgotada a primeira edição da História, com uma rapidez de que
entre nós há poucos exemplos, não se dá pressa em reimprimi-la; enfeixa novos dados, vi­sita as províncias; explora todos os lugares históricos,
sobe o rio da Prata, tendo à mão o roteiro de Pero Lopes; imprime ou
reimprime manuscritos raros ou curiosos.
Do Paraguai traz as obras de Montoya, hoje tão accessíveis e úteis
graças a ele e a Platzmann. No Chile discute os diários de Colombo e procura fixar a posição da verdadeira Guanahani. No Peru, em Ve­nezuela,
em Cuba, como em São Petersburgo, Estocolmo e Rio de Janeiro, em todos os lugares que habita, ou atravessa, levado pelos deveres de diplomata ou ca­pricho de touriste, principalmente em Viena, onde ultimamente
residia deixa traços fulgurantes de sua passagem em páginas inspiradas
pelo amor do futuro da Pátria e dominados pela preocupação constante
de seu passado.
Se a história do Brasil ocupa as suas faculdades, não as ocupa exclusivamente: aqui publica o Livro das trovas e cantares, o Cancioneiro
do Conde de Barcelos, o Cancioneiro da Vaticana, que tanto concorreram
para o conhecimento da poesia portuguesa antiga. Ali edita as obras de
Vespúcio, escreve-lhe a biografia, comenta-o, defende-o, sustenta os seus
direitos à descoberta do continente que guarda seu nome. Além vulgariza a obra de Garcia da Orta, rara tanto como pre­ciosa, ou a carta de Colombo, escrita ao voltar da primeira viagem. Hoje bate-se com D’Avezac,
Major e Netscher; mais tarde disserta sobre as novelas e livros de cavalaria portuguesa, e afirma a origem turânia dos povos americanos. Por
fim entrega-se aos traba­l hos de pura fantasia: na Lenda de Sumé celebra
a tra­d ição encontrada pelos primeiros exploradores de um homem que
ensinara aos indígenas a agricultura e os rudimentos de civilização que
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possuíam; no drama de Amador Bueno mostra-nos a literatura nacional
como a compreende, e introduz-nos na sociedade dos tem­pos coloniais.
Sempre e sempre perseguia-o a ideia da história pátria. Enquanto
não publicava a nova edição, ou antes a refusão e remodelo da obra, escreveu um dos mais nobres capítulos, a História das lutas holandesas,
em cuja confecção empregou documentos abundantíssimos, descobertos
nos exames a que procedeu nos arquivos de Amsterdã e Haia.
Depois de constantes revisões que lhe levaram mais de vinte anos,
publicou de novo a História geral do Brasil, e, para tornar o preço menos
elevado, cede ao editor a propriedade da edição sem retribuição alguma.
Como coroa de seus cabelos brancos, sonha uma ter­c eira edição para
que desde então começou a prepa­rar-se, e prometeu-nos a História da
Independência, infelizmente destinada talvez a não ver a luz. 86 Em se­
guida abandona a posição cômoda e brilhante de nos­so ministro em Viena, para, nos confins de nossos sertões, procurar um lugar pela posição
defensável, pela situação central, pelas condições higiênicas, próprio a
servir de capital a esta pátria, que tanto amava e que não mais devia ver.
Enquanto demorou nesta cidade examinou os panfletos, jornais e memórias contem­porâneos do primeiro reinado que ia agora historiar; publica
na Revista do instituto o texto mais completo e fiel que possuímos da
carta encantadora de Vaz de Caminha. De passagem por Porto Seguro,
reconhece as localidades que viu Cabral na sua viagem afortu­nada. Apenas chega a Viena, envia-nos o folheto retificando um erro que deixara
escapar quando con­f undiu em um dois botânicos brasileiros.
Pouco antes de morrer, quando a enfermidade mortal o obrigava
a guardar o leito, escrevendo a um amigo, o Dr. Ramiz Galvão, muito digno diretor da Biblioteca Nacional, quase nem alude às dores que
o conservam prostrado e impotente: sobre questões de história pátria,
sobre pontos obscuros que deseja escla­recidos, sobre manuscritos, cuja
existência deseja co­n hecer, é que rola toda a carta.
Nobre e tocante vida votada ao trabalho e ao dever! Grande exemplo a seguir e a venerar!
II
Descoberto este continente, aqueles mesmos que tinham chamado a Colombo visionário foram os pri­meiros a achar facílima a empresa
e a gabar-se de po­der executá-la. Depois que Varnhagen publicou sua
86 A História da Independência acabou publicada postumamente, na Revista do IHGB,
Tomo LXXIX, 1916.
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História, e apresentou a massa ciclópica de materiais que acumulara,
muitos se julgaram aptos a erguer um monumento mais considerável,
e atiraram-lhe cen­suras e diatribes que profundamente nos pungiram.
Também ele tinha muitos pontos vulneráveis. Era dos homens inteiriços, que não apoiam sem quebrar, não tocam sem ferir, e matam moscas a pedra­das, como o urso do fabulista. Em muitos pontos em que
sua opinião não era necessária, ele a expu­n ha complacentemente, com
tanto maior complacência quanto mais se afastava da opinião comum.
Suas reflexões às vezes provocam um movimento de im­paciência que
obriga a voltar a página ou a fechar o volume. Muitos assuntos sem
importância, ou de importância secundária, só o ocupam por serem
des­c obertas suas. A polêmica com João Lisboa, em que tinha talvez
razão, porém em que teve a habilidade de por todo o odioso de seu lado,
converteu em inimigos seus os numerosos admiradores do grande maranhense. Homem de estudo e meditação, desconhecia ou desde­n hava
muitas das tiranias que se impõem com o nome de conveniências. Sensível ao vitupério como ao lou­vor, se respirava com delícias a atmosfera
em que este lhe era queimado, retribuía aquele com expressões nada
menos que moderadas.
Essas feições são as que geralmente se associam no espírito do
leitor brasileiro ao nome do Visconde de Porto Seguro. Ninguém procura
sob as aparências rudes o homem verdadeiro – o trabalhador possante, o
explorador infatigável, o mergulhador que muitas ve­zes surgia exausto
e ensanguentado, trazendo nas mãos pérolas e corais. Parece que nos
domina a fa­t alidade de perceber os objetos sob os aspectos mais desfavoráveis; uma idiossincrasia tinge tudo de negro ou amarelo: cedemos
a uma predisposição pessimista, niilista, anárquica, talvez bebida com
as águas, ou inspirada com as nossas brisas, talvez herdada dos Tu­pis
que, segregados por lutas intestinas e rivalidades perpetuamente renascentes, não conseguiram fundar um estabelecimento análogo ao que se
encontrou no México e no Peru.
Entretanto, é difícil exagerar os serviços presta­dos pelo Visconde de Porto Seguro à história nacional, assim como os esforços que fez
para elevar-lhe o tipo. Não se limitou a dar o rol dos reis, governadores,
capitães-móres e generais; a lista das batalhas, a crônica das questiúnculas e intrigas que referviam no período colonial. Atendeu sem dúvida
a estes aspectos, a uns porque dão meio útil e empírico de grupar os
acontecimentos, a outros, porque rememoram datas que são doces ao
orgulho nacional, ou melhor esclarecem as molas que atuam sob diferentes ações. Fez mais. As explorações do território, a cruzada cruenta
contra os Tupis, o aumento da população, os começos da in­dústria, as
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descobertas das minas, as obras e associa­ç ões literárias, as comunicações com outras nações, assumem lugar importante em sua obra.
A sua opinião sobre os Tupis tem encontrado ge­ral desfavor: julga
que a compressão exercida sobre eles era mais que necessária, era indispensável, e aos seus olhos as bandeiras que os paulistas levaram até as
missões jesuíticas eram a solução mais natural que se podia imaginar.
Sem querer defendê-lo, pode-se em todo caso chamar a atenção para circunstâncias atenuantes. Ele não colocou o debate no terreno abstra­to e
absoluto da justiça, porém no da conveniência e da utilidade. Na tragédia que se desenrolava nas vei­gas platinas, ou nos campos amazônicos,
não via a braços a liberdade e a escravidão, porém, jesuítas que queriam
isolar os caboclos para convertê-los em instru­mento de manejos políticos, e patriotas que queriam incorporá-los à civilização transformada
em forças vi­vas do progresso. Quem comparar o estado de São Paulo
com a calma podre daquele cemitério de um povo que se chama Paraguai; quem não esquecer que nesses dois lugares funcionaram o sistema
que ele defende e o que combate, hesitará certamente antes de condenar o historiador. Além disso, o exagero a que depois levou uma ideia
justificável, se não justa, a princípio não existia: brotou de contradições
veemen­tes e polêmicas irritantes. Acresce enfim que espí­r ito introspectante, natureza subjetiva, determinada antes por impulsos íntimos que
influências extrínsecas, Varnhagen não primava pelo espírito compreensivo e simpático, que, imbuindo o historiador dos sentimen­tos e situações que atravessa – o torna contemporâneo e confidente dos homens e
acontecimentos.
A falta de espírito plástico e simpático – eis o maior defeito do Visconde de Porto Seguro. A Histó­r ia do Brasil não se lhe afigurava um todo
solidário e coerente. Os pródromos da nossa emancipação polí­t ica, os
ensaios de afirmação nacional que por vezes percorriam as fibras populares, encontram-no severo e até prevenido. Para ele, – a Conjuração
Mineira é uma cabeçada e um conluio; a Conjuração Baiana de João de
Deus, um cataclisma de que rende graças à Providência por nos ter livrado; a Revolução Pernam­bucana de 1817, uma grande calamidade, um
crime em que só tomaram parte homens de inteligência estreita, ou de
caráter pouco elevado. Sem D. Pedro a inde­pendência seria ilegal, ilegítima, subversiva, digna da forca ou do fuzil. Juiz de Tiradentes e Gonzaga,
ele não teria hesitado em assinar a mesma sentença que o desembargador Diniz e seus colegas.
Mesmo assim a obra de Varnhagen se impõe ao nosso respeito e
exige a nossa gratidão, e mostra um grande progresso na maneira de
conceber a história pátria. Já não é a concepção de Gândavo e Gabriel
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Soares, em que o Brasil é considerado simples apêndice de Portugal, e a
história um meio de chamar a emigração, e pedir a atenção do governo
para o estado pouco defensável do país, sujeito a insultos de inimigos,
contra os quais se reclama proteção. Não é a concepção dos cronistas
ecclesiásticos, que vêem simplesmente uma província, onde a respectiva
Congrega­ç ão prestou serviços, que procuram realçar. Não é a de Rocha
Pita, atormentado pelo prurido de fazer es­t ilo, imitar Tito Lívio e achar
no solo americano cenas que relembrem as que passaram na Europa.
Não é a de Southey, atormentado ao contrário pela impaciên­cia de fugir
às sociedades do Velho Mundo, visitar países pouco conhecidos, saciar a
sede de aspectos originais e perspectivas pitorescas, a que cedem todos
os poetas transatlânticos, desde os autores de Atala e do Corsário até os
das Orientaes e Clara Gazul... Não. Varnhagen atende somente ao Brasil, e no correr de sua obra procurou sempre, e muitas vezes conseguiu
colocar-se sob o verdadeiro ponto de vista nacional.
É pena que ignorasse ou desdenhasse o corpo de doutrinas criadoras que nos últimos anos se constituíram em ciência sob o nome de
sociologia. Sem esse facho luminoso, ele não podia ver o modo por que
se elabora a vida social. Sem ele as relações que ligam os momentos sucessivos da vida de um povo não po­d iam desenhar-se em seu espírito
de modo a esclarecer as diferentes feições e fatores reciprocamente. Ele
poderia escavar documentos, demonstrar-lhes a au­t enticidade, solver
enigmas, desvendar mistérios, nada deixar que fazer a seus sucessores
no terreno dos fa­tos: compreender, porém, tais fatos em suas origens, em
sua ligação com fatos mais amplos e radicais de que dimanam; generalizar as acções e formular-lhes teoria; representá-las como consequências e demonstração de duas ou três leis basilares, não conseguiu, nem
consegui-lo-ia.
Fa-lo-á alguém? Esperemos que sim. Esperemos que alguém, iniciado no movimento do pensar contem­porâneo, conhecedor dos métodos novos e dos instru­mentos poderosos que a ciência põe à disposição
de seus adeptos, eleve o edifício, cujos elementos reuniu o Visconde de
Porto Seguro.
Sinais de renascimento nos estudos históricos já se podem perceber. Publicações periódicas vulgarizam velhos escritos curiosos, ou
memórias interessantes esclarecem pontos obscuros. Muitas províncias
com­põem as respectivas histórias. Períodos particulares, como a Revolução de 1817, a Conjuração Mineira, a Independência, o Primeiro Reinado,
a Regência, são tratados em interessantes monografias. Por toda parte
pululam materiais e operários; não tardará talvez o arquiteto.
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Que venha, e escreva uma história da nossa pátria digna do século de Comte e Herbert Spencer. Inspi­rado pela teoria da evolução,
mostre a unidade que ata os três séculos que vivemos. Guiado pela lei
do consensus, mostre-nos o rationale de nossa civilização, aponte-nos a
interdependência orgânica dos fenômenos, e esclareça uns pelos outros.
Arranque das en­t ranhas do passado o segredo angustioso do presente,
e liberte-nos do empirismo crasso em que tripudiamos. Mas, ah! bem
pouco digno serás de tua missão, oh! nobre pensador, se não sentires
a gratidão inundar-te o peito, se não sentires o respeito e a veneração
domina­rem-te a alma, se não ajoelhares fervoroso e recolhido ante o túmulo de um grande combatente, que jamais abandonou o campo – Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro.
João Capistrano de Abreu (1878)
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O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinquenta anos 87
Não é fácil distinguir a situação do pensamento histórico no Brasil durante este meio século sem fixar o papel eminente de quem deu o
primeiro passo para ampliar decisivamente suas perspectivas. Na obra
de Capistrano de Abreu, é certo que a erudição teria de predominar de
modo absorvente sobre a especulação, e só por vias indiretas é possível
determinar razoavel­mente o que fosse o “pensamento” histórico nela representado.
Entretanto, em nítido contraste com tantos dos seus predecessores, e refiro-me neste caso aos mais ilustres, o fato bruto e o simples
testemunho documental não imperam esmagadoramente nessa obra.
Nem, e muito menos, constituem aquela argila maleável de que fazem
construções imaginosas, próprias para lisonjear interesses, vaidades ou
paixões da hora que passa.
Desses riscos extremos, a que sucumbem, talvez, em sua maioria,
os estudiosos de nosso passado, achou-se admiravelmente preservada a
obra de Capistrano de Abreu. Pesquisador constante e nunca inteiramente satis­feito, tendo trabalhado mais do que qualquer outro depois de Varnhagen, para revelar, valorizar e bem aproveitar testemunhos escritos
de nossa formação nacional, ele sabia, no entanto, que esses documentos
só falam verdadeiramente aos que ousam formular-lhes perguntas precisas e bem pensadas. Sabia, em outras palavras, palavras de um grande mestre moderno – Marc Bloch –, que toda pesquisa histórica supõe,
desde os passos iniciais, que o inquérito tenha uma direção definida. No
princípio está o espírito. Nunca, em ciência alguma, a observação simplesmente passiva conduziu a resultados fecundos.
Qual o espírito, porém, qual o pensamento informador dessa obra
que deveria marcar o ponto de partida para um novo rumo nos estudos
históricos entre nós? Sabemos que em sua mocidade o autor não fora
in­fenso ao positivismo comtiano e que mais tarde aderira com mais firmeza e fervor às doutrinas de Spencer. Mas dos princípios positivistas e
evolucionistas só guardaria obstinadamente o senso da medida, da precisão, do rigor nos raciocínios, que retém a imaginação dentro de limites
87 Publicado originalmente no Correio da Manhã do Rio de Janeiro, em 15 de julho
de 1951. Reproduzimos aqui o texto contido em EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas, SP: Editora
da Unicamp; Rio de Janeiro, RJ: EdUERJ, 2008, p. 601-615. Agradecemos a Pedro
Meira Monteiro, e Paulo Franchetti (da Editora da Unicamp), consultados quanto
à questão da liberação do texto para reprodução, e aos filhos de Sérgio Buarque de
Holanda, Sergito, Álvaro, Heloísa, Ana, Francisco, Maria do Carmo e Maria Christina, que gentilmente permitiram sua publicação.
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plausíveis, além de uma sensibilidade aguçada à importância de ação
dos fatores cósmicos – da terra, do meio e do clima – sobre as instituições
humanas.
Em seus escritos, bem raras são as referências a historiadores con­
temporâneos. Em compensação, divulgou e traduziu alguns geógrafos (e
antropólogos), não só aqueles que, como Wappäus e Sellin, se ocuparam
expressamente do Brasil, mas ainda os que, como Kirchhoff, encaram de
maneira geral as relações recíprocas entre o homem e a terra. O valor
atribuído à paisagem natural na formação e evolução dos agrupamentos humanos bem se reflete nas palavras em que, comentando um dos
capítulos do livro de Sellin, escreve que nela o lado geográfico deveria
predominar com maior vigor.
Há, em sua caracterização desse livro, todo um programa de trabalho que, dentro dos limites cronológicos previstos, iria desenvolver
finalmente em sua pequena obra mestra – os Capítulos da história colonial –, publicada pela primeira vez em 1907; programa que diverge fundamentalmente de todas as tentativas anteriores do mesmo tipo. Aqui,
os aspectos mais nitidamente políticos e os que dependem da pura ação
individual, dificilmente redutíveis a qualquer determinismo, cedem passo a outros, aparentemente humildes e rasteiros, que mal encontravam
guarida na concepção tradicional da história.
Assim é que às guerras flamengas, por exemplo, um dos temas
diletos de antigos historiadores, consagra apenas trinta e poucas páginas, contra mais de cem devotadas ao povoamento do sertão; quase o
inverso da pro­porção relativa que têm essas matérias na primeira edição
da História geral de Varnhagen. E no povoamento do sertão distingue
expressamente entre as expedições colonizadoras, que alcançariam influência perdurável, e outras, que lhe parecem apenas despovoadoras e
devastadoras: só as primeiras o interessam vivamente. Na história do
extremo sul, volta-se com antipatia manifesta contra as fases bélicas,
revolucionárias, “heroicas”. À própria Inconfidência, movimento político
explicável pela influência de ideias adven­t ícias – que não se entranham
em nossa tradição vinda dos primeiros tempos da colónia –, reage por
um silêncio sintomático e certamente deliberado.
As consequências naturais dessa atitude não se fizeram imedia­
tamen­t e sentir em toda a sua extensão, mesmo no círculo dos seus
discípulos e companheiros diletos. Na obra de Calógeras, por exemplo,
que nos deu em Formação histórica do Brasil como um prolongamento
dos Capítulos, só as primeiras seções, inspiradas diretamente na obra
de Capistrano, refletem um pouco do mesmo espírito. No mais, vamos
encontrar apenas o investigador paciente e seguramente informado que,
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em Política exterior do Império, atentara principalmente para questões
políticas e diplomáticas. Seria injusto negar, entretanto, que em seu longo
estudo acerca das Minas do Brasil e sua legislação (impresso entre 1904
e 1905) e, sobretudo, na bre­ve e admirável síntese contida em sua conferência de 1912, na Biblioteca Nacional (O Brasil e seu desenvolvimento
econômico), Calógeras mostrou as amplas perspectivas que oferece a exploração de um domínio quase virgem: o de nossa história econômica.
Mais fecundo foi o exemplo de Capistrano e também o do Barão
do Rio Branco nos terrenos da investigação e informação erudita. As
anota­ções do primeiro à Guerra da Tríplice Aliança de Schneider e os
notáveis “Prolegômenos” do segundo à História de Frei Vicente do Salvador perma­necem modelos de trabalho que tiveram seguidores eméritos,
como Rodolto Garcia – que comentou a maior parte da História geral
do Visconde de Porto Seguro (o primeiro volume já fora anotado pelo
próprio Capistrano), além de crônicas coloniais, como os tratados de Fernão Cardim, os Diálogos das grandezas do Brasil e a Viagem de Claude
d’Abbeville – e também Eugênio de Castro, organizador e anotador da
edição do Diário de navegação de Pero Lopes de Souza, publicada em
1928 e reimpressa em 1940, por ocasião dos centenários portugueses.
Onde, porém, a ênfase maior dada a certos aspectos da história
geográfica e social se revelou em toda a sua importância foi na divulgação de documentos capazes de abrir novo sulco para estudos de história social ou econômica e não apenas política, bélica e genealógica. O
impulso mais decisivo nesse sentido foi a impressão, por iniciativa de
Washington Luiz – ele próprio historiador e atento ao valor das fontes
manuscritas –, das séries de Atas da Câmara de Santo André (1914) e de
São Paulo, iniciadas, estas em 1914, e ainda hoje em curso de publicação,
assim como a do Registro geral da Câmara de São Paulo (iniciada em
1917), dos Inventários e testamentos (iniciada em 1920) e das Sesmarias
(iniciada em 1921).
À impressão desses valiosos documentários deve-se o surto de estudos sobre o passado paulista, especialmente sobre a expansão geográfica do Brasil colonial. Sem os Inventários e testamentos não teria sido
possível um trabalho como o de Alcântara Machado sobre a Vida e morte
do bandeirante, publicado em 1930. E sem os textos municipais mal se
conceberiam os valiosos estudos de Afonso d’E. Taunay sobre São Paulo
no século XVI, prolongados depois em sua história da vila e da cidade de
São Paulo. O acesso mais fácil a esses documentos permitiu, além disso,
os numerosos trabalhos de reconstituição e revisão da história paulista
e das bandeiras, empreendidos por Washington Luiz, Basílio de Magalhães, Paulo Prado, Ellis Júnior, Américo de Moura, Carvalho Franco,
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Cassiano Ricardo, Aureliano Leite, Nuto Sant’Ana e muito especialmente
Afonso d’E. Taunay, cuja opulenta História geral das bandeiras paulistas começou a publicar-se em 1924 e só se completou neste ano de 1951,
abrangendo ao todo onze copiosos volumes.
A elaboração metódica da história das bandeiras paulistas pode
dizer-se que só se tornou realidade neste meio século, e isso graças especialmente aos textos exumados dos arquivos paulistas e ainda a publicações estran­geiras, como a dos documentos sobre o Paraguai jesuítico
impressos na Espanha pelo padre Pablo Pastells e os manuscritos do arquivo de Sevilha divulgados, por iniciativa de Taunay, em vários tomos
dos Anais do Museu Paulista. O movimento promete prosseguir nos próximos anos com os trabalhos recentes do historiador português Jaime
Cortesão e sobretudo com o preparo, a seu cargo, de numeroso material
manuscrito da Coleção de Angelis, cuja publicação há de ser brevemente
iniciada pela Biblioteca Nacional.
Outro problema de nossa história colonial que pôde ser explorado
e amplamente iluminado nestes cinquenta anos foi o das atividades da
Companhia de Jesus nos primeiros séculos da colonização. O renascimento dos estudos jesuíticos pode dizer-se que data do 3° centenário da
morte de Anchieta. O volume impresso justamente em 1900, onde se reúnem as conferências – entre outros, de Eduardo Prado, Joaquim Nabuco,
Teodoro Sampaio, Couto de Magalhães e Brasílio Machado – pronunciadas por motivo de celebração, é sem dúvida uma contribuição apreciável.
Não dispondo, contudo, de novas peças documentárias, os autores pouco
acrescentaram, do ponto de vista informativo, ao que já se sabia da atividade colonial dos inacianos. Dessa carência de documentação ressentem-se ainda algumas obras posteriores, como a do padre Luís Gonzaga
Cabral, ou mesmo o extenso trabalho sobre a liberdade dos índios e a
Companhia de Jesus, que J. M. Madureira apresentou em Congresso Internacional de História da América e se publicou em 1929.
É certo que a bibliografia relacionada com os jesuítas no Brasil não
deixara de enriquecer-se no intervalo que separa essa publicação das
co­memorações do tricentenário de Anchieta. Em sua maioria, porém, o
do­cumentário divulgado não se referia propriamente à província do Brasil. É o caso, por exemplo, da já citada compilação do padre Pastells e das
nume­rosas peças abrangidas no terceiro volume, de 1922, da História do
Rio Grande do Sul, do padre Carlos Teschauer. Todos esses papéis referem-se naturalmente ao extremo sul do Brasil. Sobre o extremo norte
existia, des­de 1901, o importante trabalho do historiador português João
Lúcio de Azevedo consagrado aos Jesuítas do Grão-Pará. Ao mesmo historiador deve­mos uma história do padre Vieira, impressa pela primeira
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vez em 1918, e também uma edição nova e enriquecida das cartas de
Vieira, que vieram enriquecer consideravelmente nosso conhecimento
da vida e obra do gran­de pregador.
Nos anos seguintes, a reunião das demais cartas jesuíticas – já
conhe­cidas – sobre o Brasil, em volumes copiosamente anotados, iniciativa da Academia de Letras, pôde reavivar o interesse pelo estudo da
participação dos padres da Companhia na colonização. O passo mais importante para a revelação ampla da obra da Companhia no Brasil seria
dado a partir do mesmo decênio de 30 pelo padre Serafim Leite. Seus
estudos e conferências reunidos em 1937 nas Páginas de história do Brasil constituíam apenas uma amostra, ampliada em 1940 com as Novas
cartas jesuíticas, da riqueza de peças documentais que o autor pudera coligir não só no Arquivo da Sociedade de Jesus em Roma, como ainda em
outros arquivos europeus. O principal resultado dessas pesquisas seria
a História da Companhia de Jesus no Brasil que principiou a publicar-se
em 1938 e de que em 1950 saiu o décimo e último volume. Não se poderia
esperar melhor remate para o meio século de investigações de inúmeros
historiadores em torno da obra de catequese e colonização empreendida
pela milícia de Santo Inácio.
Outro aspecto da história do Brasil que pode esclarecer-se largamente neste meio século é o relativo às questões com o Prata durante o
Império. Sobre a Guerra do Paraguai especialmente, os longos estudos de
Tasso Fragoso (1934) e Ramón Cárcano (1939-42), escritos um do ponto
de vista brasileiro e outro do argentino, fornecem elementos numerosos
para a boa compreensão dos diferentes episódios da campanha da Tríplice Aliança. Outros elementos puderam ser propiciados com a impressão,
em 1925, dos diários do exército em operações sob o comando de Caxias;
em 1936, do diário de viagem do Conde d’Eu; e, em 1910, das reminiscências de Dionísio Cerqueira. A publicação, em diversos volumes, de
trabalhos esparsos do Visconde de Taunay, incluindo material inteiramente inédito até 1924, data da edição, tornou acessíveis algumas das
contribuições fundamentais do autor da Retirada da Laguna.
Em muitas obras existentes sobre o assunto, a parte polêmica
ainda é considerável e às vezes dominante. Uma das mais recentes, a
do embaixador Cárcano, que pretende assumir posição de perfeita imparcialidade, encerra numerosas teses que não receberam aquiescência
tranquila no Brasil ou na própria Argentina. O ponto de vista brasileiro a
respeito de algumas dessas teses foi ultimamente defendido pelo sr. Júlio
de Mesquita Filho, em um dos seus Ensaios sul-americanos.
Divergências semelhantes subsistem, como seria de esperar,
a propósito das campanhas platinas do Primeiro Reinado. Um dos
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episódios dessas lutas deu motivo ao trabalho do embaixador José
Carlos de Macedo Soares sobre os Falsos troféus de Ituzaingó e, posteriormente, ao de Tasso Fragoso, onde estuda a Batalha do Passo do
Rosário. Sobre os acontecimentos que se seguiram às campanhas da
Cisplatina e precederam à guerra da Tríplice Aliança, há material farto
e documentado nos livros de Souza Docca (1919) e de Pelham Horton
Box (1927), este último em inglês e dedicado expressamente aos antecedentes do conflito. Hélio Lobo publicou, em Às portas da guerra
(1916), os resultados de suas pesquisas em arquivos di­plomáticos sobre
os fatos que precederam imediatamente às hostilidades. Em A invasão
paraguaia no Brasil, Walter Spalding apresentou-nos, em 1940, material ainda em grande parte desconhecido acerca do desenvolvi­mento
da guerra. E nestas últimas semanas, com a publicação do precioso Catálogo da Coleção Rio Branco, abrangendo 5122 entradas, e cujo fundo
é constituído de peças dos arquivos paraguaios, o nosso Ministério das
Relações Exteriores veio oferecer um manancial opulento aos estudiosos desse aspecto de nossa história militar.
Não se pode finalmente esquecer, entre os progressos realizados
neste meio século para o melhor conhecimento de nosso passado, a divulgação extensa de textos mais exatos e completos referentes à fase
inicial da ocupa­ç ão do solo. A publicação, em Portugal, dos três volumes da monumental História da colonização portuguesa – comemorativa do primeiro centenário da Independência e abrangendo textos
numerosos transcritos geralmente com zelo e precedidos de comentários eruditos – representou, por esse lado, uma iniciativa memorável.
E que teve logo quem, seguindo seu exemplo, tratasse de dotar-nos de
documentário mais idôneo e lucidamente inter­pretado. Basta lembrar,
a esse respeito, a já citada publicação do Diário de Pero Lopes, comentada por Eugênio de Castro; o novo texto português, exaustivamente
anotado da Nova gazeta de 1514, que organizou Clemente Brandenburger, e ainda a excelente edição e os valiosos comentários da carta de
Pero Vaz de Caminha, que devemos a Jaime Cortesão. No mesmo espírito, e já em 1922, publicara em Nova Iorque, The Cortes Society, o texto
fac-símile da História de Gândavo, enriquecido de importantes notas e
comentários de John B. Stetson Jr.
Com algumas reservas, talvez, na parte que se relaciona às campanhas sulinas do Império, o interesse por todos esses diferentes problemas que, através deste meio século, puderam ser melhor esclarecidos
– descobri­mento e ocupação da terra, atividade dos jesuítas e conquista do sertão –, deveu muita coisa, sem dúvida, à ação estimulante de
Capistrano de Abreu. Especialmente no que diz respeito à atividade da
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Companhia de Jesus, é bem conhecida sua opinião de que seria presunçoso quem escrevesse a história do Brasil sem antes se escrever a dos
jesuítas. Se isso fosse verdadeiro, cabe­r ia dizer que, já agora, é lícito escrever a história do Brasil sem presunção.
Independentemente desse estímulo, não faltaram, é certo, as tentativas muitas vezes laboriosas, mas fundadas num critério de apresentação sobretudo cumulativa dos fatos históricos, como ocorre na
considerável História do Brasil de Rocha Pombo. Entretanto, um esforço isolado que significou importante contribuição metódica para
o estudo de nosso passado é o volume extremamente condensado que
João Ribeiro destinou a fins didáticos. Pela sua estrutura e pelo sistema de exposição adotado, afasta-se esta obra das tendências mais generalizadas entre seus contemporâneos e antecessores brasileiros. Ao
menos na sua característica divisão do país em regiões históricas bem
definidas, parece filiar-se melhor ao programa contido nas Ideias gerais de Martius, impressas em 1845, e ainda à História do Brasil de H.
Handelmann, que, publicada em alemão há mais de um século, só teria
tradução portuguesa em 1931.
A existência de núcleos de estudiosos, congregados, em sua
generali­dade, à volta de instituições provinciais criadas nos moldes do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tornou possível, em certos
casos, o de­senvolvimento acentuado de estudos regionais já em princípios deste sé­culo. A orientação do Barão de Studart, por exemplo, que até
a sua morte, em 1927, esteve à frente do Instituto do Ceará, muito contribuiu certamen­te para o desenvolvimento de aturadas pesquisas sobre
o povoamento do litoral e do sertão do Nordeste. Igualmente importante
foi a atuação de um José Higino, de um Alfredo de Carvalho, de um Pereira da Costa, de um Rodolfo Garcia, em Pernambuco. Ou, na Bahia, de
um Borges de Barros, de um Braz do Amaral, de um Teodoro Sampaio,
de Orville Derby, de Toledo Piza, de Eduardo Prado. Publicações como
a revista do Arquivo Público Mineiro ou a do Instituto Histórico do Rio
Grande do Sul, entre outras, ampliaram, por vezes desordenadamente, o
mesmo esforço sobre outras áreas.
Se, numa caracterização feita a traço grosso, é possível dizer
que a obra de Capistrano de Abreu acentuou o papel de determinismo,
sobretu­do de determinismo geográfico (e também de certos aspectos antropológicos, mormente os que se relacionam à influência indígena) na
vida brasileira, não faltaram, neste meio século, os que fizeram recair o
acento tônico sobre certas fases do nosso passado, encaradas através da
atividade de um indivíduo. A obra exemplar no gênero – Um estadista
do Império, de Joaquim Nabuco –, publicada em 1889, oferece-nos um
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opulento painel do Segundo Reinado, onde o calor e a devoção filial não
chegam a perturbar a visão nítida do historiador.
Escrita necessariamente com outro espírito, e principalmente com
as vantagens – e as desvantagens – da maior distância no tempo, a principal obra de Oliveira Lima – o D. João VI no Brasil –, publicada em 1908,
continua sendo a mais ampla fonte de informações acerca do Brasil Reino.
A publi­cação do volume de Tobias Monteiro sobre a Elaboração da Independência, em que sobressaem os aspectos íntimos e anedóticos da vida
brasileira ao tempo do rei, não conseguiu relegá-lo a segundo plano.
Entre outras obras de fundo biográfico que representam considerável contribuição para o conhecimento do passado brasileiro, caberia ainda
lugar de destaque à série de escritos sobre a vida e obra de Mauá, que devemos a Alberto Faria, Castro Rebelo, Lídia Besouchet e Cláudio Ganns.
Estudos mais recentes, como os de Heitor Lira sobre Pedro II, Wanderley
Pinho sobre Cotegipe – de que só se publicou o primeiro volume –, de Alberto Rangel sobre D. Pedro I e a Marquesa de Santos, de Marcos de Mendonça sobre o Intendente Câmara, de Álvaro Lins sobre o Barão do Rio
Branco, servem para demonstrar a fertilidade de um gênero que a forma
espúria e menos recomendável constituída pelas modernas biografias romanceadas não conseguiu desmoralizar. Entre as obras biográficas que
representam contribuição insubstituível para a inteligência histórica, é
preciso assinalar particularmente a série de obras com que o sr. Otávio
Tarquínio de Souza vem alargando nosso conhecimento da fase da Regência – enquanto não aborda mais amplamente a do Primeiro Reinado –,
através de estudos em torno de algumas de suas figuras centrais: Evaristo
da Veiga, Bernardo de Vasconcelos, Feijó e José Bonifácio.
Ao lado dos estudos estritamente históricos – e sem falar nos de
história artística e literária, que não cabem nesta resenha –, devem mencionar-se, ao menos de passagem, algumas obras que, situadas embora
na periferia desses estudos, vieram enriquecê-los de modo apreciável.
Refiro-me em particular aos ensaios de investigação e interpretação social que passaram aos poucos a empolgar numerosos espíritos. Trabalhos parciais de Couto de Magalhães, Batista Caetano, Macedo Soares,
Rebouças, Sílvio Romero, José Veríssimo, Teodoro Sampaio, Orville Derby, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim, Alberto Torres,
entre outros, abriram sendas para um tipo de pesquisa que nossos historiadores mal tinham praticado.
O primeiro estudo sociológico de Oliveira Vianna – as Populações
meridionais do Brasil – é também obra de historiador. Em seu inquérito
sobre as populações do centro-sul do país, ele procurou aplicar primeiramente os métodos elaborados em parte por Le Play, à medida que se
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adaptavam à observação indireta. Em trabalhos posteriores, ampliou-o
com o recurso a doutrinas que davam predominância aos elementos raciais. Ao determinismo geográfico, afugentado de certo modo nos trabalhos iniciais, substituía-se agora uma espécie de determinismo biológico.
Simultaneamente, o autor dedicou-se a ensaios de história social e psico­
lógica inspirados por fatos e personalidades do Império, sobretudo do
Segundo Reinado, dando certa popularidade a um gênero de ensaios interpretativos já realizado com bom êxito por Euclides da Cunha, princi­
palmente em Contrastes e confrontos e À margem da história.
Novo e generoso impulso aos estudos interpretativos, com base em
amplo material histórico, deu-o o sr. Gilberto Freyre, a partir de 1933,
com a publicação de Casa-grande & senzala. Um conhecimento extenso
do passado rural, sobretudo de seu Nordeste, orientado pelo estímulo
que lhe forneceram os métodos difusionistas desenvolvidos por Franz
Boas e seus discípulos norte-americanos, e por numerosos estudos norte-americanos e europeus sobre contatos sociais e miscigenação, abriulhe perspectivas ideais para abordar nossa formação histórica. Para isso,
tomou como ponto de partida o triângulo representado pela família patriarcal, a grande lavoura e o traba­l ho escravo, analisando suas repercussões sociais em uma série de estudos cujo último volume ainda se
encontra em preparo. Embora sem desdenhar, nesses estudos, o fator
biológico na constituição da sociedade brasileira, deu maior ênfase – em
contraste com Oliveira Vianna – ao elemento cultural, entendido este
com o timbre que à palavra “cultura” vêm associando nu­merosos antropologistas. Cultura compreendida como o conjunto global de crenças,
hábitos, ideias, normas de vida, valores, processos técnicos, produtos e
artefatos, que o indivíduo adquire na sociedade antes como um legado
tradicional do que em resultado de sua própria atividade criadora.
Esse tipo de inquérito levou-o naturalmente a desenvolver, em
estudos posteriores, principalmente em Nordeste, o exame das relações
entre o homem e a terra nas áreas açucareiras que se alongam pelas regiões lito­râneas entre a Bahia e o Maranhão. Associou-lhes a designação
de critério ecológico, embora pouco tenham a ver, além do nome, com as
teorias de ecologia humana desenvolvidas sobretudo nos Estados Unidos,
e particu­larmente em Chicago, a partir de 1921, por Park e Burgess.
A bibliografia histórica do decênio de 1930 é largamente ocupada
por escritos onde a interpretação elucidativa, e às vezes interessada e
mesmo deformadora dos fatos, visa a explicar tais fatos ou a caracterizá-los em sua configuração especificamente nacional. A importância
de muitos desses escritos, suscitados em parte pelas perplexidades de
uma época de crises e transformações, exigiria estudo à parte. E embora
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contribuíssem, muitos deles, para dar novo rumo aos estudos históricos,
não seria possível na presente resenha, sem alongá-la em demasia, ir
muito além de uma enu­meração necessariamente incompleta.
