0 UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL – UNISC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS LINHA DE PESQUISA EM CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO Juliana Fagundes dos Santos GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS: ALGUNS ASPECTOS DO INSTRUMENTO DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA. Santa Cruz do Sul, março de 2011. 1 Juliana Fagundes dos Santos GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS: ALGUNS ASPECTOS DO INSTRUMENTO DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Linha de Pesquisa em Constitucionalismo Contemporâneo da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. José Guilherme Giacomuzzi Santa Cruz do Sul, março de 2011. 2 Juliana Fagundes dos Santos GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS: ALGUNS ASPECTOS DO INSTRUMENTO DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA. Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Dr. José Guilherme Giacomuzzi Orientador Dr. André Viana Custódio Professor convidado Unisc Pós Dr. Itiberê de Oliveira Castellano Rodrigues Professor convidado UFRGS/UFPEL Santa Cruz do Sul, março de 2011. 3 Dedico este trabalho aos meus pais, Aldo (in memorian) e Antônia, as minhas irmãs: Janaína e Liliane e ao Luiz Carlos Merlin. 4 AGRADECIMENTOS À Deus por me amparar, dar força interior para superar as dificuldades e mostrar o caminho nas horas incertas. Ao professor Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho pelo apoio e encorajamento que me dispensou durante todo o mestrado. Por transmitir com muita sabedoria, simplicidade e dedicação seus conhecimentos. Ao segundo orientador, José Guilherme Giacomuzzi que ajudou a concluir o trabalho, com sua presteza e rigor necessário. À minha família pelo carinho e atenção, em especial a memória de meu pai que sempre incentivou a estudar enquanto estava presente entre nós e à minha mãe pela sua dedicação. Ao Luiz Carlos Merlin, pela força para começar e para seguir em frente, pelo carinho, paciência e incentivo em todo esse caminho. A todos professores e colegas do mestrado, especialmente a Lívia Copelli Copatti, pelo convívio e aprendizado durante a longa etapa do mestrado. Ao IFRS Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Sertão, que proporcionou a licença para terminar este trabalho, sem o apoio do qual este trabalho não teria sido viável. E a todas as outras pessoas que direta ou indiretamente colaboraram com este trabalho. Obrigada! 5 "A natureza não faz milagres; faz revelações." Carlos Drummond de Andrade 6 RESUMO Este trabalho apresenta a perspectiva da gestão dos recursos hídricos a partir do instrumento da cobrança pelo uso da água. O estudo desenvolve-se na linha de pesquisa de Constitucionalismo Contemporâneo, pretendendo identificar os possíveis riscos ambientais na Gestão dos Recursos Hídricos a partir da análise do art. 225 da Constituição Federal de 1988 e das condições de sustentabilidade. A presente pesquisa tem como objetivo analisar os riscos ambientais na gestão dos Recursos Hídricos e aplicar os conceitos desenvolvidos por Ulrich Beck para explicar a teoria do risco e sua relação com os recursos hídricos. Para tanto, a constatação da existência dos riscos concretos e abstratos é fundamental a fim de destacar a importância da formação da teoria do risco no direito. Parte-se da seguinte hipótese: em que medida a descentralização do uso dos recursos hídricos determina a quebra do paradoxo na sociedade de risco? A fim de atingir os objetivos especificados, adota-se o método hipotético-dedutivo e, para aplicá-lo, o método de procedimento será o monográfico. A problemática se dá em razão de a questão ambiental, atualmente, se apresentar como de grande importância em decorrência de os problemas ambientais atingirem a todos Estados indistintamente, independentemente de fronteiras. Os mecanismos atuais são capazes de evitar ou reduzir os riscos ambientais na gestão dos Recursos Hídricos? Existe algum instrumento que possibilita a gestão dos riscos ambientais? Os problemas de escassez e da degradação dos recursos hídricos acarretados pelo aumento populacional e pela industrialização registrados nas últimas décadas demandam uma mudança de comportamento no uso deste recurso diante da possibilidade de uma crise na disponibilidade de água em várias partes do mundo. Entre as diversas mudanças necessárias, uma será, provavelmente, tratá-la como um bem dotado de valor econômico. A pesquisa é composta pela fundamentação teórica de base dividida em três partes: os aspectos legais, a gestão dos recursos hídricos e a contextualização do instrumento da cobrança pelo uso da água. Busca-se verificar se o instrumento da cobrança pelo uso da água se constitui em um instrumento eficaz para a gestão dos RH e (dos riscos ambientais), estabelecendo perspectivas e desafios para sustentabilidade. Palavras-chave: gestão; recursos hídricos; teoria do risco. 7 ABSTRACT This work presents the perspective of water resources management from the perspective of the instrument for the charging of water use. The study develops in the research line of Contemporary Constitutionalism. It intends to identify possible environmental risks in the water Resources Management from the analysis of the article number 225 of the 1988 Federal Constitution. It also intends to identify conditions of sustainability. The research has as its objective to analyze environmental risks in the water resources management, and to apply concepts which were developed by Ulrich Beck to explain the risk theory and its relationship with water resources. For that, the realizing of the existence of concrete and abstract risks is fundamental so as to highlight the importance of the formation of the risk theory in law. There is the following hypothesis: in what measure the decentralization of water resources determines the break of paradox in the risk society? To attain the specified objectives, the hypothetical-deductive method is adopted, and to apply it, the procedure method will be monographic. This matter happens due to the environmental question, nowadays, is being presented as of great importance because the environmental issue hits all States, independently of borders. Are the mechanisms used nowadays able to avoid or reduce environmental risks? Is there any instrument capable of managing environmental risks? The problems of scarcity and degradation of water resources brought by the population and industrial rises registered in the last decades require a change in behavior in the use of this resource before the possibility of a crisis in the availability of water in several parts of the world. The survey consists of the theoretical base divided into three parts: the legal aspects, management of water resources and the context of the instrument of charging for water use. Among several necessary changes, one will be, probably, treating it as a good with economic value. Verifying if the instrument for charging for the use of water is efficient to manage environmental risks, establishing perspectives and challenges to its sustainability are very important actions. Key words: management; water resources; risk theory. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................... 10 1 EVOLUÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL .................. 16 1.1 OS RECURSOS HÍDRICOS NAS ORDENAÇÕES DO REINO .......................... 16 1.2 OS RECURSOS HÍDRICOS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS ................ 19 1.3PRINCIPAIS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS ANTERIORES E POSTERIORES À ECO 92........................................................................................28 1.3.1 Conferências anteriores à ECO 92 ................................................................ 28 1.3.2 ECO 92..............................................................................................................32 1.3.3 Conferências internacionais: Declaração de San José da Costa Rica, Declaração de Paris e Declaração de Haia............................................................36 1.4 A EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO JURÍDICA DA ÁGUA EM ALGUNS DIPLOMAS INFRACONSTITUCIONAIS........................................................................................38 1.4.1 Código Civil de 1916 (Lei 3.071/1916)........................................................................... 39 1.4.2 Código das Águas (Decreto-Lei nº 24.643/1934) .......................................... 43 1.4.3 Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997) ............................ 45 1.4.4 Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002) ......................................................... 49 1.5 APLICABILIDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS/ AMBIENTAIS ....... 51 1.5.1 Princípio da prevenção .................................................................................. 55 1.5.2 Princípio da precaução .................................................................................. 58 1.5.3 Princípio da cooperação/princípio da participação .................................... 64 1.5.4 Princípio do poluidor-pagador ...................................................................... 68 2 GESTÃO DAS ÁGUAS NO BRASIL ................................................ 72 2.1 O INÍCIO DOS PLANOS DE GESTÃO DE ÁGUAS NO BRASIL ........................ 77 2.2 EVOLUÇÃO DOS MODELOS DE GERENCIAMENTOS DAS ÁGUAS .............. 80 2.2.1 Modelo burocrático........................................................................................ 80 2.2.2 Modelo econômico-financeiro (custo-benefício) ......................................... 82 2.2.3 Modelo sistêmico de integração participativa ............................................. 83 9 2.4 A BACIA HIDROGRÁFICA COMO UNIDADE FÍSICO-TERRITORIAL DE PLANEJAMENTO ..................................................................................................... 84 2.5 A DESCENTRALIZAÇÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA ..................................... 86 2.6 COMITÊS DE BACIA HIDROGRÁFICA .............................................................. 89 2.6.1 O sistema nacional e os comitês de bacia no RS............................................90 2.7 O RISCO COMO INTEGRANTE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ........... 95 2.7.1 Riscos concretos e riscos abstratos .......................................................... 100 2.7.2 O risco na gestão dos recursos hídricos a partir da CF/88 ...................... 103 3 O INSTRUMENTO DA COBRANÇA DA ÁGUA ............................. 112 3.1 COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA PARA EFETUAR A COBRANÇA DO USO DOS RECURSOS HÍDRICOS ................................................................................. 115 3.2 ASPECTOS DA COBRANÇA DOS RECURSOS HÍDRICOS ........................... 116 3.3 ASPECTOS CONTRÁRIOS À COBRANÇA DA ÁGUA .................................... 124 3.4 A COBRANÇA INCITATIVA NA BACIA DO RIO DOS SINOS (RS) ................. 127 CONCLUSÃO .....................................................................................131 REFERÊNCIAS .................................................................................. 136 10 INTRODUÇÃO Há algum tempo, o debate sobre a crise da água tem se acentuado em razão da iminente escassez deste bem, o que é uma ameaça constante para a humanidade, visto que cada vez mais se acentuam a tendência a doenças de veiculação hídrica, a produção de estresses econômicos e sociais, o aumento das desigualdades entre regiões e países e as dificuldades ao desenvolvimento de maneira geral. Assim, o estágio atual da crise que se enfrenta pela escassez de Recursos Hídricos (doravante, RH) possui várias causas, entre as quais a distribuição desproporcional em determinadas regiões do mundo, a poluição ambiental, o crescimento populacional, o desperdício e outros. O Brasil é considerado o país mais rico e abundante em água do mundo, pois, além de possuir dimensões continentais, conta com o maior rio (Amazonas) e o maior aquífero subterrâneo (Guarani) do mundo. “A produção total de águas doces no Brasil representa 53% do continente sul-americano (334.000 m3/s) e 12% do total mundial (1.488.000 m3/s)”1. Contudo, enfrenta problemas em relação aos RH, o que leva a que o tema venha ganhando espaço nas últimas décadas. Aliás, a água, que antes era considerada inesgotável, passou a ser tratada com maior interesse. Apesar de o país ser privilegiado no tocante à disponibilidade de água doce pela sua grande riqueza hídrica, falta um melhor gerenciamento deste elemento da natureza. Ora, não existe como pensar em desenvolvimento humano sem o uso eficiente dos RH e, portanto, sem uma eficiente gestão de RH. “O centro do problema nacional não está focado na distribuição da água, mas no seu gerenciamento”1. Na realidade, a preocupação com os RH, notadamente com a sua gestão, têm estado presente desde há muito tempo. Porém, somente nas últimas décadas o conceito de gestão ambiental incorporou-se de forma significativa nos modelos de gerenciamento de RH. Naturalmente, os avanços na legislação promovem novas perspectivas para o planejamento e para a gestão das águas. Consequentemente, essas perspectivas apontam para o processo de descentralização na gestão, 1 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.57. 11 utilizando-se a bacia hidrográfica como unidade de planejamento. É possível que o princípio da descentralização seja efetivamente colocado em prática quando os Comitês de Bacia tiverem plenas condições de exercer as funções que lhe são atribuídas por lei. O objetivo geral do estudo será analisar os riscos ambientais na gestão descentralizada dos RH. Assim, o presente estudo examinará os possíveis riscos na gestão dos RH a partir da análise do art. 225 da Constituição Federal e as possibilidades do uso da água de maneira racional e sustentável. Para tal objetivo ser concretizado, será analisado o instrumento da cobrança da água em seus aspectos positivos e negativos para verificar a imprescindibilidade e a efetividade deste instrumento de gestão. Ademais, a Lei de RH, Lei nº 9.433 de 08 de janeiro de 1997, propõe um novo modelo de gestão de águas, apresentando-se como um instrumento bastante evoluído e adaptado à realidade global da crise da água, por abordar meios práticos de gerenciamento de RH, com grandes possibilidades de alterar o quadro da crise vivenciada quanto ao uso de tal elemento. A primeira parte do trabalho buscará analisar de forma breve, a evolução histórica do tratamento conferido à água nas constituições brasileiras, para uma melhor compreensão das características protetivas do meio ambiente no mundo contemporâneo. A hipótese da pesquisa foi circunscrita, prioritariamente, às principais normas jurídicas ambientais referentes aos RH e sua efetividade no direito brasileiro. Na sequência deste capítulo, o trabalho abordará a análise do direito ordinário com os principais dispositivos referentes aos RH do Código Civil de 1916, Código de Águas (Decreto nº 24.463/1934), na Lei de RH (Lei nº 9.433/1997) e Código Civil de 2002. Outrossim, serão abordados neste estudo alguns princípios constitucionais ambientais, entre os quais o princípio da prevenção, o da precaução, poluidor-pagador e da cooperação. A abordagem da pesquisa procurará identificar a importância do estudo da proteção do meio ambiente no âmbito do direito internacional, tendo em vista os vários documentos celebrados, frutos do interesse mundial na causa ambiental. Dessa forma, será demonstrado neste trabalho alguns 12 pontos relativos ao direito internacional ambiental, tais como antecedentes e os principais documentos internacionais existentes, tendo como referencial a Eco 92. A segunda parte do trabalho abordará alguns aspectos da gestão dos RH e da teoria do risco, desenvolvendo-se a fundamentação teórica propriamente dita. A contextualização da importância da gestão dos riscos ambientais tem como ponto de partida a pré-compreensão das espécies de riscos que são produzidas pela sociedade contemporânea. Com o propósito de colaborar com gestão dos RH, o estudo dos riscos, notadamente na questão hídrica, onde existe a aleatoriedade ou a incerteza dos processos hidrológicos, será de fundamental importância. Dessa forma, torna-se importante verificar a estimativa do risco envolvido para se possível, prevenir, minimizar ou mitigar esses riscos. Foi a percepção desses riscos, dentre outros, que mobilizou as Nações Unidas a realizar a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de Janeiro. Nesta conferência, 179 países, voluntariamente, assinaram o documento denominado “Agenda 21”, que se constitui num amplo conjunto de compromissos a serem realizados no presente século para mudar a forma como se produz e se consome, visando à construção de sociedades sustentáveis. Por essa razão, será tratada a questão do risco em matéria ambiental, especificamente dos RH, no contexto a partir da Constituição Brasileira de 1988. Nesta última parte desenvolve-se a tese propriamente dita por meio da análise da legislação federal de RH, com a utilização da teoria de Ulrich Beck. Portanto, será estudada a teoria do risco e sua relação com os RH, principalmente a partir da Constituição Federal de 1988. Além disso, a constatação da existência dos riscos concretos e abstratos é fundamental para destacar a importância da formação da teoria do risco no direito. A operacionalização desta comunicação na estrutura do direito acerca do risco no direito ambiental se dá pela distinção prevenção-precaução. 13 O desenvolvimento do trabalho também apresentará a importância do estudo da proteção do meio ambiente, no âmbito do direito internacional, tendo em vista os vários documentos celebrados, frutos do interesse mundial na causa ambiental e da sua influência na legislação ambiental brasileira no âmbito dos RH. O direito ao meio ambiente saudável, direito fundamental positivado nas constituições e nos tratados internacionais, apresenta características próprias dos chamados direitos de solidariedade2. Por outro lado, o fenômeno econômico mostrase presente em várias dimensões, como, por exemplo, no princípio do poluidorpagador (concretizado nos instrumentos econômicos), ou seja, numa zona de transição entre o jurídico e o econômico-ambiental. A relevância da pesquisa justifica-se, além da questão da riqueza hídrica, da crise da água e, principalmente, da falta de um melhor gerenciamento, já elencados, porque o estudo pode colaborar para esclarecer alguns aspectos do instrumento da cobrança na gestão dos RH, como, por exemplo, qual órgão possui a competência administrativa para efetuar a cobrança pelo uso da água, o significado da cobrança incitativa, bem como a análise crítica dos aspectos positivos e negativos da cobrança pelo uso da água, com a consequente realização dos preceitos constitucionais e legais de uma política nacional de RH. A água é um recurso estratégico para a sociedade, mas a cultura do desperdício impera e, portanto, precisa ser modificada. Além de outros fatores, a questão da cobrança pelo uso da água poderá colaborar para mudar essa realidade. Até porque esse instrumento de natureza econômica assume um papel fundamental no processo de gestão dos RH, principalmente em nosso país, em que há poucos recursos à disposição para realizar a política ambiental; logo, a aplicação eficiente dos recursos adquire grande relevância. Ainda assim, a área da gestão dos RH é uma área que continua em evolução. Portanto, os estudos serão sempre de alguma forma positivos para esclarecer pontos visando a um melhor desenvolvimento nesta área fundamental. 2 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.24. 14 A problemática se dá em razão de a questão ambiental, atualmente, se apresentar como de grande importância em decorrência de os problemas ambientais atingirem a todos Estados indistintamente, independentemente de fronteiras. Os mecanismos atuais são capazes de evitar ou reduzir os riscos ambientais? Existe algum instrumento na política ambiental brasileira que possibilite a gestão dos riscos ambientais? Os problemas de escassez e da degradação dos RH acarretados pelo aumento populacional e pela industrialização registrados nas últimas décadas demandam uma mudança de comportamento no uso deste recurso diante da possibilidade de uma crise na disponibilidade de água em várias partes do mundo. Para responder ao problema proposto, elencam-se as seguintes hipóteses: Em que medida a descentralização do uso dos RH determina a quebra do paradoxo na sociedade de risco? O instrumento da cobrança pelo uso da água poderá ser eficaz para a gestão dos RH? Na parte final desta pesquisa, apresentam-se as conclusões do estudo, que visam tentar responder o problema suscitado, bem como o cumprimento dos objetivos propostos. 15 1 EVOLUÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL A retomada da proteção jurídica da água nas constituições brasileiras, destacando aquelas que fizeram alguma referência aos Recursos Hídricos, permite verificar se houve uma tendência em colocar o direito ao meio ambiente no direito constitucional. Embora, no início, a evolução dos RH fosse determinada por fatores de ordem predominantemente econômica, com o passar do tempo passou a ser determinada por fatores de natureza ambiental. Assim, tecem-se breves considerações acerca dos documentos internacionais que influenciaram a comunidade internacional e também o nosso país na tomada da consciência ambiental e da necessidade de defender o meio ambiente. Estudados os textos constitucionais e os tratados internacionais, da evolução dos institutos jurídicos, depreende-se que são definidos princípios que se aplicam às águas e também ao meio ambiente que regem o direito interno, os quais se originam no direito internacional. Por outro lado, destaca-se que, no âmbito da gestão e do gerenciamento dos RH, vem se seguindo há alguns anos, um modelo diferente, com destaque para uma gestão descentralizada e para a participação dos comitês de bacia. Após uma breve exposição panorâmica do início dos planos de gestão de águas no Brasil, bem como uma rápida explanação sobre os modelos de gerenciamento das águas, é importante analisar a bacia hidrográfica como unidade físico-territorial de planejamento, a descentralização da bacia hidrográfica e a importância dos comitês de bacia, para facilitar o entendimento do tema da cobrança da água que será desenvolvido posteriormente. Ainda nesta parte será tratada da fundamentação teórica do risco e sua relação com os RH. Para tanto, serão fornecidas breves explicações sobre aspectos elementares da teoria do risco, dando-se especial destaque aos riscos concretos e abstratos. Em seguida, serão discutidos aspectos centrais do risco na gestão dos RH a partir da Constituição Federal de 1988. Tecidas tais considerações, será analisado um dos instrumentos econômicos, ou seja, a cobrança pelo uso da água, a quem competirá a cobrança do uso dos RH. 16 1.1 OS RECURSOS HÍDRICOS NAS ORDENAÇÕES DO REINO Desde a invasão do Brasil, no início do século XVI, o patrimônio natural foi muito explorado, inclusive por outros Estados. Entretanto, a utilização econômica dos recursos naturais não levou ao esgotamento dos recursos finitos e manteve a capacidade de regeneração dos recursos renováveis durante o período imperial. De fato, o problema da poluição gerada pelas atividades humanas ainda não se fazia presente, o crescimento demográfico era baixo, a população era pequena e, consequentemente, também a demanda por água. Ainda na época do Brasil-Colônia, as Ordenações do Reino regulavam o regime de águas existentes neste território. Antes da edição da Constituição de 1824 vigia em Portugal o Alvará de 1804, aplicado no Brasil pelo Alvará de 1819. Verificase, portanto, uma forte influência da nação portuguesa na formação da história e da legislação ambiental brasileira, no relato de Benjamin. Com a incorporação abrupta da região ao sistema econômico mundial, o Brasil foi inserido num processo de dependência e subordinação, ainda vigente, que o transformou em fonte inesgotável de recursos ambientais. As grandes dimensões do território foram um convite aos exploradores para que explorassem pelo simples prazer de explorar, estimulando, com o esgotamento de recursos, a procura de novas regiões a serem 3 desbravadas . O domínio dos rios foi objeto das Ordenações “Filipinas”, liv. II, título XXVI, par. 8º4. A Resolução de 17 de agosto de 1775 declarou que o domínio e a posse das águas particulares pertenciam ao dono do prédio em que nascessem e estabelecia sobre as águas supérfluas uma servidão legal em favor dos prédios inferiores. Conforme a leitura do liv. II, título XXVI, par. 8º, percebe-se que o legislador adotou o princípio estabelecido pelo direito feudal, enumerando entre os direitos reais, regalia, os rios navegáveis, assim como todos aqueles, de que se fazem os navegáveis, parecendo deixar fora do patrimônio do rei os não navegáveis e os que nem direta nem indiretamente 3 BENJAMIN, Antônio Herman. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da América Latina. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, n.0, [s.d.], p.85. 4 «E as estradas e ruas públicas, antigamente usadas, e os rios navegáveis, e os de se fazem os navegáveis, se são caudais, que corram em todo o tempo. E posto que o uso das estradas públicas e dos rios seja igualmente comum a toda a gente, e ainda a todos os animais, sempre a propriedade delas fica no Patrimônio Real.» 17 concorrem para a formação daqueles. Sendo omissa a este respeito a nossa lei, começou a invocar-se o direito romano e tem ele sido observado, quando conforme com a equidade e com a boa razão, embora modificado 5 pelos costumes e usos locais. O Alvará de 18046, aplicado ao Brasil pelo Alvará de 18197, criou a servidão legal de aqueduto para a agricultura e permitia que as águas dos rios e ribeiros pudessem ser ocupadas por particulares e derivadas para canais em benefício da agricultura e da indústria8. Portanto, no Brasil, as primeiras normas de natureza ambiental foram importadas de Portugal, que já havia editado leis para proteger alguns recursos ambientais, especialmente os bens escassos, motivados por questões econômicas. A questão ambiental ganha novos matizes, salientando-se, a definição dos bens ambientais como de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida, acrescentando-se uma outra dimensão, a ambiental. 5 GARCIA, Manuel Emygdio. Propriedade das águas no direito romano. 1862. 238 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado) - Universidade de Lisboa, Coimbra, 1862, p.75. 6 «XI. Em qualquer das províncias do reino, aonde alguma povoação em comum, ou algum proprietário em particular, empreender o tirar de algum rio, ribeira, paul ou nascente de água, algum canal, ou levada, para regar as suas terras, ou para as esgotar, sendo inundadas, requererá a qualquer dos ministros de vara branca do termo, ou comarca, para que lhe demarque, e assine o lugar, e sítio mais cômodo, por onde ela pode ser construída, ouvindo o parecer de louvados, ou de pessoas inteligentes: o qual do que acordarem mandará formalizar um processo verbal, e por ele lhe dará ou negará a licença para a construção, citando-se por editos as partes interessadas, e do que julgar e do que julgar se poderá recorrer a mesa do desembargo do paço. Não poderão estas obras ser embaraçadas pelos proprietários dos terrenos, por onde elas passarem; mas serão obrigados a deixarem construir o aqueduto, e passar a água, pagando-se-lhe o prejuízo por arbítrios de louvados». 7 GRANZIERA, Maria Luíza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2006. p.84. 8 VALLADÃO, Alfredo. Rios públicos e particulares. Belo Horizonte, 1904. p.23. 18 1.2 OS RECURSOS HÍDRICOS NAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS BRASILEIRAS A questão hídrica foi tratada de alguma forma nas constituições federais brasileiras; inicialmente, porém, não teve tratamento específico. O domínio dos RH foi se afirmando, se modificando e se incorporando com o passar do tempo nas constituições pátrias. Apesar de, no período colonial brasileiro as normas serem de natureza econômica, infere-se que as constituições posteriores foram traduzindo a tutela da água conforme a natureza ambiental. Assim, a elevação dos RH ao status constitucional representou um grande avanço. A abordagem dos RH leva à efetivação dos fundamentos, objetivos e princípios da República Federativa do Brasil, na qual prepondera a valorização do trabalho humano e a livre-iniciativa, de forma que seja assegurada a todos uma existência digna, consoante os ditames da justiça social quando o Estado atua como agente da atividade econômica, ou quando a iniciativa privada maneje os RH. Araújo destaca que “não se pode pensar uma tutela do patrimônio (água), sem uma análise do texto constitucional. A análise do bem em discussão deve ter presente o enquadramento legislativo quer superior, quer ordinário, em que se insere”9. Dessa forma, apresenta-se uma breve análise do patamar constitucional e do prisma da competência federativa, ou seja, a questão da competência para sua legislação e atuação. O Brasil independente foi desde o início uma monarquia constitucional. Assim, a Constituição Federal de 1824, “a semelhança das demais Constituições do século XIX, assentava na separação dos poderes, com forte posição do Imperador, simultaneamente titular do poder moderador e chefe do Poder Executivo 10”. 