EOS — Revista Jurídica da Faculdade de Direito / Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do
Curso de Direito. — v. 4, n. 7 (jan./jul. 2010) — Curitiba: Dom Bosco, 2010.
Semestral.
ISSN 1980 - 7430
1. Direito — Periódicos. I. Faculdade Dom Bosco. Núcleo de
Pesquisa do Curso de Direito.
CDD 340
EOS
Revista Jurídica da Faculdade de Direito
ISSN 1980—7430
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Tiragem
1 000 exemplares
Apresentação
Ao apresentar mais um número da revista EOS, que ora se coloca à disposição da comunidade
acadêmica, saliento a imensa satisfação que tenho em fazer parte dessa história.
Produzir uma revista científica não é tarefa das mais fáceis. Mantê-la com a qualidade que
sempre se almejou, despertando o interesse dos profissionais que produzem pesquisa nas áreas das
ciências jurídicas, se reveste, então, de motivo de orgulho, para todos aqueles que trabalham para
manter a revista EOS como um veículo a serviço do pensamento livre e da divulgação das pesquisas que
são produzidas nas academias mas que devem extrapolar seus limites, conquistando novos públicos.
Esta edição reproduz a seriedade do trabalho até aqui conduzido. Os programas de pósgraduação stricto senso, das mais variadas universidades do país, responderam ao nosso convite.
Pudemos, assim, trazer para o debate acadêmico a produção científica feita nesse nível. Acreditamos
na necessidade deste debate, no engrandecimento pessoal, profissional, acadêmico que a divulgação
e o confronto de ideias favorecem. Isso não significa que a produção acadêmica de nossa instituição
fique esquecida. Ao contrário! Nossos docentes continuam presentes, e a pesquisa desenvolvida
na Faculdade Dom Bosco está sempre em condições de dialogar com os demais pesquisadores e
incrementar o debate e a pesquisa junto aos discentes.
“El derecho se aprende estudiando, pero se ejerce pensando”, disse Eduardo Couture. E esse
pensar crítico só se faz se tivermos acesso aos diversos intelectuais que “pensam” a cultura jurídica. A
eles agradecemos com a publicação de mais este número da revista EOS.
Professora Ms. Maria Cristina Leite Gomes
Coordenação da revista EOS
6
SUMÁRIO
Artigo 1
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito
do Consumidor: o Direito a ser Informado
Ana Paula Myszczuk
Frederico Eduardo Zenedin Glitz
29
9
Artigo 2
As Restrições ao Exercício do Poder
Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento
jurídico nas relações de trabalho
Ana Beatriz Ramalho de Oliveira Ribeiro
Artigo 3
Gestão Pública e Meio Ambiente:
a cobrança pelo uso dos recursos Hídricos
como instrumento de implementação
da racionalidade ambiental
45
Edinei Carlos Dal Magro
61
Artigo 4
Métodos Alternativos de Resolução de
Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário
Alexia Rodrigues Brotto
Maureen Cristina Sansana
7
85
Artigo 5
Direito, Economia e Estado:
integração possível?
Luiz Antonio Grisard
Artigo 6
A Teoria às avessas e seus reflexos no
Direito Empresarial e no Direito de Família
Gislaine Fernandes de Oliveira Mascarenhas Aureliano
129
8
103
Artigo 7
O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação
dos direitos humanos
José Carlos Portella Jr.
Transgênicos e
Vulnerabilidade no Direito
do Consumidor: o Direito
a ser Informado
Ana Paula Myszczuk1
Frederico Eduardo Zenedin Glitz2
1 Pressupostos. 2 Da vulnerabilidade do consumidor. 3 Da hipossuficiência do
consumidor. 4 Transgênicos: o dever de informar. Notas conclusivas. Referências
Resumo
O sistema brasileiro de proteção ao consumidor é regido pelo princípio da vulnerabilidade
e adota, entre outros mecanismos de equalização, a figura da hipossufiência.
Frequentemente confundidos, tais conceitos são distintos e merecem análise detalhada.
São, hoje, ainda mais relevantes, se levarmos em conta os avanços da biotecnologia.
Nessa medida um importante passo é assegurar o direito à informação ao consumidor,
exposto a relações de consumo que envolvam organismos geneticamente alterados.
Assim, o presente artigo abordará o conceito de vulnerabilidade do consumidor e
seu alcance jurídico. O consumidor é considerado vulnerável, pois tem sua vontade
Advogada, graduada em licenciatura em história e bacharelado em direito, ambos pela Universidade Estadual
de Ponta Grossa; mestre em direito econômico e social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná;
doutoranda em direito econômico e socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; membro
do Quis (Grupo de Pesquisa em Sustentabilidade) da Unibrasil e dos estudos do Co-Extra (Co-Existence
and Traceability) no Brasil. Atualmente é professora da Faculdade Metropolitana de Curitiba (FAMEC) e
Faculdade de Educação Superior do Paraná (Fesp). Tem experiência na área de direito privado, com ênfase em
história do direito e direito civil. E-mail: [email protected]
2
Advogado, mestre e doutorando em direito das relações sociais (UFPR), especialista em direito e negócios
internacionais (UFSC) e em direito empresarial (IBEJ), professor de direito das obrigações, direito dos contratos
e direito internacional privado da Unibrasil, professor de direito das obrigações dos contratos da faculdade de
direito da Universidade Positivo (UP); professor convidado da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR e
da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), membro do “Virada de Copérnico,” grupo
interinstitucional de pesquisa e estudo do direito civil. Membro do grupo de estudos em Direito empresarial
da UFPR. Membro do Quis (Grupo de Pesquisa em Sustentabilidade) da Unibrasil e dos estudos do Co-Extra
(Co-existence and Traceability) no Brasil, membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP), membro do
Conselho de Comércio Exterior da Associação Comercial do Paraná. E-mail: [email protected]
1
9
Artigo 1
facilmente limitada, tendo-se em vista os mecanismos existentes no mercado para criar
“necessidades”. Em seguida trata de um dos mecanismos de defesa do consumidor,
que é o estabelecimento de sua hipossuficiência, que pode ser monetária ou técnica. A
partir de então analisa o direito do consumidor de ser informado sobre a presença ou
ausência de ingredientes transgênicos em determinado alimento, de forma suficiente,
clara e precisa. Destaca, ainda, como deve ser a rotulagem dos alimentos que contêm
ingredientes transgênicos. Nas notas conclusivas, entende que a hipossuficiência e a
vulnerabilidade do consumidor são instrumentos importantíssimos na defesa de seu
direito à informação sobre os OGMs.
Palavras-chave: consumidor, vulnerabilidade, hipossuficiência, transgênicos
Abstract
The Brazilian consumer protection system is governed by the principle of vulnerability
and adopt, among other mechanisms of equalization, the figure of hiposuficiency.
Often confused, these concepts are distinct and deserve detailed analysis. Today, are
even more relevant, if we take into account the advances in biotechnology. This is an
important step to ensure the right information to the consumer exposed to consumer
relations involving genetically modified organisms. Thus, this article will address the
concept of consumer vulnerability and its legal effect. The consumer is considered
vulnerable because their free will is easily limited, having in view the market mechanisms
to create “needs”. Then analyses one of the mechanisms of consumer protection, which
is establishing its hiposuficiency, which can be monetary or technique. Then examines
the right that the consumer to be dully informed about the presence or absence of
GM ingredients in certain food, with sufficient, clear and precise information. It also
emphasizes how it should be the labeling of GM foods that contains GM ingredients.
In concluding remarks mean that the weaker and vulnerable consumers are important
instruments to defend its right to be informed about GMOs.
Keywords: consumer, vulnerability, less sufficiency, transgenic
1 Pressupostos
O presente artigo faz parte de um estudo maior realizado no projeto de
pesquisa “Co-Extra: the GM and non-GM supply chain: their Co-Existence and
Traceability”, patrocinado pela Comissão Europeia e com a presença de mais de 52
parceiros, em 18 países. Este trabalho foi apresentado originariamente em inglês,
nos congressos internacionais, ISDA – Innovation and Sustainable Development in
10
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
Agriculture and Food, em Montpellier e EuroSafe – Global food e security: ethical and
legal challenges.
As atuais relações contratuais parecem demonstrar a complexidade de
uma “nova” lógica de trocas. Nelas, outros objetos são transformados em prestações
negociáveis. São eles “fantasmas” que surgem a demandar tutela jurídica e exigir
reconhecimento.
Nesse sentido, um dos dilemas que se apresentam é o “regime jurídico”
atinente aos organismos geneticamente modificados. A questão é, ainda, mais relevante
quando tratamos de relações contratuais realizadas entre “não iguais”, nas quais não
há equilíbrio necessário nos poderes de barganha, acesso ao conhecimento, manejo de
instrumentos ou estratégia de mercado.
Para os fins do presente artigo, limitamo-nos à análise dos casos em que
o consumidor pode ser sujeito de relações biotecnológicas. Relações essas em que,
necessariamente, não se tem acesso completo às informações necessárias a fundar uma
escolha consciente.
Nesse tocante será necessária a compreensão de como a tutela do direito
à informação é abrangido pela legislação consumerista brasileira e, dentre seus
instrumentos, quais os mecanismos consagrados a tutelar o sujeito vulnerável.
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro (Lei n. 8.078/1990) foi
elaborado a partir do princípio da proteção ao consumidor, tal como havia sido
determinado pelo texto constitucional (artigo 170, V). Trata-se, portanto, de
instrumento de proteção jurídica do consumidor frente aos fornecedores.
A opção do legislador brasileiro parece ter sido tutelar a relação jurídica
de consumo, lastreando-a, forçosamente, no princípio da boa-fé objetiva. Para
implementar tal disposição, define a figura do “consumidor” como toda pessoa física
ou jurídica e/ou toda a coletividade de pessoas que adquiram ou utilizem produtos ou
serviços como destinatários finais. Perceba-se, desde já, que em tal conceituação resta
evidente a tutela da vulnerabilidade. Define, igualmente, a figura do “fornecedor”,
como toda pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, bem como os
entes despersonalizados, que exerçam atividades de produção, montagem, criação,
construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização
de produtos ou serviços3.
Para operar a proteção ao consumidor, o Código parte do pressuposto de
que ele é a parte vulnerável nessa relação contratual. A tutela, então, do consumidor
não teria aspecto paternalista, mas seria forma de preservar o equilíbrio negocial por
Conforme redação dos artigos 2º e 3º do CDC.
3
11
Artigo 1
meio da promoção de instrumentos de equalização. Em outros termos, assume o papel
de promoção da justiça contratual.
Juridicamente, portanto, a tutela do consumidor parte da atribuição de uma
qualidade intrínseca e indissociável de todos que se colocam na posição de consumidor,
isto é, o reconhecimento de sua vulnerabilidade. Partindo desse reconhecimento, o
Código estabelece uma série de direitos ao consumidor que garantam e facilitem essa
proteção, como a tutela do consumidor hipossuficiente.
Os conceitos de vulnerabilidade e hipossuficiência, embora muito utilizados
como sinônimos, apresentam diferentes feições.
Desse modo, o presente trabalho pretende realizar algumas diferenciações
em conceito, características e objetivos de cada um dos institutos, utilizado como
base o que dispõe o art. 4º, I, e o art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor,
aplicando-os às discussões envolvendo os organismos geneticamente alterados.
2 Da vulnerabilidade do consumidor
O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, estabelece uma
política nacional para as relações de consumo, enumerando uma série de princípios
protetivos ao consumidor, que norteariam todo o disposto no Código4. Essa política
é um instrumento que visa a equilibrar os interesses de consumidores e fornecedores,
preocupando-se com o atendimento das necessidades daqueles e a transparência e
harmonia das relações de consumo. Dentre esses princípios, um dos mais importantes
é o do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor5.
Segundo escreve Almeida6, o princípio da vulnerabilidade é considerado
a “espinha dorsal da proteção ao consumidor, sobre o que se assenta toda a linha
filosófica do movimento” consumerista. Reflete esse autor:
A primeira justificativa para o surgimento da tutela do consumidor, segundo entendemos,
está assentada no reconhecimento de sua vulnerabilidade nas relações de consumo. É
facilmente reconhecível que o consumidor é a parte mais fraca na relação de consumo. A
começar pela própria definição de que consumidores são os que não dispõem de controle
sobre os bens de produção e, por conseguinte, devem submeter-se ao poder dos titulares
destes. Para satisfazer suas necessidades de consumo, é inevitável que ele compareça ao
Art. 4º. A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades
dos consumidores; o respeito a sua dignidade, saúde, segurança; a proteção de seus interesses econômicos; a
melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos
os seguintes princípios...
5
Os demais princípios enumerados neste artigo são: ação governamental no sentido de proteger o consumidor,
harmonização dos interesses dos consumidores e fornecedores, educação e informação, controle da qualidade,
mecanismos de atendimento e de solução alternativa de conflitos de consumo, coibição de abusos no mercado,
racionalização e melhoria dos serviços públicos, estudo das modificações do mercado. 6
ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 11 e 15.
4
12
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
mercado e, nessas ocasiões, submeta-se às condições que lhe são impostas pela outra
parte, o fornecedor.
Complementa Almeida:
Há um certo paralelismo entre o empregado e o consumidor. Está ocorrendo com a defesa
do consumidor o mesmo fenômeno vivido há cinquenta anos, quando surgiu a tutela do
empregado nas relações de trabalho: é que tal tutela só foi possível e se tornou real após
o reconhecimento da situação de fragilidade e dependência econômica do empregado em
face do empregador. O mesmo está ocorrendo agora no que respeita ao consumidor, ou
seja, do reconhecimento de sua vulnerabilidade está nascendo a tutela legal.
O consumidor é considerado vulnerável por ter facilmente limitada a sua livre
manifestação de vontade. Isso é especialmente verdade no que se refere à escolha de suas
prioridades e necessidades, tendo-se em vista todos os procedimentos, mecanismos,
métodos e técnicas utilizados pelos fornecedores para, mesmo indiretamente, fomentar,
manter, desenvolver e garantir a circulação de seus produtos e serviços7.
Conforme argumenta Slater8, todas as coisas produzidas devem ser vendidas
de modo que o aparato produtivo requeira a produção de novo consumismo, novos
produtos, novas necessidades e novos usos para as coisas. Além das necessidades
básicas, são criadas necessidades para os homens, e a satisfação das necessidades
depende do acesso às comodidades e do consumo.
Pasqualotto caracteriza em síntese a relação de consumo, sob o ponto de vista
de suas partes.
De um lado, situa-se o fornecedor de bens e serviços, geralmente materializado numa
empresa, estruturada não somente para atender a sua finalidade precípua, como apta
a prover o resguardo dos seus interesses comerciais, seja através de ações adredemente
concebidas, inseridas na sua própria estratégia mercadológica, seja através de recursos
diversos, que vão desde o poder de barganha até departamentos jurídicos especializados.
De outro lado, o consumidor, geralmente uma pessoa física isolada, desconhecedora dos
seus próprios direitos ou impossibilitada de acioná-los, impotente diante da lesão aos seus
interesses legítimos, confrontada com a necessidade de consumir bens imprescindíveis à
sua própria existência e dignidade9.
Neste sentido é o entendimento jurisprudencial:
CONTRATO – prestação de serviço – rescisão – ajuizamento por consumidor– alegação de ter sido induzido
em erro, através de agressiva estratégia de marketing – artigo 4º inciso I, do Código de Defesa do Consumidor –
ônus da prova em contrário que cabia ao réu – artigo 6º, inciso VIII, do mesmo Código – Recurso provido. (AC
262.603-2, São Paulo, apelante: Rodolfo Roberto Alves de Almeida, apelada: JK Viagens e Turismo Ltda.
8
SLATER, Don. Consumer, culture & modernity. Cambridge: Blackwell Publisher Inc., 1997. p. 108-111.
9
PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos Fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. p. 49.
7
13
Artigo 1
Tais mecanismos de convencimento e de manipulação que incidem,
diariamente, sobre o consumidor são variados e acabam por criar representações
fetalizadas da vida, que induzem o consumidor a considerá-las reais, tornando-o
vulnerável, fazendo-o necessitar de proteção legal10.
Filomeno11, comentando o Código de Defesa do Consumidor, afirma que no
âmbito da tutela especial, efetivamente, o consumidor “é sem dúvida a parte mais
vulnerável, se tiver em conta que os detentores dos meios de produção é que detêm
todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir, sem se falar
na fixação de suas margens de lucro”.
Conforme escreve Almeida12, há um consenso no mundo ocidental sobre a
vulnerabilidade do consumidor, “já tendo a ONU se pronunciado sobre esse assunto,
na Resolução 29/248, de 10.4.8513, reconhecendo que os consumidores se deparam
com vários desequilíbrios, o que conflita com o direito de acesso a produtos e serviços
seguros e inofensivos”.
O conceito do que seja a vulnerabilidade do consumidor abrange diversos
enfoques, como o econômico, técnico-profissional e jurídico. O consumidor é vulnerável
economicamente, pois os possuidores dos meios de produção – fornecedores – detêm
todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir, para quem
produzir e as taxas de lucro utilizadas.
Nesse sentido, expõe Amarante14:
O poderio econômico da parte mais forte evolui no desequilíbrio da força contratual, que
dita condições, faz prevalecerem interesses egoístas, contrata sem combate, mascarando os
privilégios e assegurando-lhe a eficiência e a rentabilidade.
(...)
O CDC proíbe, em seu artigo 37, toda a publicidade enganosa ou abusiva. A publicidade enganosa é aquela
que informa incorretamente o consumidor sobre um produto ou serviço. Abusiva é a publicidade que se excede
despropositadamente e de forma contrária aos critérios de igualdade de determinada conduta reconhecida
como lícita.
11
idem, p. 16.
12
GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do
anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária., 1998. p. 46.
13
Resolução adotada pela Assembleia Geral (ONU) – Normas para a proteção do consumidor – Objetivos:
1. Levando em consideração os interesses e as necessidades dos consumidores em todos os países, particularmente
os países em desenvolvimento; reconhecendo que os consumidores se deparam com desequilíbrios em termos
econômicos, níveis educacionais e poder aquisitivo; e tendo em mente que consumidores têm o direito de
acesso a produtos inofensivos, assim como o direito de elaborar um desenvolvimento econômico e social justo,
equitativo e duradouro, essas normas para a proteção do consumidor têm o seguintes objetivos: (...) 14
AMARANTE, Maria Cecília Nunes. Justiça ou equidade nas relações de consumo. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 1998. p. 15-16.
10
14
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
Comprovadamente exposto aos fenômenos econômicos, tais como a industrialização,
a produção em série e a massificação, assim como vitimado pela desigualdade de
informações, pela questão dos produtos defeituosos e perigosos, pelos efeitos sobre a
vontade e a liberdade, o consumidor acaba lesionado na sua integridade econômica
e na sua integridade físico-psíquica, daí emergindo como vigoroso ideal a estabilidade
e a segurança, o grande anseio de protegê-lo e colocá-lo em equilíbrio nas relações de
consumo.
A vulnerabilidade ténico-profissional do consumidor surge da falta de
conhecimentos específicos sobre determinado ramo de atividade ou serviço. Note-se,
ademais, que tal falta de acesso fica ainda mais evidente quando são analisados os
desenvolvimentos biotecnológicos. Isso é especialmente sensível se pensarmos em
termos de utilização de organismos geneticamente modificados na alimentação animal
e humana e na falta de divulgação ou acesso às consequências disso.
Conforme Bonatto e Moraes15, “cada área de conhecimento possui
naturalmente suas peculiaridades, somente sendo propiciado ao estudioso específico
de determinada matéria o domínio integral das causas, conceitos e conseqüências
dos fenômenos passíveis de ocorrência nessa área”. Se imaginarmos a quantidade
de invenções que povoam o dia a dia das sociedades humanas, ter-se-á noção do
quão variados são os bens criados pelo homem e a vulnerabilidade científica dos
consumidores.
Concluem os autores que o vulnerável consumidor “não tem como ser
equiparado aos fornecedores de produtos e serviços também por esse aspecto, pois
estes detêm os conhecimentos técnicos e profissionais específicos atinentes às suas
atividades, o que induz à óbvia aceitação de que o consumidor deve ser protegido”.
Outro enfoque sob o qual pode ser analisada a vulnerabilidade do consumidor
é jurídico. A sociedade de consumo inaugura um novo tipo de contração, a de massa,
nas quais se inserem os contratos de e por adesão . No contexto dessa nova realidade, os
fornecedores se valem dos contratos por adesão16, que, pela complexidade, tecnicidade,
falta de clareza e transparência, dificultam a manifestação de vontade livre e consciente
do consumidor17, fazendo surgir a necessidade de proteção legal. Uma dessas formas
de tutela é a imposição, ao fornecedor, do dever de informação sobre a composição de
determinado alimento. Poder-se-ia exemplificar esse tipo de situação na exigência de
ibidem p. 44.
Contratos de adesão são aqueles em que os aderentes não podem rejeitar as cláusulas uniformes estabelecidas
de antemão. Contratos por adesão são aqueles fundados em cláusulas também estabelecidas unilateralmente
pelo estipulante, mas que não seriam irrecusáveis pelo aderente.
17
O CDC, no art. 54, determina que os contratos de adesão sejam escritos em termos claros e com caracteres
ostensivos e legíveis, de modo a facilitar a sua compreensão pelo consumidor.
15
16
15
Artigo 1
que conste do rótulo de alimentos geneticamente modificados a figura do triângulo
amarelo de advertência.
Importante salientar que o reconhecimento da vulnerabilidade independe do
nível econômico, social ou intelectual do consumidor. Também não admite prova em
contrário, não é questionável e não pode ser suprida, uma vez que é um princípio e
não uma presunção legal. É uma qualidade intrínseca, peculiar, ingênita, imanente e
indissociável de todos que se colocam na posição de consumidor. Na verdade se admite,
mesmo, que aqueles que não são consumidores lato sensu (art. 2º do CDC) possam,
demonstrando sua vulnerabilidade, receber a proteção prevista naquela legislação (art.
29 do CDC).
Deve-se frisar, ainda, que o princípio da vulnerabilidade do consumidor
tem natureza jurídica de direito material, que busca evidenciar o significado daquela
situação em que alguém se encontra frágil ou fraco em relação a uma situação ou
alguém.
Na lição de Silva18, a palavra princípio exprime uma noção de “mandamento
nuclear de um sistema”, nos quais confluem valores e bens eleitos pelo legislador,
constituindo-se em preceito básico da organização do sistema e a matriz de todas as
outras normas constantes de lei.
Nesse diapasão, o princípio da vulnerabilidade do consumidor é um dos
pilares do Código de Defesa do Consumidor, que serve de base para todo o sistema,
sendo uma diretriz orientadora para a consecução dos objetivos colimados por este.
Sua adoção implica em considerar o consumidor como centro do universo jurídico e
a vulnerabilidade impossibilita a redução do consumidor à condição de mero objeto
do mercado ou dos fornecedores19. É uma diretriz material para a identificação de
direitos implícitos, seja de cunho defensivo, seja prestacional, funcionando como um
limitador das atividades dos fornecedores. Constitui-se não só numa garantia de que o
consumidor não será objeto de manipulação que o reduzam à condição de objeto, mas
também num dever de pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo e/ou da
coletividade.
Enfim, é um princípio que embasa os posicionamentos jurídicos subjetivos,
isto é, as normas definidoras dos direitos, garantias e deveres constantes do Código de
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 84.
PROCESSUAL CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR – indenização por acidente de trânsito – sentença
condenatória prolatada em favor do consumidor – intervenção de terceiro que impossibilita a consecução
imediata do direito material do consumidor – enaltecimento do princípio da vulnerabilidade. Não deve ser
admitida a intervenção de terceiro quando já proferida a sentença, na medida em que a anulação do processo,
para permitir o chamamento da seguradora, acabaria por retardar o feito, prejudicando o consumidor, o que
contraria o escopo do sistema de proteção do consumidor, (AGA 184616/RJ; agravo regimental no Agravo de
Instrumento – 1998/0025532-0).
18
19
16
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
Defesa do Consumidor, sendo decorrente dos princípios gerais da atividade econômica
estabelecidos no art. 170,V, da constituição Federal de 1988. É parâmetro para sua
aplicação, interpretação e integração do código.
Por fim, cumpre destacar que o princípio da vulnerabilidade apresenta-se
consubstanciado principalmente nos artigos 6º, VIII – que possibilita a inversão do ônus
da prova; 12, 13 e 14 – que disciplina a responsabilidade dos fornecedores em danos por
acidente de consumo; 38
publicidade; 39, IV
–
–
–
que determina necessidade de informações verdadeiras na
proteção do consumidor mais fraco contra práticas abusivas; 46
que desobriga o consumidor quando da imposição de contratos de que não tenham
conhecimento prévio; 47 – que impõe o critério de interpretação em favor do consumidor
das cláusulas contratuais; 48 – que obriga o cumprimento dos escritos; 51 § 4º – que confere
competência do MP para postular contra cláusulas potestativas nos contratos.
3 Da hipossuficiência do consumidor
De acordo com o exposto no item anterior, o Código de Defesa do Consumidor
visa a equilibrar a relação contratual entre fornecedor e consumidor. Para tanto,
estabeleceu uma série de direitos básicos ao consumidor20, dentre os quais – artigo 6º,
VIII – o da facilitação da defesa de seus direitos, no qual se insere a possibilidade de
inversão do ônus probatório.
Caldeira21 explica que, para se entender o porquê da inversão do ônus da
prova, mister se faz aludir ao caput e ao inciso I do artigo 5º da Constituição Federal
de 198822, que estabelece o princípio da isonomia. Escreve:
Art. 6º - São direitos básicos do consumidor:
I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos
e serviços considerados perigosos ou nocivos;
II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de
escolha e a igualdade nas contratações;
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificações corretas de
quantidades, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como
contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em
razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos
patrimoniais e morais, individuais, técnica aos necessitados.
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo
civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiências;
IX – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
21
CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Inversão do ônus da prova. In: Revista de direito do consumidor. v. 38, p. 169.
22
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos seguintes termos:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (...)
20
17
Artigo 1
A fim de atender ao princípio da isonomia, foi que o Código de Defesa do Consumidor
adotou vários mecanismos destinados a colocar o consumidor em posição de igualdade
com o fornecedor, numa busca desenfreada à igualdade real – e não só formal.
Primeiro passo foi o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (...). Entrementes,
o reconhecimento da fraqueza do consumidor perante o fornecedor, ante uma relação
jurídica, não se fazia suficiente para a implementação do princípio da isonomia. Era
necessário, ainda, um tratamento desigual diante de uma relação processual. Assim, o
Código estatuiu, como um dos direitos básicos do consumidor, o direito à facilitação da
defesa, sendo certo que, para tanto, possibilitou a inversão do ônus da prova como meio
mais viável de atingir essa facilitação.
Conclui-se que o objetivo de se instituir a possibilidade de inversão do ônus da
prova é não só colocar o consumidor em igualdade com o fornecedor, mas garantir-lhe
uma efetiva e adequada proteção processual.
Moreira23 afirma que a possibilidade de inversão do ônus da prova consiste
em atribuir ao consumidor uma vantagem processual, consubstanciada na dispensa
do ônus de provar determinado fato, o qual sem a inversão deveria demonstrar,
transferindo o encargo de provar, que os fatos não aconteceram ao fornecedor. Desse
modo, a inversão significa isenção de ônus para o consumidor e criação de ônus
probatório ao fornecedor.
Essa possibilidade fica evidente quando se trabalha com relações de consumo
cujo objeto sejam os desenvolvimentos biotecnológicos. Como se poderia exigir do
consumidor a demonstração de elementos tecnológicos que, na maior parte das
hipóteses, sequer compreenda? Imagine-se, por exemplo, a necessidade de se demonstrar
a existência de vício em relação à qualidade do produto (por exemplo, pela ausência de
informação sobre a presença de transgenia) ou, mesmo, a de que tal tipo de produto
pode ser o responsável por determinada alergia que tenha sido desenvolvida.
Essa inversão, porém, não se dá de forma automática e só pode ser concedida,
a critério do juiz, em duas situações processuais específicas: quando for verossímil24 a
alegação do consumidor ou quando este for hipossuficiente25.
Carlos Roberto Barbosa Moreira, no artigo aqui citado, explica que a verossimilhança se assenta num juízo
de probabilidade, que resulta da análise dos motivos que lhe são favoráveis e desfavoráveis, que aumentam ou
diminuem conforme prevalecem os de um ou outro. Estará esse juízo autorizado quando formar, pelo material
probatório à sua disposição no processo, um juízo de probabilidade que se lhe afigure provavelmente verdadeira
a alegação do consumidor.
24
Carlos Roberto Barbosa Moreira, no artigo aqui citado, explica que a verossimilhança se assenta num juízo
de probabilidade, que resulta da análise dos motivos que lhe são favoráveis e desfavoráveis, que aumentam ou
diminuem conforme prevalecem os de um ou outro. Estará esse juízo autorizado quando formar, pelo material
probatório à sua disposição no processo, um juízo de probabilidade que se lhe afigure provavelmente verdadeira
a alegação do consumidor.
25
É o entendimento jurisprudencial:
1. CORREÇÃO MONETÁRIA – prestação - casa própria – SFH – aplicação – plano de equivalência salarial
23
18
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
Caldeira26 afirma que não há consenso na doutrina e jurisprudência27 sobre a
extensão do conceito de hipossuficiência, que pode ser entendida ora como econômica,
ora como técnica, ora englobando os dois enfoques. Criticando a visão que a restringe
ao enfoque econômico, analisa a autora:
O reconhecimento da hipossuficiência com base no poderio econômico é tão absurda,
quanto insustentável. Primeiramente, precisamos saber se se trata de economicamente
fraco em relação ao fornecedor ou em relação ao processo. Sim, pois, para beneficiar
o “pobre” não seria necessária a inversão, bastaria a determinação judicial de que o
fornecedor arcasse com eventuais custos para a produção de provas, tais como as periciais,
o que, diga-se, não é ônus para fins de aferição de provas.
Gidi28, questionando quando o consumidor pode ser considerado
hipossuficiente, observa “que o principal aspecto que desponta no contexto da
inferioridade do consumidor em relação ao fornecedor, no que diz respeito à produção
probatória, está na desigualdade que existe quanto à detenção dos conhecimentos
técnicos inerentes à atividade deste”. Conclui, então, que a hipossuficiência está
relacionada com a falta de conhecimentos técnicos específicos da área de atividade do
fornecedor. Tomando em conta esse aspecto da hipossuficiência, reflete sobre os limites
de possibilidades da inversão do ônus da prova:
Assim, se está correto que a hipossuficiência do consumidor é relacionada com a falta de
conhecimentos técnicos específicos da atividade do fornecedor, afigura-se de clareza meridiana
que somente em relação a tais conhecimentos é legítima a inversão do ônus da prova.
É preciso, como se vê, haver uma correlação racional entre a diferença que existe especificamente
entreconsumidor,fornecedoreoefeitobenéficoconcedidopeloordenamento.Casocontrário,a
afronta ao princípio da igualdade das partes será manifesta.
– vinculação, vencimento – categoria profissional – necessidade – apreciação do contrato – favorecimento do
mutuário. Ementa: (...) a denominada inversão do ônus probandi a que se refere o inciso VIII do ar. 6º do
CDC, fica subordinada ao critério do juiz quando provável ou quando hipossuficiente o consumidor, segundo
regras ordinárias de experiência. Depende, portanto, de circunstâncias concretas a serem apuradas pelo juiz no
contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor (...). (RESP 85521 –PR, RESP 77788-SC (STJ)
2. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – publicidade enganosa – indenização – ônus da prova – inversão – artigo 6º,
inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor – Inaplicabilidade, tendo em vista a falta de verossimilhança
na alegação e de hipossuficiência do consumidor – recurso não provido. (AC 238.799-2, São Paulo, apelante:
Luciana Buchmann Freire, apelada: Cia. Territorial e de Turismo de São Francisco dos Campos do Jordão).
26
Idem. p. 174-175.
27
Entende a jurisprudência a hipossuficiência:
1. PROVA – ônus – inversão – hipossuficiência de consumidor – artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa
do Consumidor – recurso não provido. Acórdão: (...) “Consta de fls. 162 declaração de pobreza firmada, pela
ré, para obtenção de benefícios de justiça gratuita, o que enseja crer que é hipossuficiente” (AC 254.767-2, São
Paulo, apelante: Associação de Médicos de São Paulo Consult Assistência Médica e Cirúrgica S.C. Ltda.,
apelada: Maria Romão Naveiro Parondi).
28
GIDI, Antônio. Aspectos da inversão do ônus da prova no Código do Consumidor. In: Revista de direito do
consumidor. v. 13, p. 35 a 37. 19
Artigo 1
Assim postas as coisas, no amplo espectro de fatos jurídicos que exigem prova por
parte do consumidor-autor, como a existência do dano, o montante do prejuízo, o nexo
de causalidade, a culpa (nos casos de responsabilidade subjetiva) e mesmo a efetiva
ocorrência de fato ilícito, nem todos poderão ser objeto de inversão do ônus da prova.
Somente aqueles fatos diretamente relacionados com a hipossuficiência do consumidor
ensejam a inversão legítima do ônus da prova.
Sansone29 destaca que a hipossuficiência “muito tem a ver com a impossibilidade
de o consumidor provar algo a seu favor, por não dispor de conhecimento técnico
necessário para a produção de tal prova ou por não encontrar e deter meios para
melhor demonstrá-la”. Comenta a autora:
a inversão, todavia, não se configura ônus excessivo ao fornecedor, justamente porque, se
ela for decretada, significa ser o consumidor hipossuficiente e, por outro lado, capaz de
produzir provas, se elas existirem, beneficiando-se do seu próprio conhecimento técnico e
utilizando os meios de sua atividade profissional.
Sobre a extensão do conceito, Moreira30 entende que este “deva ser elaborado
a partir da finalidade da norma, que é de tornar mais fácil, no campo específico
da instrução, a defesa dos direitos do consumidor”. No que se refere ao aspecto
puramente econômico, argumenta que, embora não comungue do entendimento de
que a hipossuficiência se equivale à mera ausência de recursos financeiros, reconhece
que, em muitos casos, configurada a condição de juridicamente necessitada, estará esta
caracterizada quando a prova depender de gastos não cobertos pela isenção dada pela
justiça gratuita31.
Dos vários conceitos de hipossuficiência expostos, pode-se concluir que,
embora este inclua o aspecto econômico, o objetivo desse instituto no Código não é
só o de proteger a parte economicamente mais fraca, mas garantir a todo consumidor,
seja qual for seu nível econômico, o amplo acesso à justiça, através de uma tutela
jurisdicional efetiva e adequada à defesa de seus direitos.
SANSONE, Priscila David. A inversão do ônus da prova na responsabilidade civil. In: Revista de direito do
consumidor. v. 40, p. 154.
Idem, p. 143.
31
A Lei 1.060/50 estabelece os critérios e os limites da justiça gratuita. Diz o artigo 3º dessa lei:
“A assistência judiciária compreende as seguintes isenções:
I - das taxas judiciárias e dos selos;
II - dos emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça;
III - das despesas com publicações no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais;
IV – das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do empregador salário
integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo contra o poder público federal, no
Distrito Federal e nos Territórios, ou contra o poder público estadual, nos estados;
V – dos honorários de advogados e peritos.
29
30
20
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
Em consonância com os princípios do Código, visa ao equilíbrio contratual, e
não, apenas, econômico entre o consumidor e fornecedor. Conforme conclui Caldeira32,
a possibilidade de inversão do ônus da prova, quando caracterizada a hipossuficiência,
“visa a auxiliar aquele que não tem condições sequer de dialogar com o fornecedor,
pois não entende ou nada sabe sobre o produto, não tendo subsídios para realizar
provas que comprovem o seu direito”.
4 Transgênicos: o dever de informar
Decorrência efetiva do princípio da vulnerabilidade é o dever de informação
íncito em qualquer relação de consumo. Nas relações de consumo envolvendo
organismos geneticamente modificados, esse dever é decorrência estrita do princípio
da boa-fé objetiva e da legislação atualmente em vigor. Nos termos da Lei n°
8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), o consumidor tem o direito de
ser devidamente informado sobre qualquer produto, e a informação fornecida deve ser
adequada, precisa e clara (art. 6 º, inciso III).
A clareza da informação não é apenas um resultado de boa-fé, mas mais
importante, é o resultado de colocar o princípio da transparência na ação (artigo 4). A ideia
central do CDC é estabelecer uma relação mais sincera e menos danosa entre consumidores
e fornecedores. Assim, afirma que os fornecedores não devem comercializar quaisquer
produtos que são arriscados para a saúde do consumidor ou de segurança, exceto aqueles
que são conhecidos por ser assim e que os consumidores compram sob próprio risco e,
mesmo assim, o fabricante deve fornecer as informações necessárias e adequadas relativas
ao produto e seus possíveis riscos, o que é necessário no caso de OGM (artigo 8º).
Da mesma forma, o artigo 9 º afirma claramente que o fornecedor de produtos
potencialmente perigosos ou nocivos e de serviços devem informar claramente sobre
esses aspectos de seus produtos, sem prejuízo da adoção de quaisquer outras medidas
aplicáveis em cada caso concreto. Mais uma vez, a preocupação do legislador pode
ser vista em relação a informações claras sobre questões de segurança que, deverão
ser disponibilizadas ao consumidor. A legislação de defesa do consumidor brasileiro
está preocupada com as informações mesmo na publicidade. O resultado eficaz do
princípio da vulnerabilidade é o dever de incitamento a quaisquer informações sobre
o consumo. Nas relações que envolvam OGM, esse imposto é devido estritamente ao
princípio da boa-fé e responsabilidade objetiva.
Estranhamente, contudo, foi aprovado, pela Comissão de Constituição e
Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n. 4.148/2008, que
32
ibiden. p. 175
21
Artigo 1
altera a redação da Lei n. 11.105/2005, sobre as normas de segurança de organismos
geneticamente alterados (OGMs). O referido projeto havia sido apensado a outro
(PL n. 5.848/2005) cuja redação foi considerada inconstitucional. A justificativa para
a alteração legislativa é a correta informação do consumidor, em consonância com
a legislação já existente, evitando-se a “politização” da discussão e a utilização da
rotulagem como forma de “contrapropaganda”.
A atual redação da Lei n. 11.105/2005, já prevê, em seu artigo 40, que os
alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal
contenham a informação sobre a presença ou não de organismos geneticamente
alterados. Condiciona a rotulagem a posterior regulamento. Interessante notar que já
havia regulamentação a respeito (Decreto n. 4.680/2003).
Em grande medida a ausência de eventual regulamentação sobre rotulagem
não desobrigaria o fornecedor de prestar a mais completa e adequada informação sobre
os ingredientes dos produtos que comercializa. Eis que a afirmação que se sustentaria
não apenas no princípio da boa-fé objetiva (transparência, lealdade e informação),
mas igualmente no princípio da vulnerabilidade.
