EOS — Revista Jurídica da Faculdade de Direito / Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito. — v. 4, n. 7 (jan./jul. 2010) — Curitiba: Dom Bosco, 2010. Semestral. ISSN 1980 - 7430 1. Direito — Periódicos. I. Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito. CDD 340 EOS Revista Jurídica da Faculdade de Direito ISSN 1980—7430 Presidente do Sistema Educacional Brasileiro — SEB Chaim Zaher Vice-presidente do Sistema Educacional Brasileiro — SEB Adriana Baptiston Cefali Zaher Diretor-geral do Grupo Dom Bosco Durval Antunes Filho Diretor-geral da faculdade dom bosco Augusto César Tosin Diretor-adjunto da faculdade dom bosco Luiz Fernando Bianchini COORDENADORES DO CURSO DE DIREITO Prof. Msc. Evilásio Gentil de Souza Neto Prof. Msc. Luciano Tinoco Marchesini COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA Prof. Msc. Luis Antonio Martins Barbosa Junior COORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISA DO CURSO DE DIREITO Prof. Msc. Cristiano Dionísio COORDENADOR DO NÚCLEO DE MONOGRAFIA Prof. Msc. Luciano Bernart COORDENADORAS DA REVISTA CIENTÍFICA DO CURSO DE DIREITO — EOS Profa. Msc. Melina Girardi Fachin Profa. Ms. Maria Cristina Leite Gomes COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Aloísio Surgik Profa. Msc. Ana Carla Hamatiuk Profa. Msc. Carmen de Fátima Pick Profa. Esp. Carolina Fátima de Souza Alves Prof. Msc. Cristiano Dionísio Prof. Msc. Cristina Leitão Teixeira de Freitas Prof. Msc. Dean Fabio Bueno de Almeida Profa. Esp. Denise Cristina Brzezinski Mansur Prof. Ms. Evandro Limongi Marques de Abreu Prof. Msc. Evilásio Gentil de Souza Neto Profa. Dra. Gisela Maria Bester Prof. Dr. Ignacio Ara Pinilla Profa. Msc. Katya Isaguirre Torres Prof. Msc. Marcelo Miguel Conrado Prof. Msc. Marcos Alves da Silva Prof. Msc. Marcus Paulo Rycembel Boeira Profa. Dra. Maria Berenice Dias Profa. Ms. Maria Cristina Leite Gomes Profa. Ms. Maria Estela Gomes Setti Prof. Msc. Maurilucio Alves de Souza Profa. Msc. Melina Girardi Fachin Profa. Dra. Raquel Dias da Silveira Motta Profa. Dra. Rosalice Fidalgo Pinheiro Profa. Msc. Tais Martins Prof. Msc. Walter Guandalini Junior Prof. Dr. Wagner D’Angelis Prof. Dr. Zulmar Fachin REVISÃO Dom Bosco DIAGRAMAÇÃO Teca Bussmann EDITORA DA REVISTA CORRESPONDÊNCIA Faculdade Dom Bosco Coordenação do Núcleo de Pesquisa Campus Marumby Av. Wenceslau Braz, 1172 Guaíra 81010-000 Telefone: 41 3213-5200 E-mail: [email protected] Tiragem 1 000 exemplares Apresentação Ao apresentar mais um número da revista EOS, que ora se coloca à disposição da comunidade acadêmica, saliento a imensa satisfação que tenho em fazer parte dessa história. Produzir uma revista científica não é tarefa das mais fáceis. Mantê-la com a qualidade que sempre se almejou, despertando o interesse dos profissionais que produzem pesquisa nas áreas das ciências jurídicas, se reveste, então, de motivo de orgulho, para todos aqueles que trabalham para manter a revista EOS como um veículo a serviço do pensamento livre e da divulgação das pesquisas que são produzidas nas academias mas que devem extrapolar seus limites, conquistando novos públicos. Esta edição reproduz a seriedade do trabalho até aqui conduzido. Os programas de pósgraduação stricto senso, das mais variadas universidades do país, responderam ao nosso convite. Pudemos, assim, trazer para o debate acadêmico a produção científica feita nesse nível. Acreditamos na necessidade deste debate, no engrandecimento pessoal, profissional, acadêmico que a divulgação e o confronto de ideias favorecem. Isso não significa que a produção acadêmica de nossa instituição fique esquecida. Ao contrário! Nossos docentes continuam presentes, e a pesquisa desenvolvida na Faculdade Dom Bosco está sempre em condições de dialogar com os demais pesquisadores e incrementar o debate e a pesquisa junto aos discentes. “El derecho se aprende estudiando, pero se ejerce pensando”, disse Eduardo Couture. E esse pensar crítico só se faz se tivermos acesso aos diversos intelectuais que “pensam” a cultura jurídica. A eles agradecemos com a publicação de mais este número da revista EOS. Professora Ms. Maria Cristina Leite Gomes Coordenação da revista EOS 6 SUMÁRIO Artigo 1 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Ana Paula Myszczuk Frederico Eduardo Zenedin Glitz 29 9 Artigo 2 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho Ana Beatriz Ramalho de Oliveira Ribeiro Artigo 3 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos Hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental 45 Edinei Carlos Dal Magro 61 Artigo 4 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário Alexia Rodrigues Brotto Maureen Cristina Sansana 7 85 Artigo 5 Direito, Economia e Estado: integração possível? Luiz Antonio Grisard Artigo 6 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família Gislaine Fernandes de Oliveira Mascarenhas Aureliano 129 8 103 Artigo 7 O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos José Carlos Portella Jr. Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Ana Paula Myszczuk1 Frederico Eduardo Zenedin Glitz2 1 Pressupostos. 2 Da vulnerabilidade do consumidor. 3 Da hipossuficiência do consumidor. 4 Transgênicos: o dever de informar. Notas conclusivas. Referências Resumo O sistema brasileiro de proteção ao consumidor é regido pelo princípio da vulnerabilidade e adota, entre outros mecanismos de equalização, a figura da hipossufiência. Frequentemente confundidos, tais conceitos são distintos e merecem análise detalhada. São, hoje, ainda mais relevantes, se levarmos em conta os avanços da biotecnologia. Nessa medida um importante passo é assegurar o direito à informação ao consumidor, exposto a relações de consumo que envolvam organismos geneticamente alterados. Assim, o presente artigo abordará o conceito de vulnerabilidade do consumidor e seu alcance jurídico. O consumidor é considerado vulnerável, pois tem sua vontade Advogada, graduada em licenciatura em história e bacharelado em direito, ambos pela Universidade Estadual de Ponta Grossa; mestre em direito econômico e social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; doutoranda em direito econômico e socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; membro do Quis (Grupo de Pesquisa em Sustentabilidade) da Unibrasil e dos estudos do Co-Extra (Co-Existence and Traceability) no Brasil. Atualmente é professora da Faculdade Metropolitana de Curitiba (FAMEC) e Faculdade de Educação Superior do Paraná (Fesp). Tem experiência na área de direito privado, com ênfase em história do direito e direito civil. E-mail: [email protected] 2 Advogado, mestre e doutorando em direito das relações sociais (UFPR), especialista em direito e negócios internacionais (UFSC) e em direito empresarial (IBEJ), professor de direito das obrigações, direito dos contratos e direito internacional privado da Unibrasil, professor de direito das obrigações dos contratos da faculdade de direito da Universidade Positivo (UP); professor convidado da Escola Superior de Advocacia da OAB/PR e da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), membro do “Virada de Copérnico,” grupo interinstitucional de pesquisa e estudo do direito civil. Membro do grupo de estudos em Direito empresarial da UFPR. Membro do Quis (Grupo de Pesquisa em Sustentabilidade) da Unibrasil e dos estudos do Co-Extra (Co-existence and Traceability) no Brasil, membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP), membro do Conselho de Comércio Exterior da Associação Comercial do Paraná. E-mail: [email protected] 1 9 Artigo 1 facilmente limitada, tendo-se em vista os mecanismos existentes no mercado para criar “necessidades”. Em seguida trata de um dos mecanismos de defesa do consumidor, que é o estabelecimento de sua hipossuficiência, que pode ser monetária ou técnica. A partir de então analisa o direito do consumidor de ser informado sobre a presença ou ausência de ingredientes transgênicos em determinado alimento, de forma suficiente, clara e precisa. Destaca, ainda, como deve ser a rotulagem dos alimentos que contêm ingredientes transgênicos. Nas notas conclusivas, entende que a hipossuficiência e a vulnerabilidade do consumidor são instrumentos importantíssimos na defesa de seu direito à informação sobre os OGMs. Palavras-chave: consumidor, vulnerabilidade, hipossuficiência, transgênicos Abstract The Brazilian consumer protection system is governed by the principle of vulnerability and adopt, among other mechanisms of equalization, the figure of hiposuficiency. Often confused, these concepts are distinct and deserve detailed analysis. Today, are even more relevant, if we take into account the advances in biotechnology. This is an important step to ensure the right information to the consumer exposed to consumer relations involving genetically modified organisms. Thus, this article will address the concept of consumer vulnerability and its legal effect. The consumer is considered vulnerable because their free will is easily limited, having in view the market mechanisms to create “needs”. Then analyses one of the mechanisms of consumer protection, which is establishing its hiposuficiency, which can be monetary or technique. Then examines the right that the consumer to be dully informed about the presence or absence of GM ingredients in certain food, with sufficient, clear and precise information. It also emphasizes how it should be the labeling of GM foods that contains GM ingredients. In concluding remarks mean that the weaker and vulnerable consumers are important instruments to defend its right to be informed about GMOs. Keywords: consumer, vulnerability, less sufficiency, transgenic 1 Pressupostos O presente artigo faz parte de um estudo maior realizado no projeto de pesquisa “Co-Extra: the GM and non-GM supply chain: their Co-Existence and Traceability”, patrocinado pela Comissão Europeia e com a presença de mais de 52 parceiros, em 18 países. Este trabalho foi apresentado originariamente em inglês, nos congressos internacionais, ISDA – Innovation and Sustainable Development in 10 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Agriculture and Food, em Montpellier e EuroSafe – Global food e security: ethical and legal challenges. As atuais relações contratuais parecem demonstrar a complexidade de uma “nova” lógica de trocas. Nelas, outros objetos são transformados em prestações negociáveis. São eles “fantasmas” que surgem a demandar tutela jurídica e exigir reconhecimento. Nesse sentido, um dos dilemas que se apresentam é o “regime jurídico” atinente aos organismos geneticamente modificados. A questão é, ainda, mais relevante quando tratamos de relações contratuais realizadas entre “não iguais”, nas quais não há equilíbrio necessário nos poderes de barganha, acesso ao conhecimento, manejo de instrumentos ou estratégia de mercado. Para os fins do presente artigo, limitamo-nos à análise dos casos em que o consumidor pode ser sujeito de relações biotecnológicas. Relações essas em que, necessariamente, não se tem acesso completo às informações necessárias a fundar uma escolha consciente. Nesse tocante será necessária a compreensão de como a tutela do direito à informação é abrangido pela legislação consumerista brasileira e, dentre seus instrumentos, quais os mecanismos consagrados a tutelar o sujeito vulnerável. O Código de Defesa do Consumidor brasileiro (Lei n. 8.078/1990) foi elaborado a partir do princípio da proteção ao consumidor, tal como havia sido determinado pelo texto constitucional (artigo 170, V). Trata-se, portanto, de instrumento de proteção jurídica do consumidor frente aos fornecedores. A opção do legislador brasileiro parece ter sido tutelar a relação jurídica de consumo, lastreando-a, forçosamente, no princípio da boa-fé objetiva. Para implementar tal disposição, define a figura do “consumidor” como toda pessoa física ou jurídica e/ou toda a coletividade de pessoas que adquiram ou utilizem produtos ou serviços como destinatários finais. Perceba-se, desde já, que em tal conceituação resta evidente a tutela da vulnerabilidade. Define, igualmente, a figura do “fornecedor”, como toda pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, bem como os entes despersonalizados, que exerçam atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou serviços3. Para operar a proteção ao consumidor, o Código parte do pressuposto de que ele é a parte vulnerável nessa relação contratual. A tutela, então, do consumidor não teria aspecto paternalista, mas seria forma de preservar o equilíbrio negocial por Conforme redação dos artigos 2º e 3º do CDC. 3 11 Artigo 1 meio da promoção de instrumentos de equalização. Em outros termos, assume o papel de promoção da justiça contratual. Juridicamente, portanto, a tutela do consumidor parte da atribuição de uma qualidade intrínseca e indissociável de todos que se colocam na posição de consumidor, isto é, o reconhecimento de sua vulnerabilidade. Partindo desse reconhecimento, o Código estabelece uma série de direitos ao consumidor que garantam e facilitem essa proteção, como a tutela do consumidor hipossuficiente. Os conceitos de vulnerabilidade e hipossuficiência, embora muito utilizados como sinônimos, apresentam diferentes feições. Desse modo, o presente trabalho pretende realizar algumas diferenciações em conceito, características e objetivos de cada um dos institutos, utilizado como base o que dispõe o art. 4º, I, e o art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, aplicando-os às discussões envolvendo os organismos geneticamente alterados. 2 Da vulnerabilidade do consumidor O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, estabelece uma política nacional para as relações de consumo, enumerando uma série de princípios protetivos ao consumidor, que norteariam todo o disposto no Código4. Essa política é um instrumento que visa a equilibrar os interesses de consumidores e fornecedores, preocupando-se com o atendimento das necessidades daqueles e a transparência e harmonia das relações de consumo. Dentre esses princípios, um dos mais importantes é o do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor5. Segundo escreve Almeida6, o princípio da vulnerabilidade é considerado a “espinha dorsal da proteção ao consumidor, sobre o que se assenta toda a linha filosófica do movimento” consumerista. Reflete esse autor: A primeira justificativa para o surgimento da tutela do consumidor, segundo entendemos, está assentada no reconhecimento de sua vulnerabilidade nas relações de consumo. É facilmente reconhecível que o consumidor é a parte mais fraca na relação de consumo. A começar pela própria definição de que consumidores são os que não dispõem de controle sobre os bens de produção e, por conseguinte, devem submeter-se ao poder dos titulares destes. Para satisfazer suas necessidades de consumo, é inevitável que ele compareça ao Art. 4º. A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores; o respeito a sua dignidade, saúde, segurança; a proteção de seus interesses econômicos; a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios... 5 Os demais princípios enumerados neste artigo são: ação governamental no sentido de proteger o consumidor, harmonização dos interesses dos consumidores e fornecedores, educação e informação, controle da qualidade, mecanismos de atendimento e de solução alternativa de conflitos de consumo, coibição de abusos no mercado, racionalização e melhoria dos serviços públicos, estudo das modificações do mercado. 6 ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 11 e 15. 4 12 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado mercado e, nessas ocasiões, submeta-se às condições que lhe são impostas pela outra parte, o fornecedor. Complementa Almeida: Há um certo paralelismo entre o empregado e o consumidor. Está ocorrendo com a defesa do consumidor o mesmo fenômeno vivido há cinquenta anos, quando surgiu a tutela do empregado nas relações de trabalho: é que tal tutela só foi possível e se tornou real após o reconhecimento da situação de fragilidade e dependência econômica do empregado em face do empregador. O mesmo está ocorrendo agora no que respeita ao consumidor, ou seja, do reconhecimento de sua vulnerabilidade está nascendo a tutela legal. O consumidor é considerado vulnerável por ter facilmente limitada a sua livre manifestação de vontade. Isso é especialmente verdade no que se refere à escolha de suas prioridades e necessidades, tendo-se em vista todos os procedimentos, mecanismos, métodos e técnicas utilizados pelos fornecedores para, mesmo indiretamente, fomentar, manter, desenvolver e garantir a circulação de seus produtos e serviços7. Conforme argumenta Slater8, todas as coisas produzidas devem ser vendidas de modo que o aparato produtivo requeira a produção de novo consumismo, novos produtos, novas necessidades e novos usos para as coisas. Além das necessidades básicas, são criadas necessidades para os homens, e a satisfação das necessidades depende do acesso às comodidades e do consumo. Pasqualotto caracteriza em síntese a relação de consumo, sob o ponto de vista de suas partes. De um lado, situa-se o fornecedor de bens e serviços, geralmente materializado numa empresa, estruturada não somente para atender a sua finalidade precípua, como apta a prover o resguardo dos seus interesses comerciais, seja através de ações adredemente concebidas, inseridas na sua própria estratégia mercadológica, seja através de recursos diversos, que vão desde o poder de barganha até departamentos jurídicos especializados. De outro lado, o consumidor, geralmente uma pessoa física isolada, desconhecedora dos seus próprios direitos ou impossibilitada de acioná-los, impotente diante da lesão aos seus interesses legítimos, confrontada com a necessidade de consumir bens imprescindíveis à sua própria existência e dignidade9. Neste sentido é o entendimento jurisprudencial: CONTRATO – prestação de serviço – rescisão – ajuizamento por consumidor– alegação de ter sido induzido em erro, através de agressiva estratégia de marketing – artigo 4º inciso I, do Código de Defesa do Consumidor – ônus da prova em contrário que cabia ao réu – artigo 6º, inciso VIII, do mesmo Código – Recurso provido. (AC 262.603-2, São Paulo, apelante: Rodolfo Roberto Alves de Almeida, apelada: JK Viagens e Turismo Ltda. 8 SLATER, Don. Consumer, culture & modernity. Cambridge: Blackwell Publisher Inc., 1997. p. 108-111. 9 PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos Fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. p. 49. 7 13 Artigo 1 Tais mecanismos de convencimento e de manipulação que incidem, diariamente, sobre o consumidor são variados e acabam por criar representações fetalizadas da vida, que induzem o consumidor a considerá-las reais, tornando-o vulnerável, fazendo-o necessitar de proteção legal10. Filomeno11, comentando o Código de Defesa do Consumidor, afirma que no âmbito da tutela especial, efetivamente, o consumidor “é sem dúvida a parte mais vulnerável, se tiver em conta que os detentores dos meios de produção é que detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir, sem se falar na fixação de suas margens de lucro”. Conforme escreve Almeida12, há um consenso no mundo ocidental sobre a vulnerabilidade do consumidor, “já tendo a ONU se pronunciado sobre esse assunto, na Resolução 29/248, de 10.4.8513, reconhecendo que os consumidores se deparam com vários desequilíbrios, o que conflita com o direito de acesso a produtos e serviços seguros e inofensivos”. O conceito do que seja a vulnerabilidade do consumidor abrange diversos enfoques, como o econômico, técnico-profissional e jurídico. O consumidor é vulnerável economicamente, pois os possuidores dos meios de produção – fornecedores – detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir, para quem produzir e as taxas de lucro utilizadas. Nesse sentido, expõe Amarante14: O poderio econômico da parte mais forte evolui no desequilíbrio da força contratual, que dita condições, faz prevalecerem interesses egoístas, contrata sem combate, mascarando os privilégios e assegurando-lhe a eficiência e a rentabilidade. (...) O CDC proíbe, em seu artigo 37, toda a publicidade enganosa ou abusiva. A publicidade enganosa é aquela que informa incorretamente o consumidor sobre um produto ou serviço. Abusiva é a publicidade que se excede despropositadamente e de forma contrária aos critérios de igualdade de determinada conduta reconhecida como lícita. 11 idem, p. 16. 12 GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária., 1998. p. 46. 13 Resolução adotada pela Assembleia Geral (ONU) – Normas para a proteção do consumidor – Objetivos: 1. Levando em consideração os interesses e as necessidades dos consumidores em todos os países, particularmente os países em desenvolvimento; reconhecendo que os consumidores se deparam com desequilíbrios em termos econômicos, níveis educacionais e poder aquisitivo; e tendo em mente que consumidores têm o direito de acesso a produtos inofensivos, assim como o direito de elaborar um desenvolvimento econômico e social justo, equitativo e duradouro, essas normas para a proteção do consumidor têm o seguintes objetivos: (...) 14 AMARANTE, Maria Cecília Nunes. Justiça ou equidade nas relações de consumo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998. p. 15-16. 10 14 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Comprovadamente exposto aos fenômenos econômicos, tais como a industrialização, a produção em série e a massificação, assim como vitimado pela desigualdade de informações, pela questão dos produtos defeituosos e perigosos, pelos efeitos sobre a vontade e a liberdade, o consumidor acaba lesionado na sua integridade econômica e na sua integridade físico-psíquica, daí emergindo como vigoroso ideal a estabilidade e a segurança, o grande anseio de protegê-lo e colocá-lo em equilíbrio nas relações de consumo. A vulnerabilidade ténico-profissional do consumidor surge da falta de conhecimentos específicos sobre determinado ramo de atividade ou serviço. Note-se, ademais, que tal falta de acesso fica ainda mais evidente quando são analisados os desenvolvimentos biotecnológicos. Isso é especialmente sensível se pensarmos em termos de utilização de organismos geneticamente modificados na alimentação animal e humana e na falta de divulgação ou acesso às consequências disso. Conforme Bonatto e Moraes15, “cada área de conhecimento possui naturalmente suas peculiaridades, somente sendo propiciado ao estudioso específico de determinada matéria o domínio integral das causas, conceitos e conseqüências dos fenômenos passíveis de ocorrência nessa área”. Se imaginarmos a quantidade de invenções que povoam o dia a dia das sociedades humanas, ter-se-á noção do quão variados são os bens criados pelo homem e a vulnerabilidade científica dos consumidores. Concluem os autores que o vulnerável consumidor “não tem como ser equiparado aos fornecedores de produtos e serviços também por esse aspecto, pois estes detêm os conhecimentos técnicos e profissionais específicos atinentes às suas atividades, o que induz à óbvia aceitação de que o consumidor deve ser protegido”. Outro enfoque sob o qual pode ser analisada a vulnerabilidade do consumidor é jurídico. A sociedade de consumo inaugura um novo tipo de contração, a de massa, nas quais se inserem os contratos de e por adesão . No contexto dessa nova realidade, os fornecedores se valem dos contratos por adesão16, que, pela complexidade, tecnicidade, falta de clareza e transparência, dificultam a manifestação de vontade livre e consciente do consumidor17, fazendo surgir a necessidade de proteção legal. Uma dessas formas de tutela é a imposição, ao fornecedor, do dever de informação sobre a composição de determinado alimento. Poder-se-ia exemplificar esse tipo de situação na exigência de ibidem p. 44. Contratos de adesão são aqueles em que os aderentes não podem rejeitar as cláusulas uniformes estabelecidas de antemão. Contratos por adesão são aqueles fundados em cláusulas também estabelecidas unilateralmente pelo estipulante, mas que não seriam irrecusáveis pelo aderente. 17 O CDC, no art. 54, determina que os contratos de adesão sejam escritos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar a sua compreensão pelo consumidor. 15 16 15 Artigo 1 que conste do rótulo de alimentos geneticamente modificados a figura do triângulo amarelo de advertência. Importante salientar que o reconhecimento da vulnerabilidade independe do nível econômico, social ou intelectual do consumidor. Também não admite prova em contrário, não é questionável e não pode ser suprida, uma vez que é um princípio e não uma presunção legal. É uma qualidade intrínseca, peculiar, ingênita, imanente e indissociável de todos que se colocam na posição de consumidor. Na verdade se admite, mesmo, que aqueles que não são consumidores lato sensu (art. 2º do CDC) possam, demonstrando sua vulnerabilidade, receber a proteção prevista naquela legislação (art. 29 do CDC). Deve-se frisar, ainda, que o princípio da vulnerabilidade do consumidor tem natureza jurídica de direito material, que busca evidenciar o significado daquela situação em que alguém se encontra frágil ou fraco em relação a uma situação ou alguém. Na lição de Silva18, a palavra princípio exprime uma noção de “mandamento nuclear de um sistema”, nos quais confluem valores e bens eleitos pelo legislador, constituindo-se em preceito básico da organização do sistema e a matriz de todas as outras normas constantes de lei. Nesse diapasão, o princípio da vulnerabilidade do consumidor é um dos pilares do Código de Defesa do Consumidor, que serve de base para todo o sistema, sendo uma diretriz orientadora para a consecução dos objetivos colimados por este. Sua adoção implica em considerar o consumidor como centro do universo jurídico e a vulnerabilidade impossibilita a redução do consumidor à condição de mero objeto do mercado ou dos fornecedores19. É uma diretriz material para a identificação de direitos implícitos, seja de cunho defensivo, seja prestacional, funcionando como um limitador das atividades dos fornecedores. Constitui-se não só numa garantia de que o consumidor não será objeto de manipulação que o reduzam à condição de objeto, mas também num dever de pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo e/ou da coletividade. Enfim, é um princípio que embasa os posicionamentos jurídicos subjetivos, isto é, as normas definidoras dos direitos, garantias e deveres constantes do Código de SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 84. PROCESSUAL CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR – indenização por acidente de trânsito – sentença condenatória prolatada em favor do consumidor – intervenção de terceiro que impossibilita a consecução imediata do direito material do consumidor – enaltecimento do princípio da vulnerabilidade. Não deve ser admitida a intervenção de terceiro quando já proferida a sentença, na medida em que a anulação do processo, para permitir o chamamento da seguradora, acabaria por retardar o feito, prejudicando o consumidor, o que contraria o escopo do sistema de proteção do consumidor, (AGA 184616/RJ; agravo regimental no Agravo de Instrumento – 1998/0025532-0). 18 19 16 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Defesa do Consumidor, sendo decorrente dos princípios gerais da atividade econômica estabelecidos no art. 170,V, da constituição Federal de 1988. É parâmetro para sua aplicação, interpretação e integração do código. Por fim, cumpre destacar que o princípio da vulnerabilidade apresenta-se consubstanciado principalmente nos artigos 6º, VIII – que possibilita a inversão do ônus da prova; 12, 13 e 14 – que disciplina a responsabilidade dos fornecedores em danos por acidente de consumo; 38 publicidade; 39, IV – – – que determina necessidade de informações verdadeiras na proteção do consumidor mais fraco contra práticas abusivas; 46 que desobriga o consumidor quando da imposição de contratos de que não tenham conhecimento prévio; 47 – que impõe o critério de interpretação em favor do consumidor das cláusulas contratuais; 48 – que obriga o cumprimento dos escritos; 51 § 4º – que confere competência do MP para postular contra cláusulas potestativas nos contratos. 3 Da hipossuficiência do consumidor De acordo com o exposto no item anterior, o Código de Defesa do Consumidor visa a equilibrar a relação contratual entre fornecedor e consumidor. Para tanto, estabeleceu uma série de direitos básicos ao consumidor20, dentre os quais – artigo 6º, VIII – o da facilitação da defesa de seus direitos, no qual se insere a possibilidade de inversão do ônus probatório. Caldeira21 explica que, para se entender o porquê da inversão do ônus da prova, mister se faz aludir ao caput e ao inciso I do artigo 5º da Constituição Federal de 198822, que estabelece o princípio da isonomia. Escreve: Art. 6º - São direitos básicos do consumidor: I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificações corretas de quantidades, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos; VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, técnica aos necessitados. VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; IX – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. 21 CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Inversão do ônus da prova. In: Revista de direito do consumidor. v. 38, p. 169. 22 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (...) 20 17 Artigo 1 A fim de atender ao princípio da isonomia, foi que o Código de Defesa do Consumidor adotou vários mecanismos destinados a colocar o consumidor em posição de igualdade com o fornecedor, numa busca desenfreada à igualdade real – e não só formal. Primeiro passo foi o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (...). Entrementes, o reconhecimento da fraqueza do consumidor perante o fornecedor, ante uma relação jurídica, não se fazia suficiente para a implementação do princípio da isonomia. Era necessário, ainda, um tratamento desigual diante de uma relação processual. Assim, o Código estatuiu, como um dos direitos básicos do consumidor, o direito à facilitação da defesa, sendo certo que, para tanto, possibilitou a inversão do ônus da prova como meio mais viável de atingir essa facilitação. Conclui-se que o objetivo de se instituir a possibilidade de inversão do ônus da prova é não só colocar o consumidor em igualdade com o fornecedor, mas garantir-lhe uma efetiva e adequada proteção processual. Moreira23 afirma que a possibilidade de inversão do ônus da prova consiste em atribuir ao consumidor uma vantagem processual, consubstanciada na dispensa do ônus de provar determinado fato, o qual sem a inversão deveria demonstrar, transferindo o encargo de provar, que os fatos não aconteceram ao fornecedor. Desse modo, a inversão significa isenção de ônus para o consumidor e criação de ônus probatório ao fornecedor. Essa possibilidade fica evidente quando se trabalha com relações de consumo cujo objeto sejam os desenvolvimentos biotecnológicos. Como se poderia exigir do consumidor a demonstração de elementos tecnológicos que, na maior parte das hipóteses, sequer compreenda? Imagine-se, por exemplo, a necessidade de se demonstrar a existência de vício em relação à qualidade do produto (por exemplo, pela ausência de informação sobre a presença de transgenia) ou, mesmo, a de que tal tipo de produto pode ser o responsável por determinada alergia que tenha sido desenvolvida. Essa inversão, porém, não se dá de forma automática e só pode ser concedida, a critério do juiz, em duas situações processuais específicas: quando for verossímil24 a alegação do consumidor ou quando este for hipossuficiente25. Carlos Roberto Barbosa Moreira, no artigo aqui citado, explica que a verossimilhança se assenta num juízo de probabilidade, que resulta da análise dos motivos que lhe são favoráveis e desfavoráveis, que aumentam ou diminuem conforme prevalecem os de um ou outro. Estará esse juízo autorizado quando formar, pelo material probatório à sua disposição no processo, um juízo de probabilidade que se lhe afigure provavelmente verdadeira a alegação do consumidor. 24 Carlos Roberto Barbosa Moreira, no artigo aqui citado, explica que a verossimilhança se assenta num juízo de probabilidade, que resulta da análise dos motivos que lhe são favoráveis e desfavoráveis, que aumentam ou diminuem conforme prevalecem os de um ou outro. Estará esse juízo autorizado quando formar, pelo material probatório à sua disposição no processo, um juízo de probabilidade que se lhe afigure provavelmente verdadeira a alegação do consumidor. 25 É o entendimento jurisprudencial: 1. CORREÇÃO MONETÁRIA – prestação - casa própria – SFH – aplicação – plano de equivalência salarial 23 18 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Caldeira26 afirma que não há consenso na doutrina e jurisprudência27 sobre a extensão do conceito de hipossuficiência, que pode ser entendida ora como econômica, ora como técnica, ora englobando os dois enfoques. Criticando a visão que a restringe ao enfoque econômico, analisa a autora: O reconhecimento da hipossuficiência com base no poderio econômico é tão absurda, quanto insustentável. Primeiramente, precisamos saber se se trata de economicamente fraco em relação ao fornecedor ou em relação ao processo. Sim, pois, para beneficiar o “pobre” não seria necessária a inversão, bastaria a determinação judicial de que o fornecedor arcasse com eventuais custos para a produção de provas, tais como as periciais, o que, diga-se, não é ônus para fins de aferição de provas. Gidi28, questionando quando o consumidor pode ser considerado hipossuficiente, observa “que o principal aspecto que desponta no contexto da inferioridade do consumidor em relação ao fornecedor, no que diz respeito à produção probatória, está na desigualdade que existe quanto à detenção dos conhecimentos técnicos inerentes à atividade deste”. Conclui, então, que a hipossuficiência está relacionada com a falta de conhecimentos técnicos específicos da área de atividade do fornecedor. Tomando em conta esse aspecto da hipossuficiência, reflete sobre os limites de possibilidades da inversão do ônus da prova: Assim, se está correto que a hipossuficiência do consumidor é relacionada com a falta de conhecimentos técnicos específicos da atividade do fornecedor, afigura-se de clareza meridiana que somente em relação a tais conhecimentos é legítima a inversão do ônus da prova. É preciso, como se vê, haver uma correlação racional entre a diferença que existe especificamente entreconsumidor,fornecedoreoefeitobenéficoconcedidopeloordenamento.Casocontrário,a afronta ao princípio da igualdade das partes será manifesta. – vinculação, vencimento – categoria profissional – necessidade – apreciação do contrato – favorecimento do mutuário. Ementa: (...) a denominada inversão do ônus probandi a que se refere o inciso VIII do ar. 6º do CDC, fica subordinada ao critério do juiz quando provável ou quando hipossuficiente o consumidor, segundo regras ordinárias de experiência. Depende, portanto, de circunstâncias concretas a serem apuradas pelo juiz no contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor (...). (RESP 85521 –PR, RESP 77788-SC (STJ) 2. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – publicidade enganosa – indenização – ônus da prova – inversão – artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor – Inaplicabilidade, tendo em vista a falta de verossimilhança na alegação e de hipossuficiência do consumidor – recurso não provido. (AC 238.799-2, São Paulo, apelante: Luciana Buchmann Freire, apelada: Cia. Territorial e de Turismo de São Francisco dos Campos do Jordão). 26 Idem. p. 174-175. 27 Entende a jurisprudência a hipossuficiência: 1. PROVA – ônus – inversão – hipossuficiência de consumidor – artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor – recurso não provido. Acórdão: (...) “Consta de fls. 162 declaração de pobreza firmada, pela ré, para obtenção de benefícios de justiça gratuita, o que enseja crer que é hipossuficiente” (AC 254.767-2, São Paulo, apelante: Associação de Médicos de São Paulo Consult Assistência Médica e Cirúrgica S.C. Ltda., apelada: Maria Romão Naveiro Parondi). 28 GIDI, Antônio. Aspectos da inversão do ônus da prova no Código do Consumidor. In: Revista de direito do consumidor. v. 13, p. 35 a 37. 19 Artigo 1 Assim postas as coisas, no amplo espectro de fatos jurídicos que exigem prova por parte do consumidor-autor, como a existência do dano, o montante do prejuízo, o nexo de causalidade, a culpa (nos casos de responsabilidade subjetiva) e mesmo a efetiva ocorrência de fato ilícito, nem todos poderão ser objeto de inversão do ônus da prova. Somente aqueles fatos diretamente relacionados com a hipossuficiência do consumidor ensejam a inversão legítima do ônus da prova. Sansone29 destaca que a hipossuficiência “muito tem a ver com a impossibilidade de o consumidor provar algo a seu favor, por não dispor de conhecimento técnico necessário para a produção de tal prova ou por não encontrar e deter meios para melhor demonstrá-la”. Comenta a autora: a inversão, todavia, não se configura ônus excessivo ao fornecedor, justamente porque, se ela for decretada, significa ser o consumidor hipossuficiente e, por outro lado, capaz de produzir provas, se elas existirem, beneficiando-se do seu próprio conhecimento técnico e utilizando os meios de sua atividade profissional. Sobre a extensão do conceito, Moreira30 entende que este “deva ser elaborado a partir da finalidade da norma, que é de tornar mais fácil, no campo específico da instrução, a defesa dos direitos do consumidor”. No que se refere ao aspecto puramente econômico, argumenta que, embora não comungue do entendimento de que a hipossuficiência se equivale à mera ausência de recursos financeiros, reconhece que, em muitos casos, configurada a condição de juridicamente necessitada, estará esta caracterizada quando a prova depender de gastos não cobertos pela isenção dada pela justiça gratuita31. Dos vários conceitos de hipossuficiência expostos, pode-se concluir que, embora este inclua o aspecto econômico, o objetivo desse instituto no Código não é só o de proteger a parte economicamente mais fraca, mas garantir a todo consumidor, seja qual for seu nível econômico, o amplo acesso à justiça, através de uma tutela jurisdicional efetiva e adequada à defesa de seus direitos. SANSONE, Priscila David. A inversão do ônus da prova na responsabilidade civil. In: Revista de direito do consumidor. v. 40, p. 154. Idem, p. 143. 31 A Lei 1.060/50 estabelece os critérios e os limites da justiça gratuita. Diz o artigo 3º dessa lei: “A assistência judiciária compreende as seguintes isenções: I - das taxas judiciárias e dos selos; II - dos emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça; III - das despesas com publicações no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais; IV – das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo contra o poder público federal, no Distrito Federal e nos Territórios, ou contra o poder público estadual, nos estados; V – dos honorários de advogados e peritos. 29 30 20 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Em consonância com os princípios do Código, visa ao equilíbrio contratual, e não, apenas, econômico entre o consumidor e fornecedor. Conforme conclui Caldeira32, a possibilidade de inversão do ônus da prova, quando caracterizada a hipossuficiência, “visa a auxiliar aquele que não tem condições sequer de dialogar com o fornecedor, pois não entende ou nada sabe sobre o produto, não tendo subsídios para realizar provas que comprovem o seu direito”. 