9 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A tutela da água e algumas implicações nos direitos fundamentais. Bauru: ITE, 2002. p. 23. 10 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.145. 19 Dessa forma, a conservação da unidade política manteve-se por longos setenta anos; porém, com a propaganda republicana, de inspiração positivista francesa, o regime da monarquia foi abalado. As instituições políticas não poderiam deixar de ser influenciadas por uma estrutura étnica e cultural em vias de consolidação e sedimentação, na qual se integrariam fortes correntes imigratórias europeias; por profundas divisões sociais; pela oposição entre o Brasil agrário, dominado pela aristocracia rural das plantações, e o Brasil urbano, concentrado no litoral e de tendência 11 burguesa . A Constituição Imperial de 1824, “primeiro diploma constitucional brasileiro, é produto de um tempo e de uma cultura12”. Embora esta Constituição não tratasse especificamente do meio ambiente, mencionou a questão da saúde, matéria de interesse estatal, em virtude das situações precárias de insalubridade. Nos termos do art. 17913, nº 24, a Constituição Federal 1824 proibia a instalação de indústrias que de alguma forma causassem danos à saúde das pessoas. No entanto, As Águas não foram objeto de tratamento específico nessa Carta, pertencendo todos os rios à Coroa, em conformidade com as Ordenações do Reino. Todavia, o item 22 do art. 179 garantia “o direito de propriedade em toda sua plenitude” e estatuía que o patrimônio privado, poderia ser previamente indenizado se o bem público, legalmente verificado, exigisse 14 seu uso e emprego . A respeito da falta de reconhecimento formal da proteção ambiental, registra Antunes15 que a Constituição Federal 1824 foi omissa. Contudo, uma Lei de 1828 atribuiu às Câmaras de Vereadores a competência legislativa sobre as águas, e a Lei nº 15, de 1834, estabeleceu a competência das assembleias legislativas provinciais para legislar sobre obras públicas, estradas e navegação nos respectivos territórios, o que traria evidentes reflexos com relação às 16 águas . 11 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.145. TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.58. 13 Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. XXIV. Nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria, ou comércio pode ser proibido, uma vez que não se oponha aos costumes públicos, á segurança, e saúde dos Cidadãos. 14 GRANZIERA, Maria Luíza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2006. p.85. 15 ANTUNES, Paulo Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998, p.208-209. 16 CAMPOS, Nilson. STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.209. 12 20 Fundamentalmente, a Constituição Federal de 1891 adotou no Brasil o sistema constitucional do modelo norte-americano, à semelhança do que já tinham feito o México e a Argentina17. Assim, foi reorganizado o poder, distribuído entre a União e os Estados federados, os quais, por consequência, tiveram de consagrar o presidencialismo em substituição à tendência parlamentar. A Constituição Federal de 1891 não cogitava expressamente da questão do domínio, mas estabelecia, no art. 13, que o direito da União e dos Estados de legislarem sobre viação térrea e navegação interior seria regido por lei federal. Em seu artigo 34, §6º, atribuiu ao Congresso Nacional a competência privativa para legislar sobre navegação dos rios que banhassem mais de um Estado ou se estendessem a territórios 18 estrangeiros . A Constituição Federal de 1891 atribuiu competência a União sobre minas e terras (arte. 2919 e 3420), ainda sem uma ótica holística, mas demonstrou uma preocupação com a normatização de alguns elementos naturais 21. O princípio orientador era a visão ambiental utilitarista, de natureza econômica, dos recursos naturais como fatores de produção e de desenvolvimento. Frise-se que a Constituição Federal 1891 silenciou no tocante às águas. Neste ponto, o entendimento que prevalecia era de que a matéria pertencia à competência federal para legislar sobre o direito civil, campo no qual se inseria o tratamento da água, visto sob a mesma ótica do direito de propriedade. “O ambiente da República de 1889-1891 não era muito diverso do Império. A vida econômica e social continuava a girar em torno dos interesses comerciais das cidades e dos interesses agrícolas dos grandes proprietários22”. A vida política amparava-se num grande partido do governo, com certa estabilidade das instituições políticas, assim como na época do Império, salvo raras exceções. 17 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.147. GRANZIERA, Maria Luíza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2006, p.851, op. cit. 19 Art. 29 Legislar sobre terras e minas de propriedade da União. 20 Art. 34 Decretar as leis orgânicas para a execução completa da Constituição. 21 SEGUIN, Élida. Direito ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 92. 22 MIRANDA, Op. Cit., p.147. 18 21 Assim como a Constituição Federal de 1891, a Constituição Federal de 1934 também tinha o objetivo de regulamentar as atividades econômicas em detrimento da proteção ambiental. O art. 20, I, da Constituição Federal de 1934, fixou o domínio da União sobre os bens que à época a essa pertencia, nos termos da lei em vigor. Além disso, os dispositivos constitucionais estabeleciam, na regra do art. 5º atribuía à União legislar sobre bens do domínio federal, riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidroelétrica, caça, pesca e a sua exploração. No artigo 20, inciso II, incluía entre os bens da União os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirva de limites com outros países ou se 23 estendam a território estrangeiro . A evolução dos modelos de gerenciamento das águas aconteceu em três fases: o modelo burocrático, o modelo econômico-financeiro e o modelo sistêmico de integração participativa. O marco referencial do primeiro modelo, o burocrático, foi o Código das Águas. A regulamentação ambiental federal até esta data era composta por um número bastante reduzido de dispositivos legais. Ainda não se dispunha de uma legislação que tratasse, por exemplo, da questão da poluição. O traço principal da legislação ambiental nesse período é marcado pela centralização decisória e pela ênfase na proteção da flora, da fauna e dos recursos naturais. A legislação ambiental ainda não reconhecia a interface entre os problemas ambientais e o processo de desenvolvimento econômico, em especial entre meio ambiente e atividades produtivas poluidoras, bem como negligenciava o efeito da perda de qualidade ambiental sobre o bem-estar social. Dessa forma, é possível perceber que o entendimento do meio ambiente como um conjunto de elementos naturais, nessa primeira fase da gestão ambiental, era muito limitado. A evolução só ocorreria com a edição da Lei nº 6.938/81 e, no campo constitucional, após muitos anos, por meio da Constituição Federal de 1988. Com efeito, o período iniciado em 1930 é assinalado por três fases principais: “evolução com soluções de continuidade e com frequentes crises político-militares, sucessão de governos autoritários e de governos liberais e democráticos e 23 CAMPOS, Nilson; STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.209. 22 proliferação de constituições24”. Destaca-se, o governo provisório de 1930-1945, a Constituição aprovada em assembleia constituinte em 1934 e a ditadura de Getúlio Vargas. Aos Estados restaram os bens de sua propriedade, conforme a legislação então em vigor, com exceção dos atribuídos à União, de acordo com os termos do art. 21, I. O inciso II deste artigo estabeleceu as margens dos rios e lagos navegáveis como destinadas ao uso público, se por algum título não fossem do domínio federal, municipal ou particular. De acordo com o art. 118, da Constituição Federal 1934, as minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d’água, constituíam propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento industrial e o art. 119 dispunha que o aproveitamento industrial das minas e jazidas minerais, bem como das águas e da energia hidráulica, ainda que de propriedade privada, dependia de autorização ou concessão federal, na 25 forma da lei . A Constituição Federal de 1937 atribuía competência privativa à União para legislar sobre os bens de domínio federal, águas e energia hidráulica. Convém destacar que esta constituição não alterou, em relação à anterior, o domínio das águas nem tratou das ações de proteção aos efeitos danosos. O artigo 16 estabelecia a competência privativa da União para legislar sobre comunicação e transporte via d’água, de caráter internacional ou interestadual (XI), navegação de cabotagem (XII), bens de domínio federal, energia hidráulica, águas, florestas, caça e pesca e sua exploração (XIV), alfândega e entrepostos, polícia marítima, portuária e das vias fluviais 26 (XIII). Ainda com base na Constituição Federal de 1937, a regra do art. 143 estabelecia que as quedas d’água constituíssem propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial, ou seja, estabelecia distinção entre a propriedade do solo e das riquezas do subsolo, submetendo também à 24 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.148. GRANZIERA, Maria Luíza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2006. p.86. 26 Ibidem, p.87. 25 23 autorização federal, o aproveitamento industrial de minas e jazidas minerais, das águas e energia hidráulica, ainda que de propriedade privada27. Nas constituições federais anteriores não havia fundamento constitucional que justificasse as intervenções legislativas sobre matéria exclusivamente ambiental. Os dispositivos supracitados não tutelavam a proteção ao meio ambiente, mas tão somente fixavam a competência da União para legislar a respeito da exploração econômica de alguns bens ambientais de domínio federal. Após a Segunda Guerra Mundial, destaca-se a nova fase democrático-liberal e também a nova Constituição, de 1946. Em relação aos RH, a Constituição Federal de 1946 alterou o direito anterior no que se refere ao domínio hídrico, excluindo os municípios da categoria de detentores de domínio das águas. No art. 34, I, atribui à União lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio ou que banhassem mais de um Estado, que servissem de limite com outro país ou se estendessem a território estrangeiro e também assim, 28 as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países . A Constituição Federal de 1946 tutelou o patrimônio histórico, paisagístico e cultural, assim como tratou da tutela da saúde de forma geral, de competência da União para legislar sobre águas, floresta, caça e pesca. Embora tenha regulamentado a utilização dos recursos naturais, o viés utilizado era economicista, de acordo com as ideias que vigoravam na época. A Constituição Federal de 1946 [...] Deu ênfase à livre iniciativa e à propriedade privada e estabeleceu como competência da União, legislar sobre riquezas do solo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, florestas, caça e pesca (art. 5º, XV, I). Além disso, permitiu que os Estados legislassem sobre águas, supletiva e 29 complementarmente . É interessante destacar uma comparação entre as constituições brasileira e portuguesa segundo Miranda: 27 CAMPOS; STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.209. 28 GRANZIERA, Maria Luíza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2006. p. 87-88. 29 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p.151. 24 As tendências autoritárias imperantes em Portugal de 1926 a 1974 tiveram paralelo no Brasil por duas vezes: entre 1937 e 1945 (num regime também denominado de “Estado Novo” e de 1964 a 1985). Não admira que nossa constituição de 1933 tenha inspirado, na Constituição Federal de 1937, a criação de um Conselho de Economia Nacional (idêntico “a Câmara Corporativa) e a atribuição ao Presidente da República dos poderes de 30 dissolução da Câmara dos Deputados e da feitura de decretos-leis. Ultrapassado o autoritarismo, as constituições atuais de ambos os países (a de 1976 em Portugal e a de 1988 no Brasil) apresentam muitos aspectos em comum: “A extensão das matérias com relevância constitucional, o cuidado posto na garantia dos direitos de liberdade, a promessa de inúmeros direitos sociais, a descentralização, a abundância de normas programáticas31”. Sabe-se que a Constituição Federal de 1967 não vigorou mais que dois anos em sua forma original. Elaborada na época do governo militar, com numerosos atos institucionais e complementares, surgiu em outubro de 1969 a Emenda Constitucional nº 1. Desse modo, com seu sentido centralizador, com tendências autoritárias e o cuidado no processo de elaboração das leis, não se podiam esperar mais que regras gerais, principalmente com relação aos recursos naturais, como de fato aconteceu. A Constituição Federal de 1967, com a Emenda Constitucional nº 01/69, deu caráter ainda de exploração aos recursos ambientais, numa visão desenvolvimentista da época e enunciando, apenas, algumas regras genéricas. Nesse sentido, o art. 8º, XVII, estabelece como competência da União legislar sobre: florestas caça e pesca; águas, telecomunicações, 32 serviço postal e energia (elétrica, térmica, nuclear ou qualquer outra). Finalmente, “do regime autoritário assim estabelecido passou-se para um novo regime constitucional, através de um longo processo, dito de transição democrática, a partir da abertura levada a cabo pelos presidentes militares 33” até o congresso aprovar uma nova constituição em 1988. Ao contrário de todas as constituições anteriores, a de 1988 ocupou-se dos direitos fundamentais com prioridade em relação às demais matérias. Por isso, 30 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.145 Ibidem, p.145. 32 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p.151. 33 MIRANDA. Op. Cit., p.149. 31 25 representou uma nova e importante alteração no tratamento da água, ou seja, eliminou o direito de propriedade sobre as águas particulares. Nela passaram a ser considerados bens dos Estados as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito, ressalvadas, nesse caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União (Constituição Federal, art. 26, I). Os rios e lagos internacionais ou que banhem mais de um Estado passaram o domínio da União (Constituição Federal, art. 20, III). Acabaram assim as águas particulares ou comuns, previstas no Código Civil 34 e no Código de Águas . Percebe-se na Constituição Federal de 1988 a especial proteção dos RH, conforme se pode depreender dos vários artigos que abordam o tema, entre os quais o art. 20, parágrafo 1º35, art. 21, XII36, b; art. 21, XIX37; art. 22, IV38; art. 23, XI39 e art., 26, I40. Assim, além de um capítulo próprio para o meio ambiente, o art. 225 e seus parágrafos e incisos, diversos artigos na Constituição contemplam a proteção ambiental. Assinala-se a competência da União para legislar sobre águas e energia (art. 22, IV, Constituição Federal de 1988), possibilitando a exploração dos “serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de águas, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos”41. O cuidado com o meio ambiente está presente em várias passagens constitucionais, entre estas, no inciso VI, do art. 170, nos princípios que devem reger 34 FREITAS, Vladimir Passos de. Águas: aspectos jurídicos e ambientais. Curitiba: Juruá, 2000. p. 20. Art. 20, Parágrafo 1º: É assegurada nos termos da Lei, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios, bem como a Órgãos da Administração Direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração. 36 Art. 21, XII Compete à União: XII- Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação como os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; 37 Art. 21, XIX; Compete à União: XIX- instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso. 38 Art. 22, IV; Compete privativamente à União legislar sobre: IV- águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão; 39 Art. 23, XI: É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: XIregistrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios. 40 Art. 26, I: Incluem-se entre os bens dos Estados: As águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da Lei, as decorrentes de obras da União. 41 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000, p.153. 35 26 a atividade econômica. “Assim, além de tratar no art. 225, a Constituição Federal ressalta a importância do meio ambiente e sua defesa na ordem econômica, elegendo como princípio constitucional42.” Portanto, a Constituição Federal de 1988 extinguiu a propriedade privada das águas e não recepcionou o Código Civil e o Código das Águas. Dessa forma, inexistindo atualmente a categoria de águas particulares, tal como era prevista e definida pelo Código de Águas, resta evidente que se retirou dos particulares a possibilidade de apropriação, isto é, de se tornarem proprietários das águas. Estas pertencerão sempre ao domínio público da União e dos Estados. Agora, pelo novo disciplinamento jurídico, aos particulares somente se permite a outorga do direito de uso das águas, outorga que, como claramente determina a lei, não implica a alienação 43 parcial daquelas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso. Como se observa, desde a Constituição Federal de 1934 as constituições preocuparam-se com a preservação do patrimônio histórico, cultural e paisagístico e com a função social da propriedade, porém não organizaram de forma sistemática e específica a tutela do meio ambiente, de acordo com uma visão holística. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a tratar a matéria ambiental de forma específica e explícita. Nesse ponto, é considerada uma das constituições mais adiantadas no mundo na área ambiental. Além disso, trata da matéria ambiental no capítulo VI do título da Ordem Social (art. 225 da Constituição Federal). Com efeito, pode-se afirmar que a conotação social espelhada neste dispositivo, que “impõe a coletividade o dever de defesa e de preservação do ambiente ecologicamente equilibrado”, decorre do poder-dever do Estado e dos cidadãos com base no princípio da cooperação. Além das constituições brasileiras, é importante uma retomada dos demais documentos que legislam sobre as águas no país, ou seja, a legislação infraconstitucional, que acentua a fundamentalidade desse recurso natural para a sobrevivência humana. 42 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A tutela da água e algumas implicações nos direitos fundamentais. Bauru: ITE, 2002, p. 25. 43 FREITAS, Vladimir Passos de. Águas: aspectos jurídicos e ambientais. Curitiba: Juruá, 2000, p. 40. 27 1.3 PRINCIPAIS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS ANTERIORES E POSTERIORES À ECO 92 1.3.1 Conferências anteriores à ECO 92 Estabelecidos os princípios norteadores da legislação ambiental brasileira, com seus principais aspectos, devido à sua influência e inspiração fundamentaremse em princípios formulados no âmbito do direito internacional, cabe estudar neste item os principais documentos internacionais, tendo como marco a ECO 92. Na Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, a expressão “desenvolvimento sustentável” passa por todos os documentos, frisando a ideia de que o desenvolvimento econômico deve incluir a proteção ambiental, em suas várias ações e atividades. A preocupação com o meio ambiente ganhou destaque mundial sobretudo a partir da segunda metade do século XX, especialmente após a realização da Conferência de Estocolmo em 1972, a primeira a colocar “o tema ambiental na agenda política internacional, estabelecendo em seus princípios, a necessidade de preservar e controlar os recursos naturais – a água, a terra, o ar, a fauna e flora – por meio da gestão e do planejamento adequados”44. Os países signatários, por meio de ajustes internacionais, assumiram o desafio de incorporar em suas políticas metas que os condicionam e os colocam a caminho do desenvolvimento sustentável. Em muitos casos, os países pertencentes à mesma comunidade econômica assumem o compromisso de estabelecer normas legais semelhantes, em especial no que se refere à qualidade das águas 45. Como se pode observar, esse compromisso revela a intenção de proporcionar equilíbrio na tributação dos usos da água, consoante o propósito da comunidade à qual pertencem os países. 44 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.384. 45 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000, p.137. 28 As Nações Unidas promoveram duas importantes conferências internacionais sobre o meio ambiente. A primeira, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, em 1972, com evidente visão antropocêntrica: Resultou na Declaração sobre Meio Ambiente Humano, com princípios de conduta e responsabilidade para as decisões em matéria de ambiente, e, também, num Plano de Ação com o fito de chamar a atenção de todos os países, organismos das Nações Unidas e organizações internacionais a 46 cooperação para a questão ambiental . As conferências internacionais promovidas pela ONU sobre meio ambiente posicionaram-se sobre o exercício da soberania diante dos recursos naturais. Na Conferência de Estocolmo/1972 a questão da soberania foi tratada em dois princípios: no Princípio 2147 e no Princípio 2448. O Princípio 21 é considerado por muitos doutrinadores como uma das regras de direito internacional ambiental mais significativas, reiterado com poucas alterações no Princípio n. 2 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 199249. Conforme Sachs, vinte anos após a Conferência de Estocolmo, em 1972, na Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, esse foi um tema absolutamente central. Para compatibilizar os objetivos sociais, econômicos e ambientais, temos de nos dedicar ao que chamaria de um jogo de harmonização. Nesse jogo temos que mudar, por um lado, os padrões da demanda e, por outro lado, os padrões da oferta. Estes últimos são os mais fáceis de manejar e vão nos remeter ao problema dos recursos naturais, aos tipos de energia, às tecnologias e à localização espacial das produções, porque as mesmas 46 JUCOVSKY, Vera R.S. Tutela ambiental e sua efetividade no direito ambiental brasileiro. 2001. 467 f. Tese (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001. 47 Princípio 21: “De acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do Direito Internacional, os Estados tem o direito soberano de explorar seus próprios recursos, de acordo com a política ambiental, desde que as atividades levadas a efeito, dentro da jurisdição ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional”. 48 Princípio 24: “As questões internacionais relacionando-se a proteção e melhoria do meio ambiente devem ser abordadas em um espírito de cooperação por todos os países, em pé de igualdade. Uma cooperação pela via de acordos multilaterais ou bilaterais ou por outros meios apropriados é indispensável para limitar eficazmente, prevenir, reduzir e eliminar os atentados ao meio ambiente resultante de atividades exercidas em todos os domínios, e isto no respeito da soberania e dos interesses de todos os Estados.” MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito dos Cursos de água Internacionais. p.52. 49 Princípio 2 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: Os Estados, de conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do Direito Internacional, tem o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou áreas alem dos limites da jurisdição nacional. 29 produções têm impactos ambientais diferenciados, segundo o lugar onde 50 elas acontecem . A Conferência de Estocolmo tratou da preocupação ambiental como tema essencial para humanidade, propondo princípios comuns aos povos voltados à preservação ambiental. Destaca-se como sua função a criação de mecanismos facilitadores dos Estados na defesa do meio ambiente. Outro grande mérito desta conferência foi a reunião, pela primeira vez, de países industrializados e em desenvolvimento para discutir os problemas ambientais. Assim, a Conferência de Estocolmo significa um instrumento pioneiro em matéria de direito internacional ambiental e condicionadora do modelo tradicional econômico e dos recursos naturais. A Conferência das Nações Unidas sobre Água e Meio Ambiente, ocorrida em 1977, em Mar del Plata, além de abordar a premente necessidade de uso racional da água, “ressaltou o seu múltiplo aproveitamento, englobando os seus principais usos, como o abastecimento público e a disposição dos efluentes líquidos, os usos para fins agrícolas e o uso racional da irrigação, o uso industrial, a geração de energia e a navegação”51. Petrella relata que os “senhores do dinheiro52” conseguiram convencer a maior parte dos políticos do mundo de que os argumentos sobre a lucratividade existente no investimento da água, a disposição de todos a pagar água mais cara e que tanto os países pobres como os ricos terão de investir na construção ou renovação da infra-estrutura da água são corretos e importantes. A esse respeito, de acordo com o Princípio 4 da Declaração de Dublin: A água tem um valor econômico em todos os seus vários usos e deveria ser reconhecida como um bem econômico. Seguindo esse princípio e especialmente crucial reconhecer o direito básico de todos os seres humanos a terem acesso a água potável e ao saneamento a um preço que possam pagar. A inabilidade em reconhecer o valor econômico da água no 50 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.384. 51 Ibidem, p.385. 52 Uma das variantes dos senhores da água. Referindo-se aqueles cujo poder e sobrevivência dependem do acesso à água e daquela rejeição a solidariedade que esta implícita na distribuição desigual dos bens e serviços gerados pela água. PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis: Vozes, 2002. p.63. 30 passado levou ao desperdício e a usos que foram prejudiciais ao meio ambiente. Gerenciar a água como um bem econômico é um passo importante para a obtenção de um uso eficiente e igualitário, e para o 53 encorajamento da conservação e proteção dos RH . Entre as soluções para os problemas que afetam os RH, destacam-se a universalização dos serviços de água e esgoto, a gestão participativa e o valor econômico da água. Dessa forma, estes três objetivos estão de acordo com as diretrizes para a política de gestão dos RH da Declaração de Dublin, em evento preparatório à ECO-92. Nesse sentido, os princípios mais importantes contidos nesta declaração são: o desenvolvimento deve ser sustentável, ou seja, o gerenciamento eficiente dos RH implica uma abordagem que torne compatíveis o desenvolvimento socioeconômico e a proteção dos ecossistemas naturais;o desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados em uma abordagem que envolve a participação dos usuários, dos planejadores e dos decisores políticos, em todos os níveis; a água tem valor econômico em todos seus usos 54 competitivos, devendo ser promovidas a sua conservação e proteção . A Declaração de Dublin reuniu mais de quinhentos participantes, incluindo especialistas de mais de cem países. Entre as constatações desses especialistas em relação à declaração destaca-se: Escassez e mau uso da água doce representam séria e crescente ameaça ao desenvolvimento sustentável e a proteção do meio ambiente. A saúde e bem-estar do homem, a garantia de alimentos, o desenvolvimento industrial e o equilíbrio dos ecossistemas estarão sob risco se a gestão da água e do solo não se tornar realidade, na presente década, de forma bem mais 55 efetiva do que tem sido no passado . Dessa forma, os governos devem se planejar nos níveis local, nacional e internacional de modo a alcançar os objetivos colocados, permitindo um gerenciamento mais eficiente dos recursos e estimulando investimentos nessa área essencial ao desenvolvimento sustentável. 53 PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis: Vozes, 2002, p.97-98. 54 BRASIL. Agenda 21 brasileira: resultado da consulta nacional/Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. 55 Global Development Research Center, 2002, p. 02. Apud FARIAS, Paulo José Leite, 2005, p.385. 