Note-se, por exemplo, que o CDC consagra o dever de informação como
princípio basilar da política nacional das relações de consumo (art. 4º, IV) e como
direito básico do consumidor (art. 6º, III). Quanto ao último aspecto, aliás, o dispositivo
é amplo o suficiente para permitir supor que esse dever abrange as especificidades
dos alimentos produzidos a partir de OGMs (vide os termos “características”,
“composição”, “qualidade” e “riscos”). Parece claro, portanto, que, sob qualquer
análise, seja sobre os percentuais utilizados na elaboração do produto, seja sobre os
eventuais riscos à saúde, deve o fornecedor prover as indispensáveis informações.
Não bastasse essa interpretação, o mesmo CDC prevê o dever de o fornecedor
manter (e disponibilizar em interpretação sistêmica) dados técnicos e científicos que
sustentem a publicidade que veicular (art. 36, parágrafo único). Sendo certo, ainda,
que qualquer publicidade omissa possa ser considerada enganosa (art. 37, §§1º e 3º).
O artigo 30 prevê que qualquer informação ou publicidade sobre um
produto em qualquer forma dos meios de comunicação devem ser precisas e que o
fabricante deve estar preparado para manter essa informação quando um contrato
é realizado. O artigo 31 afirma que todas as informações sobre produtos ou serviços
e suas características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de
validade e origem devem ser claras, corretas e precisas, e este é também o caso quando
se trata de consumidor, saúde e segurança.
22
Poder-se-ia, nesta medida, indagar quais as consequências do eventual
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
desrespeito a tais disposições. Ao lado das conseqüências cíveis, por exemplo,
indenização pelos danos causados ou pela quebra do dever de boa-fé (objetiva, ligada
à informação), o próprio CDC prevê sanções administrativas para tal omissão (multas
e proibições de comercialização) e sanções penais (art. 66, detenção e multa).
Em certa medida, então, parece injustificada a redação proposta para os §§ 2º
e 3º do art. 40 da Lei n. 11.105/2005. Isso porque, segundo o mencionado projeto de lei,
a informação sobre a ausência de OGMs estaria condicionada à existência de similares
“transgênicos” e à comprovação por análise específica daquela condição. Além disso,
propõe-se que toda e qualquer regulamentação sobre informação esteja condicionada
ao disposto na redação projetada.
Ora, admitindo-se que tal redação seja aprovada definitivamente, estar-se-ia
diante de verdadeira inversão da lógica de proteção ao consumidor e de ampliação
de sua consciência, educação e consumo responsável. Isso porque negar ou limitar ao
consumidor a informação sobre o conteúdo dos alimentos que consome não contribui
para seu esclarecimento ou evita a “politização” da rotulagem. Se há receio de que
os produtores de alimentos que utilizem OGMs sejam prejudicados, eis tutela a ser
realizada em sede de direito concorrencial.
Nessa medida, seria solicitado que as consequências em caso de falha em
cumprir tais disposições não estejam junto com as consequências cíveis, por exemplo,
indenização por danos ou por violação do dever de boa-fé (objetiva, ligado às
informações). O mesmo código prevê sanções administrativas para tais omissões
(multas e proibição de comercialização) e penalidades (art. 66 , detenção e multa).
É o Decreto 4.680-2003 que regulamenta o direito do consumidor ser
informado, garantida pelo Código de Defesa do Consumidor. O decreto torna
obrigatória rotulagem de alimentos geneticamente modificados. Necessário esclarecer
que rotulagem de OGM não deve ser confundida com segurança. No Brasil, se o OGM
não é considerado seguro para o consumo, não será autorizado para comercialização.
Somente os alimentos geneticamente modificados ou de alimentos considerados
seguros serão marcados, pois a rotulagem é parte do direito do consumidor de ser
devidamente informado, para manter sua liberdade de escolha. O artigo do CDC,
2, afirma que, quando é comercializado o alimento e/ou ingredientes alimentares
destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a
partir de OGM, que constituem mais de um por cento do produto, o consumidor deve
ser informado da natureza da GM do produto.
O decreto também estabelece que o consumidor deve ser informado sobre
o tipo de gene utilizado para criar os OGMs, que devem ser incluídos na lista de
23
Artigo 1
ingredientes. Quanto aos alimentos e ingredientes produzidos a partir de animais que
foram alimentados com ração contendo ingredientes transgênicos, os dados devem
ser incluídos na parte principal da etiqueta e atender aos requisitos de tamanho e
destaque, tal como referido no artigo 2º. Assim: “(nome do animal) alimentado com ração
contendo ingrediente transgênico ou (nome do ingrediente) produzido a partir de animais
alimentados com ração contendo ingredientes transgênicos “. Quanto aos alimentos e
ingredientes alimentares que não contenham OGM ou que não foram produzidos a partir
de OGM, o rótulo deve conter” (nome do produto ou ingrediente) livre de transgênicos”,
desde que exista um produto similar transgênico no mercado brasileiro.
Notas conclusivas
O Código de Defesa do Consumidor tem a finalidade de equilibrar as relações
contratuais entre consumidores e fornecedores. Reconhece que o consumidor é a parte
mais fraca dessa relação e, por isto, busca protegê-lo.
Esse tipo de tutela é extremamente importante em tempos em que as
relações de consumo também estão sujeitas aos rigores das inovações tecnológicas.
É fato que há descolamento do conhecimento tecnológico e capacidade cognitiva
do consumidor. Este nem sempre é capaz de compreender as consequências de seus
hábitos de consumo, mesmo se determinado produto ou serviço possa vir a ser danoso
à sua saúde. Para efetivar essa proteção parte-se do princípio de que todo e qualquer
consumidor – pobre ou rico, culto ou ignorante, pessoa física ou jurídica, indivíduo
ou coletividade – é vulnerável, ou seja, pode ter sua livre e consciente manifestação
de vontade atacada pelas práticas comerciais, pela ausência de conhecimento e pela
vedação ao acesso à informação. Esse reconhecimento é o que embasa e justifica a
existência do sistema protetivo ao consumo, servindo de norte para as normas por
ele estabelecidas.
Com o escopo de proteger o consumidor é que foram conferidos seus direitos
básicos, dentre os quais está o da facilitação da defesa de seus direitos, através de tutela
jurisdicional efetiva e adequada, o que possibilita a inversão do ônus da prova quando
o consumidor é hipossuficiente.
Nesse contexto, verifica-se que a vulnerabilidade é uma característica
geral de todos os consumidores. Já a hipossuficiência é uma condição específica de
determinados consumidores que não têm condições, econômica ou técnica, de fazer
prova de seu direito.
24
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
Diferenciando os dois institutos, escreve Arruda Alvim33:
a vulnerabilidade do consumidor não se confunde com a hipossuficiência que é a
característica restrita aos consumidores que, além de presumivelmente vulneráveis, se
veem agravados nessa situação por sua individual condição de carência cultural, material
ou, como ocorre com frequência, ambas.
Benjamin34 diferencia os institutos de forma diferente:
O consumidor é reconhecidamente vulnerável no mercado de consumo (art. 4º, I). Só
que, entre todos os que são vulneráveis, há outros cuja vulnerabilidade é superior à média.
São os consumidores ignorantes e de pouco conhecimento, de idade pequena ou avançada,
de saúde frágil, bem como aqueles cuja posição social não lhes permita avaliar com
adequação o produto ou serviço que estão adquirindo. Em resumo: são os consumidores
hipossuficientes.
A vulnerabilidade é uma condição material e geral imposta pela lei. Já a
hipossuficiência é matéria meramente processual, analisada exclusivamente para fins
de inversão de ônus da prova. Sobre essas diferenças, argumenta Caldeira35:
a condição de vulnerável é imposta ao consumidor por determinação legal, isto é, todos
são vulneráveis porque assim manda a lei. Trata-se de uma presunção legal absoluta, não
admitindo prova em contrário. Aliás, justamente por ser o consumidor vulnerável, a parte
fraca da relação, é que se sentiu a necessidade de uma legislação que equilibrasse esta
situação de desvantagem.
Já a hipossuficiência é uma condição a mais, ou seja, há consumidores que, além
de vulneráveis, possuem um plus, que os torna mais vulnerável ainda, deixando-os
impossibilitados de realizar a prova dos fatos constitutivos de seus direitos.
Neste último caso, é o juiz quem decidirá se o consumidor – pessoa física ou jurídica – é ou
não hipossuficiente, conforme as peculiaridades do caso concreto, bem como as alegações
do autor, sendo certo que, reconhecida tal condição , esta beneficiará o consumidor apenas
no que diz respeito à facilitação de sua defesa, sendo-lhe concedida a inversão do ônus da
prova. Ou seja, a hipossuficiência não é requisito determinante da condição do consumidor,
serve, apenas, para efeito de prova.
Por fim, a vulnerabilidade é um princípio admitido pelo Código de Defesa
do Consumidor. É um ponto de partida para o estabelecimento e interpretação das
ARRUDA ALVIM, José Manoel de et al. Código do Consumidor anotado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1991. p. 45
34
GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do
anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária., 1998. p. 300.
35
op. cit. p. 176.
33
25
Artigo 1
normas nesse contidas. É um limitador das atividades dos fornecedores – não pode
ser suprido ou afastado. De outro modo, a hipossuficiência é um juiz, uma conclusão
à que se chega analisando as características individuais de um consumidor. É um
benefício legal, que pode ser suprido e revogado.
Embora sejam institutos diferentes, vulnerabilidade e hipossuficiência têm
um traço em comum: são dispositivos utilizados pelo Código de Defesa do Consumidor
para a proteção, garantia e efetivação dos direitos do consumidor.
Em se tratando de relações de consumo que envolvam organismos
geneticamente modificados, o dever de adequada informação (instrumento de proteção
da vulnerabilidade) e o mecanismo da hipossuficiência representam efetiva forma
de tutela do consumidor, para além de regulamentações casuísticas e de interesses
meramente econômicos.
Referências
ALMEIDA, João batista de. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva,
1993.
AMARANTE, Maria Cecília Nunes. Justiça ou equidade nas relações de consumo. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 1997.
ARRUDA ALVIM, João Manuel de et al. Código do consumidor comentado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991.
BONATTO, Cláudio. MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no
código de defesa do consumidor. 2. ed. Porto alegre: Livraria do Advogado, 1999.
CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Inversão do ônus da prova. In: Revista de direito do
consumidor, n. 38, São Paulo, RT, p. 169.
CARVALHO, Sylvio Vicente de. O direito do consumidor. Porto Alegre: Sagra Luzzatto
Editores, 1997.
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2001.
GIDI, Antônio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor.
In: Revista de direito do consumidor, São Paulo, v. 13, p. 35 a 37.
GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Comentado
pelos autores do anteprojeto. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
26
Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 3. ed. São
Paulo: RT, 1998.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O código de defesa do consumidor e sua interpretação
jurisprudencial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
OLIVEIRA, Juarez de (Coord.). Comentários ao código de proteção ao consumidor.
São Paulo: saraiva, 1991.
PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do código de defesa do
consumidor. In: Revista dos tribunais, São Paulo, RT, v. 666, abr. 1991, p. 48-53.
SANSONE, Priscila David. A inversão do ônus da prova na responsabilidade civil. In:
Revista de direito do consumidor, v. 40, p. 154.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo:
Malheiros, 1994.
27
28
As Restrições ao Exercício
do Poder Potestativo
Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no
ordenamento jurídico nas
relações de trabalho
Ana Beatriz Ramalho de Oliveira Ribeiro1
Introdução. 1 O poder potestativo do empregador e o limite imposto por ações
afirmativas de políticas de discriminação positiva à contratação de empregados. 2
As ações afirmativas de políticas de discriminação positiva nas relações de trabalho.
3 O sistema de cotas ou de reserva legal de vagas no Brasil. 4 Vagas para reabilitados
ou pessoas portadoras de deficiências. 5 Dados estatísticos da efetividade do
sistema de cotas no mercado formal de trabalho. Considerações finais. Referências.
Resumo
No intuito de diminuir as diferenças de oportunidades existentes na sociedade, bem
como de compensar todas as perdas acumuladas desde o passado de grupos de
indivíduos negativamente discriminados, o legislador cuidou de justificar a necessidade
de tratamento diferenciado a esses, criando políticas de reservas de vagas ou sistemas
de cotas. Nesse sentido, a política de cotas adotada pelo ordenamento jurídico pátrio
foi um avanço, já que procura a inclusão no mercado de trabalho formal de maior
número de cidadãos, sobretudo aqueles historicamente discriminados. Contudo, por
não haver nenhum tipo de incentivo, mas tão somente punição ao empregador que não
cumpre as cotas, tais políticas, por vezes, não se mostram tão eficazes, apresentando-se
em forma de limitação, restrição ao poder potestativo do empregador em eleger quem
admitir e manter em seu quadro de empregados. O presente estudo, portanto, tem por
1 Mestranda no curso de direito empresarial e cidadania pelo Centro Universitário Curitiba. Possui graduação
em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1995). Atualmente é advogada – Gomes Coelho &
Bordin Sociedade de Advogados e professora da Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco. Tem experiência
na área de direito, com ênfase em direito do trabalho, atuando principalmente no direito empresarial. E-mail:
[email protected]
29
Artigo 2
objetivo analisar, primeiramente, o poder potestativo do empregador e sua limitação
frente às políticas de discriminação positiva e imposição de cotas para contratação de
pessoas com deficiência e, ainda, estatisticamente, perquirir se há efetividade e eficácia
da referida medida nas relações de trabalho.
Abstract
In order to reduce the differences in opportunities in society, as well as to
compensate all losses accumulated since the past of groups of individuals negatively
broken down, the legislator cared to justify the need for differential treatment to these,
creating policies for reservations of places or quota systems. Accordingly, the policy
of quotas adopted by the legal system paternal was a step forward, since demand
the inclusion in the labor market formal greater number of citizens, especially those
historically discriminated against. However, that there is no type of incentive, but
that punishing the employer does not meet the quotas, such policies, sometimes, are
not as effective, presenting in the form of limitation, restriction to power potestativo
the employer’s elect who admit and maintain in its table of employees. This study,
therefore, aims to analyze, firstly, the power potestativo of employer and its limitation
front to the policies of positive discrimination and the imposition of quotas for hiring
persons with disabilities, and yet, statistically, perquirir if there is effectiveness and
efficacy of the measure in working relationships
Palavras-chave: poder potestativo do empregador, ações afirmativas, direito do
trabalho, políticas de discriminação positiva.
Introdução
Em recente publicação do jornal Valor Econômico, de 25/6/2010, a autora do
texto, Luiza de Carvalho, assim informou:
A Justiça do Trabalho de São Paulo está mais flexível com as empresas em relação ao
cumprimento da Lei n. 8.213, de 1991. A norma estabelece cotas para as companhias
contratarem portadores de deficiência. A 70ª Vara do Trabalho de São Paulo cancelou
uma autuação de R$ 38 mil a uma empresa de telecomunicações por não cumprir a cota
de 4% dos portadores de deficiência em seu quadro. A Justiça levou em consideração a
dificuldade em encontrar portadores no mercado em número suficiente para preencher a
cota, reconhecendo os esforços apresentados pela empresa no processo.
Efetivamente, essa é uma questão recorrente na atualidade.
Pela Lei 8.213/91, as empresas com mais de 100 empregados são obrigadas
30
As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho
a contratar pessoas portadoras de deficiência, a fim de cumprir a cota que a lei lhe
impõe, resultado de uma ação afirmativa de política de discriminação positiva.
É certo que algumas hipóteses injustificadamente discriminatórias,
observadas pela sociedade, merecem tratamento legal, via “discriminações positivas”,
ou “ações afirmativas”, instrumentando a inserção de trabalhadores no mercado
formal de trabalho.
A lei brasileira, assim, por estímulo constitucional, estabelece ações
afirmativas categóricas nesse sentido, fixando cotas de reserva de vagas.
De certa forma, pode-se dizer que a fixação de cotas vem a restringir parte do
poder potestativo do empregador, que se vê obrigado a contratar determinado número de
empregados portadores de deficiência, por exemplo, independentemente de sua vontade.
Todavia, as empresas, até mesmo em razão de fiscalização e autuações, vêm tentando se
adequar à “nova” realidade. Na verdade, realidade não tão “nova” assim, já que as cotas
foram previstas na lei que consolida a legislação que dispõe sobre os Planos de Benefícios
e Custeio da Previdência Social e sobre a organização da Seguridade Social, publicada
em 1991. Contudo, somente após a entrada em vigor do Decreto 3.298/99 é que a lei
começou a ser exigida em relação às cotas, instigada pela fiscalização do Ministério do
Trabalho e Emprego e também pelo Ministério Público do Trabalho.
Na prática, contudo, a obrigação legal da empresa esbarra em algumas
dificuldades, como ter que se adaptar fisicamente para receber e dar condições de
trabalho dignas aos trabalhadores que requerem cuidados especiais, bem como
encontrar mão de obra qualificada e disponível para ocupar suas vagas de emprego.
O presente estudo, portanto, tem por objetivo analisar, primeiramente, o poder
potestativo do empregador e sua limitação frente às políticas de discriminação positiva e
imposição de cotas para contratação de pessoas com deficiência e, ainda, estatisticamente,
perquirir se há efetividade e eficácia da referida medida nas relações de trabalho.
1 O poder potestativo do empregador e o limite imposto por ações afirmativas de políticas
de discriminação positiva à contratação de empregados
A Consolidação das Leis do Trabalho estabelece, em seu artigo 2º, que
empregador é a empresa individual ou coletiva (e aqueles a ela equiparados) que,
por suportar os riscos da atividade econômica, está investido do poder de admitir,
assalariar e dirigir a prestação pessoal dos serviços. Essa prerrogativa é conhecida
como “poder potestativo”.
Dentre os requisitos do artigo 3º da CLT, que caracterizam a relação de
emprego, o principal é a existência de subordinação jurídica entre empregado e empresa.
31
Artigo 2
A subordinação é o elemento específico e nuclear da relação de emprego,
marco distintivo das demais relações jurídicas que envolvam a prestação de trabalho.
O empregador detém o poder, porquanto é o proprietário dos meios de
produção, controla juridicamente o conjunto da estrutura empresarial e assume os
riscos da atividade empresarial, dentre outros.
Assim, o empregador, que exerce um empreendimento econômico, reúne em
sua empresa os fatores de produção, desempenhando sua função social, assumindo os
riscos da atividade econômica, daí decorrendo, sem dúvida, seu poder potestativo e seu
direito de dispor daqueles fatores de produção.
A manifestação do poder potestativo do empregador2 está inicialmente na própria
organização, sob a estrutura hierárquica – o que, quando e como produzir – assentada em
pressupostos legitimantes como a liberdade econômica e o direito de propriedade.
A vontade da empresa é determinante, podendo servir-se da força de trabalho
colocada à disposição por força do contrato, cercada por alguns limites, conforme
melhor interesse ao atingimento da finalidade econômica.
Contudo, tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido que a
finalidade da empresa deve ser vista para além da obtenção de lucros, gerar empregos
e fomentar a economia (finalidade econômica), pois como um ente social que
desempenha importante papel na sociedade, constitui-se em meio de inserção social e
identificação pessoal do trabalhador, exercendo uma inegável função social.
Ademais, se o poder potestativo, conforme entende a doutrina dominante,
emana do contrato de trabalho, deve atender à função social do contrato prevista no
art. 421 do Código Civil de 2002, que preceitua: “A liberdade de contratar será exercida
em razão e nos limites da função social do contrato”.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico tem cuidado de balizar os limites ao
exercício do poder potestativo de sorte que a empresa possa desfrutar desse poder sem
prejuízo ao respeito à dignidade humana e à preservação de sua função social, todos
princípios constitucionais conquistados pela sociedade.
Sim, segundo Aldacy Coutinho3:
[...] desenvolvido o direito econômico, o estado passou a intervir na atividade empresarial,
regulamentando problemas relacionados com a distribuição e produção de bens e serviços,
visando assegurar o atendimento das necessidades dos integrantes da sociedade.
COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder punitivo trabalhista. São Paulo: LTr, 1999. p.52.
Id. 1999. p. 59/60.
2
3
32
As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho
O estado, sim, reconheceu a propriedade privada e a livre iniciativa
elevando-as à categoria de norma constitucional, mas também ditou algumas regras
de controle ao seu exercício.
[...] De qualquer sorte, o direito não fecha os olhos à empresa, reconhecendo-a no papel
social que hoje desempenha e atribuindo-lhe função, embora não a tenha tomado, de
forma clara, como ente capaz de ser sujeito de direito e obrigações, mas reconhecendo-a
como fenômeno econômico-social, no qual se travam relações jurídicas. Protege o capital,
mantendo a dominação sob ameaça de punição.4
Convivem hoje num único corpo uma constituição econômica e uma social;
no primeiro plano a liberdade de iniciativa e o direito de propriedade sobre o capital
e o lucro; num plano diverso, o trabalho, como direito social, com a garantia de uma
remuneração que atenda às necessidades do trabalhador como retribuição, indicada
idealmente como justa, o reconhecimento do direito ao trabalho, o respeito e dignidade
ao trabalhador.
Destarte, paulatinamente foram instituídas, e ainda há projetos de instituição,
de novas políticas de discriminação positiva também relacionadas ao trabalho.
Atualmente, o empregador vê-se limitado em seu poder potestativo à
contratação e manutenção de seus empregados, através de leis fixadoras de cotas, tanto
para aprendizes, quanto para pessoas com deficiências, sendo que há projeto de lei
para também serem fixadas cotas de negros nas empresas.
Nesse estudo, cuidaremos de analisar especificamente o vigente sistema de
cotas para pessoas portadoras de deficiências.
2 As ações afirmativas de políticas de discriminação positiva nas relações de trabalho
É fato que há, no mundo do trabalho, explícitas ou veladas práticas
excludentes de mão de obra, fundadas em preconceitos e discriminações de variados
matizes, malgrado o existir de normas constitucionais e infraconstitucionais que
colimem proibi-las.
Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro
modo, pedem ações afirmativas.
Joaquim B. Barbosa Gomes5, Ministro do Supremo Tribunal Federal,
observa que as ações afirmativas:
COUTINHO. 1999. p. 60/61.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade; 2001. p. 6-7. 4
5
33
Artigo 2
Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio
constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial,
de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo
estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas
visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo
cultural, estrutural, enraizada na sociedade.
Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos acumulados em
virtude das discriminações ocorridas no passado.
Nesse sentido, há políticas e normas – legais e normativo-sindicais – que
procuram assegurar, por meio da utilização das discriminações positivas o impessoal
acesso ao mercado de trabalho, compulsoriamente ou não.
Na opinião de Ana Flávia Osternack6:
[...] diante da vulnerabilidade e exclusão social de determinados grupos, verifica-se que
o legislador determinou formas de tratamento diferenciado para aplicar a igualdade de
fato invertendo o próprio conceito de discriminação (negativa) importando beneficiar
uma minoria, “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida
de sua desigualdade”. Assim, para a concretude do princípio da igualdade foram
normatizadas medidas, diante de critérios biológicos, sócio-econômicos e sociais, no
intuito de proporcionar igualdade de oportunidades às minorias vulneráveis, aqui também
denominados ‘excluídos’
Este tratamento diferenciado deu ensejo a um novo paradigma do termo discriminação, a
chamada discriminação positiva. Portanto, é discriminando positivamente determinados
grupos que se alcança a igualdade justa e almejada pela sociedade.
Confere-se relevo às estatísticas oficiais e levantamentos doutrinários a
respeito das desigualdades no Brasil, e “as políticas públicas ou privadas voltadas à
concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos
efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de etnia e de compleição física”7, em
face das atuais controvérsias registradas sobre o assunto, inclusive as que se relacionam
com as denominadas “cotas”, ou reservas de vagas, legalmente estabelecidas.
Com efeito, já no seu preâmbulo, a Constituição Federal de 1988 estabelece
como objetivo a instituição de um estado democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais: “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
OSTERNACK, Ana Flávia. Discriminação Positiva. Paraná On Line, publicado em 18.11.2007.
Definição de ações afirmativas, segundo Joaquim B. Barbosa Gomes, em sua obra Ação Afirmativa e Princípio
Constitucional da Igualdade: O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001.
6
7
34
As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho
No mesmo sentido, seu artigo 1º estabelece como fundamentos da República
Federativa do Brasil a cidadania (inciso II) e a dignidade da pessoa humana (inciso III).
E com o mesmo intuito, seu artigo 3º estatui que a República Federativa
do Brasil tem como objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade livre, justa
e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Grifo nosso).
A tanto, importante ressaltar a observação de Carmem Lúcia Antunes
Rocha que “os verbos utilizados pelo legislador constituinte para definir os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil são verbos que evocam ação:
construir, erradicar, reduzir, promover etc.”8
Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro
modo, pedem ações afirmativas. E essas ações afirmativas devem partir do estado, mas
também da Sociedade, conforme o próprio texto constitucional dispõe.
Atualmente, há no ordenamento medidas, como o sistema de cotas, tanto
para aprendizes, quanto para pessoas portadoras de deficiências, que limitam de certa
forma o poder potestativo empresarial, cabendo a todos, estado e sociedade em geral,
dar efetividade às mesmas.
3 O sistema de cotas ou de reserva legal de vagas no Brasil
Com o intuito, portanto, de discriminar positivamente alguns grupos que
historicamente foram desarrazoadamente discriminados, o Poder Público implementou
o sistema de cotas, procurando proporcionar a participação de todos os cidadãos no
processo democrático e propiciar-lhes o pleno exercício da cidadania.
Para uma melhor compreensão acerca do assunto, Gláucia Gomes Vergara
Lopes define o sistema legal de cotas:
9
[...] Sistema de reserva legal de vagas ou sistema de cotas é o mecanismo compensatório
utilizado para inserção de determinados grupos sociais, facilitando o exercício dos direitos
ao trabalho, à educação, à saúde, ao esporte etc. É uma forma de ação afirmativa com
intuito de tentar promover a igualdade e o equilíbrio de oportunidades entre os diversos
grupos sociais.
(Cf. Ação afirmativa – O conteúdo democrático do Princípio da Igualdade Jurídica, Revista Trimestral de
Direito Público, 15/1996. 92).
9
LOPES, Glaucia Gomes Vergara. A inserção do portador de deficiência no mercado de trabalho – a efetividade
das leis brasileiras. São Paulo: LTr, 2005. Biblioteca LTr Digital.
8
35
Artigo 2
É, portanto, uma política de ação afirmativa pela qual o estado visa a diminuir
as diferenças existentes em certos segmentos sociais que se encontram em desvantagem,
especialmente aqueles que sofrem algum tipo de discriminação desarrazoada.
Ainda, no tocante às ações afirmativas, salienta Cristiane Ribeiro da Silva10:
[...] são importantes instrumentos de inclusão social e consistem em medidas que
objetivam superar a discriminação em relação a certos grupos fragilizados, como aqueles
correspondentes às mulheres, índios, negros e também pessoas portadores de deficiência,
proporcionando-lhes igualdade de oportunidades.
Efetivamente, com relação à reserva de vagas no trabalho, atualmente,
há vigente o sistema de cotas para aprendizes e também de pessoas portadoras de
deficiências, sendo esse último, portanto, objeto do nosso estudo.
4 Vagas para reabilitados ou pessoas portadoras de deficiências
Fazendo um breve escorço histórico sobre o tema, temos que o sistema de
cotas empregatícias para reabilitados ou portadores de deficiência, teve sua origem
na Europa, no início do século XX. Ele foi utilizado pelos países que participaram da
Primeira Guerra Mundial como um meio alternativo de empregar os ex-combatentes
mutilados nos conflitos, que sobrecarregavam seus sistemas previdenciários.
Frente a essa situação, em 1923, a OIT – Organização Internacional do
Trabalho – publicou uma recomendação na qual aconselhava seus países membros
a instituírem leis nacionais que obrigassem entidades públicas e empresas privadas
a contratarem ex-combatentes com deficiência. Após vinte e um anos, foi publicada
nova recomendação na qual a obrigatoriedade de contratação se estendeu para todas
as pessoas com deficiência.
Em detrimento a essa recomendação, os países europeus passaram
gradativamente a adotar as cotas11. Os primeiros países que adotaram esta sistemática
foram a Inglaterra e a Holanda, porém, na atualidade ela já alcança cerca de dois
terços dos países europeus.
A legislação brasileira, visando garantir a colocação de pessoas com
deficiência no mercado de trabalho, lançou mão de um programa que reserva vagas de
emprego às pessoas com deficiência, em instituições públicas e privadas, comumente
conhecido como política de cotas.
SILVA, Cristiane Ribeiro; FONSECA, Juliana Izar Soares da. A inclusão das pessoas portadoras de
deficiência no mercado de trabalho e a transformação social – a experiência da Serasa. Suplemento Trabalhista
01/08, São Paulo, ano 44, 2008. p. 43.
11
LOPES, 2005. Biblioteca LTr Digital.
10
36
As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho
Relativamente aos cargos e empregos públicos, a Constituição Federal
Brasileira de 1988 estabelece, no inciso VIII do artigo 37, que: “a lei reservará
percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e
definirá os critérios de sua admissão”.
Nesse passo, tanto a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, como o Decreto
3.298 de 20 de dezembro de 1999 estipulam que devem ser reservadas no mínimo
5%, e no máximo 20% das vagas ofertadas em concursos públicos a candidatos com
deficiência.
No que tange a obrigação das instituições privadas em contratar pessoas com
deficiência, o artigo 93, da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, estabelece que a empresa
com mais de cem empregados está obrigada a contratar beneficiários reabilitados ou
pessoas com deficiência habilitadas, cujo percentual varia de 2% a 5%, de acordo com
o número de empregados da empresa.
Em comentário à norma em tela, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca12
observa que:
[...] trata-se de lei que regulamenta os benefícios da Previdência Social, mas que no
particular evidencia-se tipicamente trabalhista, eis que impõe uma conduta patronal
em favor de alguns empregados especiais, dirigindo diretamente a contratualidade ao
direcionar a vontade dos sujeitos do contrato, na medida em que elege um critério de
escolha prioritária em favor das pessoas com deficiência.
Levando em consideração que a lei reserva vagas a beneficiários reabilitados
e à pessoa com deficiência habilitada, cabe verificar as características destes.
Entende-se por pessoa com deficiência habilitada, segundo cartilha da
Secretaria de Inspeção do Trabalho13:
[...] Aquela que concluiu curso de educação profissional de nível básico, técnico ou
tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição
pública ou privada legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão
equivalente, ou aquela com certificado de conclusão de processo de habilitação ou
reabilitação profissional fornecido pelo INSS. Considera-se, também, pessoa portadora
de deficiência habilitada àquela que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou
reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função (art. 36, § 2° e 3°, do Decreto
n. 3.298/99).
Ainda, na mesma cartilha, define-se pessoa com deficiência reabilitada como:
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O Trabalho da pessoa com deficiência e a lapidação dos direitos
humanos: o direito do trabalho uma ação afirmativa. São Paulo: Saraiva, 2005. 13
BRASIL. Secretaria de Inspeção do Trabalho. A Inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Brasília: SIT, 2007. p. 22.
12
37
Artigo 2
[...] a pessoa que passou por processo orientado a possibilitar que adquira, a partir da
identificação de suas potencialidades laborativas, o nível suficiente de desenvolvimento
profissional para reingresso no mercado de trabalho e participação na vida comunitária
(art. 31, do Decreto n. 3.298/99).
De acordo com o art. 93, da Lei 8.213, de 24 de julho de 1.991, a reserva de
emprego às pessoas com deficiência, no âmbito das instituições privadas, é garantida
conforme escala que, dependendo do número de empregados, fixa à empresa a
obrigação de contratar determinado percentual de pessoas com deficiência.
Esta é a primeira limitação ao poder potestativo do empregador: fixação de
cotas com obrigação de contratar e manter reabilitados ou portadores de deficiência
em seus quadros de empregados.
Em face do escalonamento acima, pertinente a observação de Ricardo Tadeu
M. da Fonseca14:
[...] A primeira peculiaridade do ordenamento brasileiro é a exclusão das pequenas e
microempresas da obrigatoriedade em questão, o que afasta as que mais empregam,
segundo estatísticas oficiais, seja em razão da alta incidência dessas empresas no mercado,
seja em razão do processo menos automatizado que as caracteriza.
Outra limitação ao poder potestativo do empregador é o dispositivo legal que
veda a despedida arbitrária de trabalhadores reabilitados ou com deficiência, exigindo,
para tal, a contratação de substituto de condição semelhante.
Neste sentido, a título de ilustração, o seguinte acórdão exarado pela 1ª Turma
do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região/Paraná:
REINTEGRAÇAO NO EMPREGO. EFEITOS E LIMITES. De acordo com o art. 93, §
1º, da Lei n.° 8.213/91, verifica-se que“a dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente
habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a
imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação
de substituto de condição semelhante”, o que não foi cumprido pelos Recorrentes, uma
vez que inexiste qualquer prova nos autos indicando a contratação de outro empregado
reabilitado ou de deficiente habilitado para o cargo anteriormente ocupado pela Recorrida,
o que torna nula a dispensa (art. 9º, CLT, c/c art. 187, CC). Todavia, a referida proteção
no emprego somente prevalece enquanto não houver contratação de outro empregado nas
mesmas condições, não se podendo estender ad eternum a reintegração determinada pelo
ilustre Juízo monocrático”. (TRT-PR-06963-200201 2-09-00-8-ACO-05379-2007 – 4A.
TURMA. Relator: LUIZ CELSO NAPP – Publicado no DJPR em 02-03-2007)
Da mesma forma julgou o TST:
14
FONSECA, 2005.
38
As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho
EMPREGADO REABILITADO
– RESILIÇÃO – CRITÉRIOS ESTABELECIDOS
NO ART. 93, § 1º, DA LEI N. 8.213/91 - GARANTIA DE EMPREGO INDIRETA
– REINTEGRAÇÃO. I – Enquanto o caput do supracitado art. 93 estabelece cotas a
serem observadas pelas empresas com cem ou mais empregados, a serem preenchidas
por beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência habilitadas, o seu
§ 1º cria critério para a dispensa desses empregados (contratação de substituto de
condição semelhante), ainda que seja para manter as aludidas cotas. II – Significa dizer
que, não obstante o critério de dispensa pudesse visar a manutenção das cotas previstas
no artigo 93, a interdição do poder potestativo de resilição consagrado no parágrafo
primeiro traz consigo a concessão de garantia de emprego. III – Porém, não se trata de
concessão de uma garantia de emprego por tempo indeterminado, mas sim, de garantia
provisória subordinada à comprovação de posterior contratação de substituto de condição
semelhante. Assim, se a reclamada comprovar, na liquidação de sentença, que após
a dispensa do reclamante contratara outro empregado de condição análoga, deve ser
convertida a reintegração em indenização substitutiva constituída dos salários e demais
direitos trabalhistas do período mediado entre a resilição contratual e a nova admissão.
IV – De outro lado, não comprovada a contratação de substituto, poderá a embargante,
após a reintegração, exercitar o direito potestativo de resilição se atendido o requisito do
parágrafo primeiro do artigo 93 da Lei 8.213/90. V – Recurso conhecido e provido.” (TST
– RR – 869/2004-242-02-00.3, 4ª Turma, publ. 19/12/2006, fl. 1)
5 Dados estatísticos da efetividade do sistema de cotas no mercado formal de trabalho
Concretamente, observando os dados existentes a se verificar a efetividade
da lei em comento, em relação à situação das pessoas com deficiência no mercado
formal de trabalho, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) publicou, em agosto
de 2006, sob a coordenação de Andréa Schwartz e Jaques Haber, cartilha em que exibe
levantamentos acerca da colocação destas pessoas no emprego formal, e constataram
que 52% delas são inativas. Se fossem consideradas as que trabalham, somente 10,4%
possuem carteira assinada.
Segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) 2007, dos 37,6
milhões de trabalhadores ativos, 348,8 mil são trabalhadores com deficiência, o que
representa apenas 1% do total de trabalhadores com emprego formal.
Neste sentido, salienta Schwartz que “ainda é um número baixo se comparado
à representatividade da população com deficiência (14,5%, dados fornecidos pelo
Censo/IBGE/2000) junto à população geral”15.
Vale ressaltar que a Lei de Cotas está prestes a completar vinte anos de
existência, entretanto, somente nos últimos anos é que seu cumprimento tem sido alvo
de fiscalização por parte do Ministério Público do Trabalho (MPT) e das Secretarias
15
SCHWARTZ, Andrea; HABER, Jaques. (Desenv./Coord.). População com deficiência no Brasil, fatos e
percepções. São Paulo: Febraban, 2006. (Febraban de Inclusão Social)
39
Artigo 2
Regionais do Trabalho (SRTEs), que vêm atuando junto às empresas privadas, no
intuito de fazê-las cumprir a obrigação legal imposta pela legislação.
Os dados coletados no Sistema Federal de Inspeção do Trabalho – Sfit/SIT/MTE,
comprovam a afirmação mencionada no parágrafo anterior. Através das informações
extraídas desse sistema, o Ministério do Trabalho e Emprego elaborou e divulgou, no seu
site, um quadro comparativo da fiscalização do trabalho no periodo de 1990 a 2007.
Em dezessete anos de fiscalização o MTE, por meio de suas Secretarias
Regionais do Trabalho (SRTEs), averiguou 6,3 milhões de empresas, onde alcançou o
número de 390,6 milhões de empregados, autuando cerca de 1,3 milhões delas, ou seja,
21% do total das empresas fiscalizadas.
Ressalte-se que os dados atinentes à contratação de trabalhadores com deficiência
somente foram lançados no quadro comparativo proferido pelo Sfit/SIT/MTE, a partir do
exercício de 2005, posto que antes desta data, não foram fornecidas quaisquer informações
a respeito do assunto.
Não obstante, os números revelam que no período compreendido entre 2005
e 2007, foram contratados pouco mais de 55 mil trabalhadores com deficiência sob
a ação da fiscalização das SRTEs, cerca de 22% no primeiro ano. No segundo ano o
percentual aumentou para 36%, atingindo 40% no terceiro ano.
Utilizando-se do trabalho publicado por Marcelo Néri, Alexandre Pinto de
Carvalho e Hessia Guillermo Costilia, sobre a inserção de pessoas com deficiência no
mercado de trabalho formal, Gláucia Lopes16 constatou um aumento na contratação
dessas pessoas a partir da Lei de Cotas, mais precisamente após a entrada em vigor do
Decreto 3.298/99. Eis os dados:
[...] 31% do total dos portadores de deficiência encontram-se empregados em empresas
que possuem menos de 100 empregados; 29% em empresas que apresentam um número
de empregados superior a 1.000 empregados; 14,57% nos estabelecimentos de 100 a 249
empregados; 13,57% naquelas empresas que apresentam de 250 a 499 empregados; e
11,86% para empresas com 500 a 999 empregados.
Curiosamente, constatou-se que a pequena empresa é a que emprega parcela
mais expressiva de trabalhadores com deficiência, mesmo estando desobrigada ao
cumprimento do percentual disposto na Lei de Cotas.