Nesse caso encontra-se, por exemplo, Retrato do Brasil, de Paulo
Prado, onde o historiador de Paulística, intimamente vinculado à “escola” de Capistrano de Abreu, se propõe, apoiado em copiosa informação
his­tórica, mostrar que o país ainda dormia “seu sono colonial” e, dois
anos antes do movimento de 1930, enuncia a necessidade de se “fazer tábua rasa para depois cuidar da renovação total”. Publicando, já em 1930,
a Política geral do Brasil, que além do ensaio interpretativo é uma síntese por vezes sedutora, embora necessariamente parcial, da história do
Segundo Reinado e da Primeira República, o sr. José Maria dos Santos
adota atitude, de certo modo, oposta. Contra os males do presente, que
procura apresentar como fruto de um processo involutivo, nascido da
“deformação republicana”, acena sem hesitar para remédios do passado. Ao presidencialismo contrapõe as vantagens do parlamentarismo. E
a própria Revolução de 1930 não lhe parece que virá interromper, mas
antes agravar, os danos do princípio presidencial, pois prepara o advento
do caudilhismo e da “era do cavalo”.
Em numerosos estudos de “formação”, publicados pela mesma
época, encontra-se insistente o apelo àquilo que um ensaísta norte-americano de­nomina o “passado utilizável”, para a composição de quadros
empolgantes que se apresentam ao mesmo tempo como terapêutica ideal
para todas as nossas mazelas. Essas supostas reconstruções, que levadas
à sua forma extrema desembocariam em manifestações totalitaristas,
especialmente na doutrinação integralista, mal interessam, em sua generalidade, à pesquisa historiográfica.
Mais interessantes, por todos os aspectos, são sem dúvida as
tendên­cias de explicações de paisagens regionais, em que um critério
por vezes apologético não impede a iluminação de alguns problemas
históricos muitas vezes descurados. Em seu livro sobre a Formação
do Rio Grande do Sul, que retoma o assunto já abordado em ensaio
breve, mas extremamente condensado de Rubem de Barcelos, Jorge Salis Goulart procura caracterizar o passado e presente das populações
sulinas com o socorro da história geográfica, da psicologia social, da
sociologia... Servindo-se de critérios semelhantes, o sr. Alfredo Ellis
Júnior já abordara anteriormente em sucessivos estudos, os problemas
da formação paulista. E o sr. Cassiano Ricardo, em Marcha para o oeste, já parte do regional para o nacional, do passado para o presente e
o futuro, tentando um esforço paralelo ao que desenvolvera Gilberto
Freyre no Nordeste.
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A interpretação social e psicológica da vida brasileira, tomada em
seu conjunto, e independentemente do ângulo regional, forneceu-nos,
pela mesma época, outras obras significativas, e entre elas convém destacar a que publicou em 1936 o sr. Afonso Arinos de Melo Franco sob o
título de Conceito de civilização brasileira. Nos anos seguintes e mesmo
no início do decênio seguinte, perdura o interesse pelos estudos interpretativos. De 1943 é A cultura brasileira, do sr. Fernando de Azevedo,
obra extensa, onde o autor, catedrático de sociologia, familiarizado com
métodos de pesquisa social – especialmente os que dependem das teorias
durkheimianas –, aplica-os em alguns casos ao exame de nossa evolução
social, cultural e política. Em Formação da sociedade brasileira, impressa no ano seguinte, o sr. Nelson Werneck Sodré ambiciona ainda,
através da inquirição do passado, servir ao presente e “fornecer instrumentos aplicáveis aos cami­n hos futuros”.
Por menos que esses trabalhos devam inscrever-se na literatura
historiográfica, tomada a palavra stricto sensu, é forçoso admitir-se que
partici­pam de uma tendência que se reflete vivamente em outras obras
da mesma época, onde a interpretação pessoal, endereçada a um alvo
determinado, cede passo ao puro esforço de elucidação. Na obra já numerosa do sr. Pedro Calmon, onde se incluem trabalhos sobre a expansão
baiana e a Casa da Torre, figura, ao lado da grande História do Brasil,
também uma História social do Brasil, que em seu terceiro volume já
abrange a fase republicana. Esse interesse pelo social – e no caso também pelo econômico – encon­t ra-se ainda nos estudos históricos do sr.
Afonso Arinos de Melo Franco, principalmente os que abordam nossa
civilização material, a evolução da economia brasileira e a História do
Banco do Brasil, interrompida com o primeiro volume.
Na série de estudos do sr. J. F. de Almeida Prado iniciada com Primeiros povoadores do Brasil e que já compreende, por ora, oito volumes,
é utilizado um opulento acervo de testemunhos, sobretudo de viajantes
estrangeiros, para a exposição e, não raro, a revisão de fatos da história
social e econômica do Brasil durante os séculos iniciais da colonização.
Mesmo numa relação bastante incompleta, como a presente, não
seria lícito esquecerem-se certos trabalhos dedicados à história regional, como os de Aurélio Porto e Borges Fortes sobre a colonização do
extremo sul, do sr. Artur César Ferreira Reis sobre o extremo norte, do
sr. Alberto Lamego sobre a região de Campos dos Goitacazes, do sr. Tavares de Lira sobre o Rio Grande do Norte, do sr. Oswaldo Cabral sobre
Santa Catarina, do sr. Aluízio de Almeida sobre o sul de São Paulo, do sr.
Noronha Santos, Luiz Edmundo, Vivaldo Coaracy e Gastão Cruls sobre
o Rio de Janeiro, de Estevão de Mendonça e do sr. Virgílio Correia Filho
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sobre Mato Grosso, do sr. Romário Martins sobre o Paraná, do cônego
Raimundo Trindade sobre a arquidiocese de Mariana, de Rego Monteiro
sobre a Colônia do Sacramento, dos srs. José Honório Rodrigues e José
Antônio Gonsalves de Mello sobre o domínio holandês no Nordeste. Da
obra do sr. Gonsalves de Mello, diretamente influenciada por ideias e
escritos do sr. Gilberto Freyre, escreve o sociólogo pernambucano que é
“a mais completa, mais minuciosa e mais compreensiva que hoje existe
em qualquer língua” sobre o tempo dos flamengos.
Ao lado dos estudos de “formação” já abordados, deveria alinhar-se
naturalmente o que devotou o sr. Caio Prado Júnior, em 1942, à interpreta­
ção e explicação do Brasil dos nossos dias, através de sua evolução histórica, desde as vésperas da Independência. Obra corpulenta e ambiciosa, pois
o volume de amplas proporções já publicado quer ser apenas o primeiro
de uma série talvez considerável, poderia tomar lugar entre os vastos estudos histórico-sociológicos dos srs. Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e
Fernando de Azevedo. A inquirição histórica baseia-se aqui num critério
interpretativo fornecido pelas doutrinas do materialismo histórico. Fiel,
todavia, aos princípios teóricos que assenta, o estudo do sr. Prado Júnior
focaliza muito mais diretamente os problemas econômicos, que lhe parecem, em última instância, os decisivos para a elucidação do passado e do
presente. E essa ênfase ganha pela economia aponta para uma direção
que tendem a tomar, cada vez mais, entre nós, as pesquisas históricas,
abrindo-lhes territórios até aqui mal explorados.
O impulso mais poderoso para esse tipo de pesquisa iniciara-se
aliás, com a publicação dos dois volumes da História econômica do Brasil de Roberto Simonsen, onde se abrange grande parte do curso dado
pelo autor na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Parte apenas,
pois inclui unicamente o período colonial. A outra parte, que não chegara a ser redigida, deveria envolver as questões mais embaraçosas das
fases im­perial e republicana. É inevitável pensar-se, hoje, que a abordagem dessas questões só será realizável através de um trabalho prévio
empreendido por diferentes especialistas que se dediquem, cada qual, a
determinada época e a determinados problemas, não por meio de outras
sínteses onde o particular tende a esfumar-se e a perder-se em proveito
de alguma ilusória visão de conjunto.
Alguns aspectos de nossa história econômica e financeira já puderam ser abordados, sem dúvida, através de estudos monográficos quase
exaustivos. Neste caso estaria, em primeiro lugar, a monumental História do café no Brasil, do sr. Afonso d’E. Taunay, cujos quatorze volumes,
repletos de minuciosas informações, são bem dignos do autor da História
geral das bandeiras. Sobre aspectos gerais de nossa história financeira
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e monetária existem desde há muito trabalhos valiosos, a começar pelos de Sebastião Ferreira Soares, ao tempo da monarquia, e em seguida
pelos de Amaro Cavalcanti, Pandiá Calógeras, Severino Sombra, até os
mais recentes, como o do sr. Dorival Teixeira Vieira. Sobre a história da
indústria extrativa na Amazônia há o trabalho moderno do sr. Artur César Ferreira Reis, que mereceria ser am­pliado. E em São Paulo a sra. A.
P. Canabrava, apoiando-se em recursos da historiografia moderna, tem
abordado várias questões relacionadas ao comércio colonial, especialmente ao comércio de contrabando com o Prata, e à lavoura açucareira
no norte do Brasil e nas Antilhas.
A complexidade desses assuntos está a requerer cada vez mais a
utili­zação dos métodos que se vêm desenvolvendo em países onde existe
longa tradição de estudos históricos especializados. E a preocupação de
assimilar alguns desses métodos e aplicá-los a problemas brasileiros já
é hoje o aspecto dominante e creio que o mais auspicioso do pensamento
histórico entre nós. A esse propósito não se poderá acentuar demasiado
a influência que tem cabido nos últimos anos aos mestres estrangeiros
contratados para os institutos universitários. Referindo-se à criação, em
1934 e 1935, das nossas primeiras faculdades de filosofia e letras – a de
São Paulo e a do Distrito Federal –, o sr. Fernando de Azevedo pôde notar em A cultura brasileira a carência, sensível àquela época, de personalidades realmente eminentes nos vários domínios da especialização
intelectual e científica. Impusera-se, para o magistério de todas as disciplinas, o recurso a mis­sões de professores estrangeiros – franceses,
italianos, norte-americanos, alemães, ingleses – contratados em seus
países para lecionarem nas novas faculdades.
No que se refere à história, inclusive à história do Brasil, em seus
diferentes setores, foi certamente decisiva e continua a sê-lo, sobre as
novas gerações, a ação de alguns daqueles mestres: de um Jean Gagé,
por exemplo, e de um Fernand Braudel em São Paulo; de um Henri Hauser e de um Eugène Albertini, na hoje extinta Universidade do Distrito
Federal. O que puderam realizar até aqui, no sentido de sugerir novos
tipos de pesquisa e suscitar problemas novos, é apenas sensível, por ora,
em certos tipos de trabalho – cursos especiais, seminários, teses de concurso –, que pela sua mesma natureza hão de fugir ao alcance de um
público numeroso. Não parece excessivo acreditar, entretanto, que neles
já se encontra o gérmen de um desenvolvimento novo e promissor dos
estudos históricos no Brasil.
Sérgio Buarque de Holanda (1951)
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Transfigurações Cívicas:
A terra fluminense, Contos pátrios e
A pátria brasileira
1
Cleber Santos Vieira 2
Resumo
Este artigo analisa temas, títulos e abordagens de alguns contos publicados por Olavo Bilac e Coelho Neto no livro A terra fluminense (1898)
que, sob nova roupagem, foram relançados em outras duas publicações dos mesmos autores – Contos pátrios (1904) e A pátria brasileira
(1909). Busca-se demonstrar que os textos foram transfigurados, deixando de representar uma face regional da educação cívica para serem
imortalizados enquanto expressões do civismo brasileiro.
Palavras-chave
Livro de leitura, educação cívica, Primeira República
Recebido em 7 de maio de 2008
Aprovado em 18 de novembro de 2008
79
1
Esse artigo é parte da tese de doutorado Entre as coisas do mundo e o mundo
dos livros: prefácios cívicos e impressos escolares no Brasil Republicano defendida
junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (FE/USP), sob orientação do Prof. Dr. Nelson Schapochnik. Versão
preliminar desse texto foi apresentada como comunicação oral durante o Simpósio
Internacional – Livro Didático: Educação e História, realizado de 05 a 08 de novembro de 2007 na FE/USP.
2
Programa de Mestrado em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba, São
Paulo. E-mail: [email protected]
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Civic Transfigurations:
A terra fluminense, Contos pátrios and
A pátria brasileira
Cleber Santos Vieira
Abstract
The article analyses themes, titles and approaches present in short
stories published by Olavo Bilac and Coelho Neto in the book A terra
fluminense [The Fluminense Land] (1898), which appeared in restyled
form as two other books by the same authors, Contos pátrios [Short
Stories of the Fatherland] (1904) and A pátria brasileira [The Brazilian
Fatherland] (1909). The intent is to demonstrate that the texts were
transfigured, ceasing to represent a regional face of civic education and
becoming immortalized as expressions of Brazilian civism.
Keywords
Reading Book, Civic Education, First Republic
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C
ontos pátrios e Pátria brasileira são correntemente
lembrados como símbolos da produção didática destinada à formação
cívica dos estudantes brasileiros. Compõem o repertório dos livros de
leitura destinados ao ensino primário que, no início do período republicano, projetaram Olavo Bilac e seus parceiros de letras, Manoel Bonfim
e Coelho Neto, enquanto expoentes de um nacionalismo engajado e que
fizeram da educação lugar privilegiado para suas ações. Por eles, perfilaram algumas das mais representativas imagens que os adeptos do novo
regime quiseram fixar sobre o seu próprio tempo.
Tais livros tornaram-se objetos de pesquisa orientados por diferentes enfoques e por diferentes áreas. Figuraram, por exemplo, no
estudo realizado por Marisa Lajolo sobre literatura e escola na Primeira República. Foram também estudados por Circe Bittencourt em dois
momentos: mediante a inserção do civismo no ensino de história das
escolas paulistas (1985) e enquanto componentes da história do livro
didático no Brasil (1993) 3 . Neste caso, os livros de Bilac e Coelho Neto
3
81
Registre-se que esse estudo compõe um campo de pesquisa sobre livro didático,
delineado no Brasil a partir do final da década de 1980 e, sobretudo, na década de
1990. As investigações no Brasil foram enriquecidas pelas contribuições oriundas
principalmente da história cultural e por autores alinhados a diferentes campos
de estudo: práticas de leitura com Roger Chartier; André Chervel e as disciplinas
escolares; Dominique Julia e a questão da cultura escolar além, é claro, do próprio
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projetam-se como desdobramento da produção nacional destinada ao
ensino elementar que, iniciada no Império, ganhou impulso decisivo no
projeto educacional republicano. Os valores responsáveis pela uniformização do modelo de sociedade pretendido passavam pela organização
do sistema escolar, na adequação de níveis de ensino e na adoção de
livro de leitura único.
O presente artigo busca demonstrar outras possibilidades analíticas sobre esses mesmos objetos. A abordagem incide nos procedimentos
empregados pelos autores dos livros analisados ao transferirem temas,
textos e prefácios produzidos a partir de referências regionais para produções destinadas a um público escolar de feição nacional. O enfoque
desdobra-se na análise genealógica dos textos. O que não implica pensar
A terra fluminense, Contos pátrios e A pátria brasileira enquanto discursos lineares, mas enquanto elementos do discurso cívico que, com sutis
mudanças, transfiguraram o foco narrativo.
Parte-se do pressuposto de que o prefácio, os textos e os temas desenvolvidos por Bilac e Coelho Neto em A terra fluminense constituem
o discurso cívico preliminar do conjunto da produção didática da dupla. Como tal, anteciparam abordagens de cunho patriótico ou de caráter nacional que no início do século XX, alcançaram notoriedade em
livros de maior envergadura comercial: Contos pátrios, A pátria brasileira. Verificou-se que a preocupação republicana de formar cidadãos
foi assegurada, muitas vezes, pelo enquadramento de textos e títulos ao
imaginário republicano delineado por autores, editoras e Estado. Para
viabilizar a reflexão, consideramos, inicialmente, o prefácio como categoria de análise do livro na perspectiva formulada por Gérard Genette,
ou seja, “toda especie de texto liminar (preliminar o pos liminar) autoral
o alógrafo que constituye un discurso producido a propósito del texto que
sigue o que precede”4 . Esse referencial permitiu situar o prefácio de A
terra fluminense como ponto de partida da análise abrindo, desse modo,
um diálogo mais amplo com outros estudos acadêmicos sobre os livros
de civismo na primeira república.
manual didático a partir de Alain Choppin. No Brasil, as teses de Circe Bittencourt
[Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. São Paulo,
1993 (Tese de Doutorado, FFLCH-USP)] e Kazumi Munakata (Produzindo livros
didáticos e paradidáticos. São Paulo, 1997 (Tese de Doutorado, PUC-SP) são expressões desse processo.
4
82
GENNETE, Gérard. Umbrales. México: Siglo Veintiuno Editores, 2001. p.137. Outros
autores enquadram prefácios na categoria protocolos de leitura. Ver: SHOLES, Robert. Protocolos de leitura. Lisboa: Edições 70, 1991. CHARTIER, Roger. A história
cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. DERRIDA, Jacques.
La dissémination. Paris: Éd. Du Seuil,1972.
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Marisa Lajolo, no estudo sobre Bilac e a literatura escolar na primeira república, fala, em dois momentos, da importância do prefácio do
livro Poesias infantis e da “Advertência” de Através do Brasil para compreender a função do livro de leitura na formação cívica dos estudantes:
“a importância de um relacionamento afetivo aluno/texto, por exemplo,
já fora intuída, explicada e prometida por Bilac e Bomfim no prefácio de
Através do Brasil”5 . Mais adiante, comenta: “Contos pátrios é de 1904,
mesmo ano das Poesias infantis, em cujo prefácio Bilac frisa suas preocupações didáticas. Parece justo, portanto, estender tais objetivos a todos
os seus textos didáticos produzidos na época.”6
As proposições estão absolutamente corretas. Bilac afirma e reafirma que o sentimento nacional não pode ser despertado apenas pelo
caminho da razão, mas principalmente pelo coração. Afirma e reafirma
também que a intenção do livro não é compor uma obra de arte, mas
contribuir, por meio da literatura, para a educação cívica e moral das
crianças brasileiras.
A questão é de outra ordem: os protocolos de leitura de Através do
Brasil e Poesias infantis são formações discursivas originais? Podem ser
estendidas a outras obras porque constituem um marco inaugural na
obra de Bilac, no sentido de apresentarem as intenções gerais da produção didática dos autores?
Considerando a categoria analítica denominada formação discursiva por Michel Foucault7, a resposta é não. A Advertência e o Prefácio
das obras acima citadas redimensionaram o próprio discurso preliminar na produção didática de civismo, contido no protocolo de leitura que
acompanhou o conjunto de textos dedicados à formação cívica do povo
fluminense. O civismo praticado nas publicações do início do século XX
seriam pontos amarrados a um sistema de remissões a outros livros.
São recomeços e ocultações: recomeçam uma prática cívica de matriz
republicana e ocultam a transfiguração operada no objeto do discurso
cívico regional.
O primeiro aspecto a ser considerado é de que o esquecimento de
A terra fluminense nos conduz a lembrar as semelhanças entre o prefácio
de 1898 e o de Poesias infantis. No primeiro caso, o manual é precedido
do seguinte discurso:
83
5
LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e a literatura escolar
na República Velha. Rio de Janeiro: Globo, 1992 . p.25.
6
Idem. Ibidem, p.61.
7
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1986. p.25 e segs.
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Neste livro, a História e a Fantasia andam unidas; e procuramos
aproveitar os assuntos, de maneira que pudessem eles interessar
não somente a inteligência, mas também o coração das crianças.
[...]
Quisemos fugir da aridez, da forma complicada e da banalidade, ao
mesmo tempo; dirão os competentes se saímos bem na empresa. E
se nessas poucas páginas sinceras a criança aprender a amar a sua
pátria, estarão satisfeitos os desejos de Coelho Neto e Olavo Bilac.8
No prefácio de Poesias infantis a conclusão de Bilac é a seguinte:
Não sei se consegui vencer todas essas dificuldades. O livro aqui está.
É um livro em que não há os animais que falam, nem as fadas que
protegem ou perseguem crianças, nem as feiticeiras que entram pelos buracos das fechaduras; há aqui descrições da natureza, cenas de
família, hinos ao trabalho, à fé, ao dever; alusões ligeiras à história da
pátria, pequenos contos em que a bondade é louvada e premiada.
Quanto ao estilo do livro, que os competentes julguem. Fiz o possível
para não escrever de maneira que parecesse fútil demais às crianças.
Se a tentativa falhar, restar-me-á o consolo de ter feito um esforço digno. Quis dar à literatura escolar do Brasil um livro que lhe faltava.9
Em segundo lugar, há de se destacar que no prefácio de A terra fluminense, livro de educação cívica para crianças, Coelho Neto e Olavo Bilac
declararam a finalidade desta publicação, afirmando: “anima-nos a convicção de que não poupamos esforços em escrever um livro original, em
que a criança encontrará, sumariamente indicada, toda a vida política,
toda a vida moral e toda a vida comercial da Terra Fluminense.”10 . E em
um excerto posterior acrescentaram “a grande e a pequena lavoura, as
origens da civilização e do trabalho, as indústrias, os aspectos da natureza, o comércio, a formação dos núcleos geradores de progresso, a evolução
política, o passado, o presente e o futuro do Estado do Rio de Janeiro, estão
parecem-nos, resumida e claramente, contidas nesta obra” 11.
8
BILAC, O.; COELHO NETO. A terra fluminense. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1898, p.03.
9
Idem. Ao leitor. Apud: LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a
literatura infantil brasileira: autores e textos. 4. ed. São Paulo: Global, 1986. p. 273-274.
10 Idem. A terra fluminense. op. cit., p.03. Registre-se o trabalho pioneiro de Marisa
Lajolo. Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e a literatura escolar na República Velha. op. cit., 1992.
11 BILAC, O.; COELHO NETO. A terra fluminense. op. cit.
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O discurso preliminar revela o lugar, o momento, os destinatários
e os vínculos históricos que recobriram a produção do livro. Nesse sentido, as afirmações de Bilac e Coelho Neto não deixam margem a qualquer
tipo de questionamento quanto ao caráter regional do livro A terra fluminense. Trata-se de um impresso escolar declaradamente escrito com a
finalidade de despertar o amor à pátria fluminense.
As semelhanças dos discursos e anterioridade de A terra fluminense
permitiram indagar o conjunto dos livros elevando a análise à modalidade
de crítica textual. Conduziram, então, o pensamento sobre o alcance das
interpretações que situam os livros A pátria brasileira e Contos pátrios
como expressões de um engajamento patriótico completamente associado
à comunidade política imaginada. Textos como O lenhador, Pátria nova,
Uma vida, Civilização e Quinze de novembro, sob títulos diferentes, foram
produzidos sob o prisma do patriotismo provinciano, que visava potencializar a educação cívica do estudante fluminense.
Todavia, foram reconhecidos anos mais tarde em Contos pátrios e
A pátria Brasileira, já quando prevalecia a concepção de educação cívica
de feições nacionalistas. Alcançaram, inclusive, o status de best sellers.
Contos pátrios12 , por exemplo, nos sessenta e quatro anos de edições e
reedições, a Livraria Francisco Alves vendeu cerca de 250 mil exemplares13 . Para isso, houve a conjunção de múltiplos fatores estruturados
em torno da história do livro didático e do livro de leitura no início do
século XX.
É importante lembrar que Olavo Bilac e Coelho Neto participaram
ativamente das mudanças ocorridas nas décadas situadas entre a eclosão
do movimento republicano (1870) e o término da Primeira Guerra Mundial
(1918). Em suas biografias, inscrevem-se marcas de intelectuais politicamente engajados. No Rio de Janeiro, logo após a Proclamação da República,
Coelho Neto assumiu as funções de secretário de governo e dos negócios
12 Os biógrafos de Bilac registram dados contraditórios acerca do ano de produção e
publicação do livro. Leonardo Arroyo afirma que “Contos pátrios e Poesias infantis
tiveram sua propriedade adquirida pela Livraria Francisco Alves no ano de 1896. A
data da primeira edição é ignorada, assim como onde foram impressos esses dois
volumes. A segunda edição desses livros, porém, é de 1906 e impressa em Paris.”
(ARROYO, Leonardo. Olavo Bilac. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos. s/d. p.46) Já
Marisa Lajolo, baseada em E. Pontes, outro biógrafo de Bilac, data em 1904 a publicação dos dois volumes escritos em circunstância pitoresca: endividados, Coelho
Neto e Olavo Bilac “teriam ido à Editora Francisco Alves, dando ao livreiro a opção:
o que lhe interessa mais? Um romance de aventuras, ou uma antologia de contos
infanto-juvenis? Escolhida a segunda sugestão, quatro dias depois tinha o editor
em mãos o original de Contos pátrios”.
13 LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola. op. cit. p.61.
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do Estado, mesma instituição onde Olavo Bilac, em 1891, foi nomeado secretário do interior. Em 1906, durante a turbulenta gestão Pereira Passos
na Capital Federal, Olavo Bilac tornou-se o secretário do prefeito. Por sua
vez, Coelho Neto ocupou uma Câmara Federal eleito deputado pelo Estado
do Maranhão em 1909 e reconduzido em 1917. Já Olavo Bilac, abolicionista
e republicano ficou conhecido na vida política pelo crucial papel desempenhado nas campanhas públicas em defesa do serviço militar obrigatório,
da gratuidade do ensino e, principalmente, pela intensa participação nas
atividades desenvolvidas pela Liga de Defesa Nacional.
A integração a esta rede de sociabilidade, porém, foi apenas um
dos fatores que proporcionaram a repercussão do livro e dos autores.
Há de se destacar, ainda, a incorporação de Olavo Bilac e Coelho Neto a
outros segmentos da cultura letrada que favoreceram a produção e circulação de livros didáticos. Com efeito, foi decisiva a incorporação de
Bilac e Coelho Neto ao repertório de autores contratados pelo empreendedor Francisco Alves. Conforme indicou Halwell, a expansão da Editora Francisco Alves no mercado de livros didáticos contou com aguçada
sensibilidade do editor em recrutar potenciais autores, inclusive de outras editoras14 . Depois, é preciso considerar que a fortíssima repercussão comercial dos livros foi favorecida pelo papel ocupado pelo livro de
leitura no ensino primário no decorrer das primeiras décadas do novo
regime. Ampliaram-se os espaços do conteúdo e de temas nacionalistas.
Como explicou Circe Bittencourt “as mudanças nos programas da escola
elementar, durante a fase republicana, eram sustentadas por propostas
que conferiam ao livro de leitura proeminência sobre os demais.”15 Articulado a esse processo, cite-se ainda a expansão do sistema público de
ensino operacionalizado sob o regime republicano tendo São Paulo como
centro irradiador. Tal fato, facilitou a circulação dos livros, considerados
apropriados para uniformizar a formação dos estudantes, instituições e
modelos de ensino controlados pelo Estado16 .
A terra fluminense, não fez parte do circuito de produção didática
de circulação nacional, sendo, inclusive, um manual esquecido, quando
muito é citado como parte da bibliografia dos autores. Nesse sentido, a
análise dos textos de Bilac e Coelho Neto permitiu uma viagem pelo mundo das transfigurações cívicas operadas no deslocamento do patriotismo
regional em direção ao nacional. Note-se: esta operação transfigurativa
14 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp. 2005. p. 280-294.
15 BITTENCOURT, Circe. Livro Didático e conhecimento histórico: uma história do
saber escolar. São Paulo. (Tese de Doutorado, USP), 1993.
16 RAZZINI, Márcia de Paula Gregório. Livro didático e expansão escolar em São
Paulo. Língua Escrita, n. 1, p. 19-43, jan/abril, 2007.
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ocorreu deixando vestígios, cuja percepção foi possível através da microscópica observação da estrutura interna dos textos. No centro deste
processo, Bilac e Coelho Neto, amantes da pátria fluminense, tornam-se
expoentes do civismo brasileiro. Morrem os autores regionais e nascem
os grandes literatos da comunidade política imaginada. A nossa tarefa,
então, a partir desse ponto, foi “localizar o espaço deixado vazio pelo
desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição das lacunas e das
fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto”17.
Seria possível conjeturar sobre a importância dos acontecimentos
históricos pertinentes à proclamação da República transcorridos na Capital Federal. O Rio de Janeiro constituiria, então, fonte de inspiração ou
modelo exemplar do culto à comunidade política recém imaginada como
república. Porém, na conclusão do discurso preliminar, Bilac e Coelho
Neto revelaram o desejo de ensinar as crianças a amar sua pátria, indicando que ao designar ”terra em que se nasceu” a palavra pátria ainda
apresentava sentidos ambivalentes. Ou seja, no final do século XIX, os
sentidos de pátria abarcavam tanto a província quanto o país. A maneira
pela qual Olavo Bilac transitou por essa indeterminação foi de maneira
bastante elástica. Todavia, para além das conexões regionais e nacionais, na intimidade, Olavo Bilac postulava outro conceito de patriotismo.
Conforme registro de Elias Thomé Saliba, em carta endereçada de Paris
a Coelho Neto em 1904, Bilac dizia: “aos vinte e cinco anos, quando pensava que tinha de sair de Paris chorava de raiva. E hoje não posso passar
aqui quatro meses sem ter saudade da porcaria, do mijo, da estupidez, do
mexerico, da safadeza da pátria. [...] O patriotismo é como o reumatismo,
é um achaque da velhice.”18
A plasticidade e ambigüidade da idéia de patriotismo sincronizavam-se, evidentemente, aos vários movimentos nacionalistas que, por
todas as partes, quebravam as fronteiras provincianas da idéia de pátria,
relançando-a como expressão das comunidades nacionais imaginadas19 .
Dicionários de relevante circulação nacional atestaram o caos. Foi o
caso de Caldas Aullete, que, na edição de 1883, manifestava a transição
histórica do termo e, portanto, as ambigüidades latentes entre amar a
17 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Portugal: Passagens, 1992. p .41.
18 Apud: SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso. A representação humorística na História brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 194.
19 Refiro-me ao conceito de nação como “comunidade política imaginada” na acepção proposta por: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Lisboa: Edições70, 1991.
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província e amar o Brasil: Pátria – “país ou estado em que cada um nasceu, e ao qual pertence como cidadão. Província, cidade, vila, etc. em que
se nasceu; terra natal.”20
Em A terra fluminense, o texto “A República”, explicita a confusão
em torno da idéia de patriotismo de coloração fluminense e de temas
latentes na nação republicana:
A República
Era o dia 15 de novembro de 1889.
Em Niterói, na parte das barcas Ferry, aglomerava-se a multidão
ansiosa. Sabia-se que o exército nacional, obedecendo as ordens
do glorioso marechal Deodoro da Fonseca, estava no Campo da
Aclamação em linha de batalha cercando o quartel general.
Dizia-se que a República havia sido proclamada e de instante em
instante crescia a ansiedade dos que esperavam notícias. As barcas que partiam iam cheias de gente; os comentários se multiplicavam; havia incrédulos que achavam absurdo o boato; mas havia
também quem achasse natural a confirmação daquilo que os bons
patriotas esperavam havia tanto tempo.
As três horas da tarde, de uma barca que chegava, saltou um moço,
dando vivas à República a Deodoro e a Benjamin Constant. E foi
dos seus lábios que todos ouviram a grande notícia. O governo do
Império capitulara. Deodoro aclamado pelo povo e pela tropa, era
vencedor: os populares reunidos no paço da câmara municipal
acabavam de declarar estabelecido o regime republicano. Ouvindo isso a multidão se agitou com entusiasmo, e um só agito delirante saiu de todas as bocas.
— Viva a República!
Então um menino, que acompanhando o pai, assistia, àquela cena,
perguntou:
— O que é isto papai? Que é a república?
O pai disse-lhe com as faces coroadas de júbilo e os olhos flamejantes de orgulho:
— A República, meu filho, é a liberdade! A República é a felicidade
do povo. Agora, a tua terra não é mais governada, por um senhor.
Agora, a tua pátria não é mais propriedade de uma família real...,
agora, o Brasil é verdadeiramente uma nação digna de estar ao
20 AULLETE, F. L. Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portugueza. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1883.
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lado das irmãs americanas... A república vai acabar com os privilégios de trono: agora vamos ser governados por um de nós, livremente escolhido por nós! A república, meu filho, é o governo
do povo pelo povo... a República é a nossa carta de alforria... Grita
também meu filho, grita também!
E a criança, batendo as mãos no ar, gritou com alegria.
—Viva a República. 21
Logo no segundo parágrafo, a descrição do cotidiano tranqüilo em
Niterói – capital da província do Rio de Janeiro e não do Brasil, vale lembrar
– realça o cenário onde o povo reconhece a República. Do aglomerado de
pessoas na ponte de acesso às barcas Ferry partia um misto de opiniões sobre a proclamação. Comentários sobre a queda do império em tom negativo
logo são qualificados como incrédulos; aqueles que reverberam o ato de 15
de novembro como natural, inevitável, foram aclamados como bons patriotas; entre os opostos parece existir uma multidão de espectadores que, sem
paixões para nenhum dos lados, tocam a vida e, acidentalmente, aguardam
o desdobrar dos boatos. Temos, então, uma narrativa que constrói a história
da proclamação da República como um campo de possibilidades. Há espaço para incertezas, dúvidas e mesmo descrenças em relação ao advento:
“sabia-se que o exército nacional”, “dizia-se que a República”, “havia quem
achasse”... Porém, suspeitas sobre a mudança de regime político logo se
confirmaram pelas palavras de um anônimo passageiro.
A distância entre a Capital Federal e a capital fluminense personifica
a própria distância entre povo e República. Os personagens que protagonizam o povo não participam e não presenciam diretamente o ato de proclamação, apenas tomam conhecimento do desenrolar histórico que se passa
do outro lado da baía. A interligação é proporcionada no momento em que
um anônimo personagem anuncia as boas novas da capital. Comentários e
discussões que antes enunciavam possibilidades históricas dissipam-se. A
República torna-se, então, incontestável, inclusive para os transeuntes ocupados e preocupados com seus afazeres cotidianos junto às barcas Ferry. Na
República proclamada em Niterói, marechal Deodoro da Fonseca e Benjamim Constant não têm voz ativa, sendo a república saudada e aclamada por
vozes populares. Mas o que era dúvida, descrença e incerteza transforma-se
em fato absoluto, desconhecido apenas às gerações mais jovens. Daí o tom
professoral pelo qual o pai responde ao questionamento do filho. “Viva a
república!”, gritava a multidão. “Mas o que é república?” Perguntou o filho.
E o pai respondeu: “é a carta de alforria da nação...”
21 BILAC, O.; COELHO NETTO. A terra fluminense. op.cit. p. 65-66.
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Publicado onze anos depois, o conto Quinze de novembro representa o mesmo episódio fundador da República Brasileira. Dessa vez,
porém, Bilac e Coelho Neto miram a pátria de fronteiras nacionais, abandonando os limites regionais que outrora circunscreveram o discurso
cívico de A terra fluminense. Enquanto a caricatura cívica temperada por
um patriotismo regional marcou o conto “A República”, em A pátria brasileira, como o próprio título sugere, o tema foi relançado em dimensões
nacionais. Esta dimensão é sugerida logo no título, “Quinze de novembro”, que já desponta na condição de data cívica de relevância nacional.
Além do tema, outros personagens e fatores assemelham-se: povo,
Constant e Deodoro. Todavia, para além das coincidências, os contos narram acontecimentos transcorridos em turnos diferentes. Em Niterói, a notícia da Proclamação da República chegou juntamente com a embarcação
originária da Capital Federal, que atracou na ponte das barcas Ferry às
três horas da tarde. Na Capital Federal, o evento iniciou-se ao “amanhecer do mês balsâmico”. As ações dos protagonistas sofreram verdadeiras
transfigurações. O povo, substrato político da comunidade imaginada em
bases republicanas, logo recebe o adjetivo de trabalhador, que, saindo dos
subúrbios, observa o movimento das tropas republicanas no campo da
Aclamação. O “dizia-se que as tropas” cede espaço para o espanto vivaz
dos populares que espacialmente se aproximam dos militares. O povo,
aqui, é descrito como homogêneo no seu posicionamento em relação ao
advento republicano. Não há divergências, expectativas, desconhecimento ou descrença quanto à natureza da República. A participação popular
inicia-se a caminho do trabalho, quando, mesmo espantado, o povo se
identifica com os soldados amotinados e, a seguir, acompanha o coro antimonárquico: “viva a República!” Em outro momento, a aclamação popular
reforça o advento republicano, confirmando aos ministros presos e aos
marinheiros reticentes que o povo estava ao lado da República.
Nos onze anos que separam a publicação de A terra fluminense da primeira edição de A pátria brasileira, Bilac e Coelho Neto atravessam a baía
da Guanabara, chegam à antiga capital do Império e dão vivas à República
pela boca de Deodoro. A participação do Marechal descrito no texto Quinze de novembro não aparece pela voz de um ilustre desconhecido, como o
anunciado em A terra fluminense, mas ele mesmo parece ter em suas mãos
as regras do processo que desencadeou a derrubada de D. Pedro II.
Em A terra fluminense, o ato da Proclamação corresponde à completa transformação histórica: o fim da Monarquia, o encontro da sociedade brasileira com as nações americanas, o governo do povo. Questionado
sobre o que é a República, o pai não hesita em, com entusiasmo, coroar o
novo regime. Mas a pátria que segue o caminho do progresso é a pátria
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fluminense e a ela cabe a tarefa de preparar os estudantes ao triunfo
final, como é possível entrever no epílogo do livro:
O Futuro
HINO ESCOLAR
Vamos, fugindo de um passado escuro,
Pátria querida, às glorias do Futuro
Para teu nome e teu porvir cantar,
Num hino vasto que o triunfo exprima,
Falem teus campos que o trabalho anima,
Teus verdes em flores, e o futuro espera...
Teus verdes montes e teu largo mar!
Conduza a vossa mocidade,
Irmãos! Este hino triunfal!
Avante em busca da verdade.
Luz imortal!
A mocidade é como a primavera:
Abre-se em flores, e o futuro espera...
A mocidade é da esperança irmã!
A nova Pátria vive em nossos peitos :
Das flores de hoje hão-de sair, perfeitos,
Os frutos de amanhã!
Conduza a vossa mocidade,
Irmãos! Este hino triunfal!
Avante em busca da verdade.
Luz imortal!
A mocidade é como as nebulosas,
Que, em confusão, nas amplidões radiosas,
Guardam milhões de estrelas, a dormir...
Sairão do teu seio, ó mocidade,
Ó, nebulosa de uma nova idade,
Os astros do porvir...
Conduza a vossa mocidade,
Irmãos! Este hino triunfal!
Avante em busca da verdade.