31 1.3.2 ECO 92 A segunda conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), denominada de “Cúpula da Terra”, realizada no Rio de Janeiro em 1992, analisou o cumprimento das diretrizes firmadas em Estocolmo, debatendo amplamente sobre as possíveis mudanças de condutas com o propósito de preservação da vida. Esse eventou resultou na aprovação da Agenda 21, que estabelece um novo paradigma de desenvolvimento sustentável. Destacam-se vários documentos que resultaram dessa conferência: a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO RIO 92), a Agenda 21, os Princípios para a Administração Sustentável das Florestas, a Convenção sobre Biodiversidade e a Convenção sobre Mudanças Climáticas. Como princípios específicos de proteção da água doce, ressaltam-se alguns previstos no cap. 18 da Agenda 21: Os recursos de água doce constituem um componente essencial da hidrosfera terrestre e parte imprescindível de todos os ecossistemas terrestres. A água é necessária em todos os aspectos da vida. O objetivo geral é assegurar o suprimento adequado de água de boa qualidade para toda a população do planeta, ao mesmo tempo em que se preserve as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, adaptando as atividades humanas aos limites da capacidade da natureza e combatendo vetores de moléstias de veiculação hídrica. Tecnologias inovadoras, inclusive o aperfeiçoamento de tecnologias nativas, são necessárias para aproveitar plenamente os RH limitados e protegê-los da poluição. A escassez generalizada, a destruição gradual e o agravamento da poluição dos RH em muitas regiões do mundo, ao lado da implantação progressiva de atividades incompatíveis, exigem o planejamento e manejo 56 integrados desses recursos . Conforme Jucovski, a Declaração do Rio representa “uma carta na qual foram assentadas 27 princípios para orientar o comportamento do homem na terra, por meio da tutela dos recursos naturais rumo ao desenvolvimento sustentável e para o estabelecimento mundial de uma cooperação entre os Estados”57. Em termos gerais, essa declaração expressa a preocupação com o desenvolvimento sustentável, 56 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: http://mma.gov.br/agenda21. JUCOVSKY, Vera R.S. Tutela ambiental e sua efetividade no direito ambiental brasileiro. 2001. 467 f. Tese (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001, p.218. 57 32 entendendo que a proteção ambiental deve ser parte do desenvolvimento, não tratada de modo isolado. Tanto o Estado como a sociedade devem cooperar na erradicação da pobreza como pressuposto ao desenvolvimento sustentável; também, os Estados devem cooperar solidariamente na preservação, proteção e restabelecimento do ecossistema da Terra. A Agenda 21 estabelece um pacto pela mudança do padrão de desenvolvimento global para o próximo século. A utilização do termo “agenda” traduz o propósito de fixação de compromissos que manifestem o desejo de mudanças das nações do atual modelo de civilização para outro, que se fundamente na sustentabilidade social e ambiental. Interessante, no entanto, é refletir: Será que a Agenda 21 conseguiu resolver o problema da crise socioambiental, uma vez que já se passaram quase quarenta anos desde a realização da Conferência de Estocolmo? Convém destacar que nesse evento, também conhecido como “Rio 92”, foram aprovados cinco documentos com o objetivo de servirem de instrumentos para políticas, programas, projetos e medidas para governos, empresas e organizações: Convenção sobre Diversidade Biológica; Convenção Quadro sobre Mudança de Clima; Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; Declaração sobre Conservação e Uso Sustentável de todos os tipos de Florestas; Agenda 2158. Os mesmos princípios estabelecidos na Agenda 21 servem de base para a construção das propostas das agendas nos níveis nacional, estadual e municipal. Dessa forma, cada país desenvolve a sua Agenda 21. No Brasil os trabalhos são coordenados pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável (CPDS) e da Agenda 21 Nacional. Portanto, a Agenda 21 é um plano para ser adotado tanto 58 Agenda 21 é um plano de ação para ser adotado global, nacional e localmente por organizações do sistema das Nações Unidas, governos e pela sociedade civil, em todas as áreas em que a ação humana impacta o meio ambiente. Constitui-se na mais abrangente tentativa já realizada de orientar para um novo padrão de desenvolvimento para o século XXI, cujo alicerce é a sinergia da sustentabilidade ambiental, social e econômica, perpassando em todas as suas ações propostas. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: http://mma.gov.br/agenda21. Acesso em: 04 jul 2010. 33 global, nacional quanto localmente pelos governos, pela sociedade civil e por organizações das Nações Unidas. A Agenda 21 brasileira elegeu 21 eixos prioritários, que cobrem praticamente todas as áreas de políticas públicas59. Entre as prioridades estão criar formas de produção sustentáveis contra a cultura do desperdício; estimular a produção e uso de energias renováveis; melhorar a qualidade da educação em todos os níveis, universalizar o saneamento ambiental; controlar o desmatamento; proteger os corredores de biodiversidade etc. Destacam-se o objetivo disposto no item IV, “Recursos Naturais Estratégicos: água, biodiversidade e floresta” e o objetivo número 15: “Preservar a quantidade e melhorar a qualidade da água nas bacias hidrográficas”. Recorda-se ainda que, em 2002, o Brasil concluiu a construção de sua Agenda 21. Na realidade, este documento foi resultado de um longo processo de debate. Iniciado em 1997, envolveu mais de quarenta mil pessoas. Dessa forma, os seus resultados encontram-se publicados nos documentos “Agenda 21 brasileira: ações prioritárias” e “Agenda 21 brasileira: resultados da consulta nacional”. “Tratase de um conjunto de compromissos, definidos como objetivos e ações, que devem ser observados entre nós para garantir a sustentabilidade de nosso desenvolvimento”60. Desse modo, a “Agenda 21 brasileira”61, resultado da consulta nacional, estabelece caminhos preferenciais para a construção da sustentabilidade. O documento reúne ações sugeridas nos debates estaduais, entre os quais a dimensão geoambiental, como a organização territorial por microbacias hidrográficas. O planejamento do espaço regional brasileiro deverá ser organizado mediante a adoção das bacias e microbacias hidrográficas, contemplando os sistemas de águas superficiais e subterrâneas, associadas a outros instrumentos de ordenamento territorial e de gestão ambiental. Estabelece também a organização do espaço regional. Para assegurar tratamento adequado do espaço regional, deve-se 59 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: http://mma.gov.br/agenda21. Acesso em: 04. jul. 2010. 60 Ibidem. 61 Agenda 21 brasileira: resultado da consulta nacional. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. 34 dar prioridade aos problemas e necessidades socioambientais urbanos, tais como ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis, degradação dos recursos naturais e comprometimento dos ecossistemas e preocupação com o espaço construído. Segundo Canotilho, “fala-se hoje de um comunitarismo ambiental ou de uma comunidade com responsabilidade ambiental assente na participação ativa do cidadão na defesa e proteção do meio ambiente”62. Nesse ponto, a “proteção do planeta Terra” e “defesa e proteção das gerações futuras” são tarefas conjuntas, não apenas do Estado ou de determinadas entidades públicas. A “Agenda 21, V Programa Comunitário de Ação Ambiental” trata dessa responsabilidade comum. A informação e a educação ambiental, também constantes da Declaração do Rio, são pressupostos fundamentais para a participação popular na tutela ambiental, principalmente por serem fatores de relevância ímpar no que tange à conscientização da sociedade. Essa declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento foi taxativa ao elencar, entre outros, uma readequação nos padrões de produção e consumo, bem como uma política demográfica adequada. Em suma, a Agenda 21 é um instrumento bastante complexo e dinâmico, um verdadeiro desafio a ser enfrentado pela sociedade rumo a um novo paradigma de desenvolvimento. As políticas ambientais de cada Estado, com suas particularidades, vulnerabilidades e a sua estrutura para proteção ambiental, é que vão imprimir o sucesso ou não desses instrumentos. Destaca-se também o caráter participativo presente em todas etapas da construção da Agenda 21. As proposições deste documento não podem prescindir de uma ampla participação, tarefa essencial para transformá-las em ações efetivas. A democratização das informações significa cumprir um dos compromissos assumidos na Rio-92, que é a participação conjunta da sociedade na construção de um novo paradigma de desenvolvimento. 62 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado constitucional ecológico e democracia sustentada. Revista do Centro de Estudos de Direito e do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, ano IV, p.9-16, 2001. 35 1.3.3 Conferências internacionais: Declaração de San José da Costa Rica, Declaração de Paris e Declaração de Haia Entre as conferências internacionais posteriores à ECO 92, destacam-se a Declaração de San José da Costa Rica de 1996, relativa aos RH, teve por objetivo o desenvolvimento de um Plano de Ação, sob o contexto do desenvolvimento sustentável, assegurando que o acesso irrestrito e integrado a água e o gerenciamento integrado dos RH refletem as necessidades socioeconômicas de um país e de seus cidadãos, bem como 63 a preservação do meio ambiente . Esse plano destaca o papel fundamental das agências nacionais de RH. Assim, na sua elaboração seguiu as diretrizes de diversos estudos sobre gerenciamento de RH feitos pela ONU, outras agências, o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), Relatório da Unesco sobre Acesso aos RH e os princípios do capítulo 18 da Agenda 21. A conferência reconheceu que o acesso aos RH na América Latina e Caribe deveria seguir as seguintes diretrizes: Refletir as necessidades socioeconômicas e ambientais dos países; adotar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento; aumentar esforços para fortalecer a participação da comunidade; dar suporte ao desafio de atender às necessidades de abastecimento de água para uma população 64 urbana crescente, com a necessidade de preservação do meio ambiente . A Declaração de Paris, de 1998, destacou que “a água é um bem com valores econômico, social e ambiental, que estão inter-relacionados e se compensam mutuamente. A noção de desenvolvimento sustentável existente na água, com suas diferentes dimensões, tomou forma consagrada”. Assim, também destacou o problema da escassez da água e outros fatores, como poluição, saneamento básico, tratamento inadequado de resíduos e outros. A Declaração de Paris teceu recomendações que destacam a importância do gerenciamento e da proteção dos RH e sua utilização mais eficiente, equitativa e de forma autossustentável. Inclui a proteção dos ecossistemas, que é essencial para a 63 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.387. 64 Banco Interamericano de Desenvolvimento, 1996, p.01. 36 manutenção e a recuperação do ciclo hidrológico e o conhecimento e compreensão da realidade hidrológica. Da mesma forma, ressalva que o desenvolvimento, o gerenciamento, o uso e a proteção da água dependem de: promoção de parcerias entre os setores público e privado, associadas a grande mobilização e financiamentos de longo prazo; processo de decisão participativo, aberto a todos usuários, em especial às mulheres, à população de baixa renda e aos grupos de minorias; participação essencial das entidades não governamentais e outros parceiros socioeconômicos. A cooperação internacional deve ter um papel importante para se atingir tais metas nos âmbitos nacional, regional e global65. Diversas entidades que se dedicam à questão da água recomendam que se leve em consideração a participação popular na gestão. Apesar desse consenso retórico em torno do princípio, não existe unanimidade a respeito das modalidades de sua implementação. Destacam-se os textos das proclamações internacionais, que resultaram das conferências de Mar del Plata, Dublin, São José da Costa Rica ou Paris, estabelecendo que a participação implica associar as populações às opções fundamentais de gestão. Outra declaração que ressaltou a importância estratégica da água para o século XXI foi a Declaração de Haia, de 2000. Esta declaração estabelece uma visão ecocêntrica ao dispor que a água é vital para a vida e para a saúde das pessoas e dos ecossistemas. Nota-se ainda nesta declaração a garantia do acesso à água, em quantidade suficiente e com custos adequados a todas as pessoas. A Política e Gestão dos RH no Brasil foi influenciada pelos princípios e diretrizes da Conferência das Nações Unidas sobre a Água, realizada em Mar del Plata, Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente, em Dublin, e Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, de Paris. 65 International Institute for Sustainable Development, 1998, p.1-2. 37 Enfim, permeiam todas essas declarações “a atribuição de valores econômicos, éticos, sociais, ecológicos e culturais a água, que deve ser vista não só de forma direta, em benefício de todos, mas também vinculada a proteção dos ecossistemas66”. Essa vinculação é realizada por meio da gestão participativa, levando em conta a ponderação dos valores significativos da água. 1.4 A EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO JURÍDICA DA ÁGUA EM ALGUNS DIPLOMAS INFRACONSTITUCIONAIS No presente tópico analisa-se o tratamento dado à matéria em alguns diplomas legais, como o Código Civil de 1916, Lei nº 3.071 de 01 de janeiro de 1916, o Código das Águas, Decreto nº 24.643 de 16 de julho de 1934, a Lei da Política Nacional de RH, Lei nº 9.433 de 08 de janeiro de 1997 e o Código Civil de 2002, Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. A legislação sobre águas, no ordenamento jurídico brasileiro, é das mais complexas e vetustas67. Apesar de várias dificuldades, o Brasil tem instituições atuantes sob a coordenação de uma agência reguladora, a ANA (Agência Nacional de Água), órgãos colegiados em nível de Ministério do Meio Ambiente e, em nível local, os Comitês de Bacias Hidrográficas, com competência reguladora e participação popular como princípio de gestão, à semelhança “do modelo francês” 68. Dessa forma, a promulgação do Código das Águas trouxe uma mudança de paradigmas em relação às águas, ou seja, a legislação federal começava a dar um tratamento mais publicista a este elemento. Na verdade, até pouco tempo, o Código das Águas foi o único diploma legal a regular a matéria sob o ponto de vista do Direito Público. No primeiro 66 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 391. 67 Ver, a propósito, a Coletânea de Legislação sobre água elaborada pelo senador Alberto Cabral, intitulada Direito Administrativo – Tema Água (BRASIL, Direito Administrativo, tema: Água. Brasília. Senado Federal, 1997). Nesta obra o autor colacionou todas as normas elaboradas pelo Legislativo, e também pelo Executivo (Medidas Provisórias), sobre águas desde o Código Civil de 1916. 68 CAMPOS, STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003, p.64. 38 estudo sistematizado fazia referência ao fato de que “embora regule relações jurídicas de assinalada importância, não teve ainda atenção 69 especial de nenhum comentarista das nossas leis” . Em 1997 foi sancionada a Lei nº 9.433, que definiu a Política Nacional de RH e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de RH. “Desde então, o País dispõe de um instrumento legal que, se efetivamente implementado, garantirá às gerações futuras a disponibilidade de água em condições adequadas”70. Assim, “em matéria de águas, como visto, os principais dispositivos estão no Código Civil (arts. 563 a 568), no Código de Águas (Decreto nº 24.463/1934), na Lei de RH (Lei nº 9.433/1997) e na Constituição Federal de 1988, em especial nos arts. 20, inciso III e 26, inciso I”71. Dessa forma, traça-se a seguir um panorama do tratamento conferido às águas pela legislação ordinária. 1.4.1 Código Civil de 1916 (Lei 3.071/1916) Inicialmente, convém destacar que, em relação aos povos antigos, foi na jurisprudência romana a fonte e da qual derivam todas as legislações civis, os códigos da Europa e do mundo civilizado posteriormente elaborado. Entretanto, esta fonte não é questão pacífica entre os estudiosos do assunto. Nesse sentido, países como a França, a Espanha, a Itália e a Alemanha são, a respeito do regime das águas, o eixo da legislação romana mais ou menos aperfeiçoada, assim como foram herdeiros de suas suntuosas edificações e monumentos. A grandeza, a magnificência dos monumentos, consagrados pelos romanos à utilidade pública, e entre estes os destinados à conservação, aproveitamento e repartição das águas, como aquedutos, cisternas, fontes públicas e outras edificações hidráulicas, de que deixaram sinais em quase todo o mundo por eles conhecido e até onde estenderam suas conquistas, atestam claramente a sua especial solicitude pelas águas, e dela devia 72 necessariamente ressentir-se a sua legislação . 69 NUNES, Antônio de Pádua. Código de Águas. p.3, [grifo do autor]. TUNDISI, José Galizia. Água no século XXI: enfrentando a escassez. São Carlos: RiMa, 2003, p.145. 71 FREITAS, Vladimir Passos de. Águas: aspectos jurídicos e ambientais. Curitiba: Juruá, 2000, p.132. 72 GARCIA, Manuel Emygdio. Propriedade das águas no direito romano. 1862. 238 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado) - Universidade de Lisboa, Coimbra, 1862, p.75. 70 39 No Brasil, encontra-se no Código Civil 1916, diploma legal em que imperava a propriedade privada, forte influência do direito romano. A legislação romana, em matéria de águas, prestou grande auxílio. Assim, no que se refere ao estudo da água doce, também se pode perceber tal influência, evidenciada com a análise da propriedade. Em face da legislação e em presença de opinião dos jurisconsultos, parece não haver dúvida alguma de que os mananciais e fontes73, lagos e tanques74, as águas da chuva75, quer fossem resultado de benefício ou dom gratuito da natureza quer objeto pelo trabalho e indústria dos homens, era objeto de propriedade e domínio particular, uma vez que fossem circunscritos em limites fixos e determinados e pertencessem aos donos dos prédios onde primeiro emergissem 76. O modelo que mais influenciou o paradigma brasileiro na gestão dos RH foi o francês. Na França, principalmente, desde a promulgação do Código Civil de 1804 o regime das águas constituiu-se e organizou-se. Os reis, por suas ordenanças e seus editos, conseguiram chamar de novo para os domínios da Coroa os grandes rios e todos os cursos de águas navegáveis. Porém, o soberano cedia gratuitamente o domínio particular das águas, a troco de alguma quantia de dinheiro, aos particulares para dela se 77 aproveitarem como força motriz, ou para a irrigação de suas propriedades . O Código Civil brasileiro do início do século XX teve como princípio a completude da lei codificada, como relata Farias: O movimento das codificações – iniciado no Século XVIII, deu origem ao Código Napoleônico, em 1804, e a partir daí, espalhou-se para os demais 78 países, que adotaram o sistema do direito romano-germânico . Assim, as legislações do século XVIII, que mais influenciaram o nosso Código Civil – o 73 GARCIA, Manuel Emygdio. Propriedade das águas no direito romano. 1862. 238 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado) - Universidade de Lisboa, Coimbra, 1862, p.81 74 Ibidem. 75 Ibidem. 76 ibidem. 77 Ibidem, p.113. 78 Ibidem, p.114. 40 Código de Napoleão e o Código Alemão (BGB) – mantiveram o tratamento 79 especial dado aos imóveis ·. O Código Civil brasileiro do início do século XX, no tocante aos limites da propriedade privada, estabeleceu no seu art. 526 que a propriedade do solo abrange aquela sobre o solo e a do subsolo. Primeiramente, a propriedade era vista na ótica privatista, inclusive no que diz respeito à água80. Observa-se a limitabilidade do direito de propriedade expressa de certo modo nesse artigo. Seja como for, as primeiras normas protetivas do meio ambiente refletem o espírito da época, impregnadas pelos valores do pensamento liberal, dando grande ênfase à propriedade privada. A sociedade brasileira do início do século XX concebia o direito de propriedade como algo quase que sagrado, de forma que aquele que se encontrava na posição de proprietário tinha amplos poderes sobre seu bem, 81 podendo usar, gozar e dispor deste, conforme bem desejasse . Dessa forma, o Código Civil 1916 foi muito influenciado por esses valores. Inclusive, as primeiras normas de proteção ao meio ambiente surgiram nesse diploma legal, como, por exemplo, ao tratar do uso nocivo da propriedade, das árvores limítrofes, da passagem forçada das águas, dos denominados direitos de vizinhança, estabelecidos nos artigos 554 e seguintes do referido diploma legal. A redação dada ao artigo 65, combinada com a conferida ao inciso I do artigo 66 do Código Civil 191682, “não deixa dúvidas: excetuando-se os mares e os rios, que eram expressamente de domínio público, as demais fontes de RH eram particulares”83. Esse entendimento evoluiu e hoje é dispensada à água proteção especial, sendo um bem público de uso comum do povo e inalienável. 79 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.80. 80 Art. 526 A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor-se aos trabalhos que sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse algum em impedi-los. 81 GERALDES, André Gustavo de Almeida. Tutela jurídica dos mananciais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p.11. 82 Art. 65 “São públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados, ou aos Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Art. 66 Os bens públicos são: I - de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças; [...]” (BRASIL. Código Civil Brasileiro. (Lei 3.071/1916). São Paulo: Saraiva 2001. p.19). 83 DEMOLINER, Karine Silva. Água e saneamento básico: regimes jurídicos e marcos regulatórios no ordenamento jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.28. 41 O Código Civil francês de 1804 classificava “entre coisas de domínio público as praias do mar e as aluviões, formadas nas propriedades marginais, bem como os terrenos, que as águas abandonam e deixam em seco, lais et relais de la mer, sem falar, todavia no domínio do próprio mar”84. Percebe-se um desenvolvimento dessa matéria, harmonizando-se com os novos interesses e com as ideias da época. Ainda disciplinava o Código de Napoleão que os particulares tinham direito de construir tanques ou outros reservatórios, contanto que não se opusessem à salubridade pública e a outros interesses gerais: As águas não correntes não fazem em geral parte do domínio público: formam dependências da propriedade particular; assim os poços; as cisternas, os pântanos lagoas, etc., estão subordinados aos princípios e regras da propriedade particular, sujeitos, todavia, a regulamentos de polícia para a segurança da salubridade pública, que a administração local e a administração superior tem obrigação de vigiar e atender 85 convenientemente. Sabe-se que a questão hídrica passou por diversas situações que interferiram na trajetória de aperfeiçoamento desse processo. Inicialmente, o Código Civil 1916 era estritamente patrimonialista, o que justificava sua visão privatista da água, que agora se encontra alterada pelo avanço da legislação. O fundamento legal para a cobrança pelo uso da água no Brasil remonta ao art. 68 do Código Civil 1916, quando estabeleceu que a utilização dos bens públicos de uso comum pode ser gratuita ou retribuída, conforme as leis da União, dos Estados e dos Municípios a cuja administração pertencerem. O Código Civil 1916, nos arts. 563 a 568 dispõem sobre a servidão. O art. 567 do Código Civil 1916, ampliado pelo art. 117 do Código de Águas, permite a qualquer um, mediante indenização, canalizar em proveito próprio ou industrial as águas a que tenha direito. Esses dispositivos consagram o direito à servidão de aquedutos. Em relação ao direito romano convém fazer referência a respeito das servidões, em que, diga-se de passagem, foi providente a legislação romana: 84 GARCIA, Manuel Emygdio. Propriedade das águas no direito romano. 1862. 238 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado) - Universidade de Lisboa, Coimbra, 1862, p.114. 85 Ibidem, p. 119-120. 42 Segundo as leis romanas, uma servidão era sempre um encargo, uma 86 restrição, imposta ao direito de propriedade . Dividiram os romanos as servidões em servitutes praediorum ou rerum, servidoes prediaes, e em servitutes personarum ou hominum, servidores pessoaes; segundo este direito era concedido em favor de uma pessoa ou em benefício de um 87 prédio . Em suma, observa-se que a evolução da proteção jurídica das águas foi se moldando conforme as necessidades da realidade. O Código Civil 1916 regulou basicamente nos artigos 563 a 568 o direito de uso das águas. As primeiras normas de proteção ambiental surgiram nesse diploma legal e fundaram-se, sobretudo, no direito de vizinhança, estabelecido nos artigos 554 e seguintes do referido diploma legal, e na utilização da água como bem essencialmente privado e com valor econômico limitado. Dessa forma, o direito de propriedade, com o passar do tempo, ultrapassou o domínio irrestrito e individualista original e foi se adaptando para atender a sua finalidade social. Em relação à cobrança pelo uso da água, embora o Código Civil 1916 estabelecia seu fundamento legal, este instrumento não foi utilizado. 1.4.2 Código das Águas (Decreto-Lei nº 24.643/1934) No Brasil, a lei específica para o gerenciamento das águas era o Código de Águas, estabelecido pelo Decreto-Lei nº 24.643/1934. Existiam vários instrumentos legais que detalhavam e disciplinavam as atividades do setor, os quais, porém, eram provenientes de um modelo de gerenciamento das águas orientado por tipos de uso, o que provocava frequentemente conflitos, superposições e a desarticulação da legislação, exigindo, portanto, aperfeiçoamentos. Uma crítica feita ao Código de Águas foi o caráter específico e segmentado da sua política ambiental. Os planos e ações precisam se adequar ao contexto geral, porque o resultado do procedimento fragmentário muitas vezes não é satisfatório. Esse diploma legal refletiu os processos econômicos, políticos e sociais ocorridos no 86 L.15 , §1, D. de servit.; L.90 e 169 D. de verb. sign. L. 1 D. de servit. – servitutes aut personarum sunt... aut rerum; L.21 D. de verb. sign.; §3 Inst. de rebus corp. O livro VII do Digesto tratou das pessoas; o livro VIII ocupou-se dos prediais e reais. 87 43 âmbito da sociedade. Se, por um lado, foi um instrumento inovador em muitas matérias, por outro, deixou a desejar na questão da gestão dos RH. Enfim, as profundas alterações ocorridas na sociedade, na economia e no meio ambiente na segunda metade do século XX ensejaram modificações no Direito das Águas em diversos países. Neste ponto, no Brasil essa transformação foi, inicialmente, alcançada com a edição do Código das Águas (Decreto-Lei nº 24.643/1934), com alto teor de princípios passíveis de extração das suas regras 88. Nota-se que o Código de Águas seguiu as diretrizes do direito romano-germânico, bem como classificou das águas da seguinte forma: O Código das Águas disciplinou, em seus três primeiros capítulos, as águas públicas, as comuns e as privadas, mantendo assim, a possibilidade do domínio da água em mãos particulares. Conforme este Estatuto em seu art. 8º serão privadas águas que não estiverem classificadas como comuns ou públicas89. Santilli analisa o Código de Águas com propriedade: O Código de Águas (Decreto nº 24.643/1934, modificado pelo Decreto-Lei 852/38 e por outras leis esparsas), um dos principais textos legais referentes à matéria, encontra-se em grande parte revogado pela Lei 9.433/1997, e por ter sido concebido e elaborado na década de 30, dá grande ênfase ao aproveitamento de RH para fins de geração de energia elétrica, e pouca (embora alguma) atenção à água enquanto recurso 90 ambiental a ser protegido, racionalizado e gerenciado . Permanecem, contudo, vigorando as regras que não sejam conflitantes com a Lei da Política Nacional de RH. Destaca-se que o Código de Águas inovou em muitas matérias, como, por exemplo, “com o princípio do poluidor-pagador, introduzido na Europa como novidade na década de 1970, está previsto nos arts. 111 e 112 do Código das Águas (Dec. nº 24.643/1934)” 91. Entretanto, mesmo com o 88 Assim, por exemplo, os seus oito primeiros artigos classificam as águas em públicas, comuns e particulares, estabelecendo mecanismos de proteção jurídica destas a partir de suas diferentes naturezas jurídicas. 89 “Art. 8º São particulares as nascentes e todas as águas situadas em terrenos que também o sejam, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns”. 90 SANTILLI, Juliana. Política Nacional de Recursos Hídricos: princípios fundamentais. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO AMBIENTAL. São Paulo: Direito, Água e Vida. São Paulo: Imprensa Oficial: 2003. p. 648. 91 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000, p.154. 