Segundo dados do infojobs.com.br, independentemente da crise econômica
que se arrasta no cenário mundial, as oportunidades oferecidas para deficientes tem
aumentado ano após ano. Para se ter uma noção, o Sine ofereceu mais de 36 mil
16
LOPES, 2005.
40
As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho
empregos para deficientes em 2007, e apenas 7 mil dessas vagas foram preenchidas. O
que ocorre, portanto, é a sobra de vagas para portadores de deficiência.
Especificamente no Paraná, levando em consideração dados estatísticos
postados no site da Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social
do Paraná – SEPT/PR, entre janeiro de 2003 e abril de 2009 foram cadastrados
aproximadamente 28 mil pessoas com deficiência, para 27,5 mil vagas de emprego
ofertadas, sendo encaminhados 41,6 mil candidatos para entrevista de emprego. Das
vagas ofertadas, 41% delas foram preenchidas, ou seja, 11,2 mil postos de trabalho
foram ocupados por este seguimento.
Em âmbito nacional, os dados demonstram que mesmo após o advento da
Lei 8.213/91, regulamentada após oito anos pelo Decreto no 3.298/99, não houve
aumento expressivo do percentual de empresas grandes que cumprem as cotas,
justamente diante das dificuldades que encontram.
Um desses entraves seria a concessão de pensão mensal a todos os deficientes
estipulada pela Lei Orgânica de Assistência Social.
Muitas das pessoas que recebem o benefício preferem complementar a renda
com atividades informais a procurar um trabalho com registro em carteira e pequenos
salários, já que assim perdem o direito à pensão.
Outro problema seria a dificuldade de encontrar deficientes capacitados e
especializados para ocupar as vagas disponíveis no mercado.
Além disso, não podemos deixar de identificar um grave problema nas cidades
brasileiras, qual seja, a ausência de políticas públicas para a implementação de uma
infraestrutura urbana que respeite os portadores de deficiência física, não exacerbando
as suas limitações inerentes, impedindo-os de se deslocar com independência e
dignidade. Ainda há a prevalência do passado.
E o mais grave: os deficientes se defrontam com os preconceitos e com as
discriminações existentes até então. São excluídos, pela própria família, pelo ensino
com qualidade e participação social plena.
Partindo disso, não basta o estado apenas aplicar multa no intuito de obrigar
a empresa a cumprir as cotas, pois, para que o objetivo da norma seja alcançado, é
necessário que se faça indicar, de maneira precisa, como cumprir tal obrigação.
Para Sérgio Pinto Martins17:
[...] somadas as porcentagens de aprendizes e a de pessoas reabilitadas ou portadoras de
deficiência, a empresa tem um grande percentual a destinar para pessoas específicas. Num
contexto de globalização, tais porcentuais podem diminuir as condições de concorrência
da empresa no mercado.
17
Sérgio Pinto Martins, fl. 609
41
Artigo 2
Não há dúvida de que a questão é social e necessita de considerações, porém a empresa não
pode arcar sozinha com tais hipóteses, principalmente quando empresas de outros países
não têm as referidas obrigações.
E, conforme já vem decidindo, assim também tem entendido o Judiciário,
pois está ponderando, antes de penalizar as empresas, as dificuldades em encontrar
portadores no mercado em número suficiente para preencher a cota e reconhecendo os
esforços apresentados por essas a tanto. Isso é o que mostra a matéria jornalística com
que iniciamos a introdução do presente estudo.
Considerações finais
Como meio de diminuir as diferenças de oportunidades existentes na
sociedade, bem como a compensar todas as perdas acumuladas desde o passado de
grupos de indivíduos negativamente discriminados, o legislador cuidou de justificar a
necessidade de tratamento diferenciado a esses, criando políticas de reservas de vagas
ou sistemas de cotas.
Nesse sentido, a política de cotas adotada pelo ordenamento jurídico pátrio
foi um avanço, já que procura a inclusão no mercado de trabalho formal de maior
número de cidadãos, sobretudo aqueles historicamente discriminados.
Contudo, por não haver nenhum tipo de incentivo, mas tão somente punição
ao empregador que não cumpre as cotas, tais políticas, por vezes, não se mostram tão
eficazes, apresentando-se em forma de limitação, restrição ao poder potestativo do
empregador em eleger quem admitir e manter em seu quadro de empregados.
Sim, em que pese essa modalidade de contratação estimular os empregadores
no cumprimento das cotas, ela não atende ao fundamento inclusivo da norma
internacional, posto que não basta inserir o trabalhador no ambiente de trabalho
da empresa, mas sim, oferecer-lhe meios para que possa alcançar o tão almejado
desenvolvimento profissional, de modo a construir uma vida produtiva, independente
e autônoma.
O estado não pode transferir tal responsabilidade para as empresas. Deve
haver uma interação de todos: estado, classe empresarial e sociedade em geral.
Isso porque, da forma como o atual sistema de reserva de vagas de emprego
é previsto como mecanismo de inclusão, através de leis ordinárias que oportunizam
o acesso ao trabalho formal, o que se pôde verificar é que, em relação ao emprego,
muitas vezes as vagas destinadas a candidatos com deficiência não são preenchidas por
falta de procura ou por falta de pessoas habilitadas a tanto. Isso ocorre na maioria das
oportunidades pelo baixo índice de escolaridade em geral.
42
As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações
afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho
Verificou-se que mesmo com a vigência da Lei de Cotas, o índice de
trabalhadores deficientes com carteira de trabalho assinada alcança tão somente 1%
do total de trabalhadores com emprego formal. Não mais que uma ínfima parcela da
classe trabalhadora.
Nesse sentido, o estado ainda tem um papel muito importante a contribuir
para o processo inclusivo, já que a falta de conhecimento, por parte da sociedade,
é um dos entraves ao atingimento da finalidade dessas políticas. Da mesma forma,
outro entrave é a falta de capacitação para o trabalho, eis que não são ofertados
suficientemente programas de capacitação profissional por parte do estado.
Nesse contexto, vencer esses desafios deve se tornar uma meta por todos
aqueles que tratam com seriedade do assunto. Tanto que não é raro o caso de empresas
que assumem o papel do estado quando qualificam a mão de obra, assumindo os seus
custos; preparam os locais de trabalho, encontram e treinam todo o seu pessoal ao
convívio social, atuando na integração social.
Necessária, portanto, a interação de todos: estado, classe empresarial e
sociedade em geral.
Referências
Ação afirmativa – o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica,
Revista Trimestral de Direito Público, 15/1996. 92
BRASIL. A inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Brasília: SIT, 2007.
COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder punitivo trabalhista. São Paulo: LTr, 1999.
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho da pessoa com deficiência e a
lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho uma ação afirmativa. São Paulo:
LTr, 2006.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade:
o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001.
LOPES, Gláucia Gomes Vergara. A inserção do portador de deficiência no mercado de
trabalho – a efetividade das leis brasileiras. São Paulo: LTr, 2005. Biblioteca.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
OSTERNACK, Ana Flávia. Discriminação positiva. Paraná On Line. 18 nov. 2007.
ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Ação afirmativa – o conteúdo democrático do
princípio da igualdade jurídica. Revista Trimestral de Direito Público. LTr Digital.
43
Artigo 2
SCHWARTZ, Andrea; HABER, Jaques. (Desenv./Coord.). População com deficiência
no Brasil, fatos e percepções. São Paulo: Febraban, 2006. (Febraban de Inclusão Social)
SILVA, Cristiane Ribeiro; FONSECA, Juliana Izar Soares da. A inclusão das
pessoas portadoras de deficiência no mercado de trabalho e a transformação social
– a Experiência da Serasa. Suplemento Trabalhista 01/08, São Paulo, ano 44, 2008. p.
39/45.
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito: do estado de
direito liberal ao estado social e democrático de direito. Coimbra: Almedina, 1987.
TRT/PR, RO 848/97, Ac. 2ª T. n.. 25.573/97, Rel. Juiz Arnor Lima Neto, DJ/PR
26.09.97, p. 376.
TRT/PR, RO 05.292/95, Ac. Unânime da 3ª T. n.. 09.296/97, Rel. Juíza Wanda Santi
Cardoso da Silva, DJ/PR 25.04.97, p. 333.
44
Gestão Pública e Meio
Ambiente: a cobrança
pelo uso dos recursos
hídricos como instrumento
de implementação da
racionalidade ambiental
Edinei Carlos Dal Magro1
Introdução. 1 Titularidade e gestão dos recursos hídricos. 2 A cobrança pelo uso
dos recursos hídricos e sua eficácia como instrumento de gestão baseado na
racionalidade ambiental. Considerações finais. Referências.
Resumo
O presente artigo aborda a escassez de água como efeito da degradação ambiental
do mundo moderno. Nesse processo, o uso irracional da água tem contribuído para
que a quantidade existente de água potável, já quase insuficiente, se torne também
imprópria para o consumo, culminando num problema quali-quantitativo dos recursos
hídricos. Nesse cenário, a gestão dos recursos hídricos e a cobrança pelo uso da água
apresentam-se como instrumentos eficazes para modificar a cultura e as práticas
insustentáveis adotadas hodiernamente, inclusive no campo das políticas públicas.
A abordagem à temática foi apenas monográfica, mas capaz de demonstrar que esta
prática corresponde à busca por um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A
modificação das bases socioculturais e do modo de produção que se propõe, por
meio da gestão e da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, representa uma nova e
necessária racionalidade ambiental, cuja implementação visa a garantir às gerações
presentes e futuras um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Palavras-chave: recursos hídricos, gestão, racionalidade ambiental.
1
Mestrando – Minter PUC/Unioeste; especialista em direito civil e processual civil pela Unipar; advogado
do Serviço Autônomo de Água e Esgoto, autarquia municipal de Marechal Cândido Rondon, PR; professor
colaborador da Unioeste, campus de Marechal Cândido Rondon, PR; e-mail: [email protected]
45
Artigo 3
Abstract
This article addresses the shortage of water as an effect of environmental degradation
of the modern world. In this case the irrational use of water has contributed to the
existing quantity of drinking water, almost insufficient already, also becoming unsafe
for consumption, leading to either a qualitative and quantitative problem of water
resources. In this scenario the management of water resources and charges for the use
of water are presented as effective tools for changing the culture and unsustainable
practices adopted nowadays, including the public policies. The approach to the theme
was only monographic, but it is able to demonstrate that this practice matches to the
search for an ecologically balanced environment. The change in socio cultural basis
and the way of production that is proposed by management and charging for the use
of water resources represents the emergence of a new and necessary environmental
rationality, which implementation means to ensure the present and future generations
an ecologically balanced environment.
Keywords: water resources, management, environmental rationality.
Introdução
Um dos maiores dilemas enfrentados pela humanidade no processo de
desenvolvimento, desencadeado nas décadas de 50 e 60, é a degradação ambiental. A
observação nos revela que, no princípio, sustentada por concepções antropocêntricas,
a humanidade não considerava o meio ambiente como sujeito, mas apenas como fonte
de recursos que podia ser apropriada e explorada indiscriminadamente pelo homem.
Nesse processo, a natureza acabou sendo “coisificada”, desconhecendo-se, nessa
relação, o vínculo entre homem e natureza, pois aquele se tornou proprietário desta.
Essa visão, contudo, a partir da década de 80, passou a ceder lugar à
compreensão de que os problemas ambientais são ou podem ser consequências diretas
do comportamento humano, observados na relação do homem com o planeta, bem
como no modo de exploração dos recursos naturais, considerados partes integrantes
de um complexo sistema. A partir daí, inicia-se um verdadeiro repensar dos modos de
produção e desenvolvimento adotados, baseados no processo econômico capitalista,
principal responsável pela crise ambiental estabelecida, e nos prognósticos de que o
planeta caminha para seu fim.
No centro dessa crise ambiental instalada está o problema da água. Não é
demais relembrar que apesar de abundante no planeta terra e de que “mais de 70%
da superfície se compõe de água, estima-se que 97% do total seja salgada, formando
46
Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
como instrumento de implementação da racionalidade ambiental
os oceanos e mares, e que 2% formam as geleiras; portanto, resta apenas 1% de água
doce, [...]”.2
A múltipla utilização dos recursos hídricos e os atos indiscriminados são
diretamente responsáveis pela crise ambiental estabelecida, pois, conforme salienta
Marchesan, estão associados a resíduos tóxicos, esgoto, desmatamento, construção
de reservas, dentre outros.3
A água é fonte de vida, essencial para a sobrevivência não só do ser humano,
mas de toda espécie de vida no planeta. Como tal, “a importância da água explica
por que os aglomerados humanos se desenvolveram nas proximidades de rios, lagos e
outros mananciais”.4
O Brasil “possui um dos patrimônios hídricos mais importantes do planeta e
pelo país circulam 12% da água doce superficial do mundo”5.No entanto, até meados
do ano 2000, a utilização desses recursos hídricos era controlada ou gerenciada de
maneira muito incipiente.
Embora a legislação brasileira, através do Código Civil de 1916 e do Código
de Águas na década de 30, tratou de tutelar a água, a gestão dos recursos hídricos teve
nesse marco legal espaço muito pequeno, pois preocupava-se apenas com a utilização
da água como fonte geradora de energia.6 Vale destacar que a água possui múltiplos
usos e sua utilização indiscriminada é o que tem provocado os graves problemas
relativos à diminuição da qualidade e também da diminuição da sua quantidade.
Até meados da década de 90 esse panorama persistia. Não havia qualquer
controle ou gerenciamento sobre a água utilizada por particulares, para agricultura,
lazer, como matéria-prima, em processos de fabricação, etc., época em que se criou a
Agência Nacional de Água (ANA), cuja missão é “implementar e coordenar a gestão
compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água, promovendo
o seu uso sustentável em benefício da atual e das futuras gerações”.7
A par dessa missão8,
CONTE, Maria de Lourdes. Avaliação de recursos hídricos: Rio Pardo, um exemplo. São Paulo: Unesp, 2001.
p. 22. 3
O Ministério Público e a Tutela dos Recursos Hídricos. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 40, p.
9-23, out./dez. 2005. p. 11.
4
DACACH, Nelson Gandur. A água em nossas vidas. Rio de Janeiro: EDC, Salvador/BA: Fundação Escola
Politécnica da Bahia, 1990. p. 71.
5
AGÊNCIA Nacional de Águas (ANA). Hotsite Águas de Março 2010. Dia Mundial da Água. Disponível em:
<http://www.ana.gov.br/aguasdemarco/2010>. Acesso em: 1.º jun. 2010.
6
GRAF, Ana Cláudia Bento. A tutela dos estados sobre as águas. In: FREITAS, Vladimir Passos de. Águas – aspectos
jurídicos e ambientais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2005. p. 66.
7
AGÊNCIA Nacional de Águas (ANA). Institucional – Sobre a ANA. Disponível em:
<http://www2.ana.gov.br/Paginas/institucional/SobreaAna/abaservinter1.aspx>. Acesso em: 1.º jun. 2010.
8
Id. A evolução da gestão dos recursos hídricos no Brasil. Brasília: ANA, 2002. p. 11.
2
47
Artigo 3
Em 1997, concretizou-se a decisão do país de enfrentar, com um instrumento inovador e
moderno (Lei 9.433), o desafio de equacionar a demanda crescente de água para fazer
face ao crescimento urbano, industrial e agrícola, os potenciais conflitos gerados pelo
binômio disponibilidade-demanda e o preocupante avanço da degradação ambiental de
nossos rios e lagos.
Diante de todas essas adversidades e com o compromisso de garantir acesso
à água potável, o Brasil, por meio deste importante instrumento – Política Nacional de
Recursos Hídricos – deu um grande passo no ideal de sustentabilidade em relação aos
recursos hídricos do país. Nesse sentido, o Brasil tem assumido compromissos como o
de “reduzir pela metade, até 2015, a proporção da população sem acesso permanente
e sustentável à água potável segura e ao esgotamento sanitário”, não se desassumindo
das metas do milênio pactuadas9, ou ainda, de “preservar a quantidade e melhorar a
qualidade da água nas bacias hidrográficas”.10
A proposta, portanto, deste trabalho é analisar a cobrança pelo uso dos
recursos hídricos prevista na Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, como instrumento
de gestão e controle, ressaltando a importância de se trabalhar com a organização
e o planejamento da exploração desses recursos e assim garantir que seja possível
continuarmos usufruindo da água do nosso planeta de forma sustentável.
Além de reconhecer a necessidade da gestão dos recursos hídricos, é
importante também compreender que o sucesso da proposta de sustentabilidade
demanda a participação muito grande da própria sociedade. Apenas o estado
gerenciando os recursos hídricos e os usuários continuarem a utilizar-se da água
indiscriminadamente não resultará na pretendida sustentabilidade.
É nesse sentido que se propõe que a gestão dos recursos hídricos represente
uma ferramenta de implementação da racionalidade ambiental, que em síntese apregoa
“formas diferentes de pensar, de imaginar, de sentir, de significar e de dar valor às
coisas do mundo”11 sendo que o próprio art. 19, inciso I, da Lei n. 9.433, de 8 de janeiro
de 1997, revela buscar a conscientização do usuário sobre o valor da água.
Eis o exercício proposto.
1 Titularidade e gestão dos recursos hídricos
Para abordar a gestão dos recursos hídricos, é fundamental discorrer sobre a
titularidade desse bem, que nem sempre foi um bem público.
Metas do Milênio. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/odm/objetivo_7/>.
BRAGA, Roberto. Recursos hídricos e planejamento urbano e regional. Rio Claro: Laboratório de Planejamento
Municipal – Deplan – Unesp – IGCE, 2003. p. 129-131.
11
LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de: Cabral, Luís
Carlos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p 249.
9
10
48
Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
como instrumento de implementação da racionalidade ambiental
Embora não fosse tratada individualmente, a água, como acessório ao solo,
era considerada pelo Código Civil de 1916, em seu art. 526, como bem privado. Com
o advento do Código de Águas (Dec. 24.643/34), passou a ser classificada pelo art.
8º c/c art. 96 como bem público, comum e privado. Posteriormente, a Carta Magna
passou a tratar a água como bem público, de uso comum do povo, inovando, assim, se
comparada às ordenações anteriores.12
Como bem público de uso comum do povo, a titularidade dos recursos hídricos
foi dividida entre os entes federativos da seguinte forma pelos art. 20, III, e art. 26, I,
ambos da CF/88: (a) as águas superficiais são pertencentes aos estados e à união; (b)
subterrâneas aos estados, com exceção daquelas decorrentes de obras da união. Além
disso, a Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997 (PNRH), em seu art. 1º, inciso I, tratou
de deixar clara a titularidade dos recursos hídricos dispondo que “a água é um bem de
domínio público”, sujeita à cobrança quando usada para fins econômicos, conforme se
depreende da interpretação do art. 4º, inciso VII, segunda parte, da Lei n. 6.938/81.13
Embora, nesse contexto, todo o art. 526, do revogado Código Civil de 1916,
tenha sido substituído pelo art. 1.229, no Código Civil vigente, o disposto no art. 1228,
§ 1º, do CC/2002, interpretado em consonância com todos os demais dispositivos antes
mencionados, permite afirmar que a água é um bem público de uso comum do povo.
Essa digressão legislativa, quanto à titularidade dos recursos hídricos,
demonstra por meio de uma interpretação sistemática do art. 20, III, e art. 26, I, ambos
da CF/88 c/c art. 1º, I, da Lei n. 9.433/97 e 1.228, § 1º, CC/2002, que inexistem águas
de propriedade privada no Brasil.14
Não alheio a discussões quanto à titularidade, o Superior Tribunal de Justiça
firmou entendimento nesse sentido, destacando-se aqui a decisão proferida no REsp
518.744/RN:
ADMINISTRATIVO.
DESAPROPRIAÇÃO.
INDENIZAÇÃO.
OBRA
REALIZADA
POR
TERCEIRA
PESSOA
EM
ÁREA
DESAPROPRIADA.
BENFEITORIA.
NÃO CARACTERIZAÇÃO. PROPRIEDADE. SOLO E SUBSOLO. DISTINÇÃO.
ÁGUAS
SUBTERRÂNEAS.
TITULARIDADE.
EVOLUÇÃO
LEGISLATIVA.
BEM
PÚBLICO DE USO COMUM DE TITULARIDADE DOS ESTADOS-MEMBROS.
CÓDIGO DE ÁGUAS. LEI N. 9.433/97. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTS. 176,
176 E 26, I.
[...] 4. A água é bem público de uso comum (art. 1º da Lei nº 9.433/97), motivo pelo
qual é insuscetível de apropriação pelo particular 5. O particular tem, apenas, o direito
MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Op. cit. 2005. p. 12-13.
Ibid., p. 14.
14
Ibid., p. 15. 12
13
49
Artigo 3
à exploração das águas subterrâneas mediante autorização do Poder Público cobrada a
devida contraprestação (arts. 12, II, e 20, da Lei n. 9.433/97) 6. Ausente a autorização
para exploração a que o alude o art.12, da Lei n. 9.443/97, atentando-se para o princípio
da justa indenização, revela-se ausente o direito à indenização pelo desapossamento de
aquífero.
[...] (REsp 518744/RN, Rel. Ministro Luiz Fux, primeira turma, julgado em 3/2/2004,
DJ 25/2/2004 p. 108). (Grifo do autor).
Pois bem, definida a titularidade, é oportuno retratar novamente o panorama
estabelecido em torno da gestão dos recursos hídricos no Brasil. Embora já tutelada
pelo Código Civil de 1916, a gestão da água foi bastante limitada, pois o Código de
Águas de 1934 regulamentava apenas a apropriação da água para fins de utilização em
produção de energia elétrica15
Foi com o advento da Lei n. 9.433/97 que esse panorama se alterou
substancialmente, pois ocorreu uma “profunda modificação valorativa no que se refere
aos usos múltiplos da água, às prioridades desses usos, ao seu valor econômico, à sua
finitude e à participação popular na sua gestão”16.
A gestão dos recursos hídricos é fundamental para que se possa “assegurar à
atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade
adequados aos respectivos usos [...]”17. Representa um processo que demanda a atuação
conjugada de diversos instrumentos, conforme prevê o art. 5º, da Lei n. 9.433/97,
destacando-se, dentre eles, o previsto no inciso IV, que diz respeito à cobrança pelo
uso de recursos hídricos. A gestão dos recursos hídricos, portanto, se mostra ainda
mais relevante quando nos deparamos com afirmações como a encontrada na obra
de Freitas que já apontava que a Lei n. 9.795/99, que trata da educação ambiental,
possuía pouca efetividade, já que o desperdício de água no Paraná chegava a 40%18. Tal
panorama não se mostra alterado, mesmo passado aproximadamente cinco anos, pois
os instrumentos relativos à gestão dos recursos hídricos são desenvolvidos de maneira
muito incipiente pelos responsáveis. Assim, aquela estatística anteriormente citada
permanece praticamente inalterada, conforme se verifica nas palavras de Roesler, pois,
tratando-se de Brasil, “mesmo possuindo cerca de 8% da água disponível no planeta,
há um desperdício que envolve desde a captação até o uso final das residências e
indústrias, na ordem de 40%”19
GRAF, Ana Cláudia Bento. Op. cit. 2005, p. 66.
Ibid. p. 66.
17
Ibid. p. 66.
18
Águas – Aspectos Jurídicos e Ambientais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2005. p. 21.
19
Gestão Ambiental e Sustentabilidade: a dinâmica da hidrelétrica binacional de Itaipu nos municípios
lindeiros. Cascavel: Edunioeste, 2007. p. 164. 15
16
50
Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
como instrumento de implementação da racionalidade ambiental
Ademais, a gestão dos recursos hídricos é de fundamental importância
quando se constata, por exemplo, que no caso do estado do Paraná “a demanda total
de água corresponde a 27,1% da demanda do país”20.
Somando-se a isso, temos o problema do aumento da demanda enquanto
a disponibilidade não se altera. Nesse sentido, bem observa Roeslaer que, “de 1900
a 1997, a população da terra dobrou, e o consumo de água cresceu sete vezes, ou
seja, a cada 21 anos, o seu aproveitamento se multiplica, mas o volume de água
disponibilizado para o consumo permanece o mesmo”21.
O que se pode ver nesse contexto, portanto, é que os múltiplos usos da água
são reais e demandam das autoridades públicas uma gestão responsável, com vistas à
garantia quali-quantitativa da água, sendo a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
um importante e valiosíssimo instrumento.
2 A cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sua eficácia como instrumento de gestão
baseado na racionalidade ambiental
A ideia de gestão dos recursos hídricos surge a partir da constatação de um
problema: a escassez de água. Embora o Brasil tenha a maior reserva de água doce
do planeta é preciso ter consciência de que esta quantidade tem, gradativamente, sido
reduzida, além da perda de qualidade que também se verifica.
A política pública adotada pelo Brasil segue práticas já há muito tempo
adotadas em países onde a escassez é uma realidade presente, baseadas em “três
diretrizes: a) utilizar o caráter indutor da legislação ambiental; b) considerar a água
como um valor coletivo; c) instituir a gestão compartilhada da água”.22
Para que essa política de gestão dos recursos hídricos logre êxito é necessário
primeiramente reconhecer o valor econômico da água, como bem salientou Raymundo
José Santos Garrido, então secretário de Recursos Hídricos, ao comentar a Lei n. 9.433,
de 8 de janeiro de 199723:
O terceiro princípio é o do reconhecimento do valor econômico da água, fortemente indutor
de seu uso racional, dado que serve de base para a instituição da cobrança pela utilização
dos recursos hídricos, um dos instrumentos de política do setor.
PLANO Nacional de Recursos Hídricos. Região Hidrográfica do Paraná. Disponível em: <http://pnrh.cnrhsrh.gov.br/>. Acesso em: 2 jun. 2010.
21
ROESLER, Marli Renate von Borstel. Op. cit. 2007. p. 163.
22
THAME, Antonio Carlos Mendes (Org.). A cobrança pelo uso da água na agricultura. Embre, São Paulo:
Iqual, 2004. p. 267.
23
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Política Nacional de Recursos Hídricos. Legislação/Brasil. Ministério
do Meio Ambiente. Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos, 2001. p. 9. 20
51
Artigo 3
Essa noção de que a água possui valor econômico está diretamente “ligada à
necessidade de gerenciamento do bem escasso”24.
No Brasil, a água é inalienável, sendo apenas outorgado o direito de uso25.
Tal disposição é importante na medida em que decorre de um status conferido a esse
bem de uso comum do povo, seguindo o que apregoa também o Banco Mundial e as
Nações Unidas, para quem “a água é conceituada como uma ‘necessidade humana’, e
não como um direito humano. Essa distinção é de extrema relevância, na medida em
que o segundo é inalienável, ao contrário da primeira”.26
Quando o assunto cobrança da água vem à tona, automaticamente se remete
à tarifa cobrada pelos serviços de abastecimento de água, o que revela um equívoco,
pois, “no saneamento básico, cobra-se geralmente a remuneração pelos serviços
ligados ao fornecimento, como adução, transporte, distribuição e não o valor material
do bem econômico água”.27
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos assume dupla função, pois, ao
mesmo tempo em que serve como instrumento de conscientização, serve também para
proporcionar capacidade financeira de investimento no setor.
Nesse sentido, inclusive, é que “a política nacional de recursos hídricos
está alicerçada em diversos fundamentos, dentre os quais o de que a água é um
recurso natural dotada de valor econômico (art. 1º, II, da Lei 9.433/97)”, sendo que
“a motivação teórica dessa noção legal está ligada à necessidade de gerenciamento
adequado do bem escasso”.28
É preciso, contudo, que essa cobrança pelo uso de recursos hídricos não se
torne mero instrumento de arrecadação, mas instrumento de gestão.29 É fundamental
que seja indutora de mudanças, pois “a grande mudança capaz de potencializar
o encaminhamento de soluções sociologicamente sustentáveis para os problemas
de saneamento básico consiste em desenvolver a percepção do usuário quanto à
importância desses serviços [...].”30
É através desse importante instrumento de gestão que se mostra possível,
por exemplo, a universalização do serviço de abastecimento de água, tão deficitário,
VIEGAS, Eduardo Coral. Saneamento Básico, Mercantilização e Privatização da Água. Revista de Direito
Ambiental. São Paulo, v. 40, ano 10, p. 24-43, out./dez. 2005. p. 27.
POMPEU, Cid Tomanik. Direito de Águas no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 271.
26
VIEGAS, Eduardo Coral. Op. cit. 2005. p. 29.
27
POMPEU, Cid Tomanik. Op. cit.. 2006. p. 271.
28
VIEGAS, Eduardo Coral. Op. cit.2005. p. 27.
29
THAME, Antonio Carlos Mendes (Org.). Op. cit. 2004. p. 268.
30
PARLATORE, Antonio Carlos et al Lei Municipal 13.670/2003. Planejamento, Regulação e Prestação de
Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário no Município de São Paulo. Revista de Direito
Ambiental. São Paulo, v. 37, ano 10, p. 160-201, jan./mar. 2005. p. 179.
24
25
52
Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
como instrumento de implementação da racionalidade ambiental
principalmente na área rural, conforme demonstra o quadro abaixo que retrata a
situação do saneamento básico (água e esgoto) no Brasil.
Regiões de atendimento com água e esgotos dos prestadores
de serviços participantes do SNIS 2008, segundo região geográfica
Regiões
Índice de atendimento (%)
Índice de tratamento
ÁguaColeta de esgotos
dos esgotos gerados (%)
TotalUrbanaTotal UrbanaTotal
(IN055) (IN023)(IN056)(IN024) (IN046)
Norte
57,6
Nordeste 68,0
Sudeste 90,3
Sul
86,7
Centro-oeste
89,5
Brasil
81,2
72,05,6 7,0
89,418,925,6
97,666,672,1
98,632,438,3
95,644,849,5
94,743,250,6
11,2
34,5
36,1
31,1
41,6
34,6
Para cálculo do IN043 estima-se o volume de esgoto gerado como sendo igual ao
volume de água consumida.
Quadro 1 – Índices de atendimento.31
Se por um lado a cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem o condão
de modificar a percepção do usuário, por outro, gera alguns problemas de ordem
institucional e de impacto na população que ainda não concebe a água como bem
econômico e não reconhece sua importância.
Nesse contexto, avaliando a experiência obtida no estado de São Paulo, Parlatore
et al revelam que, “embora o país tenha se beneficiado bastante desse avanço, ainda restam
deficiências graves a serem superadas, no tocante à universalização dos serviços [...]”.32
O primeiro problema, institucional por natureza, se deve ao fato de que passa
a haver disputa entre entes estatais (municípios e estados) quanto à titularidade dos
serviços por interesses puramente econômicos.33
Tamanho é o problema que, nessa disputa de poder, fomentada exclusivamente
pelo interesse econômico em gerir os recursos hídricos, surgem também os interesses
de empresas privadas.
Opondo-se a isso, Viegas afirma que a privatização não precisa ser aceita
pelos cidadãos, que nesse processo não se devem submeter à ganância e aos interesses
privados, embora “os governos, até hoje, não assumiram a proteção da água, da qual
depende a vida de seus habitantes”.34
BRASIL. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Sistema nacional de informações sobre saneamento:
diagnóstico dos serviços de água e esgotos – 2008. – Brasília: Mcidades/SNSA, 2010. p. viii.
32
PARLATORE, Antonio Carlos et al. Op. cit. 2005. p. 179.
33
Ibid. p. 193.
34
Op. cit. 2005, p. 30.
31
53
Artigo 3
É fundamental para a sociedade que seus governantes assumam o dever de
gerir com eficiência os recursos hídricos. Nesse sentido, encontramos no Uruguai uma
demonstração de como o tema deve ser enfrentado, onde, em 2003, foi aprovada uma
emenda constitucional prevendo que todo serviço de saneamento e abastecimento de água
para consumo humano deve ser prestado exclusiva e diretamente por entes estatais.35
Embora deva o estado assumir a gestão dos recursos hídricos, é de extrema
importância que esse processo seja baseado “em uma abordagem participativa,
envolvendo os usuários, os planejadores, os formadores de políticas públicas em todos
os níveis”.36
É, portanto, com a democratização do processo decisório que se torna
possível uma gestão eficiente, pois, como já ressaltado, não basta apenas o estado
assumir seu papel, cada um é um ator interessado, tendo em vista os múltiplos usos
dos recursos hídricos.37
Dessa forma, é preciso enfrentar um segundo problema que se refere à
mudança comportamental dos usuários, que precisam entender que a água precisa ser
melhor utilizada e que a cobrança é necessária para a gestão dos recursos hídricos.
Assim,38
É fundamental o esclarecimento de que a cobrança se dá em razão do direito de uso de
um bem público, no caso a água, que é inalienável (art. 18 da Lei 9.433/97). As pessoas
estão acostumadas com o pagamento pelo serviço de saneamento básico. Este continuará
a ser exigível de forma independente da cobrança pela água propriamente dita. Uma
das preocupações que emanam desse duplo pagamento é o encarecimento da água para
o consumo do homem e para a execução de suas atividades básicas, como a irrigação
agrícola, a psicultura, dentre outras, pairando incerteza intransponível nesse momento em
torno da forma como a população mais carente será atingida.
Muito embora problemas como esse ainda precisam ser enfrentados, é certo
que a gestão dos recursos hídricos e sobretudo a cobrança pelo seu uso desempenham
papel fundamental para que se alcance um processo de uso racional e sustentável dos
recursos hídricos.
A água é um bem público de uso comum, um “direito fundamental
humano”.39 Por isso é preciso compreender que, para garantir às gerações futuras
Ibid. p. 41.
CAP-NET et al Economia e Gestão Sustentável das Águas. Manual de Capacitação e Guia Prático, mar. 2008.
p.7 e 154.
37
Ibid. p. 7.
38
VIEGAS, Eduardo Coral. Op. cit.2005.
39
VARGAS, Marcelo Coutinho. O negócio da água: riscos e oportunidades das concessões de saneamento à
iniciativa privada: estudos de caso no sudeste brasileiro. São Paulo: Annablume, 2005. p. 34.
35
36
54
Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
como instrumento de implementação da racionalidade ambiental
o acesso aos recursos hídricos em quantidade e qualidade suficientes, as mudanças
apontadas devem concretizar-se.
A gestão dos recursos hídricos e a cobrança servem como instrumentos para
implemento de uma racionalidade ambiental, pois “urge repensar o nosso modo de pensar e
agir, o nosso modo de perceber a natureza e, principalmente, o nosso modo de fazer ciência e
utilizar tecnologia. [...] A crise da natureza é uma crise do nosso modo de viver”.40
Assim, o ideal de uma racionalidade ambiental41 surge com a constatação de que:
A crise ambiental coloca em questão os fundamentos da racionalidade econômica. Por
isso surgiram diferentes respostas, desde as filosofias da natureza até os novos movimentos
sociais que buscam integrar a democracia participativa, a descentralização econômica e a
reapropriação da natureza como um sistema ambiental produtivo. [...] Neste contexto a
economia ecológica e a ecologia política[...].
Esse é um desafio que surge com a crise ambiental da modernidade, pois
Ao mesmo tempo em que confronta a qualidade do ordenamento jurídico que disciplina
as relações entre os seres humanos e o meio ambiente, a sustentabilidade também convida
o direito a afastar-se dos ineficazes mecanismos de controle e desligar-se das legislações
simbólicas, ou seja, daqueles documentos legislativos elaborados com um único propósito:
permanecer ineficazes no plano jurídico.42
A busca por essa interpretação pressupõe, por exemplo, que “não pode haver
dúvida quanto à diretriz hermenêutica fundamental. [...] Não se lhe pode sobrepor a
ideologia do desenvolvimento econômico, sob pena de consagrar-se a deterioração do
ambiente”.43
Curioso observar, no entanto, que a crise ambiental da modernidade é a
matriz que justifica esta modificação cultural, social, econômica, etc., ou seja, uma
nova racionalidade. Destarte, serve também para sustentar teses tal qual a apresentada
por Gonçalves, de que a agenda global em torno do meio ambiente nada tem a ver com
sua proteção, mas sim que:
O objetivo maior da campanha é consolidar uma inusitada ‘mudança de paradigma
cultural’, especialmente minar o princípio antropocêntrico, expresso no versículo 18 do
EFKEN, Karl-Heinz. A ciência e a conscientização a serviço dos recursos hídricos: a água como fonte de
comunicação biológica global. Água: fonte de vida. Recife: Unicap. p. 111-124, 2005.
41
LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura — a territorialização da racionalidade ambiental. Rio de Janeiro:
Vozes, 2009. p. 42.
42
FERREIRA, Heline Sivini. Desvendando os organismos transgênicos: as interferências da sociedade de risco
no estado de direito ambiental brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 278.
43
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Ecocivilização: ambiente e direito no limiar da vida. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008. p. 18.
40
55
Artigo 3
Livro de Gênesis, segundo o qual o homem foi criado à imagem de Deus, com o mandato
explícito de dominar a natureza em benefício da expansão qualitativa e quantitativa da
espécie humana. Em lugar deste ordenamento judaico-cristão, baseado na razão inteligível,
os ‘engenheiros sociais’ oligárquicos oferecem uma idílica ‘ordem natural’ baseada num
princípio ‘biocêntrico’, que reduz a espécie humana a apenas uma a mais entre a miríade
de espécies de seres vivos existentes. Assim, o que se busca não é apregoar proteção da
natureza, mas redução do homem ao nível das espécies inferiores e a sua manipulação
como se fosse gado de corte, tratado por um processo de manejo malthusiano de maneira
tal que o seu crescimento não comprometa o controle oligárquico dos recursos naturais.44
Apesar das contrariedades, em se tratando da racionalidade ambiental, as
lições de Leff ilustram que “o princípio da sustentabilidade surge no contexto da
globalização como a marca de um limite e o sinal que orienta o processo civilizatório
da humanidade”.45
O embate entre a racionalidade ambiental e a racionalidade da modernidade
surge diante da resistência que “o neoliberalismo ambiental busca debilitar as
resistências da cultura e da natureza para subsumi-las dentro da lógica do capital”.46
O ideal de uma racionalidade ambiental surge com a constatação de que a
crise não é só ambiental, mas, sim, uma crise civilizatória cujas raízes encontram-se nos
fundamentos da racionalidade econômica.47 Embora se discuta uma nova racionalidade
ambiental, é fundamental conceber que essa proposta surge num contexto em que a
sociedade vive ainda a racionalidade econômica, mas que aos poucos começa a ser
questionada.
De acordo com Leff, esse pensar
...se forja nos interstícios dos escombros e nas muralhas da racionalidade que funda a
modernidade não surge somente da confrontação com a racionalidade econômica, mas
com o todo social que a contém, com a ordem jurídica e o poder do Estado. O ambiente
emerge do campo da externalidade ao qual foi lançado pela centralidade da racionalidade
econômica e o logocentrismo das ciências. Desta maneira, a questão ambiental veio
problematizar as teorias científicas e os métodos de investigação para apreender uma
realidade em vias de complexização que desborda a capacidade de compreensão dos
paradigmas estabelecidos. 48
Essa problematização das ciências, citada pelo autor, é a proposta central, que leva a uma
sensibilização ecológica de toda sociedade através da racionalidade ambiental.
O Desafio Ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 11-12.
LEFF, Enrique. Op. cit. 2009. p. 15.