4 Transgênicos: o dever de informar Decorrência efetiva do princípio da vulnerabilidade é o dever de informação íncito em qualquer relação de consumo. Nas relações de consumo envolvendo organismos geneticamente modificados, esse dever é decorrência estrita do princípio da boa-fé objetiva e da legislação atualmente em vigor. Nos termos da Lei n° 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), o consumidor tem o direito de ser devidamente informado sobre qualquer produto, e a informação fornecida deve ser adequada, precisa e clara (art. 6 º, inciso III). A clareza da informação não é apenas um resultado de boa-fé, mas mais importante, é o resultado de colocar o princípio da transparência na ação (artigo 4). A ideia central do CDC é estabelecer uma relação mais sincera e menos danosa entre consumidores e fornecedores. Assim, afirma que os fornecedores não devem comercializar quaisquer produtos que são arriscados para a saúde do consumidor ou de segurança, exceto aqueles que são conhecidos por ser assim e que os consumidores compram sob próprio risco e, mesmo assim, o fabricante deve fornecer as informações necessárias e adequadas relativas ao produto e seus possíveis riscos, o que é necessário no caso de OGM (artigo 8º). Da mesma forma, o artigo 9 º afirma claramente que o fornecedor de produtos potencialmente perigosos ou nocivos e de serviços devem informar claramente sobre esses aspectos de seus produtos, sem prejuízo da adoção de quaisquer outras medidas aplicáveis em cada caso concreto. Mais uma vez, a preocupação do legislador pode ser vista em relação a informações claras sobre questões de segurança que, deverão ser disponibilizadas ao consumidor. A legislação de defesa do consumidor brasileiro está preocupada com as informações mesmo na publicidade. O resultado eficaz do princípio da vulnerabilidade é o dever de incitamento a quaisquer informações sobre o consumo. Nas relações que envolvam OGM, esse imposto é devido estritamente ao princípio da boa-fé e responsabilidade objetiva. Estranhamente, contudo, foi aprovado, pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n. 4.148/2008, que 32 ibiden. p. 175 21 Artigo 1 altera a redação da Lei n. 11.105/2005, sobre as normas de segurança de organismos geneticamente alterados (OGMs). O referido projeto havia sido apensado a outro (PL n. 5.848/2005) cuja redação foi considerada inconstitucional. A justificativa para a alteração legislativa é a correta informação do consumidor, em consonância com a legislação já existente, evitando-se a “politização” da discussão e a utilização da rotulagem como forma de “contrapropaganda”. A atual redação da Lei n. 11.105/2005, já prevê, em seu artigo 40, que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal contenham a informação sobre a presença ou não de organismos geneticamente alterados. Condiciona a rotulagem a posterior regulamento. Interessante notar que já havia regulamentação a respeito (Decreto n. 4.680/2003). Em grande medida a ausência de eventual regulamentação sobre rotulagem não desobrigaria o fornecedor de prestar a mais completa e adequada informação sobre os ingredientes dos produtos que comercializa. Eis que a afirmação que se sustentaria não apenas no princípio da boa-fé objetiva (transparência, lealdade e informação), mas igualmente no princípio da vulnerabilidade. Note-se, por exemplo, que o CDC consagra o dever de informação como princípio basilar da política nacional das relações de consumo (art. 4º, IV) e como direito básico do consumidor (art. 6º, III). Quanto ao último aspecto, aliás, o dispositivo é amplo o suficiente para permitir supor que esse dever abrange as especificidades dos alimentos produzidos a partir de OGMs (vide os termos “características”, “composição”, “qualidade” e “riscos”). Parece claro, portanto, que, sob qualquer análise, seja sobre os percentuais utilizados na elaboração do produto, seja sobre os eventuais riscos à saúde, deve o fornecedor prover as indispensáveis informações. Não bastasse essa interpretação, o mesmo CDC prevê o dever de o fornecedor manter (e disponibilizar em interpretação sistêmica) dados técnicos e científicos que sustentem a publicidade que veicular (art. 36, parágrafo único). Sendo certo, ainda, que qualquer publicidade omissa possa ser considerada enganosa (art. 37, §§1º e 3º). O artigo 30 prevê que qualquer informação ou publicidade sobre um produto em qualquer forma dos meios de comunicação devem ser precisas e que o fabricante deve estar preparado para manter essa informação quando um contrato é realizado. O artigo 31 afirma que todas as informações sobre produtos ou serviços e suas características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem devem ser claras, corretas e precisas, e este é também o caso quando se trata de consumidor, saúde e segurança. 22 Poder-se-ia, nesta medida, indagar quais as consequências do eventual Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado desrespeito a tais disposições. Ao lado das conseqüências cíveis, por exemplo, indenização pelos danos causados ou pela quebra do dever de boa-fé (objetiva, ligada à informação), o próprio CDC prevê sanções administrativas para tal omissão (multas e proibições de comercialização) e sanções penais (art. 66, detenção e multa). Em certa medida, então, parece injustificada a redação proposta para os §§ 2º e 3º do art. 40 da Lei n. 11.105/2005. Isso porque, segundo o mencionado projeto de lei, a informação sobre a ausência de OGMs estaria condicionada à existência de similares “transgênicos” e à comprovação por análise específica daquela condição. Além disso, propõe-se que toda e qualquer regulamentação sobre informação esteja condicionada ao disposto na redação projetada. Ora, admitindo-se que tal redação seja aprovada definitivamente, estar-se-ia diante de verdadeira inversão da lógica de proteção ao consumidor e de ampliação de sua consciência, educação e consumo responsável. Isso porque negar ou limitar ao consumidor a informação sobre o conteúdo dos alimentos que consome não contribui para seu esclarecimento ou evita a “politização” da rotulagem. Se há receio de que os produtores de alimentos que utilizem OGMs sejam prejudicados, eis tutela a ser realizada em sede de direito concorrencial. Nessa medida, seria solicitado que as consequências em caso de falha em cumprir tais disposições não estejam junto com as consequências cíveis, por exemplo, indenização por danos ou por violação do dever de boa-fé (objetiva, ligado às informações). O mesmo código prevê sanções administrativas para tais omissões (multas e proibição de comercialização) e penalidades (art. 66 , detenção e multa). É o Decreto 4.680-2003 que regulamenta o direito do consumidor ser informado, garantida pelo Código de Defesa do Consumidor. O decreto torna obrigatória rotulagem de alimentos geneticamente modificados. Necessário esclarecer que rotulagem de OGM não deve ser confundida com segurança. No Brasil, se o OGM não é considerado seguro para o consumo, não será autorizado para comercialização. Somente os alimentos geneticamente modificados ou de alimentos considerados seguros serão marcados, pois a rotulagem é parte do direito do consumidor de ser devidamente informado, para manter sua liberdade de escolha. O artigo do CDC, 2, afirma que, quando é comercializado o alimento e/ou ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM, que constituem mais de um por cento do produto, o consumidor deve ser informado da natureza da GM do produto. O decreto também estabelece que o consumidor deve ser informado sobre o tipo de gene utilizado para criar os OGMs, que devem ser incluídos na lista de 23 Artigo 1 ingredientes. Quanto aos alimentos e ingredientes produzidos a partir de animais que foram alimentados com ração contendo ingredientes transgênicos, os dados devem ser incluídos na parte principal da etiqueta e atender aos requisitos de tamanho e destaque, tal como referido no artigo 2º. Assim: “(nome do animal) alimentado com ração contendo ingrediente transgênico ou (nome do ingrediente) produzido a partir de animais alimentados com ração contendo ingredientes transgênicos “. Quanto aos alimentos e ingredientes alimentares que não contenham OGM ou que não foram produzidos a partir de OGM, o rótulo deve conter” (nome do produto ou ingrediente) livre de transgênicos”, desde que exista um produto similar transgênico no mercado brasileiro. Notas conclusivas O Código de Defesa do Consumidor tem a finalidade de equilibrar as relações contratuais entre consumidores e fornecedores. Reconhece que o consumidor é a parte mais fraca dessa relação e, por isto, busca protegê-lo. Esse tipo de tutela é extremamente importante em tempos em que as relações de consumo também estão sujeitas aos rigores das inovações tecnológicas. É fato que há descolamento do conhecimento tecnológico e capacidade cognitiva do consumidor. Este nem sempre é capaz de compreender as consequências de seus hábitos de consumo, mesmo se determinado produto ou serviço possa vir a ser danoso à sua saúde. Para efetivar essa proteção parte-se do princípio de que todo e qualquer consumidor – pobre ou rico, culto ou ignorante, pessoa física ou jurídica, indivíduo ou coletividade – é vulnerável, ou seja, pode ter sua livre e consciente manifestação de vontade atacada pelas práticas comerciais, pela ausência de conhecimento e pela vedação ao acesso à informação. Esse reconhecimento é o que embasa e justifica a existência do sistema protetivo ao consumo, servindo de norte para as normas por ele estabelecidas. Com o escopo de proteger o consumidor é que foram conferidos seus direitos básicos, dentre os quais está o da facilitação da defesa de seus direitos, através de tutela jurisdicional efetiva e adequada, o que possibilita a inversão do ônus da prova quando o consumidor é hipossuficiente. Nesse contexto, verifica-se que a vulnerabilidade é uma característica geral de todos os consumidores. Já a hipossuficiência é uma condição específica de determinados consumidores que não têm condições, econômica ou técnica, de fazer prova de seu direito. 24 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado Diferenciando os dois institutos, escreve Arruda Alvim33: a vulnerabilidade do consumidor não se confunde com a hipossuficiência que é a característica restrita aos consumidores que, além de presumivelmente vulneráveis, se veem agravados nessa situação por sua individual condição de carência cultural, material ou, como ocorre com frequência, ambas. Benjamin34 diferencia os institutos de forma diferente: O consumidor é reconhecidamente vulnerável no mercado de consumo (art. 4º, I). Só que, entre todos os que são vulneráveis, há outros cuja vulnerabilidade é superior à média. São os consumidores ignorantes e de pouco conhecimento, de idade pequena ou avançada, de saúde frágil, bem como aqueles cuja posição social não lhes permita avaliar com adequação o produto ou serviço que estão adquirindo. Em resumo: são os consumidores hipossuficientes. A vulnerabilidade é uma condição material e geral imposta pela lei. Já a hipossuficiência é matéria meramente processual, analisada exclusivamente para fins de inversão de ônus da prova. Sobre essas diferenças, argumenta Caldeira35: a condição de vulnerável é imposta ao consumidor por determinação legal, isto é, todos são vulneráveis porque assim manda a lei. Trata-se de uma presunção legal absoluta, não admitindo prova em contrário. Aliás, justamente por ser o consumidor vulnerável, a parte fraca da relação, é que se sentiu a necessidade de uma legislação que equilibrasse esta situação de desvantagem. Já a hipossuficiência é uma condição a mais, ou seja, há consumidores que, além de vulneráveis, possuem um plus, que os torna mais vulnerável ainda, deixando-os impossibilitados de realizar a prova dos fatos constitutivos de seus direitos. Neste último caso, é o juiz quem decidirá se o consumidor – pessoa física ou jurídica – é ou não hipossuficiente, conforme as peculiaridades do caso concreto, bem como as alegações do autor, sendo certo que, reconhecida tal condição , esta beneficiará o consumidor apenas no que diz respeito à facilitação de sua defesa, sendo-lhe concedida a inversão do ônus da prova. Ou seja, a hipossuficiência não é requisito determinante da condição do consumidor, serve, apenas, para efeito de prova. Por fim, a vulnerabilidade é um princípio admitido pelo Código de Defesa do Consumidor. É um ponto de partida para o estabelecimento e interpretação das ARRUDA ALVIM, José Manoel de et al. Código do Consumidor anotado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 45 34 GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária., 1998. p. 300. 35 op. cit. p. 176. 33 25 Artigo 1 normas nesse contidas. É um limitador das atividades dos fornecedores – não pode ser suprido ou afastado. De outro modo, a hipossuficiência é um juiz, uma conclusão à que se chega analisando as características individuais de um consumidor. É um benefício legal, que pode ser suprido e revogado. Embora sejam institutos diferentes, vulnerabilidade e hipossuficiência têm um traço em comum: são dispositivos utilizados pelo Código de Defesa do Consumidor para a proteção, garantia e efetivação dos direitos do consumidor. Em se tratando de relações de consumo que envolvam organismos geneticamente modificados, o dever de adequada informação (instrumento de proteção da vulnerabilidade) e o mecanismo da hipossuficiência representam efetiva forma de tutela do consumidor, para além de regulamentações casuísticas e de interesses meramente econômicos. Referências ALMEIDA, João batista de. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1993. AMARANTE, Maria Cecília Nunes. Justiça ou equidade nas relações de consumo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997. ARRUDA ALVIM, João Manuel de et al. Código do consumidor comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. BONATTO, Cláudio. MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no código de defesa do consumidor. 2. ed. Porto alegre: Livraria do Advogado, 1999. CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Inversão do ônus da prova. In: Revista de direito do consumidor, n. 38, São Paulo, RT, p. 169. CARVALHO, Sylvio Vicente de. O direito do consumidor. Porto Alegre: Sagra Luzzatto Editores, 1997. FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2001. GIDI, Antônio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor. In: Revista de direito do consumidor, São Paulo, v. 13, p. 35 a 37. GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. 26 Transgênicos e Vulnerabilidade no Direito do Consumidor: o Direito a ser Informado MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 1998. NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O código de defesa do consumidor e sua interpretação jurisprudencial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. OLIVEIRA, Juarez de (Coord.). Comentários ao código de proteção ao consumidor. São Paulo: saraiva, 1991. PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do código de defesa do consumidor. In: Revista dos tribunais, São Paulo, RT, v. 666, abr. 1991, p. 48-53. SANSONE, Priscila David. A inversão do ônus da prova na responsabilidade civil. In: Revista de direito do consumidor, v. 40, p. 154. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. 27 28 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho Ana Beatriz Ramalho de Oliveira Ribeiro1 Introdução. 1 O poder potestativo do empregador e o limite imposto por ações afirmativas de políticas de discriminação positiva à contratação de empregados. 2 As ações afirmativas de políticas de discriminação positiva nas relações de trabalho. 3 O sistema de cotas ou de reserva legal de vagas no Brasil. 4 Vagas para reabilitados ou pessoas portadoras de deficiências. 5 Dados estatísticos da efetividade do sistema de cotas no mercado formal de trabalho. Considerações finais. Referências. Resumo No intuito de diminuir as diferenças de oportunidades existentes na sociedade, bem como de compensar todas as perdas acumuladas desde o passado de grupos de indivíduos negativamente discriminados, o legislador cuidou de justificar a necessidade de tratamento diferenciado a esses, criando políticas de reservas de vagas ou sistemas de cotas. Nesse sentido, a política de cotas adotada pelo ordenamento jurídico pátrio foi um avanço, já que procura a inclusão no mercado de trabalho formal de maior número de cidadãos, sobretudo aqueles historicamente discriminados. Contudo, por não haver nenhum tipo de incentivo, mas tão somente punição ao empregador que não cumpre as cotas, tais políticas, por vezes, não se mostram tão eficazes, apresentando-se em forma de limitação, restrição ao poder potestativo do empregador em eleger quem admitir e manter em seu quadro de empregados. O presente estudo, portanto, tem por 1 Mestranda no curso de direito empresarial e cidadania pelo Centro Universitário Curitiba. Possui graduação em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1995). Atualmente é advogada – Gomes Coelho & Bordin Sociedade de Advogados e professora da Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco. Tem experiência na área de direito, com ênfase em direito do trabalho, atuando principalmente no direito empresarial. E-mail: [email protected] 29 Artigo 2 objetivo analisar, primeiramente, o poder potestativo do empregador e sua limitação frente às políticas de discriminação positiva e imposição de cotas para contratação de pessoas com deficiência e, ainda, estatisticamente, perquirir se há efetividade e eficácia da referida medida nas relações de trabalho. Abstract In order to reduce the differences in opportunities in society, as well as to compensate all losses accumulated since the past of groups of individuals negatively broken down, the legislator cared to justify the need for differential treatment to these, creating policies for reservations of places or quota systems. Accordingly, the policy of quotas adopted by the legal system paternal was a step forward, since demand the inclusion in the labor market formal greater number of citizens, especially those historically discriminated against. However, that there is no type of incentive, but that punishing the employer does not meet the quotas, such policies, sometimes, are not as effective, presenting in the form of limitation, restriction to power potestativo the employer’s elect who admit and maintain in its table of employees. This study, therefore, aims to analyze, firstly, the power potestativo of employer and its limitation front to the policies of positive discrimination and the imposition of quotas for hiring persons with disabilities, and yet, statistically, perquirir if there is effectiveness and efficacy of the measure in working relationships Palavras-chave: poder potestativo do empregador, ações afirmativas, direito do trabalho, políticas de discriminação positiva. Introdução Em recente publicação do jornal Valor Econômico, de 25/6/2010, a autora do texto, Luiza de Carvalho, assim informou: A Justiça do Trabalho de São Paulo está mais flexível com as empresas em relação ao cumprimento da Lei n. 8.213, de 1991. A norma estabelece cotas para as companhias contratarem portadores de deficiência. A 70ª Vara do Trabalho de São Paulo cancelou uma autuação de R$ 38 mil a uma empresa de telecomunicações por não cumprir a cota de 4% dos portadores de deficiência em seu quadro. A Justiça levou em consideração a dificuldade em encontrar portadores no mercado em número suficiente para preencher a cota, reconhecendo os esforços apresentados pela empresa no processo. Efetivamente, essa é uma questão recorrente na atualidade. Pela Lei 8.213/91, as empresas com mais de 100 empregados são obrigadas 30 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho a contratar pessoas portadoras de deficiência, a fim de cumprir a cota que a lei lhe impõe, resultado de uma ação afirmativa de política de discriminação positiva. É certo que algumas hipóteses injustificadamente discriminatórias, observadas pela sociedade, merecem tratamento legal, via “discriminações positivas”, ou “ações afirmativas”, instrumentando a inserção de trabalhadores no mercado formal de trabalho. A lei brasileira, assim, por estímulo constitucional, estabelece ações afirmativas categóricas nesse sentido, fixando cotas de reserva de vagas. De certa forma, pode-se dizer que a fixação de cotas vem a restringir parte do poder potestativo do empregador, que se vê obrigado a contratar determinado número de empregados portadores de deficiência, por exemplo, independentemente de sua vontade. Todavia, as empresas, até mesmo em razão de fiscalização e autuações, vêm tentando se adequar à “nova” realidade. Na verdade, realidade não tão “nova” assim, já que as cotas foram previstas na lei que consolida a legislação que dispõe sobre os Planos de Benefícios e Custeio da Previdência Social e sobre a organização da Seguridade Social, publicada em 1991. Contudo, somente após a entrada em vigor do Decreto 3.298/99 é que a lei começou a ser exigida em relação às cotas, instigada pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e também pelo Ministério Público do Trabalho. Na prática, contudo, a obrigação legal da empresa esbarra em algumas dificuldades, como ter que se adaptar fisicamente para receber e dar condições de trabalho dignas aos trabalhadores que requerem cuidados especiais, bem como encontrar mão de obra qualificada e disponível para ocupar suas vagas de emprego. O presente estudo, portanto, tem por objetivo analisar, primeiramente, o poder potestativo do empregador e sua limitação frente às políticas de discriminação positiva e imposição de cotas para contratação de pessoas com deficiência e, ainda, estatisticamente, perquirir se há efetividade e eficácia da referida medida nas relações de trabalho. 1 O poder potestativo do empregador e o limite imposto por ações afirmativas de políticas de discriminação positiva à contratação de empregados A Consolidação das Leis do Trabalho estabelece, em seu artigo 2º, que empregador é a empresa individual ou coletiva (e aqueles a ela equiparados) que, por suportar os riscos da atividade econômica, está investido do poder de admitir, assalariar e dirigir a prestação pessoal dos serviços. Essa prerrogativa é conhecida como “poder potestativo”. Dentre os requisitos do artigo 3º da CLT, que caracterizam a relação de emprego, o principal é a existência de subordinação jurídica entre empregado e empresa. 31 Artigo 2 A subordinação é o elemento específico e nuclear da relação de emprego, marco distintivo das demais relações jurídicas que envolvam a prestação de trabalho. O empregador detém o poder, porquanto é o proprietário dos meios de produção, controla juridicamente o conjunto da estrutura empresarial e assume os riscos da atividade empresarial, dentre outros. Assim, o empregador, que exerce um empreendimento econômico, reúne em sua empresa os fatores de produção, desempenhando sua função social, assumindo os riscos da atividade econômica, daí decorrendo, sem dúvida, seu poder potestativo e seu direito de dispor daqueles fatores de produção. A manifestação do poder potestativo do empregador2 está inicialmente na própria organização, sob a estrutura hierárquica – o que, quando e como produzir – assentada em pressupostos legitimantes como a liberdade econômica e o direito de propriedade. A vontade da empresa é determinante, podendo servir-se da força de trabalho colocada à disposição por força do contrato, cercada por alguns limites, conforme melhor interesse ao atingimento da finalidade econômica. Contudo, tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido que a finalidade da empresa deve ser vista para além da obtenção de lucros, gerar empregos e fomentar a economia (finalidade econômica), pois como um ente social que desempenha importante papel na sociedade, constitui-se em meio de inserção social e identificação pessoal do trabalhador, exercendo uma inegável função social. Ademais, se o poder potestativo, conforme entende a doutrina dominante, emana do contrato de trabalho, deve atender à função social do contrato prevista no art. 421 do Código Civil de 2002, que preceitua: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Nesse sentido, o ordenamento jurídico tem cuidado de balizar os limites ao exercício do poder potestativo de sorte que a empresa possa desfrutar desse poder sem prejuízo ao respeito à dignidade humana e à preservação de sua função social, todos princípios constitucionais conquistados pela sociedade. Sim, segundo Aldacy Coutinho3: [...] desenvolvido o direito econômico, o estado passou a intervir na atividade empresarial, regulamentando problemas relacionados com a distribuição e produção de bens e serviços, visando assegurar o atendimento das necessidades dos integrantes da sociedade. COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder punitivo trabalhista. São Paulo: LTr, 1999. p.52. Id. 1999. p. 59/60. 2 3 32 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho O estado, sim, reconheceu a propriedade privada e a livre iniciativa elevando-as à categoria de norma constitucional, mas também ditou algumas regras de controle ao seu exercício. [...] De qualquer sorte, o direito não fecha os olhos à empresa, reconhecendo-a no papel social que hoje desempenha e atribuindo-lhe função, embora não a tenha tomado, de forma clara, como ente capaz de ser sujeito de direito e obrigações, mas reconhecendo-a como fenômeno econômico-social, no qual se travam relações jurídicas. Protege o capital, mantendo a dominação sob ameaça de punição.4 Convivem hoje num único corpo uma constituição econômica e uma social; no primeiro plano a liberdade de iniciativa e o direito de propriedade sobre o capital e o lucro; num plano diverso, o trabalho, como direito social, com a garantia de uma remuneração que atenda às necessidades do trabalhador como retribuição, indicada idealmente como justa, o reconhecimento do direito ao trabalho, o respeito e dignidade ao trabalhador. Destarte, paulatinamente foram instituídas, e ainda há projetos de instituição, de novas políticas de discriminação positiva também relacionadas ao trabalho. Atualmente, o empregador vê-se limitado em seu poder potestativo à contratação e manutenção de seus empregados, através de leis fixadoras de cotas, tanto para aprendizes, quanto para pessoas com deficiências, sendo que há projeto de lei para também serem fixadas cotas de negros nas empresas. Nesse estudo, cuidaremos de analisar especificamente o vigente sistema de cotas para pessoas portadoras de deficiências. 2 As ações afirmativas de políticas de discriminação positiva nas relações de trabalho É fato que há, no mundo do trabalho, explícitas ou veladas práticas excludentes de mão de obra, fundadas em preconceitos e discriminações de variados matizes, malgrado o existir de normas constitucionais e infraconstitucionais que colimem proibi-las. Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro modo, pedem ações afirmativas. Joaquim B. Barbosa Gomes5, Ministro do Supremo Tribunal Federal, observa que as ações afirmativas: COUTINHO. 1999. p. 60/61. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade; 2001. p. 6-7. 4 5 33 Artigo 2 Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos acumulados em virtude das discriminações ocorridas no passado. Nesse sentido, há políticas e normas – legais e normativo-sindicais – que procuram assegurar, por meio da utilização das discriminações positivas o impessoal acesso ao mercado de trabalho, compulsoriamente ou não. Na opinião de Ana Flávia Osternack6: [...] diante da vulnerabilidade e exclusão social de determinados grupos, verifica-se que o legislador determinou formas de tratamento diferenciado para aplicar a igualdade de fato invertendo o próprio conceito de discriminação (negativa) importando beneficiar uma minoria, “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”. Assim, para a concretude do princípio da igualdade foram normatizadas medidas, diante de critérios biológicos, sócio-econômicos e sociais, no intuito de proporcionar igualdade de oportunidades às minorias vulneráveis, aqui também denominados ‘excluídos’ Este tratamento diferenciado deu ensejo a um novo paradigma do termo discriminação, a chamada discriminação positiva. Portanto, é discriminando positivamente determinados grupos que se alcança a igualdade justa e almejada pela sociedade. Confere-se relevo às estatísticas oficiais e levantamentos doutrinários a respeito das desigualdades no Brasil, e “as políticas públicas ou privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de etnia e de compleição física”7, em face das atuais controvérsias registradas sobre o assunto, inclusive as que se relacionam com as denominadas “cotas”, ou reservas de vagas, legalmente estabelecidas. Com efeito, já no seu preâmbulo, a Constituição Federal de 1988 estabelece como objetivo a instituição de um estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais: “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. OSTERNACK, Ana Flávia. Discriminação Positiva. Paraná On Line, publicado em 18.11.2007. Definição de ações afirmativas, segundo Joaquim B. Barbosa Gomes, em sua obra Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade: O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 6 7 34 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho No mesmo sentido, seu artigo 1º estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil a cidadania (inciso II) e a dignidade da pessoa humana (inciso III). E com o mesmo intuito, seu artigo 3º estatui que a República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Grifo nosso). A tanto, importante ressaltar a observação de Carmem Lúcia Antunes Rocha que “os verbos utilizados pelo legislador constituinte para definir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são verbos que evocam ação: construir, erradicar, reduzir, promover etc.”8 Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro modo, pedem ações afirmativas. E essas ações afirmativas devem partir do estado, mas também da Sociedade, conforme o próprio texto constitucional dispõe. Atualmente, há no ordenamento medidas, como o sistema de cotas, tanto para aprendizes, quanto para pessoas portadoras de deficiências, que limitam de certa forma o poder potestativo empresarial, cabendo a todos, estado e sociedade em geral, dar efetividade às mesmas. 3 O sistema de cotas ou de reserva legal de vagas no Brasil Com o intuito, portanto, de discriminar positivamente alguns grupos que historicamente foram desarrazoadamente discriminados, o Poder Público implementou o sistema de cotas, procurando proporcionar a participação de todos os cidadãos no processo democrático e propiciar-lhes o pleno exercício da cidadania. Para uma melhor compreensão acerca do assunto, Gláucia Gomes Vergara Lopes define o sistema legal de cotas: 9 [...] Sistema de reserva legal de vagas ou sistema de cotas é o mecanismo compensatório utilizado para inserção de determinados grupos sociais, facilitando o exercício dos direitos ao trabalho, à educação, à saúde, ao esporte etc. É uma forma de ação afirmativa com intuito de tentar promover a igualdade e o equilíbrio de oportunidades entre os diversos grupos sociais. (Cf. Ação afirmativa – O conteúdo democrático do Princípio da Igualdade Jurídica, Revista Trimestral de Direito Público, 15/1996. 92). 9 LOPES, Glaucia Gomes Vergara. A inserção do portador de deficiência no mercado de trabalho – a efetividade das leis brasileiras. São Paulo: LTr, 2005. Biblioteca LTr Digital. 8 35 Artigo 2 É, portanto, uma política de ação afirmativa pela qual o estado visa a diminuir as diferenças existentes em certos segmentos sociais que se encontram em desvantagem, especialmente aqueles que sofrem algum tipo de discriminação desarrazoada. Ainda, no tocante às ações afirmativas, salienta Cristiane Ribeiro da Silva10: [...] são importantes instrumentos de inclusão social e consistem em medidas que objetivam superar a discriminação em relação a certos grupos fragilizados, como aqueles correspondentes às mulheres, índios, negros e também pessoas portadores de deficiência, proporcionando-lhes igualdade de oportunidades. Efetivamente, com relação à reserva de vagas no trabalho, atualmente, há vigente o sistema de cotas para aprendizes e também de pessoas portadoras de deficiências, sendo esse último, portanto, objeto do nosso estudo. 4 Vagas para reabilitados ou pessoas portadoras de deficiências Fazendo um breve escorço histórico sobre o tema, temos que o sistema de cotas empregatícias para reabilitados ou portadores de deficiência, teve sua origem na Europa, no início do século XX. Ele foi utilizado pelos países que participaram da Primeira Guerra Mundial como um meio alternativo de empregar os ex-combatentes mutilados nos conflitos, que sobrecarregavam seus sistemas previdenciários. Frente a essa situação, em 1923, a OIT – Organização Internacional do Trabalho – publicou uma recomendação na qual aconselhava seus países membros a instituírem leis nacionais que obrigassem entidades públicas e empresas privadas a contratarem ex-combatentes com deficiência. Após vinte e um anos, foi publicada nova recomendação na qual a obrigatoriedade de contratação se estendeu para todas as pessoas com deficiência. Em detrimento a essa recomendação, os países europeus passaram gradativamente a adotar as cotas11. Os primeiros países que adotaram esta sistemática foram a Inglaterra e a Holanda, porém, na atualidade ela já alcança cerca de dois terços dos países europeus. A legislação brasileira, visando garantir a colocação de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, lançou mão de um programa que reserva vagas de emprego às pessoas com deficiência, em instituições públicas e privadas, comumente conhecido como política de cotas. SILVA, Cristiane Ribeiro; FONSECA, Juliana Izar Soares da. A inclusão das pessoas portadoras de deficiência no mercado de trabalho e a transformação social – a experiência da Serasa. Suplemento Trabalhista 01/08, São Paulo, ano 44, 2008. p. 43. 11 LOPES, 2005. Biblioteca LTr Digital. 10 36 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho Relativamente aos cargos e empregos públicos, a Constituição Federal Brasileira de 1988 estabelece, no inciso VIII do artigo 37, que: “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. Nesse passo, tanto a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, como o Decreto 3.298 de 20 de dezembro de 1999 estipulam que devem ser reservadas no mínimo 5%, e no máximo 20% das vagas ofertadas em concursos públicos a candidatos com deficiência. No que tange a obrigação das instituições privadas em contratar pessoas com deficiência, o artigo 93, da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, estabelece que a empresa com mais de cem empregados está obrigada a contratar beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência habilitadas, cujo percentual varia de 2% a 5%, de acordo com o número de empregados da empresa. Em comentário à norma em tela, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca12 observa que: [...] trata-se de lei que regulamenta os benefícios da Previdência Social, mas que no particular evidencia-se tipicamente trabalhista, eis que impõe uma conduta patronal em favor de alguns empregados especiais, dirigindo diretamente a contratualidade ao direcionar a vontade dos sujeitos do contrato, na medida em que elege um critério de escolha prioritária em favor das pessoas com deficiência. Levando em consideração que a lei reserva vagas a beneficiários reabilitados e à pessoa com deficiência habilitada, cabe verificar as características destes. Entende-se por pessoa com deficiência habilitada, segundo cartilha da Secretaria de Inspeção do Trabalho13: [...] Aquela que concluiu curso de educação profissional de nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição pública ou privada legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão equivalente, ou aquela com certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo INSS. Considera-se, também, pessoa portadora de deficiência habilitada àquela que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função (art. 36, § 2° e 3°, do Decreto n. 3.298/99). Ainda, na mesma cartilha, define-se pessoa com deficiência reabilitada como: FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O Trabalho da pessoa com deficiência e a lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho uma ação afirmativa. São Paulo: Saraiva, 2005. 13 BRASIL. Secretaria de Inspeção do Trabalho. A Inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Brasília: SIT, 2007. p. 22. 12 37 Artigo 2 [...] a pessoa que passou por processo orientado a possibilitar que adquira, a partir da identificação de suas potencialidades laborativas, o nível suficiente de desenvolvimento profissional para reingresso no mercado de trabalho e participação na vida comunitária (art. 31, do Decreto n. 3.298/99). De acordo com o art. 93, da Lei 8.213, de 24 de julho de 1.991, a reserva de emprego às pessoas com deficiência, no âmbito das instituições privadas, é garantida conforme escala que, dependendo do número de empregados, fixa à empresa a obrigação de contratar determinado percentual de pessoas com deficiência. Esta é a primeira limitação ao poder potestativo do empregador: fixação de cotas com obrigação de contratar e manter reabilitados ou portadores de deficiência em seus quadros de empregados. Em face do escalonamento acima, pertinente a observação de Ricardo Tadeu M. da Fonseca14: [...] A primeira peculiaridade do ordenamento brasileiro é a exclusão das pequenas e microempresas da obrigatoriedade em questão, o que afasta as que mais empregam, segundo estatísticas oficiais, seja em razão da alta incidência dessas empresas no mercado, seja em razão do processo menos automatizado que as caracteriza. Outra limitação ao poder potestativo do empregador é o dispositivo legal que veda a despedida arbitrária de trabalhadores reabilitados ou com deficiência, exigindo, para tal, a contratação de substituto de condição semelhante. Neste sentido, a título de ilustração, o seguinte acórdão exarado pela 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região/Paraná: REINTEGRAÇAO NO EMPREGO. EFEITOS E LIMITES. De acordo com o art. 93, § 1º, da Lei n.° 8.213/91, verifica-se que“a dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante”, o que não foi cumprido pelos Recorrentes, uma vez que inexiste qualquer prova nos autos indicando a contratação de outro empregado reabilitado ou de deficiente habilitado para o cargo anteriormente ocupado pela Recorrida, o que torna nula a dispensa (art. 9º, CLT, c/c art. 187, CC). Todavia, a referida proteção no emprego somente prevalece enquanto não houver contratação de outro empregado nas mesmas condições, não se podendo estender ad eternum a reintegração determinada pelo ilustre Juízo monocrático”. (TRT-PR-06963-200201 2-09-00-8-ACO-05379-2007 – 4A. TURMA. Relator: LUIZ CELSO NAPP – Publicado no DJPR em 02-03-2007) Da mesma forma julgou o TST: 14 FONSECA, 2005. 38 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho EMPREGADO REABILITADO – RESILIÇÃO – CRITÉRIOS ESTABELECIDOS NO ART. 93, § 1º, DA LEI N. 8.213/91 - GARANTIA DE EMPREGO INDIRETA – REINTEGRAÇÃO. I – Enquanto o caput do supracitado art. 93 estabelece cotas a serem observadas pelas empresas com cem ou mais empregados, a serem preenchidas por beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência habilitadas, o seu § 1º cria critério para a dispensa desses empregados (contratação de substituto de condição semelhante), ainda que seja para manter as aludidas cotas. II – Significa dizer que, não obstante o critério de dispensa pudesse visar a manutenção das cotas previstas no artigo 93, a interdição do poder potestativo de resilição consagrado no parágrafo primeiro traz consigo a concessão de garantia de emprego. III – Porém, não se trata de concessão de uma garantia de emprego por tempo indeterminado, mas sim, de garantia provisória subordinada à comprovação de posterior contratação de substituto de condição semelhante. Assim, se a reclamada comprovar, na liquidação de sentença, que após a dispensa do reclamante contratara outro empregado de condição análoga, deve ser convertida a reintegração em indenização substitutiva constituída dos salários e demais direitos trabalhistas do período mediado entre a resilição contratual e a nova admissão. IV – De outro lado, não comprovada a contratação de substituto, poderá a embargante, após a reintegração, exercitar o direito potestativo de resilição se atendido o requisito do parágrafo primeiro do artigo 93 da Lei 8.213/90. V – Recurso conhecido e provido.” (TST – RR – 869/2004-242-02-00.3, 4ª Turma, publ. 19/12/2006, fl. 1) 5 Dados estatísticos da efetividade do sistema de cotas no mercado formal de trabalho Concretamente, observando os dados existentes a se verificar a efetividade da lei em comento, em relação à situação das pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) publicou, em agosto de 2006, sob a coordenação de Andréa Schwartz e Jaques Haber, cartilha em que exibe levantamentos acerca da colocação destas pessoas no emprego formal, e constataram que 52% delas são inativas. Se fossem consideradas as que trabalham, somente 10,4% possuem carteira assinada. Segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) 2007, dos 37,6 milhões de trabalhadores ativos, 348,8 mil são trabalhadores com deficiência, o que representa apenas 1% do total de trabalhadores com emprego formal. Neste sentido, salienta Schwartz que “ainda é um número baixo se comparado à representatividade da população com deficiência (14,5%, dados fornecidos pelo Censo/IBGE/2000) junto à população geral”15. Vale ressaltar que a Lei de Cotas está prestes a completar vinte anos de existência, entretanto, somente nos últimos anos é que seu cumprimento tem sido alvo de fiscalização por parte do Ministério Público do Trabalho (MPT) e das Secretarias 15 SCHWARTZ, Andrea; HABER, Jaques. (Desenv./Coord.). População com deficiência no Brasil, fatos e percepções. São Paulo: Febraban, 2006. (Febraban de Inclusão Social) 39 Artigo 2 Regionais do Trabalho (SRTEs), que vêm atuando junto às empresas privadas, no intuito de fazê-las cumprir a obrigação legal imposta pela legislação. Os dados coletados no Sistema Federal de Inspeção do Trabalho – Sfit/SIT/MTE, comprovam a afirmação mencionada no parágrafo anterior. Através das informações extraídas desse sistema, o Ministério do Trabalho e Emprego elaborou e divulgou, no seu site, um quadro comparativo da fiscalização do trabalho no periodo de 1990 a 2007. Em dezessete anos de fiscalização o MTE, por meio de suas Secretarias Regionais do Trabalho (SRTEs), averiguou 6,3 milhões de empresas, onde alcançou o número de 390,6 milhões de empregados, autuando cerca de 1,3 milhões delas, ou seja, 21% do total das empresas fiscalizadas. Ressalte-se que os dados atinentes à contratação de trabalhadores com deficiência somente foram lançados no quadro comparativo proferido pelo Sfit/SIT/MTE, a partir do exercício de 2005, posto que antes desta data, não foram fornecidas quaisquer informações a respeito do assunto. Não obstante, os números revelam que no período compreendido entre 2005 e 2007, foram contratados pouco mais de 55 mil trabalhadores com deficiência sob a ação da fiscalização das SRTEs, cerca de 22% no primeiro ano. No segundo ano o percentual aumentou para 36%, atingindo 40% no terceiro ano. Utilizando-se do trabalho publicado por Marcelo Néri, Alexandre Pinto de Carvalho e Hessia Guillermo Costilia, sobre a inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal, Gláucia Lopes16 constatou um aumento na contratação dessas pessoas a partir da Lei de Cotas, mais precisamente após a entrada em vigor do Decreto 3.298/99. Eis os dados: [...] 