44 componente ambiental inserido neste diploma legal, ainda prevalecia uma visão predominantemente economicista. Apesar de o Código das Águas constituírem um instrumento avançado para a época em que foi editada, a evolução das atividades humanas acarretou sua desconformidade com a realidade. Assim, a legislação sobre águas, no plano federal, até então ainda não fornecia os instrumentos necessários à efetiva administração dos RH, nem estava em conformidade com os princípios das declarações internacionais da água. Além disso, o Código de Águas provém de um gerenciamento de águas orientado por tipos de usos, justificado pela abundância dos recursos naturais nessa época. Assim, a principal diferença entre o Código de Águas e o Código Civil 1916 encontra-se no fato de que, “enquanto este enfoca as águas como recursos dotados de valor econômico para a coletividade e, por isso mesmo são merecedores de atenção especial do Estado, aquele não reconhecia o real valor econômico” 92 da água. Portanto, o Código de Águas representou um importante marco na legislação brasileira, porém nunca se realizou sua efetiva implantação. Um dos motivos disso seria que as ações que o seguiram foram setoriais, não se adequando ao contexto geral. Naturalmente, com o passar do tempo novas situações econômicas, tecnológicas e hidrológicas surgiram, conduzindo a que a norma existente se tornasse ultrapassada para essa nova realidade. 1.4.3 Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997) No âmbito da União foi aprovada a Lei nº 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de RH, criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de RH, regulamentou o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal de 1988 e alterou o art. 1º da Lei nº 8.001/1990, a qual modificou a Lei nº 7.990/1989. A Lei nº 9.433/97 “oriunda de intensos debates e de uma mudança profunda de valores e concepções, foi 92 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p.373. 45 instituída com o objetivo de garantir o desenvolvimento humano, econômico e social sustentável93”rompendo com o modelo anterior, caracterizado pela falta de preocupação com o aproveitamento racional dos recursos naturais. Além disso, a Lei nº 9.433/1997, também chamada de Lei das Águas, resultou num importante marco para o exercício de uma gestão descentralizada dos RH e com a participação da comunidade, dos usuários e do poder público. Determinou o compartilhamento e responsabilidades entre o Estado e os diversos setores da sociedade e foi também inspirada no princípio constitucional de que a água é um bem de domínio público, dotado de valor econômico. Outro fundamento do sistema refere-se à bacia hidrográfica como unidade territorial básica para a implementação da Política e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos RH. Os órgãos que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de RH são: Conselho Nacional de RH; os Conselhos de RH dos Estados e do Distrito Federal; os Comitês de Bacia Hidrográfica; os órgãos dos poderes públicos federal, estadual e municipal cujas competências se relacionem com a gestão de RH e as Agências de Água. Observa-se, portanto, o surgimento de novas circunstâncias, as quais favoreceram a concretização de uma nova ordem jurídica para a água. O texto da Lei nº 9.433/97 foi influenciado por princípios expressos nas declarações internacionais sobre a água, como a Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente, realizada em Dublin, em 199294, e a Eco 9295, sediada no Rio de Janeiro, os quais estão de acordo com princípios ou fundamentos construídos e corporificados no art. 1º da Lei nº 9.433/1997. A Lei nº 9.433/1997 incorpora à ordem jurídica conceitos novos, como: o de bacia hidrográfica, considerada como unidade de planejamento e gestão; o da água como bem econômico passível de ter sua utilização cobrada; e a gestão das águas, delegada a Comitês e Conselhos de RH, com a 93 DEMOLINER, Karine Silva. Água e saneamento básico: regimes jurídicos e marcos regulatórios no ordenamento jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.40. 94 Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Brasil, em junho de 1992, no estado do Rio de Janeiro. 95 Declaração de Dublin sobre a água em uma perspectiva de desenvolvimento sustentável, em janeiro de 1992, 46 participação, da União, dos Estados, dos Municípios, de usuários de RH e 96 da sociedade civil. Tucci, Hespanhol e Cordeiro Netto afirmam: Naturalmente, o sistema criado se sobrepõe, mas não se opõe à estrutura administrativa existente. A lei mantém as competências dos organismos existentes e potencializa sua atuação. São criados organismos necessários à execução das novas atividades, as quais, por terem base territorial diversa da divisão político-administrativa do país, não poderiam ser exercidas pelos organismos existentes, que têm base municipal, estadual ou federal. As Agências de Águas têm como área de atuação uma ou mais bacias hidrográficas e suas competências primordiais são o planejamento dos RH 97 da bacia e a cobrança pelo uso da água. Neste caso, a Lei nº 9.984 de 17 de julho de 2000 buscou a implementação da Política e do Sistema Nacional de Gerenciamento de RH, a qual dispôs sobre a criação da Agência Nacional de Águas (ANA), estabelecendo regras para sua atuação, estruturação administrativa e fonte de recursos. Em relação à disciplina dos contratos de gestão firmados entre a ANA e terceiros, coube a esta Lei nº 10.881/2004, a qual dispõe sobre os contratos de gestão entre a Agência Nacional de Águas e entidades delegatárias das funções de Agências de Águas relativas à gestão de RH de domínio da União. Logo, é importante destacar, quanto à forma de gestão dos RH a ser adotada que a gestão poderá ser totalmente pública ou mista (pública e privada), dependendo a escolha da União, dos Estados, dos Municípios, dos usuários e das organizações cívicas. A gestão dos RH, entretanto, não poderá ser totalmente privada, pois os Poderes Públicos Federais e dos Estados, conforme for o domínio desses recursos, deverão exercer o controle dos usos da água através da outorga dos direitos de uso (art. 11, 29, II e 30, I, 98 todos da Lei 9.433/1997). A Constituição Federal de 1988, entretanto, não recepcionou a legislação infraconstitucional nos pontos em que estabelecia a propriedade privada da água. Assim, a Lei nº 9.433/1997 dispôs em seu artigo 1º que a água é um bem de 96 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005. p.393. 97 TUCCI, Carlos E. M.; HESPANHOL, Ivanildo; CORDEIRO NETTO, Oscar de Moraes. Gestão da água no Brasil. Brasília: Unesco, 2001. p.90. 98 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p.166. 47 domínio público, “cristalizando-se, por meio da legislação infraconstitucional, aquilo que a Lei Magna já havia instituído, ou seja, a publicização integral da propriedade da água”99. Nesse sentido, a Lei nº 9.433/97, ao utilizar a expressão “a água é um bem de domínio público”, abrange todo tipo de água, não especificando se é água de superfície ou subterrânea, fluente ou emergente. Os RH são bens públicos de uso comum. O seu uso privativo depende de ato administrativo específico: outorga do direito de uso da água, emitido pelo Poder Público, detentor do seu domínio, que se manifestara favoravelmente sobre um certo uso, impondo os respectivos limites e 100 condições. Em relação ao uso prioritário e ao uso múltiplo das águas presentes na Lei nº 9.433/97, destaca-se que a multiplicidade dos usos devido a sua enorme variedade não está enumerada na sua totalidade na lei. Com efeito, a Lei nº 9.433 reflete profunda mudança valorativa no que se refere aos usos múltiplos da água, ao seu valor econômico, a sua finitude e ao seu uso prioritário. A indústria é um segmento que utiliza os RH de várias formas em seu processo produtivo, como o consumo da água na produção, o resfriamento de máquinas etc. No entanto, a água, que sempre serviu de base para a produção de alimentos, para a sobrevivência humana e como insumo básico para vários setores produtivos, está cada vez mais escassa e com a sua qualidade comprometida. Em seguida, o art. 3º da Lei nº 9.433/1997 formula diretrizes gerais de ação a serem seguidas pelos organismos públicos e privados responsáveis por gerir ou administrar as águas. “As diretrizes precisam estar inseridas nas várias etapas do procedimento de outorga do direito de uso das águas, na elaboração do Plano de RH e na efetivação do sistema de cobrança pelo uso das águas”101. 99 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.79. ARAÚJO, Luiz Alberto David. A tutela da água e algumas implicações nos direitos fundamentais. Bauru: ITE, 2002. p. 34. 101 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p.169. 100 48 A Lei nº 9.433/1997 refere-se à possibilidade de cobrança pelo uso da água, a qual consiste num instrumento da Política Nacional de RH. “Muito embora, este seja considerado um bem coletivo é passível de apropriação pelos mais diversos segmentos da sociedade, cabendo à Política Nacional de RH a gestão equilibrada desses recursos”102. Saliente-se que a cobrança não é propriamente uma novidade no campo normativo brasileiro, sendo expressa em vários diplomas legais, entre os quais: O Código das Águas (Decreto 24.643/1934) já previu no artigo 36 §2º a 103 possibilidade de remuneração pelo uso das águas públicas . O artigo 68 do Código Civil 1916 também faculta a cobrança pela utilização do bem 104 público . O novo Código Civil (Lei 10.406/2002) mantém a possibilidade da cobrança, inovando ao referir-se ao termo mais amplo “entidade” e não às 105 pessoas jurídicas de direito público interno . A mudança de paradigmas encontra-se nos fundamentos dessa nova política nacional de RH e também nos princípios interligados. 1.4.4 Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002) Considerando o já exposto, fica manifesto que, a partir da Constituição Federal de 1988, não existem mais águas privadas no Brasil. E com a entrada em vigor do Código Civil 2002, essa constatação torna-se ainda mais evidente, o que deve ser interpretado de forma sistemática com a Constituição Federal de 1988 e com a Lei da Política Nacional de RH. Desse modo, no aspecto da dominialidade expressa no Código Civil 2002, cabe destacar que o Código Civil de 2002 não apresenta vício de inconstitucionalidade em relação à dominialidade da água no Brasil, embora pudesse ter adotado posições mais claras acerca do assunto. A realidade é que o legislador do recente Código Civil não deu aos RH a importância que merecem, 102 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A tutela da água e algumas implicações nos direitos fundamentais. Bauru: ITE, 2002. p. 48. 103 “Art. 36 É permitido a todos usar de quaisquer águas públicas, conformando-se com os regulamentos administrativos. [...] §2º O uso comum das águas pode ser gratuito ou retribuído, conforme as leis e regulamentos da circunscrição administrativa”. 104 “Art. 68. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito, ou retribuído, conforme as leis da União, dos Estados, ou dos Municípios, a cuja administração pertencerem”. (Lei 3.071/1916 – Código Civil Brasileiro). 105 “Art. 103. O uso dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem” (Lei 10.406/2002). 49 sobretudo neste momento histórico em que todo o mundo sofre com os 106 reflexos do descaso com a água. Tendo em vista a compatibilização do Código Civil com a legislação em vigor, Viegas assinala o disposto no art. 1230, caput: “A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais”107. Com efeito, essa foi apenas uma adequação formal, pois, segundo o Código de Minas, os minerais pertencem à União, consoante o art. 176 da CF; os “demais recursos minerais” também são de titularidade da União, nos termos dos arts. 20, IX, e art. 176 da Constituição Federal de 1988; o mesmo é estabelecido em relação aos potenciais de energia hidráulica (art. 20, VIII) e aos sítios arqueológicos (art. 20, X). O legislador foi assistemático ao deixar de arrolar as águas no Código Civil 2002. Porém, o art. 1º, I, da Lei nº 9.433/97 insere elemento especializante em relação ao art. 1.229 do Código Civil 2002, podendo ser incluída a água no rol do art. 1.230, caput, deste diploma. Nem tudo, entretanto, é perfeito, e o Código Civil 2002 deixou de incluir no 108 rol do art. 1.230 as águas , possibilitando uma interpretação precipitada – se focalizada apenas no recente texto, mas ignorando-se a cláusula aberta final do dispositivo, para viabilização integral da análise pretendida – de que essas acompanham a propriedade privada por força do art. 1.229, tal como 109 ocorria com o Código Civil 1916 . Portanto, a principal alteração foi a mudança de paradigmas no que tange a propriedade das águas. O Código Civil de 1916 estabelecia regras admitindo a propriedade privada deste recurso natural. A Constituição Federal de 1988 registra serem da União ou dos Estados as águas, extinguindo a propriedade particular as águas com a publicização de seu domínio. A Constituição Federal de 1988 registra que as águas são bens da União (art. 20, III110) ou dos Estados todas as águas que 106 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.87. Ibidem, p.81. 108 Ibidem. 109 Ibidem. 110 Art. 20,III da Constituição Federal de 1988: São bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. 107 50 não se enquadrarem neste perfil (art. 26, I111). Assim, com a Constituição Federal de 1988, o antigo proprietário passa para a condição de mero detentor da água, a ser o seu administrador. Ademais, o art. 1, inciso I, da Lei nº 9.433/1997, afirma que “a água é um bem de domínio público”, logo, não existem mais águas particulares. Assim, a água é um bem público de domínio da União e dos Estados. Se antes a cultura era da abundância, hoje a cultura é da sustentabilidade, com valor econômico e socioambiental relevante. 1.5 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS/ AMBIENTAIS Os RH são elementos de extrema importância para a estabilidade social e para o desenvolvimento econômico, sendo caracterizados como fator de produção, de desenvolvimento e bem–estar. Por isso, o mundo todo depende da disponibilidade deste recurso indispensável à vida. Dessa forma, pela sua importância, verifica-se a necessidade de estabelecer regras para sua utilização com a finalidade de garantir a manutenção do equilíbrio desse recurso. Assim, preconiza-se a gestão dos RH sob a ótica dos princípios ambientais, com destaque para os princípios da prevenção e precaução como basilares para a proteção ambiental e, por consequência, dos RH. Destaca-se também que, na prática da tarefa de administrar as águas, necessita-se dos princípios estruturantes do Direito Ambiental. Nesse sentido, os princípios estão densificados nas disposições normativas e representam mais um instrumento para colaborar na gestão das águas, desde que efetivamente manejados. Ademais, importa destacar que todos estão previstos na CF1988. Neste trabalho, serão explicitados os princípios jurídicos que moldam o conteúdo das normas jurídicas e que auxiliam na solução de conflitos de interesses. 111 Art. 26, I da Constituição Federal de 1988: águas pertencentes aos Estados “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. 51 Neste capítulo serão tratados alguns princípios, em sentido amplo, que se aplicam tanto ao tema das águas como ao tema do meio ambiente, com o objetivo de buscar os fundamentos do direito das águas. A esse respeito, citam-se os princípios da Política Nacional do Meio Ambiente, que “foram inspirados por aqueles estabelecidos pela Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, realizada em Estocolmo, na Suécia, em 1972”112. Outro exemplo são as regras da Lei nº 9.433/97, que se basearam em princípios emanados do direito internacional. Os princípios são importantes para o estabelecimento da comunicação do direito ambiental com os RH. Pretende-se evidenciar com esta pesquisa sobre os princípios constitutivos do núcleo essencial do direito do ambiente a busca de uma maior efetividade na gestão dos riscos ambientais. Princípios, para Alexy, “são mandados de otimização, na medida em que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”113. Em contrapartida, regras são normas que podem ser ou não preenchidas, ficando descartada uma gradação de preenchimento. Quando uma norma vale, há um mandamento para fazer exatamente aquilo que exige114. Não há regra estabelecendo hierarquia em grau de importância de princípios. Portanto, a distinção entre regras e princípios é uma distinção “qualitativa”, ou seja, toda norma é uma regra ou um princípio. No entendimento de Derani, a escolha de um princípio em detrimento de outro, pelo seu conteúdo delimitado na interpretação, nada mais é que a opção por uma determinada ordem115, ao passo que Dworkin os considera fonte da justificação moral e política do direito vigente em uma determinada comunidade 116. A esse respeito, trata-se da rearticulação entre direito e moral da era pós-positivista, 112 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997. p.36. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p.86. 114 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 49. 115 Ibidem, loc. cit. 116 BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Renovar, p.653. 113 52 inclusive com a retomada da centralidade dos princípios, agora erigidos em normasprimárias do sistema jurídico. Sobre o campo do direito das águas, Lobo afirma: As legislações recentes se tem orientado pelos salutares princípios da gestão dos recursos hidráulicos, adotando sempre que possível o ideário da moderna política hídrica, ou seja, o conjunto de princípios e normas que informam a atuação do Estado no âmbito da gestão da água, tendo como objetivo a exploração e planificação, a conservação e maximização dos 117 mesmos RH . Os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enunciados em algum texto de direito positivo. Os princípios constitucionais, explícitos ou não 118, refletem a ideologia da sociedade e dão suporte ao sistema, harmonizando suas diferentes partes. Os princípios servem de guia para a interpretação e aplicação do direito. Entre suas funções estão: condensar valores, dar unidade ao sistema, condicionar a atividade do intérprete119. A colisão de princípios deve ser solucionada de maneira totalmente distinta de quando ocorre com as regras, visto que, ao entrarem em colisão, um dos princípios tem de ceder ao outro, conforme esclarece Alexy: Nos casos concretos, os princípios tem diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade; a colisão de princípios, como só podem entrar em coliseo princípios válidos, tem lugar para além da dimensão de validade, na 120 dimensão do peso . Impõe-se, desde logo, que o Estado de ambiente, para se constituir num Estado de Direito, precisa estar materialmente harmonizado com um Estado de justiça ambiental. Assim, para Canotilho “a grande dificuldade em construir um 117 LOBO, Mário Tavarela. Manual do direito de águas. Coimbra: Coimbra, 1989. p.136. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1999. p.149. 119 Ibidem, p. 31. 120 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p.89: En los casos concretos los principios tienem diferente peso y que prima el principio con mayor peso. Los conflitos de reglas se llevan a cabo en la dimensión de la validez: la colisión de principios – como solo pueden entrar en colisión principios validos – tiene lugar mas alla de la dimensión de la validez, en la dimensión del peso. 118 53 Estado de Direito Ambiental é transformá-lo em um Estado de justiça ambiental”121. Ao se deparar com essa constatação, Canotilho reflete: "se o Estado de Ambiente não pode construir-se ao arrepio das regras e princípios informadores do Estado de direito, ele não pode respirar livremente, se não transportar nos seus vasos normativos a seiva de justiça ambiental"122. Nota-se que a doutrina diverge sobre quais seriam os princípios do direito ambiental. Alguns doutrinadores entendem que são seis os princípios existentes na atual Constituição Federal, quais sejam, “o do desenvolvimento sustentável, do poluidor-pagador, da prevenção, da obrigatoriedade da intervenção estatal, da participação popular e da ubiquidade”123. De acordo com Celso Antonio Pacheco Fiorillo, seriam os seguintes princípios: do desenvolvimento sustentável, do poluidorpagador, da prevenção, da participação e da ubiquidade124. Desse modo, na sequência trata-se de alguns princípios, dentre os quais se destacam os da precaução, da prevenção, do poluidor-pagador e da cooperação (participação). O princípio da precaução associa-se a estar diretamente influenciando nas tomadas de decisões da área ambiental. Um exemplo da utilização deste princípio encontra-se nas áreas envolvendo risco na gestão dos RH, inclusive porque a precaução surge quando o risco é alto. O princípio da prevenção, previsto no art. 225 da Constituição Federal de 1988, além de ser parte da lógica ambiental, configura comportamento efetuado para afastar o risco ambiental, conforme a seguir será explicado. A questão de a cobrança da água está baseada no princípio do poluidor-pagador, adotado com o objetivo de combater o desperdício e a poluição da água, de maneira que quem desperdiça e polui paga mais. O princípio da cooperação encontra-se na gestão descentralizada dos RH o qual deve ter ampla participação da sociedade, por intermédio dos Comitês de Bacia. Assim, esses princípios, ao lado de outros antes referidos, estão densificados nas disposições normativas federais, estaduais e municipais brasileiras relativas à 121 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Juricidização da ecologia ou ecologização do direito. Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente. Coimbra: Almedina, n.4, p. 69-79, dez.1995. 122 Ibidem. 123 GERALDES, André Gustavo de Almeida. A tutela jurídica dos mananciais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p 26. 124 FIORILLO, C.A. P. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000. p.22-42. 54 espécie. Convém observar que a maior parte desses princípios está relacionada com o direito econômico e com o direito ambiental, uma vez que o objetivo mediato é o bem-estar social e a sadia qualidade de vida. Porém, não é este o ponto principal a ser tratado neste estudo. Conforme o propósito determinado, pretende-se identificar de que maneira os parâmetros normativos abordam o tema do meio ambiente. 1.5.1 Princípio da prevenção Em direito ambiental deve-se dar prioridade ao proceder de forma preventiva, porque danos ambientais são, geralmente, inevitáveis e porque, em muitos casos, ocorrido o dano ambiental, é impossível a reconstituição integral do ambiente, ou, sendo possível, é muito onerosa. O princípio da prevenção trata do dever jurídico de se evitar a consumação de danos ao meio ambiente. O princípio da prevenção incorporou-se ao texto da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ao fixar em seu Princípio 8: “Para atingir o desenvolvimento sustentável e mais alta qualidade de vida para todos, os Estados devem reduzir ou eliminar padrões insustentáveis de produção e consumo e promover políticas demográficas adequadas”. Assim, a prevenção é um instituto jurídico recente advindo do Direito Ambiental e recepcionado pela Constituição Federal de 1988 graças à Rio 92. A Constituição portuguesa estabelece alguns princípios fundamentais em matéria ambiental: o princípio da prevenção, o princípio do desenvolvimento sustentável, o princípio do aproveitamento racional dos recursos naturais e o princípio do poluidor-pagador. Entre esses, o princípio da prevenção tem como finalidade evitar lesões do meio ambiente, o que implica capacidade de antecipação de situações potencialmente perigosas, de origem natural ou humana, capazes de por em risco os componentes ambientais, de modo a permitir a adoção dos meios mais adequados para afastar a sua verificação ou, pelo 125 menos, minorar as suas consequências. 125 SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito. Lições de direito do ambiente. Coimbra: Almedina, 2002. p. 66. 55 Ainda que prevenção e precaução possam estar associadas, o que está em causa é a tomada de medidas destinadas a acautelar-se contra a produção de efeitos danosos ao ambiente, não a reação a tais lesões. No entanto, a doutrina brasileira faz distinção no seguinte sentido: Consistindo o princípio da precaução em um estágio além da prevenção, a medida que o primeiro tende a não-realização do empreendimento, se houver risco de dano irreversível, e o segundo busca, ao menos em um primeiro momento, a compatibilização entre a atividade e a proteção 126 ambiental. A tendência doutrinária portuguesa, da mesma forma, segue nessa senda, ou seja, desenvolve-se no sentido de “assimilar o princípio da prevenção a sua acepção mais restritiva, ao mesmo tempo que se procede a autonomização de um princípio da precaução, de conteúdo mais amplo”127. Essa tendência se encontra no nível de tratados constitutivos da União Europeia, no art. 174, nº2, ao estabelecer que “a política da comunidade [...] basear-se-á nos princípios da precaução e da ação preventiva”. Nesse sentido, é de grande interesse e importância discutir o alcance e o sentido do princípio da prevenção. Pode-se verificar que o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 faz referência ao princípio da prevenção “ao impor ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, prescrevendo normas obrigatórias de atuação da Administração Pública”128. Além disso, temos o art. 54, parágrafo 3º, da Lei 9.605 de 1988, que penaliza criminalmente quem deixar de adotar as medidas precaucionais exigidas pelo poder público129. Essa sanção criminal vale, inclusive, para a pessoa jurídica que se omitir na adoção de providências requeridas pelo poder público. 126 GRANZIERA, Maria Luíza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2006, p.51. 127 SILVA, Ibidem, p. 67. 128 Na lição de José Afonso da Silva comentando o art. 225: “preservar e restaurar estão aí como formas de conservação que implica manutenção e continuidade, que significam aproveitamento que garante a utilização perene e que protege os processos ecológicos e a diversidade genética essencial para a manutenção dos recursos ecológicos”. ARAÚJO, Luis Alberto David. A tutela da água e algumas implicações nos direitos fundamentais. Bauru: ITE, 2002. p. 162. 129 ARAÚJO, Luis Alberto David. A tutela da água e algumas implicações nos direitos fundamentais. Bauru: ITE, 2002. p. 162. 56 Um exemplo de aplicação prática do princípio da prevenção encontra-se disposto no inciso IV do art. 225130 da Constituição Federal de 1988, é o Estudo Prévio de Impacto Ambiental. Anteriormente a Constituição Federal de 1988, a Avaliação Prévia de Impacto Ambiental já tinha previsão na Lei 6.938/81, como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente. Neste caso, a importância fundamental dos Estudos de Impacto Ambiental reside no fato de que, com sua correta realização, é possível se antecipar às consequências negativas e positivas e medir as alternativas apresentadas com vistas a uma opção a ser decidida pela sociedade131. O direito ambiental constitui um domínio jurídico “ancorado no princípio da prevenção132”, cuja finalidade é a tomada de medidas destinadas a evitar a produção de efeitos danosos para o meio ambiente. Justifica-se a relevância do princípio da prevenção pelo fato de em nossa sociedade serem cada vez maiores os fatores de risco para o ambiente, num contexto de reconhecimento da escassez dos RH e dos recursos naturais de maneira geral. Destaca-se que o princípio da prevenção é complexo e pode ser utilizado em diversos instrumentos da política ambiental. Por este, demandam-se provas do nexo entre o dano e a causa e adequação das medidas de preventivas. Ao abordar os exemplos de atuação preventiva, Kiss cita "prévia avaliação da degradação ambiental, licenciamento e autorização, que imponha condições e conseqüências para violação desses.133” Além disso, têm-se o plano diretor, as políticas e os planejamentos que envolvam gestão de recursos naturais, ameaça de dano e gestão de riscos. Resumindo, a prioridade em direito ambiental deve ser a prevenção, uma vez que muitos danos ambientais são, na maioria dos casos, irremediáveis. Este princípio exprime a necessidade de se prevenir qualquer atividade que possa causar 130 Exigir na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a que se dará publicidade. 131 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1996. p. 14. 132 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controle judicial preventivo, Revista Jurídica de Urbanismo e do Ambiente, n. 1, p. 65. 133 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 173. 57 danos ambientais. Previsto expressamente no art. 225 da Constituição Federal de 1988, fundamenta-se na dificuldade e até na impossibilidade de reparação do dano ambiental. Assim, muitas tutelas de reparação e de repressão ambiental, se eficientes, poderão gerar reflexos positivos na tutela preventiva ambiental. Este princípio baseia-se na ideia de afastar posições conservadoras adotadas, que, por estarem em situação de conforto, aceitam a responsabilização pelos danos que já foram causados. Portanto, a noção de prevenção correlacionando ao objeto desta pesquisa (conhecimento antecipado dos danos que podem surgir na cobrança pelo uso da água para a realização de providências no sentido de evitá-los. Assim, no âmbito do Direito Ambiental a partir dos princípios que se extraem as diretrizes básicas que permitem compreender a forma pela qual a proteção do meio ambiente é vista na sociedade. Na sociedade contemporânea, os riscos de desastres ambientais tornam-se cada vez mais concretos e iminentes. Enquanto isso a sociedade encontra-se como mera espectadora do resultado das nossas ações no presente. 