46
Ibid. p. 29.
47
Ibid. p. 42.
48
Id. Racionalidade ambiental — a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006. p. 239.
44
45
56
Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
como instrumento de implementação da racionalidade ambiental
O direito, nesse contexto, também é chamado a se reinventar, a se adaptar a
essa nova realidade. Como bem assevera Santos que, ao analisar o direito no contexto
de uma crise epistemológica, conclui ser esse um processo longo, marcado pelos riscos e
inseguranças, mas que também se apresenta como fonte de inovações e oportunidades,
e que, sobretudo, “num período de transição paradigmática, o conhecimento antigo é
um guia fraco que precisa ser substituído por um novo conhecimento”.49
Destarte, buscando-se através da racionalidade ambiental bases para
criar novos paradigmas, certamente encontrar-se-ão formas de suscitar uma efetiva
sensibilização ecológica do direito como fator de sustentabilidade.
É esse ideal de uma nova visão sobre as necessidades do homem e do ambiente,
em conjunto, que encontramos na gestão e cobrança pelo uso dos recursos hídricos.
Considerações finais
Pode-se verificar pelo presente trabalho que a água se encontra no centro de
uma crise ambiental movida pelo modo de exploração dos recursos hídricos, pelos seus
múltiplos usos, por contaminação, etc. e que a cada dia se agrava.
Como uma das formas de solucionar ou ao menos amenizar esses problemas,
surgiram as políticas públicas de gestão dos recursos hídricos, baseada num processo
democrático e participativo para as tomadas de decisões que envolvem os múltiplos
usos da água, enfocando, principalmente, a cobrança pelo uso como ferramenta de
implementação de um modo mais racional de uso (racionalidade ambiental).
No entanto, essa proposta encontra alguns percalços, aos quais nos referimos
como problemas institucionais e de consciência dos usuários.
A par dos problemas, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem-se mostrado
uma valiosa ferramenta para garantir que se continue a usufruir de uma água de qualidade
e em quantidade suficientes para o consumo humano e para sua utilização nas atividades
básicas, pois assume dupla função: conscientizar o usuário do valor econômico da água e
garantir capacidade para investimentos no setor de abastecimento de água.
A gestão e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, como concluímos,
servem de instrumento para implementação da racionalidade ambiental, pois reconhece
que o ser humano está inserido dentro de um contexto maior, que é o ambiente em
que ele vive, dependendo dele para sobreviver. Portanto servir-se de instrumentos
que garantam a utilização sustentável desse meio é nada mais do que agir segundo os
princípios da racionalidade ambiental.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez, 2007. p. 186.
49
57
Artigo 3
Referências
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58
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como instrumento de implementação da racionalidade ambiental
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Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 40, ano 10, p. 24-43, out./dez. 2005.
59
60
Métodos Alternativos
de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder
Judiciário
Alexia Rodrigues Brotto1
Maureen Cristina Sansana2
1
1 Acesso à justiça. 2 Os “problemas” do Poder Judiciário. 2.1 O tempo no
processo. 2.2 Os custos e encargos do processo 3 Celeridade, efetividade
processual e segurança jurídica. 4 Meios alternativos de acesso à justiça e
pacificação social. 5 Premissas para que os meios alternativos de acesso à justiça
sejam exitosos. 6 Métodos simples para tornar mais provável o acesso à justiça.
Conclusão. Referências.
Resumo
A doutrina moderna não mais recepciona o direito de acesso à justiça como direito
de ingressar e receber uma sentença no âmbito do Poder Judiciário. É necessário
visualizá-lo como direito de receber uma tutela efetiva, que alberga uma série de outros
tantos direitos. Ocorre que a aduzida efetividade vem sendo corriqueiramente abalada,
isso porque se constata que a morosidade passa a predominar nos julgamentos, assim
como a desproporção entre os custos exigidos pelo processo e o bem que se almeja
tutelar. Não bastassem tais fatores, observa-se um Judiciário lutando constantemente
para oferecer efetividade e segurança jurídica, tendo sempre que, de alguma forma,
buscar conquistar índices de credibilidade dos jurisdicionados na sua atuação. Nesse
contexto, surge a discussão de como será o acesso à justiça se a pacificação social
advier de outros meios que não o tradicionalmente ofertado pelo Poder Judiciário,
ingressando na análise dos meios alternativos. Atenta-se que esses métodos permitem
maior participação das partes na resolução das pendências, o que acaba por promover
maior sensação de justiça, assim como restringe o foco das discussões para o que
Mestre em direito econômico e socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); advogada e professora de processo civil da Faneesp/Inesul; coordenadora de direito da Faneesp/Inesul.
E-mail: [email protected].
2
Mestranda do programa de pós-graduação, mestrado em direito, da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUC-PR); advogada e professora da PUC-PR e do curso Professor Luiz Carlos. E-mail:
[email protected].
1
61
Artigo 4
realmente está dissonante nas relações sociais. Prega-se, então, que o formalismo
exacerbado ceda espaço à informação e ao diálogo e, como consequência, aspira-se à
menor saturação do Judiciário.
Palavras-chave: acesso à justiça, efetividade, meios alternativos, pacificação social.
Abstract
The modern doctrine no longer greets the right to access to justice as the right to
join and receive a sentence within the Judiciary. You must view it as the right to
receive effective protection, which houses a host of others rights. It happens that the
effectiveness has been adduced routinely shaken, because it turns out that the length
becomes predominant in trials, as well as the disparity between the costs required by
the process and aims as well as protect. These factors were not enough, there is a
judiciary constantly striving to offer the effectiveness and legal certainty, and where,
somehow, to conquer rates under jurisdiction of credibility in his performance. In this
context there will be discussion of how access to justice to peacemaking social advies
other means than traditionally offered by the judiciary, he entered into the analysis of
alternative means. Given that these methods allow greater participation of the parties
in resolving disputes, which ultimately promote a greater sense of justice as well as
restricts the focus of discussions on what is really dyssomnias in social relations. Fold
up, so that the space formalism exacerbated succumb to information and dialogue,
and, consequently, aspires to a lower saturation of the Judiciary.
Keywords: access to justice, effective, social appeasement.
1 Acesso à justiça
O direito subjetivo de ação3, comumente reconhecido na doutrina brasileira
como “direito de acesso à justiça” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2006.
“O direito à jurisdição é o direito público subjetivo constitucionalmente assegurado ao cidadão de exigir do
estado a prestação daquela atividade. A jurisdição é, então, de uma parte, direito fundamental do cidadão, e,
de outra, dever do estado. O direito à jurisdição apresenta-se em três fases que se encadeiam e se completam,
a saber: a) o acesso ao poder estatal prestador da jurisdição; b) a eficiência e prontidão da resposta estatal
à demanda de jurisdição; e c) a eficácia da decisão juridita. A dicção, mesmo que constitucional, do direito
à jurisdição não basta para que o cidadão tenha a segurança de ver assumido e solucionado pelo estado o
conflito que, eventualmente, surja na aplicação do direito. (...). Por isso, é insuficiente que o estado positive a
jurisdição como direito, enunciando-o na fórmula principiológica da inafastabilidade do controle judicial, mas
não viabilize as condições para que este direito seja exercido pelos seus titulares de modo eficiente e eficaz”
(TEIXEIRA, 1993. p. 31).
3
62
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
p. 87) para defesa de seus direitos, foi ampliado pela Constituição Federal de 1988.4
passando a abranger não somente a lesão, mas também a ameaça de lesão a direito,
colocando o Poder Judiciário e, consequentemente, o processo como instrumento de
viabilização dessa relação entre o lesionado e/ou ameaçado e o juiz. Por essa razão,
falar-se em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade significa falar dele
como algo posto à disposição das pessoas, com vistas a fazê-las mais felizes (ou menos
infelizes), mediante a eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões justas
(DINAMARCO, 2003. p. 372-373).
O princípio do acesso à justiça, nas palavras de Cappelletti (1974. p. 67), foi
um dos grandes problemas processuais vividos desde o século passado5, tendo obtido
sua primeira vitória com a supressão das jurisdições privilegiadas e com a proclamação
da gratuidade da justiça.
Entretanto, a revolução jurisdicional acerca do acesso à justiça não eliminou
todas as demais cargas patrimoniais necessárias para ingressar em juízo e, pior, criou
um sistema tão amplo de acesso ao judiciário – com a gratuidade da justiça, ausência
de advogado nos Juizados Especiais – fazendo com que se solucionasse o problema
do ingresso à justiça, mas, devido ao sobranceiro número de demandas, não viabilizou
o acesso à adequada prestação da tutela jurisdicional, que também é componente
do princípio do acesso à justiça. A respeito lecionam Cintra, Grinover e Dinamarco
(2006. p. 39-40):
Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade
de ingresso em juízo. (...), para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável
que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se
adequadamente, sendo também condenáveis as restrições quanto a determinadas causas
(pequeno valor, interesses difusos); mas, para a integralidade do acesso à justiça, é preciso
isso e muito mais. (...). O acesso à justiça é, pois, a ideia central a que converge toda a
oferta constitucional e legal desses princípios e garantias. Assim, (a) oferece-se a mais
ampla admissão de pessoas e causas ao processo (universalidade da jurisdição), depois
(b) garante-se a todas elas a observância das regras que consubstanciam o devido processo
legal, para que (c) possam participar intensamente da formação do convencimento do
juiz que irá julgar a causa, podendo exigir dela a (d) efetividade de uma participação
em diálogo – tudo isso com vistas a preparar uma solução que seja justa, seja capaz de
eliminar todo o resíduo de insatisfação.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
4
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Inclusive com o episódio que envergonhou o direito brasileiro, a exemplo do que ocorreu no sistema jurídico
dos estados totalitários da primeira metade deste século, que proibiam o acesso à justiça por questões raciais.
(NERY Júnior, 1996. p. 94).
5
63
Artigo 4
Em análoga linha de pensamento, prescreve Marinoni (2006. p. 65):
O direito de acesso à justiça, que na verdade garante a realização concreta de todos os
demais direitos, exige que sejam preordenados procedimentos destinados a conferir
ao jurisdicionado o direito à tutela adequada, tempestiva e efetiva. Nesse sentido, por
direito de acesso à justiça entende-se o direito à preordenação de procedimentos realmente
capazes de prestar a tutela adequada, tempestiva e efetiva.
Isso porque o acesso à justiça não deve ser compreendido como mero
ingresso em juízo (DINAMARCO, 2005a. p. 134), mas como a pretensão endereçada
ao magistrado para que produza um julgamento efetivo, adequado aos valores da
sociedade, de modo a propiciar à parte litigante não só sua admissão em juízo, mas
também sua participação ativa no processo.
O princípio do acesso à justiça – intimamente ligado aos princípios da
inafastabilidade e indeclinabilidade do Judiciário, consagrados constitucionalmente –
é a síntese de todos os princípios e garantias do processo (DINAMARCO, 2003. 373),
informando também o princípio da inafastabilidade, na medida em que se buscam
métodos idôneos de fazer atuar os direitos sociais e uma justiça mais humana, simples
e acessível (PORTANOVA, 1999. p. 84).
De fato, todas as medidas com vistas à universalidade do processo e da jurisdição
(DINAMARCO, 2003. p. 373) consubstanciam a garantia constitucional do controle
judiciário e o primeiro passo para o acesso à justiça. No entanto, aflui-se a insuficiência
do tão só alargamento do âmbito de pessoas e causas capazes de ingressar em juízo, de
forma a ser imprescindível o aprimoramento da ordem processual, apta a disponibilizar
resultados satisfatórios e tempestivos às partes. Nesse diapasão, traz-se à baila importante
lição de Carmen Lúcia Antunes Rocha (TEIXEIRA, 1993. p. 34) consignando que
A jurisdição é direito de todos e dever do estado, à maneira de outros serviços públicos que
neste final de século se tornaram obrigação positiva de prestação afirmativa necessária da
pessoa estatal. A sua negativa ou a sua oferta insuficiente quanto ao objeto da prestação
ou ao tempo de seu desempenho é descumprimento do dever positivo de que se não pode
escusar a pessoa estatal, acarretando a sua responsabilidade integral.
Mas o acesso aos órgãos prestadores da jurisdição por parte do cidadão depende de um
desempenho prévio do estado, que se desdobra em dois comportamentos complementares:
de um lado, impõe-se a facilitação do exercício do direito à jurisdição pela sua declaração
normativa expressa, e, de outro, deve-se dar a saber ao povo deste como de todos os direitos
fundamentais que lhes são assegurados. Esses comportamentos públicos são pressupostos
imprescindíveis a serem cumpridos para que o direito à jurisdição não seja uma mentira
legal ou uma possibilidade oficial, somente exercida por aqueles que dispõem de condições
econômicas bastantes para saber de seus direitos e poder pagar o preço de seu exercício.
64
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
Bem acolhendo a postura da ministra do STF, Dinamarco (2005a. p. 133)
entende que “não basta que o processo produza decisões intrinsecamente justas e bem
postas, mas tardias ou não traduzidas em resultados práticos desejáveis; nem sendo
desejável uma tutela jurisdicional efetiva e rápida, quando injusta”. Compreende o
ilustre processualista que a plenitude do acesso à justiça importa remover os males
resistentes à universalização da tutela jurisdicional6 e aperfeiçoar internamente o
sistema processual.
Acrescendo, Grinover (1990. p. 244) doutrina acerca da necessidade de
presteza da prestação jurisdicional, como corolário do princípio do acesso à justiça:
É necessário acentuar o conteúdo da ideia de acesso à justiça que não há de significar
simplesmente o acesso ao Poder Judiciário; não só porque também existe o direito à
assistência pré-processual, mas também num sentido mais amplo: é que acesso à justiça
significa, e deve significar, não apenas o acesso aos tribunais, mas o acesso a um processo
justo, o acesso ao devido processo legal, àquele conjunto de garantias tão importantes
que fez com que Mauro Cappelletti dissesse constituir o mais importante dos direitos, na
medida em que dele depende a viabilização dos demais direitos.
Dessa forma, é insuficiente assegurar o simples acesso aos órgãos
jurisdicionados para que se obtenha a tutela de seus direitos, fazendo-se necessário
que a jurisdição seja prestada com a qualidade e efetividade que a situação fática lhe
impõe, o que não se verifica no âmbito do Poder Judiciário, principalmente quando o
assunto é morosidade. Afinal, nas palavras da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha
(TEIXEIRA, 1993. p. 37), “às vezes a justiça que tarda falha. E falha exatamente
porque tarda”.
2 Os “problemas” do poder judiciário
2.1 O tempo no processo
A grande tendência do processo civil moderno orienta-se para resultados
práticos, a fim de viabilizar a realização do direito e o acesso à justiça, com economia
processual e celeridade, para que o povo não fuja da justiça (PINTO, 1998. p. 9).
Entretanto, tem-se conhecimento de que a profunda verificação das verdades trazidas
ao processo faz com que transcorra tempo (CAPPELLETTI, 1974. p. 46).
Jaques (1958. p. 379) já asseverava, em 1934, que a Constituição deveria
garantir o rápido andamento dos processos, entendendo naquela época a necessidade
da celeridade processual. Igualmente, Cappelletti (1974. p. 46), asseverava que, muito
Imperioso ressaltar que o acesso à justiça não diz respeito ao acesso a direitos. A tutela jurisdicional é a tutela
a pessoas ou grupo de pessoas, sendo conferida ora ao autor, ora ao réu, e não necessariamente àquele, posto
que sempre se refere a pessoas e não a direitos. Nesse sentido, Dinamarco, 2005a. p. 126.
6
65
Artigo 4
embora houvesse um grande movimento de reformas processuais na década de 70,
uma das características trazidas do velho sistema processual ainda era a “enorme,
insuportável duração dos processos”. Salienta o processualista que, apesar das
tentativas dos países europeus, ao final do século XIX, em tornar os processos mais
céleres – sobretudo a partir do iluminismo, com notório esforço de tornar o processo
mais racional (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 16) – a duração ainda era tamanha, quer
pela indevida glorificação dos tribunais e os procedimentos de apelação – sobretudo na
Alemanha – quer pelo grande formalismo e dogmatismo de alguns países, agravada pela
situação de inexecução das sentenças de primeiro grau até que se tenha transcorrido o
término da apelação (CAPPELLETTI, 1974. p. 47-48 e 550).
Em vista disso, como bem assevera o processualista francês, Jean Vincent
(La Justice et ses Institutions. Paris, 1991), citado por Cármen Lúcia Antunes
Rocha (TEIXEIRA, 1993. p. 37), surgiram alguns comportamentos paliativos como
a diminuição do número de instâncias processuais e a adoção de procedimentos
urgentes. No entanto, a carência de um diagnóstico verdadeiro e definitivo sobre as
causas materiais e formais da lentidão da prestação jurisdicional não conduziu tais
comportamentos a resultados satisfatórios.
Logo, tamanho era o drama da elevada duração do processo – concebido como
a síntese da relação jurídica progressiva (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO,
2006. p. 302) – que uma demanda civil, iniciada em 1968, levava aproximadamente 18
meses para ser julgado em primeiro grau pelos pretores e 30 meses pelos tribunais; em
segundo grau, esse índice era elevado para 25 meses para ser julgado nos tribunais e 22
meses nas cortes de apelação (CAPPELLETTI, 1974. p. 549).
Por conseguinte, apesar do elevado grau de verdade real que se obtinha com
moroso procedimento, perdia-se em efetividade e, principalmente, na tutela e entrega
adequada do bem da vida pretendido.
Marinoni (1998. p. 163-164), recepcionando o entendimento Barbosa
Moreira, explana acerca do tempo despendido para a cognição do feito:
É certo que o ‘tempo’ despendido para a cognição da lide, através da investigação
probatória, é reflexo da existência do estado e da necessidade que ele se impôs de, antes de
tutelar os conflitos, averiguar a existência dos direitos afirmados em juízo. Mas é reflexo
da existência do estado porque foi este que vedou a autotutela privada, não deixando outra
saída ao jurisdicionado a não ser levar o seu direito ao seu conhecimento.(...)
Se o estado proibiu a autotutela privada, é correto afirmar que ele está obrigado a prestar
a tutela jurisdicional adequada a cada conflito de interesses. Nessa perspectiva, então, deve
surgir a resposta intuitiva de que a inexistência de tutela adequada a determinada situação
conflitiva significa a própria negação da tutela a que o estado se obrigou no momento
66
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
em que chamou a si o monopólio da jurisdição, já que o processo nada mais é do que a
contrapartida que o estado oferece aos cidadãos diante da proibição da autotutela.
Uma vez que o estado é obrigado a prestar a devida tutela jurisdicional, entendida esta
como a tutela apta a tornar efetivo o direito material, todos têm direito à adequada tutela
jurisdicional.
Sem embargo, longe de ser uma preocupação apenas brasileira, a detença
dos processos é assunto que preocupa o Poder Judiciário de diversos países, dos mais
desenvolvidos aos menos adiantados. Na Europa, em que pese a Itália ser reconhecida
pelo maior tempo de duração dos processos, houve sensível diminuição na morosidade
nos últimos anos. Após tentativas de implementação de uma espécie de tramitação
processual que permitisse rapidez sobre questões prejudiciais, enviada ao presidente do
conselho da União Europeia, em novembro de 2004 , o Comunicado de Imprensa n.
27, de 21/3/20077, do Conselho de Justiça da Europa, relatou sensível baixa na demora
de solução dos litígios8.
Embora em países como os Estados Unidos da América9 se vislumbre a
duração média dos processos civis, na primeira instância, de 21,8 meses em 2002 e
de 22,5 meses em 2003, observa-se que quase 13% do total de pleitos duram só na
primeira instância – de cognição longa e exauriente – mais de 3 anos10.
Ocorre que nos Estados Unidos, em que pese a elevada quantidade de demandas
e litigantes, a maioria dos casos finda na corte de apelação. A resposta final é dada em
segunda instância e se torna irrecorrível, somente adentrando na seara da suprema
corte acaso a matéria possua relevante interesse público. Tanto é assim que a média de
julgamentos de demandas pela suprema corte gira em torno de seis processos ao ano.
No Brasil, diversamente do que ocorre nos Estados Unidos, em que pese
a vigência do princípio do duplo grau de jurisdição – pelo qual toda sentença deve
ser revista por um órgão de grau superior – sobrevindo o acórdão proferido pelo
Disponível em: <http://www.curia.europa.eu>.
“A diminuição da duração dos processos, já observada nos anos de 2003 a 2005, consolidou-se em 2006. No
que diz respeito aos reenvios prejudiciais, a duração média dos processos é atualmente de19,8 meses, ao passo
que se situava em 25,5 meses em 2003, 23,5 meses em 2004 e 20,4 meses em 2005. Uma análise comparativa
revela que, desde 1995, a duração média dos processos prejudiciais atingiu o seu nível mais baixo em 2006.
Quanto às ações e aos recursos diretos e de decisões do Tribunal de Primeira Instância, a duração média foi,
respectivamente, de 20 e 17,8 meses (21,3 meses e 20,9 meses em 2005)”. Disponível em: <http://www.curia.
europa.eu>.
9
José Rogério Cruz e Tucci relata que, em estudo promovido pela Amercian Bar Association, o tempo tolerável
de duração dos processos nos tribunais ordinários da justiça norte-americana seria de 12 meses em 90% das
causas cíveis em geral; os 10% restantes, em decorrência de circunstâncias excepcionais, deveriam ser resolvidos
em 24 meses, por força também da cláusula do julgamento rápido (“speedy trial clause”), contemplada pela 6ª
Emenda da Constituição dos Estados Unidos (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 77-78).
10
Dados oficiais da justiça federal norte-americana. Disponível em: <http://www.uscourts.gov>.
7
8
67
Artigo 4
tribunal, é frequente a utilização de recursos especial e extraordinário, o que acaba
por comprometer sobremaneira a demanda de trabalho do Supremo Tribunal Federal,
sobrecarregando a própria estrutura do Poder Judiciário.
Não bastasse, verifica-se, até mesmo em primeira e segunda instâncias, a
sedimentação da tendência da elevada duração dos processos nos nossos fóruns e
tribunais. A alta taxa de congestionamento dos processos judiciais é responsável pelo
tempo de duração dos processos. Uma demanda civil demora de 10 a 20 meses na 1ª
instância; de 20 a 40 meses na 2ª instância; e de 20 a 40 meses nas instâncias especiais,
tudo isso dependendo do estado territorial, do objeto da lide etc., de forma que uma
demanda leva, normalmente, cerca de 12 anos para ser decidida e fazer coisa julgada
material, o que configura um arrepio aos princípios constitucionais da rápida duração
dos processos, acesso à justiça e dignidade da pessoa humana.
Independentemente dos fatores da lentidão da justiça serem institucionais,
subjetivos ou de insuficiência material (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 99), o legislador pátrio,
objetivando garantir aos jurisdicionados uma tutela célere, tempestiva, consentânea
e eficaz, ensartou na Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional n.
45/2004, o inciso LXXVIII ao art. 5º, firmando a razoável duração do processo e os
meios que garantem a celeridade de sua tramitação a todos os litigantes.
Com similar proposta, firmou-se o Pacto de Estado em favor de um Judiciário
mais rápido e republicano – assinado pelos três poderes da República em 15/12/2004, o
qual frutificou em diversas normas renovatórias tendentes a acelerar o desenrolar dos
processos judiciais11.
E desde então surgiram vários projetos de lei aptos a conferir maior celeridade
aos processos, implementando procedimentos que “desafogassem” um pouco o Poder
Judiciário. Nessa perspectiva, já lecionavam os juristas argentinos Eduardo Graña e
Rafael Antonio Bielsa (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 65):
Um julgamento tardio irá perdendo progressivamente seu sentido reparador, na medida
em que se postergue o momento do reconhecimento judicial dos direitos; e, transcorrido
o tempo razoável para resolver a causa, qualquer solução será, de modo inexorável,
“Nessa tendência de celeridade e razoável duração do processo foi proposta no Projeto de Lei n. 7.599/2006,
dispondo a respeito de indenização devida pela prestação jurisdicional em prazo não razoável. Diz o art. 1º
do referido projeto que o poder público indenizará os vencedores das ações judiciais, nas quais a prestação
jurisdicional, e a consequente satisfação de direitos dos vencedores, tenha excedido razoável duração, fixada em
lei com fundamento no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. E, reproduzindo a lei italiana nº 89, de
24.3.2001, o artigo 6º do Projeto 7.599/06 ainda estabelece a aplicação da responsabilidade objetiva do art. 37,
§ 6º da CF/88 aos agentes do Poder Judiciário responsáveis pela prestação jurisdicional em prazo não razoável.
Disponível em: <http://www. camara.gov.br/sileg/integras/427722.doc)>. As constituições francesa e espanhola
também se sedimentam nesse sentido. Sendo “detectada a dilação inoportuna, o tribunal condena os ‘cofres
públicos’ do país demandado a uma indenização compatível com os prejuízos material e moral sofridos pelo
litigante ou acusado queixoso” (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 140).
11
68
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
injusta, por maior que seja o mérito científico do conteúdo da decisão. (...). Em suma,
o resultado de um processo ‘não apenas deve outorgar uma satisfação jurídica às partes,
como também, para que essa resposta seja a mais plena possível, a decisão final deve ser
pronunciada em um lapso de tempo compatível com a natureza do objeto litigioso, visto
que – caso contrário – se tornaria utópica a tutela jurisdicional de qualquer direito.
Com a proposta de uma justiça mais célere e eficaz, implementaram-se,
sobretudo no Código de Processo Civil, sucessivas reformas a fim de garantir maior
celeridade na prestação jurisdicional, sem se perder em efetividade. Exemplos
dessa ideia podem ser retirados de reforma do Recurso de Agravo de Instrumento
(Lei 11.187/2005); instituição da fase processual de cumprimento de sentença (Lei
11.232/2005); alterações para não recebimento de recurso de apelação quando
a sentença está conforme Súmula do STJ ou STF (Lei 11.276/2006); acréscimo do
artigo 285-A para dispensa da citação e célere julgamento nas demandas idênticas (Lei
11.277/2006); Lei 11.280/2006 que, dentre outros objetivos, viabiliza a comunicação
dos atos processuais por meios eletrônicos; possibilidade de admissão das decisões
disponíveis em mídia eletrônica (Lei 11.341/2006); nova execução dos títulos executivos
extrajudiciais (Lei 11.382/2006); acréscimo dos artigos 543-A e 543-B, instituindo a
repercussão geral para os recursos encaminhados ao STF, visando à maior celeridade
e presteza (Lei 11.418/2006); Lei 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização dos
processos judiciais; acréscimo do artigo 543-C, estabelecendo o procedimento para
julgamento de recursos repetitivos no STJ (Lei 11.671/2008).
No mesmo ideal de celeridade e presteza na efetivação da tutela jurisdicional
adequada, o Código de Processo Penal instituiu novos procedimentos visando a essa
tendência, inclusive alterando as alegações finais escritas para alegações orais em 20
minutos, dentre outras alterações (Lei 11.719/2008).
Todavia, independentemente da consciência de celeridade e adequada tutela
jurisdicional, a delonga dos processos permanece elevada, sobretudo em razão de que
as novas leis que conferem maior grau de celeridade e apropriada prestação da tutela
jurisdicional nem sempre são aceitas pelos operadores do direito, bem como pela
população em geral, esbarrando numa série de entraves burocráticos e ideológicos que
reprimem a rapidez e eficácia da solução dos litígios.
Isso sem mencionar a culpa que se atribui ao próprio Judiciário pela
demora dos processos ou, quando não, se culpam os próprios advogados que “não
conseguiram agilizar o processo”, refletindo o atual panorama processual brasileiro:
moroso e insuficiente para atender às numerosas demandas e bem administrar o
sistema judiciário.
69
Artigo 4
2.2 Os custos e encargos do processo
Dinamarco (2003. p. 245) já explanava em anos anteriores que o sistema
processual confiava aos litigantes muitas atividades como “imperativos do próprio
interesse”, dirigindo-lhes variados e seguidos ônus ao longo de todo o arco do
procedimento.
Trata-se, no entendimento de Humberto Gomes de Barros (COSTA;
DINAMARCO; RIBEIRO, 2004. p. 323), da prestação jurisdicional parcelada, a
partir da qual cada ato jurisdicional, cada decisão, embora eficaz no plano teórico,
resguarda sua inefetividade, dependendo de posterior manifestação das partes, com
novos encargos sucumbenciais e nova decisão por outro órgão jurisdicional.
Independentemente de se tratar de ônus absolutos ou relativos – correspondentes
a atos causais ou indutivos – certo é que sempre haverá encargos a serem suportados
pelas partes, tais como o ônus de demandar e, portanto, afirmar o seu direito em toda
e qualquer fase do processo; o ônus de provar; o ônus de recorrer, transmitindo o
julgamento da causa para o órgão ad quem; o ônus de comparecer ao processo; ou, ainda,
o ônus de adiantar as custas processuais para realização de determinado ato judicial.
Em relatório12 elaborado em 2004 pelo então ministro da Justiça Márcio
Thomaz Bastos, desenvolveu-se estudo acerca da evolução das despesas do Poder
Judiciário de 1995 a 2002. De acordo com os gráficos apresentados no relatório,
enquanto em 1995 a União respondia por 30,9% da despesa total, em 2002 passou
a responder por 43,0%, de forma que a despesa com o Judiciário cresceu de R$ 25,3
bilhões de maio/04 em 1995, para R$ 32,9 bilhões em 1998 e R$ 28,6 bilhões em 2002.
Nas comparações internacionais, com base no ano de 2000, o Brasil figurou na
pior posição, quanto à participação das despesas do Judiciário no total da despesa do setor
público, com 3,66%. O índice compara-se a uma média internacional de 0,97% e a uma
posição compatível na reta de regressão de 0,86%, em função do valor das despesas totais
do setor público. Esse excedente de 2,80 pontos percentuais, aplicado sobre a despesa total
da união e dos estados ocorrida em 2002, em valores de maio de 2004, representaria um
adicional de custo do sistema judiciário brasileiro de R$ 23,6 bilhões por ano.
Colima proporcionar que, com as custas processuais bastante elevadas e
não uniformes, abrangendo as taxas judiciárias, emolumentos, custos de diligências,
remuneração de auxiliares eventuais, fica substancialmente difícil proporcionar à parte
um processo sem muitos encargos, pois, além dos supracitados, a parte ainda arcará
com eventuais despesas extraprocessuais, como captação de documentos, viagens etc.,
além da remuneração de seu advogado pelos serviços prestados e eventual reembolso à
Disponível em: <http://www.mj.gov.br>.
12
70
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
outra parte pelas despesas suportadas (DINAMARCO, 2005b. p. 636) – os chamados
honorários de sucumbência.
Irresignados com notáveis encargos processuais a que se submete a parte
litigante, insurgem-se Cintra, Grinover e Dinamarco (2006. p. 79): “se o processo é
um instrumento, não pode exigir um dispêndio exagerado com relação aos bens que
estão em disputa. E mesmo quando não se trata de bens materiais, deve haver uma
necessária proporção entre fins e meios, para equilíbrio do binômio custo-benefício”.
De costume, toda essa gama de encargos se torna demasiadamente vultosa em
razão de que não somente as despesas com a remuneração dos serventuários da justiça
e toda a sua organização interna são elevadas, mas também em razão de o próprio
processo exigir vasta despesa para seu desenvolvimento e, às vezes, não cumprir sua
função primordial de celeridade, tutela adequada etc.
Nesse diapasão, Cintra, Grinover e Dinamarco (2006. p. 32) alertam que,
ao lado da duração do processo, seu custo constitui importante óbice à plenitude do
cumprimento da função pacificadora do processo:
O processo civil tem-se mostrado um instrumento caro, seja pela necessidade de antecipar
custas ao estado (os preparos), seja pelos honorários advocatícios, seja pelo custo às vezes
bastante elevado das perícias. Tudo isso, como é perceptível à primeira vista, concorre para
estreitar o canal de acesso à justiça através do processo.
Ademais, não bastassem as despesas processuais, a própria lei instituiu um
sistema de adiantamento das despesas processuais em certos momentos do processo,
o que o processualista Moacyr Amaral Santos, citado por Dinamarco (2005b. p.
638) denomina “responsabilidade provisória ou definitiva”. Tal sistema consiste na
atividade da parte vencida em pagar ao estado ou aos auxiliares da justiça algum valor
ainda não recolhido (referente ao preparo, diligências do oficial de justiça e demais
taxas judiciárias) e reembolsar o vencedor pelo que ele tiver adiantado.
Conquanto tal situação se afigure, num primeiro momento, um tanto
onerosa para a parte sucumbente, Dinamarco (2005b. p. 640) justifica a exigência do
adiantamento de despesas no sentido de que ele evita a litigiosidade irresponsável,
colocando “os possíveis demandantes a pensar sobre a viabilidade de suas pretensões”.
Entretanto a tão só limitação ou restrição da onerosidade do processo não
se constitui em sinônimo de eficácia e adequada prestação da tutela jurisdicional. Há
necessidade da melhora dos mecanismos e releitura dos procedimentos utilizados, a
fim de realmente viabilizar ao jurisdicionado a entrega do bem da vida pretendido num
período razoável de tempo e sem demasiados encargos financeiros.
71
Artigo 4
3 Celeridade, efetividade processual e segurança jurídica
O princípio da celeridade, embora não previsto expressamente no Código
de Processo Civil, encontra-se presente no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição
Federal13, bem como no art. 125, inciso II14, do CPC, ainda que implicitamente, e na
Lei dos Juizados Especiais15, consubstanciando a ideia de que a satisfação da pretensão
de direito material seja garantida rapidamente. Entrementes, tem-se consciência de que
a tão só celeridade processual não possui o condão de conferir efetividade ao processo.
Celeridade e efetividade são conceitos distintos. Celeridade diz respeito
àquilo que é célere, rápido, ligeiro e veloz; efetividade refere-se àquilo que é efetivo,
permanente, que tem resultado, cumprimento e realização. A respeito do significado
da efetividade processual, leciona Barroso (1993. p. 79):
A efetividade significa, portanto, a realização do direito, o desempenho correto de sua
função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e
simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser
da realidade social.
Para o processualista Dinamarco (2003. p. 330), a efetividade é a expressão
resumida da ideia de que “o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função
sociopolítico-jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus escopos institucionais”.
A origem dos problemas da efetividade16 vislumbra-se desde os primórdios do
processo civil, sobretudo após a abertura do Judiciário à população, viabilizando um
maior acesso (acesso ao Judiciário e não necessariamente à justiça) da população na
perseguição de seus direitos.
Não bastasse o problema da sobrecarga de demandas ao Judiciário, subsiste
a celeuma da tutela jurisdicional que, se concedida de forma inadequada ou não
atendente aos interesses das partes, também culmina em não efetividade. Isso em
razão de a efetividade não corresponder somente à adequada tutela jurisdicional, mas
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
14
Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe:
II – velar pela rápida solução do litígio;
15
Art. 2º. O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia
processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.
16
Ovídio Baptista da Silva ressalta o estudo imperioso de Vittorio Denti (processualista italiano), que denuncia,
com rigorosa precisão, as origens de nossos atuais problemas no que respeita à desejada maior efetividade
da tutela processual, apontando o princípio da adaptação do procedimento às exigências da causa, o maior
ou menor complexidade da demanda, bem como o poder discricionário do juiz, agravado pela situação de
desconfiança nos magistrados, especialmente em primeiro grau. (WAMBIER, 1997. p. 416).
13
72
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
também consagrar a ideia de que essa tutela seja conferida de modo a garantir, de
forma real, o direito posto em litígio.17
Por essa razão, Marinoni (1999. p. 32) ressalta que “a lentidão da justiça civil
deve exigir cada vez mais atenção dos estudiosos do processo civil”. Isso porque a
perda da celeridade acaba por descaracterizar a própria função de pacificação social
do Poder Judiciário (DÓRIA, 1999. p. 18). Eis que cabe ao juiz o poder-dever de
proporcionar uma rápida tutela jurisdicional com efetiva proteção de uma justiça
célere e eficaz.
Essa celeridade, para Portanova (1999. p. 171), constitui, juntamente com
a economia de custo, economia de atos e eficiência da administração judiciária,
uma vertente do princípio da economia processual, viabilizando também melhor
administração da Justiça.
Ora, tendo-se consciência de que o processo não deve conter atos inúteis,
que prejudiquem seu bom andamento, e considerando-se a busca incessante pelo
“procedimento rápido, sem prejuízo da segurança” (DIAS, 2003. p. 16), vislumbra-se a
necessidade de confluência das expressões celeridade e segurança jurídica que, atuando
conjuntamente, garantem um processo justo, com um mínimo de rapidez e um mínimo
de segurança jurídica, sem ferir as demais garantias constitucionais previstas na Carta
Maior.
De fato, é preciso assegurar uma análise baseada na lei, mas, acima de tudo,
que seja ágil, eficaz e segura, haja vista efetividade e segurança jurídica serem direitos
fundamentais, garantidos por princípios constitucionais. O primeiro, denominado
também de direito de acesso à justiça, consiste no direito de provocar a atuação do
estado, para obter em prazo razoável uma decisão justa, capaz de incidir efetivamente
no mundo fático. Já a segurança jurídica, que garante maior amparo das decisões
judiciais, com maior grau de certeza jurídica.
Na mesma balada, e com clareza, posiciona-se o professor Sérgio Luis Wetzel
de Mattos (REPRO 120, 2005. p. 272) acerca desses institutos:
“José Roberto dos Santos Bedaque lembra que a efetividade não depende tão somente da rápida duração do
processo como do tipo da tutela pleiteada pela parte e conferida pelo judiciário. Demonstra o processualista
civil que: “Em termos de efetividade do processo, a proteção conferida pela tutela declaratória é plena, pois
prescinde de qualquer providência ulterior para assegurar por completo a satisfação da pretensão reclamada.
O mesmo ocorre com a tutela constitutiva, que, do ponto de vista prático, opera automática modificação no
plano substancial, atendendo integralmente à necessidade de seu titular. Por esse mesmo prisma da utilidade
da prestação jurisdicional, a tutela executiva aproxima-se bastante da constitutiva, visto que ambas operam
concretamente transformações no plano substancial, satisfazendo plenamente aquela pretensão trazida no
mundo exterior. Já a tutela condenatória é a menos completa, pois não dá solução definitiva à situação da vida.
Sua utilidade muitas vezes vai depender de outro provimento jurisdicional – o satisfativo – consubstanciado
na tutela executiva, pois nem sempre o acatamento do direito nela declarado se faz espontaneamente”
(BEDAQUE, 1997. p. 33).
17
73
Artigo 4
A segurança jurídica e a efetividade processual, com efeito, não podem ser arvoradas em
valores absolutos.Trata-se de valores igualmente relevantes e inevitavelmente concorrentes
no terreno do devido processo legal. A tutela da segurança jurídica encontra um limite
insuperável na tutela da celeridade processual e vice-versa. O valor da segurança jurídica,
assim, não pode primar, pura e simplesmente, sobre o valor da celeridade processual,
nem este se sobrepor, em quaisquer circunstâncias, àquele. Por um lado, a efetividade da
jurisdição é inconciliável com o garantismo radical e intransigente. Por outro, a aceleração
ou sumarização desenfreada do procedimento põe em xeque as garantias do devido
processo legal e, consequentemente, o próprio ideal de uma proteção jurídica efetiva.