Luz imortal! 22
22 Idem, ibidem, p. 73-74.
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A Pátria brasileira dá continuidade à perspectiva inaugurada pelo
discurso preliminar, isto é, no texto “A República”, mas parece inserir
um dado de probabilidade quanto ao sucesso da república:
[...] Começou sob magníficos auspícios; e, para que ela se torne
grande e forte, urge que todos os que nasceram à sombra do seu
pavilhão glorioso, num esforço comum e patriótico, trabalhem
pela sua prosperidade, e não se recusem a defendê-la, no momento
em que, acenando aos filhos, ela lhes pedir o sacrifício supremo
do sangue. 23
Trabalhar na comparação de dois contos sobre um mesmo episódio, publicados em contextos diferentes, não é suficiente para demonstrar o poder alquímico dos príncipes literários. No sentido de ampliar o
escopo argumentativo, contribuirá a análise de três passagens de um
dos contos lançados em A terra fluminense e relançado em Contos pátrios. Motivados pelo federalismo republicano, redigiram um texto no
qual enlaçavam a história do Rio de Janeiro aos destinos da civilização
ocidental. Deram a ele o nome Vida Civilizada e começava assim:
A civilização, que é a difusão das riquezas materiais, intelectuais
e morais, não pode nunca, sem transição, sem um longo trabalho
de reforma paciente, tomar conta de um país. Para que ela floresça, é necessário que o moroso passar dos séculos vá apurando as
gerações. Se hoje a Terra Fluminense 24 prospera, civilizada e forte,
foi necessário para isso o esforço coletivo e anônimo das gerações
que passaram. 25
Coerentes com o propósito de despertar o espírito cívico dos estudantes, enriqueceram o texto com dados e informações que permitissem
ao leitor atestar e comparar a vida civilizada no Rio de Janeiro no final
do século XIX com o passado considerado selvagem e bárbaro. Anunciam, então, a existência do transporte ferroviário na vida social dos fluminenses como uma das provas que confirmavam o encadeamento da
terra fluminense à sociedade moderna:
23 Idem. A pátria brasileira. Rio de Janeiro: São Paulo: Francisco Alves, 1909. p.282.
(Utilizo a 26a edição publicada pela Editora Francisco Alves em 1939.)
24 Grifo do autor.
25 BILAC, O.; COELHO NETO. A terra fluminense. op. cit., p. 55.
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De extremo a extremo do país, a civilização estendeu essa ramificação prodigiosa: dos troncos centrais partem os galhos, dos galhos
partem as ramadas, e de ano em ano troncos se fixam no solo, expandindo em linhas várias, que vão de quilômetro em quilômetro ocupando todas as zonas povoadas ou por povoar. Trinta e três linhas,
servindo mais de duzentas estações levam a vida e o progresso do
litoral ao centro, e voltam carregando os frutos do trabalho. 26
No trecho final, a preocupação em expor ao leitor a separação temporal entre civilização e selvageria/barbárie é ainda mais incisiva:
Lembra-te de novo do tempo em que as tribos viviam por aqui
nuas e sem leis e do tempo em que Cunhambebe, o feroz cacique,
dominava com suas canoas de guerra todo litoral do Rio de Janeiro; lembra-te das épocas em que somente os braços dos pobres
cativos exploravam a terra; – e mede a extraordinária extensão do
progresso feito. 27
Pode-se ler Vida civilizada como verdadeiro atestado de óbito da
população indígena. A lembrança do modus vivendi indígena funciona
como mecanismo diluidor da memória, portanto, que fabrica o esquecimento. As comunidades indígenas e seu líder são desumanizados: ferozes, pelados e sem lei. Essas qualidades animais são empregadas para
esquecer um tempo bárbaro e lembrar que o progresso já passara pelo
Rio de Janeiro, que a velocidade das locomotivas apagara qualquer vestígio do tempo das rudimentares canoas de guerra.
mas bem depressa a locomotiva heroicamente trepando a serra,
suprimiu a fadiga de ascensão a pé ou à cavalo: em 1882, a estrada de ferro Grão-Pará começou a ser prolongada até Petrópolis.
E à Pátria Fluminense coube a glória de ter sido a parte do Brasil
em que primeiro se assentou o verdadeiro alicerce do progresso
comercial e industrial – a via férrea, que suprimiu as distâncias,
estreitando as comunicações do trabalho 28
As linhas ferroviárias e telegráficas que remodelaram a paisagem do Rio de Janeiro pelos símbolos do progresso estenderam-se para
26 Idem, ibidem, p.56.
27 Idem, ibidem, p.58.
28 Idem, ibidem, p.22.
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o resto do país. Bilac e Coelho Neto não perderam tempo: embarcaram
nesta locomotiva levando na bagagem as representações cívicas da modernidade para outros estados brasileiros. Mas, antes, lembraram-se de
remover dados, informações, palavras, frases e, é claro, o título do texto
que originariamente descrevia a história do Rio de Janeiro direcionada
para a educação cívica. Esqueceram-se, porém, que, no cemitério dos
livros, há sempre espaço para novas sepulturas. E para lembrarmos de
Contos pátrios e A pátria brasileira como best sellers da literatura cívica
brasileira, foi preciso esquecer as artimanhas literárias, lingüísticas e
editorias de que seus autores lançaram mão, ofuscando A terra fluminense como discurso preliminar.
O que recebeu o título de Vida civilizada, em A terra fluminense,
em um sobressalto patriótico transfigurou-se em A civilização, incluído nos Contos pátrios. Novos personagens entraram em cena. O conto,
antes narrado na terceira pessoa, assume a forma de diálogo entre uma
criança de nome Otávio e seu pai. A vida civilizada iniciava-se com uma
robusta introdução:
[...] Uma noite, toda a família reunida em torno da grande mesa
da sala de jantar, passava calmamente o serão. Otávio, inclinado
sobre as páginas de um livro, contemplava as gravuras, e lia com
interesse as linhas, em que se narravam longas viagens arriscadas, por terras e mares, na África, na Ásia e nas regiões geladas
dos pólos.
De repente, o menino levantou os olhos do livro, e perguntou:
— Papai, que quer dizer “Civilização”?
— Por que pergunta isso Octavio?
— Porque está escrito neste livro que os exploradores da Ásia, da
África e dos pólos têm o propósito de levar a civilização a essas regiões... então os homens que lá vivem não são homens como nós?
— São homens como nós, meu filho, mas não são civilizados como
nós somos...
E, com paciência e carinho, o pai de Otávio começou explicar-lhe
o que é civilização:
— A civilização, que é a difusão... 29
A técnica da pergunta como instrumento de reescrita do texto foi
empregada em outros dois momentos. A exposição das características da
29 BILAC, O.; COELHO NETO. Contos pátrios. 1904. p. 225. (Utilizo a 43a edição publicada pela Editora Francisco Alves em 1956.)
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civilização é interrompida no instante em que o pai menciona a palavra
escola. Otávio indaga: a escola também é fruto da civilização, papai? E
segue toda a descrição das modernas técnicas de ensino, o uso de recursos didáticos e reprovação dos castigos físicos. Tudo retocado pelas mãos
do progresso. A narrativa é novamente interrompida quando o menino
manifesta dúvida quanto à finitude desses avanços: e esse progresso é
completo? A isso o pai responde dizendo que a civilização e o progresso
são frutos do trabalho, naquela junção Pátria, Civilização e Trabalho 30 .
Se a inserção dos diálogos alterou o estilo do texto original, a supressão de referências explícitas ao Rio de Janeiro permitiu que a Vida
civilizada, representação cívica da terra fluminense, se tornasse representação cívica do Brasil-nação. Vejamos, então, como ficaram os trechos
acima comentados na versão publicada em Contos pátrios.
[...] A civilização, que é a difusão das riquezas materiais, intelectuais e morais, não pode nunca, sem um longo trabalho de reforma
paciente, tomar conta de um país. Para que um povo tenha civilização, é necessário que o moroso passar dos séculos vá aperfeiçoando o caráter do povo. Assim, se a terra brasileira 31 é hoje
próspera e forte, foi necessário para isso o esforço coletivo e anônimo das gerações que se tem sucedido. 32
A sutileza com que terra fluminense foi transformada em terra
brasileira revela-se também na fundamentação dos argumentos pró-civilização. Exemplo disso são os dados referentes ao crescimento populacional, visto como ponto vantajoso, pois ocupava e desbravava os espaços
geográficos, antes abandonados aos minguados grupos indígenas. O texto original atestava informações sobre os habitantes do Rio de Janeiro:
“[...] Compara esses tempos com o tempo de agora. Vê agora a tua terra 33
coberta de uma população de mais de um milhão de almas novas” 34 .
A versão publicada no início do século XX atualizava os dados,
mirando, porém, o contingente populacional brasileiro: “Compara esses
30 O trinômio Pátria, Civilização e Trabalho foi explorado por BITTENCOURT, Circe.
Pátria, civilização e trabalho: o ensino de história nas escolas paulistas (1917-1939).
São Paulo: Loyola, 1990.
31 Grifo do autor.
32 BILAC, O.; COELHO NETO. Contos pátrios. op. cit., p. 226.
33 Grifo do autor.
34 BILAC, O.; COELHO NETO. A terra fluminense. op. cit., p.56
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tempos com o tempo de agora! Vê como a terra brasileira 35está coberta
de uma população de quarenta milhões de homens” 36 .
Sem delongas, ainda tendo Vida civilizada e Civilização como objeto de análise, alguns trechos do texto original simplesmente desapareceram. O mais provável é que as supressões tenham sido motivadas
em função da demasiada identificação das passagens com aspectos da
história regional. São eles:
[...] Trinta e três linhas, servindo mais de duzentas estações levam
a vida e o progresso do litoral ao centro, e voltam, carregando os
produtos do trabalho. 37
[...]
Lembra-te de novo do tempo em que as tribos viviam por aqui
nuas e sem leis e do tempo em que Cunhambebe, o feroz cacique,
dominava com suas canoas de guerra todo litoral do Rio de Janeiro; lembra-te das épocas em que somente os braços dos pobres
cativos exploravam a terra; – e mede a extraordinária extensão do
progresso feito. 38
O tempo parece ter decantado algumas das linhas suprimidas. O personagem Cunhambebe, outrora vilão do povo fluminense, autonomiza-se e
reaparece em A pátria brasileira, agora na condição de herói nacional. A ferocidade que o inferiorizava e colocava sobre seus ombros e os de sua tribo
as marcas da animalização – pelados e sem lei – torna-se virtude: substância da coragem, contribuição da raça indígena ao caráter nacional. Não se
trata mais de expulsar o indígena para fora dos limites da civilização, mas
de integrá-los como parte constitutiva do povo brasileiro:
[...] O litoral sul do Brasil guarda, em cada uma das suas angras,
uma recordação de Cunhambebe. O nome do herói, que atrasou a
colonização desta parte do Brasil, merece, apesar disso, ser lembrado, – porque Cunhambebe defendia com bravura os privilégios
da sua raça – e a bravura é sempre digna de admiração. 39
Enfim, os próprios sentidos assumidos pela palavra “civilização”
nos dois livros já indicam quão abstrata, plástica e imaginária é esta
35 Grifo do autor.
36 BILAC, O.; COELHO NETO. Contos pátrios. op. cit. p. 227.
37 Idem. A terra fluminense. op. cit., p.56.
38 Idem, ibidem, p.58.
39 Idem. A pátria brasileira. p. 93
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categoria. Conforme explicou Jean Starobinski40 , na modernidade, civilizar assume o sentido figurado de polir, tanto os homens quanto os objetos: “polir é civilizar os indivíduos, suas maneiras, sua linguagem”. A
civilidade, explica ainda Starobinski, é a face externa da polidez, das estruturas internas que determinam a ação dos indivíduos. Nesse processo, o polimento educativo aparece como instância civilizadora, cuja ação
recai sobre todos aqueles que, de alguma forma, necessitam da transformação: crianças, jovens, bárbaros, provincianos etc.
Para assinalar o alcance da transfiguração cívica, insistamos um
pouco mais nos sentidos atribuídos à civilização em A terra fluminense
e em Contos pátrios. No primeiro, é a criança fluminense que sofre a
ação do polimento educativo. O público escolar infantil recebe noções
de história, de condutas exemplares, das vantagens do progresso, das
locomotivas e das indústrias. À medida que conhece os valores da civilização, constrói a imagem daquilo que não é civilização, ou seja, a
barbárie, a selvageria, o índio. É o polimento educativo interiorizando
hábitos civilizados no cidadão fluminense. Já no segundo, além de todos
os elementos constitutivos da grosseria e do rudimentar que marcam a
vida dos que ainda não passaram pelas escolas, os valores provincianos
também são abarcados na lista de candidatos à transformação polida. As
transfigurações do texto e a mudança do foco narrativo (do regional ao
nacional) transformaram o amor à terra fluminense em sentimento incivilizado, sujeito, portanto, ao polimento pedagógico da pátria brasileira.
A técnica de reformulação literária parece mesmo ter caído no gosto
dos príncipes das letras. A desfiguração operada nos ensinamentos cívicos
de A terra fluminense atingiu outro conto. Desta vez foi a história do exescravo pai João. O título, evidentemente, foi alterado: antes O velho trabalhador, depois Uma vida. Aliás, esse procedimento, trocar títulos, corrigir
texto e publicá-los como originais em livros de maior envergadura comercial, foi empregado também em O colono, renomeado Pátria nova.
A narrativa sobre pai João apresenta transfigurações que evidenciam ainda mais o meticuloso, cauteloso e detalhado trabalho de relançamento dos textos de Bilac e Coelho Neto.
No alto do morro, que demorava a cavaleiro da fazenda, ficava a
casinha do velho preto, do velho e meigo João, tão velho que não
podia andar, e que já todos os seus dentes tinham caído.
40 STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996. p. 28.
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A casa era como uma toca, entre árvores velhas como ele, no meio
da verdura das folhagens abrigavam carinhosamente aquele centenário, a quem a morte parecia haver esquecido no lindo recanto
do sertão fluminense. 41
Em Contos pátrios o texto foi reescrito da seguinte forma:
No alto do morro, que demorava a cavaleiro da fazenda, ficava a
casinha do velho preto, do velho e meigo pai João, tão velho que
não podia andar, e que já todos os seus dentes tinham caído.
A casa era como uma toca, entre árvores velhas como ele, no meio
da verdura das folhagens abrigavam carinhosamente aquele centenário, a
quem a morte pareia haver esquecido no lindo recanto da terra brasileira 42
As sutis alterações revelam duas preocupações de natureza e ordem diferentes. Primeiramente, a caracterização de Pai João (antes apenas João) logo nas primeiras linhas da narrativa. Uma desatenção, um
erro de digitação, talvez, ou uma inserção deliberada. De todo modo, ratifica a hipótese, que temos trabalhado até aqui, de que o texto passou por
um pente fino geral. Em segundo lugar, e mais importante, a já propalada
intenção de se apropriar do texto produzido com a finalidade da educação cívica de caráter regional. Pai João mora num lindo recanto do sertão
fluminense. Com a ampliação do foco narrativo do regional passando por
uma nacionalização dos autores, do texto e da própria noção de pátria, Pai
João permaneceu habitando um lindo recanto. Este recanto, porém, poderia ocupar o espaço geográfico do sertão fluminense, do sertão nordestino,
do cerrado goiano, das serras mineiras, dos pampas gaúchos ou da floresta
amazônica, conquanto fosse na terra brasileira.
As transfigurações operadas em Um velho trabalhador são importantes ainda por revelarem detalhes da articulação do corpo textual aos
protocolos de leitura. Entre a página de rosto e o prefácio de A terra fluminense há uma “nota”, pela qual os autores orientavam os leitores, em
particular os professores, às maneiras imprescindíveis de como se praticar uma boa leitura. A pequena mensagem em sua integralidade dizia
o seguinte: “O professor chamará a atenção dos alunos para as palavras
em grifo, explicando-as.”43
41 BILAC, O.; COELHO NETO. A terra fluminense. op. cit., p. 23.
42 Idem. Contos pátrios. op. cit., p. 207.
43 Idem. A terra fluminense. op. cit., p. 02.
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Palavras grifadas assumiam importância diferenciada, em geral, por se tratar de um vocabulário julgado por demais complexo para
crianças. A supressão de uma dessas palavras, porém, sugere motivações também de outra natureza. O quarto parágrafo foi originalmente
escrito assim:
Eram as crianças da fazenda que lhe traziam comida: e pai João,
comendo, ia com a voz fraca dizendo histórias ingênuas, que os pequenos escutavam com delícia. Depois dormia, à sombra enquanto
a viração embalava docemente as arvores e as borboletas revoavam sobre a cabeça do velho ancião. Parecia o gênio tutelar da fazenda, aquele bom velho, que a vira nascer, crescer e prosperar. 44
Do parágrafo, a palavra que sobressai é ancião, uma característica
de João. Seguindo à risca as orientações normativas para uma leitura, o
professor de educação cívica poderia interromper a leitura neste ponto,
indagar à classe se todos sabem o que quer dizer ancião e, para reforçar uma opinião ou corrigir os comentários equivocados, apanhar um
dicionário, postá-lo sobre a mesa e ler o significado do verbete. Nosso
professor imaginário encontraria em ancião uma duplicidade, podendo
ser adjetivo ou substantivo:
Ancião: adj. de provecta idade, de muitos annos fallando de pessoas, particularmente veneráveis e de autoridades.
Ancião: s.m. Homem (ou mulher) de provecta idade, mas com autoridade; Velho respeitável, digno de veneração pelas suas qualidades [...] As pessoas de maior idade e auctoridade de algum povo,
logar, ou corporação, e às vezes do seu conselho ou governo. 45
Pai João, o velho ancião, seria então um personagem importante,
desempenhando papel político relevante, retendo o saber e influindo nos
rumos da terra fluminense; homem respeitável e de apurado domínio das
letras. Essas características, evidentemente, contrastavam com a biografia
do ex-escravo. A imagem traçada é bem clara: “pobre, preto e ignorante”46 ,
que guardava na memória o passado e o presente de uma propriedade
particular no interior, onde vivia nas profundezas do seu isolamento e
44 Idem, ibidem, p. 24
45 SILVA, Antônio Moraes. Diccionário da língua portugueza. 8. ed. Rio de Janeiro:
Empreza Litterária Fluminense, 1889. v. 1, p. 172.
46 Passagens reproduzidas em BILAC, O.; COELHO NETO. A terra fluminense. op. cit.
p. 25 e _____; _____. Contos pátrios. op. cit., p. 211.
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passividade, frente ao processo de exploração ao qual foi submetido. Ancião era tão somente o adjetivo para um velho desvalido. A ambigüidade
da palavra ancião possibilitava ainda a seguinte indagação: sendo respeitável e sábio, poderia o ancião contar histórias ingênuas? A passagem do
século XIX ao XX e a republicação do texto resolveram o imbróglio:
Eram as crianças da fazenda que lhe traziam comida: e pai João,
comendo, ia com a voz fraca dizendo histórias ingênuas, que os pequenos escutavam com delícia. Depois dormia, à sombra enquanto
a viração embalava docemente as árvores e as borboletas revoavam sobre as flores silvestres. Parecia o gênio tutelar da fazenda,
aquele bom velho, que a vira nascer, crescer e prosperar. 47
Com sutileza, o termo carregado de sentido histórico (ancião), ambivalente e, portanto, suscetível a interpretações contraditórias, foi substituído por uma expressão a-histórica, pertencente ao mundo da natureza e
muito apropriado ao Brasil-natureza que marcara o ufanismo na Primeira
República. A nova fórmula – “borboletas revoavam sobre as flores silvestres”– dispensava plenamente as recomendações da nota introdutória. Por
não estarem grifadas, não requeriam atenção diferenciada; por serem fenômenos da natureza, desfaziam as ambivalências, transformando-se no
máximo em objeto de admiração ou contestação poética.
Peguemos um derradeiro exemplo. No conto “No Paraguai”, é possível antever todos os ingredientes que fizeram do conflito referência
exemplar de patriotismo: o envelhecido ex-soldado paralítico, cercado
de crianças, narrando as gloriosas lutas contra as forças comandadas
por Solano Lopes, os ataques inimigos, o território adverso, a convicção
patriótica, batalhas vencidas e perdidas e, enfim, o triunfo da nação brasileira. Agrupados inicialmente em uma única narrativa, esses temas
alçaram vôos solos, ganharam autonomia, sendo relançados sob os títulos A pátria, O recruta, O perna de pau, em Contos pátrios e Guerra no
Paraguai, Retirada de Laguna, Aquidabã, de A pátria brasileira.
As evidências não diminuem a importância das publicações posteriores a A terra fluminense, apenas realçam a importância desse livro,
que, em matéria de educação cívica, constitui o discurso preliminar, espécie de roteiro geral que subsidiou a produção de outros textos cívicos
dos mesmos autores. Desse modo, quando convidados pela Editora Francisco Alves para escrevem um livro infantil de viés cívico, os futuros
príncipes, como intuitivamente suspeitou Lajolo, “tinham na gaveta ou
47 Idem, ibidem, p. 209-210.
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na cabeça os rascunhos da antologia”. Na verdade, justiça às pistas analíticas seja feita, muitos dos textos publicados em Contos pátrios não eram
originais, assim como textos e temáticas narradas em A pátria brasileira
não passaram de desdobramento discursivo de livro anterior. A Imprensa Nacional os publicou, em 1898, em A terra fluminense. Com outros
títulos e algumas modificações/correções vieram a compor o repertório
dos Contos. Quando interpretados em seus contextos de publicações originais compõem um conjunto de discursos cívicos amplamente carregados das tensões geradas em torno da República Federativa.
Há de se indagar, por fim, se a Editora Francisco Alves, com as dimensões e importância que ocupava no mercado editorial de livros didáticos, desconheceria publicações de outra editora de igual ou maior gabarito,
como era o caso da Imprensa Nacional. Se sim, a Editora foi vítima de uma
marota peça pregada pelos jovens escritores. Assim se explicaria, então, a
rapidez com que os dois produziram Contos pátrios. Quer dizer, adequaram
alguns textos. Mas, pondo em dúvida a existência de tamanha ingenuidade
por parte da Editora Francisco Alves, pode-se crer na probabilidade de um
acordo tácito entre escritores e editores. Neste caso, os textos de A terra
fluminense reeditados em Contos pátrios e A pátria brasileira percorreram
uma trajetória semelhante à história do Hino à Bandeira.
O hino à bandeira nacional surgiu de uma sugestão do Dr. Francisco Pereira Passos, que em 1905 ocupava o cargo de prefeito do
Distrito Federal. Esse ilustre administrador pediu a Olavo Bilac
que compusesse um poema em homenagem à Bandeira, encarregando o professor Francisco Braga da Escola Nacional de Música,
de criar uma melodia apropriada à letra.
No ano seguinte, o hino foi adotado pela prefeitura do Distrito Federal, passando desde então a ser cantado em todas as escolas do
Rio de Janeiro. Aos poucos sua execução estendeu-se às corporações militares e às demais unidade da federação, transformandoo, extra-oficialmente no hino à bandeira nacional, conhecida de
todos os brasileiros. 48
A Capital da República funcionou, nesses casos, como a matriz produtora de representações nacionais. Melhor seria dizer que o Distrito Federal foi um verdadeiro laboratório da alquimia cívica. A diferença é que,
enquanto o Hino à Bandeira seguiu um sinuoso, mas transparente, percurso
48 MICHALANY, Sylvio. Enciclopédia de Educação moral cívica e política. São Paulo:
Ed. Grandes enciclopédias da vida, 1971. p. 327-328.
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até o reconhecimento oficial, alguns textos de educação cívica, consagrados
como representação de uma época, optaram pelo atalho da marotagem.
As semelhanças entre as publicações conduzem-nos, portanto, a
interpretar os destinos do texto de A terra fluminense, no sentido proclamado por David Harlan49 . Não é originalidade que interessa, mas os
mecanismos que proporcionam a dispersão temporal e espacial do texto.
No caso de A terra fluminense, a dinâmica do civismo nacional promoveu
essa dispersão. O conteúdo do livro comportava dimensões múltiplas,
tanto para a idéia de educação cívica, como para a noção de pátria. Os
traços culturais que o compuseram partiram, pois, de focos ambíguos.
Por isso mesmo, quando um dos focos da cultura se impôs, o diálogo entre terra fluminense e terra brasileira foi interrompido, proporcionando
o nascimento de outro tipo de texto. Por Bilac e Coelho Neto deixaram
de passar os múltiplos sentidos de civismo, fazendo emergir identidades
nacionais do objeto antes marcadamente regional.
Deve lembrar-se o leitor de que a análise do prefácio de A terra
fluminense desencadeou exame mais profundo sobre as transfigurações
do discurso cívico na produção didática de Olavo Bilac e Coelho Neto. É
também a leitura do prefácio de Poesias infantis que proporciona o epílogo de nosso artigo. Foi nele que Olavo Bilac reconheceu a dificuldade de
evitar repetições de frases, estilo e feições de outros livros. O que permite
ir além, concluindo que ele, sutilmente, lançou pistas acerca das transfigurações cívicas presentes em Contos pátrios e A pátria brasileira:
Quando a casa Alves & C me incumbiu de preparar este livro para
uso das aulas de instrução primária, não deixei de pensar, com
receios, nas dificuldades grandes do trabalho. Era preciso fazer
qualquer coisa simples, acessível à inteligência das crianças; a
quem vive de escrever, vencendo dificuldades de forma, fica viciado pelo hábito de fazer estilo. Como perder o escritor a feição que
já adquiriu, e as suas complicadas construções de frase, e o seu
arsenal de vocábulos peregrinos, para se colocar ao alcance da
inteligência infantil?50
49 HARLAN, David. A história intelectual e o retorno da literatura. In: RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (Orgs.) Narrar o passado, repensar a
história. Campinas: Unicamp, 2000, p. 15-62.
50 BILAC, Olavo. Ao leitor. op. cit., p. 273.
102
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Antonio Candido em Assis e depois
1
Rodrigo Martins Ramassote 2
Resumo
Este artigo aborda a passagem de Antonio Candido pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Assis do Instituto Isolado de Ensino Superior do Governo do Estado de São Paulo (atualmente integrado à Unesp),
ocorrida entre 1958 e 1960, destacando a importância do período em sua
trajetória intelectual e acadêmica. Apesar de breve, e pouco comentada,
a transferência para Assis foi decisiva na: a) passagem profissional do
campo da sociologia para a área de literatura; b) na estruturação de uma
plataforma de ensino que será retomada na direção do curso de Teoria
Literária e Literatura Comparada na FFLC/USP; c) no estímulo para a
elaboração dos primeiros escritos da fase madura de sua produção crítica, marcada pela preocupação com o processo de redução estrutural.
Palavras-chave
Antonio Candido; história intelectual; Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Assis.
Recebido em 10 de abril de 2009
Aprovado em 17 de dezembro de 2009
103
1
Este artigo baseia-se, em grande parte, em questões discutidas no primeiro capítulo da
minha dissertação de mestrado, intitulada A formação dos desconfiados: Antonio Candido e a crítica literária acadêmica (1961 – 1978), defendida no Departamento de Antropologia Social do IFCH/Unicamp sob a orientação da Profa. Dra. Heloisa Pontes, a quem
agradeço pela leitura e incentivo constante. O título faz referência tanto ao escrito de homenagem Antonio Candido antes e depois de Assis (1992), redigido por António Lázaro de
Almeida (In: D’INCAO, Maria Ângela e SCARABÔTOLO, Eloísa Faria. (Org.). Dentro do
texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. p. 54-57), quanto, sobretudo, ao ensaio Sergio Buarque de Holanda em Berlim e depois, no qual Candido assinala a influência duradoura da breve estada, entre 1933 e 1934,
do futuro historiador paulista na capital alemã como correspondente d’O Jornal: “Esse
ano e meio foi tão importante em sua vida intelectual que muitos pensam que ficou mais
tempo” (CANDIDO, Antonio. Sergio Buarque de Holanda em Berlim e depois. In: ______.
Vários Escritos. 3. ed. rev. e ampl, São Paulo: Editora Duas Cidades, 1995. p. 323.).
2
Doutorando em Antropologia Social pela Unicamp. Desde agosto de 2006 exerce
o cargo de antropólogo pelo Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN).
E-mail: [email protected]
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Antonio Candido in Assis and
his af terwards
Rodrigo Martins Ramassote
Abstract
This article explores A. Candido’s passage through Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, part of the Instituto Isolado de Ensino
Superior do Governo do Estado de São Paulo (now Unesp), ocurred between 1958 and 1960. It points out to the importance and the meaning
of this period for his intellectual and academic trajectory. Although this
period was brief and not fully commented, his transference to a newly
created college in São Paulo hinterland was important as: a) his professional passage from sociology to literature; b) his teaching platform
which will become the basis for his Literary Theory and Comparative
Literature course at the FFCL/USP; c) an stimulation for his essays of
the mature phase, all of them concerned with the process of structural
reduction.
Keywords
Antonio Candido; Intellectual History; Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Assis.
104
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Q
uando, em 1958, Antonio Candido decidiu desligar-se da cadeira de Sociologia II da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP) – em
cujo âmbito exercera atividades de docência e pesquisa durante dezesseis anos – para assumir o cargo de professor de literatura brasileira no
curso de Letras da recém-inaugurada Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Assis, do Instituto Isolado de Ensino Superior do Governo
do Estado de São Paulo (atualmente integrado à Unesp), tal atitude causou surpresa e certa consternação até mesmo entre seus amigos mais
próximos. Quem relata é o próprio Candido, num registro eloquente da
estranheza provocada pela situação. Diz ele que ao receber a notícia na
Europa, Paulo Emílio Salles Gomes, crítico e estudioso de cinema e companheiro intelectual desde os idos da publicação da revista Clima, teria
exclamado: “Que coisa extraordinária! Antonio Candido vai poder afinal
se dedicar à literatura, e ensinando literatura brasileira naquela paisagem da Umbria! Que coisa extraordinária! (risos). Ele imaginou que seria uma faculdade italiana e me viu em Assis, na Úmbria”. Quando foi
alertado de que se tratava na verdade de uma pacata cidadezinha situada
105
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no interior paulista, o crítico de cinema teria bradado: “Assis da Sorocabana? Então o Antonio é uma besta!”3 .
Mal-entendido à parte, a resposta de Paulo Emílio dá notícia da
radicalidade da decisão tomada por A. Candido. Invertendo a lógica do
modelo de carreira profissional “ascendente, que, quando parte da ‘periferia’, almeja chegar ao ‘centro’ do sistema profissional”4 , a mudança
da prestigiosa FFCL/USP para uma incipiente unidade de ensino do interior do estado, aparenta ser, à primeira vista, tão-somente um breve e
insignificante desvio de rota na trajetória acadêmica de A. Candido, destituído de maior interesse e ocorrido imediatamente antes de assumir o
curso de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Curta, porém
decisiva, a passagem de dois anos em meio de A. Candido pelo curso de
Letras de Assis, entre o segundo semestre de 1958 e o final de 1960, demarcou uma inflexão em sua trajetória profissional, sendo responsável,
acima de tudo, por viabilizar o primeiro contato direto e regular com a
docência e pesquisa acadêmica na área de Letras. Neste artigo pretendo
demonstrar que, ao contrário da visão corrente, que tende a minimizar
a importância do período em questão, as implicações e o significado da
passagem por Assis não foram ainda devidamente aquilatados, repercutindo em vários níveis de significado: a) no plano da consolidação da
identidade profissional como professor e pesquisador no campo das Letras, enquanto um ritual de passagem, na acepção clássica da expressão;
b) como plataforma de ensino que irá nortear a constituição do curso de
Teoria Literária e Literatura Comparada (TLLC), idealizado e coordenado por ele, a partir de dezembro de 1960, na FFCL/USP; c) no tocante
programa crítico de A. Candido, marco inaugural das diretrizes da fase
madura de sua trajetória intelectual.
Movimento e parada
Sob a coordenação geral de Antonio Soares Amora 5 , professor titular da Cadeira de Literatura Portuguesa do curso de Letras da
106
3
CANDIDO, Antonio. Entrevista concedida a Décio de Almeida Prado, publicada
em: MARTINS, Marília e ABRANTES, Paulo (Org.). Três Antônios e um Jobim. Rio
de Janeiro: Relume/Dumará, 2001. p. 113.
4
PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 179.
5
Segundo Oliveira , em importante estudo, a nomeação de Amora para o cargo, ocorrida em 22 de agosto de 1957, promulgada pelo Governador Jânio Quadros, deve-se a
três fatores: a) por influência da esposa de José Santilli Sobrinho, mais importante
político da região de Assis e principal animador da criação da Faculdade, Profa.
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Universidade de São Paulo, começaram a ser realizadas, a partir de 1957,
as primeiras providências necessárias para a implantação institucional
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em Assis, SP. Sua criação,
ocorrida em sessão solene no dia 16 de agosto de 1958, deu-se no contexto de expansão do ensino superior público para o interior do estado,
tendo como objetivo atender a demanda estudantil por vagas no ensino
superior bem como ampliar o contingente de professores formados para
o exercício do magistério secundário.
Com o desafio de implantar numa pequena cidade distante da capital uma instituição universitária de alto nível de excelência acadêmica, foi iniciado no mesmo ano o “trabalho preparatório do corpo docente
por meio de reuniões prévias, ainda em São Paulo, a fim de que a equipe
se entrosasse na medida do possível e definisse seu espírito”6 . Em catorze reuniões ocorridas entre janeiro e julho de 1958, realizadas, em
caráter provisório, no salão do então Instituto de Estudos Portugueses,
foram acordados pelo grupo inicial de professores os primeiros passos
para a montagem dos pré-requisitos institucionais essenciais para a implantação da nascente Faculdade: como principal ideário de ensino, “o
princípio de observância estrita do tempo integral, a disposição de prestar assistência efetiva aos estudantes, a ideia de um ritmo de trabalho
comportando distribuição equilibrada do tempo entre ensino e pesquisa”; como proposta de atividades práticas, o “plano da biblioteca-piloto,
a iniciativa da Revista de letras, previsão de uma série de monografias”7,
bem como o planejamento dos programas de curso e a realização de um
curso preparatório para selecionar os alunos ingressantes.
Para compor a equipe de professores, Amora procurou convocar,
em sua grande maioria, profissionais em início de carreira, mas já com
contribuições científicas significativas, oriundos tanto dos quadros da
FFLC/USP, quanto do exterior, sobretudo provenientes de Portugal, dada
Maria Aparecida de Campos Brando Santilli, que conhecia o trabalho de Amora;
b) ao prestígio de Amora como professor, bem como o fato de ele ter organizado
na década de 1950 o Instituto de Estudos Portugueses; c) às relações pessoais de
Amora com Jânio Quadros, que se conheceram quando ambos lecionaram Língua
Portuguesa no ensino secundário. Cf. OLIVEIRA, Fábio Ruela de. A Faculdade de
Assis e a formação da Unesp (1958–1964). Versão revista de dissertação de mestrado
defendida originalmente no Programa de Pós-Graduação de “História e Sociedade”
da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Campus de Assis/SP, 2008. 188p.
107
6
CANDIDO, Antonio. Discurso. In: ____ . Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo:
Ed. da UNESP, 1992. p. 250.
7
Idem, ibidem, p. 250.
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a relação de Amora com o país 8 . Informado por colega comum do interesse de A. Candido em afastar-se das funções de professor assistente da
Cadeira de Sociologia II para lecionar na área de Letras, Amora decidiu
convidá-lo para integrar o grupo, oferecendo-lhe a vaga disponível na
cadeira de Literatura Brasileira. Sem hesitar, A. Candido aceitou a indicação e começou a participar das reuniões periódicas do grupo de professores que estava projetando a estrutura acadêmica e administrativa
da nascente instituição: “Minha decisão foi imediata. Era hora de mudar
e Assis foi fundamental na minha vida”9 . Como compreender tamanha
reviravolta? Vejamos, em detalhe, alguns aspectos de ordem acadêmica
e intelectual que impulsionaram a decisão de A. Candido.
***
Intelectual cada vez mais renomado, prestes a completar quarenta
anos de idade, Antonio Candido encontrava-se em fins de 1957, quando
recebeu o convite de Antonio Soares Amora, num momento delicado de
sua carreira profissional acadêmica. Dividido, desde 1942, quando ingressou como professor assistente da cadeira de Sociologia II na FFCL/
USP, entre a docência e pesquisa universitária no campo da sociologia
e a publicação de artigos na grande imprensa e de livros na área que o
consagrou, A. Candido encontrou, a partir da segunda metade da década
de 1950, cada vez menos espaço para dar continuidade às duas frentes de
interesse em que alternava sua produção intelectual. Nesta altura, já não
era mais aceitável levar adiante o destino misto tão característico de seu
grupo universitário, tal como fora possível durante os primeiros anos de
sua atividade profissional.
Como se sabe, A. Candido ingressou em 1939 no curso de Ciências
Sociais da recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, instado pela curiosidade em compreender a
chamada “realidade brasileira”, num decênio de grande agitação social
e política, dentro e fora do país. Ao longo da graduação (1939 – 1941), A.
Candido recebeu sólida formação científica pela mão de mestres estrangeiros contratados para renovar os padrões e critérios intelectuais de
docência e pesquisa universitária, rompendo com o modelo praticado
108
8
Neste ponto o projeto também se aproxima, conforme repara Oliveira, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que recorreu, inicialmente, à contratação
de professores estrangeiros para ocupar parte das cadeiras dos cursos criados a
partir de 1934. OLIVEIRA, Fábio Ruela de. op. cit.
9
CANDIDO, Antonio. Entrevista concedida a Décio de Almeida Prado. op. cit., p. 113.
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nos demais centros tradicionais de ensino superior pelo país, no qual
imperava a mentalidade jurídica encarnada na figura do bacharel.
Já durante os primeiros anos da graduação, nas aulas do curso de
filosofia ministradas por Jean Maügué, A. Candido estreitou o contato
com um conjunto de jovens estudantes – entre eles, Décio de Almeida
Prado, Gilda Rocha, Ruy Coelho, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival
Gomes Machado – que viriam a formar o célebre Grupo Clima. Unidos
pela convivência estreita no interior da faculdade, pela origem social semelhante e pelo conjunto de referências intelectuais compartilhadas, entre eles surgiu a ideia de produzir uma revista cultural dedicada às artes
em geral. Editada entre 1941 e 1944 (com três momentos de interrupção),
a revista Clima, em seus dezesseis números, de acordo com Pontes,
ocupa um lugar muito preciso na trajetória de seus editores e colaboradores mais próximos. Por meio desse experimento cultural
de juventude, com forte conotação de marco inaugural, conseguiram um tríplice feito: fixaram os contornos da plataforma intelectual e política da geração e, em particular, do grupo de que
faziam parte; lançaram as bases para a construção de uma dicção autoral própria; viabilizaram o início de suas carreiras como
críticos profissionais.10
Na seção fixa dedicada à crítica literária, A. Candido publicou os
primeiros artigos na área que o consagraria, os quais garantiram-lhe de
imediato o reconhecimento público e permitiram-lhe intensificar relações com escritores, editores, artistas e demais integrantes do cenário
cultural paulista – em especial com os intelectuais ligados ao movimento modernista.