1.5.2 Princípio da precaução O princípio da precaução constitui-se na essência do direito ambiental para a doutrina especializada brasileira. Assim, seus elementos compõem a proteção ao meio ambiente, tendo em vista a necessidade intergeracional de proteção ambiental. Conforme assinala Derani: O princípio da precaução é de tal importância que é considerado o ponto direcionador central para a formação do direito ambiental. Na verdade uma precaução contra o risco que objetiva prevenir já uma suspeição de perigo 134 ou garantir uma suficiente margem de segurança da linha do perigo . O princípio da precaução foi elevado a status de princípio de direito ambiental internacional pela Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, passando a fazer parte de diversos documentos, tratados e 134 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001.p.169. 58 declarações internacionais e também das legislações nacionais. Tal princípio dispõe, de forma expressa, no Princípio 15: De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. A Constituição Federal de 1988 reúne vários princípios ambientais, “que ora são expressos ou implícitos, ora gerais ou especiais, ora substantivos ou procedimentais. De todo o sistema, e não apenas do art. 225, extrai-se o princípio da precaução”135. Sabe-se que, por melhores que sejam os mecanismos de precaução do Estado, ainda assim ocorrem danos ambientais. Portanto, quanto maior for a proteção ambiental, sobretudo por meio dos princípios ambientais, maior será a chance de se obterem resultados satisfatórios para os bens juridicamente protegidos. E se não forem tomadas, a título de precaução, algumas medidas antecipadas de proteção ambiental, em breve não haverá nada a proteger 136. Diante dos problemas ambientais, por mais complexos que sejam, “o Estado de Justiça de Ambiente aponta do sentido da indispensabilidade de uma carta de princípios de justiça ambiental”137. A Convenção de Diversidade Biológica (CDB) é o elemento principal de um regime internacional, em vigência desde 1993. Faz parte deste regime e a este se subordina o Protocolo de Cartagena, adotado pela COP (Conferência das Partes) em 2000 e em vigor desde 2002. O princípio fundamental deste protocolo é o da precaução, aplicado a uma atividade que representa possíveis medidas para as ameaças de danos ao meio ambiente e/ou à saúde humana, mesmo se algumas relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidas cientificamente138. 135 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p.118. 136 ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O princípio do nível elevado de proteção e a renovação ecológica do direito do ambiente e dos resíduos. Coimbra: Almedina, 2006. p.265. 137 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Juricidização da ecologia ou ecologização do direito. Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, Coimbra: Almedina, n.4, 1995, p. 69-79. 138 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, 2004. Disponível em: MMA – http://mma.gov.br/agenda21. Acesso em 10 mai. 2010. 59 Conforme entendimento de Rogério Leal, o princípio da precaução “é um elemento estruturante do direito ambiental”, cujo fundamento no campo normativo brasileiro encontra-se na lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), especificamente no seu art. 4, I e IV, “que expressa a necessidade de haver um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a utilização dos recursos naturais, e também introduz a avaliação do impacto ambiental como requisito para a instalação da atividade industrial”139. Sobre a aplicação do princípio da precaução, Canotilho assinala que “caberá ao bom senso dos órgãos da política ambiental brasileira, bem como à correta interpretação do Judiciário, aplicar o princípio da precaução, pois ele está implícito no sistema constitucional brasileiro e referido em outros dispositivos normativos”140. O Poder Judiciário desempenha um papel importante e especial na concretização do direito fundamental em busca de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao promover medidas sociais compensatórias e até satisfativas para determinadas demandas, como, por exemplo, a garantia de energia elétrica e água. Portanto, as questões ambientais, diante do contexto em que se apresentam, conclamam a uma nova postura tanto de parte do Estado quanto da coletividade. Nesse sentido, o direito apresenta instrumentos adequados para a proteção da água, cabendo não só ao Ministério Público, mas a toda sociedade, a responsabilidade pela sua proteção, o que implica uma sociedade educada e politizada141. Ainda que o princípio da precaução142 seja objeto de vários tratados e convenções internacionais, o debate dá-se em torno de sua operacionalidade. 139 LEAL, Rogério Gesta. Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais sociais: os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p.173. 140 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 178. 141 CHALITA, Gabriel. A ética dos governantes e governados. Apud ARAÚJO, Luis Alberto David. A tutela da água e algumas implicações nos direitos fundamentais. Bauru: ITE, 2002. p. 177. 142 Neste contexto, a Comissão da Comunicação relativa ao princípio da precaução: o COM (2000) final, de dois de fevereiro, tendo como objetivos clarificar o recurso ao princípio da precaução na prevenção de riscos e a estabelecer diretrizes para a sua aplicação, defende a aplicação do princípio da precaução não a avaliação de riscos, mas, sobretudo «a gestão dos riscos, quando a certeza científica não permite uma avaliação completa dos riscos e as instâncias de decisão consideram que pode existir uma ameaça ao nível escolhido de proteção do ambiente» (p.14). Por isso, segundo o 60 Entretanto, é equivocada a interpretação deste princípio realizada por alguns estudiosos no sentido de uma regra de abstenção. Assim, na dúvida, evitar danos futuros por falta de conhecimento das consequências de uma substância, técnica ou atividade seria motivo para a não autorização ou proibição pelas autoridades públicas. Assim, o risco está presente em todas as atividades. Quanto maior a probabilidade de acontecer um dano e a natureza que este dano potencial pode causar, tanto mais a solução deve ser favorável ao meio ambiente, in dubio pro natura. Nesse sentido, em relação aos RH, nas fases e riscos no processo de cobrança, na questão da determinação da carga poluente, a aplicação do princípio da precaução para esse problema pode exigir não meras abstenções, mas a adoção de medidas com vistas a estabilizar melhoria dos métodos de análise e qualificação dos erros e das perdas financeiras. Naturalmente, o direito ambiental precisa conhecer e acompanhar o desenvolvimento dos conhecimentos científicos. Assim, compreendendo as controvérsias nas diversas esferas da vida social, poder-se-á utilizar o princípio da precaução como instrumento para traduzir a relatividade entre o conhecimento científico e o perigo de determinada atividade. Para a questão dos RH ou outros temas polêmicos de consequências incertas, o princípio da precaução implica que qualquer aprofundamento seja beneficiado pela contraposição entre posições favoráveis, contrárias e mediadoras. O princípio da precaução é um instrumento de gestão do risco, de questionamento e de compreensão da responsabilidade de nossas atividades e posturas em face da existência e da qualidade de vida das próximas gerações. Assim, este princípio estimula uma atitude reflexiva com relação à própria ciência, inclusive fortalece a tomada de decisões envolvendo a opinião pública e a comunidade científica. Ulrich Beck afirma que cabe à sociedade, num pensamento reflexivo, questionar-se quanto ao desenvolvimento que promove. “Enfim, cabe consciencializar-se de que não pode entendimento da Comissão, a definição dos “riscos aceitáveis” depende sempre de uma decisão política. 61 continuar a ser uma ameaça e se deve assumir como promessa de libertação da ameaça que gerou, ultrapassando-se”143. Ainda se percebe, a ocorrência de danos ambientais por inúmeros motivos. Os princípios ambientais são mais um dos instrumentos a favor de uma nova ética para gestão das águas e do meio ambiente em geral, desde que efetivamente manejados. No entanto, especificamente no caso do princípio da prevenção e da precaução, do modo que se apresentam, parecem insuficientes e não há por que não se utilizarem outras formas de controle ambiental para bem direcionar as questões ambientais. Além disso, “a inegável a falta total de execução das regras juspublicistas do Direito Ambiental, resulta em prejuízos à preservação ambiental”144. O princípio da precaução prioriza interesses futuros em detrimento de interesses atuais qualitativamente inferiores. Convém destacar que este princípio é baseado na verossimilhança, significando que [...] não atuará se o risco da lesão do bem futuro não for minimamente verossímil. Preferimos que seja verossimilhança, e não probabilidade ou estatística, a comandar o funcionamento do princípio da precaução, para evitar que o princípio da precaução fique submetido ao jugos das 145 probabilidades, ou dominado pelo jogo dos números . A diferença entre a abordagem matematizada e a não matematizada do princípio da precaução é exemplificada da seguinte forma: diante do funcionamento de uma grande instalação “fabril de combustão seria lícito perguntar a respeito da probabilidade do aumento do número de cancros provocados pelas emissões de dioxinas. A resposta poderá ser: é tão ou (pouco) provável como cair-nos um relâmpago em cima”146. 143 GARCIA, Maria da Glória F.P.D., O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007. p.91. A autora cita Beck na obra Risikogesellshaft. Auf dem Weg..., p.300. 144 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 63. 145 BECK, Ulrich. Ecological politics in an age of risk. Blackwell Publishers. Apud ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O princípio do nível elevado de proteção e a renovação ecológica do direito do ambiente e dos resíduos. Coimbra: Almedina, 2006. p.212. 146 É precisamente este o critério e o termo de comparação usado pela Comissão Científica Independente de Controle e fiscalização ambiental da co-incineração criada pelo Decreto-lei nº120/99 de 16 de Abril: “(...) um risco aceitável, sob o ponto de vista da saúde pública, situa-se a um nível da ordem de grandeza de 1/1.000. 000 para uma pessoa no local de emissão dos poluentes (orgânicos e metais pesados) e tendo em consideração efeitos de contaminação por forma direta e indireta. Um tal risco é inferior ao risco natural da probabilidade de morte por um relâmpago durante trovoadas”. 62 Desse modo, pelo critério da verossimilhança é lógico pensar que a incidência de doenças de foro oncológico possa aumentar em caso de exposição a níveis mais elevados de dioxinas. Já, em relação à fraca probabilidade de ocorrência do dano, não se justificaria a secundarização dos interesses futuros diante de interesses mais imediatos. Fica evidente, portanto, que, em relação aos problemas ecológicos que envolvem grandes riscos, não é o fato da fraca probabilidade de ocorrência do dano que justificará que alguém se exima de agir de acordo com o princípio da precaução. Aragão conclui com o exemplo acima resumido: O que pretende-se tornar evidente é que, relativamente a dilemas ecológicos que envolvam riscos elevados, pondo em perigo bens ecológicos importantes ou bens humanos vitais, não é o fato de a probabilidade da ocorrência ser extremamente baixa que exime alguém de agir 147 prudentemente, de acordo com o princípio da precaução . A autonomização do tratamento do princípio da precaução em relação ao princípio da prevenção justifica-se pelo fato de que “a prevenção implica a escolha da alternativa mais elevada das duas, ou mais possibilidades de proteção dos bens naturais em confronto”148. Precaução pressupõe a preservação do direito de opção, ainda que não haja nenhuma alternativa no momento atual, mas que seja possível uma previsão futura entre várias opções. Destaca-se ainda a necessidade da adoção de medidas antecipadas de proteção ambiental, a título de precaução, sob pena da privação do seu objeto ou do seu fim antes do cumprimento. “Se não nos apressarmos, se cairmos no erro da parálise pela análise, perdendo tempos infinitos com polêmicas e discussões, o animal, a planta, ou mineral [...] extinguem-se ou são aniquilados e a proteção...fica sem objeto149” Assim, a precaução fundamenta-se na verossimilhança e prescinde de provas científicas absolutas, garantindo o nível de proteção elevado. Relatório sobre o tratamento de resíduos industriais perigosos, Aveiro, Marco de 2000, http://www.incineracao.online.pt, p.18. ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O princípio do nível elevado de proteção e a renovação ecológica do direito do ambiente e dos resíduos. Coimbra: Almedina, 2006. p.213. 147 Ibidem. 148 ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O princípio do nível elevado de proteção e a renovação ecológica do direito do ambiente e dos resíduos. Coimbra: Almedina, 2006. p.264. 149 A expressão é frequente na política norte-americana e aplica-se ao hábito frequente em certos governantes de criar comissões, juntas ou grupos de trabalho de especialistas para avaliar 63 1.5.3 Princípio da cooperação/princípio da participação Conforme observa Derani, “o princípio da cooperação não é exclusivo do direito ambiental. Ele faz parte da estrutura do Estado Social”. Cabe aos Estados atuar de forma coordenada com a sociedade no que se refere às ações para evitar a ocorrência de danos, assim como para racionalizar as medidas de proteção necessárias. O princípio da cooperação “orienta a realidade de outras políticas relativas ao bem comum, inerente à razão constituidora do Estado. É um princípio de orientação do desenvolvimento político, por meio do qual se pretende uma maior composição das forças sociais”150. Portanto, facilmente se conclui sobre a importância e a inter-relação dos princípios da cooperação e da participação. A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, onde se constata referência a ambos os princípios, assim expressa: 5, 7, 9, 10 (princípio da participação), referência implícita ao princípio da cooperação nos princípios 12,13,14 e 18 e nos 20, 22, 24 e 27. A Constituição Federal de 1988, no art. 225, também incorporou o princípio da cooperação ao dispor ser do poder público e da coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Conforme assinala Derani, é por meio do princípio da cooperação que se consolida “uma divisão de funções dentro da ordem econômica que tem por fundamento as relações de mercado, reportando ao Estado e aos cidadãos a divisão de custos decorrentes da implementação de uma política preventiva de proteção ambiental”151. A humanidade vive uma crise ambiental e, para enfrentá-la, faz-se necessária a emergência de um novo paradigma, o paradigma ambiental, que tem como componente essencial a efetiva participação na gestão ambiental. Incontestavelmente, a informação, a educação e a participação, embora sejam emas distintos, possuem conexão e envolvem realidades profundamente interligadas, ou exaustivamente um problema antes de tomar qualquer decisão politicamente difícil e que vem redundar, geralmente, numa não decisão. 150 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001. p.161. 151 Ibidem, p.157. 64 seja, comunicam-se mutuamente. Dessa forma, devem-se tratar tais temas de forma a mantê-los interconectados. A participação pública na tomada de decisões passou a integrar o ordenamento jurídico de muitos países, onde adquire diferentes aspectos. O sexto fundamento da Lei de RH refere-se que a gestão das águas deverá ser descentralizada e contar com a participação pública, envolvendo o Poder Público, os usuários e as comunidades. Pode-se afirmar que os preceitos do direito de acesso à informação, à educação, e à participação pública são alguns dos fatores que condicionam o sucesso da gestão participativa dos recursos ambientais. O acesso à informação deve vir acompanhado por um processo de educação, a fim de garantir um posicionamento crítico e consciente dos cidadãos. Dentre os princípios esculpidos na Constituição Federal de 1988, no art. 225 destaca-se o princípio da participação152(caput), também expresso no art. 10 da Declaração do Rio de Janeiro153, de 1992, a qual talvez seja sua maior contribuição. É uma decorrência da propriedade coletiva do meio ambiente, pois, uma vez sendo de uso comum do povo, a responsabilidade do dever de sua defesa e preservação cabe a toda a coletividade. A informação e a educação ambiental, também constantes da Declaração do Rio, são pressupostos fundamentais para a participação popular na tutela ambiental, principalmente por serem fatores de relevância ímpar no que tange à conscientização da sociedade. Esta declaração foi taxativa ao elencar, entre outros, 152 Art. 225, CF. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 153 Princípio 10- A melhor forma de tratar as questões ambientais é assegurar a participação de todos os cidadãos interessados ao nível conveniente. Ao nível nacional, cada pessoa terá acesso adequado às informações relativas ao ambiente detidas pelas autoridades, incluindo informações sobre produtos e atividades perigosas nas suas comunidades, e a oportunidade de participar em processos de tomada de decisão. Os Estados deverão facilitar e incentivar sensibilização e participação do público, disponibilizando amplamente as informações. O acesso efetivo aos processos judiciais e administrativos, incluindo os de recuperação e de reparação, deve ser garantido. 65 uma readequação nos padrões de produção e consumo, bem como uma política demográfica adequada154. O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, estabelecido pela Lei 9.433/97, tem como característica relevante a importância dada à participação pública. Garantiu-se a participação dos usuários e da sociedade civil em todos os plenários constituídos pelo sistema, desde o Conselho Nacional de RH até os Comitês de Bacia Hidrográfica, como forma de legitimar a decisão e de garantir sua implementação. Assim, o disposto no art. 1º, inciso VI, da Lei 9.433/97155 constitui-se em uma regra concretizadora do princípio da participação, aplicável na gestão descentralizada dos RH por meio do Comitê de Bacia. A participação popular da sociedade civil é condição essencial para a plena eficácia das normas de proteção ao meio ambiente e da gestão eficaz dos RH proposta pela Lei 9.433/97. O conceito de participação pública ou participação popular entrou no vocabulário de especialistas em temas relacionados ao “desenvolvimento” no final da década de 1970, passando a ser incorporado na terminologia das resoluções e tratados adotados no âmbito da Organização das Nações Unidas - ONU desde então156. Deve-se insistir na questão da efetividade do processo de participação e na exigência de igualdade entre pessoas. Segundo Ronald Dworkin: Poderíamos dizer, provisoriamente, que a igualdade política exige que todos tenham a mesma oportunidade de influenciar as decisões políticas, de modo que quaisquer impedimentos jurídicos se apliquem a todos, deixando de lado a questão de se a igualdade política também exige que as 157 oportunidades de todos tenham o mesmo valor que cada um deles . 154 BRASIL. Agenda 21 brasileira: resultado da consultanacional / Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. 155 Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. 156 FURRIELA, Rachel Biderman. Democracia, cidadania e proteção do meio ambiente. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002. p.30. 157 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.90. 66 A relação indissociável entre democracia e direito à informação fica evidente, visto que não há como garantir a efetiva e real participação da sociedade nos processos decisórios sem antes garantir o mais amplo e fiel acesso às informações inerentes ao assunto. O direito à informação, no âmbito dos RH, correlato ao da participação na sua instrumentalização, corporifica-se no art. 5º da Lei 9.433/97, que prevê nos seus incisos os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, entre os quais deve ser destacado o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos 158. No direito brasileiro, a cooperação em matéria ambiental transparece no art. 23 da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre a competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para proteger o meio ambiente e combater a poluição. Esta norma trata da “instituição de um modelo de cooperação entre as diferentes esferas de poder, evidencia a intenção do legislador constituinte de estabelecer o chamado federalismo cooperativo”159. Nota-se que o art. 225 da Constituição Federal de 1988 estabelece, implicitamente, a cooperação na medida em que impõe ao poder público e à coletividade o dever de defender e proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Igualmente, em relação ao gerenciamento dos RH, a cooperação se traduz nos esforços conjuntos, dos entes governamentais e da sociedade civil para tornar eficazes as disposições da Lei 9.433/97. Em suma, os princípios assumem posição de vital importância na proteção do meio ambiente, mormente o princípio da cooperação, conjugando interesses individuais ou coletivos, o que resulta em políticas eficazes para a concretização dos valores sociais relativos ao meio ambiente. Dessa forma, o objetivo social e político do processo ambiental exige a adoção de procedimentos mais flexíveis e democráticos, que possibilitem a participação das partes e de todos interessados, 158 Nos termos do art. 25 da mesma lei: “O sistema de Informação sobre Recursos Hídricos é um sistema de coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de Informações sobre recursos hídricos e fatores intervenientes em sua gestão”. 159 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p.78. 67 sobretudo, em questões ambientais e, finalmente, que aconteça essa efetiva participação. Além da efetividade jurídica, as normas precisam ter efetividade social. Apesar de a proteção dos RH ser prevista em leis e regulamentos nas diversas áreas - administrativa, civil e penal -, necessita-se de uma eficácia social dessas. Para tanto é necessário rigor na aplicação conforme exige a realidade dos fatos. 1.5.4 Princípio do poluidor-pagador O princípio do poluidor-pagador atua em nível de prevenção do dano ambiental, a cargo do empreendedor, e na responsabilidade pela ocorrência do dano, conforme o § 3º160 do art. 225 da Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional. Caso ocorrido o dano ambiental, o princípio do poluidor-pagador tem aplicação para fins de repressão. De fato, o princípio do poluidor-pagador foi incorporado aos textos de tratados e convenções internacionais a partir da Declaração do Rio – 1992, dispondo no Princípio 16: As autoridades nacionais deverão envidar esforços no sentido de promover a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando em consideração a política de que o poluidor deverá, em princípio, arcar com os custos da poluição, considerado o interesse 161 público e sem distorcer-se o comércio e as inversões internacionais. O princípio do poluidor-pagador visa à internalização dos custos relativos externos de deterioração ambiental162. É o caso, por exemplo, da construção de estação de tratamento de efluentes industriais, do reúso da água, da adoção de tecnologias “limpas” etc. No entanto, mesmo com a adoção das medidas necessárias a evitar a poluição pelo empreendedor visando à proteção dos RH, caso aconteça a poluição, os poluidores serão responsabilizados. 160 §3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. 161 O princípio do poluidor-pagador surgiu no âmbito internacional em 1972, formulado como princípio econômico pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, mediante a adoção, aos 26.05.1972, da Recomendação C(72) 128, do Conselho Diretor. Até a Declaração do Rio em 1992, esse princípio encontrou referência apenas em textos de normas internacionais abrangentes da União Europeia e nos países-membros da OCDE, tomando realmente amplitude mundial a partir da Declaração do Rio/92. Nesse sentido ver ARAGÃO. 162 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001.p. 162. 68 Conforme destaca Cristiane Derani, a antítese do poluidor-pagador encontrase no princípio do ônus social163. De acordo com este princípio, o Estado suportaria parte do custo das medidas de implementação da qualidade ambiental, tanto de forma direta como por subvenção de financiamentos à iniciativa privada. Portanto, a outra parte do custo caberia a sociedade assumir. A compreensão do princípio do poluidor-pagador deve ser conjugada com o princípio da prevenção, no sentido de induzir a comportamentos favoráveis ao meio ambiente. Fique claro, portanto, que o princípio do poluidor-pagador não se limita à reparação; pelo contrário, a atuação preventiva constitui sua principal característica. O princípio do poluidor-pagador é o princípio que, com maior rapidez e eficácia ecológica, com maior economia e maior equidade social, consegue realizar os objetivos da política de proteção do ambiente. Os fins que o princípio do poluidor-pagador visa realizar são a precaução, a prevenção e 164 a equidade na redistribuição dos custos das medidas públicas . Desse modo, a intervenção pública de proteção do ambiente deve se conformar com o princípio do equilíbrio do orçamento ambiental e está limitada pelo princípio da correção na fonte. O princípio do poluidor-pagador tem reflexos na economia ambiental, na ética ambiental, na administração pública ambiental e no Direito Ambiental, pois tenta imputar, na economia de mercado e no poluidor, custos ambientais, e com isso visa a combater a crise em suas origens ou na fonte. Como diz Mateo, "o princípio do poluidor-pagador constitui uma autêntica pedra angular no direito ambiental: sua efetividade pretende eliminar as motivações econômicas da contaminação ambiental, aplicando-se 165 imperativos de ética distributiva" . Nota-se no caso brasileiro que, embora o legislador não tenha consagrado expressamente, o princípio do poluidor-pagador encontra-se no art. 4, VII, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, quando prevê a “imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados” 166. Além 163 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001.p. 164. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008, p.49. 165 Ibidem, p.182. 166 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. 164 69 disso, vários outros diplomas legais, como a própria Constituição Federal de 1988, reconhecem na prática o princípio do poluidor-pagador. O instrumento da cobrança pelo uso da água fundamenta-se no princípio do poluidor-pagador e “usuário-pagador”. Segundo Granziera, de acordo com o princípio do poluidor-pagador, “se todos têm direito a um ambiente limpo, deve o poluidor pagar pelo dano que provocou”167. Assim, determinada atividade que cause poluição em um rio, por exemplo, deverá ser internalizada pelo empreendedor. O princípio do poluidor-pagador revela a neutralização do custo social provocado pela poluição. A problemática ambiental necessita tanto das ciências naturais como das sociais para construir uma racionalidade social orientada para os objetivos de um desenvolvimento sustentável, equitativo e duradouro. Desse modo, é possível uma espistemologia capaz de fundamentar as transformações do conhecimento relativo à questão ambiental, partindo de um enfoque “prospectivo orientado para a construção de uma racionalidade social, aberta a diversidade, as interdependências e a complexidade, e oposto a racionalidade dominante, com tendência a unidade da ciência e homogeneidade da realidade”168. O mercado e o sistema político-social apresentam muitas falhas, entre as quais se destaca a falta de adequação à realidade ambiental. Assim, as externalidades são representadas pelos custos, benefícios ou implicações que as atividades de um determinado ente impõe a outrem ou à coletividade, sem que sejam incorporados às suas próprias unidades. Os custos da degradação ambiental ainda não foram computados para o mercado, nas decisões econômicas, no comércio nem no governo. Assim, computar essas externalidades nos custos de produção seria uma alternativa importante para a correção necessária aos sistemas de mercado e para não incentivar atividades ecologicamente danosas. 167 BENJAMIN, Antonio Herman. Direito, água e vida. Congresso Internacional de Direito Ambiental. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. 2v. p.678. 168 LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2006, p.110. 70 A poluição, com a divulgação das suas consequências pela ciência ecológica, passou a ser entendida como custo, um custo de produção, as chamadas externalidades negativas ou custos marginais dos produtos. Neste caso, a pergunta que se coloca é a seguinte: Quem paga esta fatura ambiental169? Os consumidores, em razão do que pode se considerar um interesse não econômico, o interesse em participar de uma boa causa? Os produtores, pelo pagamento de uma taxa? Precisa-se do comprometimento do Estado de forma a garantir um instrumental que viabilize a realização dos princípios ambientais, visando à melhoria da qualidade de vida e do meio ambiente e ao comprometimento da sociedade, a sua destinatária final. “A qualidade de vida está necessariamente conectada com a qualidade do ambiente, e à satisfação das necessidades básicas, com a incorporação de um conjunto de normas ambientais para alcançar um desenvolvimento equilibrado” 170, incluindo também a cooperação, a solidariedade, a participação, conformando interesses sociais. Observa-se na prática um alheamento da sociedade civil quanto à conscientização ambiental e a uma participação consensual, praticamente inexistindo espaço para decisão, a qual sempre pertence a alguém que exerce autoridade. Fora de dúvida, se existissem essas possibilidades para opinar e decidir haveria avanços na gestão ambiental. Provavelmente, um dos motivos desse distanciamento da sociedade sejam os resquícios de uma cultura política brasileira de tradição centralizadora e patrimonialista. Os princípios do direito ambiental são importantes para a compreensão e aplicação correta visando à efetiva tutela jurídica ambiental, porque sinalizam efeitos quanto às normas jurídicas do sistema. Logo, o estudo dos princípios possui importância prática por proporcionar uma visão global do sistema e elementos pragmáticos na solução de casos concretos. 169 GARCIA, Maria da Glória F.P.D., O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p.171. [Grifo nosso]. 170 LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2006, p. 149. 71 2 GESTÃO DAS ÁGUAS NO BRASIL Para sintetizar os principais aspectos tratados neste trabalho relacionados com os RH analisam-se a gestão das águas no Brasil, a evolução dos modelos de gerenciamento das águas e o início da gestão dos RH no Brasil. O presente capítulo propõe o estudo da Constituição Federal de 1988 sob o enfoque dos riscos ambientais, pela sua fundamental importância. A abordagem da análise do risco embora seja tratada especificamente na área das engenharias, com conceitos, técnicas, métodos e princípios próprios, neste trabalho será demonstrado sob a ótica jurídica, especificamente como instrumento de gestão. As informações adequadas são importantes para uma boa administração dos RH mas apenas isto não basta. Um bom gestor deve ter uma compreensão integral e bem contextualizada para auxiliar na tomada de decisão. No âmbito dos RH, os riscos ao meio ambiente urbano, tais como enchentes, poluição, proliferação de doenças de veiculação hídrica, escassez de água para o abastecimento, revelam a fragilidade de um sistema com um gerenciamento eficaz das águas. A inserção da ideia de risco no ordenamento de um Estado visa à proteção ambiental inclusive contra eventos hídricos indesejados. Tomar uma decisão consiste em escolher a melhor alternativa de acordo com critérios estabelecidos, a partir de uma certa quantidade de informações, com o propósito de atingir o objetivo determinado. No Brasil, o início da consolidação de um Sistema Nacional de Gestão dos RH ocorreu com a edição das portarias interministeriais dos anos de 1978 e 1979, “as quais recomendaram a classificação e o enquadramento das águas do país, e criaram e regulamentaram o Comitê Especial de Estudos Integrados de Bacias Hidrográficas, o CEEIBH”171. Assim, neste período iniciou-se o debate em torno da gestão hídrica por bacia hidrográfica e da criação de vários comitês de bacia. 171 CARRERA-FERNANDEZ, JOSÉ. Economia dos recursos hídricos. Salvador: Eduiba, 2002. p.77. 72 A política ambiental brasileira durante muito tempo ocupou um lugar secundário e limitado, retardando a mudança de paradigma da gestão dos RH de um sistema “setorial, local e de respostas a crises para um sistema integrado, preditivo e em nível de ecossistema”172. Ferreira destaca um aspecto fundamental da gestão ambiental no país: Fica evidente no Brasil, portanto, uma grande diferença entre a realidade e a retórica: a legislação ambiental acompanha a experiência internacional e possui novos instrumentos extremamente sofisticados. Entretanto, as 173 condições de real aplicação são ainda bastante restritas . A preocupação com os impactos ambientais resultantes da ação humana no ambiente passou a merecer maior atenção há poucos anos, motivada pela queda na qualidade de vida em muitas regiões do planeta. Apesar de muita coisa ser feita em prol da conservação dos recursos naturais e do seu uso eficiente e racional, os desafios e problemas ambientais ainda são enormes e ameaçadores. A água, que antes era considerada inesgotável, passou a ser tratada com maior interesse pelo ser humano. A partir daí admite-se a mudança na maneira de tratar os RH, incluindo a necessidade da gestão dos RH. Antigamente, os planos de gestão de bacias hidrográficas utilizavam, primordialmente, aspectos quantitativos, ao passo que os aspectos qualitativos eram secundários. Com a intensidade dos problemas ambientais, essa situação se alterou: A crescente demanda de água e a multiplicidade de seu uso tem provocado, em grande parte, crises de escassez e conflitos de interesse, competição institucional, perturbações sociais e ate obstáculos ao crescimento econômico e a preservação ambiental, resultando, daí, a necessidade de gerenciamento dos RH, sob os aspectos qualitativos e 174 quantitativos . Assim, a gestão é considerada de forma ampla, abrigando todas as atividades, incluindo o gerenciamento, que é considerado uma atividade de governo. 172 TUNDISI, José Galizia. A água no século XXI: Enfrentando a escassez. São Carlos: RiMa, 2005. FERREIRA, Leila. C. Os atores e as instituições na definição da política ambiental em São Paulo. A questão ambiental, sustentabilidade e políticas públicas no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. p.69. 174 CAMPOS, STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.127. 173 73 Para Grigg a definição de gerenciamento de RH permite identificar o sujeito, o objeto e a ação. O gerenciamento pode ser definido: como sendo a aplicação de medidas estruturais e não estruturais para controlar os sistemas hídricos, naturais e artificiais, em benefício humano e atendendo a objetivos ambientais. As ações estruturais são aquelas que requerem a construção de estruturas, para que se obtenham controles no escoamento e na qualidade das águas, como a construção de barragens e adutoras, a construção de estações de tratamento de água etc. As ações não-estruturais são programas ou atividades que não requerem a construção de estruturas, como zoneamento de ocupação de solos, 175 regulamentos contra desperdício de água etc. Dessa forma, a sociedade que atua sobre os sistemas hídricos identifica-se, na definição de Grigg, como sendo o sujeito; os sistemas hídricos, naturais e artificiais são objetos da gestão, e as ações são estruturais e não estruturais, executadas pela sociedade na administração das águas e do meio ambiente. Do ponto de vista científico água e vida são inseparáveis176. A água é um recurso indispensável à vida humana e afeta as diferentes áreas de interesse da sociedade e dos Estados (ambiental, social e econômica). Assim, a gestão deste recurso é um instrumento fundamental para o adequado uso dos RH. Conforme destaca Lanna, a gestão das águas é uma atividade analítica e criativa voltada a formulação de princípios e diretrizes, ao preparo de documentos orientadores e normativos, a estruturação de sistemas gerenciais e a tomada de decisões que tem por 177 objetivo final promover o inventário, uso, controle e proteção dos RH . Desse modo, fazem parte dessa atividade a Política das Águas, um conjunto consistente de princípios doutrinários relacionados à regulamentação ou modificação nos usos, controle e proteção das águas; o Plano das Águas, um estudo prospectivo que busca adequar o uso, o controle e o grau de proteção das águas em uma Política das Águas, e, finalmente, o gerenciamento das Águas, que envolve o 175 GRIGG, Neil. Water resources management: principles, regulations and cases. New York: McGraw-Hill, 1996, 540 p. 12. 176 DEMOLINER, Karine Silva. Água e saneamento básico: regimes jurídicos e marcos regulatórios no ordenamento jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.33. 177 LANNA, Eduardo Antonio. Sistemas de Gestão de Recursos Hídricos. Santa Maria: Pallotti, 1990, p.23. 74 conjunto de ações governamentais destinadas a regular o uso e o controle das águas e a avaliar a conformidade da situação corrente com os princípios doutrinários estabelecidos pela Política das Águas. As ações governamentais são refletidas através das leis, decretos, normas e regulamentos vigentes. Como resultados dessas ações, fica fixado o que é denominado Modelo de Gerenciamento das Águas, entendido como a configuração administrativa adotada na organização do Estado para gerir as 178 águas. O Sistema de Gerenciamento das Águas é um conjunto de organismos, agências e instalações governamentais e privadas estabelecidos com o objetivo de executar a Política das Águas através do Modelo de Gerenciamento das Águas adotado, tendo por instrumento o Planejamento das Águas. Existem diversas entidades federais, estaduais e municipais com atribuições de aplicar os instrumentos de gerenciamento. Os mais importantes instrumentos da Política Nacional de RH estão previstos no art. 5º da Lei 9.433/97179, conforme Hartmann, em primeiro lugar, deverão ser elaborados Planos de RH, tanto na esfera das bacias quanto nos níveis estadual e federal. Nestes planos elaborados a longo prazo deverão ser considerados, dentre outras coisas, a evolução demográfica e a estrutura econômica futuras de uma determinada região, e, com isso, a relação esperada entre oferta e demanda de água, para se poder 180 identificar, a tempo, possíveis conflitos que estejam por vir . Nesse contexto, outros instrumentos para administração dos RH são: o enquadramento dos corpos de água em classes de qualidade, a outorga de direito de uso da água, a cobrança e um Sistema de Informações responsável pela coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de informações sobre RH e fatores intervenientes em sua gestão. No caso das águas “a competência é repartida entre todas as esferas (União, Estados, Municípios e Distrito Federal),181visando a uma melhor administração dos bens públicos. Entretanto, essa estrutura organizacional e legal, atualmente, forma 178 LANNA, Eduardo Antonio. Sistemas de Gestão de Recursos Hídricos. Santa Maria: Pallotti, 1990, p.24. 179 Art. 5- São instrumentos da Política Nacional de RH: I- os Planos de RH; II- o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água; III- a outorga dos direitos de uso de RH; IV- a cobrança pelo uso de RH; V- a compensação de municípios; VI- o Sistema de Informações sobre RH. 180 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010. p.95. 181 DEMOLINER, Karine Silva. Água e saneamento básico: regimes jurídicos e marcos regulatórios no ordenamento jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.33. 75 uma administração desarticulada, organizada por usos, o que dificulta o uso múltiplo e integrado dos RH, exigindo aprimoramentos. A água, por possibilitar a realização de simulações, tem na gestão dos RH pautada nas bacias hidrográficas instrumento de grande relevância, tanto no aspecto econômico como no aspecto socioambiental. Com base em informações em torno do uso, apropriação, poluição, das características da bacia e do corpo d’água, é possível a reprodução do funcionamento ambiental e hidráulico. É possível, ainda, com tais análises técnicas iniciais, supor o comportamento futuro dos investidores em torno de determinada área e, ainda, as possíveis consequências daí advindas para as populações que a habitam182. Com a evolução de alguns comitês de bacias, a conclusão de estudos em torno das bacias e a classificação das águas nacionais, ocorridos na década de 1980, e, por fim, com o advento da Constituição Federal de 1988, consolidam-se as bases para a inserção de um novo modelo de gestão de RH no país: o modelo sistêmico de integração participativa183. Assim, este foi o primeiro modelo de gerenciamento, posteriormente serão tecidas breves considerações sobre outros dois modelos. 2.1 O INÍCIO DOS PLANOS DE GESTÃO DE ÁGUAS NO BRASIL O início da nova política de águas surge na Associação Brasileira de RH, especificamente com a Carta de Foz de Iguaçu, no VII Simpósio Brasileiro de RH, em 1989. “Os princípios da carta de Foz de Iguaçu apresentavam a forte influência do modelo francês e incorporavam os princípios da bacia hidrográfica como unidade de gestão, do usuário-pagador e da indissociabilidade de qualidade e quantidade”184. No contexto estadual, São Paulo e Ceará foram os estados que começaram a desenvolver planos estaduais de bacia, antecipando-se em relação aos demais nos 182 BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: <www.bndes.gov.br/conhecimento/revista/rev806.pdf>. Acesso em: 06 abr. 2007, p. 09-12. 183 Ibidem, loc. cit. 184 CAMPOS, STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003, p. 63-64. 76 modelos de gerenciamento. No contexto federal, as iniciativas acontecem após o avanço significativo dos estados nos processos de gestão. No que diz respeito ao Rio Grande do Sul, a Constituição Estadual de 1989, art. 171,185 e a Lei 10.350 de 30 de dezembro de 1994186 estabeleceram a gestão das águas do seu domínio. O art. 1º187 desta lei expressa os objetivos e princípios, como a gestão das águas por intermédio de um Sistema Estadual de RH (não por um órgão específico e centralizado) e a adoção da bacia hidrográfica como unidade básica de planejamento e intervenção, priorizando o uso da água para o abastecimento da população. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) desenvolve suas atividades desde junho de 1998; constitui-se em um colegiado que desenvolve regras de mediação entre os diversos usuários da água, sendo um dos grandes responsáveis pela implementação da gestão dos RH no País. Possui como competências, dentre outras, analisar propostas de alteração da legislação pertinente a RH; estabelecer diretrizes complementares para implementação da Política Nacional de RH; promover a articulação do planejamento de RH com os planejamentos nacional, regionais, estaduais e dos setores usuários; arbitrar conflitos sobre RH; deliberar sobre os projetos de aproveitamento de RH cujas repercussões extrapolem o âmbito dos estados em que serão implantados; aprovar propostas de instituição de comitês de bacia hidrográfica; estabelecer critérios gerais para a outorga de direito de uso de RH e para a cobrança por seu uso; e aprovar o Plano Nacional de RH e acompanhar sua execução188. 185 Art. 171 Fica instituído o sistema estadual de RH, adotando as bacias hidrográficas como unidades básicas de planejamento e gestão, observados os aspectos de uso e ocupação do solo, com vista a promover: I- a melhoria da qualidade dos RH do Estado; II- o regular abastecimento de águas as populações urbanas e rurais, as indústrias e aos estabelecimentos agrícolas. 186 RIO GRANDE DO SUL, Lei nº 10.350, de 30 de dezembro de 1994. Institui o Sistema de Recursos Hídricos, regulamentando o art. 171 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://sema.rs.gov.br.Acesso em 07mai.2010. 187 Art. 1º A água é um recurso natural de disponibilidade limitada e dotado de valor econômico que, enquanto bem público de domínio do Estado, terá sua gestão definida através de uma Política de RH, nos termos desta Lei. Parágrafo único- Para os efeitos desta Lei, os RH são considerados na unidade do ciclo hidrológico, compreendendo as fases aérea, superficial e subterrânea, e tendo a bacia hidrográfica como unidade básica de interve nção. 188 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Disponível em: http://www.cnrh-srh.gov.br/. Acesso em: 12 mai. 2009. 77 O Sistema Estadual de Gerenciamento de RH (SERH) vem sendo implementado nas 24 bacias hidrográficas do estado pela criação de comitês de gerenciamento de bacias hidrográficas, pela gradativa implementação dos instrumentos de planejamento (Planos de Bacia e Plano Estadual) e gestão (outorga, tarifação e rateio de custos) previstos na legislação. O Rio Grande do Sul possui um Conselho de RH que divide o estado, para efeitos de gerenciamento de bacia hidrográfica, em três regiões hidrográficas: região do Rio Uruguai, do Jacuí-Guaíba e das bacias litorâneas e lagoas189. Conforme o art. 5º da Lei 10.350/94 integram o Sistema de RH o Conselho de RH, o Departamento de RH e as Agências de Região Hidrográfica. O Conselho de RH é composto pelos Secretários de Estado, três representantes de cada região hidrográfica, escolhidos pelos seus respectivos comitês, dois representantes do Sistema Nacional de RH e dois do Sistema Nacional de Meio Ambiente. A outorga é dada pelo Departamento Estadual de RH 190 . O DRH, que é o órgão de integração do Sistema previsto pela lei 10.350/94, deve participar de todos os comitês, com representação nos mesmos. Além disso, cada comitê deverá encaminhar sua proposta de Plano de Bacia ao DRH, para que este realize a compatibilização de todas com os planos e diretrizes setoriais do Estado. Posteriormente, o DRH deverá encaminhar a proposta de Plano Estadual de Recursos Hídricos aos comitês, para a manifestação, antes do mesmo ser apreciado pelo Conselho de RH. O Conselho de RH (CRH) é a instância deliberativa superior do Sistema. Cabe-lhe decisão global sobre os RH no Estado, como o Plano Estadual, as relações com os órgãos federais e a atuação como instância superior de decisão sobre conflitos de usos da água no Estado. 189 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p. 100. 190 Ibidem. 78 2.2 EVOLUÇÃO DOS MODELOS DE GERENCIAMENTOS DAS ÁGUAS O desenvolvimento dos mecanismos institucionais e financeiros de gerenciamento das águas ocorrem em três fases, nas quais se percebe que “os modelos gerenciais são cada vez mais complexos, mas que, não obstante, possibilitaram uma abordagem mais eficiente do problema: o burocrático, o econômico-financeiro e o sistêmico de integração participativa”191. São modelos de gerenciamentos que refletem a configuração administrativa adotada na organização do Estado para gerir as águas. É de salientar que o início, no Brasil, da sua história em torno da gestão de seus RH deu-se na década de 1930, com a criação da Diretoria de Águas, vinculada ao Ministério da Agricultura. Em síntese, o histórico da gestão dos RH no país divide-se nas três fases distintas dos modelos gerenciais acima citados. A seguir serão tratados os modelos e suas principais características, de maneira que possam colaborar para uma melhor compreensão da gestão das águas. 2.2.1 Modelo burocrático O modelo burocrático começou a ser implantando no final do século XIX, tendo como marco referencial brasileiro o estabelecimento do Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 1934). O enfrentamento da problemática da água é priorizado através da produção normativa, com o poder tendendo a concentrar-se em entidades públicas, de natureza burocrática. Este modelo apresenta como principais características a racionalidade e a hierarquização. Para instrumentalização desse processo, em face da complexidade e abrangência dos problemas das águas, e gerada uma grande quantidade de leis, decretos, portarias, regulamentos e normas sobre uso e proteção do ambiente, alguns dos 192 quais se tornam inclusive objeto de disposições constitucionais . Como consequência dessa instrumentalização, “a autoridade e o poder tendem a concentrar-se gradualmente em entidades públicas, de natureza 191 LANNA, Eduardo Antonio. Sistemas de Gestão de Recursos Hídricos. Santa Maria: Pallotti, 1990, p. 24. 192 OLIVEIRA, Celmar Correa de. Gestão das águas no estado federal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. p.53. 79 burocrática, que trabalham com processos casuísticos e reativos193”. Com esse propósito, os processos aprovarão concessões de uso, licenciamento de obras, ações de fiscalização, de interdição e demais atos formais previstos nos níveis hierárquicos. Zilda Maria Ferrão Borsoi destaca que o período burocrático vinculava à gestão “o cumprimento estrito de variadas normas atinentes à temática hídrica; era o Poder Público o único apto a decidir as questões de tal seara e, em sua maioria, resolvia os conflitos que surgiam com a edição de novas regras” 194. Desse modo, prevaleciam o excesso de produção normativa, a centralização decisória e a pouca eficiência da gestão decorrente desse engessamento no sistema. Para Lanna, uma crítica a esse modelo consiste na excessiva formalidade: em detrimento da percepção dos elementos dinâmicos, ocasionando uma visão fragmentada do processo, desempenho restrito ao cumprimento de normas, dificuldade de adaptação as mudanças, centralização do poder decisório, padronização no atendimento das demandas, excesso de 195 formalismo e desatenção ao ambiente externo . Assim, a autoridade pública torna-se pouco eficiente e vulnerável à pressão dos interessados em outorgas, concessões, autorizações e licenciamentos. O efeito dessa falta de adequação é o “surgimento e agravamento dos conflitos de uso e proteção das águas, que realimentam o processo de elaboração de instrumentos legais”196, sobretudo por não possuírem a estratégia da negociação. Consequentemente, a administração pública passa de um quadro de atuação ineficiente para outro de total inoperância. Nessa situação contraproducente, remete-se a culpa do fracasso do modelo à lentidão da justiça e à inoperância do poder público. Para Pruski a lacuna desse modelo encontra-se nos casos de planejamento estratégico, na negociação política direta e nos casos de geração de recursos financeiros para seu funcionamento. São deficientes nos casos de licenciamento ambiental, resolução de conflitos, que poderão exigir mais instrumentos legais adicionais, inoperantes quase sempre, e na aplicação do poder de polícia, gerador de conflitos, na maioria 193 LANNA, Eduardo Antonio. Sistemas de Gestão de Recursos Hídricos. Santa Maria: Pallotti, 1990, p. 24. 194 BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: <www.bndes.gov.br/conhecimento/revista/rev806.pdf>. Acesso em: 06.04.09, p. 09/12. 195 LANNA, op. cit., p.23. 196 Ibidem, p.17. 80 dos casos. Esse modelo pouco usa o processo de negociação, pelas suas 197 limitações . Em relação à legislação anterior, afirma que não foi resultado da incompetência dos administradores, juristas e legisladores mas sobretudo da limitação do processo de negociação. [...] Por outro lado, a dificuldade em se aplicá-lo não resulta unicamente da incompetência ou da venalidade da administração pública, ou da lentidão da justiça, mas das limitações do próprio modelo. Há necessidade, portanto, de um modelo de gerenciamento das águas operacionalizado e 198 instrumentalizado por uma legislação efetiva . Assim, o modelo burocrático limitado é à resolução dos conflitos pela ausência de uma negociação estratégica, fundamental para um sistema atuante. Além disso, estancar as crises e solucionar temporariamente os problemas do setor pouco contribui para um eficiente gerenciamento das águas. Outro fator inexistente neste modelo é a geração de recursos financeiros para seu funcionamento; portanto, o modelo não permite o desenvolvimento de uma ação integrada. 2.2.2 Modelo econômico-financeiro (custo-benefício) O modelo econômico-financeiro tem por fundamento a política de um economista americano, podendo ser considerado como um desdobramento da política econômica preconizada por John Maynard Keynes, que destacava a relevância do papel do Estado como empreendedor, utilizada na década de 1930 para superar a grande depressão capitalista e que teve como uma das consequências a criação, nos Estados Unidos, da Tennessee Valley Authority, em 1933, como a primeira Superintendência de Bacia Hidrográfica. E também fruto do momento de glória da análise custo-benefício, cujas bases de aplicação das águas foram estabelecidas pelo Food Control Act, novamente nos Estados Unidos, em 1936. No Brasil, tem como marco de sua aplicação a criação, em 1948, da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF). Conforme Pruski, 197 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p.63. 198 LANNA, Eduardo Antonio. Sistemas de Gestão de Recursos Hídricos. Santa Maria: Pallotti, 1990, p. 24. 81 as formas de negociação deste modelo são a político-representativo e a econômica, geralmente insensíveis aos problemas locais. Em geral, visam promover o desenvolvimento regional ou nacional, por meio de instrumentos econômicos e financeiros aplicados pelo poder público, as chamadas Superintendências de Bacia Hidrográfica, subordinadas a um Ministério ou uma Secretaria setorial, o que dificulta sua ação multissetorial na bacia 199 hidrográfica . O modelo econômico-financeiro utiliza instrumentos econômicos e financeiros administrados pelo poder público, visando à promoção do desenvolvimento econômico e ao cumprimento das normas legais. Duas orientações podem ser observadas: uma baseada em prioridades setoriais do governo e a outra que busca o desenvolvimento integral e, portanto, multissetorial da bacia hidrográfica. Este modelo está sendo pouco comum em virtude de a própria organização estatal ser baseada em âmbitos econômicos. Tende a subdimensionar a questão ambiental ou a superdimensioná-la no processo do planejamento integrado da bacia. “Possui funções deliberativa, normativa e executiva. Apresenta fontes específicas de financiamento, mas não prevê a negociação política direta. Não possui órgãos colegiados”200. Uma crítica a esse modelo é que adota a concepção relativamente abstrata para servir de suporte a solução de problemas contingenciais: o ambiente mutável e dinâmico exige grande flexibilidade do sistema de gerenciamento para adaptações frequentes e diversas. O gerenciamento de águas necessita de flexibilidade para proteção das águas, ou seja, de um modelo de gerenciamento que proporcione o desenvolvimento econômico integral, socialmente eficiente e sustentável. Apesar de ainda não ser o modelo ideal, representa um avanço em relação ao anterior, já que, pelo menos setorial e circunstancialmente, possibilita a realização do planejamento estratégico da bacia e canaliza recursos financeiros para a implantação dos respectivos planos diretores. 2.2.3 Modelo sistêmico de integração participativa 199 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000. p.63. 200 Ibidem, p.64. 82 Este modelo permite a deliberação por meio dos colegiados que o compõem, “no âmbito dos RH o modelo ainda não atingiu o nível de atuação dos colegiados que lidam com meio ambiente, a grande esperança é a cobrança pelo uso das águas”201. Dessa forma, percebe-se que no âmbito dos RH ainda não atingiu o nível dos colegiados que trabalham com o meio ambiente. Além disso, constitui-se num conceito moderno de gestão das águas, sendo objetivo estratégico para reformulações institucionais ou legais. Caracteriza-se pela existência de uma estrutura sistêmica e pela adoção de três instrumentos: Planejamento estratégico por bacia hidrográfica;Tomada de decisão através de deliberações multilaterais e descentralizadas – realizada por colegiados integrados por representantes do poder público, entidades comunitárias devidamente instituídas e usuários, com paridades de representação. Estes colegiados analisam e aprovam os planos e programas de investimentos na bacia e utilizam, quase sempre, a negociação política direta; e Estabelecimento de instrumentos legais e financeiros – destinados a captação de recursos para implementação dos planos e programas 202 aprovados . O modelo de gestão de RH sistêmico de integração participativa surge “com a evolução de alguns comitês de bacias, com a conclusão de estudos em torno das bacias, com a classificação das águas nacionais, tudo isso na década de 80 e, por fim, com o advento da Constituição Federal de 1988”203. Este “novo modelo” não se pauta estritamente pelas normas, como estabelecia o modelo burocrático, nem privilegia apenas aspectos econômicos e setores considerados relevantes, conforme o modelo econômico-financeiro, mas inclui dois aspectos essenciais: o social e ambiental. 2.4 A BACIA HIDROGRÁFICA COMO UNIDADE FÍSICO-TERRITORIAL DE PLANEJAMENTO Um dos fundamentos da Política Nacional de RH baseia-se na bacia hidrográfica como unidade territorial para a implementação da Política Nacional de 201 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000, p.64. 