31% do total dos portadores de deficiência encontram-se empregados em empresas que possuem menos de 100 empregados; 29% em empresas que apresentam um número de empregados superior a 1.000 empregados; 14,57% nos estabelecimentos de 100 a 249 empregados; 13,57% naquelas empresas que apresentam de 250 a 499 empregados; e 11,86% para empresas com 500 a 999 empregados. Curiosamente, constatou-se que a pequena empresa é a que emprega parcela mais expressiva de trabalhadores com deficiência, mesmo estando desobrigada ao cumprimento do percentual disposto na Lei de Cotas. Segundo dados do infojobs.com.br, independentemente da crise econômica que se arrasta no cenário mundial, as oportunidades oferecidas para deficientes tem aumentado ano após ano. Para se ter uma noção, o Sine ofereceu mais de 36 mil 16 LOPES, 2005. 40 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho empregos para deficientes em 2007, e apenas 7 mil dessas vagas foram preenchidas. O que ocorre, portanto, é a sobra de vagas para portadores de deficiência. Especificamente no Paraná, levando em consideração dados estatísticos postados no site da Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social do Paraná – SEPT/PR, entre janeiro de 2003 e abril de 2009 foram cadastrados aproximadamente 28 mil pessoas com deficiência, para 27,5 mil vagas de emprego ofertadas, sendo encaminhados 41,6 mil candidatos para entrevista de emprego. Das vagas ofertadas, 41% delas foram preenchidas, ou seja, 11,2 mil postos de trabalho foram ocupados por este seguimento. Em âmbito nacional, os dados demonstram que mesmo após o advento da Lei 8.213/91, regulamentada após oito anos pelo Decreto no 3.298/99, não houve aumento expressivo do percentual de empresas grandes que cumprem as cotas, justamente diante das dificuldades que encontram. Um desses entraves seria a concessão de pensão mensal a todos os deficientes estipulada pela Lei Orgânica de Assistência Social. Muitas das pessoas que recebem o benefício preferem complementar a renda com atividades informais a procurar um trabalho com registro em carteira e pequenos salários, já que assim perdem o direito à pensão. Outro problema seria a dificuldade de encontrar deficientes capacitados e especializados para ocupar as vagas disponíveis no mercado. Além disso, não podemos deixar de identificar um grave problema nas cidades brasileiras, qual seja, a ausência de políticas públicas para a implementação de uma infraestrutura urbana que respeite os portadores de deficiência física, não exacerbando as suas limitações inerentes, impedindo-os de se deslocar com independência e dignidade. Ainda há a prevalência do passado. E o mais grave: os deficientes se defrontam com os preconceitos e com as discriminações existentes até então. São excluídos, pela própria família, pelo ensino com qualidade e participação social plena. Partindo disso, não basta o estado apenas aplicar multa no intuito de obrigar a empresa a cumprir as cotas, pois, para que o objetivo da norma seja alcançado, é necessário que se faça indicar, de maneira precisa, como cumprir tal obrigação. Para Sérgio Pinto Martins17: [...] somadas as porcentagens de aprendizes e a de pessoas reabilitadas ou portadoras de deficiência, a empresa tem um grande percentual a destinar para pessoas específicas. Num contexto de globalização, tais porcentuais podem diminuir as condições de concorrência da empresa no mercado. 17 Sérgio Pinto Martins, fl. 609 41 Artigo 2 Não há dúvida de que a questão é social e necessita de considerações, porém a empresa não pode arcar sozinha com tais hipóteses, principalmente quando empresas de outros países não têm as referidas obrigações. E, conforme já vem decidindo, assim também tem entendido o Judiciário, pois está ponderando, antes de penalizar as empresas, as dificuldades em encontrar portadores no mercado em número suficiente para preencher a cota e reconhecendo os esforços apresentados por essas a tanto. Isso é o que mostra a matéria jornalística com que iniciamos a introdução do presente estudo. Considerações finais Como meio de diminuir as diferenças de oportunidades existentes na sociedade, bem como a compensar todas as perdas acumuladas desde o passado de grupos de indivíduos negativamente discriminados, o legislador cuidou de justificar a necessidade de tratamento diferenciado a esses, criando políticas de reservas de vagas ou sistemas de cotas. Nesse sentido, a política de cotas adotada pelo ordenamento jurídico pátrio foi um avanço, já que procura a inclusão no mercado de trabalho formal de maior número de cidadãos, sobretudo aqueles historicamente discriminados. Contudo, por não haver nenhum tipo de incentivo, mas tão somente punição ao empregador que não cumpre as cotas, tais políticas, por vezes, não se mostram tão eficazes, apresentando-se em forma de limitação, restrição ao poder potestativo do empregador em eleger quem admitir e manter em seu quadro de empregados. Sim, em que pese essa modalidade de contratação estimular os empregadores no cumprimento das cotas, ela não atende ao fundamento inclusivo da norma internacional, posto que não basta inserir o trabalhador no ambiente de trabalho da empresa, mas sim, oferecer-lhe meios para que possa alcançar o tão almejado desenvolvimento profissional, de modo a construir uma vida produtiva, independente e autônoma. O estado não pode transferir tal responsabilidade para as empresas. Deve haver uma interação de todos: estado, classe empresarial e sociedade em geral. Isso porque, da forma como o atual sistema de reserva de vagas de emprego é previsto como mecanismo de inclusão, através de leis ordinárias que oportunizam o acesso ao trabalho formal, o que se pôde verificar é que, em relação ao emprego, muitas vezes as vagas destinadas a candidatos com deficiência não são preenchidas por falta de procura ou por falta de pessoas habilitadas a tanto. Isso ocorre na maioria das oportunidades pelo baixo índice de escolaridade em geral. 42 As Restrições ao Exercício do Poder Potestativo Empresarial frente às ações afirmativas existentes no ordenamento jurídico nas relações de trabalho Verificou-se que mesmo com a vigência da Lei de Cotas, o índice de trabalhadores deficientes com carteira de trabalho assinada alcança tão somente 1% do total de trabalhadores com emprego formal. Não mais que uma ínfima parcela da classe trabalhadora. Nesse sentido, o estado ainda tem um papel muito importante a contribuir para o processo inclusivo, já que a falta de conhecimento, por parte da sociedade, é um dos entraves ao atingimento da finalidade dessas políticas. Da mesma forma, outro entrave é a falta de capacitação para o trabalho, eis que não são ofertados suficientemente programas de capacitação profissional por parte do estado. Nesse contexto, vencer esses desafios deve se tornar uma meta por todos aqueles que tratam com seriedade do assunto. Tanto que não é raro o caso de empresas que assumem o papel do estado quando qualificam a mão de obra, assumindo os seus custos; preparam os locais de trabalho, encontram e treinam todo o seu pessoal ao convívio social, atuando na integração social. Necessária, portanto, a interação de todos: estado, classe empresarial e sociedade em geral. Referências Ação afirmativa – o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, Revista Trimestral de Direito Público, 15/1996. 92 BRASIL. A inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Brasília: SIT, 2007. COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder punitivo trabalhista. São Paulo: LTr, 1999. FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho da pessoa com deficiência e a lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho uma ação afirmativa. São Paulo: LTr, 2006. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. LOPES, Gláucia Gomes Vergara. A inserção do portador de deficiência no mercado de trabalho – a efetividade das leis brasileiras. São Paulo: LTr, 2005. Biblioteca. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006. OSTERNACK, Ana Flávia. Discriminação positiva. Paraná On Line. 18 nov. 2007. ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Ação afirmativa – o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista Trimestral de Direito Público. LTr Digital. 43 Artigo 2 SCHWARTZ, Andrea; HABER, Jaques. (Desenv./Coord.). População com deficiência no Brasil, fatos e percepções. São Paulo: Febraban, 2006. (Febraban de Inclusão Social) SILVA, Cristiane Ribeiro; FONSECA, Juliana Izar Soares da. A inclusão das pessoas portadoras de deficiência no mercado de trabalho e a transformação social – a Experiência da Serasa. Suplemento Trabalhista 01/08, São Paulo, ano 44, 2008. p. 39/45. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito: do estado de direito liberal ao estado social e democrático de direito. Coimbra: Almedina, 1987. TRT/PR, RO 848/97, Ac. 2ª T. n.. 25.573/97, Rel. Juiz Arnor Lima Neto, DJ/PR 26.09.97, p. 376. TRT/PR, RO 05.292/95, Ac. Unânime da 3ª T. n.. 09.296/97, Rel. Juíza Wanda Santi Cardoso da Silva, DJ/PR 25.04.97, p. 333. 44 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental Edinei Carlos Dal Magro1 Introdução. 1 Titularidade e gestão dos recursos hídricos. 2 A cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sua eficácia como instrumento de gestão baseado na racionalidade ambiental. Considerações finais. Referências. Resumo O presente artigo aborda a escassez de água como efeito da degradação ambiental do mundo moderno. Nesse processo, o uso irracional da água tem contribuído para que a quantidade existente de água potável, já quase insuficiente, se torne também imprópria para o consumo, culminando num problema quali-quantitativo dos recursos hídricos. Nesse cenário, a gestão dos recursos hídricos e a cobrança pelo uso da água apresentam-se como instrumentos eficazes para modificar a cultura e as práticas insustentáveis adotadas hodiernamente, inclusive no campo das políticas públicas. A abordagem à temática foi apenas monográfica, mas capaz de demonstrar que esta prática corresponde à busca por um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A modificação das bases socioculturais e do modo de produção que se propõe, por meio da gestão e da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, representa uma nova e necessária racionalidade ambiental, cuja implementação visa a garantir às gerações presentes e futuras um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Palavras-chave: recursos hídricos, gestão, racionalidade ambiental. 1 Mestrando – Minter PUC/Unioeste; especialista em direito civil e processual civil pela Unipar; advogado do Serviço Autônomo de Água e Esgoto, autarquia municipal de Marechal Cândido Rondon, PR; professor colaborador da Unioeste, campus de Marechal Cândido Rondon, PR; e-mail: [email protected] 45 Artigo 3 Abstract This article addresses the shortage of water as an effect of environmental degradation of the modern world. In this case the irrational use of water has contributed to the existing quantity of drinking water, almost insufficient already, also becoming unsafe for consumption, leading to either a qualitative and quantitative problem of water resources. In this scenario the management of water resources and charges for the use of water are presented as effective tools for changing the culture and unsustainable practices adopted nowadays, including the public policies. The approach to the theme was only monographic, but it is able to demonstrate that this practice matches to the search for an ecologically balanced environment. The change in socio cultural basis and the way of production that is proposed by management and charging for the use of water resources represents the emergence of a new and necessary environmental rationality, which implementation means to ensure the present and future generations an ecologically balanced environment. Keywords: water resources, management, environmental rationality. Introdução Um dos maiores dilemas enfrentados pela humanidade no processo de desenvolvimento, desencadeado nas décadas de 50 e 60, é a degradação ambiental. A observação nos revela que, no princípio, sustentada por concepções antropocêntricas, a humanidade não considerava o meio ambiente como sujeito, mas apenas como fonte de recursos que podia ser apropriada e explorada indiscriminadamente pelo homem. Nesse processo, a natureza acabou sendo “coisificada”, desconhecendo-se, nessa relação, o vínculo entre homem e natureza, pois aquele se tornou proprietário desta. Essa visão, contudo, a partir da década de 80, passou a ceder lugar à compreensão de que os problemas ambientais são ou podem ser consequências diretas do comportamento humano, observados na relação do homem com o planeta, bem como no modo de exploração dos recursos naturais, considerados partes integrantes de um complexo sistema. A partir daí, inicia-se um verdadeiro repensar dos modos de produção e desenvolvimento adotados, baseados no processo econômico capitalista, principal responsável pela crise ambiental estabelecida, e nos prognósticos de que o planeta caminha para seu fim. No centro dessa crise ambiental instalada está o problema da água. Não é demais relembrar que apesar de abundante no planeta terra e de que “mais de 70% da superfície se compõe de água, estima-se que 97% do total seja salgada, formando 46 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental os oceanos e mares, e que 2% formam as geleiras; portanto, resta apenas 1% de água doce, [...]”.2 A múltipla utilização dos recursos hídricos e os atos indiscriminados são diretamente responsáveis pela crise ambiental estabelecida, pois, conforme salienta Marchesan, estão associados a resíduos tóxicos, esgoto, desmatamento, construção de reservas, dentre outros.3 A água é fonte de vida, essencial para a sobrevivência não só do ser humano, mas de toda espécie de vida no planeta. Como tal, “a importância da água explica por que os aglomerados humanos se desenvolveram nas proximidades de rios, lagos e outros mananciais”.4 O Brasil “possui um dos patrimônios hídricos mais importantes do planeta e pelo país circulam 12% da água doce superficial do mundo”5.No entanto, até meados do ano 2000, a utilização desses recursos hídricos era controlada ou gerenciada de maneira muito incipiente. Embora a legislação brasileira, através do Código Civil de 1916 e do Código de Águas na década de 30, tratou de tutelar a água, a gestão dos recursos hídricos teve nesse marco legal espaço muito pequeno, pois preocupava-se apenas com a utilização da água como fonte geradora de energia.6 Vale destacar que a água possui múltiplos usos e sua utilização indiscriminada é o que tem provocado os graves problemas relativos à diminuição da qualidade e também da diminuição da sua quantidade. Até meados da década de 90 esse panorama persistia. Não havia qualquer controle ou gerenciamento sobre a água utilizada por particulares, para agricultura, lazer, como matéria-prima, em processos de fabricação, etc., época em que se criou a Agência Nacional de Água (ANA), cuja missão é “implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água, promovendo o seu uso sustentável em benefício da atual e das futuras gerações”.7 A par dessa missão8, CONTE, Maria de Lourdes. Avaliação de recursos hídricos: Rio Pardo, um exemplo. São Paulo: Unesp, 2001. p. 22. 3 O Ministério Público e a Tutela dos Recursos Hídricos. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 40, p. 9-23, out./dez. 2005. p. 11. 4 DACACH, Nelson Gandur. A água em nossas vidas. Rio de Janeiro: EDC, Salvador/BA: Fundação Escola Politécnica da Bahia, 1990. p. 71. 5 AGÊNCIA Nacional de Águas (ANA). Hotsite Águas de Março 2010. Dia Mundial da Água. Disponível em: <http://www.ana.gov.br/aguasdemarco/2010>. Acesso em: 1.º jun. 2010. 6 GRAF, Ana Cláudia Bento. A tutela dos estados sobre as águas. In: FREITAS, Vladimir Passos de. Águas – aspectos jurídicos e ambientais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2005. p. 66. 7 AGÊNCIA Nacional de Águas (ANA). Institucional – Sobre a ANA. Disponível em: <http://www2.ana.gov.br/Paginas/institucional/SobreaAna/abaservinter1.aspx>. Acesso em: 1.º jun. 2010. 8 Id. A evolução da gestão dos recursos hídricos no Brasil. Brasília: ANA, 2002. p. 11. 2 47 Artigo 3 Em 1997, concretizou-se a decisão do país de enfrentar, com um instrumento inovador e moderno (Lei 9.433), o desafio de equacionar a demanda crescente de água para fazer face ao crescimento urbano, industrial e agrícola, os potenciais conflitos gerados pelo binômio disponibilidade-demanda e o preocupante avanço da degradação ambiental de nossos rios e lagos. Diante de todas essas adversidades e com o compromisso de garantir acesso à água potável, o Brasil, por meio deste importante instrumento – Política Nacional de Recursos Hídricos – deu um grande passo no ideal de sustentabilidade em relação aos recursos hídricos do país. Nesse sentido, o Brasil tem assumido compromissos como o de “reduzir pela metade, até 2015, a proporção da população sem acesso permanente e sustentável à água potável segura e ao esgotamento sanitário”, não se desassumindo das metas do milênio pactuadas9, ou ainda, de “preservar a quantidade e melhorar a qualidade da água nas bacias hidrográficas”.10 A proposta, portanto, deste trabalho é analisar a cobrança pelo uso dos recursos hídricos prevista na Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, como instrumento de gestão e controle, ressaltando a importância de se trabalhar com a organização e o planejamento da exploração desses recursos e assim garantir que seja possível continuarmos usufruindo da água do nosso planeta de forma sustentável. Além de reconhecer a necessidade da gestão dos recursos hídricos, é importante também compreender que o sucesso da proposta de sustentabilidade demanda a participação muito grande da própria sociedade. Apenas o estado gerenciando os recursos hídricos e os usuários continuarem a utilizar-se da água indiscriminadamente não resultará na pretendida sustentabilidade. É nesse sentido que se propõe que a gestão dos recursos hídricos represente uma ferramenta de implementação da racionalidade ambiental, que em síntese apregoa “formas diferentes de pensar, de imaginar, de sentir, de significar e de dar valor às coisas do mundo”11 sendo que o próprio art. 19, inciso I, da Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, revela buscar a conscientização do usuário sobre o valor da água. Eis o exercício proposto. 1 Titularidade e gestão dos recursos hídricos Para abordar a gestão dos recursos hídricos, é fundamental discorrer sobre a titularidade desse bem, que nem sempre foi um bem público. Metas do Milênio. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/odm/objetivo_7/>. BRAGA, Roberto. Recursos hídricos e planejamento urbano e regional. Rio Claro: Laboratório de Planejamento Municipal – Deplan – Unesp – IGCE, 2003. p. 129-131. 11 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de: Cabral, Luís Carlos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p 249. 9 10 48 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental Embora não fosse tratada individualmente, a água, como acessório ao solo, era considerada pelo Código Civil de 1916, em seu art. 526, como bem privado. Com o advento do Código de Águas (Dec. 24.643/34), passou a ser classificada pelo art. 8º c/c art. 96 como bem público, comum e privado. Posteriormente, a Carta Magna passou a tratar a água como bem público, de uso comum do povo, inovando, assim, se comparada às ordenações anteriores.12 Como bem público de uso comum do povo, a titularidade dos recursos hídricos foi dividida entre os entes federativos da seguinte forma pelos art. 20, III, e art. 26, I, ambos da CF/88: (a) as águas superficiais são pertencentes aos estados e à união; (b) subterrâneas aos estados, com exceção daquelas decorrentes de obras da união. Além disso, a Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997 (PNRH), em seu art. 1º, inciso I, tratou de deixar clara a titularidade dos recursos hídricos dispondo que “a água é um bem de domínio público”, sujeita à cobrança quando usada para fins econômicos, conforme se depreende da interpretação do art. 4º, inciso VII, segunda parte, da Lei n. 6.938/81.13 Embora, nesse contexto, todo o art. 526, do revogado Código Civil de 1916, tenha sido substituído pelo art. 1.229, no Código Civil vigente, o disposto no art. 1228, § 1º, do CC/2002, interpretado em consonância com todos os demais dispositivos antes mencionados, permite afirmar que a água é um bem público de uso comum do povo. Essa digressão legislativa, quanto à titularidade dos recursos hídricos, demonstra por meio de uma interpretação sistemática do art. 20, III, e art. 26, I, ambos da CF/88 c/c art. 1º, I, da Lei n. 9.433/97 e 1.228, § 1º, CC/2002, que inexistem águas de propriedade privada no Brasil.14 Não alheio a discussões quanto à titularidade, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento nesse sentido, destacando-se aqui a decisão proferida no REsp 518.744/RN: ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. INDENIZAÇÃO. OBRA REALIZADA POR TERCEIRA PESSOA EM ÁREA DESAPROPRIADA. BENFEITORIA. NÃO CARACTERIZAÇÃO. PROPRIEDADE. SOLO E SUBSOLO. DISTINÇÃO. ÁGUAS SUBTERRÂNEAS. TITULARIDADE. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA. BEM PÚBLICO DE USO COMUM DE TITULARIDADE DOS ESTADOS-MEMBROS. CÓDIGO DE ÁGUAS. LEI N. 9.433/97. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTS. 176, 176 E 26, I. [...] 4. A água é bem público de uso comum (art. 1º da Lei nº 9.433/97), motivo pelo qual é insuscetível de apropriação pelo particular 5. O particular tem, apenas, o direito MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Op. cit. 2005. p. 12-13. Ibid., p. 14. 14 Ibid., p. 15. 12 13 49 Artigo 3 à exploração das águas subterrâneas mediante autorização do Poder Público cobrada a devida contraprestação (arts. 12, II, e 20, da Lei n. 9.433/97) 6. Ausente a autorização para exploração a que o alude o art.12, da Lei n. 9.443/97, atentando-se para o princípio da justa indenização, revela-se ausente o direito à indenização pelo desapossamento de aquífero. [...] (REsp 518744/RN, Rel. Ministro Luiz Fux, primeira turma, julgado em 3/2/2004, DJ 25/2/2004 p. 108). (Grifo do autor). Pois bem, definida a titularidade, é oportuno retratar novamente o panorama estabelecido em torno da gestão dos recursos hídricos no Brasil. Embora já tutelada pelo Código Civil de 1916, a gestão da água foi bastante limitada, pois o Código de Águas de 1934 regulamentava apenas a apropriação da água para fins de utilização em produção de energia elétrica15 Foi com o advento da Lei n. 9.433/97 que esse panorama se alterou substancialmente, pois ocorreu uma “profunda modificação valorativa no que se refere aos usos múltiplos da água, às prioridades desses usos, ao seu valor econômico, à sua finitude e à participação popular na sua gestão”16. A gestão dos recursos hídricos é fundamental para que se possa “assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos [...]”17. Representa um processo que demanda a atuação conjugada de diversos instrumentos, conforme prevê o art. 5º, da Lei n. 9.433/97, destacando-se, dentre eles, o previsto no inciso IV, que diz respeito à cobrança pelo uso de recursos hídricos. A gestão dos recursos hídricos, portanto, se mostra ainda mais relevante quando nos deparamos com afirmações como a encontrada na obra de Freitas que já apontava que a Lei n. 9.795/99, que trata da educação ambiental, possuía pouca efetividade, já que o desperdício de água no Paraná chegava a 40%18. Tal panorama não se mostra alterado, mesmo passado aproximadamente cinco anos, pois os instrumentos relativos à gestão dos recursos hídricos são desenvolvidos de maneira muito incipiente pelos responsáveis. Assim, aquela estatística anteriormente citada permanece praticamente inalterada, conforme se verifica nas palavras de Roesler, pois, tratando-se de Brasil, “mesmo possuindo cerca de 8% da água disponível no planeta, há um desperdício que envolve desde a captação até o uso final das residências e indústrias, na ordem de 40%”19 GRAF, Ana Cláudia Bento. Op. cit. 2005, p. 66. Ibid. p. 66. 17 Ibid. p. 66. 18 Águas – Aspectos Jurídicos e Ambientais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2005. p. 21. 19 Gestão Ambiental e Sustentabilidade: a dinâmica da hidrelétrica binacional de Itaipu nos municípios lindeiros. Cascavel: Edunioeste, 2007. p. 164. 15 16 50 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental Ademais, a gestão dos recursos hídricos é de fundamental importância quando se constata, por exemplo, que no caso do estado do Paraná “a demanda total de água corresponde a 27,1% da demanda do país”20. Somando-se a isso, temos o problema do aumento da demanda enquanto a disponibilidade não se altera. Nesse sentido, bem observa Roeslaer que, “de 1900 a 1997, a população da terra dobrou, e o consumo de água cresceu sete vezes, ou seja, a cada 21 anos, o seu aproveitamento se multiplica, mas o volume de água disponibilizado para o consumo permanece o mesmo”21. O que se pode ver nesse contexto, portanto, é que os múltiplos usos da água são reais e demandam das autoridades públicas uma gestão responsável, com vistas à garantia quali-quantitativa da água, sendo a cobrança pelo uso dos recursos hídricos um importante e valiosíssimo instrumento. 2 A cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sua eficácia como instrumento de gestão baseado na racionalidade ambiental A ideia de gestão dos recursos hídricos surge a partir da constatação de um problema: a escassez de água. Embora o Brasil tenha a maior reserva de água doce do planeta é preciso ter consciência de que esta quantidade tem, gradativamente, sido reduzida, além da perda de qualidade que também se verifica. A política pública adotada pelo Brasil segue práticas já há muito tempo adotadas em países onde a escassez é uma realidade presente, baseadas em “três diretrizes: a) utilizar o caráter indutor da legislação ambiental; b) considerar a água como um valor coletivo; c) instituir a gestão compartilhada da água”.22 Para que essa política de gestão dos recursos hídricos logre êxito é necessário primeiramente reconhecer o valor econômico da água, como bem salientou Raymundo José Santos Garrido, então secretário de Recursos Hídricos, ao comentar a Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 199723: O terceiro princípio é o do reconhecimento do valor econômico da água, fortemente indutor de seu uso racional, dado que serve de base para a instituição da cobrança pela utilização dos recursos hídricos, um dos instrumentos de política do setor. PLANO Nacional de Recursos Hídricos. Região Hidrográfica do Paraná. Disponível em: <http://pnrh.cnrhsrh.gov.br/>. Acesso em: 2 jun. 2010. 21 ROESLER, Marli Renate von Borstel. Op. cit. 2007. p. 163. 22 THAME, Antonio Carlos Mendes (Org.). A cobrança pelo uso da água na agricultura. Embre, São Paulo: Iqual, 2004. p. 267. 23 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Política Nacional de Recursos Hídricos. Legislação/Brasil. Ministério do Meio Ambiente. Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos, 2001. p. 9. 20 51 Artigo 3 Essa noção de que a água possui valor econômico está diretamente “ligada à necessidade de gerenciamento do bem escasso”24. No Brasil, a água é inalienável, sendo apenas outorgado o direito de uso25. Tal disposição é importante na medida em que decorre de um status conferido a esse bem de uso comum do povo, seguindo o que apregoa também o Banco Mundial e as Nações Unidas, para quem “a água é conceituada como uma ‘necessidade humana’, e não como um direito humano. Essa distinção é de extrema relevância, na medida em que o segundo é inalienável, ao contrário da primeira”.26 Quando o assunto cobrança da água vem à tona, automaticamente se remete à tarifa cobrada pelos serviços de abastecimento de água, o que revela um equívoco, pois, “no saneamento básico, cobra-se geralmente a remuneração pelos serviços ligados ao fornecimento, como adução, transporte, distribuição e não o valor material do bem econômico água”.27 A cobrança pelo uso dos recursos hídricos assume dupla função, pois, ao mesmo tempo em que serve como instrumento de conscientização, serve também para proporcionar capacidade financeira de investimento no setor. Nesse sentido, inclusive, é que “a política nacional de recursos hídricos está alicerçada em diversos fundamentos, dentre os quais o de que a água é um recurso natural dotada de valor econômico (art. 1º, II, da Lei 9.433/97)”, sendo que “a motivação teórica dessa noção legal está ligada à necessidade de gerenciamento adequado do bem escasso”.28 É preciso, contudo, que essa cobrança pelo uso de recursos hídricos não se torne mero instrumento de arrecadação, mas instrumento de gestão.29 É fundamental que seja indutora de mudanças, pois “a grande mudança capaz de potencializar o encaminhamento de soluções sociologicamente sustentáveis para os problemas de saneamento básico consiste em desenvolver a percepção do usuário quanto à importância desses serviços [...].”30 É através desse importante instrumento de gestão que se mostra possível, por exemplo, a universalização do serviço de abastecimento de água, tão deficitário, VIEGAS, Eduardo Coral. Saneamento Básico, Mercantilização e Privatização da Água. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 40, ano 10, p. 24-43, out./dez. 2005. p. 27. POMPEU, Cid Tomanik. Direito de Águas no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 271. 26 VIEGAS, Eduardo Coral. Op. cit. 2005. p. 29. 27 POMPEU, Cid Tomanik. Op. cit.. 2006. p. 271. 28 VIEGAS, Eduardo Coral. Op. cit.2005. p. 27. 29 THAME, Antonio Carlos Mendes (Org.). Op. cit. 2004. p. 268. 30 PARLATORE, Antonio Carlos et al Lei Municipal 13.670/2003. Planejamento, Regulação e Prestação de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário no Município de São Paulo. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 37, ano 10, p. 160-201, jan./mar. 2005. p. 179. 24 25 52 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental principalmente na área rural, conforme demonstra o quadro abaixo que retrata a situação do saneamento básico (água e esgoto) no Brasil. Regiões de atendimento com água e esgotos dos prestadores de serviços participantes do SNIS 2008, segundo região geográfica Regiões Índice de atendimento (%) Índice de tratamento ÁguaColeta de esgotos dos esgotos gerados (%) TotalUrbanaTotal UrbanaTotal (IN055) (IN023)(IN056)(IN024) (IN046) Norte 57,6 Nordeste 68,0 Sudeste 90,3 Sul 86,7 Centro-oeste 89,5 Brasil 81,2 72,05,6 7,0 89,418,925,6 97,666,672,1 98,632,438,3 95,644,849,5 94,743,250,6 11,2 34,5 36,1 31,1 41,6 34,6 Para cálculo do IN043 estima-se o volume de esgoto gerado como sendo igual ao volume de água consumida. Quadro 1 – Índices de atendimento.31 Se por um lado a cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem o condão de modificar a percepção do usuário, por outro, gera alguns problemas de ordem institucional e de impacto na população que ainda não concebe a água como bem econômico e não reconhece sua importância. Nesse contexto, avaliando a experiência obtida no estado de São Paulo, Parlatore et al revelam que, “embora o país tenha se beneficiado bastante desse avanço, ainda restam deficiências graves a serem superadas, no tocante à universalização dos serviços [...]”.32 O primeiro problema, institucional por natureza, se deve ao fato de que passa a haver disputa entre entes estatais (municípios e estados) quanto à titularidade dos serviços por interesses puramente econômicos.33 Tamanho é o problema que, nessa disputa de poder, fomentada exclusivamente pelo interesse econômico em gerir os recursos hídricos, surgem também os interesses de empresas privadas. Opondo-se a isso, Viegas afirma que a privatização não precisa ser aceita pelos cidadãos, que nesse processo não se devem submeter à ganância e aos interesses privados, embora “os governos, até hoje, não assumiram a proteção da água, da qual depende a vida de seus habitantes”.34 BRASIL. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Sistema nacional de informações sobre saneamento: diagnóstico dos serviços de água e esgotos – 2008. – Brasília: Mcidades/SNSA, 2010. p. viii. 32 PARLATORE, Antonio Carlos et al. Op. cit. 2005. p. 179. 33 Ibid. p. 193. 34 Op. cit. 2005, p. 30. 31 53 Artigo 3 É fundamental para a sociedade que seus governantes assumam o dever de gerir com eficiência os recursos hídricos. Nesse sentido, encontramos no Uruguai uma demonstração de como o tema deve ser enfrentado, onde, em 2003, foi aprovada uma emenda constitucional prevendo que todo serviço de saneamento e abastecimento de água para consumo humano deve ser prestado exclusiva e diretamente por entes estatais.35 Embora deva o estado assumir a gestão dos recursos hídricos, é de extrema importância que esse processo seja baseado “em uma abordagem participativa, envolvendo os usuários, os planejadores, os formadores de políticas públicas em todos os níveis”.36 É, portanto, com a democratização do processo decisório que se torna possível uma gestão eficiente, pois, como já ressaltado, não basta apenas o estado assumir seu papel, cada um é um ator interessado, tendo em vista os múltiplos usos dos recursos hídricos.37 Dessa forma, é preciso enfrentar um segundo problema que se refere à mudança comportamental dos usuários, que precisam entender que a água precisa ser melhor utilizada e que a cobrança é necessária para a gestão dos recursos hídricos. Assim,38 É fundamental o esclarecimento de que a cobrança se dá em razão do direito de uso de um bem público, no caso a água, que é inalienável (art. 18 da Lei 9.433/97). As pessoas estão acostumadas com o pagamento pelo serviço de saneamento básico. Este continuará a ser exigível de forma independente da cobrança pela água propriamente dita. Uma das preocupações que emanam desse duplo pagamento é o encarecimento da água para o consumo do homem e para a execução de suas atividades básicas, como a irrigação agrícola, a psicultura, dentre outras, pairando incerteza intransponível nesse momento em torno da forma como a população mais carente será atingida. Muito embora problemas como esse ainda precisam ser enfrentados, é certo que a gestão dos recursos hídricos e sobretudo a cobrança pelo seu uso desempenham papel fundamental para que se alcance um processo de uso racional e sustentável dos recursos hídricos. A água é um bem público de uso comum, um “direito fundamental humano”.39 Por isso é preciso compreender que, para garantir às gerações futuras Ibid. p. 41. CAP-NET et al Economia e Gestão Sustentável das Águas. Manual de Capacitação e Guia Prático, mar. 2008. p.7 e 154. 37 Ibid. p. 7. 38 VIEGAS, Eduardo Coral. Op. cit.2005. 39 VARGAS, Marcelo Coutinho. O negócio da água: riscos e oportunidades das concessões de saneamento à iniciativa privada: estudos de caso no sudeste brasileiro. São Paulo: Annablume, 2005. p. 34. 35 36 54 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental o acesso aos recursos hídricos em quantidade e qualidade suficientes, as mudanças apontadas devem concretizar-se. A gestão dos recursos hídricos e a cobrança servem como instrumentos para implemento de uma racionalidade ambiental, pois “urge repensar o nosso modo de pensar e agir, o nosso modo de perceber a natureza e, principalmente, o nosso modo de fazer ciência e utilizar tecnologia. [...] A crise da natureza é uma crise do nosso modo de viver”.40 Assim, o ideal de uma racionalidade ambiental41 surge com a constatação de que: A crise ambiental coloca em questão os fundamentos da racionalidade econômica. Por isso surgiram diferentes respostas, desde as filosofias da natureza até os novos movimentos sociais que buscam integrar a democracia participativa, a descentralização econômica e a reapropriação da natureza como um sistema ambiental produtivo. [...] Neste contexto a economia ecológica e a ecologia política[...]. Esse é um desafio que surge com a crise ambiental da modernidade, pois Ao mesmo tempo em que confronta a qualidade do ordenamento jurídico que disciplina as relações entre os seres humanos e o meio ambiente, a sustentabilidade também convida o direito a afastar-se dos ineficazes mecanismos de controle e desligar-se das legislações simbólicas, ou seja, daqueles documentos legislativos elaborados com um único propósito: permanecer ineficazes no plano jurídico.42 A busca por essa interpretação pressupõe, por exemplo, que “não pode haver dúvida quanto à diretriz hermenêutica fundamental. [...] Não se lhe pode sobrepor a ideologia do desenvolvimento econômico, sob pena de consagrar-se a deterioração do ambiente”.43 Curioso observar, no entanto, que a crise ambiental da modernidade é a matriz que justifica esta modificação cultural, social, econômica, etc., ou seja, uma nova racionalidade. Destarte, serve também para sustentar teses tal qual a apresentada por Gonçalves, de que a agenda global em torno do meio ambiente nada tem a ver com sua proteção, mas sim que: O objetivo maior da campanha é consolidar uma inusitada ‘mudança de paradigma cultural’, especialmente minar o princípio antropocêntrico, expresso no versículo 18 do EFKEN, Karl-Heinz. A ciência e a conscientização a serviço dos recursos hídricos: a água como fonte de comunicação biológica global. Água: fonte de vida. Recife: Unicap. p. 111-124, 2005. 41 LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura — a territorialização da racionalidade ambiental. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 42. 42 FERREIRA, Heline Sivini. Desvendando os organismos transgênicos: as interferências da sociedade de risco no estado de direito ambiental brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 278. 43 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Ecocivilização: ambiente e direito no limiar da vida. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 18. 40 55 Artigo 3 Livro de Gênesis, segundo o qual o homem foi criado à imagem de Deus, com o mandato explícito de dominar a natureza em benefício da expansão qualitativa e quantitativa da espécie humana. Em lugar deste ordenamento judaico-cristão, baseado na razão inteligível, os ‘engenheiros sociais’ oligárquicos oferecem uma idílica ‘ordem natural’ baseada num princípio ‘biocêntrico’, que reduz a espécie humana a apenas uma a mais entre a miríade de espécies de seres vivos existentes. Assim, o que se busca não é apregoar proteção da natureza, mas redução do homem ao nível das espécies inferiores e a sua manipulação como se fosse gado de corte, tratado por um processo de manejo malthusiano de maneira tal que o seu crescimento não comprometa o controle oligárquico dos recursos naturais.44 Apesar das contrariedades, em se tratando da racionalidade ambiental, as lições de Leff ilustram que “o princípio da sustentabilidade surge no contexto da globalização como a marca de um limite e o sinal que orienta o processo civilizatório da humanidade”.45 O embate entre a racionalidade ambiental e a racionalidade da modernidade surge diante da resistência que “o neoliberalismo ambiental busca debilitar as resistências da cultura e da natureza para subsumi-las dentro da lógica do capital”.46 O ideal de uma racionalidade ambiental surge com a constatação de que a crise não é só ambiental, mas, sim, uma crise civilizatória cujas raízes encontram-se nos fundamentos da racionalidade econômica.47 Embora se discuta uma nova racionalidade ambiental, é fundamental conceber que essa proposta surge num contexto em que a sociedade vive ainda a racionalidade econômica, mas que aos poucos começa a ser questionada. De acordo com Leff, esse pensar ...se forja nos interstícios dos escombros e nas muralhas da racionalidade que funda a modernidade não surge somente da confrontação com a racionalidade econômica, mas com o todo social que a contém, com a ordem jurídica e o poder do Estado. O ambiente emerge do campo da externalidade ao qual foi lançado pela centralidade da racionalidade econômica e o logocentrismo das ciências. Desta maneira, a questão ambiental veio problematizar as teorias científicas e os métodos de investigação para apreender uma realidade em vias de complexização que desborda a capacidade de compreensão dos paradigmas estabelecidos. 48 Essa problematização das ciências, citada pelo autor, é a proposta central, que leva a uma sensibilização ecológica de toda sociedade através da racionalidade ambiental. O Desafio Ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 11-12. LEFF, Enrique. Op. cit. 2009. p. 15. 46 Ibid. p. 29. 47 Ibid. p. 42. 48 Id. Racionalidade ambiental — a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 239. 