Concluída a graduação em Ciências Sociais, A. Candido foi convidado, pelo regente Fernando Azevedo, a tornar-se professor assistente da
cadeira de Sociologia II, passando a lecionar sociologia em disciplinas introdutórias dos cursos de Pedagogia e Filosofia, auxiliar nas demais atividades de ensino e, por iniciativa pessoal, logo encampada pelo segundo
assistente, Florestan Fernandes, realizar colóquios semanais com os alunos a fim de minorar as carências formativas dos ingressantes no curso.
Paralelamente à vida acadêmica, com a visibilidade alcançada pela
participação na revista Clima, A. Candido foi convidado para efetivar-se
como crítico literário titular na grande imprensa paulista, a princípio, no
jornal Folha da manhã (1943 – 1945), e, logo depois, no Correio de São
10 PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo. op.cit., p. 112.
109
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Paulo (1945 – 1947), passando a produzir semanalmente um rodapé em
que acompanhava o movimento da produção literária do período. Em
quatro anos de atividade ininterrupta, A. Candido deu mostras de sua
capacidade analítica e juízo crítico apurados, reconhecendo de imediato
o talento e valor literário de autores estreantes como Clarice Lispector,
João Cabral de Mello Neto e João Guimarães Rosa.
Ambicionando uma possível transferência em definitivo para o setor de Letras, A. Candido decidiu participar de concurso público aberto
em 1944 para provimento da cadeira de Literatura Brasileira do curso de
Letras da FFCL/USP, o qual permitia, de acordo com a legislação em vigor, que pudessem se candidatar ao cargo todos os portadores de diploma
de ensino superior em qualquer área de especialidade, conquanto que o
candidato apresentasse um trabalho acadêmico original e fosse avaliado
através de “prova de títulos; prova escrita com ponto sorteado na hora;
aula com ponto sorteado 24 horas antes”11.
Para concorrer à vaga, A. Candido defendeu como trabalho, após
alguma indecisão inicial12 , estudo monográfico sobre o jurista e crítico
sergipano Sílvio Romero, autor que lhe é bastante familiar desde a adolescência. Redigida entre junho de 1944 e fevereiro de 1945, a tese O método
crítico de Sílvio Romero elucidava os princípios teórico-metodológicos
da proposta crítica propugnada por Romero, salientando, de um lado,
a sua contribuição ao “ambiente cultural” brasileiro do final do século
XIX (ao ter ressaltado os aspectos sócio-culturais envolvidos na criação
literária, nos quais se destacavam a “teoria da mestiçagem” e a “teoria
da representatividade”) e, de outro, as limitações e impasses decorrentes dos preceitos científicos das análises e interpretações romerianas, os
quais acabaram por distorcer-lhe as apreciações estéticas. Fixando sua
própria concepção e modelo de pesquisa em “ciência da literatura”, A.
Candido defendia que “haja o que houver e seja como for, em literatura
a importância maior deve caber à obra. A literatura é um conjunto de
obras, não de fatores, nem de autores”13 .
Numa disputa acirrada – passível, inclusive, de ser questionada
à época, já que no cômputo geral A. Candido obteve a maior nota14 –,
que terminou com a aprovação, empatados, de A. Candido e Mário de
11 GALVÃO, Walnice Nogueira. A aula. In: D’INCAO, Maria Ângela e SCARABÔTOLO,
Eloísa Faria (Org.). op.cit., p. 180.
12 Cf. CANDIDO, Antonio. Mário e concurso. In: _____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
13 Idem. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Edusp, 1988. p. 103.
14 Cf. Idem. Mário e concurso. op. cit., e PONTES, Heloisa. Entrevista com Antonio
Candido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, nº 47, 2001.
110
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Souza Lima, o conselho universitário decidiu em favor do último, que já
regia, em caráter interino, a cadeira em disputa. Em compensação, por
ter sido aprovado, A. Candido recebeu conforme os critérios estipulados
pelo concurso, o título de livre-docente em Literatura Brasileira, o que
lhe credenciaria seguir, caso desejasse, carreira no curso de Letras. No
mesmo ano, publicou Brigada ligeira (1945), reunião de rodapés publicados na Folha da manhã, com especial ênfase em artigos dedicados à
prosa de ficção.
Movido, por um lado, pela frustração com o resultado obtido no
concurso e, por outro, premido pela instauração do regime de trabalho
integral para os assistentes da FFCL/USP, requisitando a vivência plena
de uma ambiência acadêmica, fato que oferecia condições menos favoráveis para a continuidade de atividades em que se dividia, A. Candido
decidiu suspender, ainda que provisoriamente, os rodapés literários. Redefinindo suas prioridades profissionais, no ano de 1947, iniciava uma
nova fase em sua trajetória, na qual passava a investir mais seriamente
na produção de conhecimento na área de sua formação acadêmica inicial, até o momento deixada em segundo plano em favor dos compromissos com a atividade literária. Surgia então o primeiro artigo publicado
no campo da sociologia, Opiniões e classes sociais no Tietê (1947), a que
se seguiram onze artigos, publicados entre 1947 e 1956, num ritmo contínuo de um por ano, “com exceção de 1950, quando não publicou, e 1954
e 1955, quando foram duas publicações”15 .
Nesse mesmo período, A. Candido deu início aos primeiros passos
de sua pesquisa de doutorado em ciências sociais. Inscrito desde 1943
na Especialização em Sociologia, sob a orientação de Fernando de Azevedo, e frequentando como disciplinas subsidiárias os cursos de Roger
Bastide e Emílio Willems – cujos Seminários de Leitura, em 1943 e 1944,
tiveram especial impacto sobre sua produção intelectual –, A. Candido
hesitou, durante algum tempo, entre pesquisar o processo aculturativo
pelo qual passaram os americanos da Vila Americana ou os alemães de
Santo Amaro. Finalmente, um convite de Roger Bastide para assistir a
uma apresentação sobre “atividades folclóricas” o estimulou a pesquisar
o universo da cultura caipira, iniciando estudo sobre poesia popular por
meio da análise do cururu, manifestação cultural produzida pelo caipira
paulista. Em pouco tempo, porém, o plano original foi deixado de lado,
pois “a coerência da investigação levou a alargar pouco a pouco o conhecimento da realidade social em que se inscrevia o cururu”, sendo substituído pelo exame da obtenção dos meios de vida (produção, distribuição
15 JACKSON, Luiz Carlos. A tradição esquecida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 45.
111
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e consumo), encarado “não só como tema sociológico, mas também
como problema social”16 . De modo intermitente, durante os anos de 1947
a 1954, realizou pesquisa de campo na Fazenda Boa Aliança, observando
diretamente o cotidiano e a sociabilidade do caipira da região a partir
do conceito de bairro rural, entendido como unidade mínima de sociabilidade. Equilibrando-se entre o enfoque antropológico e a perspectiva sociológica na arquitetura teórico-conceitual do trabalho, utilizando
autores como Malinowski, Marx, Robert Redfield e Sérgio Buarque de
Holanda, A. Candido realizou uma descrição sensível das vicissitudes
que os grupos rurais enfrentavam diante do processo de modernização,
reivindicando, na parte final, a necessidade de realização da reforma
agrária, como medida necessária para evitar a desagregação completa
do modo de vida tradicional.
Defendido em 1954 como tese de doutorado em sociologia, o estudo foi alvo de objeções e reparos de membros da banca examinadora,
sendo considerado um trabalho de feitio por demais antropológico. No
pano de fundo de tais divergências, pode-se entrever uma polarização
e uma disputa cada vez maior dentro da FFCL/USP entre modelos de
atividades intelectuais qualificadas como culturais e científicas17. Não
resta dúvida entre os principais estudiosos do assunto de que o principal
responsável pelo aprofundamento dessa clivagem e também pela instauração do conhecimento sociológico em bases rigorosas e científicas foi
Florestan Fernandes. Diversamente dos colegas de curso reunidos em
torno da revista Clima, divididos entre a produção de trabalhos de crítica
cultural em jornais e revistas e os encargos de ordem acadêmica, Florestan construiu sua carreira profissional exclusivamente centrada no
campo da produção de conhecimento nas ciências sociais, instaurando
uma identidade profissional inequívoca ao assumir de modo pleno sua
condição de sociólogo.
Proveniente de uma modestíssima família de imigrantes portugueses, Florestan Fernandes nasceu na capital paulista em 1920, exercendo, ao longo da infância e juventude humildes, diversas atividades
ocupacionais, enquanto procurava cursar, de maneira intermitente, e às
duras penas, os estudos em diferentes escolas públicas da cidade de São
16 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades, Editora
34, 2001. p. 25.
17 Sobre o assunto, ver PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima
em São Paulo. op. cit.
112
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Paulo. Em 1941, após concluir os estudos secundários no regime de madureza, ingressou no curso de Ciências Sociais da FFLC/USP18 .
Durante a graduação, concluída entre 1941 e 1944, a despeito
das desvantagens educacionais formativas, Florestan destacou-se rapidamente como aluno exemplar e pesquisador promissor, chamando a
atenção dos professores graças à rígida disciplina de estudos e à intensa
capacidade de trabalho demonstrada. Após formar-se, foi convidado pelo
professor Fernando de Azevedo para ocupar a vaga de professor-assistente da cadeira de Sociologia II, dividindo as tarefas com A. Candido.
Nos trabalhos de maior envergadura do período inicial de sua trajetória19 , e, sobretudo, nas polêmicas intelectuais em que se envolveu, já se
encontram delineadas as principais características do padrão de investigação científica que o jovem sociólogo defendia e colocava em prática:
a) adoção de uma linguagem rigorosa e precisa, permeada de conceitos
e termos técnicos, compreensível apenas aos iniciados nos rudimentos
das ciências sociais; b) presença indefectível de preâmbulos teórico-metodológicos, com vistas a conferir legitimidade científica e acadêmica às
disciplinas que compõem o curso de ciências sociais; c) necessidade de
definições e recortes de pesquisa precisos na preocupação de demarcar
com rigor fronteiras disciplinares; e) rechaço, no plano da escrita, de
qualquer indício estilístico que evocasse o ensaístico, a seu ver comprometido com uma visão estamental de reflexão social.
Encetada a partir do início dos anos 1950, inicialmente por meio
da produção científica de Florestan e, logo depois, rotinizada no âmbito da cadeira de Sociologia I – na qual ele substitui, a partir de 1954, o
regente Roger Bastide, que retornava para o seu país de origem e o indicara como sucessor –, pela trajetória universitária e intelectual de um
grupo coeso de discípulos propensos a perpetuar, em suas linhas gerais,
18 Para uma apreciação mais aprofundada da trajetória acadêmica e intelectual de Florestan Fernandes, conferir os trabalhos de PEIRANO, Mariza G. S. A antropologia de
Florestan Fernandes In: ______ . Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Brasília, DF: Editora da UnB, 1992. p.51-84; ARRUDA, Maria Arminda do
Nascimento. A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “Escola Paulista”. In: MICELI, Sérgio (Org). História das ciências sociais no Brasil. São Paulo, Editora Sumaré,
1995. v. 2.; PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo.
op. cit., e GARCIA, Sylvia Gemignani. Destino ímpar. Sobre a formação de Florestan
Fernandes. São Paulo: USP, Curso de Pós-graduação em Sociologia/ Editora 34, 2002.
19 Produzidos com vistas à obtenção da titulação acadêmica do autor, são eles: A organização social dos Tupinambás (1947), defendida como dissertação de mestrado na Escola
Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP); A função social da guerra na sociedade Tupinambá (1951), apresentada como tese de doutorado em sociologia na FFCL/
USP; e Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na sociologia (1953), livredocência levada à defesa na cadeira de Sociologia I na mesma instituição.
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o projeto acadêmico de seu mentor, com os quais se formou a chamada
“escola paulista de sociologia”, tal padrão de sociológica científica paulatinamente passou a predominar como critério de excelência na avaliação
dos trabalhos científicos produzidos dentro da FFCL/USP.
Nesses termos, não é difícil perceber que a pesquisa realizada por
A. Candido destoava, em parte, da orientação científica predominante
nesse contexto acadêmico específico, seja pelo formato expressivo adotado, seja pelo quadro eclético de referências teóricas oriundo de diferentes áreas disciplinares e seja, ainda, pela presença da proposta política
defendida no capítulo conclusivo. Como esclarece Jackson,
Escrito na década de cinquenta, quando a grande preocupação era
buscar orientação cada vez mais científica na USP, PRB [Os parceiros do Rio Bonito] afastou-se do “espírito” acadêmico vigente e
causou estranhamento. Embora tenha sido bem recebido – o livro
teve nove edições entre 1964 e 2001 – foi criticado por misturar esquemas teóricos incompatíveis e também por apresentar linguagem pouco científica. 20
Não que A. Candido não dispusesse de competência profissional
e de sólida formação científica para dar continuidade à trajetória intelectual e acadêmica na área da sociologia. Scholar exemplar, mestre do
seu ofício, bastava observar o investimento intelectual que ele realizara
nessa área de estudo e de pesquisa ao longo desses anos (artigos importantes, balanços críticos da produção sociológica produzida no país e, sobretudo a redação de Os parceiros do Rio Bonito, referência que se impôs
na compreensão no estudo do mundo rural paulista). Ocorre porém que,
neste contexto acadêmico em particular, os interesses intelectuais e o
estilo científico adotado por A. Candido – a linguagem límpida e despojada do jargão técnico, o ecletismo metodológico, integrando, ainda que de
modo seletivo e crítico, esquemas conceituais de autores de procedência
diversa – destoava dos anseios de cientificidade que começam a assolar o
curso de ciências sociais da FFCL/USP. Como bem o resume Pontes (com
a vantagem de explicitar as questões em que estou interessado):
Animada por um “espírito” cientificista, afeita à idéia positivista
de pesquisa como sinônimo de análise sistemática da realidade, e
“encarnada” de forma exemplar na figura de Florestan Fernandes,
ela [a concepção de sociologia dominante na época] “expulsou”
20 JACKSON, Luiz Carlos. A tradição esquecida. op. cit., p. 62.
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de seus horizontes, quando não dos seus espaços de atuação institucional e de seu universo discursivo, o ensaio e as dimensões
estéticas dos fenômenos sociais. A transferência de Gilda de Mello
e Souza para a área de estética e a de Florestan para a cadeira
de Sociologia I, no ano de 1954, bem como a mudança de Antonio
Candido, em 1958, para Assis, após 16 anos de inserção na cadeira
de Sociologia II (antes da sua volta em 1960 para a Universidade de
São Paulo, como professor de literatura e não mais de sociologia)
são indícios extremamente significativos da oposição entre ciência
e cultura que se estabelecera, na época, na Faculdade de Filosofia
da Universidade de São Paulo. 21
Não se pode estimar o quanto a recepção da banca desapontou as
expectativas de A. Candido quanto ao mérito do trabalho, visto que não
há nenhuma declaração explícita sobre o assunto. Não obstante, é de se
supor que os anos seguintes à defesa da tese foram bastante difíceis e
incertos, nos quais A. Candido encontrou “cada vez menos espaço na
cadeira de sociologia para dar continuidade ao seu verdadeiro interesse
intelectual: a literatura e a cultura em sentido amplo”22 , fato que se observa no escasso número de artigos publicados por ele em 1955 e 1956.
Nesse biênio o volume de sua produção intelectual, se comparada aos
anos anteriores, declinava sensivelmente. Como exceção, surge Ficção e
confissão (1956), volume dedicado ao exame do conjunto da obra literária
de Graciliano Ramos. Elaborada a partir da reunião de artigos publicados na grande imprensa, o ensaio acompanha o itinerário da produção
literária do escritor alagoano, na ordem em que foi composta, evidenciando a transição dos primeiros romances marcados pela “necessidade
de inventar”, pela elaboração ficcional, para a emergência nas últimas
obras de narrativas baseadas em recordações íntimas e depoimentos
pessoais do escritor.
Nesse mesmo ano, começava a circular o Suplemento Literário de
O Estado de S. Paulo, publicação semanal dedicada ao debate da produção cultural em geral. Idealizado por A. Candido, autor da concepção e
do projeto editorial original, mas dirigido por Décio de Almeida Prado,
o Suplemento foi editado a partir de outubro de 1956 até o afastamento
de seu editor, ocorrido em meados de 1967. Acolhendo em suas páginas
os principais nomes da intelectualidade do país, numa publicação que
21 PONTES, Heloisa. A paixão pela forma. In: MICELI, Sergio e MATTOS, Franklin de
(Org.) Gilda, a paixão pela forma. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. p. 87.
22 PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo. op. cit., p.176.
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seguia de perto o “escopo e ideário” da revista Clima, A. Candido retomou aí a publicação de artigos de crítica literária, tornando-se, inicialmente, um dos seus mais assíduos colaboradores. Ao todo, foram mais
trinta artigos publicados ao longo dos três primeiros anos de existência
do Suplemento.
Mas se a participação no projeto editorial e a colaboração destacada no Suplemento Literário propiciaram-lhe um desafogo sobre as incertezas que rondavam o futuro de sua carreira nessa altura, a decisão
de abandonar o cargo de professor-assistente de sociologia permanecia
presente. Compelido pelas circunstâncias acadêmicas desfavoráveis e,
também, pelo aguilhão de seu temperamento pessoal, A. Candido decidiu declinar do convite recebido para lecionar “Sociologia da Educação”,
anunciando que deixaria o cargo ocupado na cadeira de Sociologia II
para dedicar-se integralmente à crítica literária. Como ele declara:
comuniquei-lhe [a Fernando Azevedo] logo depois da defesa da tese
que pretendia largar da sociologia para cuidar apenas de literatura, pois nunca me considerei sociólogo, mas apenas docente de sociologia, o que era outra coisa [...]. Provavelmente por iniciativa de
Fernando Azevedo resolveram propor para mim a criação de uma
nova cadeira, Sociologia da Educação, matéria que me interessava,
mas isso só serviu para apressar minha decisão. Resolvi que o ano
de 1956 seria o último como assistente de sociologia e, por isso, me
afastei do departamento, passando 1957 em licença-prêmio. Não
sabia bem o que iria fazer. Pensei em voltar à crítica literária nos
jornais e cheguei a esboçar um plano com Antonio Olavo Pereira,
da Editora José Olympio, que sugeriu a distribuição dos rodapés
por vários jornais do país, de modo a multiplicar o lucro. Pensei
também em associar a isto o ensino de literatura no curso colegial.
A única certeza é que não voltaria a ensinar sociologia. 23
Embora extenso, o trecho acima expressa de modo inequívoco o
impasse profissional a que chegara a carreira acadêmica de A. Candido:
hesitante com relação ao futuro, não entrevendo alternativas concretas,
tampouco enxergando possibilidades de conciliação entre os domínios
em que distribuía sua produção intelectual.
23 Idem. Entrevista com Antonio Candido. op. cit., p. 27.
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Atando as pontas da trajetória intelectual
E não foi necessário voltar. No final de 1957, essa tensão profissional
começava a ser dissipada com o convite de Soares Amora para que A. Candido integrasse o grupo de professores responsáveis pela implantação da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Como ele recorda:
Foi quando um amigo meu, José Quirino Ribeiro, a par dos meus
problemas, sugeriu a Antonio Soares Amora que me convidasse
para ensinar literatura brasileira na Faculdade que este ia dirigir
em Assis, uma das três que o Governo do Estado estava criando no
interior. Amora me convidou no fim de 1957, eu aceitei e comecei a
participar no primeiro semestre de 1958 das sessões de organização
da nova Faculdade, no Instituto de Estudos Portugueses. Ela começaria a funcionar em 1959, mas se instalaria em 58, com alguns
professores que dariam cursos preparatórios para o vestibular.24
Possibilitado a assumir a vaga oferecida pela posse do título de
livre-docente em literatura brasileira, obtido no concurso de 1945, A.
Candido não hesitou em afastar-se do cargo e deixar a FFCL/USP, aventurando-se numa nova experiência profissional na qual vislumbrava
uma opção promissora para desfazer o impasse a que chegara sua carreira profissional, permitindo selar em definitivo seu compromisso com
a crítica literária. Não obstante tenha participado dos trabalhos para a
implantação, A. Candido ficou impedido de se dirigir para a Faculdade
de Assis durante a primeira metade do ano de 1958 pelo fato de já ter
assumido o compromisso de ministrar o curso de Organização Social
Brasileira para o segundo ano do curso de ciências sociais na USP25 .
À maneira de um ritual de passagem, cuja lógica, desvelada pioneiramente por Arnold Van Gennep 26 , se funda numa sequência tripartite (separação, período transitório de liminaridade e reintegração
à comunidade de origem do indivíduo), os dois anos e meio passados
em Assis demarcaram uma nítida transição entre as etapas da trajetória
acadêmica de A. Candido. Essencial no processo de reconversão simbólica de sua identidade profissional, a passagem por Assis, acima de tudo,
garantiu-lhe o respaldo acadêmico necessário para legitimar a condição de professor e pesquisador da área de Letras. E tal fato não passou
24 Idem, ibidem, p. 28.
25 Cf. Idem, ibidem, p. 28.
26 Cf. GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Editora Vozes, 1978.
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despercebido aos olhos de A. Candido: “foi bom passar dois anos fora da
USP. Quando voltei, no começo de 1961, as pessoas já estavam habituadas
à minha nova condição”27.
De outro lado, afastada dos grandes centros universitários, a Faculdade de Assis lhe oferecia o recolhimento necessário para aprofundar os estudos. Como ele afirma: “Fiz os estudos e me preparei para os
muitos cursos que dei mais tarde na USP. Aprendi técnicas de análise e
li muito sobre teoria literária. Foram dois anos e meio de aprendizado
integral”28 . Favorecido pelo regime de dedicação exclusiva, que permitia
aos professores reservar o período da manhã aos estudos, A. Candido encontrou condições favoráveis para colocar em marcha um intenso ritmo
de produtividade intelectual:
o resultado de nós passarmos quatro horas toda a manhã lendo,
tomando nota, preparando aula, escrevendo, era um rendimento
extraordinário. Quatro horas por dia, no fim do ano é uma coisa fantástica! [...] Lá nós éramos como alunos de colégio interno,
eram quatro horas de estudo. Depois à tarde a gente dava as aulas
e atendia os alunos [...]. 29
No segundo semestre de 1959, A. Candido inicia sua participação, lecionando, para os alunos ingressantes, Introdução aos Estudos Literários:
crítica textual – curso subdividido em dois setores: análise histórica e erudita, a cargo de A. Candido, e iniciação à análise de textos, sob a respon-
27 CANDIDO, Antonio. Os vários mundos de um humanista. [jun.1993]. Entrevistadores: VELHO, Gilberto e LEITE, Yvone. Ciências Hoje, Rio de Janeiro, v. 16, n. 91, p.
28-41, 1993. p. 27. A propósito da ambigüidade profissional que enredava Candido
até esta altura, o depoimento de Teresa Vara é bastante significativo. Segundo ela,
“não sabia nada sobre o mestre que se dispunha a passar dois anos na Faculdade
de Assis, aliás, nós, os seus alunos, não sabíamos nada sobre ele, apenas que terminara uma pesquisa na área de ciências sociais, que só posteriormente viríamos
a conhecer quando publicou Os parceiros do Rio Bonito” (VARA, Teresa. Esboço
de figurino. In: AGUIAR, Flávio. Antonio Candido: pensamento e militância. São
Paulo: Humanitas/Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999. p. 229).
28 CANDIDO, Antonio. Entrevista concedida a Décio de Almeida Prado. op. cit., p.113.
29 Tal experiência beneficiou aos demais professores, a julgar pela qualidade e quantidade de trabalhos publicados na Revista de letras e na Coleção de estudos e ensaios,
ambos publicados pela Faculdade de Assis, bem como pela trajetória bem-sucedida
da grande maioria. Boa parte do corpo docente inicial recrutado retornou, pouco
depois, para a USP, tais como, por exemplo, Erwin Theodor Rosenthal, Julio G.
García Morejón, Rolando Morel Pinto. Entre os alunos, aqueles que se destacaram
durante a graduação também foram posteriormente aproveitados pela FFCL/USP:
Antonio Dimas e Teresa Vara. Cf. OLIVEIRA, Fábio Ruela de. op. cit.
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sabilidade do professor Naief Sáfady30 . Invertendo a tendência dominante
nos cursos de Letras, amparada no estudo da biografia dos autores e na
caracterização dos períodos literários, A. Candido priorizou o foco de ensino centrado na primazia da análise textual, prática de ensino inovadora, que será posteriormente seguida em seu retorno à USP como uma das
principais diretrizes de ensino do curso de TLLC. A parte oferecida por A.
Candido voltou-se para o exame das edições críticas, a partir do estudo dos
“diversos tipos de edição que ele trazia para a sala de aula, como a edição
príncipe, a fac-similar, a edição diplomática e o exemplar da edição crítica
de Rodrigues Lapa, que servia de texto básico para o curso [...]”31. Para apoio
didático das discussões realizadas em aula, A. Candido redigiu a apostila
“Crítica Textual”32 , manual para os alunos enfronhados no paciente trabalho de investigação de edições críticas. Trazendo para o primeiro plano a
importância da discussão a respeito dos elementos “que dão à obra individualidade material”, a partir da sondagem de “como se faz para decifrar
letras, preencher lacunas; dar fidedignidade ao seu texto; averiguar quem a
elaborou; mostrar como se leva em conta seu autor; como o ambiente artístico e social influi no seu estilo; como os autores se agrupam em gerações;
como as obras possuem características gerais que permitem distingui-las
por períodos, etc”33 , A. Candido chamou a atenção para uma área de estudo
30 Licenciado em Letras Neolatinas pela USP, Naiéf Sáfady assumiu, a partir de 1954,
o cargo de professor assistente da Cadeira de Literatura Portuguesa e tornou-se
professor assistente de Literatura Brasileira na Universidade Mackenzie. Em 1959,
defendeu tese de doutorado pela USP e, em 1960, conquistou a livre-docência na
mesma área de pesquisa. Pode-se ter uma idéia aproximada do conteúdo lecionado
por ele pela leitura de Introdução à análise de texto, volume derivado do “esforço
didático de orientar os alunos que, desde 1955, têm estado a meu cuidado para iniciação universitária no campo da análise de texto, curso (ou parcela de curso) de
que fui encarregado, como assistente, nas Universidades de São Paulo e Mackenzie
– e, mais recentemente, no ano de 1959, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Assis, já no setor específico da disciplina de Introdução aos estudos Literários
[...]” (SÁFADY, Naief. Introdução à análise de texto. Belo Horizonte: Edições Júpiter,
1972. p. 8). No ano seguinte, “o curso foi atribuído a um titular (Jorge de Sena), já
como parte de uma cadeira denominada Teoria da Literatura [...]” (CANDIDO, Antonio. Carta de Antonio Candido. Magma, São Paulo, DTLLC, n. 2, 1995. p.31). Com
a chegada de Sena, Sáfady passa a reger a cadeira de Literatura Portuguesa.
31 VARA, Teresa. Esboço de figurino. op. cit., p. 227.
32 Em 2005, com o título de Noções de análise histórico-literária, Candido aprovou a
“reprodução, para uso interno de nossa Faculdade, deste texto parcial de um curso
introdutório que dei na Faculdade de Assis para o primeiro ano, em 1959. A minha
intenção naquela altura era redigir o curso à medida que o fosse ministrando com
base em anotações, mas acabei fazendo isso apenas para os tópicos iniciais, que
correspondem mais ou menos à terça parte” (CANDIDO, Antonio. Noções de análise histórico - literária. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005. p. 7).
33 Idem, ibidem, p. 15.
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e investigação especializada que até então havia recebido pouca atenção
nos currículos dos cursos de Letras. Em 1961, ao assumir o curso de TLLC,
esse mesmo conteúdo se tornará matéria do primeiro curso oferecido na
Especialização, temática que estimulou a consolidação, no interior do curso
de TLLC, de uma prática de pesquisa que viria a ser decisiva na produção
crítica de alguns de seus mais destacados discípulos34 .
No ano seguinte, já na condição de responsável pela cadeira de
Literatura Brasileira, A. Candido ofereceu o curso O romance romântico brasileiro: Manuel Antonio de Almeida e José de Alencar. Nele, foi
explorada durante o ano todo, em aulas “particulares”, com a “única aluna que escolheu literatura brasileira”, a leitura e análise dos romances
Senhora e Memória de um sargento de milícias (1853). De acordo com
Teresa Vara, a aluna em questão35 , o romance de Manuel Antonio de Almeida teve a composição do entrecho perscrutada de modo exaustivo, na
tentativa de “captar a trama, o tecido, a combinação dos fios narrativos,
os elementos de ligação de um capítulo para o outro (os elementos conectivos como ele denominava), os cortes e a costura, até chegar bem próximo de entender o princípio estrutural que explicava o romance como
um todo”36 . Dez anos depois, resultado desse esforço viria a publico com
o ensaio Dialética da malandragem (1970) 37.
Por tudo isso, o ambiente encontrado em Assis representou, no registro de A. Candido, “uma espécie de renascimento intelectual”38:
Nesse período eu estava simplesmente desenvolvendo a arte de
ser professor de Literatura. Ali eu me dediquei, sobretudo, a me
tornar um bom analista de textos. Eu preparei então uma série
34 Em Assis, Candido identificou o aluno Pedro Caruso, ingressante da segunda turma do
curso, como um especialista no assunto (OLIVEIRA, Fábio Ruela de. op. cit., p. 86). Já
na USP, pode-se assinalar Walnice Nogueira Galvão e, em especial, Telê Ancona Lopez,
ambas responsáveis pelas edições críticas de, respectivamente, Os Sertões (1985) e Macunaíma (1978), como tributárias desse interesse. Principal representante dessa vertente
de pesquisa entre os discípulos de Candido, Telê Ancona Lopez elaborou, entre outros,
volumes de crônicas, viagens, correspondências e entrevistas de Mário de Andrade.
35 Após formar-se, Teresa Pires Vara passa a atuar como professora assistente de Literatura Brasileira em Assis. A partir de 1964, retoma o contato com o antigo mestre,
inscrevendo-se e passando a frequentar a Especialização do curso de TLLC sob a
orientação de Candido. Em 1969, é contratada para compor a equipe de pesquisadores
do curso, defendendo, em 1973, tese de doutorado sobre o romance Quincas Borba, de
Machado de Assis, publicada anos depois com o título A mascarada sublime (1976).
36 VARA, Teresa. Esboço de figurino. op. cit., p. 230.
37 Publicado no número 8 da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, disponível
para consulta on-line no site do Instituto (www.ieb.usp.br).
38 CANDIDO, Antonio. Discurso. In: ____ . Brigada ligeira e outros escritos. op. cit., p. 251.
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de textos de Literatura Brasileira, de prosa e poesia analisados.
Quando eu vim para São Paulo eu estava com um material de
ensino pronto, foram mais de trinta textos, se eu não me engano,
que eu preparei [...]. 39
Essa retomada produtiva culmina no lançamento da Formação da
literatura brasileira (1959). De processo compositivo prolongado, redigida entre 1945 e 1951, retomado em 1955, e submetida a revisões em 1956
(primeiro volume) e 1957 (segundo volume), a obra40 talvez seja o mais
influente e controvertido dos trabalhos de A. Candido, provocando polêmicas desde o seu surgimento.
Rompendo com a perspectiva tradicional de periodização historiográfica de nossa literatura (seja ela baseada em critérios sócio-políticos
ou, entrando em voga à época, estilísticos), A. Candido postula, na introdução do volume, as diretrizes gerais que ancoram o exame dos períodos
literários do arcadismo e romantismo. Segundo ele, no processo formativo
da literatura brasileira deve-se distinguir analiticamente, de um lado, as
“manifestações literárias” (compostas por um conjunto de obras isoladas e
desarticuladas entre si, predominantes na fase inicial da produção literária
no Brasil, ocorrida entre os séculos XVI e XVIII), e, de outro, “literatura propriamente dita”, definida pela existência de um sistema literário (isto é,
obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes de uma fase [...]. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais
ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores,
formando os tipos de público, sem os quais a obra não vive; um
mecanismo transmissor [de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos] que liga uns aos outros)41
39 OLIVEIRA, Fábio Ruela de. op. cit., p. 88. No prefácio de Na sala de aula, volume
que enfeixa parte desse material de ensino, Candido comenta: “As versões iniciais
destas e muitas outras análises foram redigidas há bastante tempo. Na maioria, entre 1958 e 1960, quando eu ensinava literatura brasileira na Faculdade de Filosofia
de Assis, SP” (Idem. Prefacio. In: ____. Na sala de aula: caderno de análise literária.
São Paulo: Editora Ática, 1995. p 6).
40 Guardada na gaveta, a Formação da literatura brasileira foi lançada num momento oportuno e estratégico, já que sua publicação também contribuiu para o processo de legitimação da nova identidade profissional de Candido. Como ele adverte,
o livro “dava certo peso” para uma futura contratação no campo das Letras. Cf.
CANDIDO, Antonio. Os vários mundos de um humanista. op. cit., p. 27.
41 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura Brasileira: momentos decisivos. 8. ed.
Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1997. p. 24.
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Para A. Candido, é somente quando se consolida o sistema autorobra-público, a seu ver apenas a partir de meados do século XVIII, que se
torna possível a “formação da continuidade literária – espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento
conjunto, definindo os lineamentos do todo”42 .
No intuito de averiguar “quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e autores, cientes quase sempre de integrarem
um processo de formação literária”43 , a análise se debruça sobre os períodos literários abrangidos pelo arcadismo e romantismo. Radicalmente
antitéticos no que se refere a questões de ordem estética (procedimentos literários, tratamentos temáticos, gêneros e técnicas literárias), mas
irmanados pelo mesmo desejo de assumir “a atividade literária como
parte do esforço de construção do país”44 , a consolidação do sistema literário brasileiro culmina na obra de Machado de Assis, escritor que teria
conseguido conciliar com maestria os influxos estéticos externos com as
soluções expressivas legadas pela produção literária local.
Mais do que revigorar o ritmo e o volume das publicações de A.
Candido, o período ofereceu as condições adequadas para o lançamento
das bases teórico-metodológicas da fase madura de seu programa de trabalho. Se, como vimos, a expressão mais sofisticada de seu método crítico será fixada, em 1970, com a publicação de Dialética da malandragem,
suas premissas básicas foram anunciadas no artigo Estrutura e função
do Caramuru. Publicado no segundo número da Revista de letras da Faculdade de Assis, o ensaio apresenta o primeiro esforço analítico representativo do programa crítico concebido por A. Candido nesta terceira
fase de suas preocupações teóricas 45 . Pela análise dos princípios estruturais do poema épico Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, A. Candido conseguiu compatibilizar análise estética e contexto sócio-histórico,
ideologia e representação literária, numa leitura crítica integrativa preocupada em elucidar como “a função histórica de uma obra depende da
sua estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal de
certas representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a
obra foi escrita” 46 .
42 Idem, ibidem, p. 24.
43 Idem, ibidem, p. 25.
44 Idem, ibidem, p. 26.
45 Cf. CANDIDO, Antonio. Entrevista In ____. Brigada ligeira e outros escritos. São
Paulo: Editora da UNESP, 1992. p.233.
46 CANDIDO, Antonio. Estrutura literária e função histórica. In: ____. Literatura e
sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 153.
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Interessado na repercussão alcançada pelo Caramuru meio século depois de sua publicação, quando foi redescoberto pelos primeiros
românticos como um dos textos dos fundadores da identidade nacional da literatura brasileira, A. Candido investiga os elementos de ordem estrutural que permitiram que uma obra essencialmente ambígua
pudesse ter sido submetida a “um duplo aproveitamento, estético e
ideológico”47. Segundo A. Candido, embora o Caramuru oscile no plano
da composição e da caracterização do personagem principal, de um
lado, entre o elogio da colonização portuguesa, a exaltação da paisagem natural e idealização do indígena e, de outro, como prenúncio da
consciência nacional, glorificação de segmentos específicos e excepcionais da paisagem e denúncia dos costumes bárbaros dos gentis, tudo
culminando na figura ambivalente do personagem principal Diogo Caramuru, cuja imagem vacila entre o colonizador europeu desolado e
o branco patriota bem assimilado nos trópicos, a dimensão religiosa,
elemento central do poema, confere a unidade que lhe “liga as partes e
solve as contradições”, permitindo com que ele tenha sido aproveitado
ideologicamente anos mais tarde pelos primeiros escritores românticos como epopeia indianista e brasileira.
Da perspectiva destes últimos (influenciada, em parte, pela reputação amealhada pela obra entre escritores franceses, que o valorizaram,
traduziram e nele se inspiraram na redação do romance Jakaré-Ouassou,
de autoria de Gavet e Boucher) o poema épico adquiriu o status de manifestação nacional por excelência, optando-se, de modo “mais ou menos
consciente”, por encará-lo como um “poema indianista e nacionalista,
precursor e indicador do caminho que então se preconizava”48 .
Entre 24 e 30 de julho de 1961, realizou-se em Assis o II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, evento de especial importância. Sugerida durante o I Congresso de Crítica e Histórias Literária,
ocorrido em 1960 na cidade de Recife (PE), após a desistência de Fortaleza (CE), por “impossibilidades de ordem programática”, a proposta
de realização da segunda edição na “pequena, ainda que progressiva”49
cidade de Assis, foi aprovada por aclamação pelos participantes da plenária final. Embora já tivesse retornado para a FFCL/USP, para assumir a direção do curso de Teoria Literária e Literatura Comparada, A.
Candido participou dos trabalhos da comissão organizadora do evento,
47 Idem, ibidem, p. 155.
48 Idem, ibidem, p. 165.
49 II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária. Assis, 24 – 30 de julho de 1961.
Anais. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, 1963. p. 17.
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encarregando‑se, juntamente com o Antonio Soares Amora e Rolando
Morel Pinto, da Comissão Coordenadora das Teses e Relatórios.
Durante seis dias de debates científicos, plenárias, mesas-redondas, comissões, resoluções e propostas de trabalho reuniram-se no campus de Assis os principais estudiosos da crítica literária brasileira: “ali,
naquela cidadezinha pacata do interior paulista”, encontravam-se “os
bambas da crítica, figuras do porte de Sérgio Buarque de Holanda, Anatol
Rosenfeld, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Wilson
Martins, Wilton Cardoso, Joel Pontes, Hélcio Martins, Benedito Nunes,
Adolfo Casais Monteiro, Afonso Romano de Sant’Anna, Roberto Schwarz,
João Alexandre Barbosa, Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo
de Campos”50 . O que chama a atenção, de saída, é o número impressionante de convidados ilustres, o que certamente se deveu às boas relações
de A. Candido com a grande maioria dos críticos citados, que se dispuseram a prestigiar o evento, realizado numa pequena cidade do interior,
distante espacialmente da capital, e numa recém-criada faculdade que
dispunha, não obstante o nível de excelência dos professores, de instalações acanhadas e nenhuma tradição acadêmica. De outro lado, decerto o
congresso também contribuiu para legitimar em definitivo a nova condição profissional de A. Candido perante os pares.