Assim, em que pese a tensão entre a efetividade e a segurança jurídica,
ocasionada pela demora do processo, tais conceitos, para um ideal de justiça, devem
vir harmonizados, de forma a relativizar tanto um quanto outro, para que ambos
convivam regularmente e possam garantir um processo justo.
Dessa forma, verifica-se que não é somente a prestação jurisdicional lenta que
fere a crença ao Judiciário. O que mais afigura o descrédito do jurisdicionado é quando
o bem da vida pretendido não lhe é entregue ao final da demanda. Nesse caso, as partes
culpam seus advogados e o próprio juiz18, quando na verdade deveriam reivindicar
soluções com vistas a pôr fim à ineficácia do processo.
A esse respeito, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia
Antunes Rocha (TEIXEIRA, 1993. p. 31), nomeada em 21 de junho de 2006, antes
de conquistar célebre função, justificava que a insatisfação com o Judiciário sofre
constante mutação dependendo de época em que se encontra, fazendo com que os
indivíduos, julgados a cada momento pelo Poder Judiciário, também tenham os
próprios pensamentos e conclusões sobre o desempenho do estado-juiz:
Como se cuida de um direito do qual podem depender todos os outros, o seu conceito e
entendimento pelos indivíduos é sempre especial. A própria natureza da função de julgar,
que parece depender de algo mais que humano do julgador, torna o indivíduo mais sensível
e confiado ou desconfiado da pessoa e de todo o aparato que personifica a fragilidade
humana, envergando, sob o peso da toga, a leveza divina do juízo.
Ora, o próprio sistema judiciário requer dos magistrados uma atuação
sobre-humana que exige a adequada prestação jurisdicional, sem, contudo, prover
condições regulares para seu desempenho. Consequentemente, os jurisdicionados
passam a desacreditar na jurisdição e nos instrumentos “garantidores” de seus direitos.
“Não se nega que, como em qualquer outra atividade humana, há juízes lentos, perplexos e até mesmo
‘letárgicos’, para usarmos expressão de Bertrand Russel. O que não se pode, entretanto, é generalizar,
sobretudo quando se conhece a abnegação da grande maioria dos magistrados brasileiros, que se veem às
voltas, especialmente no cível, com excessivo volume de serviço, bem acima da condição humana, a desanimar
os diligentes e a justificar os preguiçosos”. (TEIXEIRA, 1993. p. 89).
18
74
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
Consubstanciado neste posicionamento, Carlos Alberto Garbi (BATISTA, 2004. p.
18) expõe com minudência:
...para a efetividade do processo não se deve buscar solução apenas em formas diferenciadas
de tutela, mas também na revisão de todos os fatores que prejudicam o desenvolvimento do
processo, não se afastando deste trabalho a revisão do papel dos próprios personagens da
atividade jurisdicional que, acima de qualquer interesse, devem estar engajados na procura
da solução dos problemas que contribuem para a atual crise do direito, como também
no aprimoramento do estado de direito, que deve corresponder não apenas ao ideal, mas
sobretudo ao plano de realizações.
Assim, somente buscando métodos garantidores da efetividade processual, de
modo a não lesar demasiadamente as partes, com o moroso e ineficaz procedimento, e,
garantindo maior preparo dos operadores do direito, sobretudo no que diz respeito à
solução de litígios, é que se poderá atingir o ideal de justiça.
4 Meios alternativos de acesso à justiça e à pacificação social
Diante das principais questões que envolvem o Poder Judiciário, como
celeridade, efetividade, custos, segurança, indaga-se se somente ele – Poder
Judiciário – pode dar conta de conflitos.
Ora, indubitável se apresenta que a falta de agilidade e a demora pela busca
da segurança jurídica também são decorrentes da infinidade de causas que anualmente
ingressam em juízo.
Sendo assim, interessante é falar em outros meios pacificadores de conflito,
nos quais haja maior participação das partes e, talvez por isso, probabilidade de maior
efetividade. Azevedo (2009. p. 21) utiliza-se de um estudo realizado pela professora
América Deborah Rhode para elucidar que a satisfação dos usuários com o devido
processo legal depende da percepção que o procedimento foi justo. Também destaca
que alguma participação do jurisdicionado na seleção dos processos a serem utilizados
para dirimir suas questões aumenta significativamente a percepção de justiça.
Pode-se constatar, desta feita, que as vias que incentivam a participação dos
conflitantes na resolução de suas pendências podem ser profícuas, já que despertam
para a maior sensação de justiça. Fala-se, então, em meios alternativos de acesso à
justiça como auxiliadores do estado na pacificação social.
Marinoni e Arenhart (2008. p. 34), nesse sentido, elucidam:
O estado, apesar dos esforços dos legisladores em dotar seu processo jurisdicional de maior
eficácia, tem encontrado dificuldades em solucionar, de forma rápida e efetiva, os conflitos
a ele trazidos.
75
Artigo 4
Nesse sentido, procuram-se outras formas para a efetiva solução dos conflitos, falando-se
em vias alternativas à do estado.
Tratar dos meio alternativos de acesso à justiça não significa restringir o acesso
às vias judiciais, até porque o ordenamento consagra o princípio da inafastabilidade
do Poder Judiciário (art. 5°, XXXV da CR). O que se está a clarificar é que podem as
pessoas resolver os próprios dissabores, podendo contar, para tanto, com terceiros – não
juízes – preparados na condução para o apaziguamento.
Outro aspecto de extrema relevância quando da adoção de métodos diversos
dos judiciais é que o contato entre as partes vai fazer com que o cerne dos debates
seja efetivamente as questões dissonantes, e não a preocupação em confrontar o
outro polo. Quer-se, assim, apenas evidenciar o que não se escusa, ou seja, quando as
partes ingressam com demandas e promovem lides, há o despertar para uma relação
extremamente adversarial, muitas vezes trazendo como principal meta o vencimento
da outra parte, e não a pacificação do que foi posto.
Dessa forma, acredita-se não despertar o melhor do ser humano, colocando-o
em situações que o fazem desejar a calamidade do seu semelhante.
De outro revés, enxerga-se, em métodos como a autocomposição e a
heterocomposição, vias construtivas de gestão das disputas. Deixa-se claro, no entanto,
que não se pretende conceder descréditos à atuação estatal na resolução de conflitos,
isso porque “vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar,
torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do estado ou por outros meios,
desde que eficientes” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2006. p. 25-26).
5 Premissas para que os meios alternativos de acesso à justiça sejam exitosos
Para que os métodos alternativos de acesso à justiça sejam exitosos em sua
adoção, torna-se exigível a formação de um ambiente apto para tanto.
Não se deve considerar que métodos como, por exemplo, a arbitragem
ou a medição sejam métodos semelhantes ao processo judicial. Importa salientar
que são distintos e que, se acaso o mesmo padrão de conduta seguido no processo
judicial for também adotado em sede desses meios privados, a insatisfação das partes
provavelmente ocorrerá. Azevedo (2009. p. 23 e 24) explica:
A experiência dos últimos 20 anos tem mostrado que o comprometimento com a forma de
resolução de disputa adotada (com respectivas características) influi significativamente
para o adequado desenvolvimento do processo e, por conseguinte, para a satisfação
das partes com a solução alcançada. Empresas e escritórios de advocacia que tratam
arbitragem ou mediação como uma ‘forma secundária’ de resolução de disputas tendem
a não investir em treinamento de seus advogados e administradores. Como consequência,
76
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
há o exercício intuitivo desses processos, que, em regra, se resume a aplicar a conduta
profissional característica do processo judicial à mediação ou à arbitragem. Naturalmente,
como visto acima, essa prática intuitiva em regra leva ao desvirtuamento da arbitragem e
a consequentes custos mais elevados (ou redução dos níveis de satisfação dos usuários).
No que concerne à mediação, como registrado em outra oportunidade, quando a
autocomposição é desenvolvida intuitivamente, em razão da falta de técnica adequada, em
regra, há por parte do mediador ou conciliador a imposição de um juízo de valor. Como
consequência, há perda de legitimidade nessa ‘autocomposição intuitiva’, pois as partes
muitas vezes não se sentem estimuladas a comporem seus conflitos e sim coagidas a tanto.
Diante da necessidade de se criar um ambiente hábil para tornar frutuosa
a aplicação dos meios alternativos de acesso à justiça, aponta-se que no Brasil há
reticência para tanto, uma vez que é significativamente perceptível a formação litigiosa
de seus bacharéis. Nesse contexto, Moessa de Souza (2009. p.79) acrescenta:
Nós operadores jurídicos somos formados apenas para litigar, temos a cultura adversarial,
do enfretamento, não somos treinados para ouvir, para dialogar, para identificar as
prioridades e reais interesses. Somos acostumados a pensar que, necessariamente, alguém
vai ganhar e alguém vai perder.
A autora sugere que haja implementação do currículo nos cursos jurídicos,
inserindo novas temáticas; acrescenta ainda que tanto os professores de direito como
os operadores jurídicos devem procurar ficar a par desses métodos de resolução de
conflitos alheios às vias estatais.
Pondera-se inclusive que do próprio Poder Judiciário podem partir iniciativas
que estimulem a solução das pendências; afinal, “a sustentabilidade do Poder Judiciário
depende de incentivar uma justiça comunitária em que a própria sociedade local esteja
capacitada, preparada e empoderada a solucionar seus conflitos” (BACELLAR, 2001.
p. 90).
Outra maneira de tornar atraente a utilização de meios de resolução de
contendas fora do Judiciário é debater questões que envolvem custos. Cappelletti e
Garth (1988. p. 87 e 88) de maneira límpida trataram do assunto:
Outro método geral para evitar litígio judicial consiste em encorajar acordos pelo uso
seletivo de incentivos econômicos. É claro que fatores econômicos tais como os custos do
julgamento, os métodos pelos quais esses custos são alocados (incluindo os honorários
antecipados), a taxa de inflação e a demora influenciam a disposição das partes para com
a conciliação, mesmo que esses fatores possam afetar diferentemente os diversos tipos de
litigante. A demora e os altos índices de inflação tornam um demandante em busca de
numerário, especialmente quando se trata de um indivíduo isolado, mais ansioso por uma
composição, de modo a poder receber alguma quantia desde logo. O valor elevado das
custas, de modo especial (mas não exclusivo), na medida em que elas são impostas apenas
77
Artigo 4
ao sucumbente, também aumenta os riscos de um julgamento. Litigantes individuais são
especialmente suscetíveis a essas pressões, porque não podem distribuir seus riscos entre
diversas causas.
Tais aspectos casam, de maneira peculiar, com o tão apregoado princípio da
economia processual, vez que este preza pelo maior e melhor resultado utilizando-se
da menor movimentação do processo. E se este nem precisar ser instaurado, maior a
conveniência.
Assim, constata-se que a mera elucidação da expectativa de gastos pode levar
o litigante a desistir de ingressar ou de prosseguir com uma demanda, preferindo para
tanto resolver sua pendência por meio de acordos, conforme preconizaram os autores
citados, desenvolvendo nova maneira de encarar a solução de conflitos.
6 Métodos simples para tornar mais provável o acesso à justiça
Supor que muitas vezes o apego a formalidades possa afastar a comunidade
da procura da satisfação de seus direitos não parece algo de todo desarrazoado.
Muitas vezes o rigorismo pelas formas processuais pode trazer a lentidão e,
por consequência, a descrença na justiça, pois não raro são os relatos de desânimo em
relação às atividades jurisdicionais.
Dinamarco (2003. p.170) coloca os possíveis aspectos negativos que podem
advir em razão do formalismo, da lentidão e da sensação de impunidade:
A justiça vai decaindo da sua condição de alvo da admiração e confiança dos membros da
população, perdendo vulto entre os credenda e os miranda, de que falam os sociólogos. O
formalismo e a lentidão dos procedimentos, associados à estreiteza da via de acesso ao
Poder Judiciário e à impunidade consentida pelos tribunais nestes tempos de verdadeira
neurose em face da violência urbana, são fatores de degradação da legitimação do poder
perante a sociedade brasileira contemporânea. São decepções que se somam a decepções
e geram um estado de descrença e permanente decepção generalizada: conduzem a
comportamentos rebeldes ao sistema jurídico, como os linchamentos e o surgimento de
‘justiceiros’, chegando a conferir à justiça, numa pesquisa de opinião pública, conceito
nada abonador (nota 3,5 em escala de 0 a 10). A população não crê na eficiência do Poder
Judiciário, prefere evitar o recurso a ele, não quer cooperar com ele. Mas sente que precisa
dele e, apesar de tudo, respeita-o e crê na sua idoneidade.
Esse mesmo autor, ao iniciar sua obra, reserva algumas linhas para
demonstrar o mal que pende sobre o direito processual, o qual se esparge, logicamente,
para o processo. Aduz que, por pender para o isolamento, o direito processual se
mostra alheio à realidade, utilizando linguagem incomum e método introspectivo. Para
o autor (DINAMARCO, 2003. p. 11):
78
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
Por imposição do seu próprio modo de ser, o direito processual sofre da natural propensão
ao formalismo e ao isolamento. Ele não vai diretamente à realidade da vida nem fala a
linguagem do homem comum. O homem comum o ignora, o próprio jurista o desdenha
e os profissionais do foro lamentam as suas imperfeições, sem atinar com meios para
melhorá-lo. A descrença de todos na justiça é efeito das mazelas de um sistema acomodado
no tradicional método introspectivo, que não inclui a crítica do sistema mesmo e dos
resultados que ele é capaz de oferecer aos consumidores finais do seu serviço, ou seja, aos
membros da população.
Complementando tais exposições, Moessa de Souza (2009. p. 60) acredita
serem os obstáculos psicológicos e culturais uns dos principais entraves ao acesso
à justiça:
(...) consistentes na extrema dificuldade para a maioria da população no sentido de
até mesmo reconhecer a existência de um direito, especialmente se este for de natureza
coletiva, na justificável desconfiança que a população em geral (e em especial a mais
carente) nutre em relação aos advogados e ao sistema jurídico como um todo e, ainda, na
também justificável intimidação que as pessoas em geral sentem diante do formalismo do
Judiciário e dos próprios advogados.
Dentro desse contexto, ganham força métodos que prezam pelo diálogo e
pela simplicidade, afinal, “com medidas simples, é possível realizar grandes obras. Na
simplicidade está o segredo do sucesso” (BACELLAR, 2001. p. 39).
Não é plausível conceber que a lei e seus ritos devam prevalecer sobre a
pacificação social.
Acredita-se, desta feita, que a solução que se destaca diante dos excessos de
formalismo e da descrença pendentes sobre o Poder Judiciário sejam a informação e o
fomento ao diálogo. Almeja-se, assim, incentivar medidas simples que tenham como
primado informar e dialogar.
Há de se denunciar que medidas com esse intuito já foram tomadas em passado
recente e deram certo. Em 1982, o desconforto de alguns juízes do Rio Grande do Sul, ao
assistirem que os jurisdicionados desistiam de seus direitos vez que a estrutura do Poder
Judiciário lhes parecia distante, motivaram-se a realizar atendimentos informais – fora
do horário de funcionamento do fórum – à população.
Tratava-se do Conselho de Conciliação e Arbitramento, movimentação essa
que foi tão vantajosa que chegou a ser a precursora dos juizados de pequenas causas
no Brasil. Assim explica Andrighi (1990. p. 04):
Como se verificou do breve histórico os juizados de pequenas causas no Brasil, muito
embora essa não seja a forma mais adequada de acordo com o nosso sistema legislativo,
iniciou-se de forma empírica e sem nenhum amparo legal – Conselho de Conciliação e
79
Artigo 4
Arbritramento – CCA, constituindo-se em experiência informal, donde resultavam
acordos que constituíam títulos executivos extrajudiciais.
É exatamente dentro desse cenário que os principais atributos dos meios
alternativos de pacificação social vão fortalecendo e mostrando-se mais aptos a ampliar
o acesso à justiça, evitando-se o desestímulo e a renúncia aos direitos.
É o que Cintra, Grinover e Dinamarco (2003. p. 27) apontam quando especificam
as características dessas formas pacificadoras não recorrentes do Poder Judiciário:
A primeira característica dessas vertentes alternativas é a ruptura com o formalismo
processual. A desformalização é uma tendência, quando se trata de dar pronta solução
aos litígios, constituindo fator de celeridade. Depois, dada a preocupação social de
levar a justiça a todos, também a gratuidade constitui característica marcante dessa
tendência. Os meios informais gratuitos (ou pelo menos baratos) são obviamente mais
acessíveis a todos e mais céleres, cumprindo melhor a função pacificadora. Por outro
lado, como nem sempre o cumprimento estrito das normas contidas na lei é capaz de
fazer justiça em todos os casos concretos, constitui característica dos meios alternativos
de pacificação social também a delegalização, caracterizada por amplas margens de
liberdade nas soluções não jurisdicionais (juízos de equidade e não juízes de direito,
como no processo jurisdicional).
Com essas características presentes em maior ou menor intensidade conforme o caso
(direitos disponíveis ou indisponíveis), vão sendo incrementados os meios alternativos de
pacificação social – representados essencialmente pela conciliação e arbitramento.
Resta evidenciado que se dispor a informar, dialogar e a conceder métodos
menos complicados para se aplacarem disputas é falar a linguagem dos meios
alternativos de acesso à justiça.
Observa-se que esses meios se apresentam potencialmente efetivos, pois
proporcionam entendimento direto entre as partes, tornando-as invariavelmente
melhores. Entrementes, também será possível visualizar maneira indireta de se evitar
a permanência da saturação do Poder Judiciário, já que evitar a instauração de
novos processos faz com que haja mais tempo e dedicação aos que já o abarrotam,
promovendo-se seus julgamentos e, finalmente, os devidos arquivamentos.
Conclusão
Calamandrei (Eles, os Juízes, Vistos por um Advogado, 1960) já expressava em
seus estudos a necessidade de consciência jurídica para a dimensão social do processo,
tendo em vista sobretudo a abordagem do tema do acesso à justiça e da efetividade da
tutela jurisdicional. Isso porque a doutrina tende a apontar como maior propósito do
80
Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos.
Expectativas do Poder Judiciário
Judiciário o escopo social, justamente por relacionar-se com o resultado do exercício
da jurisdição perante a sociedade e seus membros.
Embora existam outros escopos do processo, como a educação para exercício
dos próprios direitos, preservação da liberdade, participação nos destinos da nação,
preservação do ordenamento jurídico e atuação concreta do direito – que não
deixa de ser a atuação do direito substancial (BEDAQUE, 1994. p. 51) –, há que se
assentar o entendimento de que a pacificação social é o escopo maior da jurisdição e,
consequentemente, de todo o sistema processual.19
Nesse diapasão, diante de todas as mazelas do Poder Judiciário, destacadas
anteriormente, tais como a morosidade, os custos judiciais, a litigiosidade contida e
o sentimento de perdedor e vencedor da demanda, é que se devem abrir os olhos aos
métodos alternativos de solução de conflitos, justamente por trazerem uma vertente
compatível à pacificação social sem que se dispendam maior tempo e encargos financeiros.
Se é certo que, conforme Dinamarco (2003. p. 269), cada vez mais, a técnica
processual deve adaptar-se às exigências sociais e políticas que atuam sobre o sistema
processual – e, hodiernamente, não há qualquer outra preocupação social maior que a
efetividade do processo em todas as suas vertentes –, por que não pensar e difundir a
ideia pacificadora dos métodos extrajudiciais de resolução de conflitos como alternativa
para a morosidade, ausência de efetividade presente hoje no nosso Poder Judiciário?
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“E hoje, prevalecendo as ideias do Estado Social, em que ao estado reconhece a função fundamental de
promover a plena realização dos valores humanos, isso deve servir, de um lado, para pôr em destaque a
função jurisdicional pacificadora como fator de eliminação dos conflitos que afligem as pessoas e lhes trazem
angústia; de outro, para advertir os encarregados do sistema, quanto à necessidade de fazer do processo um
meio efetivo para a realização da justiça. Afirma-se que o objetivo-síntese do estado contemporâneo é o bem
comum e, quando se passa ao estudo da jurisdição, é lícito dizer que a projeção particularizada do bem comum
nessa área é a pacificação com justiça”. (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 2006. p. 31).
19
81
Artigo 4
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83
84
Direito, Economia e Estado:
integração possível?
Luiz Antonio Grisard1
Introdução. 1 Estado e globalização: novo cenário, novos papéis. 1.1 Primeira
fase. 1.2 Segunda fase. 2 A sociedade pós-moderna e o mundo do trabalho.
3 A constituição federal e a proteção aos direitos do trabalhador frente ao
desenvolvimento econômico. Conclusão.
Resumo
Não há dúvida de que o cenário econômico atual, ao mesmo tempo em que
proporciona maior aproximação entre países e blocos econômicos, abre espaço
para a relativização de direitos sociais do trabalhador. As configurações produtivas,
cada vez mais direcionadas à maximização dos lucros e em detrimento à garantia de
observância de princípios protetivos, repercutem de forma negativa na organização
social e influenciam no desequilíbrio das relações sociais. Os recentes escândalos e a
crise econômica de grandes potências colocam em xeque o modelo até então adotado,
que se sustenta no argumento da livre regulação do mercado como premissa elementar
de desenvolvimento e geração de riquezas. O debate que surge desse cenário nos força
a buscar identificar uma zona de convergência entre economia, intervenção do estado
e o direito, interseção necessária e da qual dependem não apenas sujeitos colocados à
margem, mas outros atores do cenário social. Dentro dessa perspectiva, encontramos
o direito do trabalho, protetivo por natureza, mas que enfrenta o dissabor de ser
considerado um entrave ao desenvolvimento econômico. O presente estudo tem o
objetivo de analisar os reflexos do desenvolvimento econômico sob a perspectiva do
trabalhador, especialmente quanto às potenciais melhorias que a nova dinâmica pode
proporcionar e à efetivação dos direitos sociais previstos na legislação brasileira.
Abstract
Although economic development generates better integration between countries and
economic free-trade areas it also helps to reduce many employees’ rights. New economic
arrangements, targeted solely to maximize profit despite human and labor minimum
Aluno do programa de Mestrado do Unicuritiba, na linha de pesquisa 2 (Atividade Empresarial e Constituição:
inclusão e sustentabilidade). E-mail: [email protected] ou [email protected]
1
85
Artigo 5
rights produce vast social gaps and become an obstacle to social organization. The
2008/2009 economic crisis tied to irresponsible business conducts jeopardized basic
fundamentals. The debate aroused by it indicated a rapid and necessary intervention to
reposition the role of the Laws and the State itself. Labor law has an important role in
this debate and this study tries to outline the reflections of this new economic model in
workers’ rights and protection principles defined by Brazilian legislation.
Palavras-chave: desenvolvimento econômico, direito do trabalho, liberalismo, direitos
fundamentais, garantias.
Introdução
As transformações observadas na sociedade pós-moderna, tanto em termos
de organização dos sistemas produtivos quanto em relação à intensificação das relações
entre países e blocos econômicos, produzem reflexos em escalas e campos diversos.
Sem sombra de dúvida, a sociedade atual não se encontra num estado de
pureza a que se refere Bauman (1999), pois a intervenção humana foi capaz, nos
últimos anos, de modificar completamente as estruturas de uma sociedade que fosse
justa, equilibrada, que permitisse o desenvolvimento de todos os agentes na exata
medida de suas necessidades. É a atuação do homem que, determinado a seguir uma
preconcebida noção de ordem, tem o poder de definir a sensação de pertença, de
estabelecer se algo está no lugar correto ou se atenta contra essa noção.2
Dentro do âmbito normativo, cabe-nos o questionamento se a ordem jurídica
estabelecida é capaz de conferir aos indivíduos a real possibilidade de participação na
sociedade e de garantir a efetividade dos direitos que lhes foram direcionados.
Numa sociedade em que os princípios de Adam Smith, expostos em sua obra
Wealth of Nations, parecem ser exatamente a ordem a que Bauman se referiu, com
a lógica própria da economia e de seus agentes, o papel do estado parece ter sido
reduzido significativamente. A visão puritana de que a economia possui a capacidade
de se autorregular, que vendedores irão produzir bens e serviços exatamente o suficiente
para atender à demanda de compradores, relação essa que irá gerar os sinais corretos,
representados em forma de preços, que, por sua vez, irão determinar a alocação
de recursos e eliminar os menos eficientes, é reforçada de forma quase inconteste.
Kuttner (1991) indica que, enquanto a marcha neoliberal passava, as ideias de Keynes,
ontraditórias ao ideário dominante, foram relevadas a notas de rodapé.3
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Tradução de: GAMA, Mauro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998. p. 14. 3
KUTTNER, Robert. The end of laissez-faire: national purpose and the global economy after de cold war.
Canadá: Ramdom House, 1991. p. 3. 2
86
Direito, Economia e Estado: integração possível?
No entanto o perfeito equilíbrio das forças concorrentes na criação de um
ambiente econômico equilibrado deu lugar à mão invisível, que metaforicamente
representaria a manipulação do jogo econômico de acordo com os interesses de
poucos e que exerce um controle cada vez mais visível e evidente. O estado, então,
representaria a desordem, um corpo estranho, cuja existência representa apenas o
obstáculo ao desenvolvimento e à satisfação dos interesses individuais.4
Nesse cenário, resta claro que há uma zona de convergência entre direito e
economia, especialmente no que diz respeito à interferência desta em relação àquele.
Segundo Dallegrave (2003), a análise da atual conjuntura das relações sociais demanda
uma abordagem interdisciplinar que perpassa pelo retorno a conceitos de Marx,
Weber e Durkheim, autores que reafirmam a aproximação entre o direito, o estado e a
economia.5
É justamente no âmbito dessa relação que se situa o universo do trabalho.
Considerando o atual modelo de desenvolvimento econômico, especialmente em países
ditos emergentes, o trabalho, componente importante do complexo sistema de relações
econômicas, políticas, sociais e jurídicas que são travadas na sociedade contemporânea,
pode possibilitar o efetivo gozo de direitos sociais aos indivíduos? É possível afirmar que
crescimento e desenvolvimento econômico estenderam benefícios a todos?6
Este breve ensaio irá buscar respostas a tais questionamentos, propondo
reflexões sobre as consequências do modelo econômico global em relação aos direitos
dos trabalhadores e analisando possíveis desdobramentos futuros dessa conjuntura.
1 Estado e globalização: novo cenário, novos papéis
1.1 A primeira fase
A relação entre estado e economia não é privilégio dos tempos modernos. Em
cada época, essa relação adotava características peculiares, ora formando coalisões no
sentido de reforçar determinado indivíduo ou grupo, ora assumindo papéis conflitantes,
com tentativas de prevalência de um sobre o outro.
Em perspectivas mais contemporâneas, o estado se organizou sob diferentes
regimes, desde a monarquia, passando pelo absolutismo até chegar ao liberalismo,
especialmente após a Revolução Francesa. O estado liberal, em sua concepção original,
SISCU, João et al. (Org.). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social.
Barueri: Manole, 2005.
5
DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Direito do trabalho contemporâneo: flexibilização e efetividade.
São Paulo: Ltr, 2003.
6
LOT JÚNIOR, Rafael Ângelo. A economia globalizada e seus reflexos nos direitos trabalhistas. In: POMPEU,
Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de
Fortaleza, 2008.
4
87
Artigo 5
era marcadamente avesso a intervenções de qualquer sorte, especialmente no campo
econômico, cabendo a ele, portanto, apenas o exercício de funções inerentes à própria
soberania e efetivação no plano jurídico. Esse caráter de total abstenção, por óbvio,
produz reflexos no campo social, onde não havia quem se ocupasse com as liberdades
individuais e a garantia de direitos coletivos, e no campo econômico, onde a ideia de
liberdade absoluta gerou total desequilíbrio na distribuição de renda e riquezas.
Houve um indício da intervenção estatal ao final do século XIX, quando
trabalhadores se organizaram para lutar por melhores condições de trabalho. O
estado, nessa época, passou a intervir para criar uma rede de proteção legal, até
mesmo porque a reconstrução da economia dependeria da união de esforços entre
diversos atores socais.
O crash da Bolsa de Nova York em 1929 marcou o início de uma nova fase,
com maior intervenção estatal e o surgimento do estado do bem-estar social (welfare
state). Justamente nessa época se teve notícia da doutrina de Keynes, que defende maior
preocupação do estado com garantias mínimas de equilíbrio da economia, com vistas
ao progresso social. A recuperação norte-americana foi combinada com a necessidade
de recuperação da Europa após duas guerras mundiais, financiada, inclusive, pelos
próprios Estados Unidos, com o chamado Plano Marshall.
O auxílio americano, muito mais do que representar uma tentativa de
consolidação de uma economia global que permitisse o desenvolvimento dos países
de acordo com os princípios do capitalismo, cristalizou o conflito ideológico entre
Ocidente e Oriente, este dominado pelo socialismo. O embate no campo das ideias logo
deu origem a intensos conflitos militares, com destaque para as guerras da Coreia e do
Vietnã e a corrida espacial. A queda do muro de Berlim em 1989 marcou o início da
derrocada do socialismo, ciclo concluído com a extinção da União Soviética. A partir
daí, a doutrina neoliberal tornou-se a cartilha fundamental de inúmeros países, com as
políticas reforçadas pelo Consenso de Washington.7
1.2 Segunda fase
A oposição às ideias de Keynes, consideradas reacionárias aos parâmetros
do establishment, foi retomada por Milton Friedman e Friedrich von Haeyk, ambos
integrantes da chamada Escola de Chicago, grupo de pensadores que defendia o mercado
livre e a rejeição total da regulamentação dos negócios, ideias reforçadas amplamente
nas cartilhas do Consenso de Washington e aplicada quase que religiosamente por
OLIVEIRA, Vicente Kleber de Melo. A intervenção do estado na economia. In: POMPEU, Gina Marcílio
(Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008.
p. 63-65.
7
88
Direito, Economia e Estado: integração possível?
inúmeros países, especialmente os latino-americanos, como caminho à integração
internacional.8
Segundo Fiori (apud BERCOVICI, 2006), o Brasil nunca foi representante
genuíno da doutrina Keynesiana, com intervenção rígida em diversos campos, mas
acabou por adotar uma forma híbrida. Adotou uma participação mais efetiva nos setores
sociais, especialmente para disciplinar o trabalho e a cidadania, e mais liberal em setores
econômicos, mormente no que diz respeito aos limites impostos à iniciativa privada.
O risco, obviamente, é internalizar o clichê de que a liberdade concedida em alguns
segmentos se encontra sob o manto do desenvolvimentismo, estabelecendo caminhos
mais brandos que criam uma estrutura industrial desenvolvida, mas sem autonomia
tecnológica e sustentação financeira, propulsores de desenvolvimento social.9
Sob essa perspectiva, Siscú et al indica:
A alternativa novo-desenvolvimentista aos males do capitalismo é a constituição de um
estado capaz de regular a economia – que deve ser constituída por um mercado forte e
um sistema financeiro funcional –, isto é, que seja voltado para o financiamento, e não
para a atividade especulativa. Portanto, na visão novo-desenvolvimentista, a concorrência
é necessária porque estimula a inovação por parte dos empresários que tentam maximizar
o lucro, o que torna o capitalismo dinâmico e revolucionário, e estabelece remunerações e
riquezas diferenciadas aos indivíduos de acordo com as suas habilidades. Mas devem existir
regras reguladoras para que não se tenha como resultado da concorrência o óbvio: perdem
os grandes porque, numa briga, sempre se incorre em custos, e desaparecem os menores
simplesmente porque são menores. [...] Na concepção novo-desenvolvimentista, o estado
deve ser forte para permitir ao governo a implementação de políticas macroeconômicas
defensivas ou expansionistas. [...] Uma economia de mercado desregulada com um estado
fraco e com um governo paralisado não é capaz de ampliar a propriedade do capital, de
garantir condições para um ambiente de concorrência sadia, de reduzir o desemprego ou
de eliminar as desigualdades exageradas de renda e riqueza.10
Pompeu (2008) indica que apenas agora, depois das mais variadas teorias
econômicas e do desenho político nacional e internacional, o estado e seus poderes
despertam para a efetivação dos direitos sociais. O estado depende tanto do Poder
Judiciário quanto das normas que regulam sua existência, as quais correm o risco de se
tornar vazias, na medida em que o complexo de garantias não se mostra exequível. Não
se pode conceber desenvolvimento econômico quando ele coloca em segundo plano o
ESCOLA de Chicago. Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_
de_Chicago_(economia)>. Acesso em 5 nov. 2009.
9
BERCOVICI, Gilberto. Democracia, inclusão social e igualdade. Trabalho apresentado no XV Congresso
Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – Conpedi. Manaus, 2006. Disponível
em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Gilberto%20Bercovici.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2009.
10
SISCU, João et al (Org.). Novo-desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social.
Barueri: Manole, 2005. p. xl-xli.
8
89
Artigo 5
próprio estado e sua população. Não há estado democrático de direito sem que as benesses
de eventual democratização econômica estejam ao alcance de toda a população.11
Reich (2008), professor da Universidade de Berkeley, na introdução à sua
mais recente obra Supercapitalism and the Financial Crisis, comenta:
As individuals operating the market, we seek the best deals possible – the highest-quality
products and services at lowest cost, the highest returns on investments at lowest risk.
But as members of a society rapidly morphing into a global system of interdependent
parts, we also want that system to have certain attributes. At the least, we want it to be
fair. For example, we don’t want financial markets to be rigged in the direction of insiders
or self-dealers. We also want the system to be sustainable, capable of benefitting future
generations. We want it to have a reasonable degree of stability, so that none need be
subjected to surprises so damaging as to push them or their families into dire poverty.
[…] How to balance what we want for ourselves and what we want from a market system?
That’s where democracy comes in. Ideally, democracy offers an arena in which we can
collectively deliberate about how markets should be organized both to maximize our
objectives as self-seeking buyers and sellers with our goals as members of societies.12
Pinheiro Filho (2008) defende que o êxito nesse equilíbrio entre os interesses
individuais e coletivos representaria o bem-estar material, o que apenas poderia ser
alcançado com a existência de sólidas instituições democráticas, políticas e econômicas,
todas engajadas no desenvolvimento com responsabilidade e sem expor a autonomia
estatal a riscos desnecessários.13
No mesmo sentido, Rocha Neto (2008):
Outra grande confusão que se costuma fazer é com relação à troca de posições das coisas
em nossa escala valorativa. De quando em vez, acabamos por ter como fim algo que na
verdade não passa de um meio, um instrumento para que se atinja determinada meta. O
desenvolvimento só passa a ser interessante quando o pensamos como uma ponte que nos
POMPEU, Gina Marcílio. O estado, a constituição e a economia. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008.
REICH, Robert. Supercapitalism and the financial crisis. Disponível em: <http://www.robertreich.org/
reich/20090115.asp>. Acesso em: 6 nov. 2009. Tradução livre: “Como indivíduos que operam no mercado,
procuramos os melhores acordos possíveis – os produtos de melhor qualidade e os serviços e menor custo, o
maior retorno em investimentos com o menor risco. Mas como membros de uma sociedade que rapidamente
se transforma em um sistema global de partes independentes, nós também queremos que o sistema tenha
certos atributos. No mínimo, queremos que seja justo. Por exemplo, não desejamos que mercados financeiros
sejam arrastados na direção de especuladores. Nós também queremos que o sistema seja sustentável, capaz
de beneficiar gerações futuras. Nós queremos que ele tenha um grau razoável de estabilidade, de modo que
ninguém fique sujeito a surpresas tão devastadoras quanto jogar a si próprios ou suas famílias na extrema
pobreza. [...] Como equilibrar o que nós queremos com o que o mercado quer? É aí que entra a democracia. Em
princípio, a democracia oferece um campo em que podemos deliberar coletivamente sobre como os mercados
devem ser organizados para maximizar os nossos objetivos pessoais como vendedores e compradores e nossas
metas como membros da sociedade”.
13
PINHEIRO FILHO, José Marcelo. Ordem econômica e social – dos planos econômicos à lei de
responsabilidade fiscal. Uma evolução socioeconômica responsável. In: POMPEU, Gina Marcílio. Estado,
constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. p.131.
11
12
90
Direito, Economia e Estado: integração possível?
levará ao bem-estar dos povos. [...] A verdade é que hoje os meios têm se tornado mais
importantes do que o próprio fim. Passamos a idolatrar os meios. A economia é uma
ciência que está, todo o sempre, buscando atingir os fins que não passam de meios para a
felicidade dos povos, vale dizer, seus fins são nossos meios. E aí mora um erro gigantesco,
pois as políticas públicas se pautaram por objetivos meramente econômicos, esquecendo-se
de que não são fins em si mesmos.14 (p. 44-45)
Em verdade, após inúmeras batalhas contra o continuísmo em diversas escalas
da vida social, a humanidade confiou ao estado suas esperanças e reivindicações de
tornar possível uma vida em comunidade mais equilibrada, com oportunidades para
todos, e na qual os direitos de personalidade tivessem seu pleno desenvolvimento. Ao
estado cabe não apenas o respeito aos estritos limites da legislação que o dirige, mas
também o efetivo papel de fomentar, através de ações positivas, a garantia e efetividade
dos direitos sociais, os quais serão o princípio de garantia da sobrevivência do próprio
estado organizado.
Não há mais espaço, em pleno século XXI e em meio a um emergencial movimento
de globalização econômica, para ações que não promovam o bem-estar da coletividade
e o pleno exercício de suas liberdades. O padrão de comportamento a ser adotado pelo
estado deve contemplar as novas expectativas dos indivíduos, então conhecedores das
oportunidades que a expansão econômica pode lhes proporcionar e conscientes da
necessidade de redução das desigualdades e do processo secular de exclusão.15
Bauman (1999) indica que a profundidade das mudanças é tamanha que acaba
por reforçar justamente um dos conceitos mais perversos da globalização: a sensação
de que as coisas constantemente fogem a um controle central. A um observador
desatento, tal movimento poderia transparecer que a relação entre as forças invisíveis,
capaz de produzir mutações, não tem nenhum objetivo predeterminado em razão da
ausência de um centro controlador.16
O novo cenário global indica a necessidade de participação do estado em
blocos econômicos regionais, abrindo-se, dessa forma, maiores possibilidades de
concretizar um plano nacional que possibilite encontrar o equilíbrio entre interesses
individuais e coletivos. No entanto integração não pode significar subjugação. O
ROCHA NETO, Alcimor Aguiar. Constituição, política e economia: estudo hermenêutico sobre o
desenvolvimento da esfera pública e do social e como isso pode se efetivar mediante a concretização da
constituição. In: POMPEU, Gina Marcílio. Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson
Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. p. 44-45. 15
POMPEU, Gina Marcílio. O retorno do estado-nação na geografia da mundialização. Texto publicado nos
Anais do XVII Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito–ConpedI.
Brasília, 2008. Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/08_88.pdf>. Acesso
em: 5 nov. 2009. p. 1 332.