44 45 56 Gestão Pública e Meio Ambiente: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de implementação da racionalidade ambiental O direito, nesse contexto, também é chamado a se reinventar, a se adaptar a essa nova realidade. Como bem assevera Santos que, ao analisar o direito no contexto de uma crise epistemológica, conclui ser esse um processo longo, marcado pelos riscos e inseguranças, mas que também se apresenta como fonte de inovações e oportunidades, e que, sobretudo, “num período de transição paradigmática, o conhecimento antigo é um guia fraco que precisa ser substituído por um novo conhecimento”.49 Destarte, buscando-se através da racionalidade ambiental bases para criar novos paradigmas, certamente encontrar-se-ão formas de suscitar uma efetiva sensibilização ecológica do direito como fator de sustentabilidade. É esse ideal de uma nova visão sobre as necessidades do homem e do ambiente, em conjunto, que encontramos na gestão e cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Considerações finais Pode-se verificar pelo presente trabalho que a água se encontra no centro de uma crise ambiental movida pelo modo de exploração dos recursos hídricos, pelos seus múltiplos usos, por contaminação, etc. e que a cada dia se agrava. Como uma das formas de solucionar ou ao menos amenizar esses problemas, surgiram as políticas públicas de gestão dos recursos hídricos, baseada num processo democrático e participativo para as tomadas de decisões que envolvem os múltiplos usos da água, enfocando, principalmente, a cobrança pelo uso como ferramenta de implementação de um modo mais racional de uso (racionalidade ambiental). No entanto, essa proposta encontra alguns percalços, aos quais nos referimos como problemas institucionais e de consciência dos usuários. A par dos problemas, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem-se mostrado uma valiosa ferramenta para garantir que se continue a usufruir de uma água de qualidade e em quantidade suficientes para o consumo humano e para sua utilização nas atividades básicas, pois assume dupla função: conscientizar o usuário do valor econômico da água e garantir capacidade para investimentos no setor de abastecimento de água. A gestão e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, como concluímos, servem de instrumento para implementação da racionalidade ambiental, pois reconhece que o ser humano está inserido dentro de um contexto maior, que é o ambiente em que ele vive, dependendo dele para sobreviver. Portanto servir-se de instrumentos que garantam a utilização sustentável desse meio é nada mais do que agir segundo os princípios da racionalidade ambiental. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2007. p. 186. 49 57 Artigo 3 Referências Águas de Março 2010. Dia Mundial da Água. Disponível em: <http://www.ana.gov. br/aguasdemarco/2010>. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Ecocivilização: ambiente e direito no limiar da vida. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. BRAGA, Roberto. Recursos hídricos e planejamento urbano e regional. Rio Claro: Laboratório de Planejamento Municipal – Deplan – Unesp – IGCE, 2003. BRASIL. Agência Nacional de Águas. A evolução da gestão dos recursos hídricos no Brasil. Brasília: ANA, 2002. BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Política Nacional de Recursos Hídricos: Legislação/Brasil. Ministério do Meio Ambiente – Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos, 2001. BRASIL. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Sistema nacional de informações sobre saneamento: diagnóstico dos serviços de água e esgotos – 2008. Brasília: Mcidades/SNSA, 2010. CAP-NET, et al Economia e gestão sustentável das águas. 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Expectativas do Poder Judiciário Alexia Rodrigues Brotto1 Maureen Cristina Sansana2 1 1 Acesso à justiça. 2 Os “problemas” do Poder Judiciário. 2.1 O tempo no processo. 2.2 Os custos e encargos do processo 3 Celeridade, efetividade processual e segurança jurídica. 4 Meios alternativos de acesso à justiça e pacificação social. 5 Premissas para que os meios alternativos de acesso à justiça sejam exitosos. 6 Métodos simples para tornar mais provável o acesso à justiça. Conclusão. Referências. Resumo A doutrina moderna não mais recepciona o direito de acesso à justiça como direito de ingressar e receber uma sentença no âmbito do Poder Judiciário. É necessário visualizá-lo como direito de receber uma tutela efetiva, que alberga uma série de outros tantos direitos. Ocorre que a aduzida efetividade vem sendo corriqueiramente abalada, isso porque se constata que a morosidade passa a predominar nos julgamentos, assim como a desproporção entre os custos exigidos pelo processo e o bem que se almeja tutelar. Não bastassem tais fatores, observa-se um Judiciário lutando constantemente para oferecer efetividade e segurança jurídica, tendo sempre que, de alguma forma, buscar conquistar índices de credibilidade dos jurisdicionados na sua atuação. Nesse contexto, surge a discussão de como será o acesso à justiça se a pacificação social advier de outros meios que não o tradicionalmente ofertado pelo Poder Judiciário, ingressando na análise dos meios alternativos. Atenta-se que esses métodos permitem maior participação das partes na resolução das pendências, o que acaba por promover maior sensação de justiça, assim como restringe o foco das discussões para o que Mestre em direito econômico e socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); advogada e professora de processo civil da Faneesp/Inesul; coordenadora de direito da Faneesp/Inesul. E-mail: [email protected]. 2 Mestranda do programa de pós-graduação, mestrado em direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR); advogada e professora da PUC-PR e do curso Professor Luiz Carlos. E-mail: [email protected]. 1 61 Artigo 4 realmente está dissonante nas relações sociais. Prega-se, então, que o formalismo exacerbado ceda espaço à informação e ao diálogo e, como consequência, aspira-se à menor saturação do Judiciário. Palavras-chave: acesso à justiça, efetividade, meios alternativos, pacificação social. Abstract The modern doctrine no longer greets the right to access to justice as the right to join and receive a sentence within the Judiciary. You must view it as the right to receive effective protection, which houses a host of others rights. It happens that the effectiveness has been adduced routinely shaken, because it turns out that the length becomes predominant in trials, as well as the disparity between the costs required by the process and aims as well as protect. These factors were not enough, there is a judiciary constantly striving to offer the effectiveness and legal certainty, and where, somehow, to conquer rates under jurisdiction of credibility in his performance. In this context there will be discussion of how access to justice to peacemaking social advies other means than traditionally offered by the judiciary, he entered into the analysis of alternative means. Given that these methods allow greater participation of the parties in resolving disputes, which ultimately promote a greater sense of justice as well as restricts the focus of discussions on what is really dyssomnias in social relations. Fold up, so that the space formalism exacerbated succumb to information and dialogue, and, consequently, aspires to a lower saturation of the Judiciary. Keywords: access to justice, effective, social appeasement. 1 Acesso à justiça O direito subjetivo de ação3, comumente reconhecido na doutrina brasileira como “direito de acesso à justiça” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2006. “O direito à jurisdição é o direito público subjetivo constitucionalmente assegurado ao cidadão de exigir do estado a prestação daquela atividade. A jurisdição é, então, de uma parte, direito fundamental do cidadão, e, de outra, dever do estado. O direito à jurisdição apresenta-se em três fases que se encadeiam e se completam, a saber: a) o acesso ao poder estatal prestador da jurisdição; b) a eficiência e prontidão da resposta estatal à demanda de jurisdição; e c) a eficácia da decisão juridita. A dicção, mesmo que constitucional, do direito à jurisdição não basta para que o cidadão tenha a segurança de ver assumido e solucionado pelo estado o conflito que, eventualmente, surja na aplicação do direito. (...). Por isso, é insuficiente que o estado positive a jurisdição como direito, enunciando-o na fórmula principiológica da inafastabilidade do controle judicial, mas não viabilize as condições para que este direito seja exercido pelos seus titulares de modo eficiente e eficaz” (TEIXEIRA, 1993. p. 31). 3 62 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário p. 87) para defesa de seus direitos, foi ampliado pela Constituição Federal de 1988.4 passando a abranger não somente a lesão, mas também a ameaça de lesão a direito, colocando o Poder Judiciário e, consequentemente, o processo como instrumento de viabilização dessa relação entre o lesionado e/ou ameaçado e o juiz. Por essa razão, falar-se em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade significa falar dele como algo posto à disposição das pessoas, com vistas a fazê-las mais felizes (ou menos infelizes), mediante a eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões justas (DINAMARCO, 2003. p. 372-373). O princípio do acesso à justiça, nas palavras de Cappelletti (1974. p. 67), foi um dos grandes problemas processuais vividos desde o século passado5, tendo obtido sua primeira vitória com a supressão das jurisdições privilegiadas e com a proclamação da gratuidade da justiça. Entretanto, a revolução jurisdicional acerca do acesso à justiça não eliminou todas as demais cargas patrimoniais necessárias para ingressar em juízo e, pior, criou um sistema tão amplo de acesso ao judiciário – com a gratuidade da justiça, ausência de advogado nos Juizados Especiais – fazendo com que se solucionasse o problema do ingresso à justiça, mas, devido ao sobranceiro número de demandas, não viabilizou o acesso à adequada prestação da tutela jurisdicional, que também é componente do princípio do acesso à justiça. A respeito lecionam Cintra, Grinover e Dinamarco (2006. p. 39-40): Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo. (...), para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se adequadamente, sendo também condenáveis as restrições quanto a determinadas causas (pequeno valor, interesses difusos); mas, para a integralidade do acesso à justiça, é preciso isso e muito mais. (...). O acesso à justiça é, pois, a ideia central a que converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias. Assim, (a) oferece-se a mais ampla admissão de pessoas e causas ao processo (universalidade da jurisdição), depois (b) garante-se a todas elas a observância das regras que consubstanciam o devido processo legal, para que (c) possam participar intensamente da formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa, podendo exigir dela a (d) efetividade de uma participação em diálogo – tudo isso com vistas a preparar uma solução que seja justa, seja capaz de eliminar todo o resíduo de insatisfação. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 4 XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Inclusive com o episódio que envergonhou o direito brasileiro, a exemplo do que ocorreu no sistema jurídico dos estados totalitários da primeira metade deste século, que proibiam o acesso à justiça por questões raciais. (NERY Júnior, 1996. p. 94). 5 63 Artigo 4 Em análoga linha de pensamento, prescreve Marinoni (2006. p. 65): O direito de acesso à justiça, que na verdade garante a realização concreta de todos os demais direitos, exige que sejam preordenados procedimentos destinados a conferir ao jurisdicionado o direito à tutela adequada, tempestiva e efetiva. Nesse sentido, por direito de acesso à justiça entende-se o direito à preordenação de procedimentos realmente capazes de prestar a tutela adequada, tempestiva e efetiva. Isso porque o acesso à justiça não deve ser compreendido como mero ingresso em juízo (DINAMARCO, 2005a. p. 134), mas como a pretensão endereçada ao magistrado para que produza um julgamento efetivo, adequado aos valores da sociedade, de modo a propiciar à parte litigante não só sua admissão em juízo, mas também sua participação ativa no processo. O princípio do acesso à justiça – intimamente ligado aos princípios da inafastabilidade e indeclinabilidade do Judiciário, consagrados constitucionalmente – é a síntese de todos os princípios e garantias do processo (DINAMARCO, 2003. 373), informando também o princípio da inafastabilidade, na medida em que se buscam métodos idôneos de fazer atuar os direitos sociais e uma justiça mais humana, simples e acessível (PORTANOVA, 1999. p. 84). De fato, todas as medidas com vistas à universalidade do processo e da jurisdição (DINAMARCO, 2003. p. 373) consubstanciam a garantia constitucional do controle judiciário e o primeiro passo para o acesso à justiça. No entanto, aflui-se a insuficiência do tão só alargamento do âmbito de pessoas e causas capazes de ingressar em juízo, de forma a ser imprescindível o aprimoramento da ordem processual, apta a disponibilizar resultados satisfatórios e tempestivos às partes. Nesse diapasão, traz-se à baila importante lição de Carmen Lúcia Antunes Rocha (TEIXEIRA, 1993. p. 34) consignando que A jurisdição é direito de todos e dever do estado, à maneira de outros serviços públicos que neste final de século se tornaram obrigação positiva de prestação afirmativa necessária da pessoa estatal. A sua negativa ou a sua oferta insuficiente quanto ao objeto da prestação ou ao tempo de seu desempenho é descumprimento do dever positivo de que se não pode escusar a pessoa estatal, acarretando a sua responsabilidade integral. Mas o acesso aos órgãos prestadores da jurisdição por parte do cidadão depende de um desempenho prévio do estado, que se desdobra em dois comportamentos complementares: de um lado, impõe-se a facilitação do exercício do direito à jurisdição pela sua declaração normativa expressa, e, de outro, deve-se dar a saber ao povo deste como de todos os direitos fundamentais que lhes são assegurados. Esses comportamentos públicos são pressupostos imprescindíveis a serem cumpridos para que o direito à jurisdição não seja uma mentira legal ou uma possibilidade oficial, somente exercida por aqueles que dispõem de condições econômicas bastantes para saber de seus direitos e poder pagar o preço de seu exercício. 64 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário Bem acolhendo a postura da ministra do STF, Dinamarco (2005a. p. 133) entende que “não basta que o processo produza decisões intrinsecamente justas e bem postas, mas tardias ou não traduzidas em resultados práticos desejáveis; nem sendo desejável uma tutela jurisdicional efetiva e rápida, quando injusta”. Compreende o ilustre processualista que a plenitude do acesso à justiça importa remover os males resistentes à universalização da tutela jurisdicional6 e aperfeiçoar internamente o sistema processual. Acrescendo, Grinover (1990. p. 244) doutrina acerca da necessidade de presteza da prestação jurisdicional, como corolário do princípio do acesso à justiça: É necessário acentuar o conteúdo da ideia de acesso à justiça que não há de significar simplesmente o acesso ao Poder Judiciário; não só porque também existe o direito à assistência pré-processual, mas também num sentido mais amplo: é que acesso à justiça significa, e deve significar, não apenas o acesso aos tribunais, mas o acesso a um processo justo, o acesso ao devido processo legal, àquele conjunto de garantias tão importantes que fez com que Mauro Cappelletti dissesse constituir o mais importante dos direitos, na medida em que dele depende a viabilização dos demais direitos. Dessa forma, é insuficiente assegurar o simples acesso aos órgãos jurisdicionados para que se obtenha a tutela de seus direitos, fazendo-se necessário que a jurisdição seja prestada com a qualidade e efetividade que a situação fática lhe impõe, o que não se verifica no âmbito do Poder Judiciário, principalmente quando o assunto é morosidade. Afinal, nas palavras da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha (TEIXEIRA, 1993. p. 37), “às vezes a justiça que tarda falha. E falha exatamente porque tarda”. 2 Os “problemas” do poder judiciário 2.1 O tempo no processo A grande tendência do processo civil moderno orienta-se para resultados práticos, a fim de viabilizar a realização do direito e o acesso à justiça, com economia processual e celeridade, para que o povo não fuja da justiça (PINTO, 1998. p. 9). Entretanto, tem-se conhecimento de que a profunda verificação das verdades trazidas ao processo faz com que transcorra tempo (CAPPELLETTI, 1974. p. 46). Jaques (1958. p. 379) já asseverava, em 1934, que a Constituição deveria garantir o rápido andamento dos processos, entendendo naquela época a necessidade da celeridade processual. Igualmente, Cappelletti (1974. p. 46), asseverava que, muito Imperioso ressaltar que o acesso à justiça não diz respeito ao acesso a direitos. A tutela jurisdicional é a tutela a pessoas ou grupo de pessoas, sendo conferida ora ao autor, ora ao réu, e não necessariamente àquele, posto que sempre se refere a pessoas e não a direitos. Nesse sentido, Dinamarco, 2005a. p. 126. 6 65 Artigo 4 embora houvesse um grande movimento de reformas processuais na década de 70, uma das características trazidas do velho sistema processual ainda era a “enorme, insuportável duração dos processos”. Salienta o processualista que, apesar das tentativas dos países europeus, ao final do século XIX, em tornar os processos mais céleres – sobretudo a partir do iluminismo, com notório esforço de tornar o processo mais racional (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 16) – a duração ainda era tamanha, quer pela indevida glorificação dos tribunais e os procedimentos de apelação – sobretudo na Alemanha – quer pelo grande formalismo e dogmatismo de alguns países, agravada pela situação de inexecução das sentenças de primeiro grau até que se tenha transcorrido o término da apelação (CAPPELLETTI, 1974. p. 47-48 e 550). Em vista disso, como bem assevera o processualista francês, Jean Vincent (La Justice et ses Institutions. Paris, 1991), citado por Cármen Lúcia Antunes Rocha (TEIXEIRA, 1993. p. 37), surgiram alguns comportamentos paliativos como a diminuição do número de instâncias processuais e a adoção de procedimentos urgentes. No entanto, a carência de um diagnóstico verdadeiro e definitivo sobre as causas materiais e formais da lentidão da prestação jurisdicional não conduziu tais comportamentos a resultados satisfatórios. Logo, tamanho era o drama da elevada duração do processo – concebido como a síntese da relação jurídica progressiva (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 2006. p. 302) – que uma demanda civil, iniciada em 1968, levava aproximadamente 18 meses para ser julgado em primeiro grau pelos pretores e 30 meses pelos tribunais; em segundo grau, esse índice era elevado para 25 meses para ser julgado nos tribunais e 22 meses nas cortes de apelação (CAPPELLETTI, 1974. p. 549). Por conseguinte, apesar do elevado grau de verdade real que se obtinha com moroso procedimento, perdia-se em efetividade e, principalmente, na tutela e entrega adequada do bem da vida pretendido. Marinoni (1998. p. 163-164), recepcionando o entendimento Barbosa Moreira, explana acerca do tempo despendido para a cognição do feito: É certo que o ‘tempo’ despendido para a cognição da lide, através da investigação probatória, é reflexo da existência do estado e da necessidade que ele se impôs de, antes de tutelar os conflitos, averiguar a existência dos direitos afirmados em juízo. Mas é reflexo da existência do estado porque foi este que vedou a autotutela privada, não deixando outra saída ao jurisdicionado a não ser levar o seu direito ao seu conhecimento.(...) Se o estado proibiu a autotutela privada, é correto afirmar que ele está obrigado a prestar a tutela jurisdicional adequada a cada conflito de interesses. Nessa perspectiva, então, deve surgir a resposta intuitiva de que a inexistência de tutela adequada a determinada situação conflitiva significa a própria negação da tutela a que o estado se obrigou no momento 66 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário em que chamou a si o monopólio da jurisdição, já que o processo nada mais é do que a contrapartida que o estado oferece aos cidadãos diante da proibição da autotutela. Uma vez que o estado é obrigado a prestar a devida tutela jurisdicional, entendida esta como a tutela apta a tornar efetivo o direito material, todos têm direito à adequada tutela jurisdicional. Sem embargo, longe de ser uma preocupação apenas brasileira, a detença dos processos é assunto que preocupa o Poder Judiciário de diversos países, dos mais desenvolvidos aos menos adiantados. Na Europa, em que pese a Itália ser reconhecida pelo maior tempo de duração dos processos, houve sensível diminuição na morosidade nos últimos anos. Após tentativas de implementação de uma espécie de tramitação processual que permitisse rapidez sobre questões prejudiciais, enviada ao presidente do conselho da União Europeia, em novembro de 2004 , o Comunicado de Imprensa n. 27, de 21/3/20077, do Conselho de Justiça da Europa, relatou sensível baixa na demora de solução dos litígios8. Embora em países como os Estados Unidos da América9 se vislumbre a duração média dos processos civis, na primeira instância, de 21,8 meses em 2002 e de 22,5 meses em 2003, observa-se que quase 13% do total de pleitos duram só na primeira instância – de cognição longa e exauriente – mais de 3 anos10. Ocorre que nos Estados Unidos, em que pese a elevada quantidade de demandas e litigantes, a maioria dos casos finda na corte de apelação. A resposta final é dada em segunda instância e se torna irrecorrível, somente adentrando na seara da suprema corte acaso a matéria possua relevante interesse público. Tanto é assim que a média de julgamentos de demandas pela suprema corte gira em torno de seis processos ao ano. No Brasil, diversamente do que ocorre nos Estados Unidos, em que pese a vigência do princípio do duplo grau de jurisdição – pelo qual toda sentença deve ser revista por um órgão de grau superior – sobrevindo o acórdão proferido pelo Disponível em: <http://www.curia.europa.eu>. “A diminuição da duração dos processos, já observada nos anos de 2003 a 2005, consolidou-se em 2006. No que diz respeito aos reenvios prejudiciais, a duração média dos processos é atualmente de19,8 meses, ao passo que se situava em 25,5 meses em 2003, 23,5 meses em 2004 e 20,4 meses em 2005. Uma análise comparativa revela que, desde 1995, a duração média dos processos prejudiciais atingiu o seu nível mais baixo em 2006. Quanto às ações e aos recursos diretos e de decisões do Tribunal de Primeira Instância, a duração média foi, respectivamente, de 20 e 17,8 meses (21,3 meses e 20,9 meses em 2005)”. Disponível em: <http://www.curia. europa.eu>. 9 José Rogério Cruz e Tucci relata que, em estudo promovido pela Amercian Bar Association, o tempo tolerável de duração dos processos nos tribunais ordinários da justiça norte-americana seria de 12 meses em 90% das causas cíveis em geral; os 10% restantes, em decorrência de circunstâncias excepcionais, deveriam ser resolvidos em 24 meses, por força também da cláusula do julgamento rápido (“speedy trial clause”), contemplada pela 6ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 77-78). 10 Dados oficiais da justiça federal norte-americana. Disponível em: <http://www.uscourts.gov>. 7 8 67 Artigo 4 tribunal, é frequente a utilização de recursos especial e extraordinário, o que acaba por comprometer sobremaneira a demanda de trabalho do Supremo Tribunal Federal, sobrecarregando a própria estrutura do Poder Judiciário. Não bastasse, verifica-se, até mesmo em primeira e segunda instâncias, a sedimentação da tendência da elevada duração dos processos nos nossos fóruns e tribunais. A alta taxa de congestionamento dos processos judiciais é responsável pelo tempo de duração dos processos. Uma demanda civil demora de 10 a 20 meses na 1ª instância; de 20 a 40 meses na 2ª instância; e de 20 a 40 meses nas instâncias especiais, tudo isso dependendo do estado territorial, do objeto da lide etc., de forma que uma demanda leva, normalmente, cerca de 12 anos para ser decidida e fazer coisa julgada material, o que configura um arrepio aos princípios constitucionais da rápida duração dos processos, acesso à justiça e dignidade da pessoa humana. Independentemente dos fatores da lentidão da justiça serem institucionais, subjetivos ou de insuficiência material (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 99), o legislador pátrio, objetivando garantir aos jurisdicionados uma tutela célere, tempestiva, consentânea e eficaz, ensartou na Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional n. 45/2004, o inciso LXXVIII ao art. 5º, firmando a razoável duração do processo e os meios que garantem a celeridade de sua tramitação a todos os litigantes. Com similar proposta, firmou-se o Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano – assinado pelos três poderes da República em 15/12/2004, o qual frutificou em diversas normas renovatórias tendentes a acelerar o desenrolar dos processos judiciais11. E desde então surgiram vários projetos de lei aptos a conferir maior celeridade aos processos, implementando procedimentos que “desafogassem” um pouco o Poder Judiciário. Nessa perspectiva, já lecionavam os juristas argentinos Eduardo Graña e Rafael Antonio Bielsa (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 65): Um julgamento tardio irá perdendo progressivamente seu sentido reparador, na medida em que se postergue o momento do reconhecimento judicial dos direitos; e, transcorrido o tempo razoável para resolver a causa, qualquer solução será, de modo inexorável, “Nessa tendência de celeridade e razoável duração do processo foi proposta no Projeto de Lei n. 7.599/2006, dispondo a respeito de indenização devida pela prestação jurisdicional em prazo não razoável. Diz o art. 1º do referido projeto que o poder público indenizará os vencedores das ações judiciais, nas quais a prestação jurisdicional, e a consequente satisfação de direitos dos vencedores, tenha excedido razoável duração, fixada em lei com fundamento no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. E, reproduzindo a lei italiana nº 89, de 24.3.2001, o artigo 6º do Projeto 7.599/06 ainda estabelece a aplicação da responsabilidade objetiva do art. 37, § 6º da CF/88 aos agentes do Poder Judiciário responsáveis pela prestação jurisdicional em prazo não razoável. Disponível em: <http://www. camara.gov.br/sileg/integras/427722.doc)>. As constituições francesa e espanhola também se sedimentam nesse sentido. Sendo “detectada a dilação inoportuna, o tribunal condena os ‘cofres públicos’ do país demandado a uma indenização compatível com os prejuízos material e moral sofridos pelo litigante ou acusado queixoso” (CRUZ E TUCCI, 1997. p. 140). 11 68 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário injusta, por maior que seja o mérito científico do conteúdo da decisão. (...). Em suma, o resultado de um processo ‘não apenas deve outorgar uma satisfação jurídica às partes, como também, para que essa resposta seja a mais plena possível, a decisão final deve ser pronunciada em um lapso de tempo compatível com a natureza do objeto litigioso, visto que – caso contrário – se tornaria utópica a tutela jurisdicional de qualquer direito. Com a proposta de uma justiça mais célere e eficaz, implementaram-se, sobretudo no Código de Processo Civil, sucessivas reformas a fim de garantir maior celeridade na prestação jurisdicional, sem se perder em efetividade. Exemplos dessa ideia podem ser retirados de reforma do Recurso de Agravo de Instrumento (Lei 11.187/2005); instituição da fase processual de cumprimento de sentença (Lei 11.232/2005); alterações para não recebimento de recurso de apelação quando a sentença está conforme Súmula do STJ ou STF (Lei 11.276/2006); acréscimo do artigo 285-A para dispensa da citação e célere julgamento nas demandas idênticas (Lei 11.277/2006); Lei 11.280/2006 que, dentre outros objetivos, viabiliza a comunicação dos atos processuais por meios eletrônicos; possibilidade de admissão das decisões disponíveis em mídia eletrônica (Lei 11.341/2006); nova execução dos títulos executivos extrajudiciais (Lei 11.382/2006); acréscimo dos artigos 543-A e 543-B, instituindo a repercussão geral para os recursos encaminhados ao STF, visando à maior celeridade e presteza (Lei 11.418/2006); Lei 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização dos processos judiciais; acréscimo do artigo 543-C, estabelecendo o procedimento para julgamento de recursos repetitivos no STJ (Lei 11.671/2008). No mesmo ideal de celeridade e presteza na efetivação da tutela jurisdicional adequada, o Código de Processo Penal instituiu novos procedimentos visando a essa tendência, inclusive alterando as alegações finais escritas para alegações orais em 20 minutos, dentre outras alterações (Lei 11.719/2008). Todavia, independentemente da consciência de celeridade e adequada tutela jurisdicional, a delonga dos processos permanece elevada, sobretudo em razão de que as novas leis que conferem maior grau de celeridade e apropriada prestação da tutela jurisdicional nem sempre são aceitas pelos operadores do direito, bem como pela população em geral, esbarrando numa série de entraves burocráticos e ideológicos que reprimem a rapidez e eficácia da solução dos litígios. Isso sem mencionar a culpa que se atribui ao próprio Judiciário pela demora dos processos ou, quando não, se culpam os próprios advogados que “não conseguiram agilizar o processo”, refletindo o atual panorama processual brasileiro: moroso e insuficiente para atender às numerosas demandas e bem administrar o sistema judiciário. 69 Artigo 4 2.2 Os custos e encargos do processo Dinamarco (2003. p. 245) já explanava em anos anteriores que o sistema processual confiava aos litigantes muitas atividades como “imperativos do próprio interesse”, dirigindo-lhes variados e seguidos ônus ao longo de todo o arco do procedimento. Trata-se, no entendimento de Humberto Gomes de Barros (COSTA; DINAMARCO; RIBEIRO, 2004. p. 323), da prestação jurisdicional parcelada, a partir da qual cada ato jurisdicional, cada decisão, embora eficaz no plano teórico, resguarda sua inefetividade, dependendo de posterior manifestação das partes, com novos encargos sucumbenciais e nova decisão por outro órgão jurisdicional. Independentemente de se tratar de ônus absolutos ou relativos – correspondentes a atos causais ou indutivos – certo é que sempre haverá encargos a serem suportados pelas partes, tais como o ônus de demandar e, portanto, afirmar o seu direito em toda e qualquer fase do processo; o ônus de provar; o ônus de recorrer, transmitindo o julgamento da causa para o órgão ad quem; o ônus de comparecer ao processo; ou, ainda, o ônus de adiantar as custas processuais para realização de determinado ato judicial. Em relatório12 elaborado em 2004 pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, desenvolveu-se estudo acerca da evolução das despesas do Poder Judiciário de 1995 a 2002. De acordo com os gráficos apresentados no relatório, enquanto em 1995 a União respondia por 30,9% da despesa total, em 2002 passou a responder por 43,0%, de forma que a despesa com o Judiciário cresceu de R$ 25,3 bilhões de maio/04 em 1995, para R$ 32,9 bilhões em 1998 e R$ 28,6 bilhões em 2002. Nas comparações internacionais, com base no ano de 2000, o Brasil figurou na pior posição, quanto à participação das despesas do Judiciário no total da despesa do setor público, com 3,66%. O índice compara-se a uma média internacional de 0,97% e a uma posição compatível na reta de regressão de 0,86%, em função do valor das despesas totais do setor público. Esse excedente de 2,80 pontos percentuais, aplicado sobre a despesa total da união e dos estados ocorrida em 2002, em valores de maio de 2004, representaria um adicional de custo do sistema judiciário brasileiro de R$ 23,6 bilhões por ano. Colima proporcionar que, com as custas processuais bastante elevadas e não uniformes, abrangendo as taxas judiciárias, emolumentos, custos de diligências, remuneração de auxiliares eventuais, fica substancialmente difícil proporcionar à parte um processo sem muitos encargos, pois, além dos supracitados, a parte ainda arcará com eventuais despesas extraprocessuais, como captação de documentos, viagens etc., além da remuneração de seu advogado pelos serviços prestados e eventual reembolso à Disponível em: <http://www.mj.gov.br>. 12 70 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário outra parte pelas despesas suportadas (DINAMARCO, 2005b. p. 636) – os chamados honorários de sucumbência. Irresignados com notáveis encargos processuais a que se submete a parte litigante, insurgem-se Cintra, Grinover e Dinamarco (2006. p. 79): “se o processo é um instrumento, não pode exigir um dispêndio exagerado com relação aos bens que estão em disputa. E mesmo quando não se trata de bens materiais, deve haver uma necessária proporção entre fins e meios, para equilíbrio do binômio custo-benefício”. De costume, toda essa gama de encargos se torna demasiadamente vultosa em razão de que não somente as despesas com a remuneração dos serventuários da justiça e toda a sua organização interna são elevadas, mas também em razão de o próprio processo exigir vasta despesa para seu desenvolvimento e, às vezes, não cumprir sua função primordial de celeridade, tutela adequada etc. Nesse diapasão, Cintra, Grinover e Dinamarco (2006. p. 32) alertam que, ao lado da duração do processo, seu custo constitui importante óbice à plenitude do cumprimento da função pacificadora do processo: O processo civil tem-se mostrado um instrumento caro, seja pela necessidade de antecipar custas ao estado (os preparos), seja pelos honorários advocatícios, seja pelo custo às vezes bastante elevado das perícias. Tudo isso, como é perceptível à primeira vista, concorre para estreitar o canal de acesso à justiça através do processo. Ademais, não bastassem as despesas processuais, a própria lei instituiu um sistema de adiantamento das despesas processuais em certos momentos do processo, o que o processualista Moacyr Amaral Santos, citado por Dinamarco (2005b. p. 638) denomina “responsabilidade provisória ou definitiva”. Tal sistema consiste na atividade da parte vencida em pagar ao estado ou aos auxiliares da justiça algum valor ainda não recolhido (referente ao preparo, diligências do oficial de justiça e demais taxas judiciárias) e reembolsar o vencedor pelo que ele tiver adiantado. Conquanto tal situação se afigure, num primeiro momento, um tanto onerosa para a parte sucumbente, Dinamarco (2005b. p. 640) justifica a exigência do adiantamento de despesas no sentido de que ele evita a litigiosidade irresponsável, colocando “os possíveis demandantes a pensar sobre a viabilidade de suas pretensões”. Entretanto a tão só limitação ou restrição da onerosidade do processo não se constitui em sinônimo de eficácia e adequada prestação da tutela jurisdicional. Há necessidade da melhora dos mecanismos e releitura dos procedimentos utilizados, a fim de realmente viabilizar ao jurisdicionado a entrega do bem da vida pretendido num período razoável de tempo e sem demasiados encargos financeiros. 71 Artigo 4 3 Celeridade, efetividade processual e segurança jurídica O princípio da celeridade, embora não previsto expressamente no Código de Processo Civil, encontra-se presente no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal13, bem como no art. 125, inciso II14, do CPC, ainda que implicitamente, e na Lei dos Juizados Especiais15, consubstanciando a ideia de que a satisfação da pretensão de direito material seja garantida rapidamente. Entrementes, tem-se consciência de que a tão só celeridade processual não possui o condão de conferir efetividade ao processo. Celeridade e efetividade são conceitos distintos. Celeridade diz respeito àquilo que é célere, rápido, ligeiro e veloz; efetividade refere-se àquilo que é efetivo, permanente, que tem resultado, cumprimento e realização. A respeito do significado da efetividade processual, leciona Barroso (1993. p. 79): A efetividade significa, portanto, a realização do direito, o desempenho correto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. Para o processualista Dinamarco (2003. p. 330), a efetividade é a expressão resumida da ideia de que “o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sociopolítico-jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus escopos institucionais”. A origem dos problemas da efetividade16 vislumbra-se desde os primórdios do processo civil, sobretudo após a abertura do Judiciário à população, viabilizando um maior acesso (acesso ao Judiciário e não necessariamente à justiça) da população na perseguição de seus direitos. Não bastasse o problema da sobrecarga de demandas ao Judiciário, subsiste a celeuma da tutela jurisdicional que, se concedida de forma inadequada ou não atendente aos interesses das partes, também culmina em não efetividade. Isso em razão de a efetividade não corresponder somente à adequada tutela jurisdicional, mas “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 14 Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: II – velar pela rápida solução do litígio; 15 Art. 2º. O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. 16 Ovídio Baptista da Silva ressalta o estudo imperioso de Vittorio Denti (processualista italiano), que denuncia, com rigorosa precisão, as origens de nossos atuais problemas no que respeita à desejada maior efetividade da tutela processual, apontando o princípio da adaptação do procedimento às exigências da causa, o maior ou menor complexidade da demanda, bem como o poder discricionário do juiz, agravado pela situação de desconfiança nos magistrados, especialmente em primeiro grau. (WAMBIER, 1997. p. 416). 13 72 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário também consagrar a ideia de que essa tutela seja conferida de modo a garantir, de forma real, o direito posto em litígio.17 Por essa razão, Marinoni (1999. p. 32) ressalta que “a lentidão da justiça civil deve exigir cada vez mais atenção dos estudiosos do processo civil”. Isso porque a perda da celeridade acaba por descaracterizar a própria função de pacificação social do Poder Judiciário (DÓRIA, 1999. p. 18). Eis que cabe ao juiz o poder-dever de proporcionar uma rápida tutela jurisdicional com efetiva proteção de uma justiça célere e eficaz. Essa celeridade, para Portanova (1999. p. 171), constitui, juntamente com a economia de custo, economia de atos e eficiência da administração judiciária, uma vertente do princípio da economia processual, viabilizando também melhor administração da Justiça. Ora, tendo-se consciência de que o processo não deve conter atos inúteis, que prejudiquem seu bom andamento, e considerando-se a busca incessante pelo “procedimento rápido, sem prejuízo da segurança” (DIAS, 2003. p. 16), vislumbra-se a necessidade de confluência das expressões celeridade e segurança jurídica que, atuando conjuntamente, garantem um processo justo, com um mínimo de rapidez e um mínimo de segurança jurídica, sem ferir as demais garantias constitucionais previstas na Carta Maior. De fato, é preciso assegurar uma análise baseada na lei, mas, acima de tudo, que seja ágil, eficaz e segura, haja vista efetividade e segurança jurídica serem direitos fundamentais, garantidos por princípios constitucionais. O primeiro, denominado também de direito de acesso à justiça, consiste no direito de provocar a atuação do estado, para obter em prazo razoável uma decisão justa, capaz de incidir efetivamente no mundo fático. Já a segurança jurídica, que garante maior amparo das decisões judiciais, com maior grau de certeza jurídica. Na mesma balada, e com clareza, posiciona-se o professor Sérgio Luis Wetzel de Mattos (REPRO 120, 2005. p. 272) acerca desses institutos: “José Roberto dos Santos Bedaque lembra que a efetividade não depende tão somente da rápida duração do processo como do tipo da tutela pleiteada pela parte e conferida pelo judiciário. Demonstra o processualista civil que: “Em termos de efetividade do processo, a proteção conferida pela tutela declaratória é plena, pois prescinde de qualquer providência ulterior para assegurar por completo a satisfação da pretensão reclamada. O mesmo ocorre com a tutela constitutiva, que, do ponto de vista prático, opera automática modificação no plano substancial, atendendo integralmente à necessidade de seu titular. Por esse mesmo prisma da utilidade da prestação jurisdicional, a tutela executiva aproxima-se bastante da constitutiva, visto que ambas operam concretamente transformações no plano substancial, satisfazendo plenamente aquela pretensão trazida no mundo exterior. Já a tutela condenatória é a menos completa, pois não dá solução definitiva à situação da vida. Sua utilidade muitas vezes vai depender de outro provimento jurisdicional – o satisfativo – consubstanciado na tutela executiva, pois nem sempre o acatamento do direito nela declarado se faz espontaneamente” (BEDAQUE, 1997. p. 33). 