Das intervenções feitas por A. Candido contidas nos Anais do Congresso, destaca-se a participação na Segunda Sessão Plenária, em mesa
de trabalho em que o crítico literário português Adolfo Casais Monteiro apresentou o texto A crítica sociológica. De especial importância, o
comentário registra, conforme se depreende da transcrição taquigráfica das discussões, a primeira manifestação pública, ainda em forma de
esboço, do método crítico que A. Candido vinha amadurecendo após o
término da Formação da literatura brasileira.
Ao pedir a palavra, ao final da leitura de Casais Monteiro, A. Candido comenta que:
não poderia deixar de fazer algumas sugestões marginais ao relatório apresentando, mesmo porque sua maneira de encarar a Literatura coincidia perfeitamente com a de A. C. Monteiro, mormente no que
dizia respeito ao ponto de vista sociológico no estudo crítico, o qual,
ao contrário da opinião comum da crítica, não é um fenômeno obsoleto, pertencente ao passado, mas sim uma tentativa em andamento,
50 VARA, Teresa. Esboço de figurino. op. cit., p. 234
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que já começava a concretizar alguns resultados positivos dentro da
orientação sociológica como ficava bem claro na tese em foco.51
Para ele, naquele período esboçava-se
um movimento dos mais notáveis na Crítica e no estudo estrutural
da obra literária, movimento começado no campo linguístico, com
os poetas, e que se vai ampliando na medida em se aproxima da
estrutura real da obra literária. Nessa nova posição está presente
todo o conjunto da experiência humana, não mais como elemento
de valorização, mas como ingrediente que compõe a obra e que a
Crítica estuda como elemento presente, como elemento integrante,
estrutural da obra literária. 52
Retomando, anos depois, os comentários emitidos durante o Congresso, o ensaio Crítica e sociologia (1965) apresentava a formulação
mais explícita e sistemática da preocupação com a questão da redução
estrutural, isto é, “o processo por meio do qual o que era condicionante
se torna elemento pertinente”53 . Representando um dos poucos escritos
de natureza teórico-metodológica no conjunto da obra de A. Candido, o
ensaio procura dar uma resposta mais sofisticada à questão das análises internas e externas em literatura dentre as alternativas disponíveis
de abordagem sociológica, culminando na parte final na formulação
de uma proposta que leva em conta os elementos externos como fatores integrantes da estrutura literária: “o externo (no caso, o social)
importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento
que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se,
portanto, interno”54 .
Do ponto de vista profissional, o Congresso de Assis ensejou a ocasião para uma série de contatos e acordos com alguns intelectuais que
viriam posteriormente a assumir cargos docentes no curso de TLLC,
quando A. Candido preocupou-se “em formar uma equipe, que pudes-
51 II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária. Anais. op. cit., p. 120. Grifo
no original.
52 Idem, ibidem, p. 121. Grifos no original.
53 CANDIDO, Antonio. Entrevista. In: _____ . Brigada ligeira. São Paulo: Editora da
UNESP, 1992. p. 233.
54 Idem. Crítica e sociologia. In: _____ . Literatura e sociedade. op. cit., p. 6;
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se continuar e desenvolver as atividades da disciplina recém-criada”55 .
Dentre eles, destacavam-se Roberto Schwarz e João Alexandre Barbosa.
Filho de imigrantes judeus austríacos que vieram para São Paulo
após a ascensão do nazismo, Roberto Schwarz cursou Ciências Sociais
na USP entre 1957 e 1960, sendo aluno de A. Candido no terceiro ano
da graduação, na disciplina Organização Social do Brasil. Sentindo-se
pouco adaptado, no final do curso, ao padrão de trabalho intelectual que
então prevalecia em sua área de formação, cujas principais características comentei acima, e já propenso a seguir carreira no campo da crítica
literária, com a publicação dos primeiros trabalhos na área56 , Schwarz
decidiu procurar A. Candido durante o II Congresso de Crítica e História
Literária. Em suas palavras:
No terceiro ano da faculdade comecei a enxergar o rumo que as
ciências sociais tomavam. Estava ficando claro que o bom sociólogo
era alguém que faria pesquisa empírica, de preferência quantitativa, com metodologia norte-americana. Eu senti que não era minha
vocação. Fui, então, chorar as mágoas com Antonio Candido, que tinha passado para as letras, e naquele momento, estava em Assis. [...]
Então fui até lá perguntar a ele o que achava da minha crise, que,
mal comparando, já tinha sido a dele. Ele me estimulou e depois me
convidou a ser assistente dele, desde que eu fizesse um mestrado em
teoria literária e literatura comparada no estrangeiro. 57
Decidida a questão, por recomendação de A. Candido, já à frente
do curso de TLLC, Schwarz obteve, em fins de 1961, uma bolsa de pesquisa para aperfeiçoar os estudos em teoria literária no meio universitário norte-americano, permanecendo na Universidade de Yale, durante o
período de um ano e meio, sob a orientação do renomado René Wellek 58 .
De volta ao país, no final de 1963, o jovem crítico foi nomeado professorassistente do curso, ficando encarregado das aulas de Introdução aos Estudos Literários.
55 Idem. Memorial apresentado para concurso de professor titular de Teoria Literária
e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo em 3/7/1974, 1974. p. 21.
56 Sobre o assunto, ver SCHWARZ, Roberto. Entrevista (entrevista concedida a Fernando de Barros Silva). Folha de S.Paulo em 01/06/97, 1997; _____ . Um crítico na
periferia do capitalismo. Entrevista concedida a Luiz Henrique Lopes dos Santos e
Mariluce Moura, publicada em Pesquisa Fapesp, n. 98, 2004.
57 Idem, ibidem, p.10.
58 Cf. Idem. Memorial acadêmico apresentado no Departamento de Teoria Literária
do Instituto de Estudos Lingüísticos (IEL), Unicamp, 1990.
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Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, João Alexandre Barbosa seguiu carreira na área das Letras, lecionando em “duas faculdades e
escrevendo em jornais”. Dos primeiros leitores a comentar a Formação da
literatura brasileira, João Alexandre Barbosa apresentou em mesa-redonda do Congresso, quando de fato se iniciaram seus contatos pessoais com
A. Candido, comunicação sobre a historiografia literária brasileira, ressaltando a contribuição da Formação para o desenvolvimento das novas
formas de pesquisa histórico-literária”, ao procurar articular uma “investigação sociológica a uma compreensão estilística da Literatura”59 .
Ao assumir em 1963 a direção do curso de Teoria Literária na então Universidade do Recife, João Alexandre começou a intensificar sua
relação com A. Candido por meio de correspondência epistolar, na qual
solicitava sugestões para a criação de uma disciplina nos moldes do curso
oferecido por A. Candido na USP60 . Com o golpe de 1964, decidiu deixar o
cargo na capital de Pernambuco após ter por “duas vezes a nossa casa invadida pela polícia, pelo exército”. Na ocasião, procurou por A. Candido
“que acenou com a possibilidade de vir para cá (São Paulo)”. No entanto,
“nesse mesmo ano, o Antonio Candido foi convidado para ir a Paris, mas,
através de recomendação e correspondências dele com o escritor Cyro
dos Anjos, que era Diretor do Departamento de Letras da Universidade
de Brasília, eu fui para lá com minha família no início de 1965”61. Pouco
tempo depois, com a invasão da UNB pelos militares, Alexandre Barbosa
é demitido conjuntamente com boa parte do quadro docente da recémcriada instituição de ensino, sendo obrigando a retornar ao Recife e reassumir suas atividades profissionais anteriores. Em fins de 1966, entra em
contato novamente com Candido – que nessa altura já havia retornado
da França –, decidido a vir para São Paulo, fato que se efetiva em 1967,
primeiro como bolsista da Fapesp – com a obrigação de ser auxiliar de
ensino no curso de TLLC – e, a partir de 1969, integrado definitivamente
ao curso, em cujo âmbito defende, em 1970, sob a orientação de Candido,
tese de doutorado sobre a obra crítica de José Veríssimo.
Com o II Congresso de Crítica e História Literária encerrava-se em
definitivo a participação de A. Candido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Em 1961, ele já dava início a uma trajetória de intensa atividade intelectual na USP, como principal professor, pesquisador
59 II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária. Anais. op. cit., p. 177.
60 Cf. CANDIDO, Antonio. Carta de Antonio Candido. Magma, São Paulo, DTLLC,
n. 2, 1995.
61 BARBOSA, João Alexandre. A formação do DTLLC – Depoimento. Magma Revista,
São Paulo, n. 2, 1995. p. 26.
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e responsável pelo curso de Teoria Literária e Literatura Comparada 62 ,
implantando um projeto de ensino e pesquisa bem-sucedido, articulado
em vários níveis acadêmicos de atuação: na organização do currículo da
graduação e pós-graduação; no recrutamento e contratação, entre alunos
e orientandos, de futuros professores; no estímulo à aquisição de acervos
intelectuais e pessoais de grandes intelectuais e escritores (incorporando tal espólio ao meio universitário, assim como supervisionando o seu
acesso e consulta); na captação de recursos financeiros para pesquisa
(através de bolsas de pesquisa da recém-criada Fapesp); na implementação de amplos projetos de pesquisa coletiva, e, sobretudo, na formação e
treinamento acadêmico de, pelo menos, três gerações de críticos literários. Nessa altura, já começavam a ficar para trás os percalços de uma
trajetória inicialmente indefinida entre o compromisso acadêmico com
a sociologia e produção intelectual na área da crítica literária, para cujo
desfecho e resolução a passagem por Assis foi fundamental.
62 Sobre o assunto, ver: RAMASSOTE, Rodrigo Martins. Na sala de aula: Antonio Candido e a crítica literária acadêmica (1961-1970). Literatura e sociedade, São Paulo:
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, n. 12, p. 88-101, 2009.
128
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Noite profunda, esperança rasa
Carlos Frederico Barrère Martin1
Resumo
Trata-se de uma análise dos poemas Obra aberta, Logia e mitologia e
Jogos florais, de Cacaso, os quais, focando o contexto sociopolítico dos
anos 1970, têm por base o tema da repressão.
Palavras-chave
Cacaso, repressão, poesia brasileira.
Recebido em 4 de março de 2009
Aprovado em 22 de dezembro de 2009
1
129
Doutorando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
E-mail: [email protected]
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Deep night, little hope
Carlos Frederico Barrère Martin
Abstract
The debate concentrates on the Cacaso’s poems Obra aberta, Logia e
mitologia and Jogos florais which, focusing on the social and political
context of the 70s, are based on the theme of repression.
Keywords
Cacaso, repression, brazilian poetry.
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A
Durante a reunião falou-se dezenove vezes nas virtudes da democracia, e treze
vezes pronunciou-se pejorativamente a
palavra ditadura. Quando as portas da
sala se abriram, era noite. Duraria dez
anos e dezoito dias.
Elio Gaspari, A ditadura envergonhada
A
A mordaça e o chicote
preende-se que condicionantes de classe interferem na conduta dos homens públicos,
podendo levá-los da temeridade à vacilação e dela ao imobilismo,
mas no caso de João Goulart, independentemente da classe em que
estivesse, ele seria sempre um pacato vacilante. Os conflitos que
tivera com a plutocracia e a cúpula militar alimentaram-lhe muito
mais o conformismo do que a combatividade. Não era um covarde,
mas se habituara a contornar os caminhos da coragem. 2
O conformismo do presidente João Goulart favoreceu os militares
da época. Os anos que se seguiram ao golpe militar de 1964 ficaram mar2
131
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 1.
reimp., 2002. p. 84.
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cados por Atos Institucionais que determinaram a instalação e a implantação do autoritarismo. A ascensão dos militares reverteu a trajetória da
política nacional, e o AI-5 “foi o instrumento de uma revolução dentro
da revolução”, ou por assim dizer, “de uma contra-revolução dentro da
contra-revolução.”3 Para quem militava contra essa situação, a velocidade das mudanças era assombrosa, tornando-se cada vez mais difícil retomar a liberdade de expressão e os debates que antes do golpe estavam
em andamento.
A censura que se realizava até então era parcialmente restritiva.
Ela ainda não havia impossibilitado na totalidade, embora desde sempre tenha se colocado, a produção teórica e artística e a circulação do
ideário de esquerda. Antes de 1968, era necessário apenas afastá-lo do
povo. Todavia, com a implementação do AI-5 foi abolida a possibilidade
de circular quaisquer ideologias de esquerda, mesmo que restritamente.
Os avanços no sentido de limitar a liberdade de expressão de tal modo se
intensificaram que se introduziu nos meios de comunicação uma atitude
que, segundo Frei Betto, fez escola:
a autocensura. A insólita lição ensinava que o bom profissional
deve alienar-se de suas idéias e convicções para escrever como o
patrão escreveria e editar como o governo editaria. Não era apenas a força de trabalho alugada sob o imperativo da sobrevivência, como a prostituta que se oferece na esquina. Era a própria
consciência adulterada, associando autoridade e verdade, como o
torturador de dentes cariados e salário-mínimo afoga a sua vítima
numa banheira, em defesa de uma liberdade que ele não usufrui. 4
A vontade de neutralizar os “inimigos” do Estado contribuiu para
acentuar o processo de recrudescimento do autoritarismo. Além de aprimorarem os métodos de censura, produzindo, de certo modo, a autocensura e estimulando-a, os militares não se limitaram à “promoção da lei
da mordaça”, mas se encarregaram também de deixar à vontade os alucinados de plantão. “No Brasil, os órgãos de segurança provinham da
desordem e do terrorismo, eram parte de um complexo projeto subversivo, derivado da anarquia militar. A tortura, sancionada pelos oficiaisgenerais a partir de 1968, tornou-se inseparável da ditadura.”5
132
3
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp; FDE, 7. ed., 1999. p. 480.
4
BETTO, Frei. Batismo de sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella. Rio de
Janeiro: Rocco, 14. ed. rev. e ampl., 2006. p. 129-130.
5
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 1.
reimp., 2002. p. 27.
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O período entre 1969 e 1973 foi de retração. As denúncias que se
referiam às atrocidades que aconteciam diariamente nos DOI-CODIs
(Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações
de Defesa Interna) contribuíam para acentuar o medo de experimentar
uma reação. Sobrevinha à indignação a intimidação. A mística revolucionária, que entusiasmara a juventude no início dos anos 1960, não se
manteve tão atraente, encantadora ou sedutora quanto se mostrou um
dia. As intempéries da luta armada inibiram a aproximação de voluntários. Embora os membros dos núcleos de resistência tenham conseguido
realizar uma série de ações de vulto (os sequestros de embaixadores são
exemplares), não foi realizado, e isto paulatinamente revelou-se necessário, um trabalho de organização de bases populares, ficando os resistentes mais e mais vulneráveis aos ataques dos órgãos de vigilância.
No vão da unha na alma
Cacaso expressa em seus versos a tensão dessa época. A estrutura de
coerção e as consequências da repressão (a imobilidade, a desorientação, o
sufoco) ganham forma em seus poemas. E o modo de expressá-las assume
muitas vezes um tom humorístico que estimula ao final um riso torto:
Obra aberta 6
Quando eu era criancinha
O anjo bom me protegia
Contra os golpes de ar.
Como conviver agora com
Os golpes? Militar?
Dois momentos da vida se sobrepõem: a infância (do poeta? Cacaso
sofria de asma) e a maioridade. Os versos um, dois e três, trazem à baila
o primeiro. O uso do passado em tom de narração em “Quando eu era”
abre caminho para surgir a infância e o diminutivo, por meio do qual se
insere, ao mesmo tempo afetuoso e depreciativo, atribui no final um duplo-sentido ao verso, apresentando-se assim um leque de possibilidades. O
verso de abertura poderia ser… “Quando eu era” travesso, irritante, maleducado. Ou ainda, inocente, amável, ingênuo. Todavia o uso do termo
escolhido, além de criar uma atmosfera na qual prevalece uma sensação
6
133
BRITO, Antônio Carlos. Lero-lero [1967-1985]. Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo:
Cosac & Naify, 2002. p. 54.
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de segurança (o leitor pode imaginar uma “criancinha” que sofre de asma
e um “anjo bom” que a socorre dos “golpes de ar”), percebe-se ainda que
essa recordação, que advém da inocência do olhar do menino, torna-se
mais intensa, sobretudo, se comparada ao olhar do adulto.
Assim que se inicia o quarto verso o tom da conversa muda. A ruptura em relação aos versos anteriores é mais do que evidente, a leveza
que os caracteriza é substituída pelas aliterações dos versos finais, que
marcam o ritmo com firmeza, cobrando uma leitura pausada, articulada
ou bem enunciada, e não por acaso, como se supõe, fazem outra a intensidade dos “golpes”: “Como conviver agora com/ Os golpes? Militar?”
Qual é a saída? A hesitação entre militar ou não contra o golpe
militar e a estrutura de coerção que se armou para sustentá-lo é um dos
sintomas do contexto sociopolítico dos anos 1970 – e Cacaso refere-se a
ele com frequência. Ao contrário da militância da poesia social do CPC,
a qual constituía, sem sombra de dúvida, um dos requisitos do processo
de criação, a “poesia marginal” revela muitas vezes, ou em sua maioria,
uma incerteza que não ata nem desata, uma dúvida que reflete a contrapelo o fracasso dos núcleos de resistência. Expressar em versos essa
indecisão é, de certo modo, cultivá-la, e aí podem ser incluídas tantas e
tantas canções que trazem como tema o mal-estar daquele momento, o
que também significa conceder, a quem sofre em silêncio, um caminho
por onde se manifestar.
E que sangra e ri
Esclarece Marilena Chauí que “cabe ao mito resolver, num plano
imaginativo, tensões e conflitos, conflitos e antagonismos sociais que não
têm como ser resolvidos no plano da realidade. A narrativa os soluciona imaginariamente para que a sociedade possa continuar vivendo com
eles, sem se destruir a si mesma.”7 Apresenta-se, portanto, uma compreensão de mito em que ele é avaliado como uma saída (“resolver”), um lenitivo (“sem se destruir”), uma válvula de escape (“continuar vivendo”)
que amenizariam os dramas da realidade por intermédio das malhas
da imaginação. Ao aproximarmos desse raciocínio de Marilena Chauí o
poema de Cacaso, Logia e mitologia 8 , é interessante observar a mudança
de paradigma. Ao contrário da formulação da filósofa, as imagens que
134
7
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Aristóteles. São Paulo: Brasilense, 1994. v. 1, p. 32.
8
BRITO, Antônio Carlos. Lero-lero [1967-1985]. op. cit., p. 163.
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se apresentam ao leitor não contribuem para resolver os “conflitos” e as
“tensões” da sociedade – os “antagonismos sociais”:
Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí
A dicotomia que enforma o título estrutura o poema. E nele temos
um conjunto de imagens que refletem um ambiente de terror, recriando,
no plano da imaginação, as atrocidades do plano da realidade, e, ao mesmo tempo, uma entoação que recorda a poesia mais soturna do Romantismo. A melancolia do tom se deve aos eventos que norteiam Logia e
mitologia, a saber, a situação histórica que lhe serve de matéria-prima, o
regime militar. Se excluirmos dos versos iniciais o segundo, omitiremos
o contexto histórico que ocasiona essa entoação melancólica, porém,
uma vez excluído o ano “de mil e novecentos e setenta e dois”, coloca-se
mais em evidência o matiz romântico que se identifica nos versos iniciais: “Meu coração […]/ já não palpita fagueiro”.
Mesmo que não se revele a origem da melancolia, conserva-se, no
entanto, o sentimento, permanece o abatimento do eu-lírico, lembrandonos, naturalmente, dos poetas românticos da segunda geração, como
Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Fagundes Varela e Casimiro de
Abreu. O amor que não se realiza jamais, a perda da infância e a saudade
da pátria são, entre outros, alguns dos motivos que tornam o eu-lírico de
tipo romântico abatido, incompleto ou melancólico:
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
135
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Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Trata-se de um trecho do poema Meus oito anos, de Casimiro de
Abreu. A infância que se esvai ao longo dos anos deixa em quem a relembra uma saudade que conduz ao desalento. Todos os versos foram
escritos em redondilha maior. Assim foi criado também o terceiro verso de Logia e mitologia. Aliás, o primeiro e o terceiro versos possuem
entre si uma relação de harmonia que, todavia, não se mantém assim
que se reintroduz o segundo. As palavras soam anacrônicas (“palpita” /
“fagueiro”) em oposição ao ano “de mil e novecentos e setenta e dois”. O
que não aconteceria se o eu-lírico tivesse usado outro vocabulário: “Meu
coração/ de mil e novecentos e setenta e dois/ já não bate tranqüilo”.
Mas tem-se, por meio dessa mescla de linguagem, a oportunidade
de entrever um Brasil onde o idealismo era ainda uma presença, a vontade de transformar o status quo se fazia sentir livremente, a utopia não
havia sido, ainda, sufocada pela força dos acontecimentos. Em Logia e
mitologia insinua-se mais de um Brasil. Ao cenário do passado soma-se
os estertores do presente, isto é, a descrença em relação ao futuro e o
medo de se pronunciar às claras. A fauna do período não lembra em nada
a que havia encantado o colonizador e os poetas românticos:
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
A sonoridade que envolve esses versos é bastante adequada ao tom
melancólico. A articulação das consoantes alveolares surdas (coração, novecentos, setenta, dois, sabe, morcegos, pesadas, olheiras, cabras, malignas, cardumes, hienas, infiltradas, sangra, sangra, anoitece, centuriões,
sentinelas) e sonoras (pesadas, belicoso, provisória) faz sibilar a voz.
A recorrência do som favorece, pois a sibilação é decididamente uma
constrição da voz, a sensação que se tem de sufoco e, inteirando o leque
de animais, a lembrança do silvo da serpente. Acentua-se o que há de
sinistro nesses animais. Por conta disso, é possível atribuir a cada um
deles um modo de coagir: os “morcegos de pesadas olheiras” vigiam, as
“cabras malignas” torturam e o “cardume de hienas” se encarrega de
136
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aprisionar. Esses são mecanismos de controle do corpo. Já a mente está
sob a tutela de um “porco belicoso de radar”.
A consciência do que acontece ao redor cria um mal-estar que faz
o eu-lírico reagir de maneira estranha em face do que constata: “e que
sangra e ri / e que sangra e ri”. A reação entre dor e riso seria contraditória, não fosse o cenário desenhado anteriormente e o tipo de risada
que se veicula por causa do ambiente de terror que se manifesta. Diante
da força da repressão, o riso é (sendo ele uma característica dos que se
sabiam incapazes de contra-atacar à altura os órgãos de vigilância e repressão) um indício de desespero. A dor e o riso misturam-se como se
houvesse entre eles uma correspondência: o sofrimento muda de local e
por extensão muda o local onde se insere. Nessa estrutura de tons mesclados, em cujos versos os membros da repressão estão transfigurados
em animais, sobressai um estreitamento de horizonte, o qual o verso: “a
vida anoitece provisória” sintetiza muito bem. Essa ausência de futuro,
embora não houvesse sido declarada, ainda se fazia sentir e é uma marca
que abarca grande parte da poesia dos anos 1970. A violência do presente
tolhe o olhar. E, não por acaso, o bloqueia.
Ai terra que tem palmeiras
De um lado, o esforço consiste em silenciar as vozes da oposição,
de outro, o governo trabalha com afinco em campanhas “de propaganda
ideológica em torno das noções de patriotismo e ordem, estimula-se a
criação de cursos de ginástica e civismo nas faculdades,”9 na tentativa
de dar sustentabilidade ao regime. Para desmistificar a retórica dos representantes do Estado, deixando à mostra as fraturas do que se informa
ao povo, o poeta recorre ao trocadilho, à inversão, ao deslocamento, à
paródia. Tais recursos são providenciais:
Reflexo condicionado10
pense rápido:
Produto Interno Bruto
ou
brutal produto interno
?
9
BRITO, Antônio Carlos. Tudo da minha terra: bate-papo sobre poesia marginal. Almanaque: cadernos de literatura e ensaio. São Paulo: Brasiliense, n. 6, 1978. p.40.
10 Idem. Lero-lero [1967-1985]. op. cit., p. 156.
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Parodiar a Canção do exílio, de Gonçalves Dias, tornou-se aos
poucos uma conduta literária. Os poetas Oswald de Andrade, Carlos
Drummond de Andrade, Murilo Mendes e José Paulo Paes, entre outros,
serviram-se desse poema, para, a partir da matriz romântica, fazer uma
espécie de desvelamento do país. O nativismo de outrora desaparece em
meio ao olhar crítico, que, a cada novo momento, apanha uma faceta do
Brasil e, ao mesmo tempo, reavalia um ponto de vista. Oswald não desmerece a riqueza nacional, “Minha terra tem mais ouro/ Minha terra tem
mais terra” (Canto do regresso à pátria), porém, remete-se a ela lembrando-se também dos que a manusearam em benefício de poucos: “Minha
terra tem palmares”. A astúcia de Oswald é admirável. Ele encontra convivendo ao lado da riqueza natural (“palmeiras”) a dor e a miséria que
marcam a escravidão (“palmares”). No entanto, o poeta não deixa de ser
também inocente. Ao reavivar o estigma da escravidão, Oswald desmistifica, de um lado, os atrativos e as benesses do solo pátrio, de outro, entretanto, parece retomar a inocência de antes, na medida em que mistifica a
modernização11. Ao final do poema é feita uma espécie de súplica:
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo
José Paulo Paes, por sua vez, valoriza em sua versão o entredito.
Diferente do momento histórico do poeta modernista, o terreno sobre o
qual José Paulo se desloca pode ser considerado minado. A dificuldade de
se impor às claras contra a ditadura o obriga a ser um homem de meias
palavras. Mas são murmúrios que dizem muito dos apuros do cotidiano.
O sussurro e a elipse são reveladores do sistema de opressão. O poema
Canção de exílio facilitada limita a conversa ao mínimo, e o mínimo faz
as palavras se encherem de significado:
lá?
ah!
sabiá…
papá…
maná…
11 “Digamos que a poesia de Oswald perseguia a miragem de um progresso inocente.”
SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: Que horas são? 2.
reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 24.
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sofá…
sinhá…
cá?
bah!
Embora o pano de fundo se mantenha, a versão de Cacaso é mais
lúdica, mais irônica e menos elíptica, o humor lhe serve de instrumento
para abordar a tensão e os dilemas que faziam do cotidiano uma zona de
combate (ainda que nesse combate não pudesse ser incluída a maioria dos
brasileiros). O poema resume em sua trajetória (as alamedas são muitas
e variadas entre si) um modo de ver o Brasil que pode ser visualizado do
ponto de vista romântico, bem-humorado ou lúdico e, ao mesmo tempo,
desencantado. Caminha-se, assim, das belezas às mazelas nacionais:
Jogos florais12
I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho
vira direto vinagre.
II
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?)
12 BRITO, Antônio Carlos. Lero-lero [1967-1985]. op. cit., p. 157.
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Inicialmente, temos a impressão de avistar em Jogos florais13 um
pouco da nostalgia da Canção do exílio: a natureza em seu esplendor e
o saudosismo que faz embevecer o espírito colocam-se por instantes. O
sentimento teria sido preservado se não se substituísse notadamente o
“sabiá”: “Minha terra tem palmeiras/ onde canta o tico-tico.” O atrevimento e a malícia que se associam ao “tico-tico” passam a habitar naturalmente a imagem do “sabiá”; e vice-versa, a amabilidade que define o
sabiá marca o comportamento do “tico-tico”. O “sabiá” torna-se uma ave
de rapina: “vive comendo o meu fubá”.
Alude-se aqui ao choro de Zequinha de Abreu Tico-tico no fubá.
Cacaso mostra-se consciente do alcance dessa parodia no momento em
que mescla com precisão o saudosismo do poema romântico à ludicidade
da canção. A troca das aves reforça os traços de cada um dos elementos
em jogo. Acontece que com isso se invalida aquela nostalgia da abertura.
A inocência, não por acaso, se esvai e, nesse escoar, cede a vez a uma
visão de mundo que se mostra menos cândida e mais analítica sobre o
território nacional. Basta ler com atenção a segunda estrofe para se notar
o olhar de reprovação com relação ao desenvolvimento do Brasil e especialmente ao “milagre econômico”, que parecia ser mesmo uma benção:
“a água já não vira vinho/ vira direto vinagre”.
Associa-se o avanço da economia ao relato bíblico, sinal com o
qual Jesus revelou-se como o cordeiro de Deus a ser sacrificado para
salvar os homens. Se o intuito não é necessariamente expressar o grau
de falsidade do “milagre econômico” (os historiadores se encarregaram
de examinar em detalhes as contradições que o constituíam), associar
ao milagre o relato bíblico ajuda a escancarar a virulência da modernização. A velocidade do processo é tamanha que se converte a “água” em
“vinagre”. O messias daqui não veio redimir o indivíduo, livrando-o de
seus pecados, mas, sim, submetê-lo ao consumo, ao jogo de interesses, ao
Deus dinheiro, etc. O poeta retira da modernização o brilho, a áurea de
felicidade e a sensação de bem-estar que a ela se associam para cativar
o indivíduo e prendê-lo em sua rede. A exclusão de tais mecanismos de
persuasão faz sobressair o produto da modernização em curso: a agressividade de suas ações.
Havíamos visto em Canto do regresso à pátria, de Oswald de Andrade, uma mudança que extraiu do Brasil majestoso o custo desta majestade: “Minha terra tem palmares”. A sacada do poeta modernista foi
bem aproveitada em Jogos florais. Cacaso amplia o alcance dessa modi-
13 Antigos jogos que se celebravam em honra de Flora, deusa das flores e dos jardins.
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ficação, escrevendo em maiúsculo, para surtir ainda mais efeito, o que
antes vinha meio acanhado: “Minha terra tem Palmares”.
A falta de liberdade de expressão é também a perda da Liberdade.
O fato de se recordar, em plena ditadura militar, do ambiente onde os
negros escravizados refugiavam-se para se livrar do jugo dos senhores
de escravo é bem sintomático da condição dos núcleos de resistência ao
longo do regime militar. Os membros da guerrilha urbana são também
fugitivos. E os órgãos de vigilância corresponderiam mutatis mutandis
aos capitães do mato de outros tempos. Dois momentos históricos se
cruzam e, ainda que exijam dois modos de avaliar o tema da opressão,
levando-se em conta todas as diferenças que os individualizam, há que
se considerar, no entanto, o ambiente de opressão, o clima de terror que
autoriza uma associação como esta, favorecendo, então, o confronto de
dois períodos da história brasileira. É uma relação que vem a calhar.
Ou viria, não fosse por certo o temor de ser um dia, quem sabe, uma das
vítimas da repressão: “memória cala-te já.”
O receio de se expor em demasia reflete o cotidiano de quem se
sente mesmo intimidado pelos acontecimentos e deles não consegue se
desvincular a fim de lutar ao menos contra si mesmo. Os versos finais da
primeira estrofe ensaiam uma reação que parece acentuar esse sentimento, pois, em se tratando de atenuar o que se disse até o momento, se produz
uma cortina de fumaça: “Peço licença poética/ Belém capital Pará”.
A saída do poeta é fazer do verso “memória cala-te já” uma rima
com “Belém capital Pará”, que, diferentemente do que se constata no
Poema de sete faces, “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse
Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”, é uma solução em
Jogos florais. Assim como ajuda a despistar também o disfarce da embriaguez: “dado o avançado da hora/ errata e efeitos do vinho”
A fonte de referência parece ser de novo Carlos Drummond de
Andrade: “mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovido
como o diabo.” A bebida pode mudar, mas não muda, porém, a força do
álcool e sua capacidade de alterar o eixo do indivíduo, que fica mais “comovido” e mais falante do que deveria, deixando escapar naturalmente o que há muito está reprimido. Esse efeito do álcool se adéqua bem
aos movimentos da paródia: “a cavaleiro entre a razão desmistificadora (enquanto analisa e ironiza formas alienadas de dizer) e a pura violência do instinto de morte,”14 que não reconhece barreiras. Ainda que
se tenha silenciado a “memória”, e o “vinho” sirva de desculpa, o dedo
14 BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 6. ed.,
2000. p. 194.
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continua em riste, mesmo em pensamento, como traz ao final Jogos florais, que anuncia, pelo avesso, os problemas do Brasil. A bola da vez é o
oponente Jarbas Passarinho, ex-ministro da Educação. A pilhéria com
seu sobrenome – “(será mesmo com 2 esses/que se escreve paçarinho?)”
– é uma maneira de alertar sobre as deficiências do ensino público. Ao
inserir tais versos no poema Cacaso reinicia um discurso que parecia
ter sido encerrado, e sua irreverência, mais uma vez, volta a servir de
recurso para abordar o cotidiano e seus impasses.
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Resenhas
Formação econômica do Brasil,
cinquenta anos depois
Alexandre de Freitas Barbosa1
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Edição
comemorativa – 50 anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.2
Por que fazer a resenha de um livro que virou clássico? Por simples deleite comemorativo? Ou quem sabe se trate de uma não-resenha,
já que o livro dispensa apresentações? Será mesmo?
Dois motivos me levaram a escrevê-la. Primeiro, porque era importante para mim: sem essa obra eu não seria economista, tampouco
historiador, muito menos esta mistura estranha de economista com historiador. Venho, pois, saldar uma dívida pessoal. Mas também – e este
motivo é mais nobre – porque a leitura desta obra pode fazer bem às
novas gerações e ao país que encontrarão pela frente. Como se sabe, a
história de um clássico está sempre se refazendo por meio de sua eterna
procissão de leitores.
O texto que segue está estruturado em três atos: 1) vida material
e afetiva de Formação econômica do Brasil; 2) o porquê do livro ter causado tanto impacto no seu tempo; 3) a razão dele poder continuar a fazer
história para quem o percorre depois do governo Lula.
Pois então, mãos à obra.
Outro dia um colega me perguntou se eu poderia lhe recomendar
um bom manual de economia brasileira para cursos de graduação. Minha resposta foi peremptória. Não posso, porque existe Celso Furtado.
Justiça seja feita aos outros demiurgos da formação econômica
do Brasil, a mera existência de Caio Prado Jr., Celso Furtado e Ignácio
Rangel inviabiliza qualquer tentativa de padronização do conhecimento
sobre o tema. Pontos de partidas semelhantes conduzem a veredas muito
peculiares, que, por vezes, se interpenetram, e outras tantas se apartam.
1
2
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Professor de História Econômica do IEB/USP e Doutor em Economia Aplicada pela
Unicamp.
Muitos dos artigos aqui mencionados foram reunidos e publicados em Formação
econômica do Brasil. Edição comemorativa – 50 anos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, porém as citações do texto de Celso Furtado se referem à edição de 1959
(FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura).
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Torna-se assim supérfluo qualquer recorte analítico sobre a economia
brasileira que não recorra a estes três intérpretes e ao confronto de suas
proposições. Ou seja, os alunos devem lê-los no original.
Em minhas aulas, costumo dizer também que Celso Furtado não
se xeroca. Formação econômica do Brasil é um livro que todo jovem deve
ter na estante, faça ou não os cursos de economia, história e ciências sociais. Aqueles já de mais idade, e que passaram pela universidade, deveriam tê-lo porque um dia foram moços. Como alguns destes ex-jovens se
perderam pelo caminho, os exemplares do maravilhoso opúsculo podem
ser encontrados a preços módicos em qualquer sebo pelo Brasil afora. E o
jovem deste mal entrado século XXI, pode então adquiri-lo sem comprometer o orçamento de estudante. Há males que vêm para bem...
A título de depoimento, devo dizer que não compreendi Formação
econômica do Brasil na graduação, mesmo tendo me dedicado a sua leitura com afinco e aprendido algo. Muitas das passagens que eu não pude
ou soube assimilar apenas me foram elucidadas quando o livro virou
meu ganha-pão, ou seja, em sala de aula. Isto talvez se explique pelo fato
de tê-lo lido pela primeira vez para o curso que leva o mesmo nome da
obra, depois de transcorridos exatos trinta anos da sua publicação. Ora,
no Brasil da hiperinflação e da eleição de Fernando Collor de Melo, o que
poderia significar a leitura de Furtado?
A minha geração de economistas, diferentemente da de Carlos Lessa, “não foi iniciada pela leitura de Formação econômica do Brasil”. A bem
da verdade, muitos se desencaminharam por não lê-lo. Ou, talvez, fossem
as tais condições objetivas que impediam a sua leitura. Tanto faz. Com
este preâmbulo, quero dizer que os que se salvaram da minha geração de
economistas foram apenas amadurecidos pela leitura de Furtado.
Podemos hoje somente intuir o que esta obra tenha significado na
sua época. Ao ouvir o relato do professor István Jancsó, tive a impressão
de que o Brasil inteiro – ou melhor, a sua elite intelectual, ainda pouco
numerosa, mas comprometida com os destinos do país – despertava coletivamente para a compreensão do conteúdo guardado dentro daquele
exemplar vermelho com letras garrafais amarelas, publicado pela Editora Fundo de Cultura, em janeiro de 1959, quando nosso autor já se
armava para assumir a Sudene.
Promoviam-se debates e organizavam-se grupos de discussão para
avaliar o seu significado naqueles anos sessenta tão vibrantes de alternativas. A primeira edição, de 5 mil exemplares, esgotara-se em menos de
cinco meses. A terceira edição, de 1960, viria com uma tiragem de 10 mil
exemplares. Em 1963, Formação econômica do Brasil já ostentava cinco
edições. Em artigo escrito na primeira metade dessa mesma década, o
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historiador Francisco Iglesias nos conta que “o livro está nas mãos de
todos os estudantes de ciências sociais”.
Até hoje, o livrinho me impressiona. O texto flui como um riacho de
águas limpas e calmas até se fazer mais caudaloso e quase torrencial na
última parte – quando a análise já carrega mais para o “economês” e aos
apenas iniciados se exige uma dedicação quase sertaneja. É que o mesmo
fora escrito para os homens públicos confrontados com os dilemas da política econômica, naquele momento em que o Brasil sofria uma ruptura nas
suas bases produtivas e nas suas potencialidades como nação.