16
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de: PENCHEL, Marcos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 67.
14
91
Artigo 5
desenvolvimento econômico não pode estar limitado à especulação financeira e à
concentração de renda, tampouco estar distante dos interesses da população.17
Infelizmente, no Brasil, assim como em diversos outros demais países
da América Latina, o processo histórico, desde a época colonial, foi direcionado à
subjugação. Em razão da ausência de conflitos para que se formasse verdadeiramente
uma consciência de sociedade capaz de torná-la coesa e unificada em termos de
objetivos comuns, o desenvolvimento sempre foi marcado por objetivos maleáveis, que
se modificam de acordo com os interesses momentâneos. Faz-se necessário um novo
marco desenvolvimentista, que encontre fundamentos em instituições fortalecidas que
possam, mesmo diante das necessidades dos mercados e de outras forças, promover o
desenvolvimento econômico e social.
Sobre isso, Bauman (1999) comenta:
Com efeito, não se espera mais que os novos estados, exatamente como os mais antigos
na sua condição atual, exerçam muitas das funções outrora consideradas a razão de ser
das burocracias da nação-estado. [...] O tripé da soberania foi abalado nos três pés.
Claro, a perna econômica foi a mais afetada. Já incapazes de se manter guiados pelos
interesses politicamente articulados da população do reino político soberano, as naçõesestado tornam-se cada vez mais executoras e plenipotenciárias de forças que não esperam
controlar politicamente. [...] A única tarefa econômica permitida ao estado e que se
espera que ele assuma é a de garantir um orçamento equilibrado, policiando e controlando
as pressões locais por intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em
defesa da população face às consequências mais sinistras da anarquia do mercado.18
E conclui, de forma a não deixar dúvidas:
A integração e a divisão, a globalização e a territorialização são processos mutuamente
complementares. Mais precisamente, são duas faces do mesmo processo: a redistribuição
mundial de soberania, poder e liberdade de agir desencadeada (mas de forma alguma
determinada) pelo salto radical na tecnologia da velocidade. A coincidência e o
entrelaçamento da síntese e da dispersão, da integração e da decomposição são tudo,
menos acidentais; e menos ainda passíveis de retificação.
É por causa dessa coincidência e desse entrelaçamento das duas tendências aparentemente
opostas, ambas desencadeadas pelo impacto divisor da nova liberdade de movimento,
que os chamados processos ‘globalizantes’ redundam na redistribuição de privilégios e
carências, de riqueza e pobreza, de recursos e impotência, de poder e ausência de poder,
de liberdade e restrição. Testemunhamos hoje um processo de reestratificação mundial, no
qual se constrói uma nova hierarquia sociocultural em escala planetária. 19
POMPEU, Gina Marcílio. Op. cit. p. 1 338.
BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. p. 73-74.
19
BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. p. 77-78.
17
18
92
Direito, Economia e Estado: integração possível?
A resposta brasileira à nova ordem acima retratada tem seus pilares fixados
na adoção de um estado democrático de direito que se ocupa em garantir, ainda que
minimamente, as liberdades individuais e coletivas. As ações do estado visam a criar
ambiente favorável para a convivência equilibrada entre as diversas forças – internas
e externas, de diversas naturezas – de forma a não apenas dar cabo à plataforma
neoliberal, mas também reduzir a possibilidade de mera subversão da população aos
interesses individuais.20
O processo de globalização significou, então, cada vez maior influência das
variáveis externas no âmbito doméstico, reduzindo o espaço de atuação do estado
nacional. A exigência por padrões internacionais de competitividade, qualidade
de processos e produtividade de bens e serviços acaba por aproximar os estados do
ponto de vista institucional e regulatório, e a consequência mais visível encontra-se
na delineação de estratégias referentes ao mercado de trabalho e à macroeconomia.
Ademais, todos estão sob uma constante vigília internacional. As medidas tomadas
por um estado terão resposta automática de outros e a tendência que se observa é a do
conservadorismo – explicado claramente na tentativa de estabelecer uma organização
global padronizada, especialmente no que diz respeito à agenda econômica. A atuação
do estado limita-se, em ultima análise, à criação de condições fundamentais de
competição e participação no jogo global.21
Como visto, a tendência de liberação do mercado e a ampla abertura econômica
tendem a fulminar os direitos sociais previstos na Constituição de 1988, uma vez que
são direitos adquiridos por meio do estado. Se o mercado, dotado de organização e
autodeterminação, é capaz equilibrar eventuais distorções, como compatibilizar suas
diretrizes com a necessidade de reestruturação social para contemplar as demandas da
coletividade? Perseguir um não significa automaticamente excluir o outro?22
É chegado o momento, portanto, de analisar a efetiva participação do estado
na efetivação das garantias sociais, especialmente naquelas que dizem respeito ao
trabalho, que, aliás, é atividade econômica que permite a mobilidade social.
OLIVEIRA, Vicente Kleber de Melo. A intervenção do estado na economia. In: POMPEU, Gina Marcílio
(Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008.
p. 65.
21
CARDOSO, Fernando Henrique. Consequências sociais da globalização. Conferência proferida no Indian
International Centre, Nova Délhi, Índia, 1996. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/publi_04/
COLECAO/GLOBA2.HTM>. Acesso em: 6 nov. 2009.
22
SANTIN, Janaína Rigo. As novas fontes de poder no mundo globalizado: flexibilização ou sonegação de
direitos? Texto publicado nos Anais do XVI Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Direito – Conpedi. p. 3024-3043. Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://www.conpedi.
org/manaus/arquivos/anais/bh/janaina_rigo_santin.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2009. 20
93
Artigo 5
2 A sociedade pós-moderna e o mundo do trabalho
Segundo Dallegrave (2003), as transformações na organização econômica
global produzem três efeitos significativos no mundo do trabalho, quais sejam
o aumento do desemprego mundial, a reestruturação do sistema produtivo e a
precariedade das condições de trabalho.23
Na análise de Alcântara (apud DALLEGRAVE, 2003), o desemprego se
manifesta no cenário brasileiro também em decorrência de três outros fatores, a saber:
(a) a política econômica, marcadamente recessiva, despreocupada com o crescimento
sustentável; (b) permanência de trabalhadores com idade avançada no mercado de
trabalho em razão da precariedade da proteção social; (c) a inserção precoce de
crianças no mercado de trabalho, principalmente em razão da falta de escolaridade e
da necessidade de complementar a renda familiar.24
A reestruturação do sistema produtivo é um fenômeno que se observa há tempos.
As alterações na organização das linhas de produção são verificadas desde os primórdios
da produção automobilística de Henry Ford. O objetivo é, claramente, maximizar a
produção, com melhor utilização dos recursos e menor custo. Ocorre que, atualmente, tais
alterações possuem a capacidade de produzir reflexos em escala global, na medida em que
uma empresa pode ter acesso a recursos em diferentes cantos do planeta.
E é exatamente nesse âmbito que se argumenta acerca do principal reflexo
da globalização: a precarização das relações de trabalho. Lot (2008) comenta
que expressões como “flexibilização” e “mitigação” passam a ser aplicadas de
forma reiterada para explicar ou justificar uma variação negativa dos direitos dos
trabalhadores em nome do desenvolvimento.25
No mesmo sentido, Brandão (2003):
O modelo industrial no qual foi erigida a legislação trabalhista está sendo ultrapassado.
A chamada sociedade pós-industrial, dentro de um contexto neoliberal e de globalização
econômica, acirra a competitividade entre as empresas e impõe profundas transformações
no sistema de produção, sempre visando à maximização do lucro.
Esse cenário atua em prejuízo do hipossuficiente, que muitas vezes é afastado da tutela
protecionista do direito do trabalho em razão da superação de alguns de seus institutos,
dentre os quais aqueles que estabelecem a definição jurídica do empregado.26
DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Direito do trabalho contemporâneo: flexibilização e
efetividade. São Paulo: Ltr, 2003. p. 17.
24
Idem, ibidem.
25
LOT JÚNIOR, Rafael Ângelo. A economia globalizada e seus reflexos nos direitos trabalhistas. In: POMPEU,
Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de
Fortaleza, 2008. p. 179.
26
BRANDÃO, Jefferson Ramos. Contrato de trabalho na sociedade pós-industrial e a necessidade de revisão
dos requisitos da relação de emprego. In: DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Direito do trabalho
contemporâneo: flexibilização e efetividade. São Paulo: Ltr, 2003. p. 33. 23
94
Direito, Economia e Estado: integração possível?
Diante de novos paradigmas, estabelecidos em escala global, há que se
considerar a atuação do estado brasileiro na formulação de políticas públicas que
possam conter o impacto negativo no âmbito do trabalho e emprego.
Desde Keynes, dentre as principais funções do ente público, além do controle
dos preços, o equilíbrio das contas externas e a distribuição de renda, encontra-se o
estabelecimento de políticas de emprego alinhadas com o programa de desenvolvimento
econômico. No entanto, para países emergentes ou em desenvolvimento, que
dependem de financiamentos externos para impulsionar a economia, as políticas
traçadas no campo econômico acabam por refletir nos aspectos sociais. Muito
embora o diagnóstico mais comum indique que as restrições de oportunidades de
pleno emprego sejam causadas por restrições macroeconômicas, o principal obstáculo
está no enfrentamento de tais limitações através da adoção apenas de uma agenda
microeconômica, isto é, de ações pontuais, restritas às fronteiras do estado e cujo êxito
dependeria de inúmeros fatores externos.27
No Brasil, as políticas públicas parecem seguir determinado padrão
institucional, isto é, aplicam-se independentemente da orientação político do grupo
que está no governo. Pode-se dizer que tais políticas públicas são divididas em dois
planos: o das instituições, que se ocupam com a regulação dos aspectos operacionais
da relação de trabalho, controle esse cristalizado na legislação trabalhista, e o
das intervenções, que envolvem os investimentos do poder público na geração e
manutenção dos empregos, bem como da definição de estratégias de proteção social
aos desempregados (seguro-desemprego).28
Mesmo com essa atuação estatal, seja na perspectiva direta de financiamento
ou na de proteção, o crescimento econômico nem sempre produz ambiente favorável
para a inclusão social. Nas palavras de Herman (2005):
Nas economias de mercado, a produção de bens e serviços é movida por expectativas de
lucro. Estas, por sua vez, dependem das expectativas de evolução dos custos, de produção
e comercialização, da demanda pelo produto e de seus respectivos preços. A combinação
entre quantidade demandada e preços – em geral, negativamente relacionadas entre
si – define a receita da firma que, confrontada com os custos, determina sua margem
de lucro. Como o comportamento esperado dessas variáveis só pode ser confirmado ou
negado ex post, isto é, depois dos bens produzidos e efetivamente colocados à disposição
do mercado, toda a atividade produtiva em economias de mercado envolve algum tipo
de risco de frustração das expectativas de lucro. Essa possibilidade de frustração atua,
por vezes, como um desestímulo ao aumento da produção e do emprego agregados,
27
SALM, Claudio. Estagnação econômica, desemprego e exclusão social. In: SISCU, João et al. (Org.). Novo
desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. 192-193.
28
Idem, p. 204-205.
95
Artigo 5
ou mesmo à manutenção do nível corrente de atividade: quando, para um número
expressivo de firmas, o risco estimado é muito alto, ou as condições do mercado são
muito incertas, a ponto de impedir a formulação de estimativas relativamente seguras,
a atividade econômica fica comprometida. Do mesmo modo, quando as condições dos
mercados inspiram expectativas otimistas, acompanhadas de baixo risco – estimado – de
frustração, a produção e o emprego são estimulados.29
Bonelli (2009) indica que o Brasil vem, nos últimos tempos, empreendendo
esforços para estimular o ambiente econômico mediante reformas institucionais –
políticas, sociais, jurídicas e administrativas. O estado consegue compreender o papel
duplo que exerce, ou seja, o de provedor de serviços essenciais para a população e o de
regulador da atividade econômica, contrariando até mesmo uma tendência histórica
verificada nos países da América Latina, onde, aliás, cabe mencionar o esforço do
ente público no sentido de estabelecer regras que permitam desenhar um campo de
oportunidades reais para as empresas privadas, sem que isso represente uma retração
de conquistas no campo social.30
Fica evidente, portanto, que cabe ao estado não apenas atuar de forma passiva,
simplesmente adequando as políticas sociais de acesso e manutenção de emprego
e renda, mas também como agente ativo na formação de um ambiente de negócios
que permita a atuação das empresas de acordo com objetivos de desenvolvimento.
Quanto maior o risco para a atividade econômica e seus agentes, menor a possibilidade
de efetiva colaboração para a formação de uma conjuntura que permite, em última
análise, a verdadeira promoção de direitos sociais, dentre eles o pleno emprego.
Saboia (2003) indica que a relação entre crescimento econômico e melhoria das
condições de trabalho é visível. Historicamente, nos momentos em que se verificaram
índices positivos de crescimento econômico, as taxas de desemprego diminuíram.
Assim, para gerar mais empregos, a economia deve crescer de maneira contínua, o que
não tem ocorrido na economia brasileira. Além dessa instabilidade, o caso brasileiro
apresenta, ainda, um paradoxo difícil se ser superado: o aumento da produtividade
nas empresas aqui estabelecidas, via automação ou outras formas de aumento de
eficiência, acaba por eliminar parte dos empregos. Ademais, há que se mencionar,
ainda, o fato de os investimentos públicos, quando realizados, concentrarem-se nos
segmentos mais tradicionais, que possuem maior potencial de geração de empregos,
mas que, por outro lado, pagam os menores salários. Outros setores, mais modernos
HERMAN, Jeniffer. Microcrédito como política de geração de emprego e renda: possibilidades e limites. In:
SISCU, João et al. (Org.). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social.
Barueri: Manole, 2005. p. 274-275 30
BONELLI, Regis. Estado e economia: estado e crescimento econômico no Brasil. Texto para discussão do
Ipea n. 1.393, 2009.
29
96
Direito, Economia e Estado: integração possível?
e fundamentais para o país se tornar competitivo no cenário internacional, não têm
recebido incentivos que permitam crescimento sustentável ou que representem efetiva
possibilidade de expansão das garantias sociais.31
É justamente nesse âmbito que se insere a discussão sobre a flexibilização
como meio de estender os benefícios do desenvolvimento econômico.
O questionamento que se coloca, então, diante da atual conjuntura
econômica: até que ponto é aceitável justificar o desenvolvimento às custas da redução
de direitos do trabalhador.
É certo que há uma nova ordem econômica e social e, nesse cenário, os antigos
paradigmas do emprego, da participação do estado e da iniciativa privada, levam-nos
à reflexão acerca da existência de efetiva garantia aos direitos sociais, erigidos ao status
constitucional na Carta Magna de 1988.
3 A Constituição Federal e a proteção aos direitos do trabalhador frente ao desenvolvimento
econômico
A Constituição Federal de 1998 elegeu, como fundamentos da República,
a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa (art. 1º, IV). Fixou, ainda, o trabalho como um dos direitos sociais
fundamentais (art. 6º) e estabeleceu, de forma expressa, diversos direitos dos
trabalhadores, sem mencionar outras possíveis ações que possam contribuir para a
melhoria da condição social do trabalhador (art. 7º, caput e incisos).
O legislador constituinte não se olvidou, ainda, de estabelecer equilíbrio
entre os preceitos referentes à condição humana anteriormente indicados e aqueles
que dizem respeito à atividade econômica. Ao definir os princípios gerais da atividade
econômica, a Carta Magna registra que ela terá como um de seus fundamentos a
valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, ambos direcionados a assegurar
a todos uma existência digna (art. 170, caput), e que o pleno emprego será um de seus
princípios (art. 170, VIII).
Nesse sentido, Pucci (2008):
Dessa forma, significa que a ordem econômica, de acordo com o art. 170, VIII da
Constituição Federal, prioriza o trabalho humano sobre todos os demais valores da
economia. Observa-se, portanto, a conotação humana que toma a economia brasileira
de acordo com a Carta Magna de 1988, embora se viva sob o regime de uma economia
capitalista. Assim, o fato de a economia abarcar todos aqueles que estão em idade
produtiva e aptos a trabalhar de forma que possam garantir a sua subsistência, auferindo
SABOIA, João. Mercado de trabalho no Brasil: fatos e alternativas. In: SISCU, João et al. (Org.). Novo
desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. 230-
31
97
Artigo 5
uma contraprestação pecuniária justa pelo seu trabalho, permitindo-se, assim, uma
existência humana digna, seria a verdadeira concretização do princípio do pleno emprego.32
A efetiva aplicação dessa rede de proteção, no entanto, tem sido obstaculizada
pela dinâmica econômica observada a partir da década de 90, época marcada pela
desregulamentação de mercados, processos de privatização, expansão de empresas
transnacionais, maior influência do capital externo, especialmente o financeiro, e
desenvolvimento de novas tecnologias. Em razão dessa complexa e intensa agenda
econômica, alteram-se as relações de trabalho como eram conhecidas anteriormente,
especialmente no que diz respeito às tradicionais relações assalariadas formais.33
No entanto a alteração das relações do trabalho não significou evolução
do complexo normativo. O trabalho, aqui entendido como atividade econômica, é
extremamente regulado e, nesse âmbito, há prevalência de normas legais sobre outras
formas de regulação. Nossa legislação trabalhista se ocupou de regular praticamente
todos os aspectos do ciclo de trabalho – desde a descrição de cargos até a remuneração
e a representação dos trabalhadores, modelo que, por ser extremamente positivista,
torna árdua e praticamente impossível a compatibilização com a dinâmica evolução da
atividade econômica.34
De acordo com Campos (2009), o paradigma que impede a ampliação da
proteção social a todos os indivíduos inseridos no mercado de trabalho passa pelo fato
de que, desde sua origem, carrega uma restrição intrínseca, estrutural:
Ainda hoje, o acesso dos trabalhadores aos benefícios gerados pelo capitalismo brasileiro
depende, em grande medida, de sua condição de empregados com direitos laborais/
previdenciários. Afinal, ao menos no plano do “dever-ser”, a Carteira de Trabalho e
Previdência Social (CTPS) faz com que os empregados tenham garantias de acesso a um
rol de benefícios econômicos, sociais e políticos que, em outras posições ocupacionais, lhes
são inteiramente negadas. [...] a CTPS faz com que os empregados tenham garantias de
benefícios que, em outras posições da estrutura ocupacional, simplesmente não existem. E
agora, com base em uma análise meramente descritiva das informações da Pnad/IBGE, já
se constata que essas garantias se traduzem em direitos propriamente ditos. Os assalariados
(e, em certas situações, também os domésticos) com carteira apresentam perspectivas
mais amplas de permanência no trabalho, especialmente quando comparados com os
assalariados (e os domésticos) sem carteira. Paralelamente, os primeiros trabalham em
PUCCI, Pedro Henrique Holanda. O estado e o pleno emprego: análise funcional e perspectiva crítica.
In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/
Universidade de Fortaleza, 2008. p. 198.
33
CAMPOS, André Gambier. Novos aspectos da regulação do trabalho no Brasil. Qual o papel do estado? Texto
para discussão do Ipea n. 1 407, 2009.
34
NORONHA, Eduardo Garuti apud CAMPOS, André Gambier. O modelo legislado de relações de trabalho
no Brasil. In: Novos aspectos da regulação do trabalho no Brasil. Qual o papel do estado? Texto para discussão
do Ipea n. 1.407, 2009.
32
98
Direito, Economia e Estado: integração possível?
estabelecimentosminimamenteestruturadose com condições minimamente adequadas de
segurança e saúde. Contam com maiores remunerações e com alguns benefícios indiretos.
Dispõem de melhores possibilidades de organização e negociação coletivas – o que incide,
por sua vez, nos próprios direitos já expostos. E, finalmente, têm a proteção de benefícios
previdenciários – como as aposentadorias, as pensões, os auxílios, os “salários” etc. [...]
Não só no plano do dever-ser, mas também no do ser, constata-se que a CTPS assegura
um amplo conjunto de benefícios para os empregados. Apesar disso, verificar-se-á que,
entre o início da década de 1990 e o da atual, o emprego com carteira perdeu algo de sua
relevância na estrutura ocupacional brasileira.35
Não há como negar, portanto, que a efetivação dos direitos sociais inscritos
na Constituição Federal e nas normas infraconstitucionais depende, inicialmente, de
uma mudança de paradigma com relação à atividade econômica representada pelo
trabalho. A estrutura normativa não terá a mínima condição de se mostrar eficaz, se
considerar apenas o emprego formal e a tradicional perspectiva de atividade laboral.
Em longo prazo, tal abordagem apenas contribui para um odioso movimento de
exclusão social.
A dualidade representada pelo mercado formal e o informal já não é mais
a única preocupação da agenda pública referente ao pleno emprego e não explica a
dificuldade de estender a proteção social. Há uma notável e irreversível desconstituição
da sociedade salarial e, nesse cenário, há significativa exclusão da classe trabalhadora
na medida em que apenas tem acesso a algumas garantias no momento em que se
insere formalmente no mercado de trabalho.36
Qual é, então, a importância de trazer à discussão a conjuntura da atuação
do estado frente às mudanças produzidas no mercado de trabalho?
Cardoso (2007) esclarece:
No caso brasileiro, a importância de discutir o comportamento do emprego formal decorre
basicamente de duas frentes. Em primeiro lugar, quando considerado apenas da perspectiva
do mercado de trabalho, sua importância reside no fato de que sobre esse tipo de relação
se molda todo o arcabouço legal de regulamentação das condições de uso, remuneração e
proteçãosocialaosocupadoseàqueleseventualmentedesempregadostemporariamente.Em
outras palavras, é a partir da relação trabalhista formal/legal que se estabelece um tipo de
mediação mais civilizada entre capital e trabalho, por meio da qual as relações laborais
deixam de pertencer meramente à esfera privada dos negócios e passam a desfrutar de um
estatuto público. O respeito ao aparato e ao ordenamento jurídico que dali emana é condição
necessária para um funcionamento mais regrado, equilibrado e homogêneo desse mercado,
condizente com parâmetros mínimos de civilidade e sociabilidade entre as partes. Dessa
perspectiva, a informalidade deve ser vista como toda e qualquer situação ilegal de trabalho,
CAMPOS, André Gambier. Op. cit. p. 24.
SALM, Claudio. Op. cit. p. 203.
35
36
99
Artigo 5
que não cumpre nem respeita a legislação trabalhista em vigor, independentemente dos seus
méritos e defeitos intrínsecos. Com isso, toda a relação laboral caracterizada – direta ou
disfarçadamente – como assalariamento sem carteira assinada deve ser considerada ilegal e
informalnostermosaquipropostos.Jáaquelapartedaocupaçãogenuinamentecaracterizada
como trabalho autônomo ou por conta própria não pode a rigor ser classificada como ilegal
simplesmente pelo fato de se tratar de situações laborais não legisladas. Mas embora não
seja ilegal na acepção da palavra, ela deve ser considerada como informal, no sentido estrito
da ausência ou precariedade de relação de trabalho assalariada, vale dizer, uma situação
laboral em que não é nítida a separação entre capital e trabalho.
Em segundo lugar, quando analisado da perspectiva do modelo dominante de proteção social
urbano do país, aquele de inspiração contributiva-bismarckiana, a importância do emprego
formal transcende as fronteiras relativas ao ordenamento do mercado de trabalho, para se
referir também às condições pelas quais as pessoas desfrutarão de proteção individual contra
os riscos clássicos do mundo do trabalho, isto é: i) para trabalhadores economicamente ativos,
proteção temporária contra a perda circunstancial de capacidade laborativa e de renda, como
nos casos de desemprego involuntário, maternidade, acidentes de trabalho, doenças, reclusão;
e ii) para aqueles em inatividade laboral permanente, proteção vitalícia pela via de pensões
por morte e aposentadorias por tempo de serviço, tempo de contribuição ou invalidez definitiva
para o trabalho. Dessa perspectiva, a informalidade está associada ao não cumprimento
da legislação previdenciária, garantidora daqueles direitos sociais. Ocorre que, na origem
do modelo brasileiro de proteção social, pressupunha-se, por intermédio da carteira de
trabalho assinada, total correspondência entre relação trabalhista assalariada e vinculação
previdenciária compulsória, o que tornaria informais e sem direitos previdenciários quaisquer
trabalhadores sem carteira assinada.37
Sem dúvida, cabe ao estado proporcionar meios de manutenção da atividade
econômica representada pelo trabalho, reconhecendo, diante de tantas evidências, que existe
imensa gama de indivíduos aos quais as garantias individuais ainda precisam ser efetivadas.
De acordo com Amorim e Gonzalez (2009), os números do Cadastro Geral
de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e Emprego (Caged/MTE)
para o período de janeiro a maio de 2009 indicam aumento do total de desligamentos
do setor formal em relação ao mesmo período de 2008, com percentual de 7,2% para o
Brasil e de 8,7% para as regiões metropolitanas.38
Essa massa de trabalhadores provavelmente permanecerá exercendo algum
tipo de atividade econômica, sem a possibilidade. entretanto, de gozar os benefícios
que a Constituição Federal tanto se preocupou em estabelecer.
CARDOSO JÚNIOR, José Celso. De volta para o futuro? As fontes de recuperação do emprego formal no
Brasil e as condições para a sustentabilidade temporal. Texto para discussão do Ipea n. 1310, 2007.
38
AMORIM, Bruno; GONZALEZ, Roberto. O seguro-desemprego como resposta à crise no emprego: alcance
e limites. In: Boletim mercado de trabalho – Conjuntura e Análise, n. 40. Brasília, Ipea, 2009. p. 43.
37
100
Direito, Economia e Estado: integração possível?
O espectro de atuação estatal parece ter-se ocupado, nos últimos anos, de
outras variáveis. Ciente de que não há como solucionar de imediato a questão da
informalidade – ou, pelo menos, de minimizar o impacto de exclusão social – o poder
público busca alternativas para criar condições favoráveis à iniciativa privada, como
a rediscussão da tributação sobre o a folha de pagamento e uma distribuição mais
equilibrada dos encargos sociais entre empregadores e trabalhadores.
Nas palavras de Saboia (2005):
Em primeiro lugar, é preciso criar condições para um crescimento econômico sustentado
com taxas anuais no mínimo iguais a 4% ao longo dos próximos anos. Essa representaria a
principal condição necessária para a melhoria do mercado de trabalho. Para maximizar a
oferta de empregos, entretanto, seria desejável que o crescimento econômico fosse dirigido
para aqueles setores com maior potencial de geração de empregos diretos e indiretos,
em geral representados pela agropecuária, alguns segmentos tradicionais da indústria
de transformação e de serviços, a indústria da construção e a administração pública.
Cabe notar que o objetivo de maior geração de emprego poderá entrar em conflito com o
processo de modernização do país, geralmente voltado para setores com maiores níveis de
produtividade, muitas vezes com capacidade limitada de geração de empregos.39
De fato, o maior desafio das políticas públicas no que diz respeito ao trabalho
e emprego será a definição de uma pauta que tenha condições de oferecer não apenas o
crescimento estatístico do nível de emprego, mas sua evolução fundamentada em bases
sólidas que permitam a expansão efetiva dos direitos sociais.
Como alternativas, a simplificação da legislação trabalhista, a maior
participação de trabalhadores na previdência social, a maior fiscalização das atividades
informais, a redistribuição de investimentos e a efetiva transferência dos resultados do
desenvolvimento econômico à população.
Conclusão
Dentre as diversas alternativas para as garantias pretendidas pela Carta
Magna produzirem plenos efeitos na sociedade, poderíamos citar a simplificação
dos tributos, o equilíbrio nos gastos públicos, o incremento de investimentos no
setor produtivo, a melhor utilização de recursos para acelerar a competitividade e
possibilitar a consequente melhoria da qualidade dos produtos e serviços e a inovação
científica e tecnológica como algumas das medidas que poderiam determinar o início
de um ciclo virtuoso de crescimento da economia.40
SABOIA, João. Mercado de trabalho no Brasil: fatos e alternativas. In: SISCU, João et al. (Org.). Novo
desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. 236.
40
GROSSO, Cristiano Pinheiro. Limites da flexibilização no direito do trabalho à luz do desenvolvimento
econômico e social. Dissertação de Mestrado, Universidade de Marília, 2007. p. 121.
39
101
Artigo 5
Os reflexos da globalização não significam que o estado deva assumir um
papel menor. Caminha-se, sim, na direção de um estado que, ao intervir na atividade
econômica, o faça de modo a garantir o cumprimento de certas prioridades, que tenha
a capacidade de direcionar sua atuação na melhoria das condições estruturais do país, a
ponto de garantir os direitos fundamentais dos indivíduos. Atualmente, a via mais segura
para evitar a marginalização dos estados e das respectivas populações é a promoção
do crescimento econômico sustentado, pela adoção de políticas corretas. Nada ocorre,
contudo, sem a participação efetiva da sociedade civil e de instituições fortalecidas. A atuação deficiente do estado pode resultar em odioso processo de inserção
instável ou inserção marginal, nas palavras de Barra e Lopes (2004). A crise social,
muitas vezes analisada especialmente sob o prisma econômico, adquire novos
contornos na medida em que o principal reflexo está na ilusão de inclusão social e
melhoria das condições de trabalho e vida.
Em verdade, o que se cria com o distanciamento do estado das atividades
econômicas ligadas ao mundo do trabalho é a mera sensação de inserção, que obviamente
se mostrará inverídica na medida em que não se cria uma rede de proteção sólida o
bastante para evitar a informalidade, tampouco uma zona de estabilidade econômica
capaz de induzir a iniciativa privada a sustentar o desenvolvimento econômico.41
A tentativa, então, é a busca pelo estabelecimento não apenas de uma
agenda econômica, com maior austeridade fiscal, redução de gastos públicos e melhor
estruturação da máquina estatal, mas sim de um verdadeiro ambiente de crescimento
social, com ampliação das garantias e efetivação dos direitos e garantias expressas na
Constituição Federal.
BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. Mercado de trabalho, “Informalidade” e “exclusão social”:
dimensões de um debate. In: Rev. Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns, Fecha/FEA – Goiás,
1: 43-57, nov. 2004.
41
102
A Teoria às avessas e
seus reflexos no Direito
Empresarial e no Direito
de Família
Gislaine Fernandes de Oliveira Mascarenhas Aureliano1
Introdução. 1 Teoria às avessas e conceito. 2 Separação da personalidade jurídica
da sociedade e dos sócios. 3 Teoria às avessas e pressupostos. 4 Teoria às avessas
e principiologia. 5 Conceito de princípio. 6 Princípio da isonomia. 7 Princípio da
dignidade da pessoa humana. 8 Princípio da razoabilidade. 9 A possibilidade de
aplicação imediata dos princípios a casos concretos. 10 Teoria às avessas no estado
contemporâneo – globalização. 11 O convívio em sociedade como decorrência
das necessidades do homem – aplicação da teoria às avessas. 12 Relevância da
teoria às avessas no estado contemporâneo e sua abrangência no mundo real –
jurisprudências. Conclusão. Referências
Resumo
O estado contemporâneo nas relações empresariais, assim como em qualquer espécie
de relação jurídica, deve ser entendido no sentido de efetivação dos direitos. A teoria
às avessas da desconsideração da personalidade jurídica cria no mundo jurídico um
avanço, uma expectativa de concretizar questões até então esquecidas ou dormentes,
sendo atualmente deferidas pelos magistrados quando se denota simulação, fraude e/
ou abuso de direito por parte do sócio. Os princípios são aplicados, mesmo que de
forma implícita, aos casos concretos e geram opiniões satisfatórias para as relações
empresariais, levando-se em conta ainda o aspecto da interpretação e argumentação de
regras preexistentes. Apura-se o real sentido da Teoria às Avessas, as suas perspectivas
no direito comercial e no direito de família.
Mestre em direito negocial (relações empresariais nacionais e internacionais) na Universidade Estadual de
Londrina – UEL, pós-graduada pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná – Jacarezinho, bacharel em
direito pela faculdade estadual de direito do Norte Pioneiro – Jacarezinho, docente em direito empresarial e
direito processual penal na Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti – Feati, oficiala de
Justiça do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – Comarca Ribeirão do Pinhal.
1
103
Artigo 6
Palavras-chave: direito negocial, relações empresariais, teoria às avessas, efetividade
dos direitos, direito comercial e direito de família.
Abstract
The contemporary state in business, as well as any kind of legal relationship must be
understood as enforcement of rights. The theory in reverse of the disregard of legal
personality in the world creates a legal breakthrough, an expectation of achieving
issues hitherto forgotten or dormant, and is currently deferred by the magistrates when
the simulation indicates, fraud and / or abuse of rights by the partner. The principles
are applied, even implicitly, in specific instances and generate opinions satisfactory to
the business, taking into account also the aspect of interpretation and discussion of
pre-existing rules. Clears up the real meaning of the theory in reverse, its prospects in
commercial law and family law.
Keywords: law negotiation, business relationships, theory in reverse, effectiveness of
rights, commercial law and family law.
Introdução
O direito empresarial tem sofrido várias alterações no que se refere a seus efeitos,
objetivos e finalidades. Os homens são reveladores de opiniões diversas e argumentos
ímpares, reagindo, muitas vezes, de forma a burlar a própria lei, aproveitando-se de
situações benéficas, como a aplicação do princípio da autonomia patrimonial, tão em
voga, mas não merecedora de crédito quando o conjunto comprobatório demonstrar
fraude, simulação e/ou abuso de direito por parte do sócio, ocorrendo, nesse caso, a
desconsideração da personalidade jurídica.
Diante de modificações e avanços alcançados pelo homem, graças ao intelecto,
levando-se em consideração a globalização e demais questões hodiernas apresentadas,
surgem situações não regradas, ou seja, que não apresentam dispositivos legais para a
real aplicação.
É nesse aspecto que nasce a desconsideração da personalidade jurídica de
forma inversa ou também chamada teoria às avessas, demonstrando ao mundo jurídico a
pertinência em sua aplicação diante de questões apresentadas pelos jurisdicionados – tema
do presente estudo.
O objetivo é demonstrar a seriedade e o relevo da teoria às avessas no mundo
contemporâneo, mediante exposição de decisões de magistrados nesse sentido, tanto
no direito comercial quanto no direito de família, quando houver demonstração de
104
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
fraude, simulação e/ou abuso de direito por parte do sócio que transfere seus bens
particulares à sociedade empresária de que faça parte, a fim de não quitar seus débitos
junto a terceiros envolvidos no litígio.
Ultrapassando barreiras, cria-se um ideal de justiça e perseverança de que
efetivamente considerando, o aplicador da lei deve esmiuçar o sentido e conteúdo do
caso apresentado para, contribuindo com seu entendimento imparcial, desconsiderar
a personalidade jurídica do sócio que assim atua.
A base principiológica é fundamental para a concretização dos direitos
violados, mesmo que implicitamente considerada. Nesse aspecto, o presente trabalho
tem por finalidade expor as discussões doutrinárias, os argumentos utilizados pelos
magistrados a fim de se chegar a um fim social equitativo e digno. Então, a proposta
é no sentido de transparecer as ideias hodiernamente utilizadas, e a concretização de
direitos, aplicando-se regras através de interpretações realizadas pelos magistrados,
com o fim precípuo de aniquilar os atos praticados sob o véu do ilícito.
1 Teoria às avessas e conceito
A expressão “teoria às avessas ou teoria inversa da desconsideração da
personalidade jurídica” é relevante para o direito negocial no Estado Contemporâneo,
pois é a busca pela responsabilização da sociedade no tocante às dívidas ou aos atos
praticados pelos sócios, sendo utilizada, para isso, a quebra da autonomia patrimonial.
A desconsideração inversa da responsabilidade ocorre no sentido oposto, isto
é, os bens da sociedade respondem por atos praticados pelos sócios, casos em que estes
obtêm o absoluto controle dos bens da sociedade.
Um exemplo para a efetiva aplicação da teoria às avessas seria a situação de
terceiros que, tendo em vista o fato de o sócio residir em suntuosa casa, com inúmeros
carros importados na garagem, deduzindo os terceiros pela teoria da aparência, que
não terão prejuízo com o sócio, diante de atitudes e bens que comporta. Todavia, após
realizado o acordo, é descoberto que os bens utilizados pelo sócio são de propriedade
da empresa, pessoa jurídica. O que fazer? O negócio jurídico já foi celebrado; o terceiro
é pessoa infimamente pobre perante o sócio, que apresenta vários bens em seu poder,
apesar de estar no nome da empresa; hipótese de fraude?
Mônica Gusmão, em sua doutrina Direito Empresarial, argumenta que pode
ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica inversa, a fim de responsabilizar a
pessoa jurídica por atos praticados por seus sócios. (GUSMÃO, 2005. p. 75).
O doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, na obra Direito Civil Brasileiro,
expõe o seguinte sobre o assunto: “Caracteriza-se a ‘desconsideração inversa’ quando é
105
Artigo 6
afastado o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar
a sociedade por obrigação do sócio[...]”. (GONÇALVES, 2009. p. 219).
Fábio Ulho Coelho, na doutrina Curso de Direito Comercial, relata que “A
‘desconsideração inversa’ consiste em desconsiderar a autonomia da pessoa jurídica
para responsabilizá-la por obrigação do sócio, que desviou seus bens para a pessoa
jurídica sob seu total controle” (COELHO, 1999. p. 45).
A ilustre doutrinadora Giselda M. F. Novaes Hironaka, em Direito de Empresas,
apresenta sua opinião acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica:
Mister recordar que a desconsideração pode também dar-se de maneira ‘inversa’. Na
desconsideração tradicional responsabiliza-se sócio por dívida formalmente imputada
à sociedade, enquanto na modalidade inversa desconsidera-se a pessoa jurídica para
responsabilizá-la por obrigação do sócio. (HIRONAKA, 2008, p. 163).
Assim como a desconsideração da personalidade jurídica, a teoria às avessas
será aplicada sempre que for apurado o uso abusivo, simulado ou fraudulento
da pessoa jurídica, prejudicando dessa forma, credores ou terceiros; a aplicação
da desconsideração inversa, da mesma forma que a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, não visa à anulação da personalidade jurídica, mas apenas à
declaração da ineficácia para determinado ato.
3 Separação da personalidade jurídica da sociedade e dos sócios
Necessário expor que o princípio da separação da personalidade jurídica da
sociedade e dos sócios, ou princípio da autonomia da vontade, não será destruído,
atingindo apenas o episódio sem atingir a validade do ato constitutivo da sociedade.
Rubens Requião em trabalho pioneiro no Brasil assegura, em sua doutrina
Curso de Direito Comercial, o seguinte:
Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz
brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude
ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em
seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou
abusivos. (REQUIÃO, 1969. p.14).
Portanto o princípio da separação do patrimônio do sócio e da sociedade é
relativizado, através da teoria às avessas, quando o sócio utiliza esse princípio como
anteparo para a prática de fraude, abuso e simulação. Dessa forma, todos aqueles que,
valendo-se do manto societário, agirem de modo fraudulento ou abusivo ou simulado
responderão pelos créditos insatisfeitos dos credores sociais.