17 73 Artigo 4 A segurança jurídica e a efetividade processual, com efeito, não podem ser arvoradas em valores absolutos.Trata-se de valores igualmente relevantes e inevitavelmente concorrentes no terreno do devido processo legal. A tutela da segurança jurídica encontra um limite insuperável na tutela da celeridade processual e vice-versa. O valor da segurança jurídica, assim, não pode primar, pura e simplesmente, sobre o valor da celeridade processual, nem este se sobrepor, em quaisquer circunstâncias, àquele. Por um lado, a efetividade da jurisdição é inconciliável com o garantismo radical e intransigente. Por outro, a aceleração ou sumarização desenfreada do procedimento põe em xeque as garantias do devido processo legal e, consequentemente, o próprio ideal de uma proteção jurídica efetiva. Assim, em que pese a tensão entre a efetividade e a segurança jurídica, ocasionada pela demora do processo, tais conceitos, para um ideal de justiça, devem vir harmonizados, de forma a relativizar tanto um quanto outro, para que ambos convivam regularmente e possam garantir um processo justo. Dessa forma, verifica-se que não é somente a prestação jurisdicional lenta que fere a crença ao Judiciário. O que mais afigura o descrédito do jurisdicionado é quando o bem da vida pretendido não lhe é entregue ao final da demanda. Nesse caso, as partes culpam seus advogados e o próprio juiz18, quando na verdade deveriam reivindicar soluções com vistas a pôr fim à ineficácia do processo. A esse respeito, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia Antunes Rocha (TEIXEIRA, 1993. p. 31), nomeada em 21 de junho de 2006, antes de conquistar célebre função, justificava que a insatisfação com o Judiciário sofre constante mutação dependendo de época em que se encontra, fazendo com que os indivíduos, julgados a cada momento pelo Poder Judiciário, também tenham os próprios pensamentos e conclusões sobre o desempenho do estado-juiz: Como se cuida de um direito do qual podem depender todos os outros, o seu conceito e entendimento pelos indivíduos é sempre especial. A própria natureza da função de julgar, que parece depender de algo mais que humano do julgador, torna o indivíduo mais sensível e confiado ou desconfiado da pessoa e de todo o aparato que personifica a fragilidade humana, envergando, sob o peso da toga, a leveza divina do juízo. Ora, o próprio sistema judiciário requer dos magistrados uma atuação sobre-humana que exige a adequada prestação jurisdicional, sem, contudo, prover condições regulares para seu desempenho. Consequentemente, os jurisdicionados passam a desacreditar na jurisdição e nos instrumentos “garantidores” de seus direitos. “Não se nega que, como em qualquer outra atividade humana, há juízes lentos, perplexos e até mesmo ‘letárgicos’, para usarmos expressão de Bertrand Russel. O que não se pode, entretanto, é generalizar, sobretudo quando se conhece a abnegação da grande maioria dos magistrados brasileiros, que se veem às voltas, especialmente no cível, com excessivo volume de serviço, bem acima da condição humana, a desanimar os diligentes e a justificar os preguiçosos”. (TEIXEIRA, 1993. p. 89). 18 74 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário Consubstanciado neste posicionamento, Carlos Alberto Garbi (BATISTA, 2004. p. 18) expõe com minudência: ...para a efetividade do processo não se deve buscar solução apenas em formas diferenciadas de tutela, mas também na revisão de todos os fatores que prejudicam o desenvolvimento do processo, não se afastando deste trabalho a revisão do papel dos próprios personagens da atividade jurisdicional que, acima de qualquer interesse, devem estar engajados na procura da solução dos problemas que contribuem para a atual crise do direito, como também no aprimoramento do estado de direito, que deve corresponder não apenas ao ideal, mas sobretudo ao plano de realizações. Assim, somente buscando métodos garantidores da efetividade processual, de modo a não lesar demasiadamente as partes, com o moroso e ineficaz procedimento, e, garantindo maior preparo dos operadores do direito, sobretudo no que diz respeito à solução de litígios, é que se poderá atingir o ideal de justiça. 4 Meios alternativos de acesso à justiça e à pacificação social Diante das principais questões que envolvem o Poder Judiciário, como celeridade, efetividade, custos, segurança, indaga-se se somente ele – Poder Judiciário – pode dar conta de conflitos. Ora, indubitável se apresenta que a falta de agilidade e a demora pela busca da segurança jurídica também são decorrentes da infinidade de causas que anualmente ingressam em juízo. Sendo assim, interessante é falar em outros meios pacificadores de conflito, nos quais haja maior participação das partes e, talvez por isso, probabilidade de maior efetividade. Azevedo (2009. p. 21) utiliza-se de um estudo realizado pela professora América Deborah Rhode para elucidar que a satisfação dos usuários com o devido processo legal depende da percepção que o procedimento foi justo. Também destaca que alguma participação do jurisdicionado na seleção dos processos a serem utilizados para dirimir suas questões aumenta significativamente a percepção de justiça. Pode-se constatar, desta feita, que as vias que incentivam a participação dos conflitantes na resolução de suas pendências podem ser profícuas, já que despertam para a maior sensação de justiça. Fala-se, então, em meios alternativos de acesso à justiça como auxiliadores do estado na pacificação social. Marinoni e Arenhart (2008. p. 34), nesse sentido, elucidam: O estado, apesar dos esforços dos legisladores em dotar seu processo jurisdicional de maior eficácia, tem encontrado dificuldades em solucionar, de forma rápida e efetiva, os conflitos a ele trazidos. 75 Artigo 4 Nesse sentido, procuram-se outras formas para a efetiva solução dos conflitos, falando-se em vias alternativas à do estado. Tratar dos meio alternativos de acesso à justiça não significa restringir o acesso às vias judiciais, até porque o ordenamento consagra o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5°, XXXV da CR). O que se está a clarificar é que podem as pessoas resolver os próprios dissabores, podendo contar, para tanto, com terceiros – não juízes – preparados na condução para o apaziguamento. Outro aspecto de extrema relevância quando da adoção de métodos diversos dos judiciais é que o contato entre as partes vai fazer com que o cerne dos debates seja efetivamente as questões dissonantes, e não a preocupação em confrontar o outro polo. Quer-se, assim, apenas evidenciar o que não se escusa, ou seja, quando as partes ingressam com demandas e promovem lides, há o despertar para uma relação extremamente adversarial, muitas vezes trazendo como principal meta o vencimento da outra parte, e não a pacificação do que foi posto. Dessa forma, acredita-se não despertar o melhor do ser humano, colocando-o em situações que o fazem desejar a calamidade do seu semelhante. De outro revés, enxerga-se, em métodos como a autocomposição e a heterocomposição, vias construtivas de gestão das disputas. Deixa-se claro, no entanto, que não se pretende conceder descréditos à atuação estatal na resolução de conflitos, isso porque “vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do estado ou por outros meios, desde que eficientes” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2006. p. 25-26). 5 Premissas para que os meios alternativos de acesso à justiça sejam exitosos Para que os métodos alternativos de acesso à justiça sejam exitosos em sua adoção, torna-se exigível a formação de um ambiente apto para tanto. Não se deve considerar que métodos como, por exemplo, a arbitragem ou a medição sejam métodos semelhantes ao processo judicial. Importa salientar que são distintos e que, se acaso o mesmo padrão de conduta seguido no processo judicial for também adotado em sede desses meios privados, a insatisfação das partes provavelmente ocorrerá. Azevedo (2009. p. 23 e 24) explica: A experiência dos últimos 20 anos tem mostrado que o comprometimento com a forma de resolução de disputa adotada (com respectivas características) influi significativamente para o adequado desenvolvimento do processo e, por conseguinte, para a satisfação das partes com a solução alcançada. Empresas e escritórios de advocacia que tratam arbitragem ou mediação como uma ‘forma secundária’ de resolução de disputas tendem a não investir em treinamento de seus advogados e administradores. Como consequência, 76 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário há o exercício intuitivo desses processos, que, em regra, se resume a aplicar a conduta profissional característica do processo judicial à mediação ou à arbitragem. Naturalmente, como visto acima, essa prática intuitiva em regra leva ao desvirtuamento da arbitragem e a consequentes custos mais elevados (ou redução dos níveis de satisfação dos usuários). No que concerne à mediação, como registrado em outra oportunidade, quando a autocomposição é desenvolvida intuitivamente, em razão da falta de técnica adequada, em regra, há por parte do mediador ou conciliador a imposição de um juízo de valor. Como consequência, há perda de legitimidade nessa ‘autocomposição intuitiva’, pois as partes muitas vezes não se sentem estimuladas a comporem seus conflitos e sim coagidas a tanto. Diante da necessidade de se criar um ambiente hábil para tornar frutuosa a aplicação dos meios alternativos de acesso à justiça, aponta-se que no Brasil há reticência para tanto, uma vez que é significativamente perceptível a formação litigiosa de seus bacharéis. Nesse contexto, Moessa de Souza (2009. p.79) acrescenta: Nós operadores jurídicos somos formados apenas para litigar, temos a cultura adversarial, do enfretamento, não somos treinados para ouvir, para dialogar, para identificar as prioridades e reais interesses. Somos acostumados a pensar que, necessariamente, alguém vai ganhar e alguém vai perder. A autora sugere que haja implementação do currículo nos cursos jurídicos, inserindo novas temáticas; acrescenta ainda que tanto os professores de direito como os operadores jurídicos devem procurar ficar a par desses métodos de resolução de conflitos alheios às vias estatais. Pondera-se inclusive que do próprio Poder Judiciário podem partir iniciativas que estimulem a solução das pendências; afinal, “a sustentabilidade do Poder Judiciário depende de incentivar uma justiça comunitária em que a própria sociedade local esteja capacitada, preparada e empoderada a solucionar seus conflitos” (BACELLAR, 2001. p. 90). Outra maneira de tornar atraente a utilização de meios de resolução de contendas fora do Judiciário é debater questões que envolvem custos. Cappelletti e Garth (1988. p. 87 e 88) de maneira límpida trataram do assunto: Outro método geral para evitar litígio judicial consiste em encorajar acordos pelo uso seletivo de incentivos econômicos. É claro que fatores econômicos tais como os custos do julgamento, os métodos pelos quais esses custos são alocados (incluindo os honorários antecipados), a taxa de inflação e a demora influenciam a disposição das partes para com a conciliação, mesmo que esses fatores possam afetar diferentemente os diversos tipos de litigante. A demora e os altos índices de inflação tornam um demandante em busca de numerário, especialmente quando se trata de um indivíduo isolado, mais ansioso por uma composição, de modo a poder receber alguma quantia desde logo. O valor elevado das custas, de modo especial (mas não exclusivo), na medida em que elas são impostas apenas 77 Artigo 4 ao sucumbente, também aumenta os riscos de um julgamento. Litigantes individuais são especialmente suscetíveis a essas pressões, porque não podem distribuir seus riscos entre diversas causas. Tais aspectos casam, de maneira peculiar, com o tão apregoado princípio da economia processual, vez que este preza pelo maior e melhor resultado utilizando-se da menor movimentação do processo. E se este nem precisar ser instaurado, maior a conveniência. Assim, constata-se que a mera elucidação da expectativa de gastos pode levar o litigante a desistir de ingressar ou de prosseguir com uma demanda, preferindo para tanto resolver sua pendência por meio de acordos, conforme preconizaram os autores citados, desenvolvendo nova maneira de encarar a solução de conflitos. 6 Métodos simples para tornar mais provável o acesso à justiça Supor que muitas vezes o apego a formalidades possa afastar a comunidade da procura da satisfação de seus direitos não parece algo de todo desarrazoado. Muitas vezes o rigorismo pelas formas processuais pode trazer a lentidão e, por consequência, a descrença na justiça, pois não raro são os relatos de desânimo em relação às atividades jurisdicionais. Dinamarco (2003. p.170) coloca os possíveis aspectos negativos que podem advir em razão do formalismo, da lentidão e da sensação de impunidade: A justiça vai decaindo da sua condição de alvo da admiração e confiança dos membros da população, perdendo vulto entre os credenda e os miranda, de que falam os sociólogos. O formalismo e a lentidão dos procedimentos, associados à estreiteza da via de acesso ao Poder Judiciário e à impunidade consentida pelos tribunais nestes tempos de verdadeira neurose em face da violência urbana, são fatores de degradação da legitimação do poder perante a sociedade brasileira contemporânea. São decepções que se somam a decepções e geram um estado de descrença e permanente decepção generalizada: conduzem a comportamentos rebeldes ao sistema jurídico, como os linchamentos e o surgimento de ‘justiceiros’, chegando a conferir à justiça, numa pesquisa de opinião pública, conceito nada abonador (nota 3,5 em escala de 0 a 10). A população não crê na eficiência do Poder Judiciário, prefere evitar o recurso a ele, não quer cooperar com ele. Mas sente que precisa dele e, apesar de tudo, respeita-o e crê na sua idoneidade. Esse mesmo autor, ao iniciar sua obra, reserva algumas linhas para demonstrar o mal que pende sobre o direito processual, o qual se esparge, logicamente, para o processo. Aduz que, por pender para o isolamento, o direito processual se mostra alheio à realidade, utilizando linguagem incomum e método introspectivo. Para o autor (DINAMARCO, 2003. p. 11): 78 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário Por imposição do seu próprio modo de ser, o direito processual sofre da natural propensão ao formalismo e ao isolamento. Ele não vai diretamente à realidade da vida nem fala a linguagem do homem comum. O homem comum o ignora, o próprio jurista o desdenha e os profissionais do foro lamentam as suas imperfeições, sem atinar com meios para melhorá-lo. A descrença de todos na justiça é efeito das mazelas de um sistema acomodado no tradicional método introspectivo, que não inclui a crítica do sistema mesmo e dos resultados que ele é capaz de oferecer aos consumidores finais do seu serviço, ou seja, aos membros da população. Complementando tais exposições, Moessa de Souza (2009. p. 60) acredita serem os obstáculos psicológicos e culturais uns dos principais entraves ao acesso à justiça: (...) consistentes na extrema dificuldade para a maioria da população no sentido de até mesmo reconhecer a existência de um direito, especialmente se este for de natureza coletiva, na justificável desconfiança que a população em geral (e em especial a mais carente) nutre em relação aos advogados e ao sistema jurídico como um todo e, ainda, na também justificável intimidação que as pessoas em geral sentem diante do formalismo do Judiciário e dos próprios advogados. Dentro desse contexto, ganham força métodos que prezam pelo diálogo e pela simplicidade, afinal, “com medidas simples, é possível realizar grandes obras. Na simplicidade está o segredo do sucesso” (BACELLAR, 2001. p. 39). Não é plausível conceber que a lei e seus ritos devam prevalecer sobre a pacificação social. Acredita-se, desta feita, que a solução que se destaca diante dos excessos de formalismo e da descrença pendentes sobre o Poder Judiciário sejam a informação e o fomento ao diálogo. Almeja-se, assim, incentivar medidas simples que tenham como primado informar e dialogar. Há de se denunciar que medidas com esse intuito já foram tomadas em passado recente e deram certo. Em 1982, o desconforto de alguns juízes do Rio Grande do Sul, ao assistirem que os jurisdicionados desistiam de seus direitos vez que a estrutura do Poder Judiciário lhes parecia distante, motivaram-se a realizar atendimentos informais – fora do horário de funcionamento do fórum – à população. Tratava-se do Conselho de Conciliação e Arbitramento, movimentação essa que foi tão vantajosa que chegou a ser a precursora dos juizados de pequenas causas no Brasil. Assim explica Andrighi (1990. p. 04): Como se verificou do breve histórico os juizados de pequenas causas no Brasil, muito embora essa não seja a forma mais adequada de acordo com o nosso sistema legislativo, iniciou-se de forma empírica e sem nenhum amparo legal – Conselho de Conciliação e 79 Artigo 4 Arbritramento – CCA, constituindo-se em experiência informal, donde resultavam acordos que constituíam títulos executivos extrajudiciais. É exatamente dentro desse cenário que os principais atributos dos meios alternativos de pacificação social vão fortalecendo e mostrando-se mais aptos a ampliar o acesso à justiça, evitando-se o desestímulo e a renúncia aos direitos. É o que Cintra, Grinover e Dinamarco (2003. p. 27) apontam quando especificam as características dessas formas pacificadoras não recorrentes do Poder Judiciário: A primeira característica dessas vertentes alternativas é a ruptura com o formalismo processual. A desformalização é uma tendência, quando se trata de dar pronta solução aos litígios, constituindo fator de celeridade. Depois, dada a preocupação social de levar a justiça a todos, também a gratuidade constitui característica marcante dessa tendência. Os meios informais gratuitos (ou pelo menos baratos) são obviamente mais acessíveis a todos e mais céleres, cumprindo melhor a função pacificadora. Por outro lado, como nem sempre o cumprimento estrito das normas contidas na lei é capaz de fazer justiça em todos os casos concretos, constitui característica dos meios alternativos de pacificação social também a delegalização, caracterizada por amplas margens de liberdade nas soluções não jurisdicionais (juízos de equidade e não juízes de direito, como no processo jurisdicional). Com essas características presentes em maior ou menor intensidade conforme o caso (direitos disponíveis ou indisponíveis), vão sendo incrementados os meios alternativos de pacificação social – representados essencialmente pela conciliação e arbitramento. Resta evidenciado que se dispor a informar, dialogar e a conceder métodos menos complicados para se aplacarem disputas é falar a linguagem dos meios alternativos de acesso à justiça. Observa-se que esses meios se apresentam potencialmente efetivos, pois proporcionam entendimento direto entre as partes, tornando-as invariavelmente melhores. Entrementes, também será possível visualizar maneira indireta de se evitar a permanência da saturação do Poder Judiciário, já que evitar a instauração de novos processos faz com que haja mais tempo e dedicação aos que já o abarrotam, promovendo-se seus julgamentos e, finalmente, os devidos arquivamentos. Conclusão Calamandrei (Eles, os Juízes, Vistos por um Advogado, 1960) já expressava em seus estudos a necessidade de consciência jurídica para a dimensão social do processo, tendo em vista sobretudo a abordagem do tema do acesso à justiça e da efetividade da tutela jurisdicional. Isso porque a doutrina tende a apontar como maior propósito do 80 Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos. Expectativas do Poder Judiciário Judiciário o escopo social, justamente por relacionar-se com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e seus membros. Embora existam outros escopos do processo, como a educação para exercício dos próprios direitos, preservação da liberdade, participação nos destinos da nação, preservação do ordenamento jurídico e atuação concreta do direito – que não deixa de ser a atuação do direito substancial (BEDAQUE, 1994. p. 51) –, há que se assentar o entendimento de que a pacificação social é o escopo maior da jurisdição e, consequentemente, de todo o sistema processual.19 Nesse diapasão, diante de todas as mazelas do Poder Judiciário, destacadas anteriormente, tais como a morosidade, os custos judiciais, a litigiosidade contida e o sentimento de perdedor e vencedor da demanda, é que se devem abrir os olhos aos métodos alternativos de solução de conflitos, justamente por trazerem uma vertente compatível à pacificação social sem que se dispendam maior tempo e encargos financeiros. Se é certo que, conforme Dinamarco (2003. p. 269), cada vez mais, a técnica processual deve adaptar-se às exigências sociais e políticas que atuam sobre o sistema processual – e, hodiernamente, não há qualquer outra preocupação social maior que a efetividade do processo em todas as suas vertentes –, por que não pensar e difundir a ideia pacificadora dos métodos extrajudiciais de resolução de conflitos como alternativa para a morosidade, ausência de efetividade presente hoje no nosso Poder Judiciário? Referências ANDRIGHI, Fátima Nancy. Juizado informal e especial de pequenas causas. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/1873>. AZEVEDO, André Gomma de. Fatores de efetividade de processos de resolução de disputas: uma análise sob a perspectiva construtivista. In: CASELLA, Paulo Borba; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Mediação de conflitos: novo paradigma de acesso à justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2009. BACELLAR, Roberto Portugal. 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(CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 2006. p. 31). 19 81 Artigo 4 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. BATISTA, Liliane Maria Busato. A quebra do sigilo bancário como meio de prova no direito processual civil brasileiro. Curitiba: Juruá, 2004. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. São Paulo: Malheiros, 1994. _______.Poderes instrutórios do juiz. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, ideologias, sociedad. Tradicción de: MELENDO, Santiago Sentis y BANZHAF, Tomás A. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Safe, 1988. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 22. ed. revisada e atualizada. 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As configurações produtivas, cada vez mais direcionadas à maximização dos lucros e em detrimento à garantia de observância de princípios protetivos, repercutem de forma negativa na organização social e influenciam no desequilíbrio das relações sociais. Os recentes escândalos e a crise econômica de grandes potências colocam em xeque o modelo até então adotado, que se sustenta no argumento da livre regulação do mercado como premissa elementar de desenvolvimento e geração de riquezas. O debate que surge desse cenário nos força a buscar identificar uma zona de convergência entre economia, intervenção do estado e o direito, interseção necessária e da qual dependem não apenas sujeitos colocados à margem, mas outros atores do cenário social. Dentro dessa perspectiva, encontramos o direito do trabalho, protetivo por natureza, mas que enfrenta o dissabor de ser considerado um entrave ao desenvolvimento econômico. O presente estudo tem o objetivo de analisar os reflexos do desenvolvimento econômico sob a perspectiva do trabalhador, especialmente quanto às potenciais melhorias que a nova dinâmica pode proporcionar e à efetivação dos direitos sociais previstos na legislação brasileira. Abstract Although economic development generates better integration between countries and economic free-trade areas it also helps to reduce many employees’ rights. New economic arrangements, targeted solely to maximize profit despite human and labor minimum Aluno do programa de Mestrado do Unicuritiba, na linha de pesquisa 2 (Atividade Empresarial e Constituição: inclusão e sustentabilidade). E-mail: [email protected] ou [email protected] 1 85 Artigo 5 rights produce vast social gaps and become an obstacle to social organization. The 2008/2009 economic crisis tied to irresponsible business conducts jeopardized basic fundamentals. The debate aroused by it indicated a rapid and necessary intervention to reposition the role of the Laws and the State itself. Labor law has an important role in this debate and this study tries to outline the reflections of this new economic model in workers’ rights and protection principles defined by Brazilian legislation. Palavras-chave: desenvolvimento econômico, direito do trabalho, liberalismo, direitos fundamentais, garantias. Introdução As transformações observadas na sociedade pós-moderna, tanto em termos de organização dos sistemas produtivos quanto em relação à intensificação das relações entre países e blocos econômicos, produzem reflexos em escalas e campos diversos. Sem sombra de dúvida, a sociedade atual não se encontra num estado de pureza a que se refere Bauman (1999), pois a intervenção humana foi capaz, nos últimos anos, de modificar completamente as estruturas de uma sociedade que fosse justa, equilibrada, que permitisse o desenvolvimento de todos os agentes na exata medida de suas necessidades. É a atuação do homem que, determinado a seguir uma preconcebida noção de ordem, tem o poder de definir a sensação de pertença, de estabelecer se algo está no lugar correto ou se atenta contra essa noção.2 Dentro do âmbito normativo, cabe-nos o questionamento se a ordem jurídica estabelecida é capaz de conferir aos indivíduos a real possibilidade de participação na sociedade e de garantir a efetividade dos direitos que lhes foram direcionados. Numa sociedade em que os princípios de Adam Smith, expostos em sua obra Wealth of Nations, parecem ser exatamente a ordem a que Bauman se referiu, com a lógica própria da economia e de seus agentes, o papel do estado parece ter sido reduzido significativamente. A visão puritana de que a economia possui a capacidade de se autorregular, que vendedores irão produzir bens e serviços exatamente o suficiente para atender à demanda de compradores, relação essa que irá gerar os sinais corretos, representados em forma de preços, que, por sua vez, irão determinar a alocação de recursos e eliminar os menos eficientes, é reforçada de forma quase inconteste. Kuttner (1991) indica que, enquanto a marcha neoliberal passava, as ideias de Keynes, ontraditórias ao ideário dominante, foram relevadas a notas de rodapé.3 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Tradução de: GAMA, Mauro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 14. 3 KUTTNER, Robert. The end of laissez-faire: national purpose and the global economy after de cold war. Canadá: Ramdom House, 1991. p. 3. 2 86 Direito, Economia e Estado: integração possível? No entanto o perfeito equilíbrio das forças concorrentes na criação de um ambiente econômico equilibrado deu lugar à mão invisível, que metaforicamente representaria a manipulação do jogo econômico de acordo com os interesses de poucos e que exerce um controle cada vez mais visível e evidente. O estado, então, representaria a desordem, um corpo estranho, cuja existência representa apenas o obstáculo ao desenvolvimento e à satisfação dos interesses individuais.4 Nesse cenário, resta claro que há uma zona de convergência entre direito e economia, especialmente no que diz respeito à interferência desta em relação àquele. Segundo Dallegrave (2003), a análise da atual conjuntura das relações sociais demanda uma abordagem interdisciplinar que perpassa pelo retorno a conceitos de Marx, Weber e Durkheim, autores que reafirmam a aproximação entre o direito, o estado e a economia.5 É justamente no âmbito dessa relação que se situa o universo do trabalho. Considerando o atual modelo de desenvolvimento econômico, especialmente em países ditos emergentes, o trabalho, componente importante do complexo sistema de relações econômicas, políticas, sociais e jurídicas que são travadas na sociedade contemporânea, pode possibilitar o efetivo gozo de direitos sociais aos indivíduos? É possível afirmar que crescimento e desenvolvimento econômico estenderam benefícios a todos?6 Este breve ensaio irá buscar respostas a tais questionamentos, propondo reflexões sobre as consequências do modelo econômico global em relação aos direitos dos trabalhadores e analisando possíveis desdobramentos futuros dessa conjuntura. 1 Estado e globalização: novo cenário, novos papéis 1.1 A primeira fase A relação entre estado e economia não é privilégio dos tempos modernos. Em cada época, essa relação adotava características peculiares, ora formando coalisões no sentido de reforçar determinado indivíduo ou grupo, ora assumindo papéis conflitantes, com tentativas de prevalência de um sobre o outro. Em perspectivas mais contemporâneas, o estado se organizou sob diferentes regimes, desde a monarquia, passando pelo absolutismo até chegar ao liberalismo, especialmente após a Revolução Francesa. O estado liberal, em sua concepção original, SISCU, João et al. (Org.). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. 5 DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Direito do trabalho contemporâneo: flexibilização e efetividade. São Paulo: Ltr, 2003. 6 LOT JÚNIOR, Rafael Ângelo. A economia globalizada e seus reflexos nos direitos trabalhistas. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. 4 87 Artigo 5 era marcadamente avesso a intervenções de qualquer sorte, especialmente no campo econômico, cabendo a ele, portanto, apenas o exercício de funções inerentes à própria soberania e efetivação no plano jurídico. Esse caráter de total abstenção, por óbvio, produz reflexos no campo social, onde não havia quem se ocupasse com as liberdades individuais e a garantia de direitos coletivos, e no campo econômico, onde a ideia de liberdade absoluta gerou total desequilíbrio na distribuição de renda e riquezas. Houve um indício da intervenção estatal ao final do século XIX, quando trabalhadores se organizaram para lutar por melhores condições de trabalho. O estado, nessa época, passou a intervir para criar uma rede de proteção legal, até mesmo porque a reconstrução da economia dependeria da união de esforços entre diversos atores socais. O crash da Bolsa de Nova York em 1929 marcou o início de uma nova fase, com maior intervenção estatal e o surgimento do estado do bem-estar social (welfare state). Justamente nessa época se teve notícia da doutrina de Keynes, que defende maior preocupação do estado com garantias mínimas de equilíbrio da economia, com vistas ao progresso social. A recuperação norte-americana foi combinada com a necessidade de recuperação da Europa após duas guerras mundiais, financiada, inclusive, pelos próprios Estados Unidos, com o chamado Plano Marshall. O auxílio americano, muito mais do que representar uma tentativa de consolidação de uma economia global que permitisse o desenvolvimento dos países de acordo com os princípios do capitalismo, cristalizou o conflito ideológico entre Ocidente e Oriente, este dominado pelo socialismo. O embate no campo das ideias logo deu origem a intensos conflitos militares, com destaque para as guerras da Coreia e do Vietnã e a corrida espacial. A queda do muro de Berlim em 1989 marcou o início da derrocada do socialismo, ciclo concluído com a extinção da União Soviética. A partir daí, a doutrina neoliberal tornou-se a cartilha fundamental de inúmeros países, com as políticas reforçadas pelo Consenso de Washington.7 1.2 Segunda fase A oposição às ideias de Keynes, consideradas reacionárias aos parâmetros do establishment, foi retomada por Milton Friedman e Friedrich von Haeyk, ambos integrantes da chamada Escola de Chicago, grupo de pensadores que defendia o mercado livre e a rejeição total da regulamentação dos negócios, ideias reforçadas amplamente nas cartilhas do Consenso de Washington e aplicada quase que religiosamente por OLIVEIRA, Vicente Kleber de Melo. A intervenção do estado na economia. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. p. 63-65. 7 88 Direito, Economia e Estado: integração possível? inúmeros países, especialmente os latino-americanos, como caminho à integração internacional.8 Segundo Fiori (apud BERCOVICI, 2006), o Brasil nunca foi representante genuíno da doutrina Keynesiana, com intervenção rígida em diversos campos, mas acabou por adotar uma forma híbrida. Adotou uma participação mais efetiva nos setores sociais, especialmente para disciplinar o trabalho e a cidadania, e mais liberal em setores econômicos, mormente no que diz respeito aos limites impostos à iniciativa privada. O risco, obviamente, é internalizar o clichê de que a liberdade concedida em alguns segmentos se encontra sob o manto do desenvolvimentismo, estabelecendo caminhos mais brandos que criam uma estrutura industrial desenvolvida, mas sem autonomia tecnológica e sustentação financeira, propulsores de desenvolvimento social.9 Sob essa perspectiva, Siscú et al indica: A alternativa novo-desenvolvimentista aos males do capitalismo é a constituição de um estado capaz de regular a economia – que deve ser constituída por um mercado forte e um sistema financeiro funcional –, isto é, que seja voltado para o financiamento, e não para a atividade especulativa. Portanto, na visão novo-desenvolvimentista, a concorrência é necessária porque estimula a inovação por parte dos empresários que tentam maximizar o lucro, o que torna o capitalismo dinâmico e revolucionário, e estabelece remunerações e riquezas diferenciadas aos indivíduos de acordo com as suas habilidades. Mas devem existir regras reguladoras para que não se tenha como resultado da concorrência o óbvio: perdem os grandes porque, numa briga, sempre se incorre em custos, e desaparecem os menores simplesmente porque são menores. [...] Na concepção novo-desenvolvimentista, o estado deve ser forte para permitir ao governo a implementação de políticas macroeconômicas defensivas ou expansionistas. [...] Uma economia de mercado desregulada com um estado fraco e com um governo paralisado não é capaz de ampliar a propriedade do capital, de garantir condições para um ambiente de concorrência sadia, de reduzir o desemprego ou de eliminar as desigualdades exageradas de renda e riqueza.10 Pompeu (2008) indica que apenas agora, depois das mais variadas teorias econômicas e do desenho político nacional e internacional, o estado e seus poderes despertam para a efetivação dos direitos sociais. O estado depende tanto do Poder Judiciário quanto das normas que regulam sua existência, as quais correm o risco de se tornar vazias, na medida em que o complexo de garantias não se mostra exequível. Não se pode conceber desenvolvimento econômico quando ele coloca em segundo plano o ESCOLA de Chicago. Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_ de_Chicago_(economia)>. Acesso em 5 nov. 2009. 9 BERCOVICI, Gilberto. Democracia, inclusão social e igualdade. Trabalho apresentado no XV Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – Conpedi. Manaus, 2006. Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Gilberto%20Bercovici.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2009. 10 SISCU, João et al (Org.). Novo-desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. xl-xli. 8 89 Artigo 5 próprio estado e sua população. Não há estado democrático de direito sem que as benesses de eventual democratização econômica estejam ao alcance de toda a população.11 Reich (2008), professor da Universidade de Berkeley, na introdução à sua mais recente obra Supercapitalism and the Financial Crisis, comenta: As individuals operating the market, we seek the best deals possible – the highest-quality products and services at lowest cost, the highest returns on investments at lowest risk. But as members of a society rapidly morphing into a global system of interdependent parts, we also want that system to have certain attributes. At the least, we want it to be fair. For example, we don’t want financial markets to be rigged in the direction of insiders or self-dealers. We also want the system to be sustainable, capable of benefitting future generations. We want it to have a reasonable degree of stability, so that none need be subjected to surprises so damaging as to push them or their families into dire poverty. […] How to balance what we want for ourselves and what we want from a market system? That’s where democracy comes in. Ideally, democracy offers an arena in which we can collectively deliberate about how markets should be organized both to maximize our objectives as self-seeking buyers and sellers with our goals as members of societies.12 Pinheiro Filho (2008) defende que o êxito nesse equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos representaria o bem-estar material, o que apenas poderia ser alcançado com a existência de sólidas instituições democráticas, políticas e econômicas, todas engajadas no desenvolvimento com responsabilidade e sem expor a autonomia estatal a riscos desnecessários.13 No mesmo sentido, Rocha Neto (2008): Outra grande confusão que se costuma fazer é com relação à troca de posições das coisas em nossa escala valorativa. De quando em vez, acabamos por ter como fim algo que na verdade não passa de um meio, um instrumento para que se atinja determinada meta. O desenvolvimento só passa a ser interessante quando o pensamos como uma ponte que nos POMPEU, Gina Marcílio. O estado, a constituição e a economia. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. REICH, Robert. Supercapitalism and the financial crisis. Disponível em: <http://www.robertreich.org/ reich/20090115.asp>. Acesso em: 6 nov. 2009. Tradução livre: “Como indivíduos que operam no mercado, procuramos os melhores acordos possíveis – os produtos de melhor qualidade e os serviços e menor custo, o maior retorno em investimentos com o menor risco. Mas como membros de uma sociedade que rapidamente se transforma em um sistema global de partes independentes, nós também queremos que o sistema tenha certos atributos. No mínimo, queremos que seja justo. Por exemplo, não desejamos que mercados financeiros sejam arrastados na direção de especuladores. Nós também queremos que o sistema seja sustentável, capaz de beneficiar gerações futuras. Nós queremos que ele tenha um grau razoável de estabilidade, de modo que ninguém fique sujeito a surpresas tão devastadoras quanto jogar a si próprios ou suas famílias na extrema pobreza. [...] Como equilibrar o que nós queremos com o que o mercado quer? É aí que entra a democracia. Em princípio, a democracia oferece um campo em que podemos deliberar coletivamente sobre como os mercados devem ser organizados para maximizar os nossos objetivos pessoais como vendedores e compradores e nossas metas como membros da sociedade”. 13 PINHEIRO FILHO, José Marcelo. Ordem econômica e social – dos planos econômicos à lei de responsabilidade fiscal. Uma evolução socioeconômica responsável. In: POMPEU, Gina Marcílio. Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. p.131. 11 12 90 Direito, Economia e Estado: integração possível? levará ao bem-estar dos povos. [...] A verdade é que hoje os meios têm se tornado mais importantes do que o próprio fim. Passamos a idolatrar os meios. A economia é uma ciência que está, todo o sempre, buscando atingir os fins que não passam de meios para a felicidade dos povos, vale dizer, seus fins são nossos meios. E aí mora um erro gigantesco, pois as políticas públicas se pautaram por objetivos meramente econômicos, esquecendo-se de que não são fins em si mesmos.14 (p. 44-45) Em verdade, após inúmeras batalhas contra o continuísmo em diversas escalas da vida social, a humanidade confiou ao estado suas esperanças e reivindicações de tornar possível uma vida em comunidade mais equilibrada, com oportunidades para todos, e na qual os direitos de personalidade tivessem seu pleno desenvolvimento. Ao estado cabe não apenas o respeito aos estritos limites da legislação que o dirige, mas também o efetivo papel de fomentar, através de ações positivas, a garantia e efetividade dos direitos sociais, os quais serão o princípio de garantia da sobrevivência do próprio estado organizado. Não há mais espaço, em pleno século XXI e em meio a um emergencial movimento de globalização econômica, para ações que não promovam o bem-estar da coletividade e o pleno exercício de suas liberdades. O padrão de comportamento a ser adotado pelo estado deve contemplar as novas expectativas dos indivíduos, então conhecedores das oportunidades que a expansão econômica pode lhes proporcionar e conscientes da necessidade de redução das desigualdades e do processo secular de exclusão.15 Bauman (1999) indica que a profundidade das mudanças é tamanha que acaba por reforçar justamente um dos conceitos mais perversos da globalização: a sensação de que as coisas constantemente fogem a um controle central. A um observador desatento, tal movimento poderia transparecer que a relação entre as forças invisíveis, capaz de produzir mutações, não tem nenhum objetivo predeterminado em razão da ausência de um centro controlador.16 O novo cenário global indica a necessidade de participação do estado em blocos econômicos regionais, abrindo-se, dessa forma, maiores possibilidades de concretizar um plano nacional que possibilite encontrar o equilíbrio entre interesses individuais e coletivos. No entanto integração não pode significar subjugação. O ROCHA NETO, Alcimor Aguiar. Constituição, política e economia: estudo hermenêutico sobre o desenvolvimento da esfera pública e do social e como isso pode se efetivar mediante a concretização da constituição. In: POMPEU, Gina Marcílio. Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. p. 44-45. 15 POMPEU, Gina Marcílio. O retorno do estado-nação na geografia da mundialização. Texto publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito–ConpedI. Brasília, 2008. Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/08_88.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2009. p. 1 332. 16 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de: PENCHEL, Marcos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 67. 