No documentário de José Mariani, O longo amanhecer (2004), mestre Furtado conta que propositadamente não se preocupara em preparar
um desfecho para o livro. Buscava apontar caminhos, mas sem fechar o
horizonte. O livro não podia ser conclusivo. Se assim o fosse, precisaria
dizer que a lógica do processo histórico brasileiro levava sempre à concentração de renda e de poder: “as fases se sucedem e todas elas levam à
mesma coisa”. Se assim tivesse procedido, seria tachado de esquerdista,
além de impedir – o dizemos nós – que o livro fizesse história.
Daí a frase que encerra o livro: “sendo assim, o Brasil, ao final do presente século, ainda figurará como uma das áreas da terra em que maior é a
disparidade entre o grau de desenvolvimento e a constelação de recursos potenciais” (p. 280). Esta anti-profecia era um chamado para a ação do cientista
que acreditava na transformação social. Furtado tornava-se, assim, o primeiro economista a se fazer popular sem cortejar a opinião com linguagem política, segundo a sagaz observação do historiador Francisco Iglesias.
O autor não queria passar a impressão de que o desafio que se tinha pela frente era de pouca envergadura. O estilo elegante e escorreito, avesso a ideologias e passeatas, esmerara-se em demonstrar a lógica
implacável do movimento da economia brasileira ao longo da história. A
professora Kátia Mattoso, em artigo de 1998, aponta que “o homem, nesta
longa viagem, parece ausente”. Mas trata-se de aparência, pois, completa ela, “encontramo-lo, inteiro e em plena forma, em presença discreta,
mas contínua, inscrita em cada filigrana ao longo do texto”. Talvez se
possa acrescentar que o homem está, principalmente, no resultado do
processo, naqueles leitores ávidos e sequiosos de mudança. Que têm, a
partir da leitura, a missão de impedir que a profecia se concretize.
Na obra A fantasia organizada, Furtado revela que escrevera Formação econômica do Brasil entre novembro de 1957 e fevereiro de 1958,
“nas sobras de tempo que ia furtando ao festival do debate teórico de
Cambridge”, onde conhecera Nicholas Kaldor, Piero Sraffa e Joan Robinson, que figuram entre os principais economistas a surfarem na onda da
revolução keynesiana.
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As fontes são quase todas em inglês ou francês. De historiografia brasileira, encontramos uma reedição de História econômica do Brasil, de Roberto
Simonsen, que Furtado comprara em Recife, no caminho para seu breve autoexílio intelectual na Inglaterra, e um artigo escrito por Alice Canabrava. Caio
Prado e o Gilberto Freyre, que estavam no seu doutorado, desaparecem.
Quem, a nosso ver, mata a polêmica em torno das citações em Formação econômica do Brasil é o historiador italiano Ruggiero Romano, em
artigo de 1970. Furtado não se propusera a refutar ou aceitar as conclusões
deste ou daquele autor. Queria “reconstruir por conta própria” toda uma
série de mecanismos que lhe permitissem chegar ao presente. Os livros
que cita são apenas obras de referência que utiliza como apoio. Avesso a
ortodoxias de qualquer tipo, não desprezava nenhuma ferramenta analítica que lhe possibilitasse desvelar o real em seu movimento histórico. “Ele
queria ver o mundo com seus próprios olhos”, sintetiza o professor Luiz
Carlos Bresser-Pereira no artigo Método e paixão em Celso Furtado.
Pouca gente sabe que os manuscritos enviados ao seu editor foram extraviados. Furtado, entretanto, por sugestão de um amigo, o microfilmara antes de remetê-lo ao Brasil. Isto fez com que ele tivesse de
datilografar novamente todo o livro, aproveitando para desbastá-lo de
toda “celulite verbal”. O original, ele descobriria, de regresso ao Brasil,
avariado, num depósito dos Correios, sob a designação de “suspeito”.
Sem exageros retóricos, é preciso insistir que este livro conseguiu
a rara proeza de contar analiticamente o processo de construção dos alicerces econômicos da nação e, ao mesmo tempo, alterar o seu destino.
Como bem disse Francisco de Oliveira em A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado, “para o erro ou para o acerto, boa parte da
política econômica nas últimas cinco décadas é uma discussão em torno
das formulações de Formação Econômica do Brasil”. Apenas complementaria que os liberais, ao tomarem as rédeas do país nos anos 1990,
pautaram-se por uma leitura “acertada” de Furtado. Queriam desfazer o
que não leram. Apenas se deram ao trabalho de inverter o sinal. Quase
deixaram o Brasil na lona. Hoje Furtado dá o troco, ainda que estejamos
ainda muito longe do país que a sua geração logrou construir.
Antes de prosseguirmos, faz-se importante uma retificação. Celso
Furtado não escreveu Formação econômica do Brasil, de chofre, em alguns
poucos meses, no seu retiro em Cambridge, como ele nos dá a entender. Isto
é verdade quando se concebe a escrita como um mero ato de dispêndio de
tempo e de energia. Ora, a matéria-prima do que se escreve – e é por isto que
podemos lançar, no papel, ideias aos borbotões, como se estas já estivessem
cuidadosamente armazenadas em algum lugar – vem da reflexão. Um caso
particular em que a matéria-prima responde pela agregação de valor.
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De certa forma, esta obra começou a ser elaborada já em 1948, quando Furtado escreve a sua tese de doutorado na França, A economia colonial
no Brasil nos séculos XVI e XVII, cuja publicação devemos ao professor Tamás Szmrecsányi. Mas, segundo este, entre uma obra e outra, uma mutação se processaria: o cientista social interessado tanto em história como
em economia cede lugar ao profissional especializado e ao alto funcionário
governamental. Ocorre que o Furtado amadurecido não soterra o jovem
Furtado com tintas de historiador. A capacidade de se renovar, sem olvidar
das suas incursões do passado, é a característica que sobressai no Furtado
de Formação econômica do Brasil e em toda a sua obra subsequente.
Podemos ir além e dizer que o livro dormitava nas entranhas da sua
infância paraibana. Todo menino ou menina tem a sua obra por ser escrita.
Poucos o fazem, é certo: alguns porque não lhes foi fornecida a possibilidade
de instrução, outros tantos porque vivem não-furtadianamente. Como ensina o mestre em A fantasia organizada – e talvez este lema fosse uma forma
de justificar a sua labuta incessante –: “são poucas as pessoas que realizam
mais do que uma fração daquilo que trazem em si como virtualidade”.
Cheguei a pensar em cortar o parágrafo acima, por soar piegas. Ao
ler a Apresentação de Rosa Freire d’Aguiar Furtado para a edição comemorativa dos cinquenta anos da obra que estamos a discutir, deparo-me,
incrédulo, com o depoimento de um jovem de dezoito anos em seu diário.
Este jovem, que atendia pelo nome de Celso Furtado, arvorava-se,
com a soberba típica dos adolescentes, a “escrever uma História da Civilização Brasileira”, assim em maiúsculas, como se a pretensão já fosse
pouca. E, depois de dizer, no mesmo tom, que partiria “do ponto de vista
crítico-filosófico”, arremata: “não me deixaria emaranhar pelos fatos”.
Nesta última frase, encontra-se o embrião do homem e de sua obra.
Não nos esqueçamos também de que, em 1954, Celso Furtado publicara A economia brasileira, contendo alguns capítulos já prontos do
seu filho que viria um quinquênio adiante. Livro que tivera pouca saída
e que fora custeado do seu próprio bolso.
Aqui já avulta o Furtado economista, mas a parte histórica e a econômica estão como que isoladas uma da outra. De acordo com Carlos Mallorquin, no livro Celso Furtado: um retrato intelectual, o Furtado estruturalista
não havia despontado em sua plenitude. Prevalece um misto de desconfiança e de idolatria em relação às categorias da ciência econômica.
Mas é importante ressaltar que o projeto de Formação econômica
do Brasil já estava lançado. No prefácio de A economia brasileira, ele se
propõe a responder a seguinte pergunta: “como se forma o fluxo de renda em cada um dos sistemas econômicos que se sucederam no território
do país”? Ele também já se preocupa com os fatores que levam a que
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“esgotadas as possibilidades de crescimento de um sistema, a economia
entre num período de transição que pode ser de atrofiamento ou de gestação de um novo sistema”. Faltava apurar o método, adquirir confiança
no esforço teórico autônomo e cuidar do estilo de exposição. Era preciso
deixar a matéria-prima em banho-maria, partir para outras lutas e depois encontrar tempo para arregaçar as mangas.
Aqui cabe um parêntese. O “sucesso” de Formação econômica do
Brasil também se deve, e muito, ao momento histórico em que foi escrito.
Furtado soube captar o espírito de sua época. Prova de que um grande
escritor ou cientista não é aquele que está “à frente do seu tempo”, mas
justamente aquele que o vive em toda a sua plenitude, resguardando certo distanciamento que lhe permite interpretá-lo. Ao contrário da geração
de 1930, que via um mundo velho ruir, e para a qual “a irrealização do
presente dificultava a incorporação do passado na perspectiva do futuro”,
segundo a feliz interpretação de Luiz Felipe de Alencastro, na Introdução à edição comemorativa de cinquenta anos de Formação econômica
do Brasil; o mundo do final dos anos 1950 era outro.
Agora, poderíamos dizer, a realização do presente permitia a incorporação do passado na perspectiva do futuro. Furtado sintetizava esta
nova visão de mundo, que exigia um tipo diferente de intelectual. Não se
entende a fulminante recepção que teve o seu livro, se o isolarmos da
figura do militante abnegado da razão em busca de sua utopia concreta.
Concluída esta breve exposição acerca da “vida material e afetiva”
de Formação econômica do Brasil, pretendo apontar porque este livrinho – o diminutivo se deve à ternura que nutre o professor pelo exemplar,
quase sem lombada, de páginas desgastadas e tanta vezes rabiscadas, da
23a edição, de 1989, que o ensinou a pensar o Brasil – causou tanto impacto na época em que foi escrito.
O método é tudo em Formação econômica do Brasil. O próprio Furtado, sem se referir a sua obra magna, fornece-nos as pistas para a sua
dissecação em trabalho apresentado, no ano de 1971, para um colóquio
internacional, realizado em Paris, um dos sítios do seu exílio forçado.
Fala-nos, então, da relação entre análise econômica e enfoque histórico. Ele pretende “demonstrar” – este é o termo utilizado – que toda a
vez que um economista se depara com um “conjunto social complexo”,
ele o faz a partir de uma vista global fornecida pela história. Sugere que
quando a estrutura conceitual do economista é formulada apenas em
nível de elevada abstração, a partir de variáveis quantificáveis, que não
dialogam concretamente com a estrutura da vida econômica e social, temos uma sintaxe desprovida de significado e de qualquer potencial para
uma ação política transformadora.
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O economista, portanto, não é nada sem a história, ou melhor, sem
uma apreensão do significado concreto das variáveis econômicas num
tempo e espaço determinados. Isto porque segundo Furtado, no artigo
Analyse économique et Histoire Quantitative, “os modelos macroeconômicos não estão fundamentados a partir de uma teoria geral dos processos econômicos”. São insuficientes, assim como é a história como mera
coleção de fatos e olhares sobre o passado.
E aqui, nosso economista, depois de tecer loas ao enfoque histórico, dá uma chave de braço nos historiadores da economia. Se “não existe
análise macroeconômica sem uma globalização histórica prévia”, a história quantitativa não resultaria frutífera, se por trás dos dados não houver
um olhar que permita agrupá-los, escolhendo as variáveis fundamentais
e estabelecendo alguma relação causal entre as mesmas; enfim, sem “um
quadro analítico que é fornecido, essencialmente, pela ciência econômica”.
Como bem sintetiza Ruggiero Romano, Furtado se aproxima da história
“com humildade, mas sem se humilhar”. Ao contrário, “com belo orgulho,
enfrenta a história com toda a sua bagagem muito bem apetrechada”.
O que ele se propõe é mais do que um exercício interdisciplinar. Ainda de acordo com Romano, por meio deste “contínuo refluxo entre história
e economia, onde a sociologia não está ausente”, Furtado inova, pois o resultado tampouco é histórica econômica no seu sentido mais tradicional. O
leitor pode encontrar historiador e economista reunidos, porém redimidos,
posto que desprovidos de suas idiossincrasias particulares. Não há nem a
exegese do historiador preso a um ponto do passado e nem as receitas mirabolantes dos economistas sábios, suspensos num futuro amorfo.
Não deixa de ser interessante que dois historiadores natos como
Ruggiero Romano e Frédéric Mauro, ambos braudelianos convictos, reconheçam que ele utiliza a história como “meio”, sem se mobilizarem
para um contra-ataque frente à “invasão” da sua disciplina. Ao contrário, eles o saúdam e o recebem de braços abertos no seu campo de batalha. Isto porque Furtado tira para devolver, ou como aponta Mauro em
texto de em 1972, ele reconstrói uma dinâmica econômica retrospectiva
“nutrida de história e nutrindo-a bem”. Ou melhor, ele nos propõe uma
“economia política historicamente situada”. Se é certo que ele parte do
método histórico-indutivo, como ressalta o economista Bresser-Pereira,
no artigo já citado, o resultado não é um puro historicismo, já que a sua
capacidade lógico-dedutiva o habilita a construir modelos históricos, esmiuçando as suas potencialidades e limitações em termos de acumulação e de dinamização do fluxo de renda em cada período.
Esta fusão entre história e teoria não se viabiliza sem o poder
da intuição criativa, que se exprime por meio do estilo de exposição.
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Vejamos alguns exemplos concretos retirados diretamente de Formação
econômica do Brasil.
Sempre me incomodou que Furtado se referisse ao senhor de engenho como “empresário açucareiro”. Hoje entendo esta terminologia como
parte do seu método. Seria uma das tantas “explicações operacionais” de
que faz uso Furtado – a expressão é do historiador norteamericano Warren Dean, utilizada em texto de 1965 – para tornar o leitor partícipe do
processo histórico, agora que ele pode acessar seus mecanismos básicos.
No fim das contas, o que pretende nosso economista historiador é acionar
o multiplicador keynesiano num mundo de senhores e escravos. Por meio
desta “análise keynesiana pela negativa” – como percebe R. Bielschowsky
em Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo –, Furtado logra demonstrar como o investimento numa economia exportadora escravista é “fenômeno inteiramente diverso” quando
comparado a uma economia industrial.
Na economia colonial, o pagamento aos fatores de produção vaza para
o exterior, ao passo que a manutenção do escravo também representa custos
fixos. Isto não significa que a economia não seja monetária, mas apenas que a
renda monetária reverte ao empresário açucareiro e deste para os importadores e financiadores dos bens de capital, revelando a sua natureza meramente contábil. A macroeconomia keynesiana viaja no tempo e no espaço para
explicar porque este crescimento com base no impulso externo não poderia
engendrar um processo de desenvolvimento auto-propulsor (1959, cap. 9).
Paralelamente, não existe crise na economia colonial, ao menos no
sentido conhecido pelas economias industriais. Ao arrefecer-se o impulso
externo, a atividade açucareira se mantém em virtude dos altos custos
fixos, ao passo que a economia criatória, projeção gerada pela demanda
do setor açucareiro, desgarra-se do mercado e retorna à subsistência. Para
entender isto, explica o Furtado nordestino, “é necessário ter em conta que
a criação de gado era em grande medida uma atividade de subsistência,
sendo a fonte quase única de alimentos e de uma matéria-prima (o couro) que se utilizava praticamente para tudo” (p. 76-77). O processo mais
amplo ajuda a descortinar o real, tornando-o palpável, fazendo com que o
olhar do leitor desça para o nível mais básico da vida material.
Percebe-se, assim, a constante criação de tipos ideais estilizados,
mas que se constroem a partir das diversas experiências históricas. O estilo de exposição procura retirar o máximo do confronto – uma analogia
por meio do contraste – entre estes tipos ideais não-estáticos, pois que se
referem a diversas trajetórias possíveis de desenvolvimento.
Este artifício estilístico recorrente na obra, e que permite
avançar seu método, aparece de forma recorrente no “confronto do
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subdesenvolvimento brasileiro com o desenvolvimento norteamericano”, como apontado por Bielschowsky. O próprio Furtado se faz, ali pelo
meio da obra, aquela que talvez seja a pergunta que tentara responder ao
longo de sua vida intelectual: “por que se industrializaram os Estados
Unidos no século XIX, enquanto o Brasil evoluía no sentido de transformar-se numa vasta região subdesenvolvida?” (p. 122).
Vários fatores são arrolados: os distintos tipos de colonização que produzem padrões peculiares de interação entre produtividade, concentração
de renda e padrão de consumo; os diversos níveis de dependência com relação à metrópole; as estruturas sociais inassimiláveis; as formas distintas de
atuação do Estado e as ideologias subjacentes dos homens públicos.
O contraponto entre “nós” e “eles” serve de gancho para prender
a atenção do leitor, explicando porque “somos assim” e não de outra forma, sem preconceitos ou explicações fáceis. Como se o fio condutor da
história e das instituições de ambos os territórios sócioeconômicos fosse
recuperado de modo a iluminar, conforme as palavras de Francisco de
Oliveira em seu livro supra citado, as peculiares “conexões de sentidos
da ação social”, mas sem sugerir que devêssemos fazer como “eles”. Isto
seria impossível no arcabouço teórico furtadiano.
Assim, se o herói furtadiano é Alexander Hamilton, que entendera o
Smith da divisão do trabalho, e não o Visconde de Cairu, defensor dos interesses oligárquicos e do livre comércio, este é tão-somente mais um artifício
a que recorre Furtado para revelar que o empresário privado dinâmico não
existe sem a decisiva ação do Estado norteamericano segundo Oliveira.
De fato, o contraponto que Furtado tece entre o Hamilton “paladino
da industrialização” e o Visconde de Cairu que “crê supersticiosamente na
mão-invisível” (p. 123) não segue o figurino de um “bom historiador”, que
deveria ir às fontes, e, caso o fizesse, muito provavelmente chegaria a um
olhar mais matizado, como se pode encontrar na análise desenvolvida por
José Jobson de A. Arruda e Fernando Novais na Introdução ao livro Observações sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábrica no Brasil, acerca das ideias de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu.
Porém, o que quer Furtado é fazer quase uma sociologia econômica
das ideias possíveis em cada ponto do tempo e do espaço. E de sobra dá uma
estocada no pretenso cosmopolitismo das elites brasileiras em qualquer época. Não à toa, em outra passagem, ele não deixa de azedar o “mito” Mauá,
quando se refere ao fato de que a este “homem de visão e de experiência não
ocorria melhor solução que essa da semisservidão de asiáticos” (p. 147). Esta
maneira não-idealista de ver os homens como frutos de seu meio social, nem
à frente, nem atrás da história, é uma das manifestações concretas daquilo
que Oliveira chamou de “a contribuição silenciosa de Marx em Furtado”.
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Este mesmo recurso estilístico, quiçá informado por uma fina ironia machadiana – ao revelar como a importação indiscriminada de ideias
forâneas reforça a posição subalterna dos países periféricos e a sua condição de subdesenvolvimento –, voltaria na sua interpretação do fim da
conversibilidade da moeda brasileira no último quarto do século XIX.
A “inibição mental” para empreender uma análise científica dos problemas monetários levaria a um “enorme esforço de mimetismo” das elites
com relação ao que se fazia na Europa. A inconversibilidade da moeda era
vista, então, como uma “patologia social” (p. 190), transplantando Furtado, desta forma, e de maneira original, o conceito de dependência da economia para o plano da ideologia e da cultura, segundo Alencastro.
Nosso autor demonstraria como, na prática, a desvalorização da
moeda permitira sustentar as inversões na expansão do café sem traumatizar a economia de mercado interno que se desenvolvia no seu encalço. Como consequência, teríamos a inflação – originada do desequilíbrio
externo – e o descontrole das contas públicas, via elevação da dívida externa. Enfim, uma análise ponderada, científica e sedutora, de alguém
que sabe para onde está levando o leitor-homem público.
O Furtado destruidor de mitos aparece em toda a sua grandeza na
discussão sobre a tardia irrupção da indústria no cenário nacional. Lança primeiramente a tese, adiante confirmada por vários historiadores, de
que o Alvará de 1785 não pudera trazer impacto expressivo à colônia, até
porque não se davam as condições para o desenvolvimento manufatureiro. É então que ele afirma: a primeira condição para tanto “teria de ser o
próprio desenvolvimento manufatureiro português”. Óbvio, não? Porém,
boa parte da historiografia pregressa se preocupara mais em lançar impropérios contra as supostas contradições do “iluminismo” português.
Mais à frente, depois de contrapor, fiel ao seu estilo, o Visconde de
Cairu, agora ao Visconde de Strangford – o primeiro “antecipando” o futuro liberalismo irrefreável da potência britânica –, mais uma vez não sem
uma ponta de ironia; e depois de dizer que o tratado de 1810 era, na prática, um “sistema criador de privilégios”, ou seja, uma forma de comércio
administrado, já que o Brasil não teria obtido livre acesso ao mercado “deles”; Furtado parte para o ataque: “não se pode afirmar que, se o governo
houvesse gozado de plena liberdade de ação, o desenvolvimento econômico do país teria sido necessariamente mais intenso” (p. 115-117).
Em síntese, a carência de base técnica e de capacidade para importar
(num contexto de exportações estagnadas) abortaria uma “política inteligente de industrialização”, mesmo deixando de lado que esta seria “impraticável num país dirigido por uma classe de grandes senhores agrícolas
escravistas” (p. 129-130). Ou seja, ele abre o horizonte, para depois fechá‑lo.
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Joga uma hipótese contra outra, conjectura sobre os dados existentes para
cada período, confronta-os com as interpretações de historiadores, mas
sempre se protegendo prudentemente contra o vício do anacronismo a que
está sujeito todo economista que se mete a historiador.
Esta análise científica, ponderada e elegante é, de acordo com Carlos
Lessa, exatamente o contrário do que os adversários esperavam dele, ávidos
por tachá-lo de “populista” e “esquerdista”. Aliás, conforme dito por Luiz
F. de Alencastro na Introdução à edição de Formação econômica do Brasil de 2009, a sua obra se caracteriza justamente pela “polidez discursiva”,
eximindo-se o autor de entrar em polêmicas estéreis com seus contemporâneos. O próprio texto se encarrega, auxiliado pela abordagem panorâmica e
por sua lógica implacável, de nuançar fatos e lançar novas interpretações.
O seu método de transcender os espaços temporais fragmentados,
ao mesmo tempo em que vasculhava os constrangimentos e potencialidades estruturais de cada período, auxiliado ainda pelo estilo de perscrutar “humildemente” o passado com o olhar arguto de economista do
presente, habilitaria-o a tirar conclusões parciais sobre os sucessivos
“sistemas de fluxo e distribuição de renda”. Como afirmara em A economia brasileira “é com o objetivo de estimular outros a repensar o mesmo
assunto que publicamos este ensaio”. A história não estava resolvida,
nem era o seu objetivo, preocupado que estava com o feixe que liga o
passado às possibilidades do presente.
Fato é que os historiadores que o seguiram não puderam se eximir
de considerar suas hipóteses. Como sugere o historiador francês Frédéric Mauro, em artigo já mencionado, “seria necessário retomar cada um
de seus capítulos e, com a ajuda das monografias existentes e das novas
pesquisas de arquivos, fazer livros sobre eles”. De fato, a historiadora Kátia Mattoso nos mostra que a questão da rentabilidade do engenho açucareiro – onde o próprio Mauro questiona a tese de Furtado, para depois ser
confrontado pelo historiador norte-americano Stuart Schwartz – “permaneceria colocada” inúmeras edições depois de lançado o clássico.
Como Celso Furtado admitiria mais adiante em A fantasia organizada, seu objetivo “era avançar uma série de hipóteses interpretativas, aproximando acontecimentos em áreas diversas e tempos distintos, como quem
fixa uma imagem através de seus traços mais característicos”. Esta imagem
fixada, retirada do tempo histórico, e projetada para além dele, representava o movimento singular da nossa formação econômica subdesenvolvida.
A verdade é que, mesmo quando errava no varejo, Furtado geralmente estava certo no atacado. O método o protegia. Vejamos outro exemplo. Ao
discutir a “economia de transição para o trabalho assalariado”, ele centra
o foco da sua análise nas mudanças no fluxo de renda, que trazem novas
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potencialidades e desequilíbrios para o sistema econômico ainda fundado
sobre as exportações. Existe agora uma renda monetária que circula internamente e que “excede de muito a renda monetária criada pela atividade exportadora” (p. 180). Isto porque o investimento do empresário cafeeiro drena
mão-de-obra do setor de subsistência, permitindo um aumento da massa de
salários da economia. E mais, ao se manter constante o salário monetário no
setor exportador, e elevando-se as taxas de lucro juntamente com os preços
do café, o efeito sobre a renda interna, por meio dos novos investimentos, vêse potencializado. Em poucas palavras, o mercado externo e o interno podem
crescer simultaneamente, e o segundo mais do que o primeiro graças ao efeito positivo trazido pela mudança nas relações de produção.
Ele consegue, desta forma, elaborar um modelo econômico, não
abstrato, com o intuito de entender uma situação histórica específica. No
último capítulo da série sobre o problema da mão-de-obra (cap. 24), Furtado vai construir tipos ideais para os “resultados” da Abolição no Nordeste
e o Sudeste dinâmico. No primeiro caso, a mudança nas relações de trabalho é formal; enquanto, no segundo, supõe-se que a situação favorável em
termos de disponibilidade de terras e de oportunidades de trabalho “valeu
aos escravos liberados salários relativamente elevados” (p. 166-167). Chega a sugerir inclusive uma preferência do ex-escravo pelo ócio.
Sim, Furtado se equivoca. Em Celso Furtado: um retrato intelectual, Mallorquin sugere que ele “busca assalariados por todo lado para
explicar a monetarização da economia e a expansão produtiva do setor cafeeiro”. Ora, ele quer, na prática, fisgar o núcleo das possibilidades
de irrupção de um setor industrial minimamente endógeno. Ao fazê-lo,
pode abordar as virtualidades e limites da indústria recém-nascida, ainda que a análise da sua gênese deixe a desejar e, de fato, nem mereça a
sua atenção. Contudo, os que vierem depois terão de seguir o seu rastro
para propor, por exemplo, o conceito de “complexo cafeeiro”.
Furtado também gostava de fazer estimativas. Os dados que manuseava eram sobremaneira limitados. Mas ele lidava com números
como quem buscava novas hipóteses ou a refutação das antigas, não
como quem corria atrás de certezas. Em exercício realizado no capítulo
25 de Formação econômica do Brasil, ele chega a um crescimento médio
anual de 1,5% para a renda per capita “nacional” entre 1872 e 1900. Uma
rápida checada nos dados produzidos várias décadas depois por Angus
Madison com os equipamentos mais refinados da estatística econômica
(ver o artigo Brazilian economic performance since 1500: an overview),
revela que as simulações de Furtado faziam sentido.
Sempre me incomodou este exercício numérico, mais pelas conclusões que ele tira no referido capítulo. O Brasil emparelha com os
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Estados Unidos em termos de ritmo de expansão – neste período, segundo os dados de Madison, há na verdade uma ampliação mais lenta do
diferencial de renda per capita entre os dois países – e assim prossegue
durante a primeira metade do século XX. O problema estaria, portanto,
lá atrás, na primeira metade do século XIX, quando não conseguira o
país se integrar nas correntes do comércio internacional, num momento
de forte mudança das estruturas econômicas dos países mais avançados,
perdendo assim o bonde da história.
Esta é uma das raras vezes em que o Furtado economista ocupa
o centro do palco e asfixia o Furtado historiador. Não havia ele dito que
a diferença entre Brasil e Estados Unidos era de estrutura econômica e
social e dos diversos papéis do Estado e das ideologias em ambas as nações? Esta contradição entre os dois Furtados apenas se explica quando
temos em mente que o nosso autor não escreve para os historiadores de
hoje, mas para os homens públicos da época. O que ele quer dizer, para
seus leitores e também para si, é que era possível, sim, tirar o atraso.
Para tanto, ele faz uso do artifício de colocar os países numa corrida desabalada, mas ocupando raias distintas que não interagem entre si.
Ao optar por este atalho, corre o risco de inviabilizar a sua própria teoria
do subdesenvolvimento, ainda em fase de elaboração quando ele escreve
Formação econômica do Brasil. Esta é tão somente uma interpretação
que tenta devassar o inconsciente furtadiano, onde o homem público e o
intelectual travam, ao menos até 1964, uma luta sem fim, ora se somando, ora se colidindo.
Já na discussão das políticas anti-cíclicas pós-crise de 1929, realizada no capítulo 31, Furtado bate de frente com o senso comum. Utiliza
o caso brasileiro para ensinar macroeconomia ao leitor. A análise é fria,
cuidadosa e envolvente, mas o desenlace certeiro. Vale lembrar que esta
parte do texto é aproveitada integralmente de A economia brasileira.
Nosso mestre, que começara o capítulo anterior enunciando o paradoxo
da política de valorização do café e prosseguira com a insuficiência da
correção cambial para estabilizar os preços durante a crise, prepara o
terreno para afirmar que a política de defesa do setor cafeeiro significara
“um verdadeiro programa de fomento da renda nacional”.
Furtado como que “joga” com as percepções e indefinições ideológicas do leitor. Não seria “um absurdo colher o produto para destruí-lo”?
Não, pois a racionalidade econômica prega as suas peças. Estávamos, inconscientemente, ele completa, “construindo as famosas pirâmides que
anos depois preconizaria Keynes” (p. 220 e 224).
Não se trata de um argumento de autoridade. Esse mesmo capítulo
conta com um exemplo numérico, uma apresentação dos dados básicos da
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economia brasileira durante os anos 1930 e uma reflexão por dentro da ciência econômica, sem abusar de conceitos abstratos. Keynes não surge aqui
de chofre, pois estivera presente desde a análise da economia colonial.
A imagem das pirâmides keynesianas é usada propositadamente
para mostrar que “o Brasil está fazendo antes dos outros”, está no caminho
certo, em contraposição ao discurso da “vocação agrícola”. Serve como
artifício para dizer que agora a nossa economia pode caminhar por suas
próprias pernas, algo que se torna evidente no capítulo seguinte. Então
uma nova imagem em forma de título, o famoso “deslocamento do centro
dinâmico”, prepara o desfecho do autor, que flagra “uma situação praticamente nova na economia brasileira, a da preponderância do setor ligado
ao mercado interno no processo de formação de capital” (p. 229-230).
Furtado não solta fogos ou rojões, sabe que este fim almejado é
apenas o começo, sem o qual, é certo, não se pode pensar uma nação
soberana. Como se ao longo de toda a obra ele esperasse por um lampejo
de nação que pudesse se desenvolver, superando os obstáculos estruturais antepostos pelo modelo antigo. Neste sentido, pode-se dizer que o
seu raciocínio segue a mesma tensão dialética entre colônia e nação, já
presente em Caio Prado Jr., mas que ele pôde aprofundar pelo seu melhor
diálogo – inclusive crítico – com as categorias econômicas.
Em síntese, para fundir a teoria econômica com a história, nosso
autor precisa transcendê-las, sob pena de ficar preso a debates epistemológicos que o angustiam. Reduz a teoria ao mínimo denominador comum fornecido pela história e amplia o foco de visão desta, percorrendo
séculos com sua locomotiva de generalizações fornecidas pela ciência
econômica. O conteúdo apenas se revela por meio de artifícios estilísticos-metodológicos, tais como: a analogia por contraste (EUA x Brasil,
café x açúcar, Sudeste x Nordeste); o tratamento das ideologias como
representação de interesses ou como preconceitos que iludem o real; o
desmonte de mitos historiográficos por meio da análise econômica do
passado com conceitos modernos; e o uso recorrente de “explicações
operacionais” que atuam como iluminadoras de processos complexos.
Importa frisar ainda que, apesar da llaneza no trato com o leitor ao
longo da obra – como diz o economista mexicano Victor Urquidi, em artigo
escrito em 1962, Furtado se abstém dos tecnicismos que costumam tornar
“impenetráveis as obras de economia e soporíferas as de história” – existe
como que embutida uma verve missionária. Profundamente sedutor, ele enlaça seu interlocutor do presente, fazendo-o percorrer o movimento da totalidade construída pela razão e cuja síntese está na não-inexorabilidade do
subdesenvolvimento, entendido como processo histórico e não como condição natural ou passageira. Este pode ser alterado, desde que conheçamos
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suas origens e funcionamento. Não existe ciência por fora da sociedade,
como também não existem possibilidades de transformação social sem intelectuais comprometidos, isto é o que nos parece dizer o mestre.
A elucidação do processo histórico não deve servir para limitar o
horizonte, mas para abrir possibilidades insuspeitadas. Porém, nos ensina
Furtado, tenhamos cuidado com as fórmulas fáceis. Não existem receitas
mirabolantes de política econômica. O Brasil não deve necessariamente
fazer “isto” ou “aquilo”. Mais que soluções, devemos formular as questões
pertinentes: sob que condições tais políticas podem fazer sentido, apoiadas
em que grupos sociais, motivadas por que metas e destinadas a enfrentar
quais desafios históricos? “Política econômica é política, antes de ser economia”, ele, certa feita, escrevera em A pré-revolução brasileira.
É como se a obra fosse conduzida de modo a conferir ao leitor a
última palavra sobre os destinos da nação. Mas este o fará não impunemente, pois que o afresco furtadiano já lhe tomou a alma, não como
uma camisa de força, mas sob o impulso de sua reflexão libertadora. O
homem Furtado passa então a ser fruto de sua obra, que conseguiu ser,
ao mesmo tempo, empírica, conceitual, dialética e politizadora.
Furtado encara o processo de formação da estrutura subdesenvolvida brasileira, como uma positividade. Isto porque, para ser conhecido, o mesmo deve ensejar um esforço próprio de teorização. Antes de
“conhecer para poder transformar”, é preciso “transformar para poder
conhecer”, diria este iluminista arretado. É neste sentido que Formação
econômica do Brasil pôde ser também um marco para a “consolidação
da consciência desenvolvimentista brasileira”, conforme Bielschowsky
em livro já citado. Ironia da razão: este texto nada proselitista mudou a
trajetória política e intelectual de toda uma geração.
Que o Brasil e suas elites tenham desprezado Furtado no último
quarto do século XX não me parece um problema em si mesmo. Aceitemos a triste realidade: Furtado, e muitos de sua geração, foram derrotados. O esquecimento de Furtado era um pré-requisito para o triunfo dos
neoliberais nos anos 1990.
Por outro lado, bendita dialética! podemos reler hoje Formação
econômica do Brasil sob novos prismas. Acredito sinceramente que o
governo Lula, tão repleto de contradições, deva propiciar novas releituras da obra e, inclusive, a emergência de uma nova legião de jovens
furtadianos. O sujeito desenvolvimento voltou a ser proferido e falar de
planejamento estatal deixou de ser pecado. O mercado interno mostrou
a sua força e o adjetivo nacional não se afigura mais pejorativo. Contudo,
os percalços são enormes: o ufanismo do curto prazo e a formatação de
coalizões políticas indiferenciadas turvam o horizonte.
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De qualquer maneira, a leitura do último capítulo Perspectiva dos
próximos decênios está mais próxima do jovem brasileiro de hoje do que
daquele dos anos 1980. Há que se refazer a história da economia brasileira da segunda metade do século XX sob a perspectiva furtadiana e
há que se intervir na realidade das primeiras décadas do século XXI,
partindo da matriz de referência do mestre – que como diz Conceição
Tavares, no documentário O longo amanhecer, “nem se desanima, nem
é cooptado e nem tem ataques de voluntarismo”. Mas ampliando o seu
foco de análise, de modo a assimilar as preocupações contemporâneas
da sociedade brasileira.
Permito-me algumas sugestões, de caráter preliminar, neste sentido.
O Brasil, de 2004 a 2008, avançou de maneira mais expressiva
do que a média de crescimento do PIB, em torno de 4,5% ao ano, sugere. Voltou a gerar emprego formal, dinamizou o investimento, além de
ter ampliado as exportações e diversificado o seu destino. Este avanço,
entretanto, na melhor das hipóteses, apenas repôs o funcionamento do
“subdesenvolvimento industrializado”, agora sob novas bases, processo
a ser descortinado pelas novas gerações de furtadianos. Ou seja, o maior
dinamismo do mercado interno brasileiro, junto com a expansão das exportações, recoloca em um novo patamar a estrutura econômica subdesenvolvida e a condição periférica sedimentada nos anos 1970.
Por outro lado, o intervalo de baixo crescimento e instabilidade
econômica vivido no quarto de século depois de 1980 – mais os impactos
trazidos pelas políticas de desregulamentação e abertura econômica dos
anos 1990 – contribuíram para ampliar a heterogeneidade estrutural da
economia e da sociedade brasileiras, justamente o contrário do que imaginavam aqueles que pensavam ingenuamente estar superando Furtado.
De qualquer maneira, se houve esta “exacerbação da heterogeneidade estrutural”, tal como diagnosticado por Francisco de Oliveira em
seu ensaio O ornitorrinco de 2003, não nos parece que ela acarrete necessariamente a “impossibilidade de permanecer no subdesenvolvimento”, segundo o diagnóstico deste autor.
Ao final da primeira década do século XXI, poderíamos dizer que
o “ornitorrinco se move” e volta a se enquadrar na espécie dos subdesenvolvidos, o que não significa de modo algum uma volta ao passado.
O subdesenvolvimento volta a se manifestar à medida que o maior dinamismo econômico assegura uma recuperação da estrutura produtiva e
do papel do Estado como articulador/investidor, além de viabilizar uma
tentativa – insuficiente, é certo – de atenuação das desigualdades sociais.
Retoma-se inclusive uma consciência do subdesenvolvimento, ainda que
se tenha vergonha de chamar o “bicho” pelo seu nome científico.
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O fato de que o Brasil possa ser visto com regozijo pelos capitais
internacionais, e que o presidente Lula se poste como protagonista de uma
nova geopolítica global, ao passo que as contradições internas se avultem,
apenas revela que o país talvez esteja por se afirmar como uma espécie de
tipo ideal do subdesenvolvimento, não apesar, mas em virtude do aggiornamento propiciado pela atual onda de globalização econômica.
De modo a finalizar esta breve tentativa de incursão furtadiana pelo
Brasil contemporâneo, dinâmico e novamente subdesenvolvido – quem
conhece Furtado, sabe que esta constatação não tem nada de pejorativo–;
gostaria de levantar a vista para a linha do horizonte e refletir sobre os dilemas estruturais que se antepõem caso almejemos uma economia menos
dependente e uma sociedade mais justa nos próximos dez anos.