106
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
Desse modo, como visto na doutrina e jurisprudência, a proteção da
personalidade jurídica está positivada de tal forma a evitar malícia ou desvirtuamento
em sua utilização.
3 Teoria às avessas e pressupostos
Para efetivamente ser desconsiderada inversamente a personalidade jurídica pelos
julgadores, deverão estar presentes alguns pressupostos: o desvio de bens – simulação,
fraude ou abuso de direito, utilizando-se o sócio do manto da autonomia patrimonial a
fim de transferir ou esconder bens, prejudicando assim os credores contratantes.
Assim, a pessoa jurídica e os sócios poderão responder por uso abusivo,
simulado ou fraudulento da sociedade, tanto direta como inversamente, atingindo
os bens sociais, no tocante à responsabilização do sócio ou mesmo do cônjuge
empresário, no caso do Direito de Família. Nesse aspecto, os bens do sócio estão em
nome da sociedade, ficando devidamente comprovada a má-fé por parte dele, sendo
desconsiderada a personalidade jurídica de forma inversa a fim de ressarcir o terceiro
prejudicado.
Desconsiderada inversamente a personalidade jurídica, surgem alguns efeitos
que merecem ser apresentados: 1) a quebra do princípio da autonomia patrimonial;
2) o alcance dos bens patrimoniais da sociedade; 3) no Direito de Família, em que
mormente é utilizada a desconsideração jurídica inversa, a partilha de bens do casal.
No pertinente ao primeiro tópico, a autonomia patrimonial, vale lembrar
que os patrimônios e as responsabilidades são diversas e, por isso, conservadas
independentemente da pessoa física e da pessoa jurídica. Nesse sentido, foi iniciada
ampla utilização dessa autonomia patrimonial de forma indevida, surgindo, desse
ínterim, a quebra da autonomia patrimonial, desde que verificada a fraude, simulação
e/ou abuso de direito, com o fim precípuo de prejudicar terceiros.
Nesse caso, o princípio da autonomia patrimonial é relativizado, em
decorrência de que não se pode considerar sempre o véu protetor das responsabilidades,
sendo desfeita quando verificada a situação de fraude, abuso ou simulação, por parte
do sócio que registra bens em nome da sociedade empresária com a finalidade de
burlar o pagamento de terceiros, bem como a própria lei.
A quebra da autonomia patrimonial é, sem sombra de dúvidas, um avanço e
uma proteção maior ao instituto da pessoa jurídica, e essa proteção está na aplicação
da desconsideração inversa.
Nesse sentido, o antigo Tribunal de Alçada do Paraná julgou a seguinte
Apelação Cível:
107
Artigo 6
Constatando-se que a pessoa jurídica está a encobrir interesses ilícitos de seu sócio, em
prejuízo ao direito creditício de terceiro, é de se aplicar a regra da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica, a fim de assegurar que o bem do devedor, incorporado ao
patrimônio da sociedade com o manifesto intuito de fraudar a lei, continue garantindo a
execução através da penhora realizada, até ulteriores termos. 6ª Câmara. Apelação Cível
n. 74.819-6. Relator Juiz Bonejos Demchuck. Julgado em 24/4/1995.
Assim, a quebra da autonomia patrimonial estará autorizada ao magistrado
sempre que forem comprovadas manobras maliciosas por parte dos sócios,
prejudicando terceiros e burlando a própria lei.
Necessário expor que a desconsideração inversa é utilizada tanto no Direito
Comercial quanto no Direito de Família, perfeitamente aceita quando há transferência
do patrimônio particular do devedor – sócio – à sociedade, com o interesse de
desobrigar-se de responsabilidades perante terceiro e, mesmo, no caso de Direito de
Família, na ação de separação ou divórcio, na partilha de bens do casal e ainda no
pagamento de pensão alimentícia – isentando o sócio, muitas vezes, da obrigação, em
virtude de inexistirem bens passíveis de penhora, em decorrência do que expõe o artigo
732, do Código de Processo Civil, quando estiver diante de fase executiva, porque
registrou seus bens pessoais em nome da sociedade empresária, agindo com fraude,
simulação e/ou abuso de direito. Nesse caso, os bens desviados para a sociedade
empresária serão alcançados, ocorrendo uma responsabilidade coletiva e consequente
atribuição e vinculação ao pagamento da pensão, assim como na ação de separação e
divórcio, quanto à partilha de bens.
Dessa forma, a utilização da desconsideração inversa vem tornar ineficaz
a constituição do ato, apenas episodicamente, para julgar a conduta abusiva ou
fraudulenta ou simulada do sócio, estando válida e eficaz para os demais atos jurídicos.
Necessário relatar que a desconsideração poderá ser utillizada tanto na fase de
cognição, como na execução, nesta constringindo os bens necessários para a satisfação do
débito. Não obstante, ao ser aplicada a mencionada desconsideração devem-se ter plena
convicção e comprovação do nexo entre o prejuízo e o ato praticado, para, assim, não
serem reconhecidos os efeitos de tais abusos contra os rendimentos do credor alimentar.
4 Teoria às avessas e principiologia
A principal proposta do tema escolhido é orientar na construção de
uma sociedade calcada nos princípios fundamentais garantidos na Constituição
Federal de 1988, o princípio da isonomia, dentre tantos outros direitos e princípios
constitucionalmente protegidos, e demonstrar a real aplicação da teoria às avessas às
relações empresariais e com ela interligadas.
108
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
No presente estudo, o sócio age como se proprietário fosse dos bens e, com
isso, pratica atos com terceiros de boa-fé, negociando, adquirindo bens. Todavia
o patrimônio particular está registrado no nome da sociedade empresária e não do
sócio. Nesse caso, o sócio burla a lei, frauda credores, abusa dos atos praticados,
simula transferências. Verificando essa hipótese, os bens da sociedade respondem por
atos praticados pelos sócios, ante fraude transparente ou abuso ou simulação, em
consideração à aplicação da teoria às avessas aos casos concretos.
A teoria às avessas está sendo aplicada às relações jurídicas, levando-se em
consideração os aspectos principiológicos, de forma implícita, ainda tênue.
Quanto à relevância do Poder Judiciário no tema proposto, importante
transparecer a Teoria de Dworkin, em sua obra The Philosophy of the Law. Oxford
University Press, que é base para todo o sistema jurídico.
[...]o sistema jurídico não é um sistema composto unicamente por ‘regras’ de condutas,
que seriam, na versão de HART, primárias (que concedem direitos ou impõem obrigações)
e secundárias (que estabelecem como e por quem as regras primárias podem ser formadas,
reconhecidas, modificadas ou anuladas), cuja incidência sobre um fato excluiria a
incidência de regra em sentido oposto, mas também integrado por ‘princípios’ e ‘políticas’.
Princípio é todo o ‘standard’ que não seja regra, é um ‘standard’ que deve ser observado,
não porque permite realizar ou atender a uma situação econômica, política ou social,
julgada desejável, mas porque ele constitui uma exigência de justiça e de equidade ou de
outra dimensão moral. (DWORKIN, 1977).
Considerando os aspectos mencionados, nota-se que a base principiológica é
fundamental em todo o sistema legislativo brasileiro, fazendo com que diversos juristas
o identifiquem inclusive como método aplicado aos casos concretos, efetivando os
direitos.
5 Conceito de princípio
Preliminarmente, por força da natureza dos princípios, pelo seu conteúdo,
pela sua vagueza ou mesmo pela formulação de regramentos destituídos de sanção
imediata, numa primeira abordagem, era negado o caráter de autênticas normas
jurídicas aos princípios, não sendo considerados como comandos do Direito.
Em 1990, através da ideia de Eros Roberto Grau, foi detectado um movimento
no sentido do reconhecimento de juridicidade aos princípios, passando a serem
admitidos pelo Direito como imperativos.
Quanto à estatuição dos princípios, neles também comparece, embora de
modo implícito, no extremo completável em outra ou outras normas jurídicas, assim
como também ocorre com inúmeras normas jurídicas incompletas.
109
Artigo 6
Celso Antonio Bandeira de Melo, em sua doutrina Elementos de Direito
Administrativo, relata que o princípio jurídico é:
[...]mandamento nuclear de um sistema, sendo um verdadeiro alicerce desse sistema,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito
e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir
a lógica e a racionalidade do sistema normativo, dando-lhe sentido harmônico. (MELO,
1980. p. 230).
Miguel Reale relata que o conceito de princípio serve às ciências em geral,
expondo o seguinte, em sua obra Filosofia do Direito:
‘Princípios’ são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de
garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos
relativos a dada porção da realidade. Às vezes também se denominam ‘princípios’
certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são
assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como
seus ‘pressupostos’ necessários. (REALE, 1986. p. 60)
Assim, os princípios têm suas propriedades, diferenciando-se por sua
natureza (qualitativamente) dos demais preceitos jurídicos, estando os princípios
como constituintes de expressão primordial de valores fundamentais expressos pelo
ordenamento jurídico, informando as demais normas, como se fornecesse a inspiração
para o seu conteúdo.
6 Princípio da isonomia
Se há questão que tenha, em todos os tempos, desafiado a inteligência humana
e dividido os homens, é o princípio da igualdade. Foram os profetas, os apóstolos e os
grandes personagens bíblicos os primeiros que se ocuparam com o tratamento dos
semelhantes neste mundo e no outro, perante os homens e em face de Deus.
Paulino Jaques, em sua doutrina Da Igualdade perante a lei, argumenta:
[...] Embora todos, grandes e pequenos, pobres e ricos, sábios e ignorantes, santos e
pecadores, devam comparecer, da mesma forma, ao Tribunal Supremo, para o julgamento
final, irrecorrível e irrevogável, cada um será, no entanto, julgado ‘segundo’ suas ‘obras’ e
seus ‘caminhos’, quer dizer, os iguais em ações e meios terão recompensas ou penas iguais,
e os desiguais nisso, evidentemente, receberão prêmios ou castigos diferentes. Foi esse, em
suma, o entendimento bíblico do dogma das religiões de que ‘todos são iguais perante a
Deus’, do qual a igualdade dos homens diante da lei não passa de legítima expressão no
terreno humano. (JAQUES, 1957. p. 19-20)
O direito público francês foi o que formalizou em primeiro lugar a ideia
110
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
jurídica da igualdade, no direito constitucional, estampando-a no artigo 1º da famosa
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em agosto de 1789.
Nascia, assim, no plano jurídico-positivo um poderoso instrumento de
contraposição aos privilégios pessoais e contra a hierarquização das classes sociais
que vigorava até então. Surgia também o princípio da isonomia, considerada fonte
inesgotável de ideias para o ideário igualista que, após a segunda metade do século
passado, incendiou a história do pensamento político-econômico.
O preceito magno da igualdade é voltado quer para o aplicador da lei quer
para o próprio legislador. Assim considerando, os indivíduos se nivelam tanto na
edição da lei, quanto no momento de sua aplicação.
Aplica-se o princípio mencionado para alcançar um ideal de justiça, que,
segundo São Tomás de Aquino, consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo
uma igualdade. De acordo com Aristóteles, a verdadeira igualdade é aquela que pratica
a igualdade entre os iguais e a desigualdade entre os desiguais.
O princípio da justiça social, assim, conforme a concepção de existência
digna cuja realização é o fim da ordem econômica e compõe um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil.
Paulo Bonavides, em sua doutrina Curso de Direito Constitucional, expõe o
seguinte acerca do princípio da isonomia:
O centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é
indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da
herança clássica. Com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção
estrutural do Estado Contemporâneo [...] De todos os direitos fundamentais, a igualdade
é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias,
sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado social
[...] Na judicatura do Tribunal Constitucional da Áustria, por exemplo, ele não apenas
predominou quantitativamente como desalojou todos os demais direitos fundamentais.
(BONAVIDES, 1993. p. 301-302).
Com referência à concretização do princípio da isonomia, pode-se dizer que
é dependente do critério de diferenciação e, é nesse patamar que se encaixa o tema
da desconsideração inversa da personalidade da pessoa jurídica, mesmo porque o
princípio da isonomia em sua essência nada diz quanto aos bens ou aos fins de que
é servida a igualdade a fim de diferenciar ou igualar as pessoas, e estas são iguais ou
desiguais de acordo com um critério diferenciador.
Duas pessoas são formalmente iguais ou desiguais em razão de idade, sexo ou
capacidade econômica. No último ponto, é que se interpõe a relação teoria às avessas
e Princípio da Isonomia, porque essa diferenciação somente adquire relevo na medida
111
Artigo 6
em que é assegurada uma finalidade, de acordo com o critério, e este é relacionado no
presente estudo ao aspecto econômico.
Hodiernamente,
sócios
perfazem
acordos
absurdos
com
terceiros,
prejudicando-os em vista de não possuírem patrimônio, porque este se encontra
registrado no nome da pessoa jurídica. Os terceiros prejudicados estão em situação
desfavorável em decorrência da má intenção dos sócios da empresa. A fim de evitar
esses enigmas, surge a aplicação do princípio da isonomia no sentido de que os
dispositivos legais brasileiros que tratam da desconsideração da personalidade jurídica
sejam efetivamente aceitos da forma inversa, retirando o véu da pessoa jurídica,
deslocando a autonomia patrimonial daqueles que burlam a lei, não satisfazendo os
seus negócios, agindo com fraude e/ou abuso de direito e/ou simulação.
Com esse entendimento, os direitos serão garantidos a todos, em virtude
da efetivação de dispositivos legais, aplicados de forma inversa, mas sustentadores
do princípio da isonomia aos casos concretos, evitando abusos e má-fé por parte
de sócios que vivem às custas da autonomia patrimonial, registrando seus bens
pessoais em nome da sociedade empresária, com a finalidade de não satisfação do
interesse alheio.
7 Princípio da dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana apresenta dois aspectos: o
negativo e o positivo. Assim considerando, constitui não apenas a garantia negativa de
que a pessoa não será objeto de insultos e afrontas, mas implica também um sentido
positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade individual.
O referido princípio impõe limites à atuação estatal, objetivando impedir que o
poder público venha a violar a dignidade pessoal, mas também alude que o Estado-Juiz
apresente, como meta permanente, proteção, promoção e realização concreta de uma
vida com dignidade para todos, sustentando a necessidade de uma política da dignidade
da pessoa humana e dos direitos fundamentais.
Ainda referente aos princípios, que são a base de todo o sistema operacional
do direito, Eros Roberto Grau expõe, acerca do princípio da dignidade da pessoa
humana em sua obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988, o pensamento de
que a dignidade da pessoa humana constitui o núcleo essencial dos direitos humanos,
muito embora assuma concreção de direito individual. Necessário relatar ainda que a
dignidade da pessoa humana fundamenta e confere unidade não apenas aos direitos
fundamentais – direitos individuais e direitos sociais e econômicos – mas também
à própria organização econômica, não sendo apenas um fundamento da República
112
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
Federativa do Brasil, plenamente transparente na Constituição Federal de 1988, mas se
volta inclusive ao mundo do ser, que é a ordem econômica. Desse pensamento, conclui
que a dignidade da pessoa é um princípio balizador, isto é, a base no ordenamento
jurídico, em que o equilíbrio das relações jurídicas, sociais, econômicas são contornos à
hipótese da não redução do princípio da dignidade humana, sob pena de transgressão de
todos os direitos fundamentais, visto que é o núcleo do ordenamento atual (GRAU, 2002).
Não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e atividades estatais
estão acoplados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhe um dever
de respeito e proteção, expresso tanto na obrigação por parte do Estado de renunciar
ingerências na esfera individual contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de
protegê-la contra agressões provenientes de terceiros, como é o caso de sócio que
registra todo o seu patrimônio particular em nome da pessoa jurídica para burlar a lei.
Agindo assim, acredita estar sob o manto da autonomia patrimonial.
O princípio da dignidade humana está intimamente conectado com o tema
da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, porque não apenas
impõe um dever de abstenção, de respeito, mas também de condutas positivas por
parte do Estado-Juiz, tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos que
tiveram seus direitos violados em decorrência de atuação de sócio que abusa, simula e/
ou comete fraude.
Por essa razão, a tendência do direito contemporâneo é no sentido de não mais
se limitar à enunciação de um postulado formal e abstrato de isonomia jurídica, mas
sim de fixar medidas concretas e objetivas, capazes de aproximar as questões sociais,
políticas e econômicas entre os jurisdicionados, pois a dinâmica da evolução social
chama o Estado a dirimir conflitos entre as forças de capital, do trabalho e da ordem
econômica, submetendo os princípios do bem comum e da justiça social às relações
interpostas, principalmente quando há conexão com a ordem econômica, porque
moldam um padrão desejável aos processos econômicos de determinada sociedade,
atuando com limitações e incentivos para sua efetiva realização.
Assim, quando o Estado intervém na atividade econômica, por força do
princípio constitucional fundamental do Estado Democrático de Direito, deve utilizar
os instrumentos e mecanismos postos à sua disposição diretamente pelo Legislador
Constitucional e, além disso, ir ao encontro de princípios que o façam assumir e agir
sob uma perspectiva positiva, efetiva e presencial, pois as balizas da intervenção
serão sempre ditadas pela principiologia constitucional, pela declaração expressa dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre eles a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da ordem econômica.
113
Artigo 6
Conclui que qualquer interpretação sobre a devida ou indevida intervenção
estatal deverá ser analisada diante dos princípios e dos próprios fundamentos do Estado
Democrático de Direito apresentados no sistema; o princípio da dignidade da pessoa
humana impõe limites à atuação estatal, porque obstrui o Poder Público de violar a
dignidade pessoal, mas também implica ao Estado-Juiz atuar com meta permanente,
protegendo a vida com dignidade a todos, sustentando a necessidade de uma política
da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais, inclusive à ordem econômica, no
sentido de promover uma relação dependente entre aquele – sócio – enganador em
face de um terceiro que age de boa-fé numa negociação envolvendo patrimônio, cuja
finalidade precípua é o recebimento do débito.
Então, por força da dimensão intersubjetiva desse princípio, há necessidade
de um dever geral de respeito mútuo por parte de todos (e de cada um isoladamente) os
integrantes da comunidade. Para além disso e de certa forma até mesmo um dever das
pessoas para consigo mesmas, ressaltando a ideia da ordem econômica, prevalecendo a
aplicação dos princípios intimamente interligados com os dispositivos legais colocados
à disposição do aplicador, fazendo surgir o ideal de Justiça, mesmo inexistindo texto
legal explícito acerca do assunto, mas que faz relação com algum dispositivo legal.
Assim considerando, há perfeita união entre o princípio da dignidade humana
e a teoria às avessas ou teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica,
porque o terceiro prejudicado terá seus direitos efetivados, anulando a fraude, o abuso
ou a simulação praticados pelo sócio de empresa que corporifica todo o seu patrimônio
na pessoa jurídica, agindo de má-fé, a fim de impedir que seus bens sejam constritados
judicialmente. Posto isso, é levantado o véu da pessoa jurídica, de forma a garantir a
efetividade dos direitos, fundamentando tal decisão com fulcro em dispositivos legais,
mas de forma invertida, porque no atual sistema jurídico, ainda não foi apresentado
texto legal específico sobre o assunto, isto é, de acordo com o artigo 50, do Código
Civil, há desconsideração da personalidade jurídica quando a sociedade empresária
burla a lei, repassando seus bens em nome do sócio. O que ocorre no presente caso é
o estudo deste trabalho, a ocorrência de sócio que utiliza da má-fé e repassa seus bens
pessoais em nome da sociedade empresária, com o fim precípuo de não satisfação de
seu débito particular perante terceiros contratantes ou que tenha alguma relação de
ordem econômica.
8 Princípio da razoabilidade
O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder
Público, principalmente do Poder Judiciário, aferindo se eles estão sendo informados
114
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
pelo valor superior inerente a todo o ordenamento jurídico: a justiça.
Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio da razoabilidade
propõe o que é razoável, o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e
harmonia, correspondendo ao senso de justiça, comunicando com os valores vigentes
de dado lugar e momento. É o não arbítrio, ou seja, para o efetivo aproveitamento,
há necessidade de avaliar a correlação entre o que está sendo promovido com os reais
efeitos decorrentes da necessidade de sua aplicação.
Com referência à Teoria Inversa, encaixa-se perfeitamente o princípio da
razoabilidade, já que, inexistindo norma legal estatuindo a desconsideração inversa
da personalidade jurídica e admitindo que os princípios sejam superiores às próprias
regras, como se pode verificar anteriormente, não há dúvida da razoabilidade de ser
desconsiderada a pessoa jurídica da empresa para satisfazer a interesse de terceiro de
boa-fé que contratou com o sócio da empresa ou que alguma relação de crédito-débito
possua com ele, burlando o sócio a própria lei, registrando seu patrimônio em nome da
sociedade empresária, sob o interesse da existência da autonomia patrimonial havida
no direito empresarial.
Ocorre que, nesse momento e nesse caso específico, o levantamento do véu da
personalidade jurídica se faz necessário, destruindo a autonomia patrimonial para a
satisfação de terceiros incluídos na relação jurídica entre o sócio, considerando os bens
que guarnecem todo o aparato da sociedade, comprovando, em todos os casos, que
houve fraude, abuso de direito, simulação por parte do sócio.
Os fundamentos primordiais ao deferimento da desconsideração inversa da
personalidade jurídica são revelados diante do disposto no artigo 50, do Código Civil
Brasileiro, embora possuam outros regramentos em leis esparsas, de forma inversa,
ou seja, retirando o manto protetor da sociedade empresária que é a autonomia
patrimonial, com a finalidade precípua de garantir a efetividade de direitos de terceiros
envolvidos numa relação pertencente ao direito empresarial e também a outros direitos,
como o direito de família, que será analisado posteriormente, desconsiderando os
bens da sociedade empresária ao pagamento de dívidas do sócio, em virtude de este
ter praticado atos de forma fraudulenta, abusiva ou simulada, repercutindo, assim,
positivamente o elo entre os referidos princípios, mesmo que de forma implícita, e os
dispositivos legais.
9 A possibilidade de aplicação imediata dos princípios a casos concretos
Considerando que os princípios são dotados de elevado grau de abstração,
dotados de vagueza, de abertura, o que não significa impossibilidade de determinação,
115
Artigo 6
podem ser integrados por meio de interpretação e aplicação, sobremodo através de
outras normas e até mesmo em relação a situações específicas, como decisões judiciais
no que se refere à aplicação da Teoria Inversa da Desconsideração da Personalidade
Jurídica aos casos concretos, como se poderá verificar adiante, ao passo que as demais
normas (regras) possuem menor grau de abstração e mais alta densidade normativa.
Pelo fato de os princípios serem dotados de vagueza, hospedando as grandes
linhas, orientando todo o ordenamento jurídico, não significa dizer que os princípios sejam
inteiramente ou sempre genéricos e imprecisos, aliás, possuem significado determinado,
com alto grau de concretização, avaliados diante da situação real apresentada.
Isso é relacionado perfeitamente à desconsideração inversa da personalidade
jurídica, sob entendimento de que os princípios norteadores não podem deixar de
ser aplicados, em virtude da ausência de regramento específico sobre o assunto, não
devendo o magistrado abandonar o instituto da desconsideração da personalidade
jurídica caso ocorram a fraude, o abuso de direito, a simulação por parte do sócio,
atingindo credores, pessoas inocentes e terceiros envolvidos. Deve atingir o patrimônio
da pessoa jurídica, quando existente um conjunto comprobatório merecedor. Existem
inúmeros julgados acerca do assunto, que serão relacionados em frente.
Assevera Eros Grau em sua obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988
(interpretação e crítica):
[...] a determinação de sentido dos princípios depende sempre do contexto, correspondendo
ao significado que os respectivos valores assumem na realidade histórica: o ordenamento
jurídico não constitui um conjunto de regras jurídicas cujo sentido e alcance independe do
contexto político e social, mas sim que tais regras estão subordinadas a fins em função dos
quais devem ser interpretadas. (GRAU, 1990. p. 94).
Da generalidade e da vagueza dos princípios, portanto, decorre a plasticidade
que eles apresentam, permitindo-lhes amoldarem-se às diferentes situações e assim
acompanharem o passo da evolução social. É uma característica predominantemente
formal, pois se prende também antes à expressão linguística dos princípios, devendo
ser conciso em dado contexto, refletindo com exatidão a tradução dos valores mais
onerosos e oportunos diante do caso apresentado.
Walter Claudius Rothenburg relata em sua doutrina Princípios Constitucionais:
Desconsiderar que os princípios já carregam um certo e suficiente significado, e sustentar
sua insuperável indeterminação representa desprestigiar sua funcionalidade em termos de
vinculação (obrigatoriedade), continuando-se a emprestar-lhes uma feição meramente
diretiva, de sugestão, o que não se compadece, absolutamente, com a franca natureza
normativa que se lhes deve reconhecer. (ROTHENBURG, 1999. p. 22).
116
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
Os princípios são capazes de recepcionar as mudanças ocorridas no seio da
sociedade, sem que isso importe uma contínua modificação do texto de lei, sendo
lembrado, nesse patamar, o aspecto da desconsideração da personalidade jurídica de
forma inversa, já que não se poderia deixar de aplicar o princípio da igualdade, assim
como o princípio da razoabilidade e o princípio da dignidade da humana às pessoas
envolvidas num processo em que o sócio da empresa aja com fraude, simulação, abuso
de direito, registrando seus bens pessoais em nome da sociedade empresária, com o fim
de satisfazer obrigação por ele realizada em prejuízo das demais pessoas envolvidas.
Nesse caso, não poderia o sócio ser acobertado pela autonomia patrimonial.
Assim considerando, a vagueza não é um defeito que os princípios apresentem,
senão que uma espécie sua de ser, justamente para suprir a ausência de norma
regulamentadora em casos cujas mudanças sociais ocorram e devam ser solucionadas,
como se pode verificar na desconsideração inversa da personalidade jurídica.
A enunciação dos princípios de um sistema tem, portanto, uma primeira
utilidade evidente: ajudar no ato de conhecimento, porque a identificação dos
princípios é o meio mais eficaz para distingui-lo de outro sistema global.
10 Teoria às avessas no estado contemporâneo – globalização
Hodiernamente, o progresso da ciência e das técnicas são os novos aceleradores
contemporâneos, necessitando de uma reflexão independente sobre o tempo, um pensamento
sobre como explicar os problemas mundiais, cujas condições e situações precisem ser
modificadas. Para isso ocorrer, há necessidade de utilizar métodos mais simples.
A ideia central repousa em analisar os princípios fundamentais, aparecendo
a persistência sobre o papel da ideologia derivada de instrumentos que, ao mesmo
tempo, dê para se fazer o mal, como, aliás, também se faça o bem, surgindo desse
aspecto o papel do intelectual, do pensamento livre, do jurista, do magistrado.
O processo de produção da globalização revelada como ameaça entre a
economia contemporânea – finanças, território – em que a emergência de novas variáveis
centrais e o papel dos pobres na produção do presente e do futuro, convencendo que
a história universal apenas esteja começando e, em virtude disso, surgindo a aplicação
da teoria às avessas neste mundo globalizado, como possibilidade in abertus ao futuro
de uma nova civilização planetária.
São vários os protagonistas na produção da globalização, dentre eles
o dinheiro, numa polarização riqueza e pobreza; o extermínio da natureza; a
segmentação dos mercados; a população envolvida nesse processo ameaçador. Nesse
aspecto, nasce a teoria às avessas com a ideia de efetivação dos direitos de terceiros
117
Artigo 6
envolvidos numa globalização infinita, cujas relações são de mercado, patrimônio
e familiares, ressaltando a questão do Direito de Família, neste, levantando o véu
da sociedade empresária quando o sócio age de forma fraudulenta, abusiva e/ou
simulada, repassando seu patrimônio particular no nome da sociedade empresária
com a finalidade precípua de não liquidar suas dívidas perante seus credores.
A tendência é ser substituída a alienação por nova consciência – uma nova
filosofia moral – que não será a dos valores mercantis, mas sim a da solidariedade
e da cidadania, a da aplicação de princípios como o da isonomia, da dignidade da
pessoa humana e da razoabilidade, sendo coerente a efetividade de direitos de terceiros
envolvidos num processo ameaçador e opressor.
10 O convívio em sociedade como decorrência das necessidades do homem – aplicação
da teoria às avessas
Levando em consideração a exposição anteriormente referida, presente está a
dificuldade do homem, como ser hermenêutico que é, de viver em sociedade, já que as
dificuldades de relacionamento entre os empresários se sobressaem, quando é deixada
de lado a ideia de justiça.
Os perdedores – maioria – estão em desgaste com a própria identidade,
porque não percebem as fatalidades ocasionadas no mundo globalizado, em que a
economia é o cerne, alicerce, e, muitas vezes, se veem ameaçados perante a própria lei
ou por falta dela.
Tecidos esses comentários, é ofertado, neste momento, um espírito crítico de
atenção e percepção do homem, em razão da própria natureza, o qual precisa viver
em sociedade e, para isso, necessita de regras que o façam crescer como ser humano
justo e fraterno, que obtenha do legislador e do próprio magistrado a efetividade de
seus direitos, banalizados diante de tantos privilégios ofertados em prol do devedor e,
então, burlador da lei, muitas vezes assim considerado.
Sábias as palavras de Aristóteles quando relata que o homem é por natureza
um animal social, remetido à reflexão mediante a qual se pode colocar em foco os
atributos, as necessidades e as possibilidades do homem (apud GOMES, 2008).
O ser humano deve ser o caçador de si mesmo, no sentido de buscar,
perguntar, argumentar sobre fatos e interesses apresentados pelas demais pessoas.
A finitude e o desejo de autossuperação devem lançar no ser humano uma contínua
procura, buscando perspectivas, a fim de satisfazer as condições econômicas e mesmo
potenciais, investindo seu conhecimento em leis e princípios que o assegurem num
relacionamento sadio, em que haja isonomia entre todos.
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A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
Em tempos de globalização econômica, prevalecendo a preocupação com o
dinheiro, em comprar, negociar, é sustentada a necessidade de continuidade da vida
humana no planeta e que esta seja vivida de modo correspondente à dignidade inerente
a todo ser humano.
Para o psicanalista, teólogo e pedagogo Rollo May, em sua doutrina A
Coragem de Criar, relata que “a coragem é necessária para que o homem possa ser e
vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se. Essa é a diferença
entre os seres humanos e o resto da natureza” (MAY, 1982. p. 10).
Assim considerando, o homem deve evoluir na medida em que o mundo
evolui e, nesse sentido, as leis também devem adequar-se aos casos concretos, para
não existir a impossibilidade de aplicação do ideal de justiça que há tempo vem sendo
esquecido. Nesse aspecto, entende-se que, apesar de inexistir texto legal acerca da
desconsideração inversa da personalidade jurídica, muitos magistrados já a aplicam a
fim de salvaguardar interesse de terceiros de boa-fé que contratam com sócio de má-fé
ou que com ele tenha uma relação de dependência – crédito-débito.
A tão sonhada autonomia patrimonial, questionada e estimada, acaba
sendo derrubada em consideração à abrangência do aspecto econômico, motivo pelo
qual, muitos magistrados reconhecem a inquietude de credores, que se espraiam em
problemas que a própria lei deixa a desejar.
A Teoria às Avessas é o ideal de justiça, utilizada para sanar as dificuldades
hodiernamente apresentadas no mundo jurídico.
12 Relevância da teoria às avessas no estado contemporâneo e sua abrangência no mundo
real – jurisprudências
O assunto é relevante para o Estado Contemporâneo nas relações
empresariais, interligando o Direito Empresarial e o Direito de Família, pois não basta
o Estado utilizar os meios e instrumentos constitucionalmente postos à sua disposição,
apenas nos estritos limites da legalidade, devendo a implementação das técnicas de
intervenção estatal no domínio econômico se dar de forma a atender o interesse público
concretamente apresentado, portanto legitimamente e de forma razoável, em que os
meios e as técnicas a serem utilizados pelo Poder Público sejam realmente idôneos aos
fins pretendidos pela Constituição Federal e pelas leis, pois só assim será dado real e
efetivo cumprimento a este trabalho.
Especificamente acerca da teoria às avessas ou da desconsideração da
personalidade jurídica inversa, convém apresentar algumas jurisprudências e, inclusive,
o Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil do CJF (Conselho da Justiça
119
Artigo 6
Federal), autorizando a desconsideração da personalidade jurídica inversa, devendo o
magistrado fundamentar a decisão em todas as situações que lhe apresentarem:
TJSC. Desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’. Art. 50 do
CC/2002 e Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil do CJF. O interlocutório que
desconsidera inversamente a personalidade jurídica de sociedade comercial, fazendo com
que a empresa responda com seu patrimônio pela dívida pessoal do sócio, está circunscrito
aos pressupostos do art. 50 do atual Código Civil, cabendo ao juiz, fundamentadamente,
apontar as razões do seu convencimento, seja pelo acolhimento ou rejeição do pedido, sob
pena de vulneração aos arts. 93, IX, da CRFB, e 165, do CPC, dispositivos que transmitem
a necessidade de motivação nas decisões judiciais, ainda que concisa, sob pena de nulidade.
É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar
bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com
prejuízo a terceiros.
Acórdão: Agravo de instrumento n. 2005.031945-4, de Canoinhas.
Relator: Des. Marco Aurélio Gastaldi Buzzi.
Data da decisão: Publicação: DJSC Eletrônico n. 56, edição de 19.09.06, p. 30.
Conforme argumentos expostos, para o magistrado deferir a desconsideração
inversa da personalidade jurídica, devem estar preenchidos os pressupostos analisados
em item anterior. Caso contrário, não há motivo para a desconsideração inversa e,
aliás, devem ser as decisões sempre fundamentadas.
De forma intimamente implícita, subentende-se que os princípios basilares de
todo o ordenamento jurídico estejam sendo averiguados no ato da decisão, justamente
porque são o cerne de todo o liame jurídico. Não há necessidade de o magistrado
justificar a utilização deles, se decorrentes de normas preexistentes e utilizadas de
forma inversa.
A demonstração, de forma implícita ou explícita, é de que os princípios,
uma vez utilizados, servem de embasamento na aferição de normas transcritas no
ordenamento jurídico.
Não raro, a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa tem
sido aceita e deferida pelos magistrados não somente quando se verifica a situação de
relação entre sócio e terceiro envolvido especificamente numa relação de negócios, mas
também em relações direcionadas no Direito de Família.
Assim, a decorrência da aplicação e aceitação de dispositivos legais é
primordial, mas o embasamento muitas vezes se dá de forma inversa, justamente para
acomodar as reais situações apresentadas, em virtude do não regramento atual. E é
nesse ínterim que surgem as explicações para a adequação das regras do ordenamento
jurídico ao mundo social, globalizado, e a principiologia aplicada, mesmo de forma
120
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
tímida e implícita, às situações no âmbito jurídico.
Vale ressaltar alguns julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul no tocante à adequação da desconsideração em matéria de
separação judicial, partilha, alimentos, dentre outros:
APELAÇÃO.
PRESTAÇÃO
JURISDICIONAL
INSUFICIENTE.
INOCORRÊNCIA.
MARCO INICIAL DA UNIÃO ESTÁVEL. ESPECIFICAÇÃO. VALORIZAÇÃO DE
COTAS
SOCIAIS.
PARTILHA.
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE
JURÍDICA. CABIMENTO. (...) As cotas sociais das empresas eram de patrimônio
exclusivo do de ‘cujus’. No entanto, a valorização experimentada por tais cotas durante
o período em que o de ‘cujus’ viveu em união estável é patrimônio comum que, por isso,
deve ser partilhado. Ficou demonstrado que o de ‘cujus’ abusou da personalidade jurídica
de suas empresas, ao utilizar de forma indevida delas para o fim de ocultar bens passíveis
de partilha. Nesse contexto, cabível desconsiderar a personalidade jurídica das empresas.
REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO AO PRIMEIRO
APELO.
UNÂNIME.
DERAM
PARCIAL
PROVIMENTO
AO
SEGUNDO.
(BRASIL.Tribunal de Justiça Do Rio Grande do Sul. 8ª Câmara Cível. Apelação Cível n.
70012310058. Relator Rui Portanova. Julgado em 27/04/2006).
Descabe escudar-se o devedor na personalidade jurídica da sociedade comercial, em que
está investido todo o seu patrimônio, para esquivar-se do pagamento da dívida alimentar.
Impõe-se a adoção da ‘disregard doctrine’, admitindo-se a constrição de bens titulados
em nome de pessoa jurídica para satisfazer débito. (BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul. 7ª Câmara. Apelação Cível n. 598082162. Relator Des. Maria Berenice
Dias).
Assim considerando, fica evidenciada a fraude e o abuso de direito e a
simulação por parte do sócio, quando este faz uso da pessoa jurídica com a finalidade
de ocultar bens passíveis de partilha, ou quando este se furta da sociedade para
defender seu patrimônio pessoal por força de dívidas contraídas junto a terceiros
ou, mesmo oculta seus bens ao pagamento de pensão alimentícia e, nesse sentido, há
necessidade, nesse e em qualquer situação ou caso, da utilização da cautela, devendo
o magistrado, sobretudo, verificar a presença dos pressupostos tratados e analisados
em item anterior, quais sejam: a fraude, o abuso do direito e/ou a simulação, utilizados
com a finalidade de prejudicar terceiros.
Também é perfeitamente aplicável a desconsideração inversa e o efetivo
alcance dos bens transferidos à sociedade quando se busca a majoração da pensão
alimentícia baseada no aumento da fortuna do alimentante e na necessidade do
alimentado. Nesse caso, o devedor de alimentos dissimula sua condição de sócio
majoritário da pessoa jurídica e transfere grande parte do capital social a interposta
pessoa, para, numa revisão de alimentos, afirmar que não é sócio majoritário, mas
121
Artigo 6
mero prestador de serviços à sociedade, buscando ao final, o não aumento da pensão
alimentícia.
A conclusão a que se chega é que a desconsideração inversa da personalidade
jurídica será aplicada pelos magistrados sempre que houver transferência de bens
matrimoniais para uma pessoa jurídica visando ao prejuízo da meação ou da partilha
de bens, como ao prejuízo a recebimento da prestação alimentícia e, ainda, sendo
inclusive utilizada quando o sócio detém absoluto controle da sociedade.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, quando o sócio, que também seja
cônjuge, preocupado com a partilha judicial, retira da sociedade empresarial, às
vésperas da ação de separação ou divórcio, transferindo sua participação para outro
sócio, burlando a lei, inclusive pela questão de partilha de bens e, após a separação
judicial, o sócio fraudulento retorna à empresa e à livre administração dos bens que
eram comuns ao casal, com todos os bens que anteriormente lhe pertenciam, verifica-se,
em ambos os casos, a presença de fraude, simulação e abuso do direito por parte do sócio
em prejuízo de terceiro envolvido. Assim, há necessidade da desconsideração inversa da
personalidade jurídica, retirando o véu da autonomia patrimonial e aplicando, mesmo
que de forma implícita, a regra de que todos são iguais perante a lei, há presença da
dignidade da pessoa e, ainda, pelo princípio da razoabilidade, é razoável e necessária a
aplicação da Teoria às Avessas. Diante dessas práticas ilícitas, o magistrado desconsidera
a personalidade jurídica de forma inversa, no âmbito da sentença judicial, lançada no
processo de separação, divórcio ou dissolução de união estável, as alterações contratuais
que transferiram ou reduziram a participação social do cônjuge empresário, voltando
assim, ao estado anterior da flagrante apropriação da meação do cônjuge despojado ou,
mesmo na situação de prestação alimentícia, seguindo o mesmo entendimento.