202 Ibidem, p.65. 203 BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: <www.bndes.gov.br/conhecimento/revista/rev806.pdf>. Acesso em: 06.04.07, p. 09/12. 83 RH e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de RH 204: “a unidade ecológica da bacia hidrográfica [...] define-se geograficamente, como um conjunto espacial que drena as águas de superfície para uma mesma saída comum, geralmente de superfície e situada no mar”205. O gerenciamento de uma bacia hidrográfica possui entraves institucionais, em razão do grande número de órgãos que tratam dos recursos ambientais. A elaboração do processo de gestão deve ser bem articulada. Um processo de gestão, ambiental ou de RH, deve ser constituído por uma política que estabeleça as diretrizes gerais, por um modelo de gerenciamento, que estabeleça a organização administrativa e funcional necessária para tal e por um sistema de gerenciamento constituído pelo conjunto de organismos, agências e instalações governamentais e privadas, para execução da política, por meio do modelo adotado e tendo por 206 instrumento o planejamento ambiental . Destaca-se que “a bacia hidrográfica é adotada como unidade de planejamento para a qual há necessidade de se estudar o gerenciamento do recurso natural como um todo. Tem um aspecto positivo, pois a maioria dos problemas causa-efeito”207 produzidos na bacia está relacionada com o uso dos RH. Assim, a adoção da bacia mostra-se compatível com o desenvolvimento sustentável. Por outro lado, tem-se o efeito negativo dessa adoção, a qual “reside no fato de que grande parte destas reações de causa-efeito tem caráter econômico e político, que extrapola os limites da bacia hidrográfica, o que dificulta a negociação social, na maioria dos casos”208. Mesmos essas reações excedendo os limites da bacia hidrográfica, esta permanece como unidade de planejamento. A adoção da bacia hidrográfica como unidade físico-territorial de planejamento é uma tendência em vários países, como França, Inglaterra e Alemanha, e nesse contexto internacional o Brasil certamente se insere. Assim, 204 Art. 1º, V da Lei 9.433/97. CAUBET, Christian Guy. A água, a lei, a política... e o meio ambiente? Curitiba: Juruá, 2004, p.149. 206 FREITAS, Adir José. Gestão dos recursos hídricos. Porto Alegre: Universidade, 2000, p. 5. 207 PRUSKI, Fernando Falco; SILVA, Demetrius David. Gestão de recursos hídricos. Aspectos legais, econômicos e sociais. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2000, p. 5. 208 Ibidem, p. 6. 205 84 essa forma de planejamento e gestão dos RH “transforma a cooperação Estadomunicípio, através desta interface regional, ao centro das políticas nacionais das águas e do meio ambiente”209. 2.5 A DESCENTRALIZAÇÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA Outro fundamento da Política Nacional de RH é que a gestão dos RH deve ser descentralizada e contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades. Assim, o disposto no art. 1º, inciso VI, da Lei 9.433/97210 constituise em uma regra concretizadora do princípio da participação, aplicável na gestão descentralizada dos RH por meio do Comitê de Bacia. A participação popular da sociedade civil é condição essencial para a plena eficácia das normas de proteção ao meio ambiente e da gestão eficaz dos RH proposta pela Lei 9.433/97. A descentralização da gestão implica a delegação do poder decisório sobre os RH, mais precisamente no que tange às decisões político-administrativas. Em contrapartida, na medida em que permite a oitiva de mais variadas opiniões, pode a gestão levar à problemática do conflito de interesses entre os gestores. Assim, para que a ideia de descentralização da gestão funcione adequadamente no universo prático, é necessário que sejam bem delineados os temas atinentes a cada espécie de gestor (comunidades, poder público, usuários)171. O direito à informação, no âmbito dos RH, correlato ao da participação na sua instrumentalização, corporifica-se no art. 5º da Lei 9.433/97, que prevê nos seus incisos os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, devendo ser destacado o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos211. Conforme destaca Paulo José Leite Farias, “o dever de preservação e defesa dos RH, imposto a coletividade, revertido em direito de participação, traz como 209 CAMPOS, STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.128. 210 Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. 211 Nos termos do art. 25 da mesma lei: “O sistema de Informação sobre Recursos Hídricos é um sistema de coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de Informações sobre recursos hídricos e fatores intervenientes em sua gestão”. 85 correlato o direito à informação, – qualitativamente satisfatória”212. Com abordagem diversa, em relação ao debate sobre a participação, em particular dos tomadores de decisão, Christian Guy Caubet afirma que [...] para muitos deles, por exemplo, é quase auto-evidente que a participação, em matéria de gestão dos RH, só pode ser oferecida a pessoas que tenham conhecimentos técnicos razoáveis sobre os problemas a serem resolvidos. Não haveria participação com base na cidadania em si, e sim “com base na cidadania responsável”: das pessoas que entendem 213 das coisas . A gestão dos RH numa bacia hidrográfica deve buscar metas mais integrais e sistêmicas. Para que isso seja possível, as discussões e decisões devem ser compartilhadas com um maior número de pessoas e com conhecimento dos efeitos interativos de cada decisão tomada no comitê. Na prática, entretanto, esse processo não é fácil de alcançar, pois os sistemas de governabilidade e as instituições são altamente setorizados e preocupados em defender suas posições e interesses. Para Christian Guy Caubet, “várias disposições legais estabelecem condições objetivas de confisco dos RH, em favor da gestão economicista dos problemas [...] a noção de participação [...] se traduza por diversas modalidades de exclusão”214. A importância do conhecimento científico na decisão política nos dias de hoje nasce da leitura de uma realidade feita por quem é possuidor de conhecimentos especializados, impõe-se por pressão dos fatos, compreendidos por quem tem aptidões e conhecimentos para interpretá-lo. Esta leitura e esta compreensão alertam para o “sentido dramático da evolução social, no seu relacionamento com o ambiente natural e dão conta da urgência de medidas políticas concertadas a nível global”215. É imprescindível alicerçar a decisão política no saber científico, caso se queira preservar a própria continuidade da vida em sociedade. 212 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.409. 213 CAUBET, Christian Guy. A água, a lei, a política... e o meio ambiente? Curitiba: Juruá, 2004, p.107. 214 Ibidem, p.210. 215 GARCIA, Maria da Glória F.P.D., O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 24. 86 O saber científico, pericial, de qualquer área sempre foi auxiliar necessário das decisões dos órgãos que expressam a vontade da sociedade, mas faltou a esse auxílio a “dimensão salvífica permanente” que respeita ao todo. A decisão política tem de ser cientificamente fundada, em particular “nas áreas de ponta do desenvolvimento social e nas áreas em que a questão ambiental se coloca. A complexidade da decisão intensifica-se, ao mesmo tempo que a consciência do risco que acarreta para o todo uma deficiente ou má decisão”216. Conforme Carrera e Garrido, “a grande vantagem da gestão descentralizada e participativa é que ela reduz a quantidade de decisões que precisa ser levada em consideração superior, habilitando os escalões mais elevados a tomada de decisão melhor planejada [...]217”. Na prática, essa gestão descentralizada engendra numerosas indagações: Será que todos os comitês estão suficientemente consolidados para tomar decisões, principalmente sobre temas relevantes, sem precisar de foros centralizadores de decisão? Assim, para alcançar a gestão integrada dos RH e os objetivos propostos na legislação que implantou suas políticas, é preciso implementar nos comitês de bacia hidrográfica uma prática aberta, efetiva, participativa, sustentável, comprometida. Para tanto, é importante destacar que a gestão dos RH envolve um sistema político, social e administrativo que implica a ação coletiva e participativa cada vez maior da sociedade civil para lograr o uso sustentável. Em relação à afirmação de Caubet, “de que hoje em dia, ter conhecimento específico para fazer jus à cidadania hídrica”, importa ressaltar que o saber é importante para a escolha da decisão concretizadora da justiça, pois sem ele a participação seria apenas uma opção e fruto do arbítrio. Dessa forma, não poderia haver justiça; apenas “participar” por puro arbítrio não estaria colaborando de forma responsável com uma finalidade tão importante. 216 GARCIA, Maria da Glória F.P.D., O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 25. 217 CARRERA-FERNANDEZ, José; GARRIDO, Raymundo-José. Economia dos recursos hídricos. Salvador: Ed. Edufba, 2002, p.120. 87 2.6 COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA O Comitê de Bacia Hidrográfica é um orgão de gerenciamento de RH, no qual a população e os usuários, juntamente com os órgãos do governo, interagem para gerenciar a qualidade e a disponibilidade das águas em uma determinada bacia hidrográfica. É uma entidade deliberativa com atribuições legais baseadas na Lei 9.433/97 do Governo Federal e na legislação estadual dos RH, Lei 10.350/94. Faz parte do Sistema Estadual de RH, juntamente com o Conselho de RH (CRH), o Departamento de RH (DRH), a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e as agências de regiões hidrográficas. Um comitê é criado para participar de gerenciamento dos RH na bacia hidrográfica respectiva. Ou seja, trata-se de administrar a conservação da qualidade e da quantidade da água em uma bacia hidrográfica e a melhor utilização dos RH (água e corpos de água) na bacia. Os comitês são organizados por bacias porque a bacia hidrográfica é a unidade espacial de distribuição da água na natureza. Os Comitês de Bacia Hidrográfica foram referendados pela Lei 9.433/97 para constituir o quadro institucional de gestão descentralizada e participativa. Estes órgãos, chamados costumeiramente de “parlamento das águas”, são responsáveis pela implementação da política de RH em sua respectiva bacia218. Assim, neste órgão são tomadas as decisões no âmbito de cada bacia hidrográfica, representam o primeiro nível da administração dos RH. Os comitês podem ser organizados em bacias, sub-bacia hidrográfica de tributário do curso de água principal da bacia, ou grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas, de acordo com o art. 37 da Lei das Águas. A instituição de comitês de bacia hidrográfica em rios de domínio da União será efetivada por ato do Presidente da República (p. único do art. 37 da Lei das Águas). Compete aos Comitês de Bacia estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso da água e sugerir os valores a serem cobrados (art. 38,VI, da Lei 9.433/97). 218 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto Alegre: AEBA, 2010. p.98. 88 Para os Comitês exercerem suas competências de forma mais efetiva possível contam com as Agências de Água, que exercem a função de secretaria executiva, conforme o art. 41 da Lei 9.433/97. Uma agência pode atender a um ou vários Comitês, sendo o Conselho Estadual ou Federal de RH que autoriza a sua respectiva criação (art. 42 da Lei 9.433/97). O gerenciamento das águas precisa de organismos coletivos como os comitês, porque as águas são usadas por muitos agentes de interesses diferentes e é necessário que todos participem do processo, com negociações e decisões coletivas. 2.6.1 O sistema nacional e os comitês de bacia no RS O fundamento legal dos comitês de bacias no Rio Grande do Sul é o artigo 171 da Constituição Estadual, que determina a instituição de um Sistema Estadual de RH. A Lei 10.350/94, que regulamentou esse artigo, define os Comitês de Bacias como partes indispensáveis do sistema. Também fazem parte do Sistema Estadual de Recursos Hídricos o Conselho de RH, o Departamento de RH, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental e as Agências de Região Hidrográfica. A composição de um comitê, conforme a Lei 10.350/94 se dá por representantes dos usuários de água (40% dos componentes), da população da bacia (40%) e de órgãos públicos (20%). Em relação aos usuários da água, são os indivíduos, grupos, entidades ou coletividades que utilizam a água e os corpos de água para retiradas, lançamento de resíduos ou meio de suporte de atividades de produção ou consumo. Por exemplo, os industriais, as entidades de abastecimento público, os irrigantes, etc. A população e os usuários da água de uma bacia devem ter interesse em formar um comitê e trabalhar para isso. O poder público, por intermédio de seus técnicos, deve esclarecer a importância e as funções de um comitê. Após esse trabalho preparatório, com as propostas de composição formuladas pelos usuários e pelas comunidades da bacia, o comitê poderá ser criado através de decreto pelo 89 governador. Para formar um comitê de bacia hidrográfica, do tipo previsto pela Lei 10.350/94, por exemplo, é preciso que uma bacia tenha um certo porte ou dimensão, tanto em termos geográficos, quanto socioeconômicos. Destaca-se que o comitê de bacia não possui funções executivas. O comitê é um colegiado que tem funções deliberativas e funciona como um “parlamento das águas” de uma bacia. O comitê da bacia, conforme determina a Lei 10.350/94, deve deliberar sobre o planejamento da respectiva bacia, decidindo sobre os objetivos de qualidade das águas a serem atingidos, os programas de intervenções na bacia e os esquemas de financiamento respectivos, inclusive sobre a cobrança pelos usos da água na bacia. Cabe ao comitê, ainda, manifestar-se sobre o Plano Estadual de RH e sobre o relatório anual sobre a situação dos RH no Estado. O Departamento de RH (DRH) é o órgão de integração do sistema previsto pela Lei 10.350/94, devendo participar de todos os comitês, com representação nos mesmos. Além disso, cada comitê deverá encaminhar sua proposta de Plano de Bacia ao DRH, para que este realize a compatibilização de todas com os planos e diretrizes setoriais do estado. Posteriormente, o DRH deverá encaminhar a proposta de Plano Estadual de RH aos comitês, para a manifestação, antes do mesmo ser apreciado pelo Conselho de RH. Quanto às relações entre os comitês e o Conselho de RH (CRH), assinale-se que o Conselho é a instância deliberativa superior do sistema. Cabe a este órgão a decisão global sobre os RH no Estado, como o Plano Estadual, as relações com os órgãos federais e a atuação como instância superior de decisão sobre conflitos de usos da água no estado. Na composição do CRH, os comitês de bacia têm três representantes, um para cada região hidrográfica. Na fase de implantação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, a Secretaria Executiva do CRH tem servido como apoio para a regulamentação de alguns dispositivos da lei 10.350/94 e para a formação de novos comitês. 90 Alguns comitês de bacia “foram implementados bem antes do advento da Lei 9.433/97, alguns antes mesmo da própria Constituição Federal de 1988” 219 . Embora privados de um poder efetivo e de regulamentação apropriada, os comitês tiveram um papel fundamental na disseminação da cultura da participação. Assim, “as décadas de 1970 e 1980 foram profícuas na difusão e implementação de comitês de estados separados por bacias hidrográficas, que serviram de fóruns de debates sobre a qualidade e disponibilidade de RH”220. O Comitê Sinos foi criado por decreto governamental em 17.03.1988, sendo o primeiro comitê de gerenciamento de bacia de rio estadual implantado no país. Após, em 15 de fevereiro de 1989, o decreto governamental criou o Comitê de Gerenciamento da Bacia do Rio Gravataí. Destaca-se que esses dois comitês pioneiros no Rio Grande do Sul, Sinos e Gravataí, serviram de importantes laboratórios de experiências e até hoje estão em funcionamento, apesar da precariedade, da falta de recursos e de outros problemas inicialmente existentes. Ressalta-se que “cada comitê de bacia conta com um órgão adjunto responsável pela execução administrativa que é a agência da bacia, que e responsável, dentre outras coisas, pelo recolhimento das cobranças”221. Assim, também cabe às agências de bacia a orientação do comitê sobre a política de RH e a implementação da cobrança. Existem ainda alguns casos de uma agência para diversas bacias em alguns estados No Ceará, por exemplo, um único órgão, a Companhia de Gestão dos RH(COGERH), assume a função das agências de bacia. No Rio Grande do Sul, depois de uma longa estagnação na implementação do sistema estadual de gestão dos RH, em abril de 2010 finalmente criou-se a primeira agência de uma região hidrográfica, a Agência da Região Hidrográfica da Bacia do Guaíba. A METROPLAN (Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional) exercerá as funções desta agência por um período de dezoito meses. Na bacia do Rio Paraíba do Sul, após longas 219 DEMOLINER, Karine Silva. Água e saneamento básico: regimes jurídicos e marcos regulatórios no ordenamento jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.79. 220 CANEPA, Eugenio Miguel; GRASSI, Luiz Antonio Timm. Os comitês de bacia no Rio Grande do Sul: uma experiência histórica. Porto Alegre: ABES, [s.d.]. Disponível em: http://www.abes-rs.org.br. Acesso em: 20. out. 2010. 221 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010. p.99. 91 atividades preparatórias, a AGEVAP deu início, em setembro de 2004, a 222 seus trabalhos como a primeira agência de bacia no Brasil . “O processo de planejamento moderno requer que haja participação das populações envolvidas desde os estágios iniciais. Uma das maneiras de proceder este envolvimento é a discussão com vários públicos” 223 para desenvolver o plano. Os comitês de bacia, previstos no art. 37 da Lei 9.433/97, são exemplos de foros adequados para a discussão e colaboram com uma nova política de águas. No Rio Grande do Sul, por exemplo, as bacias hidrográficas são divididas em três regiões: Guaíba, com nove comitês; Uruguai, com 11 comitês, e Litoral, atualmente com cinco comitês. Os comitês possuem órgãos de representação, órgãos de articulação, das entidades representadas e das entidades de atuação regional; órgãos específicos dos usuários e órgãos difusos referentes a toda população, e, finalmente, órgão de resolução de conflitos. A Lei n º 9.984, de 17 de julho de 2000, dispôs sobre a criação da Agência Nacional de Águas, entidade federal de implementação da Política Nacional de RH e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de RH. A ANA é uma autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, conforme art. 3º da lei supracitada. Destaca-se ainda que todos os estados brasileiros e o Distrito Federal já editaram leis referentes aos RH e aos seus órgãos gestores. Todas essas leis estaduais fundamentam-se na gestão descentralizada e participativa dos RH no nível das bacias. Existem alguns casos de divergência entre a legislação federal e a estadual, como é o caso da representação do governo, usuários e/ou sociedade civil. Há 24 Conselhos Estaduais de RH e aproximadamente, 160 comitês de bacia hidrográfica de rios de domínio dos estados, além de um Conselho Nacional de RH 222 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010. p.99. 223 CAMPOS, Nilson; STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.60. 92 com 57 membros, uma Agência Nacional de Águas, três agências de bacia (entidades delegatárias AGEIVAP/CPCJ/GUAÍBA) e oito comitês de bacia hidrográfica de rios de domínio da União. 93 2.7 O RISCO COMO INTEGRANTE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Esta seção apresenta como tema central a teoria do risco desenvolvida por Ulrich Beck. A seguir, tem como objetivo analisar os possíveis riscos ambientais na gestão dos RH, sendo um importante tema que deveria fazer parte do planejamento e da gestão dos RH. A análise do risco tem um papel imprescindível na gestão dos RH, devendo, assim, ser observado pelos gestores de água que desejam melhorar ou implantar sistemas de gerenciamento de RH. “O gerenciamento do risco pode tornar mais eficiente o uso dos RH disponíveis, incorporando-se ao processo de decisão mecanismos de otimização de comportamento perante os riscos”224. Os riscos decorrentes do desenvolvimento tecnológico e científico estão cada vez mais presentes na sociedade contemporânea, bem como sua amplitude e gravidade cada vez maiores, dentre os quais se destaca o risco ambiental. Foi esse estado de coisas que levou o sociólogo alemão Ulrich Beck, em meados da década de 1980, a utilizar a expressão “sociedade de risco”. Para o autor o risco refere-se a uma forma de “relação com o futuro”, uma espécie de simulação do futuro no presente; ainda, não é um dado existencial da sociedade. Conforme Beck, “sem dúvidas os riscos não são uma invenção dos tempos modernos. Quem, como Colombo, que deixou a descobrir novos países e continentes e aceitar riscos. Mas era de risco pessoal e não a situações de ameaça global”225, o contexto de risco nessa época tinha a conotação de coragem e aventura, não de uma possível destruição da vida na Terra. O risco era classificado como resultado da manifestação divina ou mesmo de eventos catastróficos naturais antes do século XVIII, no período anterior à sociedade industrial. A sociedade não tinha a compreensão dos riscos a que era exposta nem que muitos desses riscos decorriam da sua própria interferência e uso inadequado no meio ambiente. 224 CAMPOS, STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.151. 225 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo global. Madrid: Paidós. p. 27: sine duda, los riesgos no son un invento de la Edad Moderna. Quien, como Colon, partio para descubrir nuevos países y continientes acepto riesgos. Pero se trataba de riesgos personales, no de las situaciones globales de amenaza. 94 A sociedade de risco consiste na sociedade pós-industrial e, quando o risco passou a ser elemento estruturante desta, “resultou da confrontação com efeitos que, anteriormente eram inimagináveis e foi ampliada pela intensificação do Estado e da divulgação de informação científica que, em lugar das certezas, manifesta cada vez mais dúvidas”226. Assim, os riscos têm uma abrangência ilimitada em termos espaciais, ou seja, são globais porque podem atingir não apenas alguns países e regiões, mas todo o planeta. Assim, entre esses problemas criados pela própria sociedade, com intensas transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e ambientais, estão os danos e riscos ambientais. O paradoxo fundamental do direito ambiental consiste na antecipação dos danos futuros utilizando-se dos instrumentos principiológicos e processuais vigentes. Acontece que em muitos casos de dano, perigo ou risco ambiental não há conhecimento científico suficiente ou critério jurídico anterior para realizar sua avaliação: Para tanto, o direito ambiental deve criar um instrumental jurídico, suficientemente complexo para lidar com a incerteza das consequências futuras de determinadas atividades, com a complexidade das reações ambientais de danos presentes ou futuros e com o controle e a regulação das inovações tecnológicas. Portanto, pode-se constatar a formatação de uma justiça intertemporal, fundada em direitos e obrigações 227 intergeracionais . Dessa forma, torna-se fundamental a inserção do futuro nos processos de tomada de decisão jurídica, sobretudo nos novos direitos. O direito ambiental, conforme o art. 225 da Constituição Federal de 1988 traduz uma perspectiva singular do direito com um novo titular de direitos: as futuras gerações. Raffaele de Giorgi afirma que a estrutura da sociedade moderna é paradoxal e que hoje essa paradoxilidade se tornou tema da comunicação. Podemos dizer que esta se tornou visível e que constitui uma referência inevitável do agir, do observar, do descrever. Esta paradoxilidade pode ser assim indicada: na sociedade contemporânea, reforçam-se simultaneamente segurança e insegurança, determinação e indeterminação, 226 FREITAS MARTINS, Ana Gouveia e. O princípio da precaução no direito do ambiente. Lisboa: Associação Acadêmica d a Faculdade de Direito, 2002, p.14. 227 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p.46. 95 estabilidade e instabilidade. Assim podemos dizer que o futuro parece incerto porque as possibilidades de agir e a sua complexidade 228 desenvolveram-se ao mesmo tempo e são contingentes. Os riscos gerados atualmente não se limitam à população apenas desta época, na medida em que as próximas gerações também serão afetadas. Segundo Habermas, a ação da sociedade civil global não terá, certamente, efeitos imediatos nos governos das grandes potências. O que, entretanto, obtemos desse panorama é uma consciência mais aguda dos riscos globais, de cujo impacto quase ninguém escapará se essas tendências globais não forem bloqueadas e revertidas. Em vistas de inúmeras forças de desintegração, dentro e além das sociedades nacionais, existe este fato que aponta na direção oposta: do ponto de vista de um observador, todas as sociedades já são parte e parcela de uma comunidade de riscos partilhados percebidos como desafios para a ação política 229 cooperativa . A transição do período industrial da Modernidade ao período de risco ocorre de forma “não desejada, não percebida e compulsiva”, como consequência do dinamismo autonomizado da modernização. A sociedade de riscos não é uma opção a ser escolhida ou rejeitada no calor das lutas políticas: Surge na continuidade dos processos de modernização autônoma, que são cegos e surdos a seus próprios efeitos e ameaças. De maneira cumulativa e latente, estes últimos produzem ameaças (...) que questionam e finalmente 230 destroem as bases da sociedade industrial . Essa modernização traz de forma oculta a “sociedade de risco” ao incorporar processos industriais que causam danos ambientais e outros riscos. Mesmo a sociedade de risco não sendo “desejada, percebida ou compulsiva”, decorre de processos de modernização autônomos, cegos e surdos para suas consequências, mas que foram aceitos e privilegiados com fundamento em determinados interesses. A sociedade de risco não é decorrente de uma escolha consciente, mas resultado de 228 DE GIORGI, Raffaele. O risco na sociedade contemporânea, p.50. HABERMAS, Jurgen. The European Nation-State – Its Achievements and Its Limits. On the Past and Future of Sovereignty and Citizenship”, in: G. Balakrishnan (org.), Mapping the Nation, Londres, Verso, 1996. 230 GIDDENS, A., BECK, U. & LASH, Modernizacion reflexiva. Política, tradicion y estética en el orden social moderno. Madrid: Alianza Universidad 1997.p.19. Surge como continuacion de procesos de modernización autonomizados que son ciegos y sordos a sus propios efectos y amenazas. De forma acumulativas y latente, estos procesos producen amenazas que cuestionan y, finalmente, destruyen los fundamentos de la sociedad industrial. 229 96 ações e dos excessos da sociedade industrial, os quais ainda não podem ser eliminados por falta do conhecimento das suas causas. Assim, a sociedade de risco surge como uma continuação dos processos de modernização exposta a níveis maiores ou menores de risco, traduzindo-se em uma sociedade reflexiva. A modernização reflexiva “significa autoconfrontação com os efeitos da sociedade de risco que não podem ser tratados e assimilados no sistema da sociedade industrial231, conforme os padrões institucionais desta. A sociedade contemporânea é marcada pela incerteza; envolvida em um processo de transformação, depara-se com os riscos da nova ordem internacional, pois enfrenta as forças dominantes tanto do Estado como do mercado. Nesse atual modelo econômico, as causas dos riscos e perigos são diversas, “o que lhe dá contornos de uma multidimensionalidade, circunstância que acentua as dificuldades das diversas instâncias de organização normativa em lidar com problemas dessa ordem”232. O risco passa a aceitar uma nova concepção, que é a incerteza. Assim, a plausibilidade torna-se uma nova característica do risco. Pode-se afirmar que a origem desta incerteza contida no risco está nas dúvidas expostas pela própria ciência. Beck destaca que a sociedade atual caracteriza-se pela existência de riscos, os quais diferenciam-se dos perigos (desastres naturais ou pragas de outras épocas), aos quais os seres humanos sempre estiveram submetidos. A noção de risco (risco industrial) e artificial, no sentido de que se relaciona com a ação do homem sobre a natureza e vinculadas, portanto, a uma ação deste. Perigos são as circunstâncias fáticas, naturais ou não, que sempre ameaçaram as sociedades humanas, como por exemplo, 233 terremotos ou a seca . 231 GIDDENS, A., BECK, U. & LASH, Modernizacion reflexiva. Política, tradicion y estética en el orden social moderno. Madrid: Alianza Universidad 1997. p.19: “autoconfrontacion con aquellos efectos de la sociedad del riesgo que no pueden ser tratados y asimilados dentro del sistema de la sociedad industrial”. 