14 91 Artigo 5 desenvolvimento econômico não pode estar limitado à especulação financeira e à concentração de renda, tampouco estar distante dos interesses da população.17 Infelizmente, no Brasil, assim como em diversos outros demais países da América Latina, o processo histórico, desde a época colonial, foi direcionado à subjugação. Em razão da ausência de conflitos para que se formasse verdadeiramente uma consciência de sociedade capaz de torná-la coesa e unificada em termos de objetivos comuns, o desenvolvimento sempre foi marcado por objetivos maleáveis, que se modificam de acordo com os interesses momentâneos. Faz-se necessário um novo marco desenvolvimentista, que encontre fundamentos em instituições fortalecidas que possam, mesmo diante das necessidades dos mercados e de outras forças, promover o desenvolvimento econômico e social. Sobre isso, Bauman (1999) comenta: Com efeito, não se espera mais que os novos estados, exatamente como os mais antigos na sua condição atual, exerçam muitas das funções outrora consideradas a razão de ser das burocracias da nação-estado. [...] O tripé da soberania foi abalado nos três pés. Claro, a perna econômica foi a mais afetada. Já incapazes de se manter guiados pelos interesses politicamente articulados da população do reino político soberano, as naçõesestado tornam-se cada vez mais executoras e plenipotenciárias de forças que não esperam controlar politicamente. [...] A única tarefa econômica permitida ao estado e que se espera que ele assuma é a de garantir um orçamento equilibrado, policiando e controlando as pressões locais por intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em defesa da população face às consequências mais sinistras da anarquia do mercado.18 E conclui, de forma a não deixar dúvidas: A integração e a divisão, a globalização e a territorialização são processos mutuamente complementares. Mais precisamente, são duas faces do mesmo processo: a redistribuição mundial de soberania, poder e liberdade de agir desencadeada (mas de forma alguma determinada) pelo salto radical na tecnologia da velocidade. A coincidência e o entrelaçamento da síntese e da dispersão, da integração e da decomposição são tudo, menos acidentais; e menos ainda passíveis de retificação. É por causa dessa coincidência e desse entrelaçamento das duas tendências aparentemente opostas, ambas desencadeadas pelo impacto divisor da nova liberdade de movimento, que os chamados processos ‘globalizantes’ redundam na redistribuição de privilégios e carências, de riqueza e pobreza, de recursos e impotência, de poder e ausência de poder, de liberdade e restrição. Testemunhamos hoje um processo de reestratificação mundial, no qual se constrói uma nova hierarquia sociocultural em escala planetária. 19 POMPEU, Gina Marcílio. Op. cit. p. 1 338. BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. p. 73-74. 19 BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. p. 77-78. 17 18 92 Direito, Economia e Estado: integração possível? A resposta brasileira à nova ordem acima retratada tem seus pilares fixados na adoção de um estado democrático de direito que se ocupa em garantir, ainda que minimamente, as liberdades individuais e coletivas. As ações do estado visam a criar ambiente favorável para a convivência equilibrada entre as diversas forças – internas e externas, de diversas naturezas – de forma a não apenas dar cabo à plataforma neoliberal, mas também reduzir a possibilidade de mera subversão da população aos interesses individuais.20 O processo de globalização significou, então, cada vez maior influência das variáveis externas no âmbito doméstico, reduzindo o espaço de atuação do estado nacional. A exigência por padrões internacionais de competitividade, qualidade de processos e produtividade de bens e serviços acaba por aproximar os estados do ponto de vista institucional e regulatório, e a consequência mais visível encontra-se na delineação de estratégias referentes ao mercado de trabalho e à macroeconomia. Ademais, todos estão sob uma constante vigília internacional. As medidas tomadas por um estado terão resposta automática de outros e a tendência que se observa é a do conservadorismo – explicado claramente na tentativa de estabelecer uma organização global padronizada, especialmente no que diz respeito à agenda econômica. A atuação do estado limita-se, em ultima análise, à criação de condições fundamentais de competição e participação no jogo global.21 Como visto, a tendência de liberação do mercado e a ampla abertura econômica tendem a fulminar os direitos sociais previstos na Constituição de 1988, uma vez que são direitos adquiridos por meio do estado. Se o mercado, dotado de organização e autodeterminação, é capaz equilibrar eventuais distorções, como compatibilizar suas diretrizes com a necessidade de reestruturação social para contemplar as demandas da coletividade? Perseguir um não significa automaticamente excluir o outro?22 É chegado o momento, portanto, de analisar a efetiva participação do estado na efetivação das garantias sociais, especialmente naquelas que dizem respeito ao trabalho, que, aliás, é atividade econômica que permite a mobilidade social. OLIVEIRA, Vicente Kleber de Melo. A intervenção do estado na economia. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. p. 65. 21 CARDOSO, Fernando Henrique. Consequências sociais da globalização. Conferência proferida no Indian International Centre, Nova Délhi, Índia, 1996. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/publi_04/ COLECAO/GLOBA2.HTM>. Acesso em: 6 nov. 2009. 22 SANTIN, Janaína Rigo. As novas fontes de poder no mundo globalizado: flexibilização ou sonegação de direitos? Texto publicado nos Anais do XVI Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Direito – Conpedi. p. 3024-3043. Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://www.conpedi. org/manaus/arquivos/anais/bh/janaina_rigo_santin.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2009. 20 93 Artigo 5 2 A sociedade pós-moderna e o mundo do trabalho Segundo Dallegrave (2003), as transformações na organização econômica global produzem três efeitos significativos no mundo do trabalho, quais sejam o aumento do desemprego mundial, a reestruturação do sistema produtivo e a precariedade das condições de trabalho.23 Na análise de Alcântara (apud DALLEGRAVE, 2003), o desemprego se manifesta no cenário brasileiro também em decorrência de três outros fatores, a saber: (a) a política econômica, marcadamente recessiva, despreocupada com o crescimento sustentável; (b) permanência de trabalhadores com idade avançada no mercado de trabalho em razão da precariedade da proteção social; (c) a inserção precoce de crianças no mercado de trabalho, principalmente em razão da falta de escolaridade e da necessidade de complementar a renda familiar.24 A reestruturação do sistema produtivo é um fenômeno que se observa há tempos. As alterações na organização das linhas de produção são verificadas desde os primórdios da produção automobilística de Henry Ford. O objetivo é, claramente, maximizar a produção, com melhor utilização dos recursos e menor custo. Ocorre que, atualmente, tais alterações possuem a capacidade de produzir reflexos em escala global, na medida em que uma empresa pode ter acesso a recursos em diferentes cantos do planeta. E é exatamente nesse âmbito que se argumenta acerca do principal reflexo da globalização: a precarização das relações de trabalho. Lot (2008) comenta que expressões como “flexibilização” e “mitigação” passam a ser aplicadas de forma reiterada para explicar ou justificar uma variação negativa dos direitos dos trabalhadores em nome do desenvolvimento.25 No mesmo sentido, Brandão (2003): O modelo industrial no qual foi erigida a legislação trabalhista está sendo ultrapassado. A chamada sociedade pós-industrial, dentro de um contexto neoliberal e de globalização econômica, acirra a competitividade entre as empresas e impõe profundas transformações no sistema de produção, sempre visando à maximização do lucro. Esse cenário atua em prejuízo do hipossuficiente, que muitas vezes é afastado da tutela protecionista do direito do trabalho em razão da superação de alguns de seus institutos, dentre os quais aqueles que estabelecem a definição jurídica do empregado.26 DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Direito do trabalho contemporâneo: flexibilização e efetividade. São Paulo: Ltr, 2003. p. 17. 24 Idem, ibidem. 25 LOT JÚNIOR, Rafael Ângelo. A economia globalizada e seus reflexos nos direitos trabalhistas. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/Universidade de Fortaleza, 2008. p. 179. 26 BRANDÃO, Jefferson Ramos. Contrato de trabalho na sociedade pós-industrial e a necessidade de revisão dos requisitos da relação de emprego. In: DALLEGRAVE NETO, José Affonso (Coord.). Direito do trabalho contemporâneo: flexibilização e efetividade. São Paulo: Ltr, 2003. p. 33. 23 94 Direito, Economia e Estado: integração possível? Diante de novos paradigmas, estabelecidos em escala global, há que se considerar a atuação do estado brasileiro na formulação de políticas públicas que possam conter o impacto negativo no âmbito do trabalho e emprego. Desde Keynes, dentre as principais funções do ente público, além do controle dos preços, o equilíbrio das contas externas e a distribuição de renda, encontra-se o estabelecimento de políticas de emprego alinhadas com o programa de desenvolvimento econômico. No entanto, para países emergentes ou em desenvolvimento, que dependem de financiamentos externos para impulsionar a economia, as políticas traçadas no campo econômico acabam por refletir nos aspectos sociais. Muito embora o diagnóstico mais comum indique que as restrições de oportunidades de pleno emprego sejam causadas por restrições macroeconômicas, o principal obstáculo está no enfrentamento de tais limitações através da adoção apenas de uma agenda microeconômica, isto é, de ações pontuais, restritas às fronteiras do estado e cujo êxito dependeria de inúmeros fatores externos.27 No Brasil, as políticas públicas parecem seguir determinado padrão institucional, isto é, aplicam-se independentemente da orientação político do grupo que está no governo. Pode-se dizer que tais políticas públicas são divididas em dois planos: o das instituições, que se ocupam com a regulação dos aspectos operacionais da relação de trabalho, controle esse cristalizado na legislação trabalhista, e o das intervenções, que envolvem os investimentos do poder público na geração e manutenção dos empregos, bem como da definição de estratégias de proteção social aos desempregados (seguro-desemprego).28 Mesmo com essa atuação estatal, seja na perspectiva direta de financiamento ou na de proteção, o crescimento econômico nem sempre produz ambiente favorável para a inclusão social. Nas palavras de Herman (2005): Nas economias de mercado, a produção de bens e serviços é movida por expectativas de lucro. Estas, por sua vez, dependem das expectativas de evolução dos custos, de produção e comercialização, da demanda pelo produto e de seus respectivos preços. A combinação entre quantidade demandada e preços – em geral, negativamente relacionadas entre si – define a receita da firma que, confrontada com os custos, determina sua margem de lucro. Como o comportamento esperado dessas variáveis só pode ser confirmado ou negado ex post, isto é, depois dos bens produzidos e efetivamente colocados à disposição do mercado, toda a atividade produtiva em economias de mercado envolve algum tipo de risco de frustração das expectativas de lucro. Essa possibilidade de frustração atua, por vezes, como um desestímulo ao aumento da produção e do emprego agregados, 27 SALM, Claudio. Estagnação econômica, desemprego e exclusão social. In: SISCU, João et al. (Org.). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. 192-193. 28 Idem, p. 204-205. 95 Artigo 5 ou mesmo à manutenção do nível corrente de atividade: quando, para um número expressivo de firmas, o risco estimado é muito alto, ou as condições do mercado são muito incertas, a ponto de impedir a formulação de estimativas relativamente seguras, a atividade econômica fica comprometida. Do mesmo modo, quando as condições dos mercados inspiram expectativas otimistas, acompanhadas de baixo risco – estimado – de frustração, a produção e o emprego são estimulados.29 Bonelli (2009) indica que o Brasil vem, nos últimos tempos, empreendendo esforços para estimular o ambiente econômico mediante reformas institucionais – políticas, sociais, jurídicas e administrativas. O estado consegue compreender o papel duplo que exerce, ou seja, o de provedor de serviços essenciais para a população e o de regulador da atividade econômica, contrariando até mesmo uma tendência histórica verificada nos países da América Latina, onde, aliás, cabe mencionar o esforço do ente público no sentido de estabelecer regras que permitam desenhar um campo de oportunidades reais para as empresas privadas, sem que isso represente uma retração de conquistas no campo social.30 Fica evidente, portanto, que cabe ao estado não apenas atuar de forma passiva, simplesmente adequando as políticas sociais de acesso e manutenção de emprego e renda, mas também como agente ativo na formação de um ambiente de negócios que permita a atuação das empresas de acordo com objetivos de desenvolvimento. Quanto maior o risco para a atividade econômica e seus agentes, menor a possibilidade de efetiva colaboração para a formação de uma conjuntura que permite, em última análise, a verdadeira promoção de direitos sociais, dentre eles o pleno emprego. Saboia (2003) indica que a relação entre crescimento econômico e melhoria das condições de trabalho é visível. Historicamente, nos momentos em que se verificaram índices positivos de crescimento econômico, as taxas de desemprego diminuíram. Assim, para gerar mais empregos, a economia deve crescer de maneira contínua, o que não tem ocorrido na economia brasileira. Além dessa instabilidade, o caso brasileiro apresenta, ainda, um paradoxo difícil se ser superado: o aumento da produtividade nas empresas aqui estabelecidas, via automação ou outras formas de aumento de eficiência, acaba por eliminar parte dos empregos. Ademais, há que se mencionar, ainda, o fato de os investimentos públicos, quando realizados, concentrarem-se nos segmentos mais tradicionais, que possuem maior potencial de geração de empregos, mas que, por outro lado, pagam os menores salários. Outros setores, mais modernos HERMAN, Jeniffer. Microcrédito como política de geração de emprego e renda: possibilidades e limites. In: SISCU, João et al. (Org.). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. 274-275 30 BONELLI, Regis. Estado e economia: estado e crescimento econômico no Brasil. Texto para discussão do Ipea n. 1.393, 2009. 29 96 Direito, Economia e Estado: integração possível? e fundamentais para o país se tornar competitivo no cenário internacional, não têm recebido incentivos que permitam crescimento sustentável ou que representem efetiva possibilidade de expansão das garantias sociais.31 É justamente nesse âmbito que se insere a discussão sobre a flexibilização como meio de estender os benefícios do desenvolvimento econômico. O questionamento que se coloca, então, diante da atual conjuntura econômica: até que ponto é aceitável justificar o desenvolvimento às custas da redução de direitos do trabalhador. É certo que há uma nova ordem econômica e social e, nesse cenário, os antigos paradigmas do emprego, da participação do estado e da iniciativa privada, levam-nos à reflexão acerca da existência de efetiva garantia aos direitos sociais, erigidos ao status constitucional na Carta Magna de 1988. 3 A Constituição Federal e a proteção aos direitos do trabalhador frente ao desenvolvimento econômico A Constituição Federal de 1998 elegeu, como fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV). Fixou, ainda, o trabalho como um dos direitos sociais fundamentais (art. 6º) e estabeleceu, de forma expressa, diversos direitos dos trabalhadores, sem mencionar outras possíveis ações que possam contribuir para a melhoria da condição social do trabalhador (art. 7º, caput e incisos). O legislador constituinte não se olvidou, ainda, de estabelecer equilíbrio entre os preceitos referentes à condição humana anteriormente indicados e aqueles que dizem respeito à atividade econômica. Ao definir os princípios gerais da atividade econômica, a Carta Magna registra que ela terá como um de seus fundamentos a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, ambos direcionados a assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput), e que o pleno emprego será um de seus princípios (art. 170, VIII). Nesse sentido, Pucci (2008): Dessa forma, significa que a ordem econômica, de acordo com o art. 170, VIII da Constituição Federal, prioriza o trabalho humano sobre todos os demais valores da economia. Observa-se, portanto, a conotação humana que toma a economia brasileira de acordo com a Carta Magna de 1988, embora se viva sob o regime de uma economia capitalista. Assim, o fato de a economia abarcar todos aqueles que estão em idade produtiva e aptos a trabalhar de forma que possam garantir a sua subsistência, auferindo SABOIA, João. Mercado de trabalho no Brasil: fatos e alternativas. In: SISCU, João et al. (Org.). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. 230- 31 97 Artigo 5 uma contraprestação pecuniária justa pelo seu trabalho, permitindo-se, assim, uma existência humana digna, seria a verdadeira concretização do princípio do pleno emprego.32 A efetiva aplicação dessa rede de proteção, no entanto, tem sido obstaculizada pela dinâmica econômica observada a partir da década de 90, época marcada pela desregulamentação de mercados, processos de privatização, expansão de empresas transnacionais, maior influência do capital externo, especialmente o financeiro, e desenvolvimento de novas tecnologias. Em razão dessa complexa e intensa agenda econômica, alteram-se as relações de trabalho como eram conhecidas anteriormente, especialmente no que diz respeito às tradicionais relações assalariadas formais.33 No entanto a alteração das relações do trabalho não significou evolução do complexo normativo. O trabalho, aqui entendido como atividade econômica, é extremamente regulado e, nesse âmbito, há prevalência de normas legais sobre outras formas de regulação. Nossa legislação trabalhista se ocupou de regular praticamente todos os aspectos do ciclo de trabalho – desde a descrição de cargos até a remuneração e a representação dos trabalhadores, modelo que, por ser extremamente positivista, torna árdua e praticamente impossível a compatibilização com a dinâmica evolução da atividade econômica.34 De acordo com Campos (2009), o paradigma que impede a ampliação da proteção social a todos os indivíduos inseridos no mercado de trabalho passa pelo fato de que, desde sua origem, carrega uma restrição intrínseca, estrutural: Ainda hoje, o acesso dos trabalhadores aos benefícios gerados pelo capitalismo brasileiro depende, em grande medida, de sua condição de empregados com direitos laborais/ previdenciários. Afinal, ao menos no plano do “dever-ser”, a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) faz com que os empregados tenham garantias de acesso a um rol de benefícios econômicos, sociais e políticos que, em outras posições ocupacionais, lhes são inteiramente negadas. [...] a CTPS faz com que os empregados tenham garantias de benefícios que, em outras posições da estrutura ocupacional, simplesmente não existem. E agora, com base em uma análise meramente descritiva das informações da Pnad/IBGE, já se constata que essas garantias se traduzem em direitos propriamente ditos. Os assalariados (e, em certas situações, também os domésticos) com carteira apresentam perspectivas mais amplas de permanência no trabalho, especialmente quando comparados com os assalariados (e os domésticos) sem carteira. Paralelamente, os primeiros trabalham em PUCCI, Pedro Henrique Holanda. O estado e o pleno emprego: análise funcional e perspectiva crítica. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, constituição e economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz/ Universidade de Fortaleza, 2008. p. 198. 33 CAMPOS, André Gambier. Novos aspectos da regulação do trabalho no Brasil. Qual o papel do estado? Texto para discussão do Ipea n. 1 407, 2009. 34 NORONHA, Eduardo Garuti apud CAMPOS, André Gambier. O modelo legislado de relações de trabalho no Brasil. In: Novos aspectos da regulação do trabalho no Brasil. Qual o papel do estado? Texto para discussão do Ipea n. 1.407, 2009. 32 98 Direito, Economia e Estado: integração possível? estabelecimentosminimamenteestruturadose com condições minimamente adequadas de segurança e saúde. Contam com maiores remunerações e com alguns benefícios indiretos. Dispõem de melhores possibilidades de organização e negociação coletivas – o que incide, por sua vez, nos próprios direitos já expostos. E, finalmente, têm a proteção de benefícios previdenciários – como as aposentadorias, as pensões, os auxílios, os “salários” etc. [...] Não só no plano do dever-ser, mas também no do ser, constata-se que a CTPS assegura um amplo conjunto de benefícios para os empregados. Apesar disso, verificar-se-á que, entre o início da década de 1990 e o da atual, o emprego com carteira perdeu algo de sua relevância na estrutura ocupacional brasileira.35 Não há como negar, portanto, que a efetivação dos direitos sociais inscritos na Constituição Federal e nas normas infraconstitucionais depende, inicialmente, de uma mudança de paradigma com relação à atividade econômica representada pelo trabalho. A estrutura normativa não terá a mínima condição de se mostrar eficaz, se considerar apenas o emprego formal e a tradicional perspectiva de atividade laboral. Em longo prazo, tal abordagem apenas contribui para um odioso movimento de exclusão social. A dualidade representada pelo mercado formal e o informal já não é mais a única preocupação da agenda pública referente ao pleno emprego e não explica a dificuldade de estender a proteção social. Há uma notável e irreversível desconstituição da sociedade salarial e, nesse cenário, há significativa exclusão da classe trabalhadora na medida em que apenas tem acesso a algumas garantias no momento em que se insere formalmente no mercado de trabalho.36 Qual é, então, a importância de trazer à discussão a conjuntura da atuação do estado frente às mudanças produzidas no mercado de trabalho? Cardoso (2007) esclarece: No caso brasileiro, a importância de discutir o comportamento do emprego formal decorre basicamente de duas frentes. Em primeiro lugar, quando considerado apenas da perspectiva do mercado de trabalho, sua importância reside no fato de que sobre esse tipo de relação se molda todo o arcabouço legal de regulamentação das condições de uso, remuneração e proteçãosocialaosocupadoseàqueleseventualmentedesempregadostemporariamente.Em outras palavras, é a partir da relação trabalhista formal/legal que se estabelece um tipo de mediação mais civilizada entre capital e trabalho, por meio da qual as relações laborais deixam de pertencer meramente à esfera privada dos negócios e passam a desfrutar de um estatuto público. O respeito ao aparato e ao ordenamento jurídico que dali emana é condição necessária para um funcionamento mais regrado, equilibrado e homogêneo desse mercado, condizente com parâmetros mínimos de civilidade e sociabilidade entre as partes. Dessa perspectiva, a informalidade deve ser vista como toda e qualquer situação ilegal de trabalho, CAMPOS, André Gambier. Op. cit. p. 24. SALM, Claudio. Op. cit. p. 203. 35 36 99 Artigo 5 que não cumpre nem respeita a legislação trabalhista em vigor, independentemente dos seus méritos e defeitos intrínsecos. Com isso, toda a relação laboral caracterizada – direta ou disfarçadamente – como assalariamento sem carteira assinada deve ser considerada ilegal e informalnostermosaquipropostos.Jáaquelapartedaocupaçãogenuinamentecaracterizada como trabalho autônomo ou por conta própria não pode a rigor ser classificada como ilegal simplesmente pelo fato de se tratar de situações laborais não legisladas. Mas embora não seja ilegal na acepção da palavra, ela deve ser considerada como informal, no sentido estrito da ausência ou precariedade de relação de trabalho assalariada, vale dizer, uma situação laboral em que não é nítida a separação entre capital e trabalho. Em segundo lugar, quando analisado da perspectiva do modelo dominante de proteção social urbano do país, aquele de inspiração contributiva-bismarckiana, a importância do emprego formal transcende as fronteiras relativas ao ordenamento do mercado de trabalho, para se referir também às condições pelas quais as pessoas desfrutarão de proteção individual contra os riscos clássicos do mundo do trabalho, isto é: i) para trabalhadores economicamente ativos, proteção temporária contra a perda circunstancial de capacidade laborativa e de renda, como nos casos de desemprego involuntário, maternidade, acidentes de trabalho, doenças, reclusão; e ii) para aqueles em inatividade laboral permanente, proteção vitalícia pela via de pensões por morte e aposentadorias por tempo de serviço, tempo de contribuição ou invalidez definitiva para o trabalho. Dessa perspectiva, a informalidade está associada ao não cumprimento da legislação previdenciária, garantidora daqueles direitos sociais. Ocorre que, na origem do modelo brasileiro de proteção social, pressupunha-se, por intermédio da carteira de trabalho assinada, total correspondência entre relação trabalhista assalariada e vinculação previdenciária compulsória, o que tornaria informais e sem direitos previdenciários quaisquer trabalhadores sem carteira assinada.37 Sem dúvida, cabe ao estado proporcionar meios de manutenção da atividade econômica representada pelo trabalho, reconhecendo, diante de tantas evidências, que existe imensa gama de indivíduos aos quais as garantias individuais ainda precisam ser efetivadas. De acordo com Amorim e Gonzalez (2009), os números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e Emprego (Caged/MTE) para o período de janeiro a maio de 2009 indicam aumento do total de desligamentos do setor formal em relação ao mesmo período de 2008, com percentual de 7,2% para o Brasil e de 8,7% para as regiões metropolitanas.38 Essa massa de trabalhadores provavelmente permanecerá exercendo algum tipo de atividade econômica, sem a possibilidade. entretanto, de gozar os benefícios que a Constituição Federal tanto se preocupou em estabelecer. CARDOSO JÚNIOR, José Celso. De volta para o futuro? As fontes de recuperação do emprego formal no Brasil e as condições para a sustentabilidade temporal. Texto para discussão do Ipea n. 1310, 2007. 38 AMORIM, Bruno; GONZALEZ, Roberto. O seguro-desemprego como resposta à crise no emprego: alcance e limites. In: Boletim mercado de trabalho – Conjuntura e Análise, n. 40. Brasília, Ipea, 2009. p. 43. 37 100 Direito, Economia e Estado: integração possível? O espectro de atuação estatal parece ter-se ocupado, nos últimos anos, de outras variáveis. Ciente de que não há como solucionar de imediato a questão da informalidade – ou, pelo menos, de minimizar o impacto de exclusão social – o poder público busca alternativas para criar condições favoráveis à iniciativa privada, como a rediscussão da tributação sobre o a folha de pagamento e uma distribuição mais equilibrada dos encargos sociais entre empregadores e trabalhadores. Nas palavras de Saboia (2005): Em primeiro lugar, é preciso criar condições para um crescimento econômico sustentado com taxas anuais no mínimo iguais a 4% ao longo dos próximos anos. Essa representaria a principal condição necessária para a melhoria do mercado de trabalho. Para maximizar a oferta de empregos, entretanto, seria desejável que o crescimento econômico fosse dirigido para aqueles setores com maior potencial de geração de empregos diretos e indiretos, em geral representados pela agropecuária, alguns segmentos tradicionais da indústria de transformação e de serviços, a indústria da construção e a administração pública. Cabe notar que o objetivo de maior geração de emprego poderá entrar em conflito com o processo de modernização do país, geralmente voltado para setores com maiores níveis de produtividade, muitas vezes com capacidade limitada de geração de empregos.39 De fato, o maior desafio das políticas públicas no que diz respeito ao trabalho e emprego será a definição de uma pauta que tenha condições de oferecer não apenas o crescimento estatístico do nível de emprego, mas sua evolução fundamentada em bases sólidas que permitam a expansão efetiva dos direitos sociais. Como alternativas, a simplificação da legislação trabalhista, a maior participação de trabalhadores na previdência social, a maior fiscalização das atividades informais, a redistribuição de investimentos e a efetiva transferência dos resultados do desenvolvimento econômico à população. Conclusão Dentre as diversas alternativas para as garantias pretendidas pela Carta Magna produzirem plenos efeitos na sociedade, poderíamos citar a simplificação dos tributos, o equilíbrio nos gastos públicos, o incremento de investimentos no setor produtivo, a melhor utilização de recursos para acelerar a competitividade e possibilitar a consequente melhoria da qualidade dos produtos e serviços e a inovação científica e tecnológica como algumas das medidas que poderiam determinar o início de um ciclo virtuoso de crescimento da economia.40 SABOIA, João. Mercado de trabalho no Brasil: fatos e alternativas. In: SISCU, João et al. (Org.). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social. Barueri: Manole, 2005. p. 236. 40 GROSSO, Cristiano Pinheiro. Limites da flexibilização no direito do trabalho à luz do desenvolvimento econômico e social. Dissertação de Mestrado, Universidade de Marília, 2007. p. 121. 39 101 Artigo 5 Os reflexos da globalização não significam que o estado deva assumir um papel menor. Caminha-se, sim, na direção de um estado que, ao intervir na atividade econômica, o faça de modo a garantir o cumprimento de certas prioridades, que tenha a capacidade de direcionar sua atuação na melhoria das condições estruturais do país, a ponto de garantir os direitos fundamentais dos indivíduos. Atualmente, a via mais segura para evitar a marginalização dos estados e das respectivas populações é a promoção do crescimento econômico sustentado, pela adoção de políticas corretas. Nada ocorre, contudo, sem a participação efetiva da sociedade civil e de instituições fortalecidas. A atuação deficiente do estado pode resultar em odioso processo de inserção instável ou inserção marginal, nas palavras de Barra e Lopes (2004). A crise social, muitas vezes analisada especialmente sob o prisma econômico, adquire novos contornos na medida em que o principal reflexo está na ilusão de inclusão social e melhoria das condições de trabalho e vida. Em verdade, o que se cria com o distanciamento do estado das atividades econômicas ligadas ao mundo do trabalho é a mera sensação de inserção, que obviamente se mostrará inverídica na medida em que não se cria uma rede de proteção sólida o bastante para evitar a informalidade, tampouco uma zona de estabilidade econômica capaz de induzir a iniciativa privada a sustentar o desenvolvimento econômico.41 A tentativa, então, é a busca pelo estabelecimento não apenas de uma agenda econômica, com maior austeridade fiscal, redução de gastos públicos e melhor estruturação da máquina estatal, mas sim de um verdadeiro ambiente de crescimento social, com ampliação das garantias e efetivação dos direitos e garantias expressas na Constituição Federal. BARRA E LOPES, Edmar Aparecido de. Mercado de trabalho, “Informalidade” e “exclusão social”: dimensões de um debate. In: Rev. Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns, Fecha/FEA – Goiás, 1: 43-57, nov. 2004. 41 102 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família Gislaine Fernandes de Oliveira Mascarenhas Aureliano1 Introdução. 1 Teoria às avessas e conceito. 2 Separação da personalidade jurídica da sociedade e dos sócios. 3 Teoria às avessas e pressupostos. 4 Teoria às avessas e principiologia. 5 Conceito de princípio. 6 Princípio da isonomia. 7 Princípio da dignidade da pessoa humana. 8 Princípio da razoabilidade. 9 A possibilidade de aplicação imediata dos princípios a casos concretos. 10 Teoria às avessas no estado contemporâneo – globalização. 11 O convívio em sociedade como decorrência das necessidades do homem – aplicação da teoria às avessas. 12 Relevância da teoria às avessas no estado contemporâneo e sua abrangência no mundo real – jurisprudências. Conclusão. Referências Resumo O estado contemporâneo nas relações empresariais, assim como em qualquer espécie de relação jurídica, deve ser entendido no sentido de efetivação dos direitos. A teoria às avessas da desconsideração da personalidade jurídica cria no mundo jurídico um avanço, uma expectativa de concretizar questões até então esquecidas ou dormentes, sendo atualmente deferidas pelos magistrados quando se denota simulação, fraude e/ ou abuso de direito por parte do sócio. Os princípios são aplicados, mesmo que de forma implícita, aos casos concretos e geram opiniões satisfatórias para as relações empresariais, levando-se em conta ainda o aspecto da interpretação e argumentação de regras preexistentes. Apura-se o real sentido da Teoria às Avessas, as suas perspectivas no direito comercial e no direito de família. Mestre em direito negocial (relações empresariais nacionais e internacionais) na Universidade Estadual de Londrina – UEL, pós-graduada pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná – Jacarezinho, bacharel em direito pela faculdade estadual de direito do Norte Pioneiro – Jacarezinho, docente em direito empresarial e direito processual penal na Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti – Feati, oficiala de Justiça do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – Comarca Ribeirão do Pinhal. 1 103 Artigo 6 Palavras-chave: direito negocial, relações empresariais, teoria às avessas, efetividade dos direitos, direito comercial e direito de família. Abstract The contemporary state in business, as well as any kind of legal relationship must be understood as enforcement of rights. The theory in reverse of the disregard of legal personality in the world creates a legal breakthrough, an expectation of achieving issues hitherto forgotten or dormant, and is currently deferred by the magistrates when the simulation indicates, fraud and / or abuse of rights by the partner. The principles are applied, even implicitly, in specific instances and generate opinions satisfactory to the business, taking into account also the aspect of interpretation and discussion of pre-existing rules. Clears up the real meaning of the theory in reverse, its prospects in commercial law and family law. Keywords: law negotiation, business relationships, theory in reverse, effectiveness of rights, commercial law and family law. Introdução O direito empresarial tem sofrido várias alterações no que se refere a seus efeitos, objetivos e finalidades. Os homens são reveladores de opiniões diversas e argumentos ímpares, reagindo, muitas vezes, de forma a burlar a própria lei, aproveitando-se de situações benéficas, como a aplicação do princípio da autonomia patrimonial, tão em voga, mas não merecedora de crédito quando o conjunto comprobatório demonstrar fraude, simulação e/ou abuso de direito por parte do sócio, ocorrendo, nesse caso, a desconsideração da personalidade jurídica. Diante de modificações e avanços alcançados pelo homem, graças ao intelecto, levando-se em consideração a globalização e demais questões hodiernas apresentadas, surgem situações não regradas, ou seja, que não apresentam dispositivos legais para a real aplicação. É nesse aspecto que nasce a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa ou também chamada teoria às avessas, demonstrando ao mundo jurídico a pertinência em sua aplicação diante de questões apresentadas pelos jurisdicionados – tema do presente estudo. O objetivo é demonstrar a seriedade e o relevo da teoria às avessas no mundo contemporâneo, mediante exposição de decisões de magistrados nesse sentido, tanto no direito comercial quanto no direito de família, quando houver demonstração de 104 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família fraude, simulação e/ou abuso de direito por parte do sócio que transfere seus bens particulares à sociedade empresária de que faça parte, a fim de não quitar seus débitos junto a terceiros envolvidos no litígio. Ultrapassando barreiras, cria-se um ideal de justiça e perseverança de que efetivamente considerando, o aplicador da lei deve esmiuçar o sentido e conteúdo do caso apresentado para, contribuindo com seu entendimento imparcial, desconsiderar a personalidade jurídica do sócio que assim atua. A base principiológica é fundamental para a concretização dos direitos violados, mesmo que implicitamente considerada. Nesse aspecto, o presente trabalho tem por finalidade expor as discussões doutrinárias, os argumentos utilizados pelos magistrados a fim de se chegar a um fim social equitativo e digno. Então, a proposta é no sentido de transparecer as ideias hodiernamente utilizadas, e a concretização de direitos, aplicando-se regras através de interpretações realizadas pelos magistrados, com o fim precípuo de aniquilar os atos praticados sob o véu do ilícito. 1 Teoria às avessas e conceito A expressão “teoria às avessas ou teoria inversa da desconsideração da personalidade jurídica” é relevante para o direito negocial no Estado Contemporâneo, pois é a busca pela responsabilização da sociedade no tocante às dívidas ou aos atos praticados pelos sócios, sendo utilizada, para isso, a quebra da autonomia patrimonial. A desconsideração inversa da responsabilidade ocorre no sentido oposto, isto é, os bens da sociedade respondem por atos praticados pelos sócios, casos em que estes obtêm o absoluto controle dos bens da sociedade. Um exemplo para a efetiva aplicação da teoria às avessas seria a situação de terceiros que, tendo em vista o fato de o sócio residir em suntuosa casa, com inúmeros carros importados na garagem, deduzindo os terceiros pela teoria da aparência, que não terão prejuízo com o sócio, diante de atitudes e bens que comporta. Todavia, após realizado o acordo, é descoberto que os bens utilizados pelo sócio são de propriedade da empresa, pessoa jurídica. O que fazer? O negócio jurídico já foi celebrado; o terceiro é pessoa infimamente pobre perante o sócio, que apresenta vários bens em seu poder, apesar de estar no nome da empresa; hipótese de fraude? Mônica Gusmão, em sua doutrina Direito Empresarial, argumenta que pode ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica inversa, a fim de responsabilizar a pessoa jurídica por atos praticados por seus sócios. (GUSMÃO, 2005. p. 75). O doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, na obra Direito Civil Brasileiro, expõe o seguinte sobre o assunto: “Caracteriza-se a ‘desconsideração inversa’ quando é 105 Artigo 6 afastado o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio[...]”. (GONÇALVES, 2009. p. 219). Fábio Ulho Coelho, na doutrina Curso de Direito Comercial, relata que “A ‘desconsideração inversa’ consiste em desconsiderar a autonomia da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação do sócio, que desviou seus bens para a pessoa jurídica sob seu total controle” (COELHO, 1999. p. 45). A ilustre doutrinadora Giselda M. F. Novaes Hironaka, em Direito de Empresas, apresenta sua opinião acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica: Mister recordar que a desconsideração pode também dar-se de maneira ‘inversa’. Na desconsideração tradicional responsabiliza-se sócio por dívida formalmente imputada à sociedade, enquanto na modalidade inversa desconsidera-se a pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação do sócio. (HIRONAKA, 2008, p. 163). Assim como a desconsideração da personalidade jurídica, a teoria às avessas será aplicada sempre que for apurado o uso abusivo, simulado ou fraudulento da pessoa jurídica, prejudicando dessa forma, credores ou terceiros; a aplicação da desconsideração inversa, da mesma forma que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não visa à anulação da personalidade jurídica, mas apenas à declaração da ineficácia para determinado ato. 3 Separação da personalidade jurídica da sociedade e dos sócios Necessário expor que o princípio da separação da personalidade jurídica da sociedade e dos sócios, ou princípio da autonomia da vontade, não será destruído, atingindo apenas o episódio sem atingir a validade do ato constitutivo da sociedade. Rubens Requião em trabalho pioneiro no Brasil assegura, em sua doutrina Curso de Direito Comercial, o seguinte: Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos. (REQUIÃO, 1969. p.14). Portanto o princípio da separação do patrimônio do sócio e da sociedade é relativizado, através da teoria às avessas, quando o sócio utiliza esse princípio como anteparo para a prática de fraude, abuso e simulação. Dessa forma, todos aqueles que, valendo-se do manto societário, agirem de modo fraudulento ou abusivo ou simulado responderão pelos créditos insatisfeitos dos credores sociais. 106 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família Desse modo, como visto na doutrina e jurisprudência, a proteção da personalidade jurídica está positivada de tal forma a evitar malícia ou desvirtuamento em sua utilização. 