Nesse sentido, vale apresentar a seguinte jurisprudência:
PARTILHA – Separação controvertida em divórcio – Regime da comunhão universal
de bens – Meação – Compromissário que, já casado, cede direitos sem a anuência da
mulher – Desconsideração – Sentença de partilha homologada respeitando a meação – Sentença
mantida – Recurso improvido. (BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. 3ª Câmara
de Direito Privado. Apelação Cível n. 86.249-4. Relator Octávio Helene. Julgado em
5/11/1998).
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar agravo de instrumento,
entendeu que:
EMBARGOS DE TERCEIROS. ‘Disregard’ ou desconsideração da personalidade
jurídica. Sociedade por quotas formada por concubinos. Arrolamento de bens. Deve
ser desconsiderada a personalidade jurídica de sociedade por quotas formada por dois
122
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
sócios, concubinos casados pelo religioso, rejeitando-se pedido de liminar em embargos
de terceiro promovidos pela sociedade, visando obstar arrolamento de bens promovidos
pela mulher. Possibilidade de fraude pelo varão, ocultado sob o manto da pessoa jurídica,
este, em realidade, age em nome próprio e não da sociedade. Agravo improvido. Unânime.
(BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 7ª Câmara Cível. Agravo de
Instrumento n. 593074602. Relator Paulo Heerdt. Julgado em 27/08/1993).
Assim, o deferimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica
pelo magistrado faz com que ocorra o retorno ao monte conjugal dos bens desviados
fraudulentamente para a pessoa jurídica, a fim de serem partilhados os bens ao final.
Ficou comprovado que ocorrerá a desconsideração inversa no âmbito
do direito familiar, no que tange aos alimentos, conforme já foi relatado, quando
o alimentante procura mascarar, aproveitando-se do manto da pessoa jurídica,
escondendo sua real capacidade econômica e financeira da pessoa física, a qual tem
o dever legal de alimentos. Nesse aspecto, o alimentante, quando é sócio de alguma
sociedade empresária, aproveita esse fato para agir omitindo sob o véu empresarial os
bens que possui.
Atua também de forma fraudulenta, e é motivo para a desconsideração
inversa da personalidade jurídica, o caso do ex-cônjuge que hesita em prestar alimentos
declarando que possui baixos rendimentos e, não obstante, sua conduta pública não
condiz com a presente postura apresentada nos autos, ostentando luxo e riqueza.
Nesse caso, a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica e dos
princípios embasadores já estudados, mesmo que de forma implícita, é utilizada para
o devido caso, a fim de ocorrer a justa solução para o litígio alimentar.
Se não bastasse, merece ser apresentada a situação de pais ou cônjuges
insensíveis que utilizam a pessoa jurídica que integram como sócios para montar
diversos estratagemas, com o fim precípuo de impedir que o autor da ação de alimentos
possa demonstrar, através de dados concretos, os reais rendimentos por eles percebidos
ou os respectivos bens particulares, pois transferem seu patrimônio à pessoa jurídica,
burlando a lei.
Relativamente ao direito comercial, nas sociedades por quotas, a aplicação
da desconsideração inversa se dá com a retirada do véu da autonomia patrimonial.
Existem jurisprudências acerca do assunto:
SOCIEDADE POR QUOTAS – Ausência absoluta de patrimônio – existência meramente
formal – manifesto prejuízo aos credores - presunção de fraude – Aplicação da teoria da
desconsideração da pessoa jurídica – Recurso Provido. (BRASIL.Tribunal de Justiça
de São Paulo. 7ª Câmara Cível. Apelação Cível n. 206787-2. Relator Pinheiro Franco.
Julgado em 17/6/1993).
123
Artigo 6
DIREITO
PRIVADO
NÃO
ESPECIFICADO.
EXECUÇÃO
DE
SENTENÇA.
Ação de execução de sentença. Preliminar de nulidade da execução rejeitada. Os
títulos exequendos foram acostados aos autos da execução, conforme se verifica dos
documentos que instruem o processo. Além do mais, não há falar em iliquidez quando
a apuração do ‘quantum debeatur’ bastem cálculos aritméticos, o que foi devidamente
providenciado pela parte. Mérito. Muito embora na aplicação da ‘disregard doctrine’,
parte-se do pressuposto que responde o sócio com seu patrimônio particular pela
obrigação da empresa, o direito não à aplicação da teoria da desconsideração de forma
inversa quando o devedor cria uma veste jurídica para tentar defender seu patrimônio
particular ameaçado de alienação judicial por força de dívidas contraídas junto a
terceiros. Caso em que o princípio da separação patrimonial deve ser superado e ceder
em face de circunstâncias especiais e excepcionais diante da prova robusta de fraude
por parte do sócio para desfrutar dos benefícios de sua posição, restando assente que a
separação da pessoa jurídica da pessoa física é mera ficção legal, não sendo justificável
que o sócio que se esconde sob o manto desta sociedade fuja de sua responsabilidade ou
de seu fim social, para alcançar benefícios e interesses antisociais. Recurso Improvido
por maioria. Preliminar rejeitada. (BRASIL.Tribunal de Justiça Do Rio Grande do Sul.
3ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 70005085048. Relator Eduardo Kraemer.
Julgado em 25/5/2004).
SOCIEDADE POR QUOTAS – aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica – transferência da quase totalidade das quotas a esposa mediante alteração
contratual – executados que fogem ao confronto com a justiça, deixando de nomear
bens a penhora – Recurso não provido. (BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo.
2ª Câmara Cível. Apelação Cível n. 142812. Relator Bueno Magano. Julgado em
26/04/1989).
No Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, recentemente, foi julgada
uma apelação cível relativa à desconsideração inversa da personalidade jurídica:
DECISÃO: ACORDAM os desembargadores integrantes da 15ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em conhecer do
recurso de apelação e negar-lhe provimento para manter a sentença em sua integralidade.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. FRAUDE À EXECUÇÃO. CARACTERIZAÇÃO.
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE
JURÍDICA
INVERSA.
POSSIBILIDADE.
PREENCHIMENTO
DOS
REQUISITOS
LEGAIS.
ÔNUS
SUCUMBENCIAIS MANTIDOS. Presente a confusão patrimonial entre a executada
e a empresa da qual é sócia mostra-se possível a penhora de bem imóvel pertencente
a esta, afastando-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para
responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio, em homenagem à desconsideração
inversa da personalidade jurídica, especialmente porque também demonstrada a
insolvência da devedora. RECURSO NÃO PROVIDO. (BRASIL, Tribunal de Justiça
do Estado do Paraná. 15ª Câmara Cível. Apelação Cível n. 0504400-6. Relator Hayton
Lee Swain Filho. Julgado em 6/8/2008).
124
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
Verificada a situação de sócio que atua de forma a burlar a lei, prejudicando
o pagamento de suas dívidas, sejam elas provenientes do âmbito familiar, social, ou
empresarial, a relevância é que, uma vez praticada a hipótese de fraude, simulação ou abuso
do direito, o sócio da sociedade empresária atua de forma negativa no aspecto empresarial,
porque envolve patrimônio seu em prol da sociedade e em detrimento de terceiros.
Sejam então os débitos de natureza alimentar, empresarial ou quaisquer
outros do gênero, há de ser aplicada a desconsideração inversa da personalidade
jurídica, quando houver a comprovação de fraude, simulação e/ou abuso do direito
por parte do sócio, transferindo seus bens à pessoa jurídica.
O devedor que transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém
absoluto controle e continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade,
mas da pessoa jurídica controlada e, com referência aos seus credores, em princípio,
não podendo responsabilizá-lo executando tais bens, nada mais certo e justo que
desconsiderar inversamente a personalidade jurídica quando houver a comprovação de
que o sócio agiu com fraude, simulação e/ou abuso de direito em face desses credores.
Nesse caso, há o efetivo alcance dos bens patrimoniais da sociedade, quando esta for
utilizada como um esconderijo de bens que eram antes de propriedade do sócio.
Conclui-se que, com base na hermenêutica, nos princípios estudados, há
relevância da Teoria às Avessas hodiernamente, embasamentos legais surgem em
decorrência do Estado Contemporâneo, da Globalização, dos aspectos práticos.
Jurisprudências existem, e são várias, em que os Juízes de Direito acatam a ideia da
desconsideração inversa da personalidade jurídica aplicada em favor de pessoas de
boa-fé e em prejuízo dos enganadores, fraudadores, que são os sócios das sociedades
empresárias que transferem seus bens particulares à sociedade empresária sob o
aspecto de que o manto da autonomia patrimonial os beneficiará, seja a dívida oriunda
de qualquer espécie – comercial, familiar.
Tal questionamento merece respeito e crédito na atual legislação brasileira,
principalmente quando a ideia central decorre de embasamentos justificados no ideal
de justiça e de praticidade, desde que preenchidos os pressupostos ensejadores de tal
instituto e devidamente fundamentados pelo aplicador da lei.
Conclusão
O presente estudo revelou a preocupação na concretização de direitos
infringidos pelos sócios de uma sociedade empresária em face de terceiros envolvidos
numa relação comercial ou familiar.
125
Artigo 6
Aspectos doutrinários e jurisprudenciais foram expostos de forma a tornar
reverenciado o presente trabalho, resgatando a principiologia, que é primordial ao
sistema jurídico brasileiro atual, proporcionando sua relevância diante de situações
conexas com a realidade.
Os avanços surgidos têm sido avaliados como renovadores das próprias leis.
A globalização fez progredir o atual sistema que está sendo analisado com intenções
baseadas em fatos reais pelos julgadores, adaptando os regramentos, os dispositivos
legais à atualidade.
O ser humano, com as modificações que se lhe apresentam a todo instante,
mereceu tratamento igualitário e digno quanto à efetivação de seus direitos, até então
inexistentes no sistema jurídico, mas que balisadores de uma progressão avançada e
eficaz conforme relatos e confirmações positivas por parte do magistrado, acatando
e deferindo a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, ante
a comprovação de fraude, simulação e/ou abuso por parte do sócio, quando este
transfere seus bens particulares para a sociedade empresária com o fito de não quitar
seus débitos, de natureza comercial ou familiar.
Comprovou-se mediante jurisprudências e doutrinas a relevância do direito
empresarial nas questões comerciais e inclusive nas questões de direito de família,
quando o sócio da empresa, com o escopo de não quitar o débito alimentar ou, mesmo,
para não partilhar seus bens, age com má-fé transferindo seus bens particulares à
sociedade empresária, sob o argumento de que o princípio da autonomia patrimonial
o protegerá.
A teoria às avessas ou a desconsideração da personalidade jurídica de forma
inversa vem com o argumento de que, por meio de embasamentos legais existentes, o
magistrado, demonstrando o ideal de justiça, aplica a referida lei de forma inversa, ou
seja, efetiva o direito atacado, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade
empresária a fim de quitar débitos particulares do próprio sócio, em virtude de ele ter
agido de forma fraudulenta, simulada e/ou com abuso de direito.
Tecidos esses comentários, necessário finalizar o presente estudo levando em
consideração a exposição de que ao ser humano, diante de uma situação e de mundo
globalizado, deve o magistrado, estando envolto de regras e opiniões das mais variadas,
aplicar os dispositivos legais valendo-se de conceitos e base principiológica a fim de
garantir a efetivação dos direitos transgredidos.
Notou-se a real ligação entre a principiologia, mesmo que de forma implícita,
e as regras preexistentes no ordenamento jurídico, assim como a relevância da
hermenêutica num mundo globalizado merecedor de avaliações.
126
A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família
O legislador, assim como o aplicador e o próprio intérprete devem possuir
embasamentos suficientes para o direito atual ser devidamente concretizado, diante de
casos apresentados hodiernamente, com os avanços tecnológicos, e revelados diante
das situações processuais entre os jurisdicionados.
A relevância do presente trabalho se tornou efetivada diante dos argumentos
apresentados, principalmente em decorrência das jurisprudências e o real sentido de
justiça, utilizados em todas as decisões pelos magistrados. O imperativo de inclusão
de regramento específico sobre o assunto é interessante e pertinente, levando-se em
consideração os avanços sofridos pelo ordenamento jurídico nos últimos anos.
Referências
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999.
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GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica constitucional. Curitiba: Juruá, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo:
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_________. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). São
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GUSMÃO, Mônica. Direito empresarial. 4. ed. Niterói/Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes. Direito de Empresas. v.6. São Paulo: Revista dos
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REALE, Miguel. Filosofia do direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1986.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v.1. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1999.
127
128
O Projeto de Lei n. 987/07
e a reafirmação dos direitos
humanos
José Carlos Portella Jr.1
Introdução. 1 Princípio do aut dedere aut judicare e o direito à verdade.
2 A conformidade do Projeto de Lei 987/07 com o direito internacional e com
a Constituição da República de 1988. Considerações finais. Referências
O presente artigo pretende examinar o Projeto de Lei n. 987/07 (que pretende a
criminalização do revisionismo histórico) à luz da Constituição da República e do
jus cogens internacional, tomando como base as decisões paradigmáticas do Supremo
Tribunal Federal e das Cortes Internacionais.
Palavras-chave: revisionismo, crime, direitos humanos, liberdade de expressão, direito
costumeiro, direito constitucional.
Introdução
O Projeto de Lei n. 987/07 (que pretende a criminalização do revisionismo histórico)
tem suscitado debates entre os defensores da liberdade de expressão e aqueles
preocupados com o direito à memória, decorrente do princípio do aut dedere aut
judicare, segundo o qual os perpetradores dos mais graves crimes (the core crimes ou
crimes essenciais)2 contra os direitos humanos (genocídio, crimes contra a humanidade
e crimes de guerra)3 devem ser sempre levados à Justiça para a prestação de contas de
suas ações e para que, dentre outros objetivos, seja revelada a verdade acerca dos atos
violadores da dignidade humana.
Especialista em direito internacional e em filosofia; professor do curso de direito do Centro Universitário Curitiba e da
Faculdade Dom Bosco; advogado criminalista.
Ver AMBOS, Kai. Direito penal: fins da pena, concurso de pessoas, antijuricidade e outros aspectos. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. 3
Este trabalho leva em consideração a definição instituída pelo Estatuto de Roma de 1998 para os crimes
mencionados, bem como os elementos de compreensão trazidos pela convenção sobre o Genocídio de 1948 e as
convenções de Genebra sobre o Direito Humanitário. Aliás, segundo a doutrina, o genocídio, os crimes contra
a humanidade e os crimes de guerra fazem parte do Direito Costumeiro Internacional, visto que são produtos
da construção histórico-jurídica do próprio Direito Internacional. Nesse sentido: BASSIOUNI, M. Cherif.
International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales – international criminal law:
Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004.
1
2
129
Artigo 7
O presente artigo tenciona analisar, com base em precedentes das Cortes
Internacionais e do Supremo Tribunal Federal, os limites da liberdade de expressão
com relação ao discurso do ódio (hate speech), de sorte a avaliar a legitimidade do
Projeto de Lei 987/07 à luz da Constituição brasileira e do Direito Internacional.
1 Princípio do aut dedere aut judicare e o direito à verdade
Antes de se discutir a tese aventada neste trabalho, é preciso definir o princípio
do aut dedere aut judicare e quais os efeitos no âmbito do tema aqui debatido.
O princípio do aut dedere aut judicare decorre do ideal histórico-jurídico que
considera os crimes essenciais (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de
guerra) como parte do jus cogens internacional.
Segundo M. Cherif Bassiouni, jus cogens, como valor de construção histórica e
filosófica, é uma obrigação erga omnes ou norma inderrogável de cumprimento obrigatório
(imperativa) por todos os sujeitos de Direito Internacional, independentemente da
existência de tratado. É, em suma, direito costumeiro internacional e, como tal, deve ser
respeitado por todos os membros da Comunidade Internacional.4
Veja-se que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu art. 26,
estabelece o costume como fonte do Direito Internacional e, inclusive, determina que,
em caso de conflito entre tratado e norma imperativa de Direito Internacional geral
(jus cogens), aquele deve ceder em favor deste (art. 53).
Ao se considerarem os crimes essenciais contra os direitos humanos como
parte do jus cogens internacional, visto que a Comunidade Internacional assim os
compreendeu em inúmeros tratados acerca da matéria (sobretudo, o Estatuto de
Roma)5, entende-se, por conseguinte, que os estados têm o dever de processar e julgar
esses crimes que ofendem toda a humanidade.
Consoante o primado do aut dedere aut judicare6, o estado tem o dever de
processar ou extraditar quem tenha praticado crime contra os direitos humanos, bem
como o dever de não conceder asilo a quem tenha praticado crimes dessa espécie.
Esse princípio foi inclusive confirmado pela Resolução 3074 da Assembleia Geral da
MBASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales
- international criminal law: Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004. p. 105.
5
A convenção sobre o Genocídio de 1948, as convenções de Genebra sobre o Direito Humanitário de 1949 e
os estatutos do Tribunal de Nuremberg, de Tóquio e dos Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e Ruanda, que
precedem o Estatuto de Roma, fundaram o ideal paradigmático dos crimes essenciais como parte do jus cogens
internacional.
6
CASSESE, Antonio. DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Crimes internacionais e jurisdições internacionais.
Barueri: Manole, 2004. p. 312-314.
4
130
O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos
ONU, que estabeleceu princípios aplicáveis ao processo dos crimes de guerra e dos
crimes contra a humanidade. Do mesmo modo, a Convenção Interamericana sobre
os desaparecimentos forçados veda a edição de leis de anistia referentes a crimes
dessa natureza. Outros tratados invocam esse princípio, como a Convenção para a
Prevenção e a Repressão ao Genocídio de 1948, as Convenções de Genebra de 1949 e
a Convenção contra a Tortura de 1984.
Nesse sentido, se os estados têm o dever de processar e julgar os perpetradores
dos mais graves crimes contra o status humano, o direito à verdade, isto é, o direito da
humanidade de saber em que circunstâncias, por quem, como, quando e contra quem
foram cometidos os atos atrozes pode ser considerado como decorrência lógica desse
princípio.
Para entender melhor essa conexão, faz-se necessário esclarecer em qual
espectro será compreendido o direito à verdade, à luz do qual se tratará aqui o tema
proposto.
Se o direito à verdade pode ser considerado decorrência lógica do princípio
do aut dedere aut judicare, ele pode ser e compreendido como direito da humanidade
de saber em que circunstâncias foram praticados os crimes contra os direitos humanos,
quem foram seus autores e suas vítimas.
Como já foi visto neste trabalho, o princípio do aut dedere aut judicare decorre
do ideal histórico-jurídico que considera os chamados “crimes essenciais” (the core
crimes) como parte do jus cogens internacional. Desse dever de processar e julgar
os mais graves crimes contra os direitos humanos decorre necessariamente a adoção
de mecanismos de punição e repressão a estes atos (accountability)7, dentre eles a
garantia da verdade8, que, amiúde, é para as vítimas muito mais importante que a
punição dos culpados9.
Para Bassiouni, a verdade é um imperativo que não pode ceder a conveniências
Note-se que nem sempre esses métodos de accountability terão caráter penal. Podem assumir outras formas
igualmente eficazes e, muitas vezes, mais justas, como a reparação civil, as Comissões de Verdade e Reconciliação,
medidas administrativas etc. Para o estudo de métodos alternativos de accountability, ver BASSIOUNI, M.
Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales – international criminal
law: Quo vadis? Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004. M. Cherif Bassiouni considera que os métodos de
accountability quanto aos crimes contra os direitos humanos se dividem em três categorias que se complementam:
a) verdade; b) justiça e c) reparação.
8
BASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études
Pénales – international criminal law: Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n.19, p. 79-155, 2004. p. 110.
9
AMBOS, Kai. El marco jurídico de la Justicia de transición. Justicia de transición: informes de América Latina,
Alemania, Italia y Espanã. Montevidéu: Fundação Konrad Adenauer, 2009. p. 32. DRUMBL, Mark A.
Atrocity, punishment, and international lay. Nova York: Cambridge University Press, 2007. p. 43.
7
131
Artigo 7
políticas10. Para ele, não pode haver paz verdadeira (no sentido da reconciliação
e prevenção de futuros conflitos) sem se estabelecer a verdade acerca dos crimes
praticados pelo regime antecessor.11
Nesse viés, Bassiouni considera que o direito à verdade tem por finalidade
permitir o registro histórico do evento trágico (direito à memória), bem como reduzir
o ressentimento entre as vítimas e o desejo de vingança, educar a sociedade e prevenir
novos conflitos12.
Da perspectiva histórica, o direito à memória (decorrente do direito à
verdade) garante a reconstrução do passado. A verdade histórica, no entanto, pode
ser desvencilhada da verdade jurídica, visto que cada qual possui as próprias fontes e
métodos de revelação peculiares13.
Enquanto a verdade jurídica tenciona esclarecer a culpa individual ou a
participação de cada um dos criminosos no plano de extermínio, a verdade histórica
procura a reconstrução do passado, interpretando-o, para interferir no presente
histórico, lembrando aos recém-chegados a este mundo o que sucedeu a seus
antepassados.
Ao refletir sobre a verdade histórica, Celso Lafer lembra a lição de Tercio
Sampaio Ferraz Jr., em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 19 de setembro
de 2003, para quem “a verdade histórica é a verdade factual, que pode ser interpretada,
mas não pode ser negada, sob pena de falsidade deliberada”14.
Assim, se o direito à verdade decorre do princípio do aut dedere aut judicare
e se a garantia desse direito é um dos métodos de accountability dos crimes praticados
contras os direitos humanos, o Projeto de Lei 987/07, influenciado por valores caros
ao Direito Internacional e à Constituição da República de 1988, vem reforçar na
consciência pública a perpetuação da memória de eventos históricos que jamais podem
MBassiouni parece apropriar-se da doutrina de Hannah Arendt acerca da verdade. Para Arendt, a verdade é
aquilo que não podemos modificar e é insubstituível. “A persuasão e a violência podem destruir a verdade, não
substituí-la.” Ver ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 320.
11
BASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études
Pénales – international criminal law: Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004, p. 128.
12
Idem, p. 128.
13
A esse respeito, a ensaísta argentina Beatriz Sarlo entende que a importância dos depoimentos pessoais para
o estabelecimento da verdade jurídica não é a mesma para o alcance da verdade histórica, pois eles trazem
uma carga do presente que deve ser contraposta a outras fontes escritas que permitam submetê-los à crítica.
Ver COLOMBO, Sylvia. A história sou eu. Folha de São Paulo, 8 abr. 2007, p. 8. Tzvetan Todorov defende
que o critério de verdade para a Justiça não é o mesmo para a história. Para ele, a primeira busca a verdade
factual (instrumentalizada), enquanto a segunda busca, sobretudo, a verdade de interpretação. Ver CASSESE,
Antonio. DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Crimes internacionais e jurisdições internacionais. Barueri:
Manole, 2004. p. 35-47. Tzvetan Todorov
14
LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais.
Barueri: Manole, 2005. p. 118.
10
132
O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos
ser falseados ou esquecidos.
2 A conformidade do Projeto de Lei 987/07 com o Direito Internacional e com a
Constituição da República de 1988
O Projeto de Lei 987/07, de autoria do deputado federal Marcelo Itagiba,
objetiva incluir, no art. 20 da Lei 7.7716/89 (lei dos crimes de preconceito), o parágrafo
2º, a fim de criminalizar a conduta de quem “negar ocorrência do holocausto ou dos
crimes contra a humanidade, com a finalidade de incentivar ou induzir a prática de atos
discriminatórios ou de segregação racial”, impondo a mesma pena de quem incorre na
conduta prevista no parágrafo 1º do citado artigo.
De acordo com a justificativa do referido projeto de lei, a finalidade é reprimir
o proselitismo de teses revisionistas e negacionistas do holocausto e dos crimes contra
a humanidade, as quais configuram condutas racistas.
Embora o projeto de lei ainda não tenha sido submetido à votação pelo
Congresso Nacional, suas disposições já causaram desconforto aos defensores
do direito à liberdade de expressão15. Todavia, criminalizar o revisionismo ou o
negacionismo não significa impedir a análise científica ou leiga de fatos históricos, no
sentido de desmascarar versões fantasiosas do passado.
Com efeito, a criminalização do revisionismo e do negacionismo não configura
ofensa ao direito à liberdade de expressão, encartado no art. 5º, incisos IV e IX, e no art.
220, ambos da Constituição da República de 1988, no art. 19 da Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1948 e no art. 13 da Convenção Americana de Direitos
Humanos de 1969 (também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica).
Por não ser um direito absoluto, o direito à liberdade de expressão pode sofrer
restrições legítimas, em especial pelo Direito Penal. Exemplos de limitação legítima à
liberdade de expressão não faltam no Código Penal brasileiro e na legislação esparsa.
Nesse diapasão, os artigos 138 (calúnia), 139 (difamação), 140 (injúria), 140 § 3º (injúria
qualificada), 286 (incitação ao crime), 287 (apologia de crime ou criminoso) e 325
(violação de sigilo funcional) do CP, artigo 20 da Lei 7.716/89 (racismo) e artigo 3º da
Lei 2.889/56 (incitação à prática do crime de genocídio) são alguns desses exemplos e
demonstram que o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto, podendo
ser afastado pelo próprio ordenamento jurídico quando estiver em colisão com outro
bem jurídico igualmente relevante e que necessite da eficaz tutela estatal.
Conforme matéria publicada pelo jornal Gazeta do Povo, em 7 de julho de 2009.
15
133
Artigo 7
Da atenta leitura do projeto de lei, infere-se que, para a configuração do
crime, é necessário, além do ato de “negar ocorrência do holocausto ou dos crimes
contra a humanidade”, que o agente atue “com a finalidade de incentivar ou induzir a
prática de atos discriminatórios ou de segregação racial”.
Portanto a lei exige, para a tipicidade da conduta, que o agente atue com
especial fim de agir, “incentivar ou induzir a prática de atos discriminatórios ou de
segregação racial”16, de sorte que não estão acobertadas pela referida norma penal as
pesquisas acadêmicas ou leigas acerca de fatos históricos relativos ao holocausto ou
aos crimes contra a humanidade que não tenham como objetivo a difusão de ideais
racistas ou discriminatórios17.
Veja-se que o art. 13.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos de
1969, promulgada no Brasil pelo Decreto 678/1992, determina que “a lei deve proibir
toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial
ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à
violência”.
Do mesmo modo, o projeto de lei em exame está em acordo com o que
estabelece o art. 4º, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial de 1965, patrocinada pela Organização das Nações
Unidas (ONU) e promulgada no Brasil pelo Decreto 65.810/1969. Segundo o art. 4º
do referido tratado, aos estados-partes cabe declarar como delitos puníveis “qualquer
difusão de ideias racistas baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer
incitamento à discriminação racial.”
No mesmo sentido, determina o art. 20.2 do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos de 1966 (elaborado no âmbito da ONU e promulgado no
Brasil pelo Decreto 592/1992) que “será proibida por lei qualquer apologia do ódio
nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade
ou à violência”.
Recentemente, a Justiça Federal de Santa Catarina absolveu o autor de artigo publicado em um jornal
catarinense, no qual, de acordo com a denúncia do Ministério Público Federal, exaltava o ódio racial e incitava
a discriminação contra a etnia indígena. Na sentença, o magistrado reconheceu que não se configurou o delito
previsto no art. 20 da Lei 7.7716/89, porquanto não estava presente na conduta do réu a intenção específica
de incitar o preconceito. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-ago-23/acusado-incitar-preconceitoindigenas-absolvido>. Acesso em: 24 ago. 2009. 17
A esse respeito, Celso Lafer reverencia a lição de Noberto Bobbio, em artigo publicado no jornal La Stampa,
em 1996, para quem há dois tipos de revisionismo: o revisionismo na acepção positiva, que contribui para a
descoberta da verdade histórica; e o revisionismo na acepção negativa, que tem por objetivo a negação de fatos
históricos comprovados, e nesse âmbito é que se compreende a negação do holocausto. Ver LAFER, Celso.
A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole,
2005. p. 116.
16
134
O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos
Ainda no plano internacional, comprometeu-se o Brasil, ao subscrever a
Declaração de Durban (2001)18 e o Plano de Ação de Genebra (2009)19, a adotar todas
as medidas cabíveis para impedir o preconceito racial e a propagação do discurso do
ódio (hate speech).
Como se percebe, também no plano internacional a liberdade de expressão
não é compreendida como um valor absoluto. Aliás, de acordo com o art. 29 da
Declaração Universal dos Direitos do Homem , os direitos do homem jamais podem
ser exercidos em contrariedade aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Esse
artigo demonstra, mais uma vez, que os direitos humanos não são absolutos e que
seu exercício pode ser restringido para a preservação de direito de outrem ou para a
garantia da paz social.
A esse propósito, afirma José Augusto Lindgren Alves que o art. 29 da
Declaração Universal dos Direitos do Homem20 “condiciona os direitos e liberdades
fundamentais de cada um aos deveres para com a comunidade, assim como aos direitos
e liberdades dos outros”21, reforçando a tese de que, para o Direito Internacional,
nenhum direito pode ser oposto a todos de forma absoluta, ainda mais quando
exercido para fins ilícitos ou imorais.
No que toca à legislação nacional, o bem jurídico tutelado pelo referido
projeto de lei também encontra guarida em princípios fundamentais da República
Federativa do Brasil, como a dignidade da pessoa humana, sacralizado no art. 1º, III,
da CR/88, a isonomia (art. 3º, IV, e art. 5º, caput, ambos da CR/88) e o repúdio ao
racismo em território nacional (art. 5º, XLII, da CR/88)22.
Se de um lado a Constituição da República garante a todos a liberdade de
expressão, de outro lado impõe o respeito à dignidade da pessoa humana, à insonomia,
e o repúdio à discriminação (corolários do estado democrático de direito).
A Declaração de Durban é o documento oficial que sintetiza os princípios que devem reger o combate ao
ódio racial e que foram consagrados pela comunidade internacional durante a Conferência Mundial contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, patrocinada pela ONU e que teve lugar na
cidade de Durban, África do Sul. 19
O Programa de Ação de 2009 é o resultado da Conferência de Revisão da Declaração de Durban, quando
foram revisados os princípios consagrados na Conferência de 2001 e criados instrumentos jurídicos para
facilitar a implementação da declaração pelos países participantes. 20
I) Todo homem tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua
personalidade é possível. II) No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas às
limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos
direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar
de uma sociedade democrática. III) Esses direitos e liberdade não podem, em hipótese alguma, ser exercidos
contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas. 21
ALVES, José Augusto Lindgren. A arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo: FTD, 1997. p. 91.
22
Aliás, o Brasil também repudia o racismo em suas relações internacionais (art. 4º, VIII, da CR/88). 18
135
Artigo 7
Para Gilmar Mendes, nem mesmo à luz da própria Constituição da República,
a liberdade de expressão não pode ser compreendida como um direito absoluto:
Não é verdade, ademais, que o constituinte concebeu a liberdade de expressão como direito
absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo Legislativo. Já a fórmula
constante do art. 220 da Constituição explicita que ‘a manifestação de pensamento, a
criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição’.
É fácil ver, pois, que o texto constitucional não excluiu a possibilidade de que se
introduzissem limitações à liberdade de expressão e de comunicação, estabelecendo,
expressamente, que o exercício dessas liberdades haveria de se fazer com observância
do disposto na Constituição. Não poderia ser outra a orientação do constituinte, pois,
do contrário, outros valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um
direito avassalador, absoluto e insuscetível de restrição23.
A esse respeito, Celso Lafer lembra que a tese defendida por Gilmar Mendes
foi também consagrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ainda na vigência da
Constituição de 1946, no Recurso Extraordinário n. 25848/MG, do qual foi relator o
ministro Ribeiro da Costa:
No acórdão de 2 de dezembro de 1954, por unanimidade, o STF, a propósito da liberdade
de imprensa, afirmou que esta comportava limites lícitos, justificando-se ‘a interdição de
órgão de publicidade quando se demonstra o incitamento à subversão da ordem pública e
social ou a propaganda de guerra ou de preconceito de raça ou de classe’24.
Mais recentemente, no julgamento do habeas corpus n. 82.424-2/RS25, o
Supremo Tribunal Federal mais uma vez reforçou a tese de que a liberdade de expressão
encontra limites legais, inclusive na própria Constituição da República de 1988. Nessa
ocasião, decidiu o STF que a liberdade de expressão não é uma garantia constitucional
absoluta e pode sofrer limitações morais e jurídicas, de sorte que ela não pode dar
abrigo a manifestações de conteúdo imoral que impliquem ilicitude penal.
Ademais, o STF categoricamente refutou a possibilidade do exercício
da liberdade de expressão quando esta contrariar princípios fundamentais da
Constituição, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade jurídica:
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: IBDC,
1999. p. 90.
24
LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais.
Barueri: Manole, 2005. p. 67.
25
Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Siegfried Ellwanger, que fora condenado pela Justiça gaúcha
pela prática do crime previsto no art. 20 da Lei 7716/89 (crime de incitação à discriminação e ao preconceito),
por ter escrito e publicado a obra intitulada Holocausto – Judeu ou Alemão? Nos bastidores da mentira do
século, na qual negava a ocorrência do genocídio dos judeus e incitava o ódio racial.
23
136
O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos
As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira
harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, art. 5º,
par. 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o
‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em
salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência
dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica26.
Do voto do ministro Celso de Mello, por ocasião do julgamento do sobredito
habeas corpus, também se extrai importante lição acerca dos limites ao direito à
liberdade de expressão:
A prerrogativa concernente à liberdade de manifestação do pensamento, por mais abrangente
que deva ser o seu campo de incidência, não constitui meio que possa legitimar a exteriorização
de propósitos criminosos, especialmente quando as expressões de ódio racial – veiculadas com
evidente superação dos limites da crítica ou da opinião histórica – transgridem, de modo
inaceitável, valores tutelados pela própria ordem constitucional.
Sobre a legitimidade da imposição de limites ao exercício do direito à
liberdade de expressão por intermédio do Direito Penal, lembra Celso Lafer a decisão
da Corte Europeia de Direitos Humanos, que julgou recurso interposto pelo filósofo e
escritor francês Roger Garaudy que, em sua obra Les mythes fondateurs de la politique
israélienne, encampou o revisionismo histórico para tratar do genocídio dos judeus,
tendo sido condenado pela Justiça francesa pela prática do crime de denegação do
holocausto27. Em seu recurso, Garaudy alegou que a decisão da Justiça francesa
violava o direito à liberdade de expressão, previsto no art. 10 da Convenção Europeia
de Direitos Humanos, argumento que fora refutado de forma magnânima pela Corte.
Na decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, em 24 de junho de 2003,
ficou assentado que
Não há dúvida que contestar fatos históricos claramente estabelecidos como o holocausto,
do modo como procede o requerente na sua obra, de forma alguma diz respeito a um
trabalho de pesquisa histórica relacionado com a sua busca da verdade. O objetivo e a
finalidade de um empreendimento desta natureza são totalmente diferentes, pois na
verdade se trata de reabilitar o regime nacional-socialista e, por via de consequência, de
acusar de falsificação da história as próprias vítimas. Destarte, a contestação de crime
contra a humanidade aparece como uma das formas mais agudas de difamação racial
contra os judeus e de incitação de ódio em relação a eles. A negação ou revisão de fatos
Trecho extraído da ementa do habeas corpus n. 82.424-2/RS, rel. min. Maurício Corrêa, D.J. 17/9/2003.
Crime definido na Lei 90-615/90. Outros países europeus criminalizaram o “revisionismo histórico negativo”,
como Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Holanda, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca,
Romênia e Suíça. Canadá e Israel são dois países fora da Europa que já adotaram legislação similar. 26
27
137
Artigo 7
históricos deste tipo coloca em causa os valores que fundamentam a luta contra o racismo
e o antissemitismo e são de uma natureza que perturba gravemente a ordem pública.
Atentando contra direito de terceiros, atos deste tipo são incompatíveis com a democracia
e os direitos humanos 28.
Mark Drumbl sustenta que o Tribunal Penal Internacional para Ruanda
(TPIR) também contribuiu para a melhor compreensão dos limites da liberdade de
expressão, quando em colisão com os demais direitos humanos. No julgamento do
caso Barayagwiza29, o TPIR decidiu, em 3 de dezembro de 2003, pela condenação
de um jornalista ruandês por incitação ao genocídio da população da etnia tutsi ao
considerar que a incitação ao ódio racial não se encontra protegido pelo direito a
expressar-se livremente30.
Diante desses precedentes analisados, para as Cortes Internacionais, o
direito à liberdade de expressão, embora protegido por tratados internacionais, não é
considerado como um valor absoluto; é passível de limitação quando afrontar direito
alheio. Essa posição, como se viu, é também albergada pela Corte Constitucional
brasileira.
Considerações finais
O Projeto de Lei 987/07 visa a reafirmar os direitos humanos a partir da
criminalização da conduta daquele que pretende negar crimes contra a humanidade,
com a intenção de incentivar ou induzir a prática de atos discriminatórios ou de
segregação racial.
De acordo com a jurisprudência da Suprema Corte brasileira e dos Tribunais
Internacionais de Direitos Humanos, o exercício da liberdade de expressão não evita
a responsabilização penal ou civil daquele que abusa desse direito, atacando outros
direitos humanos e/ou fundamentais e outros bem jurídicos tutelados pelo direito. O
hate speech não encontra guarida no direito à livre expressão, porquanto configura um
ataque à dignidade humana, pilar do estado democrático de direito e da própria ideia
de direitos humanos.
LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais.
Barueri: Manole, 2005. p. 117-118. 29
Trata-se de Jean Bosco Barayagwiza, fundador da Radio Télévision Libre de Miles Colines (RTLMC),
condenado por ter utilizado meios de comunicação para incitar ao genocídio que vitimou milhares de pessoas
em Ruanda, durante o ano de 1994. Disponível em: <www.ictr.org/ENGLISH/cases/Barayagwuiza/index/
htm>. Acesso em: 18 ago. 2009.
30
DRUMBL, Mark A. Atrocity, punishment, and international law. Nova York: Cambridge University Press,
2007. p. 131-132.
28
138
O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos
Ademais, negar a ocorrência do holocausto ou de atos igualmente atentatórios
aos direitos humanos é violar a consciência coletiva e o direito à verdade.
A esse respeito, vale citar a valiosa lição de Flávia Piovesan, em carta ao
jornal Estado de S. Paulo, publicada em 12 de setembro de 2003: “o temerário aval
ao revisionismo histórico ameaça o direito à verdade que traduz o anseio civilizatório
de reconhecimento de gravíssimos fatos históricos atentatórios aos direitos humanos.
Tal resgate histórico serve a um duplo propósito: assegurar o direito à memória das
vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de
tais práticas”31.
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