O primeiro desafio está em sustentar o dinamismo do mercado interno. Este se recuperou no período recente, motivado por um conjunto
de fatores: programas sociais, elevação do poder de compra do salário mínimo e expansão do investimento privado, e depois público, mas também
do crédito às famílias e daquele direcionado a setores específicos. Tudo
indica que, asseguradas taxas mais elevadas de crescimento econômico,
este dinamismo vai depender do planejamento estatal e da adoção de
políticas industriais e agrícolas minimamente coerentes, para que não
apareçam gargalos em infraestrutura e na própria estrutura produtiva;
e de mecanismos redistributivos mais sólidos, de modo a produzir uma
sociedade mais equitativa e reduzir a heterogeneidade tecnológica.
O enfrentamento deste desafio deve se somar à gestação de um
novo padrão de inserção do Brasil na estrutura econômica crescentemente globalizada. O Brasil não pode se conformar com a posição de
exportador de commodities, de importador de capital de curto prazo,
tampouco se abster de uma política para as empresas transnacionais
aqui sediadas, geralmente atraídas pelo mercado interno e pela opção de
montarem plataformas de exportação.
Este desafio é da mesma envergadura do primeiro e com ele se
cruza, pois, do contrário, tendemos a ver nosso mercado inundado de
produtos de maior sofisticação tecnológica, especialmente depois da mudança estrutural efetivada pela economia chinesa. Por sua vez, sem o
dinamismo do mercado interno não teremos condições e nem economias
de escala para adentrar em alguns nichos intensivos em tecnologia. A
integração com os países da América do Sul e da África é uma das formas
de associar ambos os desafios.
O terceiro desafio está relacionado ao papel do Estado, capaz de
dinamizar a economia internamente e de abrir novos espaços em mercados externos. Esta ação do Estado para dentro e para fora não pode,
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entretanto, servir como foi no passado, apenas para turbinar o potencial
de acumulação de capital do setor privado. Paralelamente, o Estado tem
tarefas históricas a desempenhar, as quais apenas indiretamente repercutem no plano econômico. São as tarefas vinculadas à universalização
de direitos e à promoção da cultura brasileira.
O quarto e o quinto desafios remetem ao que poderíamos chamar
de um ataque às condições de reprodução da extrema desigualdade social no Brasil urbano e no Brasil rural. Ainda que as lógicas espaciais
não sejam nada estanques, estamos falando de problemáticas bastante
particulares e que envolvem frentes de atuação amplas e específicas ao
mesmo tempo. O quadro cotidiano de violência urbana e os conflitos em
torno da posse da terra, ambos descontextualizados pela hipocrisia midiática, são apenas a face mais visível desta que é a sociedade mais desigual do mundo capitalista.
Os dois primeiros desafios estão mais próximos do mundo da política econômica. Os três desafios subsequentes extravasam o universo do
economista e entram em cheio no nosso dilema enquanto civilização. Todos eles exigem um espaço público que saiba incorporar as demandas da
sociedade. E, mais ainda, uma esfera política que se encarregue de lidar
com as muitas contradições que se farão sentir no meio do caminho.
O que se lê acima não tem a pretensão de servir de cartilha ou coisa
que o valha. É apenas um exercício em busca de um modo de reflexão em
desuso no Brasil. Que um professor de economia brasileira e história econômica se aventure na sua proposição talvez seja uma indicação de que os
tempos são outros, de que ficou para trás a “construção interrompida”.
Enfim, isto tudo – que era para ser um introito a Formação econômica do Brasil – para dizer que aqueles que, começaram a ler Furtado
quando ele era tido como antiquado, têm um papel importante na definição da imagem futura da sua obra e de seu legado. Além de reconhecer,
com orgulho, que o Brasil protagonizou, sob sua batuta, um dos momentos mais densos da reflexão econômica do século XX, queremos que o
método, o estilo e os temas furtadianos contaminem os que estão chegando. Que ao ser lido pelos “jovens” de hoje, o “velho” Furtado se sinta
remoçado e que o país esteja novamente à altura dos grandes desafios
ostentados por sua geração. Não basta ler Furtado, há que praticá-lo!
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Documentação
Belo Horizonte: o museu histórico da
cidade e sua atual política de acervo
Thaïs Velloso Cougo Pimentel1, José Neves Bittencourt 2 ,
Luciana Maria Abdalla Ferron3
Em texto já bastante conhecido, o teórico de museus Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses esclarece que essas instituições são espaços onde se
constrói uma intermediação institucional entre a sociedade e objetos materiais retirados do ciclo da mercancia. Segundo Meneses, a evocação, característica dos museus de história até certa época, deve estar presente, mas não
como objetivo institucional. Tirada dos museus essa característica, ela deve
ser colocada como objeto de conhecimento4 . Essa característica, entretanto,
é matricial na formação do acervo de quase todos os museus de história. Não
é diferente com o Museu Histórico Abílio Barreto, atualmente unidade da
Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte.
Este artigo tem por objetivo discutir uma questão que pode ser considerada decorrente daquela citada por Meneses: como um museu pode ultrapassar a visão evocativa e celebrativa, transformando seu acervo – ou seja,
transformando a si mesmo – em objeto de conhecimento, e, por conseguinte,
em base para o conhecimento sobre a cidade? E que providências podem ser
tomadas para que esse curso seja mantido? A evocação, qual seja, a recuperação por meio da memória, e a celebração, a homenagem solene de um evento
ou data como forma de reforçar a lembrança, são características dos museus
e não devem ser ignoradas. Entretanto, colocá-las sob crítica é também uma
necessidade, e, mais além, a única forma de lutar contra a estagnação.
1993 – O Museu posto diante de si mesmo
Criado oficialmente em 1941, como Museu Histórico de Belo Horizonte, e inaugurado em 18 de fevereiro de 1943, as origens do Museu
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Professora Adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais e Presidente da Fundação
Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte. e-mail: [email protected]
Professor do Departamento de Museologia da Universidade Federal de Ouro Preto
e pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
e-mail: [email protected]
Chefe de Gabinete da presidência da Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura
de Belo Horizonte. e-mail: [email protected]
MENESES, Ulpiano T. B. de. Para que serve um museu histórico?. In: MUSEU Paulista da Universidade de São Paulo. Como explorar um museu de história?. São Paulo:
Museu Paulista/USP, 1992. p. 1-2.
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Histórico Abílio Barreto datam de 1935. Nessa ocasião, o jornalista e escritor Abílio Barreto5 , convidado a organizar o Arquivo Municipal, encontrou diversos objetos, dispersos entre os documentos públicos. Foi quando
Barreto começou a formar uma coleção, com objetos – documentos, entre
pinturas, esculturas, instrumentos de trabalho, fragmentos de arquitetura, fotografias, plantas, mapas, etc. –, visando a formar o núcleo original
de um futuro museu da história da cidade. A partir de 1941, já nomeado
diretor da instituição, dedicou-se de maneira mais sistemática à reunião
desses acervos, que viriam a ser transferidos, em 1943, ao local escolhido
para sediar o Museu, a casa da antiga Fazenda do Leitão6 .
Esse recolhimento sistemático empreendido por Barreto acabou
por determinar o estabelecimento de uma política de acervos para o Museu Histórico de Belo Horizonte que, embora nunca formalizada, existiu
antes mesmo de sua instalação. Os objetos, considerados então “preciosidades históricas e artísticas”, eram aqueles remanescentes do Arraial de
Belo Horizonte, antigo Curral Del Rei, além dos objetos referentes à jovem
capital, Belo Horizonte, construída e inaugurada no final do século XIX.
Esse acervo foi, em um primeiro momento, organizado em duas seções,
sendo a primeira constituída pelos objetos procedentes do Arraial até a
data da inauguração de Belo Horizonte, inclusive objetos e documentos da
Comissão Construtora da Nova Capital, e a segunda, por peças referentes
à Nova Capital. Quando foi inaugurado o Museu, a organização do acervo
incluía uma terceira seção constituída de objetos relativos a Minas Gerais,
especialmente Ouro Preto, antiga capital do Estado, e ao Brasil7.
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Abílio Velho Barreto (Diamantina, 1882 – Ouro Preto, 1959) veio para Belo Horizonte
em 1895. Autodidata, tinha o serviço público como primeira ocupação e dedicava-se a
pesquisas sobre a história da cidade e também à literatura e ao jornalismo. Sua obra
maior, Belo Horizonte: memória histórica e descritiva, foi lançada entre 1926 e 1936 e
dividia-se em dois volumes: o primeiro, História antiga, e o segundo, História média.
Baseado em extensa pesquisa documental, “Barreto mirava-se no exemplo de Diogo
de Vasconcelos, tido como fundador da historiografia mineira e que em 1901 publicara
a primeira versão da História Antiga das Minas Gerais e, em 1918, a História Média das
Minas Gerais.” (FARIA, Maria Auxiliadora. Belo Horizonte – Memória Histórica e Descritiva: à guisa de uma análise crítica. In: BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória
histórica e descritiva – história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro; Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995 [1936]. 2 v.,v.1, p. 28)
CÂNDIDO, Maria Inês. MHAB: 60 anos de história. A construção do lugar e a criação da memória. Fundação e consolidação do Museu – 1935/1946. In: PREFEITURA
Municipal de Belo Horizonte. MHAB: 60 anos de história. Caderno 2. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003. p. 09-12.
SANTOS, Gilvan Rodrigues dos; COSTA, THIAGO Carlos. O futuro do passado da
cidade. A formação do núcleo original do Acervo Museu Histórico de Belo Horizonte. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 38, p. 213-230, 2006.
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Traçadas e aplicadas essas diretrizes e objetivando reunir informações técnicas e administrativas que pudesse aplicar ao novo museu, Barreto
realizou visitas a instituições do Rio de Janeiro, sendo o Museu Histórico
Nacional a que lhe despertou maior atenção. A partir das observações que
fez, Barreto elaborou o Regulamento do Museu Histórico de Belo Horizonte,
documento que, dentre outras coisas, definia a linha de recolhimento do
acervo, estabelecendo a transferência para o Museu de obras de arte, objetos, livros, documentos e folhetos existentes em todas as repartições da
prefeitura. Mesmo adotado informalmente, o Regulamento funcionou, durante os primeiros anos do Museu, como uma referência geral, sobretudo
em relação à natureza das incorporações a serem feitas8 .
A política de acervo então implementada pela direção do Museu Histórico de Belo Horizonte articulava-se aos preceitos estabelecidos, de forma
mais ampla, pela política de patrimônio em âmbito nacional:
Ao iniciar seu trabalho de “arqueologia histórica”, recolhendo “objetos-relíquia” remanescentes do velho arraial e objetos reconhecidos
como “ruínas precoces” procedentes das alterações da paisagem urbana da jovem Capital, Abílio Barreto, portanto, deu forma ao acervo
embrionário do Museu da cidade. Sua ação fazia coro a um discurso
oficial sobre museu e patrimônio histórico, à época em efervescência
no país, que tomava o passado como veículo para a solução de problemas do presente e que definia o que devia ser lembrado e esquecido,
no “jogo de lembranças e esquecimentos” da memória nacional.9
A análise da documentação guardada pelo Museu Histórico Abílio Barreto permite-nos observar que as diretrizes adotadas para o recolhimento do
acervo que deu origem à Instituição permaneceram norteando a política de
aquisição nas décadas que se seguiram à sua abertura ao público até os anos
1990. Nesses tempos, poucas foram as iniciativas de recolhimento de acervos,
embora devam ser apontados o empenho e a dedicação de sucessivos diretores e equipes, que tentaram, ainda que diante de inúmeras dificuldades, manter a integridade e dinamizar os bens integrantes do Museu. É significativo o
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BITTENCOURT, José N.; FERRON, Luciana Maria Abdalla, PIMENTEL, Thaïs
Velloso Cougo. A teoria, na prática, funciona. Gestão de acervos no Museu Histórico Abílio Barreto. Revista CPC, São Paulo, n. 3, novembro 2006/abril 2007. p.
97. Disponível em http://www.usp.br/cpc/v1/php/wf07_revista_interna.php?id_
revista=7&tipo=6&id_conteudo=3 Acesso em: 26 fev. 2008.
CÂNDIDO, Maria Inês, TRINDADE, Silvana Cançado. O acervo de objetos do
MHAB. Formação, caracterização e perspectivas. In: PIMENTEL, Thaïs Velloso
Cougo (Org.). Reinventando o MHAB: o museu e seu novo lugar na cidade – 19932003. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2004. p. 145-146.
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exemplo de Mário Lúcio Brandão, sucessor de Barreto, diretor da Instituição
entre 1946 e 1959. Brandão destaca-se por apresentar propostas inovadoras
para a época, como a incorporação da Igreja São Francisco de Assis ao Museu
ou, ainda, a ampliação do conceito do Museu Histórico de Belo Horizonte, o
que o tornaria uma instituição voltada para especializações diversas, todas
referentes a Minas Gerais. Concretamente, sua administração, no entanto,
seguiu as diretrizes formuladas pelo fundador, sobretudo no que concerne às
incorporações e às formas de aquisição, baseadas em doações feitas por particulares e transferências da prefeitura. Já nas décadas seguintes, até os anos
1990, o Museu Histórico perderia muito do vigor institucional que marcou
seus primeiros anos. Àquela altura, poucas eram as iniciativas voltadas para
o recolhimento de acervos e para o aprimoramento de sua gestão, o que, de
certa forma, definiu um período de estagnação da Instituição10.
A partir de 1993, com a instauração do chamado “processo de
revitalização”11, foi formada uma equipe técnica composta por especialistas, que deu início aos trabalhos de análise e crítica desse acervo, o que
significou, concretamente, a implementação do projeto de inventário do
acervo do MHAB e a realização de pesquisas sobre as coleções. Conhecidas
as características das acumulações de objetos preservados, suas lacunas e
possibilidades, pretendia-se, então, estabelecer as bases e condições para a
adoção de uma efetiva política de acervos no Museu.
À idéia de objetos autênticos e típicos, ilustrativos de uma história
celebrativa, na qual não há lugar para diferenças ou conflitos, o “processo de revitalização” contrapunha a proposta de ampliar os horizontes de abordagem histórica e a natureza do acervo, conferindo ao
Museu uma concepção de história socialmente mais generosa, com
vistas ao “desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o passado e o presente da cidade”.12
10 BITTENCOURT, José N.; FERRON, Luciana Maria Abdalla, PIMENTEL, Thaïs
Velloso Cougo. A teoria, na prática, funciona. Gestão de acervos no Museu Histórico Abílio Barreto. op. cit.
11 Trata-se do processo de reformulação conceitual, metodológica, infraestrutural e
administrativa do Museu Histórico Abílio Barreto, iniciado em 12 de março de 1993
com a reunião do Fórum de Discussão e Elaboração de Propostas. Esse processo
teve a duração de dez anos. Para uma memória bastante detalhada, cf. PIMENTEL,
Thaïs Velloso Cougo (Org.). Reinventando o MHAB: o museu e seu novo lugar na
cidade – 1993–2003. op.cit.
12 JULIÃO, Letícia. Visitando o futuro: o museu da cidade, dez anos depois. In: PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo (Org.). Reinventando o MHAB: o museu e seu novo
lugar na cidade – 1993–2003. op. cit., p. 176.
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O conhecimento sobre o Museu como marco de
uma nova política para o Museu
É importante ressaltar que o “processo de revitalização” consistiu
no desenvolvimento de uma série de ações institucionais encadeadas, entre
os anos de 1993 e 2002, que objetivaram a modernização do Museu e dos
diversos serviços por ele prestados. Isso significou a reorganização de todos
os serviços técnicos da Instituição, bem como a criteriosa análise e revisão
do discurso contido no acervo e nas exposições até então apresentadas. A
res-significação desse acervo acarretou também a renovação das propostas expositiva e educativa do MHAB. As discussões e decisões em torno da
necessidade de se abandonar uma concepção celebrativa do passado, e dar
lugar a uma visão crítica, capaz de considerar a multiplicidade das experiências vividas no espaço urbano, do passado e do presente, imprimiram
nova abordagem aos projetos, influenciando também a própria concepção
das exposições e dos serviços educativos. Datam do período do “processo
de revitalização”, no âmbito da política de acervos, a intensificação das
ações de identificação e recolhimento de itens relativos à Belo Horizonte
centenária e de milhares de objetos-documentos. A coleção fotográfica sob
guarda da Instituição foi consideravelmente aumentada, além de passar por
rigoroso processo de conservação, e foram incorporados arquivos pessoais
de ex-funcionários (inclusive o arquivo pessoal de Barreto)13 , que, além de
permitirem uma visão mais abrangente da cidade, foram inestimáveis para
a compreensão da formação do acervo. A implantação da unidade de extensão do MHAB na Catedral da Boa Viagem, em 1999 e 2000, pode ser também
considerada ação de grande importância, pois constituiu a primeira experiência de saída do Museu ao encontro da cidade. Nessa edificação religiosa
foram colocados em exposição de longa duração dois bens integrantes do
acervo que sobreviveram à demolição da edificação setecentista que, durante certo tempo, resistiu à destruição do Arraial do Curral Del Rei.
Muito marcante para a reestruturação do Museu foi o reconhecimento
e tratamento conceitual do “Casarão” como peça mais importante do acervo.
Essa indicação já estava presente desde a época da criação do Museu, e a
13 Trata-se aqui da incorporação do arquivo privado Abílio Barreto, composto por
aproximadamente 14 000 documentos, como manuscritos, cartas, documentos
funcionais e fotografias, e da coleção Raul Tassini, também reunindo aproximadamente 10 000 itens, como correspondências, desenhos, anotações, fotografias e
recortes de jornais. Barreto e Tassini conviveram no MHBH durante algum tempo;
o segundo parece ter sido um especialista amador em temas relativos ao folclore, e
Barreto, nos temas ligados à história. Em 1943, uma discordância entre os dois resultou na demissão de Tassini, que acabou tentando organizar um museu privado,
com milhares de itens que recolhia em andanças solitárias pela cidade.
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documentação restante desse período apresenta a ideia de que “a antiga sede
da Fazenda do Leitão deveria ser tratada e valorizada como peça do acervo,
certamente a mais emblemática do Museu, o que lhe daria a prerrogativa de
se tornar o registro número I no Livro de Tombo da instituição” 14 .
O ano de 2003 pode ser visto como um marco importante na história
recente do MHAB. Com os resultados da revitalização institucional já perceptíveis, ao completar 60 anos de sua fundação, a Instituição empreendeu
densa reflexão sobre a sua trajetória – passado, presente e, principalmente,
futuro. Determinada pela direção do MHAB a preparação de uma exposição de média duração tendo como tema justamente a história do Museu, a
equipe técnica debruçou-se sobre a tarefa de examinar um conjunto documental amplo e variado. Esse conjunto, guardado no Arquivo Administrativo do Museu, contemplava as origens e a história administrativa pelo
período de seis décadas15 .
Esse trabalho, entretanto, não era pioneiro. Desde a segunda metade
dos anos 1990, ampla e sistemática pesquisa sobre o acervo institucional havia permitido uma apreciação tanto sobre os itens individuais quanto sobre
as coleções que o compunham. Ao examinar o conteúdo simbólico expresso
nos objetos, de modo a compreender como representavam a rica e complexa
experiência da constituição da cidade de Belo Horizonte e de sua história
centenária, e estabelecer a relevância de sua guarda pela Instituição, os
pesquisadores do Museu viram-se frente a novos problemas.
Inicialmente, constataram-se as limitações do acervo, quando examinado à luz dos problemas postos pela contemporaneidade da experiência
da cidade e de seus moradores. Os objetos guardados pela Instituição falavam principalmente de um tempo passado, do planejamento e formação
da cidade. Para além desse problema, os conjuntos de objetos preservados
não davam conta das contradições e embates do cotidiano, expressavam
um processo histórico aparentemente linear, no qual não se observava nenhuma espécie de contradição16 .
14 CÂNDIDO, Maria Inês. MHAB: 60 anos de história. A construção do lugar e a criação da memória. Fundação e consolidação do Museu – 1935/1946. In: PREFEITURA
Municipal de Belo Horizonte. MHAB: 60 anos de história. op. cit., p. 10.
15 Para uma visão geral sobre o processo de reflexão realizado pelos técnicos do
MHAB, em torno dos 60 anos da instituição, cf. PREFEITURA Municipal de Belo
Horizonte. MHAB: 60 anos de história. op.cit. Segundo as pesquisadoras responsáveis pela redação do relatório final, “[a] aproximação do 60o aniversário do MHAB,
em fevereiro de 2003, trouxe a oportunidade de se realizar um amplo projeto de
pesquisa sobre o tema MHAB: 60 anos de história. Assim, em 2002, toda a equipe
debruçou-se sobre os arquivos administrativos e, pela primeira vez, pôde desvendar ou conferir novos significados a atores.”
16 A primeira exposição montada pelo então MHBH, sob supervisão de Barreto, buscava combinar a monumentalização do “Casarão” com a apreciação de relíquias sobre
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O acervo do MHAB parecia falar de uma história que caminhara
sempre em sentido positivo, sugerindo uma linearidade e continuidade do
processo histórico da capital de Minas e deixando em discreto segundo plano o fato de que o chão da cidade foi e será sempre campo de forças dos
que lutam por reconhecimento e perpetuação. Diante de questões colocadas
pela pesquisa científica e pelo avanço das ciências humanas, os documentos
reunidos sob o olhar criterioso de Barreto e de seus seguidores mais provocavam novas perguntas do que se mostravam capazes de responder aquelas
formuladas por pesquisadores internos e externos, ou mesmo pelos visitantes que se mostrassem mais atentos para o conteúdo das exposições.
As comemorações em torno dos sessenta anos da Instituição mostraram-se oportunas para refletir sobre sua inserção na contemporaneidade.
Como um museu, cujo acervo falava principalmente do passado da cidade,
poderia representar sua história recente? Desde os anos de 1940, passados
os primeiros anos da reunião das coleções originais, o recolhimento tornou-se fato eventual na Instituição. A incorporação de novos itens era muito
mais produto do gesto espontâneo dos doadores do que da reflexão sobre a
vocação e as potencialidades do Museu.
Em resumo, a equipe técnica viu-se diante da necessidade de compreender a maneira como a cidade e seus moradores eram representados no
acervo institucional. Dado o fato de que o acervo – como de resto, a Instituição – estava estagnado, a pergunta seguinte era se o Museu, em um futuro
não muito longínquo, seria capaz de representar a atividade humana responsável pela trama cotidianamente urdida pelos diversos agentes sociais
responsáveis pelo desenvolvimento da cidade, trama que se tornava cada
dia mais complexa.
O conhecimento possibilitado pelo inventário realizado nos anos
1990 permitiu que alguns problemas começassem a ser dimensionados.
Um deles parecia saltar aos olhos: algumas coleções importantes para a
compreensão da história da cidade, como era o caso da documentação produzida pela Comissão Construtora da Nova Capital, encontravam-se dispersas em instituições diferentes, à espera de um projeto que propusesse
seu tratamento unificado.
o passado de Belo Horizonte. O partido dessa exposição era ipsis literis baseado no
volume 1 da obra histórica de Barreto, na qual a povoação colonial era tomada como
antecedente da nova capital. O conjunto de contradições malresolvidas, como, por
exemplo, a destruição do casario e o deslocamento da população local para os arredores da nova capital, foi totalmente ignorado. (cf. BITTENCOURT, José N. MHBH,
MHAB, MhAB. O sítio da Fazenda Velha do Leitão, seus diversos prédios e seus museus, 1943-2000. In: PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo (Org.). Reinventando o MHAB:
o museu e seu novo lugar na cidade – 1993–2003. op.cit., p. 40-41.
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Esse foi o mote de um importante seminário realizado em 2003 pela
então Secretaria Municipal de Cultura, cujo objetivo era justamente discutir propostas para a elaboração de uma política municipal de recolhimento,
guarda e tratamento de acervos históricos. Esse seminário permitiu o debate e o levantamento de problemas a serem enfrentados pelos diferentes
órgãos não apenas municipais, mas também do estado de Minas Gerais,
que têm a responsabilidade de cuidar de acervos históricos. Alguns desdobramentos importantes dessa discussão puderam ser sentidos nos anos
posteriores quando, por exemplo, o Museu Histórico Abílio Barreto, o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e o Arquivo Público Mineiro,
instituições de âmbito municipal, as duas primeiras, e estadual, a última,
propuseram e aprovaram um projeto junto à Fapemig (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais) com o objetivo de dar tratamento unificado
ao acervo da Comissão Construtora, cuidando não apenas das estratégias
de sua preservação, mas também, e principalmente, de seu acesso17.
Além dessa iniciativa, no MHAB ganhava força a reflexão sobre a
natureza, abrangência e limites do acervo, tendo em vista principalmente o entendimento cada vez mais claro da vocação da Instituição como
museu de cidade. No entendimento do corpo técnico, a vocação original
de museu histórico não mais dava conta das demandas feitas ao Museu
pelos agentes sociais. A história é, por certo, produto de uma necessidade
social, sendo que, no entender de alguns especialistas, “mesmo as sociedades humanas mais simples precisam de história, e as sociedades complexas de nossos dias precisam de um monte de história. Para atender tais
necessidades, as sociedades juntam os restos e os detritos da experiência
e das atividades humanas”18 . O problema é que a história, como ciência,
tem-se tornado cada vez mais abrangente, sendo que, em um limite cada
17 Entre 2001 e 2004, em uma iniciativa de parceria entre as três instituições responsáveis pela guarda do acervo da Comissão Construtora da Nova Capital, foi
realizado o projeto Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital, que consistiu na microfilmagem e digitalização de toda a documentação e na construção de
uma base de dados comum, reunindo todos os registros em um único sistema de
busca. O banco de dados aqui disponível é o resultado desse projeto, patrocinado
pela Fapemig. Realizando a pesquisa por esse sistema, o usuário tem acesso às
imagens digitalizadas de todos os documentos gerados pela Comissão Construtora,
independente do local de guarda dos originais. O resultado da iniciativa pode ser
consultado em http://www.comissaoconstrutora.pbh.gov.br (Acesso em: 01 mar.
2008). Para maiores informações sobre o Projeto CCNC, cf. GOMES, Maria do Carmo Andrade; CARNEIRO, Edilane Maria de Almeida; PIMENTEL, Thaïs Velloso
Cougo. Uma experiência interinstitucional. Revista do Arquivo Público Mineiro,
Belo Horizonte, n 2, p. 177-189 , julho-dezembro 2007.
18 KAVANAGH, Gaynor. History curatorship. Washington DC: Smithsonian Institution Press, 1990. p. 4.
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vez mais próximo, tudo será de interesse da história. Assim, quais os limites do acervo reunido por um museu que se pretende “de história”? E se
esse museu for o museu de história de uma cidade? A questão é que essa
“necessidade de história” acaba tornando-se palco de luta e gerando todo
um aparato voltado para tais necessidades:
Porque as sociedades precisam de visões específicas e apropriadas, e
porque não existe uma coisa chamada memória orgânica, um conhecimento puro e inocentemente passado adiante, um grupo de funcionários e um aparato têm de ser desenvolvidos para essa função.
Assim, existem, em algumas sociedades, contadores de histórias, sacerdotes e bardos, bem como arquivistas, historiadores e curadores
de museus em outras. Todos eles existem para suprir a necessidade
de memória, lembrança e reconhecimento. Seus métodos envolvem
um cuidadoso arranjo e interpretação de fragmentos de informação
e imagens legados pela vida no passado.19
Visto então que os museus são uma necessidade social, como devem
posicionar-se diante dessa necessidade?
No ano de 2003 um Fórum de discussões em torno da política de acervos do MHAB foi organizado na Instituição. Os debates envolveram o
convite de um consultor e de um público principalmente composto de
técnicos e gestores de instituições de memória da cidade. Após dois
dias de discussões com o público mais ampliado e um dia de trabalho
da equipe do MHAB e do consultor Dr. José Neves Bittencourt, chegouse a um documento final que apontava propostas e recomendações.20
Basicamente foram destacadas três linhas de atuação com base na
definição de acervo tradicional, acervo não-formal e acervo operacional,
que pudessem orientar uma política de acervos da Instituição. Entendendo
a necessidade de dar continuidade ao trabalho tradicionalmente desenvolvido pelo Museu, via-se como essencial a tentativa de complementação das
coleções existentes. Mais do que isso, o fórum apontava para a pertinência
de uma ação mais efetiva em torno de dois conceitos novos: o de acervo
não formal, que deveria emergir de projetos calcados na mediação entre
a equipe técnica do MHAB e a população de Belo Horizonte, com vistas a
19 Idem, ibidem, p. 4.
20 MUSEU Histórico Abílio Barreto. Fórum de discussões. Política de Acervo do MHAB.
Belo Horizonte, 2003. 6p MS. Disponível no Arquivo Administrativo do Museu Histórico Abílio Barreto.
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democratizar a definição de acervo a ser adquirido pelo Museu; e o de acervo operacional, por meio do qual se entendia que espaços, paisagens, estruturas, monumentos e equipamentos da cidade deveriam ser passíveis de
tratamento museológico.
Além disso, o fórum recomendava, com destaque, a necessidade da
criação tanto de uma Comissão de Política de Acervo como a de um “manual de campo”, que deveria normatizar os procedimentos relativos à aquisição de acervo. Ficou ainda definido que o Museu deveria dar início a ações
experimentais de aquisição de acervo, tais como uma campanha de recolhimento de fotos de Belo Horizonte junto aos seus próprios funcionários e o
recolhimento de objetos pertencentes aos prefeitos da cidade, entre outros.
Entre uma política e outra – a instituição da CPPA e
a nova abordagem dos acervos
Instituída formalmente por meio da Portaria SMC no 006 de 08 de
outubro de 2003, a Comissão Permanente de Política de Acervo do MHAB
(CPPA) cuidou inicialmente de encaminhar decisões do fórum, como a
campanha de recolhimento de fotos e a definição da praça Sete de Setembro como acervo operacional. Outra importante frente de trabalho foi a
resolução de pendências: como o próprio nome sugere, tratava de definir
um esforço concentrado da equipe do Museu em torno de questões, fossem de recolhimento, transferência ou descarte de acervo, que aguardavam posicionamento da Instituição havia algum tempo.
As novas ações sugeridas pela CPPA, todas elas vinculadas a projetos formulados na Instituição, permitiram que, ao longo desses cinco
anos, a equipe técnica do Museu experimentasse uma dinâmica bastante rica de debates e de confronto com situações novas que exigiram posicionamentos claros.
O dia-a-dia dos trabalhos, por exemplo, colocou em xeque questões
relativas à originalidade, expressividade, pertinência, condições de preservação, possibilidade real de guarda de acervos, tanto os tradicionalmente
guardados na Instituição, como aqueles em busca de reconhecimento.
No interior da CPPA, há quase cinco anos, os debates têm levado
em conta várias questões teóricas: a memória e as suas infindáveis formas de manifestação; a construção e a escrita da história como disciplina e legado para as sucessivas gerações; a riqueza da experiência urbana
e os limites da sua tradução em acervos institucionais; a multiplicidade e
a diversidade do fazer humano frente à incapacidade de tudo preservar;
as dificuldades na conceituação e definição do que deve ser entendido
174
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como patrimônio em um tempo de excessos; as possibilidades técnicas
da preservação e seus limites.
A cada gesto cidadão de um morador de Belo Horizonte, que busca o Museu para a doação de acervo, uma grande quantidade de questões invade as reuniões da CPPA. Por vezes, somos apenas capazes de
formular perguntas, sem, no entanto, conseguir respondê-las. Noutras,
posicionamo-nos claramente pela incorporação ou por sua recusa. O que
basicamente tem iluminado as discussões da CPPA é o entendimento de
que somos órgão público responsável pelo cuidado com a memória da
cidade em que vivemos. Porque a compreendemos sempre no plural, o
desafio maior é quase sempre o da seleção. Afinal, praticar política pública de preservação é também, o tempo todo, fazer escolhas. E as escolhas
são feitas não apenas nas situações de ter que responder (às solicitações
de doação, por exemplo), mas também quando somos instados a olhar
de maneira especial, seja para um morador da cidade, em função de sua
projeção pública ou reconhecimento, seja para uma forma de manifestação política, artística, cidadã, enfim. Nesses casos, o Museu busca conhecer, aproximar-se, reconhecer o mérito e solicitar a doação de objetos em
suportes variados que possam expressar o conteúdo simbólico das ações
que os geraram.
A cidade, ela mesma, e não mais apenas a sua história, foi feita objeto de reflexão no MHAB. Isso significa que a Instituição tem praticado
uma política de acervos que lança olhos para os processos, além, evidentemente, de reconhecer pessoas, documentos, objetos utilitários ou artísticos como integrantes desses processos. Mas, muitas vezes, são justamente
os processos que atraem a atenção; os objetos deles oriundos passam a ser
valorizados muito mais pelo seu conteúdo simbólico que por seu caráter
excepcional. Assim, por exemplo, telas em grandes dimensões trabalhadas por grafiteiros de Belo Horizonte foram incorporadas ao acervo do
MHAB porque resultaram de uma oficina, onde a cidade foi tomada como
objeto de reflexão e apreensão. Uma coleção de cerca de 4 000 cartões postais publicitários acresceu a coleção de postais do Museu porque a CPPA
entendeu que uma empresa de publicidade de Belo Horizonte lançou mão
de uma forma de expressar a cidade, pelo viés publicitário. Essa forma é
bastante atual em sua proposta, conteúdo e alcance, e mais: pode e deve
ser percebida como reflexo do tempo que a gerou.
Trata-se, possivelmente, do futuro do Museu, posto em tela no presente.
Mudanças econômicas e políticas continuam a influenciar a maneira como o passado é lembrado e o grau de interesse do público
por ele. [...] Se as mudanças sociais e econômicas tornam-se cada
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vez mais frenéticas, o passado surgirá mais fortemente na imaginação popular. Isto poderá criar pressões por formas específicas
de história nos museus. 21
Falar nesse tipo de pressão equivale a falar na memória como objeto
de disputa pelo poder, e nos acervos como resultado final dessa luta. Atualmente, no mínimo, pode-se dizer que os museus, suas equipes e os diversos
pesquisadores que tomam essas instituições como objeto de reflexão têm
muito maior consciência sobre as questões de origem, potencialidades e limites dessas instituições, bem como da luta silenciosa que subjaz a elas.
Não é pouca coisa: se 1922 foi o momento de consolidação dos museus de
história no Brasil, e os anos seguintes foram os da implantação de grande
número dessas instituições, tornando-se o Museu Histórico Nacional a instituição referencial, nesse campo, os anos 1980 e 1990 foram os da reformulação crítica – reformulação que atingiu fortemente os acervos, seja pela via
da interpretação, seja pela via da busca de novos campos de recolhimento
de acervos. Neste sentido, a relação com a cidade revitalizada da reestruturação do Museu.
Vale aqui recorrer ao importante teórico do campo museal, Hughes
de Varine. Suas formulações estiveram, ainda que indiretamente, nos fundamentos do “processo de revitalização” do MHAB, em 1993. Suas formulações sobre a inovação e os fenômenos culturais em diferentes meios da
sociedade francesa e a avaliação dos modos de intervenção, no processo,
dos poderes públicos, publicadas em um pequeno e pouco conhecido livro22 ,
ainda hoje merecem toda a atenção. O “processo de revitalização” implicou
buscar a cidade como coletividade, o que resultou em “viver com, agir com,
refletir com pessoas implicadas no combate comunitário cotidiano”23 . Os
objetivos de Varine, ao longo de dez anos de trabalho de campo, eram muito
mais amplos do que os do “processo de revitalização” do MHAB, mas apresentavam algumas possibilidades de comparação, principalmente no que
diz respeito aos objetivos: reagir contra o discurso que esconde uma ideologia social de opressão, dar a palavra àqueles que trabalham no silêncio e
trazer uma contribuição que só pode ser empírica ao método de intervenção
social em uma estrutura comunitária 24 . É o que o MHAB e sua equipe vêm
buscando no contexto de uma administração pública que, entre acertos e
erros, comprometeu-se com a prática democrática.
21
22
23
24
176
KAVANAGH, Gaynor. History curatorship. op. cit, p. 167.
VARINE, Hughes de. O tempo social. Rio de Janeiro: Livraria Eça Editora, 1987.
Idem, ibidem, p. 18.
Idem, ibidem, p. 18.
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Máquinas de escrever, garrafas de coalhada, caixas de
sabonete – rumo ao compartilhamento de um “tempo social”
A política de acervos, em última análise, deve refletir tal comprometimento. Assim, quando os pequenos objetos do cotidiano são examinados
para aquisição, pela CPPA, são pensados não apenas como documentos potenciais para a salvaguarda e compreensão de modos de vida dispersos pela
cidade, mas também como atos finais de uma divisão de “tempo social”.
Se o tempo biológico é quase o mesmo para todo mundo, se o tempo imposto tem uma forte conotação de classe, o tempo social este
é realmente escolhido. Cada indivíduo é, ao menos teoricamente, livre para determinar a parte de seu emprego de tempo que será a ele
consagrado [...], os objetivos visados e o tipo de ação conduzida. Ele
poderá privilegiar tal ou tal nível, da responsabilidade educativa ao
centro da célula familiar ao engajamento político nacional, passando
por tal atividade associativa, pelas formações gerais complementares, por uma participação relativamente passiva, por um dinamismo
militante, etc.25
Essa digressão de Varine vai ao encontro de certas ações desenvolvidas pelo MHAB, nos últimos anos, no sentido de reforçar seu lugar na cidade e diante dos cidadãos – no caso, pessoas que resolvem, espontaneamente,
procurar o museu para encaminhar objetos para doação. Pode-se considerar que tal ação pressupõe o compartilhamento, com o Museu, de parte do
tempo individual, parte essa que Varine denomina “tempo social”, um tempo que os indivíduos dispõem de maneira que acham justa e coerente.
O tempo social é um tempo de liberdade. É aquele da criação cultural. Se, para uma elite, criação significa produção de caráter estético
ligada posteriormente a um patrimônio, para a massa de homens e
mulheres de todos os tempos, ela é o domínio de uma vida cotidiana
orientada para o futuro, conquista sempre necessária e sempre recomeçada, obra coletiva.26
Ora, a vida cotidiana é parte integrante da teia da história, e os milhões de nós da trama que formam a cidade, no museu, são constituídos
pelos “objetos/documentos”, inumeráveis produtos da cultura material
submetidos à intervenção científica e laboratorial específica. A resposta de
25 Idem, ibidem, p. 67. Grifos do autor.
26 Idem, ibidem. p. 72. Grifos do autor.
177
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cidadãos comuns às ações do Museu pode ser considerada ato de criação
cultural na medida em que leva essas pessoas a estabelecerem uma relação
com a instituição; também pode ser considerada “trabalho da memória”, já
que essas pessoas procuram encaminhar seus objetos com a intenção de
juntar memórias pessoais ao que é percebido como memória oficial e, dessa
maneira, lutar contra o esquecimento.