3 Teoria às avessas e pressupostos Para efetivamente ser desconsiderada inversamente a personalidade jurídica pelos julgadores, deverão estar presentes alguns pressupostos: o desvio de bens – simulação, fraude ou abuso de direito, utilizando-se o sócio do manto da autonomia patrimonial a fim de transferir ou esconder bens, prejudicando assim os credores contratantes. Assim, a pessoa jurídica e os sócios poderão responder por uso abusivo, simulado ou fraudulento da sociedade, tanto direta como inversamente, atingindo os bens sociais, no tocante à responsabilização do sócio ou mesmo do cônjuge empresário, no caso do Direito de Família. Nesse aspecto, os bens do sócio estão em nome da sociedade, ficando devidamente comprovada a má-fé por parte dele, sendo desconsiderada a personalidade jurídica de forma inversa a fim de ressarcir o terceiro prejudicado. Desconsiderada inversamente a personalidade jurídica, surgem alguns efeitos que merecem ser apresentados: 1) a quebra do princípio da autonomia patrimonial; 2) o alcance dos bens patrimoniais da sociedade; 3) no Direito de Família, em que mormente é utilizada a desconsideração jurídica inversa, a partilha de bens do casal. No pertinente ao primeiro tópico, a autonomia patrimonial, vale lembrar que os patrimônios e as responsabilidades são diversas e, por isso, conservadas independentemente da pessoa física e da pessoa jurídica. Nesse sentido, foi iniciada ampla utilização dessa autonomia patrimonial de forma indevida, surgindo, desse ínterim, a quebra da autonomia patrimonial, desde que verificada a fraude, simulação e/ou abuso de direito, com o fim precípuo de prejudicar terceiros. Nesse caso, o princípio da autonomia patrimonial é relativizado, em decorrência de que não se pode considerar sempre o véu protetor das responsabilidades, sendo desfeita quando verificada a situação de fraude, abuso ou simulação, por parte do sócio que registra bens em nome da sociedade empresária com a finalidade de burlar o pagamento de terceiros, bem como a própria lei. A quebra da autonomia patrimonial é, sem sombra de dúvidas, um avanço e uma proteção maior ao instituto da pessoa jurídica, e essa proteção está na aplicação da desconsideração inversa. Nesse sentido, o antigo Tribunal de Alçada do Paraná julgou a seguinte Apelação Cível: 107 Artigo 6 Constatando-se que a pessoa jurídica está a encobrir interesses ilícitos de seu sócio, em prejuízo ao direito creditício de terceiro, é de se aplicar a regra da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a fim de assegurar que o bem do devedor, incorporado ao patrimônio da sociedade com o manifesto intuito de fraudar a lei, continue garantindo a execução através da penhora realizada, até ulteriores termos. 6ª Câmara. Apelação Cível n. 74.819-6. Relator Juiz Bonejos Demchuck. Julgado em 24/4/1995. Assim, a quebra da autonomia patrimonial estará autorizada ao magistrado sempre que forem comprovadas manobras maliciosas por parte dos sócios, prejudicando terceiros e burlando a própria lei. Necessário expor que a desconsideração inversa é utilizada tanto no Direito Comercial quanto no Direito de Família, perfeitamente aceita quando há transferência do patrimônio particular do devedor – sócio – à sociedade, com o interesse de desobrigar-se de responsabilidades perante terceiro e, mesmo, no caso de Direito de Família, na ação de separação ou divórcio, na partilha de bens do casal e ainda no pagamento de pensão alimentícia – isentando o sócio, muitas vezes, da obrigação, em virtude de inexistirem bens passíveis de penhora, em decorrência do que expõe o artigo 732, do Código de Processo Civil, quando estiver diante de fase executiva, porque registrou seus bens pessoais em nome da sociedade empresária, agindo com fraude, simulação e/ou abuso de direito. Nesse caso, os bens desviados para a sociedade empresária serão alcançados, ocorrendo uma responsabilidade coletiva e consequente atribuição e vinculação ao pagamento da pensão, assim como na ação de separação e divórcio, quanto à partilha de bens. Dessa forma, a utilização da desconsideração inversa vem tornar ineficaz a constituição do ato, apenas episodicamente, para julgar a conduta abusiva ou fraudulenta ou simulada do sócio, estando válida e eficaz para os demais atos jurídicos. Necessário relatar que a desconsideração poderá ser utillizada tanto na fase de cognição, como na execução, nesta constringindo os bens necessários para a satisfação do débito. Não obstante, ao ser aplicada a mencionada desconsideração devem-se ter plena convicção e comprovação do nexo entre o prejuízo e o ato praticado, para, assim, não serem reconhecidos os efeitos de tais abusos contra os rendimentos do credor alimentar. 4 Teoria às avessas e principiologia A principal proposta do tema escolhido é orientar na construção de uma sociedade calcada nos princípios fundamentais garantidos na Constituição Federal de 1988, o princípio da isonomia, dentre tantos outros direitos e princípios constitucionalmente protegidos, e demonstrar a real aplicação da teoria às avessas às relações empresariais e com ela interligadas. 108 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família No presente estudo, o sócio age como se proprietário fosse dos bens e, com isso, pratica atos com terceiros de boa-fé, negociando, adquirindo bens. Todavia o patrimônio particular está registrado no nome da sociedade empresária e não do sócio. Nesse caso, o sócio burla a lei, frauda credores, abusa dos atos praticados, simula transferências. Verificando essa hipótese, os bens da sociedade respondem por atos praticados pelos sócios, ante fraude transparente ou abuso ou simulação, em consideração à aplicação da teoria às avessas aos casos concretos. A teoria às avessas está sendo aplicada às relações jurídicas, levando-se em consideração os aspectos principiológicos, de forma implícita, ainda tênue. Quanto à relevância do Poder Judiciário no tema proposto, importante transparecer a Teoria de Dworkin, em sua obra The Philosophy of the Law. Oxford University Press, que é base para todo o sistema jurídico. [...]o sistema jurídico não é um sistema composto unicamente por ‘regras’ de condutas, que seriam, na versão de HART, primárias (que concedem direitos ou impõem obrigações) e secundárias (que estabelecem como e por quem as regras primárias podem ser formadas, reconhecidas, modificadas ou anuladas), cuja incidência sobre um fato excluiria a incidência de regra em sentido oposto, mas também integrado por ‘princípios’ e ‘políticas’. Princípio é todo o ‘standard’ que não seja regra, é um ‘standard’ que deve ser observado, não porque permite realizar ou atender a uma situação econômica, política ou social, julgada desejável, mas porque ele constitui uma exigência de justiça e de equidade ou de outra dimensão moral. (DWORKIN, 1977). Considerando os aspectos mencionados, nota-se que a base principiológica é fundamental em todo o sistema legislativo brasileiro, fazendo com que diversos juristas o identifiquem inclusive como método aplicado aos casos concretos, efetivando os direitos. 5 Conceito de princípio Preliminarmente, por força da natureza dos princípios, pelo seu conteúdo, pela sua vagueza ou mesmo pela formulação de regramentos destituídos de sanção imediata, numa primeira abordagem, era negado o caráter de autênticas normas jurídicas aos princípios, não sendo considerados como comandos do Direito. Em 1990, através da ideia de Eros Roberto Grau, foi detectado um movimento no sentido do reconhecimento de juridicidade aos princípios, passando a serem admitidos pelo Direito como imperativos. Quanto à estatuição dos princípios, neles também comparece, embora de modo implícito, no extremo completável em outra ou outras normas jurídicas, assim como também ocorre com inúmeras normas jurídicas incompletas. 109 Artigo 6 Celso Antonio Bandeira de Melo, em sua doutrina Elementos de Direito Administrativo, relata que o princípio jurídico é: [...]mandamento nuclear de um sistema, sendo um verdadeiro alicerce desse sistema, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, dando-lhe sentido harmônico. (MELO, 1980. p. 230). Miguel Reale relata que o conceito de princípio serve às ciências em geral, expondo o seguinte, em sua obra Filosofia do Direito: ‘Princípios’ são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes também se denominam ‘princípios’ certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus ‘pressupostos’ necessários. (REALE, 1986. p. 60) Assim, os princípios têm suas propriedades, diferenciando-se por sua natureza (qualitativamente) dos demais preceitos jurídicos, estando os princípios como constituintes de expressão primordial de valores fundamentais expressos pelo ordenamento jurídico, informando as demais normas, como se fornecesse a inspiração para o seu conteúdo. 6 Princípio da isonomia Se há questão que tenha, em todos os tempos, desafiado a inteligência humana e dividido os homens, é o princípio da igualdade. Foram os profetas, os apóstolos e os grandes personagens bíblicos os primeiros que se ocuparam com o tratamento dos semelhantes neste mundo e no outro, perante os homens e em face de Deus. Paulino Jaques, em sua doutrina Da Igualdade perante a lei, argumenta: [...] Embora todos, grandes e pequenos, pobres e ricos, sábios e ignorantes, santos e pecadores, devam comparecer, da mesma forma, ao Tribunal Supremo, para o julgamento final, irrecorrível e irrevogável, cada um será, no entanto, julgado ‘segundo’ suas ‘obras’ e seus ‘caminhos’, quer dizer, os iguais em ações e meios terão recompensas ou penas iguais, e os desiguais nisso, evidentemente, receberão prêmios ou castigos diferentes. Foi esse, em suma, o entendimento bíblico do dogma das religiões de que ‘todos são iguais perante a Deus’, do qual a igualdade dos homens diante da lei não passa de legítima expressão no terreno humano. (JAQUES, 1957. p. 19-20) O direito público francês foi o que formalizou em primeiro lugar a ideia 110 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família jurídica da igualdade, no direito constitucional, estampando-a no artigo 1º da famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em agosto de 1789. Nascia, assim, no plano jurídico-positivo um poderoso instrumento de contraposição aos privilégios pessoais e contra a hierarquização das classes sociais que vigorava até então. Surgia também o princípio da isonomia, considerada fonte inesgotável de ideias para o ideário igualista que, após a segunda metade do século passado, incendiou a história do pensamento político-econômico. O preceito magno da igualdade é voltado quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Assim considerando, os indivíduos se nivelam tanto na edição da lei, quanto no momento de sua aplicação. Aplica-se o princípio mencionado para alcançar um ideal de justiça, que, segundo São Tomás de Aquino, consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade. De acordo com Aristóteles, a verdadeira igualdade é aquela que pratica a igualdade entre os iguais e a desigualdade entre os desiguais. O princípio da justiça social, assim, conforme a concepção de existência digna cuja realização é o fim da ordem econômica e compõe um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Paulo Bonavides, em sua doutrina Curso de Direito Constitucional, expõe o seguinte acerca do princípio da isonomia: O centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da herança clássica. Com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção estrutural do Estado Contemporâneo [...] De todos os direitos fundamentais, a igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado social [...] Na judicatura do Tribunal Constitucional da Áustria, por exemplo, ele não apenas predominou quantitativamente como desalojou todos os demais direitos fundamentais. (BONAVIDES, 1993. p. 301-302). Com referência à concretização do princípio da isonomia, pode-se dizer que é dependente do critério de diferenciação e, é nesse patamar que se encaixa o tema da desconsideração inversa da personalidade da pessoa jurídica, mesmo porque o princípio da isonomia em sua essência nada diz quanto aos bens ou aos fins de que é servida a igualdade a fim de diferenciar ou igualar as pessoas, e estas são iguais ou desiguais de acordo com um critério diferenciador. Duas pessoas são formalmente iguais ou desiguais em razão de idade, sexo ou capacidade econômica. No último ponto, é que se interpõe a relação teoria às avessas e Princípio da Isonomia, porque essa diferenciação somente adquire relevo na medida 111 Artigo 6 em que é assegurada uma finalidade, de acordo com o critério, e este é relacionado no presente estudo ao aspecto econômico. Hodiernamente, sócios perfazem acordos absurdos com terceiros, prejudicando-os em vista de não possuírem patrimônio, porque este se encontra registrado no nome da pessoa jurídica. Os terceiros prejudicados estão em situação desfavorável em decorrência da má intenção dos sócios da empresa. A fim de evitar esses enigmas, surge a aplicação do princípio da isonomia no sentido de que os dispositivos legais brasileiros que tratam da desconsideração da personalidade jurídica sejam efetivamente aceitos da forma inversa, retirando o véu da pessoa jurídica, deslocando a autonomia patrimonial daqueles que burlam a lei, não satisfazendo os seus negócios, agindo com fraude e/ou abuso de direito e/ou simulação. Com esse entendimento, os direitos serão garantidos a todos, em virtude da efetivação de dispositivos legais, aplicados de forma inversa, mas sustentadores do princípio da isonomia aos casos concretos, evitando abusos e má-fé por parte de sócios que vivem às custas da autonomia patrimonial, registrando seus bens pessoais em nome da sociedade empresária, com a finalidade de não satisfação do interesse alheio. 7 Princípio da dignidade da pessoa humana O princípio da dignidade da pessoa humana apresenta dois aspectos: o negativo e o positivo. Assim considerando, constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de insultos e afrontas, mas implica também um sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade individual. O referido princípio impõe limites à atuação estatal, objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade pessoal, mas também alude que o Estado-Juiz apresente, como meta permanente, proteção, promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos, sustentando a necessidade de uma política da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Ainda referente aos princípios, que são a base de todo o sistema operacional do direito, Eros Roberto Grau expõe, acerca do princípio da dignidade da pessoa humana em sua obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988, o pensamento de que a dignidade da pessoa humana constitui o núcleo essencial dos direitos humanos, muito embora assuma concreção de direito individual. Necessário relatar ainda que a dignidade da pessoa humana fundamenta e confere unidade não apenas aos direitos fundamentais – direitos individuais e direitos sociais e econômicos – mas também à própria organização econômica, não sendo apenas um fundamento da República 112 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família Federativa do Brasil, plenamente transparente na Constituição Federal de 1988, mas se volta inclusive ao mundo do ser, que é a ordem econômica. Desse pensamento, conclui que a dignidade da pessoa é um princípio balizador, isto é, a base no ordenamento jurídico, em que o equilíbrio das relações jurídicas, sociais, econômicas são contornos à hipótese da não redução do princípio da dignidade humana, sob pena de transgressão de todos os direitos fundamentais, visto que é o núcleo do ordenamento atual (GRAU, 2002). Não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e atividades estatais estão acoplados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhe um dever de respeito e proteção, expresso tanto na obrigação por parte do Estado de renunciar ingerências na esfera individual contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la contra agressões provenientes de terceiros, como é o caso de sócio que registra todo o seu patrimônio particular em nome da pessoa jurídica para burlar a lei. Agindo assim, acredita estar sob o manto da autonomia patrimonial. O princípio da dignidade humana está intimamente conectado com o tema da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, porque não apenas impõe um dever de abstenção, de respeito, mas também de condutas positivas por parte do Estado-Juiz, tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos que tiveram seus direitos violados em decorrência de atuação de sócio que abusa, simula e/ ou comete fraude. Por essa razão, a tendência do direito contemporâneo é no sentido de não mais se limitar à enunciação de um postulado formal e abstrato de isonomia jurídica, mas sim de fixar medidas concretas e objetivas, capazes de aproximar as questões sociais, políticas e econômicas entre os jurisdicionados, pois a dinâmica da evolução social chama o Estado a dirimir conflitos entre as forças de capital, do trabalho e da ordem econômica, submetendo os princípios do bem comum e da justiça social às relações interpostas, principalmente quando há conexão com a ordem econômica, porque moldam um padrão desejável aos processos econômicos de determinada sociedade, atuando com limitações e incentivos para sua efetiva realização. Assim, quando o Estado intervém na atividade econômica, por força do princípio constitucional fundamental do Estado Democrático de Direito, deve utilizar os instrumentos e mecanismos postos à sua disposição diretamente pelo Legislador Constitucional e, além disso, ir ao encontro de princípios que o façam assumir e agir sob uma perspectiva positiva, efetiva e presencial, pois as balizas da intervenção serão sempre ditadas pela principiologia constitucional, pela declaração expressa dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre eles a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da ordem econômica. 113 Artigo 6 Conclui que qualquer interpretação sobre a devida ou indevida intervenção estatal deverá ser analisada diante dos princípios e dos próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito apresentados no sistema; o princípio da dignidade da pessoa humana impõe limites à atuação estatal, porque obstrui o Poder Público de violar a dignidade pessoal, mas também implica ao Estado-Juiz atuar com meta permanente, protegendo a vida com dignidade a todos, sustentando a necessidade de uma política da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais, inclusive à ordem econômica, no sentido de promover uma relação dependente entre aquele – sócio – enganador em face de um terceiro que age de boa-fé numa negociação envolvendo patrimônio, cuja finalidade precípua é o recebimento do débito. Então, por força da dimensão intersubjetiva desse princípio, há necessidade de um dever geral de respeito mútuo por parte de todos (e de cada um isoladamente) os integrantes da comunidade. Para além disso e de certa forma até mesmo um dever das pessoas para consigo mesmas, ressaltando a ideia da ordem econômica, prevalecendo a aplicação dos princípios intimamente interligados com os dispositivos legais colocados à disposição do aplicador, fazendo surgir o ideal de Justiça, mesmo inexistindo texto legal explícito acerca do assunto, mas que faz relação com algum dispositivo legal. Assim considerando, há perfeita união entre o princípio da dignidade humana e a teoria às avessas ou teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, porque o terceiro prejudicado terá seus direitos efetivados, anulando a fraude, o abuso ou a simulação praticados pelo sócio de empresa que corporifica todo o seu patrimônio na pessoa jurídica, agindo de má-fé, a fim de impedir que seus bens sejam constritados judicialmente. Posto isso, é levantado o véu da pessoa jurídica, de forma a garantir a efetividade dos direitos, fundamentando tal decisão com fulcro em dispositivos legais, mas de forma invertida, porque no atual sistema jurídico, ainda não foi apresentado texto legal específico sobre o assunto, isto é, de acordo com o artigo 50, do Código Civil, há desconsideração da personalidade jurídica quando a sociedade empresária burla a lei, repassando seus bens em nome do sócio. O que ocorre no presente caso é o estudo deste trabalho, a ocorrência de sócio que utiliza da má-fé e repassa seus bens pessoais em nome da sociedade empresária, com o fim precípuo de não satisfação de seu débito particular perante terceiros contratantes ou que tenha alguma relação de ordem econômica. 8 Princípio da razoabilidade O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público, principalmente do Poder Judiciário, aferindo se eles estão sendo informados 114 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família pelo valor superior inerente a todo o ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio da razoabilidade propõe o que é razoável, o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia, correspondendo ao senso de justiça, comunicando com os valores vigentes de dado lugar e momento. É o não arbítrio, ou seja, para o efetivo aproveitamento, há necessidade de avaliar a correlação entre o que está sendo promovido com os reais efeitos decorrentes da necessidade de sua aplicação. Com referência à Teoria Inversa, encaixa-se perfeitamente o princípio da razoabilidade, já que, inexistindo norma legal estatuindo a desconsideração inversa da personalidade jurídica e admitindo que os princípios sejam superiores às próprias regras, como se pode verificar anteriormente, não há dúvida da razoabilidade de ser desconsiderada a pessoa jurídica da empresa para satisfazer a interesse de terceiro de boa-fé que contratou com o sócio da empresa ou que alguma relação de crédito-débito possua com ele, burlando o sócio a própria lei, registrando seu patrimônio em nome da sociedade empresária, sob o interesse da existência da autonomia patrimonial havida no direito empresarial. Ocorre que, nesse momento e nesse caso específico, o levantamento do véu da personalidade jurídica se faz necessário, destruindo a autonomia patrimonial para a satisfação de terceiros incluídos na relação jurídica entre o sócio, considerando os bens que guarnecem todo o aparato da sociedade, comprovando, em todos os casos, que houve fraude, abuso de direito, simulação por parte do sócio. Os fundamentos primordiais ao deferimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica são revelados diante do disposto no artigo 50, do Código Civil Brasileiro, embora possuam outros regramentos em leis esparsas, de forma inversa, ou seja, retirando o manto protetor da sociedade empresária que é a autonomia patrimonial, com a finalidade precípua de garantir a efetividade de direitos de terceiros envolvidos numa relação pertencente ao direito empresarial e também a outros direitos, como o direito de família, que será analisado posteriormente, desconsiderando os bens da sociedade empresária ao pagamento de dívidas do sócio, em virtude de este ter praticado atos de forma fraudulenta, abusiva ou simulada, repercutindo, assim, positivamente o elo entre os referidos princípios, mesmo que de forma implícita, e os dispositivos legais. 9 A possibilidade de aplicação imediata dos princípios a casos concretos Considerando que os princípios são dotados de elevado grau de abstração, dotados de vagueza, de abertura, o que não significa impossibilidade de determinação, 115 Artigo 6 podem ser integrados por meio de interpretação e aplicação, sobremodo através de outras normas e até mesmo em relação a situações específicas, como decisões judiciais no que se refere à aplicação da Teoria Inversa da Desconsideração da Personalidade Jurídica aos casos concretos, como se poderá verificar adiante, ao passo que as demais normas (regras) possuem menor grau de abstração e mais alta densidade normativa. Pelo fato de os princípios serem dotados de vagueza, hospedando as grandes linhas, orientando todo o ordenamento jurídico, não significa dizer que os princípios sejam inteiramente ou sempre genéricos e imprecisos, aliás, possuem significado determinado, com alto grau de concretização, avaliados diante da situação real apresentada. Isso é relacionado perfeitamente à desconsideração inversa da personalidade jurídica, sob entendimento de que os princípios norteadores não podem deixar de ser aplicados, em virtude da ausência de regramento específico sobre o assunto, não devendo o magistrado abandonar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica caso ocorram a fraude, o abuso de direito, a simulação por parte do sócio, atingindo credores, pessoas inocentes e terceiros envolvidos. Deve atingir o patrimônio da pessoa jurídica, quando existente um conjunto comprobatório merecedor. Existem inúmeros julgados acerca do assunto, que serão relacionados em frente. Assevera Eros Grau em sua obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica): [...] a determinação de sentido dos princípios depende sempre do contexto, correspondendo ao significado que os respectivos valores assumem na realidade histórica: o ordenamento jurídico não constitui um conjunto de regras jurídicas cujo sentido e alcance independe do contexto político e social, mas sim que tais regras estão subordinadas a fins em função dos quais devem ser interpretadas. (GRAU, 1990. p. 94). Da generalidade e da vagueza dos princípios, portanto, decorre a plasticidade que eles apresentam, permitindo-lhes amoldarem-se às diferentes situações e assim acompanharem o passo da evolução social. É uma característica predominantemente formal, pois se prende também antes à expressão linguística dos princípios, devendo ser conciso em dado contexto, refletindo com exatidão a tradução dos valores mais onerosos e oportunos diante do caso apresentado. Walter Claudius Rothenburg relata em sua doutrina Princípios Constitucionais: Desconsiderar que os princípios já carregam um certo e suficiente significado, e sustentar sua insuperável indeterminação representa desprestigiar sua funcionalidade em termos de vinculação (obrigatoriedade), continuando-se a emprestar-lhes uma feição meramente diretiva, de sugestão, o que não se compadece, absolutamente, com a franca natureza normativa que se lhes deve reconhecer. (ROTHENBURG, 1999. p. 22). 116 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família Os princípios são capazes de recepcionar as mudanças ocorridas no seio da sociedade, sem que isso importe uma contínua modificação do texto de lei, sendo lembrado, nesse patamar, o aspecto da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, já que não se poderia deixar de aplicar o princípio da igualdade, assim como o princípio da razoabilidade e o princípio da dignidade da humana às pessoas envolvidas num processo em que o sócio da empresa aja com fraude, simulação, abuso de direito, registrando seus bens pessoais em nome da sociedade empresária, com o fim de satisfazer obrigação por ele realizada em prejuízo das demais pessoas envolvidas. Nesse caso, não poderia o sócio ser acobertado pela autonomia patrimonial. Assim considerando, a vagueza não é um defeito que os princípios apresentem, senão que uma espécie sua de ser, justamente para suprir a ausência de norma regulamentadora em casos cujas mudanças sociais ocorram e devam ser solucionadas, como se pode verificar na desconsideração inversa da personalidade jurídica. A enunciação dos princípios de um sistema tem, portanto, uma primeira utilidade evidente: ajudar no ato de conhecimento, porque a identificação dos princípios é o meio mais eficaz para distingui-lo de outro sistema global. 10 Teoria às avessas no estado contemporâneo – globalização Hodiernamente, o progresso da ciência e das técnicas são os novos aceleradores contemporâneos, necessitando de uma reflexão independente sobre o tempo, um pensamento sobre como explicar os problemas mundiais, cujas condições e situações precisem ser modificadas. Para isso ocorrer, há necessidade de utilizar métodos mais simples. A ideia central repousa em analisar os princípios fundamentais, aparecendo a persistência sobre o papel da ideologia derivada de instrumentos que, ao mesmo tempo, dê para se fazer o mal, como, aliás, também se faça o bem, surgindo desse aspecto o papel do intelectual, do pensamento livre, do jurista, do magistrado. O processo de produção da globalização revelada como ameaça entre a economia contemporânea – finanças, território – em que a emergência de novas variáveis centrais e o papel dos pobres na produção do presente e do futuro, convencendo que a história universal apenas esteja começando e, em virtude disso, surgindo a aplicação da teoria às avessas neste mundo globalizado, como possibilidade in abertus ao futuro de uma nova civilização planetária. São vários os protagonistas na produção da globalização, dentre eles o dinheiro, numa polarização riqueza e pobreza; o extermínio da natureza; a segmentação dos mercados; a população envolvida nesse processo ameaçador. Nesse aspecto, nasce a teoria às avessas com a ideia de efetivação dos direitos de terceiros 117 Artigo 6 envolvidos numa globalização infinita, cujas relações são de mercado, patrimônio e familiares, ressaltando a questão do Direito de Família, neste, levantando o véu da sociedade empresária quando o sócio age de forma fraudulenta, abusiva e/ou simulada, repassando seu patrimônio particular no nome da sociedade empresária com a finalidade precípua de não liquidar suas dívidas perante seus credores. A tendência é ser substituída a alienação por nova consciência – uma nova filosofia moral – que não será a dos valores mercantis, mas sim a da solidariedade e da cidadania, a da aplicação de princípios como o da isonomia, da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, sendo coerente a efetividade de direitos de terceiros envolvidos num processo ameaçador e opressor. 10 O convívio em sociedade como decorrência das necessidades do homem – aplicação da teoria às avessas Levando em consideração a exposição anteriormente referida, presente está a dificuldade do homem, como ser hermenêutico que é, de viver em sociedade, já que as dificuldades de relacionamento entre os empresários se sobressaem, quando é deixada de lado a ideia de justiça. Os perdedores – maioria – estão em desgaste com a própria identidade, porque não percebem as fatalidades ocasionadas no mundo globalizado, em que a economia é o cerne, alicerce, e, muitas vezes, se veem ameaçados perante a própria lei ou por falta dela. Tecidos esses comentários, é ofertado, neste momento, um espírito crítico de atenção e percepção do homem, em razão da própria natureza, o qual precisa viver em sociedade e, para isso, necessita de regras que o façam crescer como ser humano justo e fraterno, que obtenha do legislador e do próprio magistrado a efetividade de seus direitos, banalizados diante de tantos privilégios ofertados em prol do devedor e, então, burlador da lei, muitas vezes assim considerado. Sábias as palavras de Aristóteles quando relata que o homem é por natureza um animal social, remetido à reflexão mediante a qual se pode colocar em foco os atributos, as necessidades e as possibilidades do homem (apud GOMES, 2008). O ser humano deve ser o caçador de si mesmo, no sentido de buscar, perguntar, argumentar sobre fatos e interesses apresentados pelas demais pessoas. A finitude e o desejo de autossuperação devem lançar no ser humano uma contínua procura, buscando perspectivas, a fim de satisfazer as condições econômicas e mesmo potenciais, investindo seu conhecimento em leis e princípios que o assegurem num relacionamento sadio, em que haja isonomia entre todos. 118 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família Em tempos de globalização econômica, prevalecendo a preocupação com o dinheiro, em comprar, negociar, é sustentada a necessidade de continuidade da vida humana no planeta e que esta seja vivida de modo correspondente à dignidade inerente a todo ser humano. Para o psicanalista, teólogo e pedagogo Rollo May, em sua doutrina A Coragem de Criar, relata que “a coragem é necessária para que o homem possa ser e vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se. Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza” (MAY, 1982. p. 10). Assim considerando, o homem deve evoluir na medida em que o mundo evolui e, nesse sentido, as leis também devem adequar-se aos casos concretos, para não existir a impossibilidade de aplicação do ideal de justiça que há tempo vem sendo esquecido. Nesse aspecto, entende-se que, apesar de inexistir texto legal acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica, muitos magistrados já a aplicam a fim de salvaguardar interesse de terceiros de boa-fé que contratam com sócio de má-fé ou que com ele tenha uma relação de dependência – crédito-débito. A tão sonhada autonomia patrimonial, questionada e estimada, acaba sendo derrubada em consideração à abrangência do aspecto econômico, motivo pelo qual, muitos magistrados reconhecem a inquietude de credores, que se espraiam em problemas que a própria lei deixa a desejar. A Teoria às Avessas é o ideal de justiça, utilizada para sanar as dificuldades hodiernamente apresentadas no mundo jurídico. 12 Relevância da teoria às avessas no estado contemporâneo e sua abrangência no mundo real – jurisprudências O assunto é relevante para o Estado Contemporâneo nas relações empresariais, interligando o Direito Empresarial e o Direito de Família, pois não basta o Estado utilizar os meios e instrumentos constitucionalmente postos à sua disposição, apenas nos estritos limites da legalidade, devendo a implementação das técnicas de intervenção estatal no domínio econômico se dar de forma a atender o interesse público concretamente apresentado, portanto legitimamente e de forma razoável, em que os meios e as técnicas a serem utilizados pelo Poder Público sejam realmente idôneos aos fins pretendidos pela Constituição Federal e pelas leis, pois só assim será dado real e efetivo cumprimento a este trabalho. Especificamente acerca da teoria às avessas ou da desconsideração da personalidade jurídica inversa, convém apresentar algumas jurisprudências e, inclusive, o Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil do CJF (Conselho da Justiça 119 Artigo 6 Federal), autorizando a desconsideração da personalidade jurídica inversa, devendo o magistrado fundamentar a decisão em todas as situações que lhe apresentarem: TJSC. Desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’. Art. 50 do CC/2002 e Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil do CJF. O interlocutório que desconsidera inversamente a personalidade jurídica de sociedade comercial, fazendo com que a empresa responda com seu patrimônio pela dívida pessoal do sócio, está circunscrito aos pressupostos do art. 50 do atual Código Civil, cabendo ao juiz, fundamentadamente, apontar as razões do seu convencimento, seja pelo acolhimento ou rejeição do pedido, sob pena de vulneração aos arts. 93, IX, da CRFB, e 165, do CPC, dispositivos que transmitem a necessidade de motivação nas decisões judiciais, ainda que concisa, sob pena de nulidade. É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros. Acórdão: Agravo de instrumento n. 2005.031945-4, de Canoinhas. Relator: Des. Marco Aurélio Gastaldi Buzzi. Data da decisão: Publicação: DJSC Eletrônico n. 56, edição de 19.09.06, p. 30. Conforme argumentos expostos, para o magistrado deferir a desconsideração inversa da personalidade jurídica, devem estar preenchidos os pressupostos analisados em item anterior. Caso contrário, não há motivo para a desconsideração inversa e, aliás, devem ser as decisões sempre fundamentadas. De forma intimamente implícita, subentende-se que os princípios basilares de todo o ordenamento jurídico estejam sendo averiguados no ato da decisão, justamente porque são o cerne de todo o liame jurídico. Não há necessidade de o magistrado justificar a utilização deles, se decorrentes de normas preexistentes e utilizadas de forma inversa. A demonstração, de forma implícita ou explícita, é de que os princípios, uma vez utilizados, servem de embasamento na aferição de normas transcritas no ordenamento jurídico. Não raro, a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa tem sido aceita e deferida pelos magistrados não somente quando se verifica a situação de relação entre sócio e terceiro envolvido especificamente numa relação de negócios, mas também em relações direcionadas no Direito de Família. Assim, a decorrência da aplicação e aceitação de dispositivos legais é primordial, mas o embasamento muitas vezes se dá de forma inversa, justamente para acomodar as reais situações apresentadas, em virtude do não regramento atual. E é nesse ínterim que surgem as explicações para a adequação das regras do ordenamento jurídico ao mundo social, globalizado, e a principiologia aplicada, mesmo de forma 120 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família tímida e implícita, às situações no âmbito jurídico. Vale ressaltar alguns julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no tocante à adequação da desconsideração em matéria de separação judicial, partilha, alimentos, dentre outros: APELAÇÃO. PRESTAÇÃO JURISDICIONAL INSUFICIENTE. INOCORRÊNCIA. MARCO INICIAL DA UNIÃO ESTÁVEL. ESPECIFICAÇÃO. VALORIZAÇÃO DE COTAS SOCIAIS. PARTILHA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CABIMENTO. (...) As cotas sociais das empresas eram de patrimônio exclusivo do de ‘cujus’. No entanto, a valorização experimentada por tais cotas durante o período em que o de ‘cujus’ viveu em união estável é patrimônio comum que, por isso, deve ser partilhado. Ficou demonstrado que o de ‘cujus’ abusou da personalidade jurídica de suas empresas, ao utilizar de forma indevida delas para o fim de ocultar bens passíveis de partilha. Nesse contexto, cabível desconsiderar a personalidade jurídica das empresas. REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO AO PRIMEIRO APELO. UNÂNIME. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO SEGUNDO. (BRASIL.Tribunal de Justiça Do Rio Grande do Sul. 8ª Câmara Cível. Apelação Cível n. 70012310058. Relator Rui Portanova. Julgado em 27/04/2006). Descabe escudar-se o devedor na personalidade jurídica da sociedade comercial, em que está investido todo o seu patrimônio, para esquivar-se do pagamento da dívida alimentar. Impõe-se a adoção da ‘disregard doctrine’, admitindo-se a constrição de bens titulados em nome de pessoa jurídica para satisfazer débito. (BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 7ª Câmara. Apelação Cível n. 598082162. Relator Des. Maria Berenice Dias). Assim considerando, fica evidenciada a fraude e o abuso de direito e a simulação por parte do sócio, quando este faz uso da pessoa jurídica com a finalidade de ocultar bens passíveis de partilha, ou quando este se furta da sociedade para defender seu patrimônio pessoal por força de dívidas contraídas junto a terceiros ou, mesmo oculta seus bens ao pagamento de pensão alimentícia e, nesse sentido, há necessidade, nesse e em qualquer situação ou caso, da utilização da cautela, devendo o magistrado, sobretudo, verificar a presença dos pressupostos tratados e analisados em item anterior, quais sejam: a fraude, o abuso do direito e/ou a simulação, utilizados com a finalidade de prejudicar terceiros. Também é perfeitamente aplicável a desconsideração inversa e o efetivo alcance dos bens transferidos à sociedade quando se busca a majoração da pensão alimentícia baseada no aumento da fortuna do alimentante e na necessidade do alimentado. Nesse caso, o devedor de alimentos dissimula sua condição de sócio majoritário da pessoa jurídica e transfere grande parte do capital social a interposta pessoa, para, numa revisão de alimentos, afirmar que não é sócio majoritário, mas 121 Artigo 6 mero prestador de serviços à sociedade, buscando ao final, o não aumento da pensão alimentícia. A conclusão a que se chega é que a desconsideração inversa da personalidade jurídica será aplicada pelos magistrados sempre que houver transferência de bens matrimoniais para uma pessoa jurídica visando ao prejuízo da meação ou da partilha de bens, como ao prejuízo a recebimento da prestação alimentícia e, ainda, sendo inclusive utilizada quando o sócio detém absoluto controle da sociedade. Seguindo a mesma linha de raciocínio, quando o sócio, que também seja cônjuge, preocupado com a partilha judicial, retira da sociedade empresarial, às vésperas da ação de separação ou divórcio, transferindo sua participação para outro sócio, burlando a lei, inclusive pela questão de partilha de bens e, após a separação judicial, o sócio fraudulento retorna à empresa e à livre administração dos bens que eram comuns ao casal, com todos os bens que anteriormente lhe pertenciam, verifica-se, em ambos os casos, a presença de fraude, simulação e abuso do direito por parte do sócio em prejuízo de terceiro envolvido. Assim, há necessidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, retirando o véu da autonomia patrimonial e aplicando, mesmo que de forma implícita, a regra de que todos são iguais perante a lei, há presença da dignidade da pessoa e, ainda, pelo princípio da razoabilidade, é razoável e necessária a aplicação da Teoria às Avessas. Diante dessas práticas ilícitas, o magistrado desconsidera a personalidade jurídica de forma inversa, no âmbito da sentença judicial, lançada no processo de separação, divórcio ou dissolução de união estável, as alterações contratuais que transferiram ou reduziram a participação social do cônjuge empresário, voltando assim, ao estado anterior da flagrante apropriação da meação do cônjuge despojado ou, mesmo na situação de prestação alimentícia, seguindo o mesmo entendimento. Nesse sentido, vale apresentar a seguinte jurisprudência: PARTILHA – Separação controvertida em divórcio – Regime da comunhão universal de bens – Meação – Compromissário que, já casado, cede direitos sem a anuência da mulher – Desconsideração – Sentença de partilha homologada respeitando a meação – Sentença mantida – Recurso improvido. (BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. 3ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível n. 86.249-4. Relator Octávio Helene. Julgado em 5/11/1998). O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar agravo de instrumento, entendeu que: EMBARGOS DE TERCEIROS. ‘Disregard’ ou desconsideração da personalidade jurídica. Sociedade por quotas formada por concubinos. Arrolamento de bens. Deve ser desconsiderada a personalidade jurídica de sociedade por quotas formada por dois 122 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família sócios, concubinos casados pelo religioso, rejeitando-se pedido de liminar em embargos de terceiro promovidos pela sociedade, visando obstar arrolamento de bens promovidos pela mulher. Possibilidade de fraude pelo varão, ocultado sob o manto da pessoa jurídica, este, em realidade, age em nome próprio e não da sociedade. Agravo improvido. Unânime. (BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 7ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 593074602. Relator Paulo Heerdt. Julgado em 27/08/1993). Assim, o deferimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica pelo magistrado faz com que ocorra o retorno ao monte conjugal dos bens desviados fraudulentamente para a pessoa jurídica, a fim de serem partilhados os bens ao final. Ficou comprovado que ocorrerá a desconsideração inversa no âmbito do direito familiar, no que tange aos alimentos, conforme já foi relatado, quando o alimentante procura mascarar, aproveitando-se do manto da pessoa jurídica, escondendo sua real capacidade econômica e financeira da pessoa física, a qual tem o dever legal de alimentos. Nesse aspecto, o alimentante, quando é sócio de alguma sociedade empresária, aproveita esse fato para agir omitindo sob o véu empresarial os bens que possui. Atua também de forma fraudulenta, e é motivo para a desconsideração inversa da personalidade jurídica, o caso do ex-cônjuge que hesita em prestar alimentos declarando que possui baixos rendimentos e, não obstante, sua conduta pública não condiz com a presente postura apresentada nos autos, ostentando luxo e riqueza. Nesse caso, a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica e dos princípios embasadores já estudados, mesmo que de forma implícita, é utilizada para o devido caso, a fim de ocorrer a justa solução para o litígio alimentar. Se não bastasse, merece ser apresentada a situação de pais ou cônjuges insensíveis que utilizam a pessoa jurídica que integram como sócios para montar diversos estratagemas, com o fim precípuo de impedir que o autor da ação de alimentos possa demonstrar, através de dados concretos, os reais rendimentos por eles percebidos ou os respectivos bens particulares, pois transferem seu patrimônio à pessoa jurídica, burlando a lei. Relativamente ao direito comercial, nas sociedades por quotas, a aplicação da desconsideração inversa se dá com a retirada do véu da autonomia patrimonial. Existem jurisprudências acerca do assunto: SOCIEDADE POR QUOTAS – Ausência absoluta de patrimônio – existência meramente formal – manifesto prejuízo aos credores - presunção de fraude – Aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica – Recurso Provido. (BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. 7ª Câmara Cível. Apelação Cível n. 206787-2. Relator Pinheiro Franco. Julgado em 17/6/1993). 123 Artigo 6 DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. Ação de execução de sentença. Preliminar de nulidade da execução rejeitada. Os títulos exequendos foram acostados aos autos da execução, conforme se verifica dos documentos que instruem o processo. Além do mais, não há falar em iliquidez quando a apuração do ‘quantum debeatur’ bastem cálculos aritméticos, o que foi devidamente providenciado pela parte. Mérito. Muito embora na aplicação da ‘disregard doctrine’, parte-se do pressuposto que responde o sócio com seu patrimônio particular pela obrigação da empresa, o direito não à aplicação da teoria da desconsideração de forma inversa quando o devedor cria uma veste jurídica para tentar defender seu patrimônio particular ameaçado de alienação judicial por força de dívidas contraídas junto a terceiros. Caso em que o princípio da separação patrimonial deve ser superado e ceder em face de circunstâncias especiais e excepcionais diante da prova robusta de fraude por parte do sócio para desfrutar dos benefícios de sua posição, restando assente que a separação da pessoa jurídica da pessoa física é mera ficção legal, não sendo justificável que o sócio que se esconde sob o manto desta sociedade fuja de sua responsabilidade ou de seu fim social, para alcançar benefícios e interesses antisociais. Recurso Improvido por maioria. Preliminar rejeitada. (BRASIL.Tribunal de Justiça Do Rio Grande do Sul. 3ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 70005085048. Relator Eduardo Kraemer. Julgado em 25/5/2004). SOCIEDADE POR QUOTAS – aplicação da desconsideração da personalidade jurídica – transferência da quase totalidade das quotas a esposa mediante alteração contratual – executados que fogem ao confronto com a justiça, deixando de nomear bens a penhora – Recurso não provido. (BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. 2ª Câmara Cível. Apelação Cível n. 142812. Relator Bueno Magano. Julgado em 26/04/1989). No Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, recentemente, foi julgada uma apelação cível relativa à desconsideração inversa da personalidade jurídica: DECISÃO: ACORDAM os desembargadores integrantes da 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em conhecer do recurso de apelação e negar-lhe provimento para manter a sentença em sua integralidade. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. FRAUDE À EXECUÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. ÔNUS SUCUMBENCIAIS MANTIDOS. Presente a confusão patrimonial entre a executada e a empresa da qual é sócia mostra-se possível a penhora de bem imóvel pertencente a esta, afastando-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio, em homenagem à desconsideração inversa da personalidade jurídica, especialmente porque também demonstrada a insolvência da devedora. RECURSO NÃO PROVIDO. (BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 15ª Câmara Cível. Apelação Cível n. 0504400-6. Relator Hayton Lee Swain Filho. Julgado em 6/8/2008). 124 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família Verificada a situação de sócio que atua de forma a burlar a lei, prejudicando o pagamento de suas dívidas, sejam elas provenientes do âmbito familiar, social, ou empresarial, a relevância é que, uma vez praticada a hipótese de fraude, simulação ou abuso do direito, o sócio da sociedade empresária atua de forma negativa no aspecto empresarial, porque envolve patrimônio seu em prol da sociedade e em detrimento de terceiros. Sejam então os débitos de natureza alimentar, empresarial ou quaisquer outros do gênero, há de ser aplicada a desconsideração inversa da personalidade jurídica, quando houver a comprovação de fraude, simulação e/ou abuso do direito por parte do sócio, transferindo seus bens à pessoa jurídica. O devedor que transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle e continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada e, com referência aos seus credores, em princípio, não podendo responsabilizá-lo executando tais bens, nada mais certo e justo que desconsiderar inversamente a personalidade jurídica quando houver a comprovação de que o sócio agiu com fraude, simulação e/ou abuso de direito em face desses credores. Nesse caso, há o efetivo alcance dos bens patrimoniais da sociedade, quando esta for utilizada como um esconderijo de bens que eram antes de propriedade do sócio. Conclui-se que, com base na hermenêutica, nos princípios estudados, há relevância da Teoria às Avessas hodiernamente, embasamentos legais surgem em decorrência do Estado Contemporâneo, da Globalização, dos aspectos práticos. Jurisprudências existem, e são várias, em que os Juízes de Direito acatam a ideia da desconsideração inversa da personalidade jurídica aplicada em favor de pessoas de boa-fé e em prejuízo dos enganadores, fraudadores, que são os sócios das sociedades empresárias que transferem seus bens particulares à sociedade empresária sob o aspecto de que o manto da autonomia patrimonial os beneficiará, seja a dívida oriunda de qualquer espécie – comercial, familiar. Tal questionamento merece respeito e crédito na atual legislação brasileira, principalmente quando a ideia central decorre de embasamentos justificados no ideal de justiça e de praticidade, desde que preenchidos os pressupostos ensejadores de tal instituto e devidamente fundamentados pelo aplicador da lei. Conclusão O presente estudo revelou a preocupação na concretização de direitos infringidos pelos sócios de uma sociedade empresária em face de terceiros envolvidos numa relação comercial ou familiar. 125 Artigo 6 Aspectos doutrinários e jurisprudenciais foram expostos de forma a tornar reverenciado o presente trabalho, resgatando a principiologia, que é primordial ao sistema jurídico brasileiro atual, proporcionando sua relevância diante de situações conexas com a realidade. Os avanços surgidos têm sido avaliados como renovadores das próprias leis. A globalização fez progredir o atual sistema que está sendo analisado com intenções baseadas em fatos reais pelos julgadores, adaptando os regramentos, os dispositivos legais à atualidade. O ser humano, com as modificações que se lhe apresentam a todo instante, mereceu tratamento igualitário e digno quanto à efetivação de seus direitos, até então inexistentes no sistema jurídico, mas que balisadores de uma progressão avançada e eficaz conforme relatos e confirmações positivas por parte do magistrado, acatando e deferindo a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, ante a comprovação de fraude, simulação e/ou abuso por parte do sócio, quando este transfere seus bens particulares para a sociedade empresária com o fito de não quitar seus débitos, de natureza comercial ou familiar. Comprovou-se mediante jurisprudências e doutrinas a relevância do direito empresarial nas questões comerciais e inclusive nas questões de direito de família, quando o sócio da empresa, com o escopo de não quitar o débito alimentar ou, mesmo, para não partilhar seus bens, age com má-fé transferindo seus bens particulares à sociedade empresária, sob o argumento de que o princípio da autonomia patrimonial o protegerá. A teoria às avessas ou a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa vem com o argumento de que, por meio de embasamentos legais existentes, o magistrado, demonstrando o ideal de justiça, aplica a referida lei de forma inversa, ou seja, efetiva o direito atacado, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade empresária a fim de quitar débitos particulares do próprio sócio, em virtude de ele ter agido de forma fraudulenta, simulada e/ou com abuso de direito. Tecidos esses comentários, necessário finalizar o presente estudo levando em consideração a exposição de que ao ser humano, diante de uma situação e de mundo globalizado, deve o magistrado, estando envolto de regras e opiniões das mais variadas, aplicar os dispositivos legais valendo-se de conceitos e base principiológica a fim de garantir a efetivação dos direitos transgredidos. Notou-se a real ligação entre a principiologia, mesmo que de forma implícita, e as regras preexistentes no ordenamento jurídico, assim como a relevância da hermenêutica num mundo globalizado merecedor de avaliações. 126 A Teoria às avessas e seus reflexos no Direito Empresarial e no Direito de Família O legislador, assim como o aplicador e o próprio intérprete devem possuir embasamentos suficientes para o direito atual ser devidamente concretizado, diante de casos apresentados hodiernamente, com os avanços tecnológicos, e revelados diante das situações processuais entre os jurisdicionados. A relevância do presente trabalho se tornou efetivada diante dos argumentos apresentados, principalmente em decorrência das jurisprudências e o real sentido de justiça, utilizados em todas as decisões pelos magistrados. O imperativo de inclusão de regramento específico sobre o assunto é interessante e pertinente, levando-se em consideração os avanços sofridos pelo ordenamento jurídico nos últimos anos. Referências BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999. DWORKIN, R.M. The Philosophy of the Law. Oxford University Press, 1977, p. 43. In: Revista jurídica, Fonte do Direito, p. 226, dez. 2006, ano 54. GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica constitucional. Curitiba: Juruá, 2008. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. _________. 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Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999. 127 128 O Projeto de Lei n. 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos José Carlos Portella Jr.1 Introdução. 1 Princípio do aut dedere aut judicare e o direito à verdade. 2 A conformidade do Projeto de Lei 987/07 com o direito internacional e com a Constituição da República de 1988. Considerações finais. Referências O presente artigo pretende examinar o Projeto de Lei n. 987/07 (que pretende a criminalização do revisionismo histórico) à luz da Constituição da República e do jus cogens internacional, tomando como base as decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal e das Cortes Internacionais. Palavras-chave: revisionismo, crime, direitos humanos, liberdade de expressão, direito costumeiro, direito constitucional. Introdução O Projeto de Lei n. 987/07 (que pretende a criminalização do revisionismo histórico) tem suscitado debates entre os defensores da liberdade de expressão e aqueles preocupados com o direito à memória, decorrente do princípio do aut dedere aut judicare, segundo o qual os perpetradores dos mais graves crimes (the core crimes ou crimes essenciais)2 contra os direitos humanos (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra)3 devem ser sempre levados à Justiça para a prestação de contas de suas ações e para que, dentre outros objetivos, seja revelada a verdade acerca dos atos violadores da dignidade humana. Especialista em direito internacional e em filosofia; professor do curso de direito do Centro Universitário Curitiba e da Faculdade Dom Bosco; advogado criminalista. Ver AMBOS, Kai. Direito penal: fins da pena, concurso de pessoas, antijuricidade e outros aspectos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. 3 Este trabalho leva em consideração a definição instituída pelo Estatuto de Roma de 1998 para os crimes mencionados, bem como os elementos de compreensão trazidos pela convenção sobre o Genocídio de 1948 e as convenções de Genebra sobre o Direito Humanitário. Aliás, segundo a doutrina, o genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra fazem parte do Direito Costumeiro Internacional, visto que são produtos da construção histórico-jurídica do próprio Direito Internacional. Nesse sentido: BASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales – international criminal law: Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004. 1 2 129 Artigo 7 O presente artigo tenciona analisar, com base em precedentes das Cortes Internacionais e do Supremo Tribunal Federal, os limites da liberdade de expressão com relação ao discurso do ódio (hate speech), de sorte a avaliar a legitimidade do Projeto de Lei 987/07 à luz da Constituição brasileira e do Direito Internacional. 1 Princípio do aut dedere aut judicare e o direito à verdade Antes de se discutir a tese aventada neste trabalho, é preciso definir o princípio do aut dedere aut judicare e quais os efeitos no âmbito do tema aqui debatido. O princípio do aut dedere aut judicare decorre do ideal histórico-jurídico que considera os crimes essenciais (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra) como parte do jus cogens internacional. Segundo M. Cherif Bassiouni, jus cogens, como valor de construção histórica e filosófica, é uma obrigação erga omnes ou norma inderrogável de cumprimento obrigatório (imperativa) por todos os sujeitos de Direito Internacional, independentemente da existência de tratado. É, em suma, direito costumeiro internacional e, como tal, deve ser respeitado por todos os membros da Comunidade Internacional.4 Veja-se que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu art. 26, estabelece o costume como fonte do Direito Internacional e, inclusive, determina que, em caso de conflito entre tratado e norma imperativa de Direito Internacional geral (jus cogens), aquele deve ceder em favor deste (art. 53). Ao se considerarem os crimes essenciais contra os direitos humanos como parte do jus cogens internacional, visto que a Comunidade Internacional assim os compreendeu em inúmeros tratados acerca da matéria (sobretudo, o Estatuto de Roma)5, entende-se, por conseguinte, que os estados têm o dever de processar e julgar esses crimes que ofendem toda a humanidade. Consoante o primado do aut dedere aut judicare6, o estado tem o dever de processar ou extraditar quem tenha praticado crime contra os direitos humanos, bem como o dever de não conceder asilo a quem tenha praticado crimes dessa espécie. Esse princípio foi inclusive confirmado pela Resolução 3074 da Assembleia Geral da MBASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales - international criminal law: Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004. p. 105. 5 A convenção sobre o Genocídio de 1948, as convenções de Genebra sobre o Direito Humanitário de 1949 e os estatutos do Tribunal de Nuremberg, de Tóquio e dos Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e Ruanda, que precedem o Estatuto de Roma, fundaram o ideal paradigmático dos crimes essenciais como parte do jus cogens internacional. 6 CASSESE, Antonio. DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Crimes internacionais e jurisdições internacionais. Barueri: Manole, 2004. p. 312-314. 4 130 O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos ONU, que estabeleceu princípios aplicáveis ao processo dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade. Do mesmo modo, a Convenção Interamericana sobre os desaparecimentos forçados veda a edição de leis de anistia referentes a crimes dessa natureza. Outros tratados invocam esse princípio, como a Convenção para a Prevenção e a Repressão ao Genocídio de 1948, as Convenções de Genebra de 1949 e a Convenção contra a Tortura de 1984. Nesse sentido, se os estados têm o dever de processar e julgar os perpetradores dos mais graves crimes contra o status humano, o direito à verdade, isto é, o direito da humanidade de saber em que circunstâncias, por quem, como, quando e contra quem foram cometidos os atos atrozes pode ser considerado como decorrência lógica desse princípio. Para entender melhor essa conexão, faz-se necessário esclarecer em qual espectro será compreendido o direito à verdade, à luz do qual se tratará aqui o tema proposto. Se o direito à verdade pode ser considerado decorrência lógica do princípio do aut dedere aut judicare, ele pode ser e compreendido como direito da humanidade de saber em que circunstâncias foram praticados os crimes contra os direitos humanos, quem foram seus autores e suas vítimas. Como já foi visto neste trabalho, o princípio do aut dedere aut judicare decorre do ideal histórico-jurídico que considera os chamados “crimes essenciais” (the core crimes) como parte do jus cogens internacional. Desse dever de processar e julgar os mais graves crimes contra os direitos humanos decorre necessariamente a adoção de mecanismos de punição e repressão a estes atos (accountability)7, dentre eles a garantia da verdade8, que, amiúde, é para as vítimas muito mais importante que a punição dos culpados9. Para Bassiouni, a verdade é um imperativo que não pode ceder a conveniências Note-se que nem sempre esses métodos de accountability terão caráter penal. Podem assumir outras formas igualmente eficazes e, muitas vezes, mais justas, como a reparação civil, as Comissões de Verdade e Reconciliação, medidas administrativas etc. Para o estudo de métodos alternativos de accountability, ver BASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales – international criminal law: Quo vadis? Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004. M. Cherif Bassiouni considera que os métodos de accountability quanto aos crimes contra os direitos humanos se dividem em três categorias que se complementam: a) verdade; b) justiça e c) reparação. 8 BASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales – international criminal law: Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n.19, p. 79-155, 2004. p. 110. 9 AMBOS, Kai. El marco jurídico de la Justicia de transición. Justicia de transición: informes de América Latina, Alemania, Italia y Espanã. Montevidéu: Fundação Konrad Adenauer, 2009. p. 32. DRUMBL, Mark A. Atrocity, punishment, and international lay. Nova York: Cambridge University Press, 2007. p. 43. 7 131 Artigo 7 políticas10. Para ele, não pode haver paz verdadeira (no sentido da reconciliação e prevenção de futuros conflitos) sem se estabelecer a verdade acerca dos crimes praticados pelo regime antecessor.11 Nesse viés, Bassiouni considera que o direito à verdade tem por finalidade permitir o registro histórico do evento trágico (direito à memória), bem como reduzir o ressentimento entre as vítimas e o desejo de vingança, educar a sociedade e prevenir novos conflitos12. Da perspectiva histórica, o direito à memória (decorrente do direito à verdade) garante a reconstrução do passado. A verdade histórica, no entanto, pode ser desvencilhada da verdade jurídica, visto que cada qual possui as próprias fontes e métodos de revelação peculiares13. Enquanto a verdade jurídica tenciona esclarecer a culpa individual ou a participação de cada um dos criminosos no plano de extermínio, a verdade histórica procura a reconstrução do passado, interpretando-o, para interferir no presente histórico, lembrando aos recém-chegados a este mundo o que sucedeu a seus antepassados. Ao refletir sobre a verdade histórica, Celso Lafer lembra a lição de Tercio Sampaio Ferraz Jr., em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 19 de setembro de 2003, para quem “a verdade histórica é a verdade factual, que pode ser interpretada, mas não pode ser negada, sob pena de falsidade deliberada”14. Assim, se o direito à verdade decorre do princípio do aut dedere aut judicare e se a garantia desse direito é um dos métodos de accountability dos crimes praticados contras os direitos humanos, o Projeto de Lei 987/07, influenciado por valores caros ao Direito Internacional e à Constituição da República de 1988, vem reforçar na consciência pública a perpetuação da memória de eventos históricos que jamais podem MBassiouni parece apropriar-se da doutrina de Hannah Arendt acerca da verdade. Para Arendt, a verdade é aquilo que não podemos modificar e é insubstituível. “A persuasão e a violência podem destruir a verdade, não substituí-la.” Ver ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 320. 11 BASSIOUNI, M. Cherif. International criminal justice in the age of globalization. Nouvelles Études Pénales – international criminal law: Quo vadis?, Ramonville Saint-Agne, n. 19, p. 79-155, 2004, p. 128. 12 Idem, p. 128. 13 A esse respeito, a ensaísta argentina Beatriz Sarlo entende que a importância dos depoimentos pessoais para o estabelecimento da verdade jurídica não é a mesma para o alcance da verdade histórica, pois eles trazem uma carga do presente que deve ser contraposta a outras fontes escritas que permitam submetê-los à crítica. Ver COLOMBO, Sylvia. A história sou eu. Folha de São Paulo, 8 abr. 2007, p. 8. Tzvetan Todorov defende que o critério de verdade para a Justiça não é o mesmo para a história. Para ele, a primeira busca a verdade factual (instrumentalizada), enquanto a segunda busca, sobretudo, a verdade de interpretação. Ver CASSESE, Antonio. DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Crimes internacionais e jurisdições internacionais. Barueri: Manole, 2004. p. 35-47. Tzvetan Todorov 14 LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 118. 10 132 O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos ser falseados ou esquecidos. 2 A conformidade do Projeto de Lei 987/07 com o Direito Internacional e com a Constituição da República de 1988 O Projeto de Lei 987/07, de autoria do deputado federal Marcelo Itagiba, objetiva incluir, no art. 20 da Lei 7.7716/89 (lei dos crimes de preconceito), o parágrafo 2º, a fim de criminalizar a conduta de quem “negar ocorrência do holocausto ou dos crimes contra a humanidade, com a finalidade de incentivar ou induzir a prática de atos discriminatórios ou de segregação racial”, impondo a mesma pena de quem incorre na conduta prevista no parágrafo 1º do citado artigo. De acordo com a justificativa do referido projeto de lei, a finalidade é reprimir o proselitismo de teses revisionistas e negacionistas do holocausto e dos crimes contra a humanidade, as quais configuram condutas racistas. Embora o projeto de lei ainda não tenha sido submetido à votação pelo Congresso Nacional, suas disposições já causaram desconforto aos defensores do direito à liberdade de expressão15. Todavia, criminalizar o revisionismo ou o negacionismo não significa impedir a análise científica ou leiga de fatos históricos, no sentido de desmascarar versões fantasiosas do passado. Com efeito, a criminalização do revisionismo e do negacionismo não configura ofensa ao direito à liberdade de expressão, encartado no art. 5º, incisos IV e IX, e no art. 220, ambos da Constituição da República de 1988, no art. 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e no art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica). Por não ser um direito absoluto, o direito à liberdade de expressão pode sofrer restrições legítimas, em especial pelo Direito Penal. Exemplos de limitação legítima à liberdade de expressão não faltam no Código Penal brasileiro e na legislação esparsa. Nesse diapasão, os artigos 138 (calúnia), 139 (difamação), 140 (injúria), 140 § 3º (injúria qualificada), 286 (incitação ao crime), 287 (apologia de crime ou criminoso) e 325 (violação de sigilo funcional) do CP, artigo 20 da Lei 7.716/89 (racismo) e artigo 3º da Lei 2.889/56 (incitação à prática do crime de genocídio) são alguns desses exemplos e demonstram que o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto, podendo ser afastado pelo próprio ordenamento jurídico quando estiver em colisão com outro bem jurídico igualmente relevante e que necessite da eficaz tutela estatal. Conforme matéria publicada pelo jornal Gazeta do Povo, em 7 de julho de 2009. 15 133 Artigo 7 Da atenta leitura do projeto de lei, infere-se que, para a configuração do crime, é necessário, além do ato de “negar ocorrência do holocausto ou dos crimes contra a humanidade”, que o agente atue “com a finalidade de incentivar ou induzir a prática de atos discriminatórios ou de segregação racial”. Portanto a lei exige, para a tipicidade da conduta, que o agente atue com especial fim de agir, “incentivar ou induzir a prática de atos discriminatórios ou de segregação racial”16, de sorte que não estão acobertadas pela referida norma penal as pesquisas acadêmicas ou leigas acerca de fatos históricos relativos ao holocausto ou aos crimes contra a humanidade que não tenham como objetivo a difusão de ideais racistas ou discriminatórios17. Veja-se que o art. 13.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, promulgada no Brasil pelo Decreto 678/1992, determina que “a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”. Do mesmo modo, o projeto de lei em exame está em acordo com o que estabelece o art. 4º, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, patrocinada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e promulgada no Brasil pelo Decreto 65.810/1969. Segundo o art. 4º do referido tratado, aos estados-partes cabe declarar como delitos puníveis “qualquer difusão de ideias racistas baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer incitamento à discriminação racial.” No mesmo sentido, determina o art. 20.2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (elaborado no âmbito da ONU e promulgado no Brasil pelo Decreto 592/1992) que “será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência”. Recentemente, a Justiça Federal de Santa Catarina absolveu o autor de artigo publicado em um jornal catarinense, no qual, de acordo com a denúncia do Ministério Público Federal, exaltava o ódio racial e incitava a discriminação contra a etnia indígena. Na sentença, o magistrado reconheceu que não se configurou o delito previsto no art. 20 da Lei 7.7716/89, porquanto não estava presente na conduta do réu a intenção específica de incitar o preconceito. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-ago-23/acusado-incitar-preconceitoindigenas-absolvido>. Acesso em: 24 ago. 2009. 17 A esse respeito, Celso Lafer reverencia a lição de Noberto Bobbio, em artigo publicado no jornal La Stampa, em 1996, para quem há dois tipos de revisionismo: o revisionismo na acepção positiva, que contribui para a descoberta da verdade histórica; e o revisionismo na acepção negativa, que tem por objetivo a negação de fatos históricos comprovados, e nesse âmbito é que se compreende a negação do holocausto. Ver LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 116. 16 134 O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos Ainda no plano internacional, comprometeu-se o Brasil, ao subscrever a Declaração de Durban (2001)18 e o Plano de Ação de Genebra (2009)19, a adotar todas as medidas cabíveis para impedir o preconceito racial e a propagação do discurso do ódio (hate speech). Como se percebe, também no plano internacional a liberdade de expressão não é compreendida como um valor absoluto. Aliás, de acordo com o art. 29 da Declaração Universal dos Direitos do Homem , os direitos do homem jamais podem ser exercidos em contrariedade aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Esse artigo demonstra, mais uma vez, que os direitos humanos não são absolutos e que seu exercício pode ser restringido para a preservação de direito de outrem ou para a garantia da paz social. A esse propósito, afirma José Augusto Lindgren Alves que o art. 29 da Declaração Universal dos Direitos do Homem20 “condiciona os direitos e liberdades fundamentais de cada um aos deveres para com a comunidade, assim como aos direitos e liberdades dos outros”21, reforçando a tese de que, para o Direito Internacional, nenhum direito pode ser oposto a todos de forma absoluta, ainda mais quando exercido para fins ilícitos ou imorais. No que toca à legislação nacional, o bem jurídico tutelado pelo referido projeto de lei também encontra guarida em princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, como a dignidade da pessoa humana, sacralizado no art. 1º, III, da CR/88, a isonomia (art. 3º, IV, e art. 5º, caput, ambos da CR/88) e o repúdio ao racismo em território nacional (art. 5º, XLII, da CR/88)22. Se de um lado a Constituição da República garante a todos a liberdade de expressão, de outro lado impõe o respeito à dignidade da pessoa humana, à insonomia, e o repúdio à discriminação (corolários do estado democrático de direito). A Declaração de Durban é o documento oficial que sintetiza os princípios que devem reger o combate ao ódio racial e que foram consagrados pela comunidade internacional durante a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, patrocinada pela ONU e que teve lugar na cidade de Durban, África do Sul. 19 O Programa de Ação de 2009 é o resultado da Conferência de Revisão da Declaração de Durban, quando foram revisados os princípios consagrados na Conferência de 2001 e criados instrumentos jurídicos para facilitar a implementação da declaração pelos países participantes. 20 I) Todo homem tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. II) No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. III) Esses direitos e liberdade não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas. 21 ALVES, José Augusto Lindgren. A arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo: FTD, 1997. p. 91. 22 Aliás, o Brasil também repudia o racismo em suas relações internacionais (art. 4º, VIII, da CR/88). 18 135 Artigo 7 Para Gilmar Mendes, nem mesmo à luz da própria Constituição da República, a liberdade de expressão não pode ser compreendida como um direito absoluto: Não é verdade, ademais, que o constituinte concebeu a liberdade de expressão como direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo Legislativo. Já a fórmula constante do art. 220 da Constituição explicita que ‘a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição’. É fácil ver, pois, que o texto constitucional não excluiu a possibilidade de que se introduzissem limitações à liberdade de expressão e de comunicação, estabelecendo, expressamente, que o exercício dessas liberdades haveria de se fazer com observância do disposto na Constituição. Não poderia ser outra a orientação do constituinte, pois, do contrário, outros valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um direito avassalador, absoluto e insuscetível de restrição23. A esse respeito, Celso Lafer lembra que a tese defendida por Gilmar Mendes foi também consagrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ainda na vigência da Constituição de 1946, no Recurso Extraordinário n. 25848/MG, do qual foi relator o ministro Ribeiro da Costa: No acórdão de 2 de dezembro de 1954, por unanimidade, o STF, a propósito da liberdade de imprensa, afirmou que esta comportava limites lícitos, justificando-se ‘a interdição de órgão de publicidade quando se demonstra o incitamento à subversão da ordem pública e social ou a propaganda de guerra ou de preconceito de raça ou de classe’24. Mais recentemente, no julgamento do habeas corpus n. 82.424-2/RS25, o Supremo Tribunal Federal mais uma vez reforçou a tese de que a liberdade de expressão encontra limites legais, inclusive na própria Constituição da República de 1988. Nessa ocasião, decidiu o STF que a liberdade de expressão não é uma garantia constitucional absoluta e pode sofrer limitações morais e jurídicas, de sorte que ela não pode dar abrigo a manifestações de conteúdo imoral que impliquem ilicitude penal. Ademais, o STF categoricamente refutou a possibilidade do exercício da liberdade de expressão quando esta contrariar princípios fundamentais da Constituição, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade jurídica: MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: IBDC, 1999. p. 90. 24 LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 67. 25 Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Siegfried Ellwanger, que fora condenado pela Justiça gaúcha pela prática do crime previsto no art. 20 da Lei 7716/89 (crime de incitação à discriminação e ao preconceito), por ter escrito e publicado a obra intitulada Holocausto – Judeu ou Alemão? Nos bastidores da mentira do século, na qual negava a ocorrência do genocídio dos judeus e incitava o ódio racial. 23 136 O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, art. 5º, par. 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica26. Do voto do ministro Celso de Mello, por ocasião do julgamento do sobredito habeas corpus, também se extrai importante lição acerca dos limites ao direito à liberdade de expressão: A prerrogativa concernente à liberdade de manifestação do pensamento, por mais abrangente que deva ser o seu campo de incidência, não constitui meio que possa legitimar a exteriorização de propósitos criminosos, especialmente quando as expressões de ódio racial – veiculadas com evidente superação dos limites da crítica ou da opinião histórica – transgridem, de modo inaceitável, valores tutelados pela própria ordem constitucional. Sobre a legitimidade da imposição de limites ao exercício do direito à liberdade de expressão por intermédio do Direito Penal, lembra Celso Lafer a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, que julgou recurso interposto pelo filósofo e escritor francês Roger Garaudy que, em sua obra Les mythes fondateurs de la politique israélienne, encampou o revisionismo histórico para tratar do genocídio dos judeus, tendo sido condenado pela Justiça francesa pela prática do crime de denegação do holocausto27. Em seu recurso, Garaudy alegou que a decisão da Justiça francesa violava o direito à liberdade de expressão, previsto no art. 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, argumento que fora refutado de forma magnânima pela Corte. Na decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, em 24 de junho de 2003, ficou assentado que Não há dúvida que contestar fatos históricos claramente estabelecidos como o holocausto, do modo como procede o requerente na sua obra, de forma alguma diz respeito a um trabalho de pesquisa histórica relacionado com a sua busca da verdade. O objetivo e a finalidade de um empreendimento desta natureza são totalmente diferentes, pois na verdade se trata de reabilitar o regime nacional-socialista e, por via de consequência, de acusar de falsificação da história as próprias vítimas. Destarte, a contestação de crime contra a humanidade aparece como uma das formas mais agudas de difamação racial contra os judeus e de incitação de ódio em relação a eles. A negação ou revisão de fatos Trecho extraído da ementa do habeas corpus n. 82.424-2/RS, rel. min. Maurício Corrêa, D.J. 17/9/2003. Crime definido na Lei 90-615/90. Outros países europeus criminalizaram o “revisionismo histórico negativo”, como Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Holanda, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Romênia e Suíça. Canadá e Israel são dois países fora da Europa que já adotaram legislação similar. 26 27 137 Artigo 7 históricos deste tipo coloca em causa os valores que fundamentam a luta contra o racismo e o antissemitismo e são de uma natureza que perturba gravemente a ordem pública. Atentando contra direito de terceiros, atos deste tipo são incompatíveis com a democracia e os direitos humanos 28. Mark Drumbl sustenta que o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) também contribuiu para a melhor compreensão dos limites da liberdade de expressão, quando em colisão com os demais direitos humanos. No julgamento do caso Barayagwiza29, o TPIR decidiu, em 3 de dezembro de 2003, pela condenação de um jornalista ruandês por incitação ao genocídio da população da etnia tutsi ao considerar que a incitação ao ódio racial não se encontra protegido pelo direito a expressar-se livremente30. Diante desses precedentes analisados, para as Cortes Internacionais, o direito à liberdade de expressão, embora protegido por tratados internacionais, não é considerado como um valor absoluto; é passível de limitação quando afrontar direito alheio. Essa posição, como se viu, é também albergada pela Corte Constitucional brasileira. Considerações finais O Projeto de Lei 987/07 visa a reafirmar os direitos humanos a partir da criminalização da conduta daquele que pretende negar crimes contra a humanidade, com a intenção de incentivar ou induzir a prática de atos discriminatórios ou de segregação racial. De acordo com a jurisprudência da Suprema Corte brasileira e dos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos, o exercício da liberdade de expressão não evita a responsabilização penal ou civil daquele que abusa desse direito, atacando outros direitos humanos e/ou fundamentais e outros bem jurídicos tutelados pelo direito. O hate speech não encontra guarida no direito à livre expressão, porquanto configura um ataque à dignidade humana, pilar do estado democrático de direito e da própria ideia de direitos humanos. LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 117-118. 29 Trata-se de Jean Bosco Barayagwiza, fundador da Radio Télévision Libre de Miles Colines (RTLMC), condenado por ter utilizado meios de comunicação para incitar ao genocídio que vitimou milhares de pessoas em Ruanda, durante o ano de 1994. Disponível em: <www.ictr.org/ENGLISH/cases/Barayagwuiza/index/ htm>. Acesso em: 18 ago. 2009. 30 DRUMBL, Mark A. Atrocity, punishment, and international law. Nova York: Cambridge University Press, 2007. p. 131-132. 28 138 O Projeto de Lei nº 987/07 e a reafirmação dos direitos humanos Ademais, negar a ocorrência do holocausto ou de atos igualmente atentatórios aos direitos humanos é violar a consciência coletiva e o direito à verdade. A esse respeito, vale citar a valiosa lição de Flávia Piovesan, em carta ao jornal Estado de S. Paulo, publicada em 12 de setembro de 2003: “o temerário aval ao revisionismo histórico ameaça o direito à verdade que traduz o anseio civilizatório de reconhecimento de gravíssimos fatos históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo propósito: assegurar o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais práticas”31. Referências AMBOS, Kai. Direito penal: fins da pena, concurso de pessoas, antijuricidade e outros aspectos. 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