De toda forma, o encontro de iniciativas individuais com a ação sistemática da CPPA, como intermediária entre o Museu e o público, parece, se
levarmos em conta as considerações da especialista inglesa Gaynor Kavanagh, ser a forma mais eficaz de
fortalecer os laços com a comunidade local e aumentar a qualidade
e o alcance das coleções, através da extensão de seus registros e atividades de aquisição e de sua integração com atividades educativas e
exposições. A relevância social [das atividades dos museus] abre-lhes
a possibilidade não somente de alcançar a população local, mas também de engajar uma audiência mais democrática do que os museus e
exposições mais convencionais.27
Objetos utilitários, obras de arte, correspondência, livros, bordados,
trabalhos escolares, monumentos e fotografias têm sido constantemente
avaliados pela CPPA como expressão de um modo de ver, sentir e habitar a
cidade. Às histórias neles contidas soma-se o trabalho dos técnicos do Museu que investigam, exploram, contrapõem versões, acrescentam dados que
farão dos registros das vivências de alguns o documento a ser conhecido
por muitos. Ao serem feitos objetos de museu, esses fragmentos poderão ser
vistos e revistos por uma sucessão de gerações de curiosos e/ou estudiosos
da história da cidade de Belo Horizonte.
27 KAVANAGH, Gaynor. History curatorship. op. cit., p. 170.
178
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Tecnologia & Memória
Marcos Galindo1
As disciplinas que se sombreavam à copa da árvore do conhecimento cuidaram consuetudinariamente que a memória seria matéria
afeta ao campo das especialidades que tratavam do resgate, da interpretação e da reconstituição do passado com base em fontes vestigiais de
registro do conhecimento. Nesta função situavam-se a história, a arqueologia, a genealogia, entre outras. Bibliotecários e arquivistas se inseriam
no campo da memória com uma participação coadjuvante, contribuindo
tecnicamente para ordenação, estruturação e resgate das fontes e registros do conhecimento. Esses profissionais escolheram historicamente
posição auxiliar aos cientistas, posição esta que evoluiu danosamente
para uma condição de subalternidade que retardou o desenvolvimento
da disciplina. Durante muito tempo, foi popular a máxima positivista
autodenominante, ex libris dos bibliotecários, Scientia servos servorum,
que os descrevia voluntariamente como servos dos servos da ciência 2 .
Essa visão parece ter sua gênese numa compreensão histórica
equivocada do ofício, de ânima positivista. É neste contexto que, em 1876,
o bibliógrafo norte-americano Melvil Dewey, fundador da primeira escola de bibliotecários da América e pai da classificatória universal, lança
as bases de seu código decimal (CDD). Dewey foi um dos primeiros a
1
2
179
Marcos Galindo é doutor em História pela Universidade de Leiden, Holanda, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do Departamento de
Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), coordenador
do Laboratório Liber – Tecnologia do Conhecimento. E-mail: [email protected]
CASTRO, César Augusto. História da biblioteconomia brasileira. Brasília: Thesaurus
Editora, 2000. 287 p. Ver Scientia Servus Servorum em _____; Ribeiro, Maria Solange
Pereira. As contradições da Sociedade da Informação e a Formação do Bibliotecário.
Revista digital de biblioteconomia e ciência da informação, Campinas, v. 1, n. 2, p.
41-52, jan./jun. 2004. p. 44. “Deste modo, são exigidos novos perfis ao profissional,
aqueles que dessem conta de controlar a produção bibliográfica nacional, em especial, a técnico-científica. Daí, os bibliotecários passarem a adaptar a insígnia ‘Servos
dos Servos da Ciência’. Os bibliotecários entendiam a expressão como algo positivo,
na medida em que se consideravam como auxiliares dos cientistas, a quem estes
recorriam quando necessitavam de informação para o desenvolvimento de seus estudos e pesquisas. Enfim, o ato de servir à ciência era um sinal de modernidade bibliotecária, ou seja, uma atividade que requeria especialização em um dado campo.
Desse modo, essa expressão marcava a diferença entre o bibliotecário generalista do
qualificado, especializado. Mas o que significa servo? Sujeito, vassalo, dependente,
subalterno, inferior, pessoa a serviço de alguém, o que podemos concluir?”
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 179-190
oferecer oportunidade de trabalho qualificado para as mulheres, a quem
preferia como operadoras do sistema descritivo de fontes bibliográficas3 .
Tecnologia e memória: instrumental de TI da
Ciência da Informação
As aplicações para as Tecnologias da Informação e Comunicação
(TIC) estão ligadas às mais diversas áreas da atividade humana e adotam,
de cada ambiente, visões renovadas pelas distintas experiências de trabalho e trajetórias científicas. No último quartel do século XX, entretanto,
a engenharia da computação apropriou-se do termo Tecnologia da Informação (TI) para definir o conjunto de atividades que envolviam o “estudo, design, desenvolvimento, execução, suporte ou gestão de sistemas
de informação mediados por computador, particularmente aplicações de
software e hardware”4 . Ocorre, porém, que os instrumentos de ordenação
do conhecimento preexistiam à Informática e à Ciência da Computação.
As disciplinas do formativo da Ciência da Informação iniciaram seu
desenvolvimento ainda na antiguidade clássica por ocasião do surgimento das primeiras interfaces de registro físico do conhecimento5 . A escrita
3
4
5
180
Segundo Marcos Almeida, “o papel reservado às bibliotecárias pelas concepções de
Melvil Dewey muito contribuiu para isso. Coerentemente com o espírito ainda positivista da época, Dewey concebia seu sistema como o resultado final do progresso
científico na área, não vislumbrando a necessidade de uma formação intelectual
crítica para as bibliotecárias, já que elas iriam apenas reproduzir tarefas predeterminadas dentro de uma rotina.” ALMEIDA, Marco Antônio de. Informação, cultura e sociedade: reflexões sobre a Ciência da Informação a partir das Ciências
Sociais. In: LARA, Marilda Lopes Ginez de; FUJINO, Asa; NORONHA, Daisy Pires.
Informação e contemporaneidade: perspectivas. Recife: NÉCTAR, 2007. 316 p.
Tradução livre do original depositado em: Information Technology Association of
America (ITAA). www.itaa.org/
HAYES, ROBERT M. Information Science and Librarianship. In: WIEGAND, Wayne A.;
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In: HAHN, Trudi Bellardo and BUCKLAND, Michael (Org.). Information Today, Inc.,
Medford, NJ, The American Society for Information Science. 1998. p. 272-295.
revista ieb n50 2010 set./mar. p. 179-190
despertou a humanidade para a necessidade de organizar o conhecimento em categorias que permitissem a recuperação eficiente da informação;
neste mandato, os custodiadores do conhecimento passaram a desenvolver instrumentos teórico-metodológicos, estratégias e tecnologias para a
organização, gestão, recuperação e disseminação da informação.
Da busca por processos eficientes de representação da informação6
surgiu a tecnologia do controle bibliográfico que, até poucas décadas atrás,
reunia os mais avançados recursos para organização e recuperação do conhecimento. No final do século XX, esses instrumentos foram otimizados
com o adjutório da informática, ganhando eficiência, adaptabilidade e versatilidade. Mais do que isso, novas linguagens e formatos de representação
ajudaram a criar função social inovadora para a Tecnologia da Informação, que acabou por encontrar aplicações novas, dilatando as fronteiras
herméticas das disciplinas que até então curavam da ordenação do saber.
Com o suporte da informática e da ciência da computação, as tecnologias da informação alcançaram públicos muito mais amplos e estão presentes em praticamente todos os ramos da atividade humana moderna.
Nas últimas duas décadas, a informática e a ciência da computação se expandiram, estabelecendo os limites de seus campos de ação. A
informática assentou-se na investigação, no desenho, no desenvolvimento, na execução, no suporte e na gestão de sistemas de informação mediados por computador. A Ciência da Informação, a seu turno, na pesquisa,
formação e inovação, nos campos da memória, da gestão da informação
e da organização do conhecimento, em suas variadas manifestações.
É bom lembrar que as profissões emergentes no século XXI não
resultam da mera evolução do quadro de ofícios das disciplinas do passado histórico, desenvolvidas a partir dos escombros do mundo industrial. Rápida e progressivamente, as novas competências da sociedade da
informação se desligaram do manejo analógico dos produtos industriais
– até então predominante – para o campo da gestão de matérias sutis
das tecnologias da inteligência. A capacidade viabilizada pela TI de representar produtos do conhecimento em meio digital – as possibilidades
de transmissão e recepção de dados, voz, imagens e uma variedade de
novos conteúdos como livros, imagens em movimento, música integrada
em um único meio – gerou profundas mudanças na forma de trabalho e
nas competências exigidas dos profissionais da informação.
Este conjunto de mudanças estimulou a emergência de uma nova
economia, baseada em inusitadas tipologias de negócios e na criação de
6
181
Refiro-me à busca por formatos padronizados, linguagens taxonômicas, sintaxes de
categorização, sistemas de recuperação da informação, tratamento, controle, disseminação e uso da informação, além de gestão, produtos e serviços de informação.
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empresas de base inovadora. As competências tradicionais de organização
do conhecimento têm um peso significativo neste novo tempo. O conhecimento registrado, a memória das instituições e dos indivíduos, permanece
em expansão e demandando tratamento organizacional. O grande volume
de conhecimento disponibilizado com o aporte dos instrumentos da informática requer estratégias híbridas de ação, que claramente não podem ser
atendidas com eficiência somente pela informática.
Neste mandato, os trabalhadores do conhecimento se apresentam
como um dos novos operadores sociais: indivíduos habilitados a satisfazer
as expectativas e demandas de alocação dos recursos do conhecimento e a
incrementar a produtividade e gerar inovação. Dessa forma, no que tange
à Ciência da Informação, a TI refere-se ao conjunto de instrumentais técnicos e lógicos, saberes e fazeres, capacidades e habilitações desenvolvidas pelas suas disciplinas basilares – a biblioteconomia, a documentação
e a arquivística –, aplicadas à organização do conhecimento.
A guerra das competências
Um largo debate sobre a temática da evolução das disciplinas da
Ciência da Informação tem alimentado a discussão das competências dos
novos profissionais da informação. Desse debate resulta uma linha clara
que perfila as diversas tendências em Ciência da Informação, aquela que
coloca como função primordial criar fluxos de informação em estoques de
conhecimento. Esta lógica leva-nos à concepção de um profissional de ação
no campo da memória do conhecimento, com atuação centrada na organização e uso da informação registrada em suportes de variada natureza.
Muitas dessas ferramentas – criadas deste a Idade Média e otimizadas no século XIX – serviram historicamente à ordenação do conhecimento, registrado em modo analógico de suporte, de materiais como
livros e documentos em papel, e, conforme antes lembrado, preexistiam
ao advento da Informática e da Ciência da Computação.
A Biblioteconomia, disciplina originariamente tecnicista, evoluiu
para o domínio da pesquisa, passando as últimas décadas envolvida com
o debate epistemológico e altérico que resultou na definição de uma identidade para a Ciência da Informação. Esta progressivamente perdeu sua
posição de coadjuvante para alçar a condição de Ciência da Informação,
reconhecida pela comunidade acadêmica como portadora de objetos e
instrumentos metodológicos próprios7.
7
182
LE COADIC,Y.F. A ciência da informação. Brasília, DF: Briquet de Lemos, 1996. 119 p.
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Cabem, então, à Ciência da Informação a investigação e o desenvolvimento de instrumentos de descrição semântica das interfaces do
conhecimento, mas mais especificamente a reflexão sobre as estratégias
de resgate da informação e preservação do acesso a ela; em certa medida, um contraponto ao paradigma custodial desenvolvido pela noção do
controle bibliográfico, preso à ação de descrever e controlar os objetos do
registro da produção do conhecimento. Cabe também à Ciência da Informação a reflexão sobre a tarefa de transformar informação potencial em
conhecimento cinético através do acesso e uso da informação.
A assunção desta tarefa colocou os trabalhos da memória em campos distintos e cooperantes, libertando a biblioteconomia da relação de
servitude que antes modelava o comportamento dos operadores dessa
área do conhecimento.
Quando se observa a memória da perspectiva da gestão e do planejamento, ela deixa a natureza que a agrega ao sentido do pretérito e associa-se ao senso de matéria corrente e de futuro. Agregado este conceito
a outro, de informação como recurso, como matéria, ativo de capital,
revela-se então uma fronteira ainda pouco explorada para a memória
como matéria-prima a serviço do desenvolvimento. Desta forma, entende-se que planejar e preservar para o futuro passam pela compreensão
da relevância destes ativos no tempo presente.
O problema
Há pouco mais de uma década teve início um debate local, derivado de outro universal que se debruçava sobre o conjunto de problemas
gerados pela necessidade de organização e acesso aos registros do conhecimento versus a práxis custodial 8 . Esse momento era estimulado pelas diferentes opiniões que se perfilavam frente aos desafios criados pelo
desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação e pela
instalação social do ciberespaço que, a seu turno, colocavam em xeque
muitos dos paradigmas documentais válidos até o final do século XX.
8
183
Segundo Armando Malheiro, o paradigma custodial “compreende o modo de ver, de
perspectivar os documentos e seus conteúdos (informação), construído por décadas de
formação de matriz historicista e técnico-profissional. Este paradigma identifica-se com
a Modernidade, pois nasce nela, sob a égide do desenvolvimento e da consagração da
História, das instituições memorialísticas e custodiadoras geradas pelo Estado-Nação e
incorporadas mais tarde (depois da Segunda Guerra Mundial) no Estado cultural, tais
como os arquivos, as bibliotecas e os museus e do pendor técnico/tecnicista ou procedimental, apurado ao longo do século XX, dos profissionais criados por esse tipo de instituições ou serviços”. SILVA, Armando Malheiro da. A informação: da compreensão do
fenómeno e construção do objecto científico. Porto: Edições Afrontamento, 2006. p. 159.
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Este ambiente discursivo estimulou a criação do grupo de pesquisa Virtus, formado por pesquisadores da Comunicação, da Ciência da
Informação e de Design da UFPE. O grupo movia-se lato senso pela necessidade de tomar parte do debate universal e, stricto senso, pela oportunidade de criar expertise local no campo da gestão do conhecimento.
O ambiente Virtus se aplicava a problemas interdisciplinares, a
maior parte de caráter teórico, comuns às três áreas e específicos, que
verticalizavam o foco na investigação dos problemas afetos a suas disciplinas de origem. À Ciência da Informação interessava o problema das
fontes de informação armazenadas sem uso como objeto-conteúdo, potencialmente transformadoras, mas que permaneciam sem aplicação social pela ausência de instrumentos tecnológicos que permitissem – com
eficiência – a sinapse no ciclo da informação.
Não bastava apenas resgatar e preservar o conhecimento: ao esforço de descobrir e guardar, um outro de igual tamanho se impunha, no
sentido de fazer acessíveis as fontes de modo inovativo. O processo exigia
o afastamento do canto da sereia que convidava à revolução conservadora: precisava ser conduzida a reforma de velhos conceitos. O momento
pedia o incremento permanente de novos valores como forma de alcançar a eficiência dos produtos e serviços que os instrumentos tradicionais
já não eram capazes de oferecer. Para isto, era necessário o questionamento permanente aos velhos problemas, que permitisse respostas criativas e a instalação da consciência transformada.
Liber
O Liber foi criado em 1996, a partir do experimento Libvirtus, e
se consolidou como espaço integrador de pesquisa e desenvolvimento,
tomando como objeto de observação as bibliotecas virtuais, a hipermídia
no contexto da instalação social do ciberespaço 9 .
Objetivamente, o problema que interessava ao Liber dizia respeito
ao baixo uso dos acervos de memória coletados pelos pesquisadores pernambucanos José Hyginio Duarte Pereira (1847–1901), da Faculdade de
Direito, e José Antônio Gonsalves de Mello (1916–2002), do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco.
9
184
Foi formalizado como projeto de pesquisa pelo pleno do Departamento de Ciência
da Informação em abril de 1997. Em 2006 institucionalizou-se, passando a se denominar Líber – Laboratório de Tecnologia do Conhecimento. O regimento interno
foi aprovado pela 138a Reunião do Pleno do Departamento de Ciência da Informação
da Universidade Federal de Pernambuco, realizada em 11 de agosto de 2006.
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O primeiro havia coligido entre 1885 e 1886 um corpus composto por
11 500 páginas manuscritas, cópias de documentos holandeses, hoje depositadas no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
(IAHGPE). O segundo formara, entre 1937 e 1990, uma das mais apreciáveis
coleções de microfilmes de interesse histórico já reunidas sobre o Brasil
colonial: 60 000 documentos microfilmados, entre os anos de 1957 e 1968.
Não obstante a notória importância, as duas coleções partilhavam
de um fenômeno comum: a baixa taxa de consulta e uso por pesquisadores brasileiros. Em um período de 126 anos, por exemplo, apenas cinco
pesquisadores haviam feito uso efetivo das fontes em língua holandesa,
do acervo coligido pelo Dr. José Hyginio.
Este fato era perturbador, uma vez que a reunião desses acervos
paradoxalmente atendia a uma carência crônica de fontes históricas de
interesse nacional, haviam sido financiados com recursos públicos e estavam devidamente depositados em instituições memorialistas, a quem,
em tese, caberia a curadoria do patrimônio histórico, da preservação e
do acesso às fontes. Ao contrário, o que se revelava era uma práxis custodialista, que cuidava da guarda do bem físico dificultando o acesso, sob a
escusa de que o manuseio dos documentos poderia causar danos irreparáveis às cópias e, consequentemente, impossibilitar a consulta.
Por muito tempo essas coleções estiveram sob a responsabilidade
do Dr. José Antônio, que havia assumido a posição de guardião das duas
coleções: a dos documentos holandeses do IAHGPE, por ser o único historiador pernambucano habilitado na língua neerlandesa, e a dos documentos microfilmados dos arquivos europeus, por ter sido ele mesmo seu
coligidor. Para muitos, por trás desse cuidado escondia-se uma prática
de monopólio de fontes. Os fatos, entretanto, apontam para uma conduta
diferente. Uma breve consulta na bibliografia organizada por Lúcia Gaspar10 constata que o Dr. José Antônio reservou a parte mais substancial
de sua produção acadêmica à tradução, leitura paleográfica e publicação
de fontes coloniais brasileiras. Junte-se a este argumento a constatação
de que até bem pouco tempo atrás não havia pesquisadores locais habilitados na leitura do holandês, fato que desfaz na base a maliciosa acusação. José Antônio Gonsalves de Mello foi também um cuidadoso editor11,
tratando, anotando e coligindo fontes de difícil acesso. Encontrou em
10 GASPAR, Lúcia Maria Coelho de Oliveira. José António Gonsalves Mello: cronologia e bibliografia. Recife: ANPUH, Núcleo de Pernambuco, 1995, 57. Também acessível na biblioteca virtual José Antônio Gonsalves de Mello mantida pela Fundação
Gilberto Freyre. Disponível em: http://www.fgf.org.br
11 GASPAR, Lúcia Maria Coelho de Oliveira. Biocronologia de José António Gonsalves
de Mello Neto. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.
ns.presentation. NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode=307&textCode=886
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Leonardo Dantas as preciosas características do publicador que, justiça
seja feita, deu seu toque numa das mais significativas iniciativas de publicação de fontes históricas empreendidas no Brasil no século XX.
A publicação dessas fontes testemunha o pioneirismo de José Antônio e seu ativismo na preservação e melhoria do acesso. O mesmo,
todavia, não se pode dizer dos historiadores e bibliotecários a quem fora
confiada a tarefa de guardar as fontes microfilmadas por José Antônio.
A ignorância sobre a importância dessas fontes ou, pior ainda, a descura
pelo trabalho do acesso fizeram com que os microfilmes copiados sob a
tutoria de José Antônio nos arquivos europeus fossem parcialmente destruídos por falta de conservação.
A partir dos microfilmes de sais de prata que se conservam nos arquivos de origem, foram reproduzidas três cópias, das quais apenas a que
se depositou na Divisão de Pesquisa Histórica da UFPE preservou-se. A segunda cópia foi esquecida na Biblioteca Joaquim Cardoso da UFPE e, sem
uso e cuidados de manutenção, avinagrou12 . Uma terceira cópia, que teria
sido confiada ao Instituto do Patrimônio Histórico, supostamente foi levada
para Brasília e dela não mais se tem notícia. A ausência de equipamentos,
de pessoal técnico qualificado para facilitar o uso dessas fontes e, paradoxalmente, o zelo mal-instruído acabaram por selar seu desafortunado
destino. Todavia, o catálogo13 elaborado por José Antônio e seus auxiliares
serviu de base para a ação do projeto Resgate Barão do Rio Branco.
12 Os microfilmes que sobraram desta coleção foram enviados ao Instituto de Estudos
Brasileiros da USP, onde estão sendo digitalizados para disponibilização ao público
em projeto cooperado entre o LIBER e o IEB.
13 José Antônio Gonsalves de Mello fez publicar nos cadernos da Divisão de Pesquisa
Histórica da UFPE um ementário dos fundos por ele coligidos no Arquivo Histórico Ultramarino, que até bem pouco tempo era praticamente o único instrumento de pesquisa dos documentos brasileiros. A publicação desse catálogo, organizado por Cleonir
Xavier de Albuquerque Costa e Vera Lúcia Costa Acioli, foi interrompida nos manuscritos relativos ao século XVIII. O Projeto Resgate ampliou o trabalho de José Antônio
e incluiu documentação não contemplada por ele em seu catálogo. Parece que esses catálogos derivam das Relações de Papéis Avulsos relativos à capitania de Pernambuco,
publicados por José Antônio em Portugal nos anos de 1950. Sobre esse tema consultar:
MELLO NETO, José António Gonsalves de. 1ª relação de papéis avulsos relativos à Capitania de Pernambuco, 1605–1738, organizada pelo Sr. Prof. Dr. José António Gonsalves
de Mello Neto, da Universidade do Recife, quando leitor deste Arquivo. In: ARQUIVO
HISTÓRICO ULTRAMARINO, Pernambuco. I, Lisboa, AHU, 1952, p. 1-62; ____. 2ª relação de papéis avulsos relativos à Capitania de Pernambuco, 1739–1794, organizada pelo
Sr. Prof. Dr. José António Gonsalves de Mello Neto, da Universidade do Recife, quando
leitor deste Arquivo. In: ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Pernambuco. I, Lisboa, AHU, 1952, p. 63-154; ____. 3ª relação de papéis avulsos relativos à Capitania de
Pernambuco, 1597–1671, organizada pelo Sr. Prof. Dr. José António Gonsalves de Mello
Neto, da Universidade do Recife, quando leitor deste Arquivo. In: ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Pernambuco. I, Lisboa, AHU, 1952, p.155-395.
186
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Em 1998, propusemos à mesa diretora do IAHGPE, a esta época
presidida pelo Dr. José Antônio, um projeto de memorial14 , que pretendia
organizar os microfilmes resgatados na Biblioteca Joaquim Cardozo em
um banco de dados informatizado, e o desenvolvimento do projeto de
tradução dos documentos holandeses da Coleção José Hygínio.
Buscava-se um instrumento simples que disponibilizasse catálogo eletrônico, seguisse os padrões modernos de descrição de conteúdos,
permitisse a troca eficiente de dados com outros sistemas e considerasse
a possibilidade do acesso irrestrito a seus conteúdos.
Tratávamos as fontes documentais como um recurso potencial que,
em seu estado natural, portava as condições de transformação e de operacionalização instrumental para uso intensivo e sistêmico em benefício
da sociedade, mas que, por um conjunto de circunstâncias, não conseguia
converter-se em recurso ativo, potencializado pelo uso sistêmico.
Esta iniciativa previa, em sua primeira fase, a digitalização dos
catálogos da coleção de microfilmes coligida pelo Dr. José Antônio, publicados pela DPH/UFPE. Da segunda fase do projeto constava a criação
de uma base de dados em meio digital dos microfilmes.
O projeto foi executado com recursos do Fundo de Cultura do Estado de Pernambuco – Funcultura – e da Embaixada do Reino dos Países
Baixos. Partia de dois bancos de dados: o Ultramar e o Monumenta Hyginia. O primeiro utilizou-se de imagens digitalizadas do acervo do Dr.
José Antônio, da coleção dos documentos do Conde dos Arcos oriunda da
Biblioteca Universitária de Coimbra, cedida pelo Dr. Evaldo Cabral de
Mello, e ainda por microfilmes coletados pelo Projeto Resgate Barão do
Rio Branco no Arquivo Histórico Ultramarino.
Clio
O Projeto Monumenta Hyginia previa, em uma primeira fase, a
digitalização dos manuscritos da Coleção José Hyginio do IAHGP. Em
seguida, a tradução desses documentos para a língua portuguesa e, finalmente, numa terceira etapa, o desenvolvimento da base de dados.
Para gerenciar o grande volume de registros digitais e para viabilizar
14 Do núcleo original dessas iniciativas foram desenvolvidos ainda o projeto do Guia
de Fontes do Brasil Holandês, incorporado depois ao Projeto Resgate-Holanda, a
restauração e posterior exposição do Atlas Vingboons do IAHGPE, com recursos
do Buiteland Zaken e Embaixadas do Reino dos Países Baixos, e ainda a tradução
do livro Tempos dos Flamengos, publicado pela primeira vez em holandês pela
Walburg Peers, Zupthen, Holanda, com auspícios do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
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sua veiculação em ambiente de livre acesso, foi desenvolvido pelo Liber
um banco de dados web based.
Esse instrumental web evoluiu para o software CLIO, viabilizado
mais tarde através do convênio firmado entre a Fundação Joaquim Nabuco e a UFPE para a construção de um sistema web, destinado à gestão de conteúdos em meio digital. A primeira versão do Clio foi lançada
em 2005 reunindo recursos de recuperação da informação, descrição em
metadados e protocolo OAI, presentes nos experimentos Ultramar e Monummenta Hyginio. (www.liber.ufpe.br). O convênio tinha por objetivo o
desenvolvimento de instrumentos de gerenciamento e difusão de acervos
documentais e intercâmbio de tecnologia, tocante especialmente às áreas
da memória, do patrimônio cultural e da Ciência da Informação, da gestão
do conhecimento e do gerenciamento eletrônico de objetos digitais.
O desenvolvimento do sistema respondia a um conjunto de problemas de gestão de acervos de interesse histórico em meio digital, relatados por instituições atuantes no campo da preservação da memória.
Especificamente barreiras para o usuário de biblioteca digital, tais como
ineficiência do sistema de buscas, documentos não disponibilizados por
completo, não aceitação de diferentes tipos de mídia, ausência de interoperabilidade com outros repositórios.
O Instituto de Documentação – INDOC – da Fundação Joaquim
Nabuco, depositário de valiosos acervos da expressão cultural brasileira,
buscava uma solução de TI para atender com eficácia às crescentes demandas de conhecimento surgidas com o advento da “sociedade da informação”. Ao mesmo tempo, o LIBER buscava oportunidades para aplicação
do know-how armazenado na área da gestão do conhecimento. Subjazia
ainda o interesse recíproco de estabelecer uma rede de acervos e pesquisadores integrados em uma estrutura lógica interinstitucional, habilitada
a experimentar o uso de instrumentos comuns e metodologias de gestão
documental, que permitissem replicar e expandir a experiência para outras instituições de guarda de fontes históricas e do patrimônio cultural.
O Clio oferece recursos de sistema de recuperação de informação,
biblioteca digital multimídia (texto, áudio, vídeo e imagem), visualização e
manipulação de documentos, e interoperabilidade entre os repositórios15 .
Clio-i interoperabilidade é uma extensão do Clio que permite a interoperabilidade entre diferentes bases. Reúne o Clio-i data provider e o
15 GALINDO, Marcos; CARDOSO, M. J.; PRUDENCIO, R. B. P.; BARROS, F. A. Gerenciamento e interoperabilidade entre bibliotecas digitais. In: Diego A. Salcedo;
Maria Cristina Guimarães Oliveira; Maria Mercedes Dias Ferreira Otero. (Org.).
Construção, práticas e identidade da Ciência da Informação. Recife: NECTAR,
2009, p. 79-101.
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Clio-i service provider. Utiliza o open archives, através de uma extensão
protocolo oai-pmh, está registrado oficialmente no oai como provedor de
dados e serviços.
O Clio atualmente gerencia mais de uma dezena de projetos em
instituições, como: Fundação Joaquim Nabuco, Save The Children – Suécia, Museu Murilo la Greca, Museu da Cidade do Recife, Sudene. A versão
java do software foi lançada no segundo semestre de 2008.
A experiência nos mostra que a eficiência de iniciativas documentalistas do passado foi limitada pela ausência de estratégias de acessibilidade de longo prazo. Indica também que não foi eficiente a escolha
de registrar as fontes para o Brasil com métodos que limitam o acesso16 .
Processos reprográficos como a microfilmagem devem, quando muito,
ser utilizados com o registro de segurança. Essa posição baseia-se em
recente recomendação da Unesco e no fato de que a indústria reprográfica deixou de investir em processos de registro analógico desde a década
de 80 do século passado, quando a tecnologia digital emergiu comercialmente, permitindo registros de imagem de alta fidelidade, preços e serviços acessíveis. A troca de dados automatizada entre sistemas de redes
distribuídos, o uso de bancos de dados e a descrição de recursos de informação com metadados permitem hoje a busca e recuperação da informação com rapidez e precisão superior a qualquer processo ancestral.
Iniciativas como open archives17 desenvolveram recursos tecnológicos
que avançaram na lógica da preservação pela distribuição da informação, distanciados do pensamento do controle documental que tem como
base o resgate e a preservação sem oferecer soluções inteligentes de distribuição da informação.
Métodos modernos que utilizam suportes de registro digital ainda
não são suficientemente confiáveis no quesito durabilidade de suporte, como
16 GALINDO, Marcos; VAN’T SANT, Onno Hattinga. Memória partilhada: o mundo
atlântico e os Países Baixos. In: GALINDO, Marcos (Org.). Shared memory. awad
workshop Brazil: report the atlantic world and the Dutch, 14 ed. Recife: Nectar,
2006, p. 6. Ver também CONSOLINI, B.; GALINDO, Marcos; Report AWAD. The
atlantic world and the Dutch, 1500–2000: a mutual heritage project (workshop Brazil). In: GALINDO, Marcos; CONSOLINI, Barbara (Org.). Awad Workshop Brazil:
the atlantic world and the Dutch, 1500–2000: a mutual heritage project report. Recife: Nectar, 2006, p. 19-63.
17 http://www.openarchives.org/index.html; TRISKA, Ricardo; CAFE, Lígia. Open
archives: the Brazilian Digital Library subproject. Ci. Inf., Brasília, v. 30, n. 3, 2001.
Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010019652001000300012&lng=en&nrm=iso>. Accesso em: 15 Nov. 2006. doi: 10.1590/
S0100-19652001000300012.
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o CD-ROM18 , mas se fortalecem na capacidade de reprodução da matriz a
baixo custo, no potencial de difusão e acesso à informação, na qualidade
das imagens e na versatilidade permitida pelos recursos de distribuição das
redes de alcance mundial. Somente o volume de cópias, boas práticas de
conservação digital e o uso permanente das fontes podem garantir a preservação dos suportes e justificar o uso social da informação.
Iniciativas modernas que não incluam, em seu planejamento, estratégias objetivas de acessibilidade às fontes históricas devem ser vistas
sob o olhar crítico dos interessados em construir um ambiente produtivo de debate da memória histórica. Não basta mais apenas descrever as
coleções, reproduzi-las de modo analógico para mantê-las armazenadas em depósitos remotos de acesso limitado. Urge promover-se o acesso
largo às fontes a quem delas possa fazer uso, como forma de garantir a
preservação a partir da oferta de acessibilidade e assim promover com
versatilidade e eficiência a pesquisa.
Resta clara a necessidade do desenvolvimento de redes de interação, networks, infraestrutura de pesquisa e iniciativas coletivas que
busquem conferir poder de acessibilidade às fontes históricas. Em Pernambuco, a Rede Memorial Pernambuco vem procurando promover
cooperação interinstitucional19 . Evidencia-se também a necessidade de
se investir, de forma sistemática, na direção da convergência de iniciativas, o que implica a existência cooperada de diversos projetos trabalhando de forma integrada, com metodologias interoperáveis, abaixo de um
objetivo universal. A diversidade e alteridade das iniciativas devem ser
defendidas, tendo como eixo orientador o princípio da memória enquanto patrimônio coletivo universal.
18 BRADLEY, Kevin. Risks associated with the use of recordable CDs and DVDs as reliable storage media in archival collections: strategies and alternatives. MEMORY
OF THE WORLD PROGRAMME, Sub-Committee on Technology. UNESCO, Paris,
October 2006. By Kevin Bradley. National Library of Australia, Canberra. “[...] for
researchers and the general public. Thanks to the newest technologies, originals
can be restored, preserved in the best possible conditions and their digital copies
disseminated [...]” http://www.tanap.net/
19 A Rede de Cooperação Interinstitucional Memorial Pernambuco é um programa
concebido com o objetivo de promover cooperação interinstitucional através da
realização de programas estratégicos de promoção, preservação e acesso ao patrimônio memorial e informação de interesse histórico, custodiados por instituições
de missão memorial de Pernambuco. A Rede Memorial Pernambuco, firmada em
março de 2009, tem por signatários fundantes o Museu da Cidade do Recife, a Biblioteca Pública de Pernambuco, o Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano
e a Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, a Fundação Joaquim Nabuco, a Fundação Gilberto Freyre são membros permanentes do grupo.
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Notícias
István Jancsó
Neste 23 março, faleceu o Prof. Dr. István Jancsó. Historiador de
renome, sua obra compreende uma vasta produção relacionada à formação do Estado Nacional brasileiro. Em sua carreira, o professor lecionou
em grandes universidades como a USP e a de Nantes (França). Foi diretor
do Instituto de Estudos Brasileiros (2002 – 2006) e membro da Comissão
Editorial desta revista (2007 – 2008). Atualmente, era professor titular
do IEB, editor da revista eletrônica Almanack Braziliense e coordenador
do projeto Brasiliana USP.
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Missão
A Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (Revista IEB) tem por missão refletir sobre a sociedade brasileira articulando múltiplas áreas do
saber. Nesse sentido, empenha-se na publicação de artigos originais e
inéditos, resenhas e documentos relacionados aos estudos brasileiros.
Critérios para a apresentação e publicação de artigos
1.
Condições gerais
• A Revista do Instituto de Estudos Brasileiros publica artigos em português e espanhol.
• Os artigos a serem apresentados para apreciação e eventual publicação
pela Revista do Instituto de Estudos Brasileiros deverão ser encaminhados em formato digital e impresso, em 1 via.
• Os artigos serão submetidos à avaliação de dois (02) pareceristas, sendo
considerada a autenticidade e originalidade do trabalho.
a.Em caso de divergência será ouvido um terceiro parecerista
b.Os pareceristas têm 30 dias para emitirem seus pareceres.
c.O prazo médio de resposta para os autores é de quatro (04) meses
• A revista reserva-se o direito de adequar o material enviado ao seu projeto editorial.
• Todo artigo deverá vir acompanhado de declaração do seu autor nos
seguintes termos:
Autorizo a Revista do Instituto de Estudos Brasileiros a publicar o artigo [colocar o título], de minha autoria, assim como me responsabilizo
pelo ineditismo do mesmo e, também, pela cessão dos autores quanto
ao uso das imagens, caso seja aceito para a publicação. Eu, [colocar
nome completo], CPF [colocar número], RG [colocar número], residente
no endereço [colocar endereço compelto], assino a presente declaração
como expressão absoluta da verdade e me responsabilizo integralmente, em meu nome e de eventuais co-autores, pelo material apresentado.
[Local e data]
A declaração deverá ser assinada e enviada ou para o seguinte endereço:
Instituto de Estudos Brasileiros
Revista do IEB
Av. Prof. Mello Moraes, travessa 8, 140
Cidade Universitária
05408-030 – São Paulo – SP
Brasil
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2. Padronização do trabalho enviado
2.1. Formatação
Programa: Word; dimensão da página: A4; margens: 2,5 cm; fonte: Times Roman; corpo: 12; entrelinha: 1,5.
2.2. Quantidade de caracteres
• Artigos: entre 30 mil e 52 mil caracteres (incluindo espaços)
• Resenhas: entre 5 mil e 20 mil caracteres (incluindo espaços)
• Notícias e documentação: até 20 mil caracteres (incluindo espaços)
2.3 Complementos
• O artigo deve obedecer as normas ABNT NBR 6022/ 2003.
• Em página inicial e separada do corpo do texto devem constar: título do artigo, em português e em inglês ou outra língua estrangeira; nome(s) do(s)
autor(es); filiação institucional completa (departamento, unidade, etc).
• Caso o trabalho tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser mencionada no início do texto, abaixo do nome do autor.
• Resumo de no máximo 10 linhas em português e em inglês.
• Palavras-chave, entre três e cinco, em português e em inglês.
• Ilustrações, gráficos e tabelas devem trazer suas respectivas legendas.
2.4 Notas e bibliografia
• As notas explicativas e bibliográficas devem constar no rodapé devidamente numeradas e obedecidas as disposições da ABNT. Exemplos:
1 REIS FILHO, Nestor Goulart. A urbanização e o urbanismo na região
das Minas. São Paulo: FAU/USP, 1999. (Cadernos do LAP, 30).
2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O semeador e o ladrilhador. In: ________.
Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. cap. 4, p. 93-138.
3 TORRÃO FILHO, Amílcar. Paradigma do caos ou cidade da conversão?:
a cidade colonial na América portuguesa e o caso da São Paulo na administração do Morgado de Mateus (1765-1775). 2004. 338 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, 2004.
4 BASTOS, Rodrigo Almeida. A arte do urbanismo conveniente: o decoro na implantação de novas povoações em Minas Gerais na primeira
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metade do século XVIII. In: PEREIRA, Sônia Gomes (Org.). Anais do
VI Colóquio luso-brasileiro de história da arte. Rio de Janeiro: CBHA/
UFRJ/UERJ/PUC-Rio, 2004. v. 2, p. 667-677.
5 CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970.
6 MAUAD, Ana Maria. Entre retratos e paisagens: modos de ver e represen­
tar no Brasil oitocentista. Studium, Campinas, v. 15, 2004. Disponível em:
http://www.studium.iar.unicamp.br/15/01.html. Acesso em: 27 fev. 2007.
3. Responsabilidades
• As traduções deverão ser acompanhadas de autorização do autor do tex­
to original.
• Fica estritamente restrita ao autor do artigo a responsabilidade pela reprodução das imagens.
• A Revista não se responsabiliza pela redação nem pelos conceitos emitidos pelos colaboradores/autores dos artigos.
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