232 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na sociedade de risco. São Paulo: Forense, 2002, p. 18. 233 HAMMERSCHMIDT, Denise. O risco na sociedade contemporânea e o princípio da precaução no direito ambiental, p.5. 97 Apesar de a diferença entre risco e perigo se cingir ao ponto de observação (interno ao sistema, no caso de risco, e externo, no do perigo), tem-se que o que é perigo para um observador (vítima) é risco para outro (agente) 234. “As incertezas subentendem, geram ou implicam em riscos, entendendo-se por risco a probabilidade ou possibilidade da ocorrência de valores, eventos ou fenômenos indesejáveis ou adversos235”. Dessa forma, o gestor de RH em suas análises, observações e medidas convivem com diversos tipos de riscos. Outrossim “para alguns teóricos o risco tornou-se mais globalizado, menos identificável, mais sério nos seus efeitos e, consequentemente, menos facilmente manejável, originando uma maior ansiedade na população”236. Para outros, o conceito de risco ganhou importância nos tempos recentes em razão do aumento da dependência da sociedade em face do futuro e das tomadas de decisão que agora dominam as ideias sobre o futuro, nas quais a noção de risco é uma palavra-chave. A sociedade de risco reflete o desenvolvimento da modernidade. Dessa forma, a sociedade deve se remodelar para enfrentar essa realidade. As escolhas deverão ser feitas na busca de um risco aceitável. A participação do cidadão nesse processo de escolhas é condição fundamental em uma sociedade democrática. O risco seria resultante das decisões tomadas com o objetivo de controlar as ameaças à sociedade de risco. Concluímos, assim, que “a par da globalização econômica e cultural, e também característica dos nossos tempos à globalização dos riscos. E ela que permite distinguir a “sociedade de risco” de hoje da de ontem”237. A água é um território cheio de riscos. Os riscos não são apenas de falta, poluição e desperdício, mas, uma vez mais (após um período em que a água foi reconhecida como um bem público e os riscos foram pelo menos atenuados), de ressurgente desigualdade, 234 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.63. 235 CAMPOS, Nilson; STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.151. 236 BECK, U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage Publications, 1992. 237 ANTUNES, Tiago. O ambiente entre o direito e a técnica. Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2003. p.11. 98 injustiça, conflito armado e discórdia entre as comunidades humanas e entre as gerações238. 2.7.1 Riscos concretos e riscos abstratos Nesta seção são abordados os riscos concretos e abstratos. A proliferação dos riscos ambientais reflete a ingerência ambiental durante anos, passando a receber tutela e controle jurídico. Há uma relação direta entre gestão ambiental e a saúde pública. A escassez da água, a nível mundial, aumenta a relevância do direito ambiental, sobretudo, na área dos RH. Assim, pequisar os riscos inerentes mesmo a partir da possibilidade de comprometimento dos RH, torna-se relevante diante da escassez deste recurso essencial à vida humana. Os riscos ambientais constituem-se em preocupações da sociedade moderna. Os elementos motivadores dessa priorização são o impacto potencial do desenvolvimento tecnológico, as mudanças do estilo de vida e o aumento da percepção para os perigos à saúde e a segurança. A partir da constatação de que existem duas espécies de riscos na sociedade, os concretos e os abstratos, traduzidos para a questão ambiental têm-se os princípios da prevenção e da precaução para orientar a gestão de tais riscos. De fato, os avanços tecnológicos provocam muitas transformações, entre as quais formas pós-industriais de perigos e riscos para a humanidade, que decorrem do desenvolvimento muitas vezes desordenado. Esses riscos e perigos apresentam grande complexidade probatória em relação a sua própria existência e possíveis consequências nocivas. Em decorrência direta da evolução tecnocientífica e sua utilização imediata pelo sistema econômico, desde meados do século XX as instituições sociais da sociedade industrial enfrentam, sem precedentes históricos, a possibilidade de destruição das condições de vida no planeta, em virtude 239 das decisões que são ou que possam ser tomadas. 238 PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 149. 239 BECK, Ulrich, La sociedad del riesgo global. Apud CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p.66. 99 Portanto, a sociedade contemporânea é marcada por mudanças ocorridas na matriz da forma industrial mecanicista para uma forma pós-industrial. Essa confrontação entre essas duas estruturas evolutivas pode provocar profundas irritações e ressonância no direito, “inclusive com a institucionalização do Direito Ambiental para lidar com os danos e riscos ecológicos produzidos por esta sociedade (através da denominação riscos ambientais)”240. Com essas mudanças estruturais da sociedade surgem novas formas pósindustriais de perigos e riscos mais complexos e, portanto, mais difíceis de serem comprovados. Constata-se, dessa forma, que existem duas espécies de riscos na sociedade: os riscos concretos, característicos da natureza industrial, e os riscos invisíveis ou abstratos, inerentes à sociedade de risco (ou pós-industrial). O surgimento de novas tecnologias e o crescimento populacional fizeram surgir novas situações, e as pessoas passaram a ficar mais expostas aos riscos e perigos oriundos das inovações tecnológicas e dos processos relativos à Revolução Industrial. Contudo, a necessidade de comprovação de culpa pela vítima inviabilizava a incidência de aplicação da responsabilidade civil para a reparação ou indenização de danos, decorrentes do surgimento do maquinismo. As novas tecnologias também produzem riscos ecológicos, cujas características são potencializadas diante do contexto em que se dão: O risco ecológico gerado pelas novas tecnologias trata-se, na maioria das vezes, de riscos abstratos, e seu contexto de incerteza científica tem grande conexão com a principal característica dos problemas ecológicos, ou seja, a complexidade. Este se trata de problemas de uma nova formatação, pois consistem em questões que não dizem respeito apenas a relações ou interferências entre sistemas sociais (direito, economia e política), mas são dotadas de uma complexidade potencializada por decorrerem das relações tidas entre a sociedade (comunicação) e seu ambiente 241 (extracomunicação). A segunda característica dos riscos inerentes à formatação pós-industrial da sociedade é a sua globalidade. A globalização dos riscos (colocando em perigo a 240 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p.66. 241 Ibidem, p.68. 100 natureza, a saúde, a alimentação etc.) relativiza as diferenças e os limites sociais. Nesse sentido, parte dos riscos ambientais não apresenta limites territoriais: no entanto, objetivamente os riscos de se desdobrar dentro de sua escala e entre aqueles afetados por eles um efeito de equalização. É precisamente a sua força de romance político. Neste sentido, as sociedades de risco não são sociedades de classes, suas situações de perigo não pode ser pensado como uma situação de classe, nem seus conflitos como conflitos de 242 classe . Assim também, “os riscos afetam mais cedo ou mais tarde aqueles que produzem ou se beneficiam destes243. Os riscos mostram em sua difusão o “efeito social de bumerangue”, visto que os ricos e poderosos não estão seguros diante deles, pois os centros de produção também são atingidos. As consequências do “efeito bumerangue” também compreendem os riscos de natureza ecológica, os quais atingem um número indeterminado de sujeitos. A terceira característica dos riscos pós-industriais consiste na transtemporalidade característica das sociedades que pretendem tornar previsível e controlável o futuro. Apesar dos riscos concretos (industriais) também apresentarem um sentido de ocorrência futura de eventos nocivos, é a partir da formação de uma evolução científica e tecnológica absorvida pelo capitalismo (pós) industrial que a biocumulatividade dos danos e a potencialização dos riscos ambientais são capazes de gerar uma comunicação jurídica acerca dos 244 riscos (probabilidade de danos futuros) . A existência permanente dos riscos nas atividades humanas relacionadas ao meio ambiente, à sociedade agrária e industrial é originada de modelo de desenvolvimento que causou muitos danos ao meio ambiente, constituindo uma sociedade de riscos. Assim como na sociedade industrial, na sociedade de risco a produção de riquezas encontra-se sistematicamente contemplada pela produção de 242 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Madrid: Paidós, 1998.p.42 : Sin embargo, objetivamente los riesgos despliegan dentro de su radio de acción y entre los afectados por ellos un efecto igualador. Ahí reside precisamente su novedosa fuerza política. En este sentido la sociedades del riesgo no son sociedades de clases, sus situaciones de peligro no se pueden pensar como situaciones de clases, ni sus conflictos como conflictos de clases. 243 Ibidem, p. 43: “Los riesgos afectan mas tarde o mas temprano a quienes los producen o se benefician de ellos” 244 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p.69. 101 riscos. Esse modelo de desenvolvimento passa a ser caracterizado pelo surgimento, a todo momento, do inesperado e do imprevisto. Assim, o Estado de Direito Ambiental passa, necessariamente, a ser fundamentado no princípio da prevenção e da precaução, a fim de que possa ser previsto com antecedência o inesperado e, por consequência, sejam evitados ou reduzidos os riscos ambientais. 2.7.2 O risco na gestão dos Recursos Hídricos a partir da CF/88 Frisa-se que, assim como a gestão e o planejamento precisam fazer parte da administração hídrica, a análise do risco como instrumento de gestão também possui um valor significativo, devendo ser observado e estudado para auxiliar no progresso dessa área ambiental. Além da gestão das águas, pode-se observar a consolidação de outra nova área de estudo e de ação: o risco na gestão dos RH. Deve-se dar prioridade na gestão dos riscos na gestão hídrica, em vez de gestão das crises, muitas vezes mais dispendiosas. Os riscos estão no futuro que pode ser duradouro ou não, e, assim nos força a mudanças. Os riscos são associados a perdas e probabilidades. A análise do risco vem se tornando, em diversas atividades, notadamente na área de RH e setores afins, uma prática promissora. A variação dos fatores ambientais e socioeconômicos fazem com que a gestão hídrica tanto em suas funções, atividades e instrumentos conviva com incertezas, tanto endógenas quanto exógenas. Assim, conhecer as decisões possíveis e suas consequências em um ambiente de incerteza hidrológica poderá tornar mais eficiente o uso dos RH disponíveis. Muitas cidades brasileiras enfrentam vários riscos ao meio ambiente urbano, como enchentes, poluição, proliferação de doenças de veiculação hídrica e escassez de água para o consumo humano e outros. O processo de urbanização muitas vezes desordenado trouxe inúmeros impactos negativos sobre o espaço urbano. Estes riscos demonstram a fragilidade de um sistema integrado e a necessidade de um bom gerenciamento das águas. 102 Graves problemas afetos a utilização de recursos ambientais e na organização do espaço nas cidades revelam a falta da utilização das informações técnicas, neste caso, da análise do risco nas decisões. Muitas vezes, poderiam ser tomadas apenas medidas estruturais minimizando ou elidindo os fatores de risco, porém, não observadas. A análise de risco de impactos ambientais na construção de um reservatório, riscos econômicos e ambientais na construção de obras hídricas, risco de transbordamento de um vertedouro de barragem, risco de deslizamento de talude de uma barragem de terra, são exemplos de possíveis aplicações da análise de risco. Diante deste contexto, a seguir será desenvolvido o tema: O risco na gestão dos RH a partir da CF/88. A sociedade contemporânea caracteriza-se por uma rápida transformação e uma complexidade cada vez maior, visto que os avanços de investigações científicas e tecnológicas “trouxeram [...] o chamado "progresso", progresso na generalidade dos casos, produziu grandes benefícios (por exemplo, hoje vemos que as condições de inúmeros padecimentos pertencem existência humana na história) 245 ”. Como contrapartida desses benefícios gerados pela ciência e pela tecnologia apareceram os riscos “caracterizam a época atual como [...], sociedade de risco, ou melhor dito, sociedade de risco global. Esses riscos, na maioria dos casos são imprevisíveis, incertos e não quantificáveis246”, constituindo sérias ameaças para à saúde e ao meio ambiente. A análise do risco na gestão dos RH torna-se cada vez mais importante, sobretudo em razão do conhecimento aleatório das grandezas hidrológicas, tanto quanto das variáveis econômicas, sociais e ambientais que compreendem os sistemas de RH e com as quais se comunicam. 245 Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. Tutela Jurídica del medio ambiente. Córdoba: 2008. p.353. vol. XLV. 391p.”Há traído consigo el denominado “progresso”, progresso que en la generalidad de los casos ha producido amplios benefícios (por ejemplo: hoy vemos que numerosos padecimientos de la existência humana pertencem a la historia”. 246 Academia Nacional de Derecho y Ciências Sociales de Córdoba. Tutela Jurídica del medio ambiente. Córdoba: 2008. p.353-354. vol. XLV. 391p .Paulina Martinez Principio Precatório y Principio Preventivo en el Derecho Ambiental. “que caracterizam a la era actual como la sociedad del riesgo [...], o mejor dito sociedad del riesgo global. Estos riesgos, en la mayoria de los casos son imprevisibles, inciertos e incuantificables”. 103 No passado, a não inclusão das incertezas hidrológicas nos processos de gestão de águas decorriam sobremaneira das dificuldades inerentes aos tratamentos, matemático e estatístico, do fenômeno. Todavia, muitos avanços nas ciências matemáticas e a rápida evolução dos recursos computacionais permitiriam, aos estudiosos e gestores da água, incluir este 247 importante tema no planejamento e gestão dos RH . Para Ulrich Beck, “a reflexividade do desenvolvimento capitalista moderno, com a radicalização da modernização da modernidade (modernidade reflexiva) repercute na transição da sociedade industrial para a sociedade de risco” 248. Na sociedade industrial pode se ter uma previsibilidade das consequências negativas dos processos produtivos capitalistas; por outro lado, na sociedade de risco há uma maior incerteza quanto às consequências das atividades e tecnologias empregadas nos processos econômicos, pois o conhecimento científico não é suficiente para determinar a sua previsibilidade. Assim, os riscos pós-industriais possuem efeitos ilimitados temporalmente, com capacidade global e potencialidade catastrófica. A sociedade, com uma complexidade cada vez maior em seus processos comunicativos, torna patente a incapacidade do sistema para encarar com êxito as novas questões surgidas. Dessa forma, o Estado centralizador, que resta reconfigurado, assume novas funções, a da proteção ambiental e promoção da qualidade de vida. Assim, “observa-se uma fragmentação do poder político, com o surgimento de inúmeros atores a competir com o até então Estado centralizador desse poder249”. As ONGs e organizações transnacionais no desenvolvimento da proteção ambiental demonstram a existência do fenômeno do eco democratização do sistema político. Como consequência do enfraquecimento do Estado em face da sociedade produtora de riscos globais surge o aumento das demandas prestacionais derivadas do fenômeno da proliferação de direitos. Com a inclusão da proteção ambiental, “o Estado de direito ambiental sob um critério estrutural-funcional, [...] surge um Estado 247 CAMPOS, Nilson; STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003, p.147. 248 BECK, Ulrich, La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Paidós: Barcelona, 2001. 249 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p.17. 104 que ultrapassa o modelo intervencionista de inspiração keynesiana 250”. Dessa forma, o Estado passa para uma fase de negociação direta com os cidadãos. Nessa nova estrutura do Estado, acontece uma normalização da produção de riscos ecológicos, estimulada por interesses econômicos ou políticos a curto prazo. O paradigma dos sistemas sociais influencia na normalização dos riscos produzidos pela sociedade contemporânea, o que Ulrich Beck denomina de “irresponsabilidade organizada”. A necessidade do Estado “de lidar com o conceito que Ulrich Beck denomina de “irresponsabilidade organizada” decorrente da potencialização dos riscos provenientes do desenvolvimento da sociedade industrial faz emergir o Estado Ambiental”251, Na verdade, o Estado democrático ambiental se trata de uma reação ao sistema político às ressonâncias e alterações estruturais desencadeadas pela sociedade de risco. Este consiste, exatamente, nos ruídos e irritações que o sistema da política autoproduz para observar e assimilar os riscos 252 ambientais produzidos e distribuídos pela sociedade contemporânea . Canotilho afirma sobre a sociedade de risco e a irresponsabilidade organizada: A sociedade de risco é aquela que, em função de seu contínuo crescimento econômico, pode sofrer a qualquer tempo as consequências de uma catástrofe ambiental. Nota-se, portanto, a evolução e o agravamento dos problemas, seguidos de uma evolução da sociedade (da sociedade industrial para a sociedade de risco), sem, contudo, uma adequação dos mecanismos jurídicos de solução dos problemas dessa nova sociedade. Há consciência da existência dos riscos, desacompanhada, contudo, de políticas de gestão, fenômeno denominado irresponsabilidade 253 organizada. “O Estado democrático ambiental e o próprio direito ambiental consistem em alterações estruturais havidas, respectivamente no estado e no direito para reagir a sociedade de risco254”. Os ruídos e irritações que o sistema da política autoproduz 250 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.17. 251 Ibidem. 252 Ibidem. 253 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 132. 254 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.18. 105 para observar e assimilar os riscos ambientais existentes na sociedade contemporânea consistem no próprio Estado Ambiental. A proteção ambiental tornou-se, indiscutivelmente, uma tarefa do Estado moderno. Para Canotilho, “o direito deve conformar juridicamente o chamado “Estado ambiental”. Isto significa que o primeiro conjunto de problemas se situa no plano da conformação jurídico-política do Estado”255. A questão é saber em quais bases o direito vai ser delineado: [...] o Estado de ambiente deverá edificar-se, na senda da tradição liberal do Estado de direito, sob uma perspectiva garantística e de limites ou antes sob um prisma rasgadamente intervencionista e planificatório? Colocando porventura o problema em termos mais rigorosos: o direito de ambiente deve compreender-se como um direito que adiciona restrições aos direitos, liberdades e garantias ou deve compreender-se como um direito econômico, no sentido de um direito ancorado na atribuição de poderes e 256 faculdades de utilização de um bem público ambiente ? A opção por determinada perspectiva do Estado ambiental implica determinado resultado, que nem sempre é jurídico e politicamente correto, pois pode estar maquiando uma proteção ambiental para justificar outros interesses. Perspectivar o direito de ambiente como um problema de limites a outros direitos ou liberdades conduz a um minimalismo ambiental. Visualizar os problemas jurídicos do ambiente como uma utilização de bens públicos pode conduzir a uma economia coletivista e dirigista, a pretexto da defesa dos sistemas ecológicos. Num caso de “Estado Providência Ambiental”; no 257 outro um “Estado de polícia de ambiente” . As primeiras manifestações da problemática política da defesa do meio ambiente foram marcadas pelo extremismo. Nessas condições, Canotilho sugere que, “se queremos um Estado de direito de ambiente devemos ter em conta as experiências históricas e rejeitar as explicações monocausais num mundo de complexidade”258. Ora, à medida que temos apenas uma resposta, isso é totalizante e, portanto, não serve para a edificação de um autêntico Estado de direito de ambiente. 255 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente. Coimbra: Almedina,1995. nº. 4, p. 73. 256 Ibidem. 257 Ibidem. 258 Ibidem. 106 A mudança e a irreversibilidade do tempo guiam o nosso mundo atualmente. François Ost lembra que “a natureza, como a história, nunca se repete; é apenas ao nível da percepção humana que se forma a impressão de retorno da mesma259”. Indiscutivelmente, os danos ambientais muitas vezes são irreparáveis, fato que estimula a preventividade, esta uma importante característica do direito ambiental. 260 O caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 impõe, inegavelmente, uma ordem normativa de antecipação dos danos ambientais, gerando um dever de preventividade objetiva. Assim, a noção de risco consiste em uma importante forma de comunicação para evitar os danos ambientais. Essa ênfase preventiva peculiar ao direito ambiental atua como condição de possibilidade operacional do direito para a formulação de 261 uma comunicação jurídica acerca do risco . Dessa forma, percebe-se a evolução do direito para “a transição de um direito de danos, de cunho tradicional, que reage a eventos já concretizados, para um direito de risco”262. Além disso, a escolha da terminologia “riscos ambientais” pelo direito remete a uma dimensão futura dos vínculos intergeracionais. Na sequência do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, no parágrafo primeiro263 e nos incisos, constam os instrumentos de garantia para a efetividade da norma-princípio prevista no caput, os deveres públicos. Seguindo este mesmo 259 A natureza a margem da lei. A ecologia a prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.109. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 261 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.17. 262 CARVALHO, Ibidem, p.32. 263 “§1º Para assegurar a efetividade desse direito incumbe ao Poder Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.” 260 107 artigo264, em seus parágrafos se encontram as determinações particulares, tendo em vista a relevância ambiental das matérias previstas que exigem direta proteção constitucional. A base do direito disposto na Constituição Federal de 1988 vem de uma dogmática tradicional, muito ligada à individualidade, a uma racionalidade antropocentrista, muitas vezes produzindo conflitos (intrassistêmicos) com as questões ecológicas e a própria comunicação ecológica da sociedade moderna. Essa ecologização do sistema jurídico emana rupturas e irritações as estruturas tradicionais do direito moderno (privatista, de individualismo exclusivista e egoístico, de passividade judicial, caráter lógico-formal, racionalismo geométrico etc.) que se configuram, muitas vezes, contraditórias as necessidades de proteção do “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, conforme o disposto na Constituição Federal 265 de 1988” . Com as diversas transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e ambientais, ocorridas o direito não passa incólume e sofre, portanto, o reflexo dessas mudanças, passando a assumir um papel preponderante na gestão dos riscos; assim, novos direitos, garantias e instrumentos foram criados. Almeja-se, sobretudo, a efetividade desses direitos, garantias e instrumentos para, dessa forma, gerir e controlar os riscos impostos pela sociedade contemporânea à coletividade. Assim, é imprescindível a aplicação das normas à luz dos princípios ambientais. Nesse contexto destacam-se, o princípio da prevenção e o da precaução, bem como buscar o bem comum, a dignidade da pessoa humana, a valorização da cidadania e do trabalho, a proteção e preservação do ambiente às presentes e futuras gerações. 264 § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.§ 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. 265 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.30. 108 Para tornar viável a gestão integrada dos RH, é preciso adequar-se às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais do país, bem como efetivar, a implementação de instrumentos de gestão, “capazes de propiciar o exercício eficiente e eficaz das funções e atividades administrativas”266. A Política Nacional de RH, Lei nº 9.433/97, estabelece instrumentos necessários à gestão integrada dos RH, o art. 5º, (inciso I); o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água (inciso II); a outorga dos direitos de uso de RH (inciso III); a cobrança pelo uso de RH (inciso IV); a compensação a municípios (inciso V); e o sistema de informações sobre RH (inciso VI). Naturalmente, esses instrumentos não são exaustivos, podendo os gestores de RH utilizarem outros instrumentos que se fizerem necessários para viabilizar a implantação de uma política hídrica. Alguns estados anteciparam e promulgaram suas leis para gestão das águas seguindo basicamente os princípios da lei federal. A lei estadual de São Paulo (Lei 7.663/91, cap. II) define como instrumentos: outorga de direitos de uso; infrações e penalidades; cobrança pelo uso dos RH; rateio de custo das obras. No Rio Grande do Sul, a Lei Estadual nº 10.350/94 (cap. IV) estabelece os seguintes instrumentos de gestão dos RH: outorga de uso dos RH; cobrança pelo uso dos RH; rateio de custo de obras de uso e proteção dos RH267. Desse modo, podem-se enumerar algumas possíveis aplicações da análise do risco na área de RH: avaliação da vulnerabilidade e risco de sistemas de reservatórios multiusos (geração de energia, abastecimento urbano de água, irrigação etc.); mapeamento da vulnerabilidade e risco de poluição das águas subterrâneas e superficiais em bacias hidrográficas; mapeamento da vulnerabilidade e risco de enchentes em bacias urbanas e rurais; risco probabilístico e incerteza nas chuvas em determinada região; análise de risco e impacto ambiental na qualidade 266 CAMPOS, Nilson; STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003. p.149. 267 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 10.350, de 30 de dezembro de 1994. Institui o Sistema de Recursos Hídricos, regulamentando o art. 171 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://sema.rs.gov.br.Acesso em 07 mai. 2010. 109 das águas de lagos e açudes tropicais; e análise de risco de secas hidrológicas em rios intermitentes. Nesse sentido, em relação aos RH, nas fases e riscos no processo de cobrança, na questão da determinação da carga poluente, na aplicação do princípio da precaução para esse problema pode exigir não meras abstenções, mas a adoção de medidas com vistas à melhoria dos métodos de análise e qualificação dos erros e das perdas financeiras. Assim, o gerenciamento do risco poderá colaborar para aumentar a eficiência do uso dos RH disponíveis, bem como otimizar os comportamentos perante os riscos e incorporando-os na tomada de decisão. Considerando a diversidade, a complexidade e o escopo dos problemas ambientais atuais, além de dificuldade dos governos federais e estaduais (agências estaduais de Meio Ambiente) de analisar, conceber, implantar planos, programas e projetos que valorizem os poucos recursos ainda disponíveis para as áreas ambientais (incluindo o saneamento ambiental: água, esgotos, resíduos, habitação etc.), a ferramenta de gestão e gerenciamento de risco mostra-se como uma saída extraordinária para a manutenção da biodiversidade dos recursos naturais brasileiros. Considerando o contexto já analisado do caso específico da bacia hidrográfica com destaque para a cobrança pelo uso da água, uma matriz de atribuições administrativas, com identificação de incertezas e riscos envolvidos, bem como das respectivas medidas preventivas de convivência com o risco é de fundamental importância. Além disso, uma gestão hídrica eficaz é uma questão que deve ser prioritária para o desenvolvimento do país. 110 3 O INSTRUMENTO DA COBRANÇA DA ÁGUA Neste capítulo trata-se da cobrança pelo uso dos RH, que é um instrumento da Política Nacional de Gestão do Uso da Água, previsto desde o CÓDIGO CIVIL 1916, porém este instrumento ainda não havia sido posto em prática. A Lei nº 9.433/97 também sancionou este instrumento, principalmente como forma de evitar o desperdício pelos usuários da água, ou seja, fazendo a ligação entre utilização e pagamento por esse uso. Assim, na gestão hídrica, o intrumento da cobrança é um dos mais importantes, principalmente para o equilíbrio da oferta e da demanda dos RH na bacia hidrográfica. Os instrumentos utilizados na gestão dos RH exercem influência sobre grande parte do universo de planejamento e gerenciamento do uso da água. “São, por assim dizer, as ferramentas que permitem a realização de um trabalho concatenado, sincronizado como engrenagens de uma grande máquina”268. Logo, a falta de sintonia ou de algum instrumento pode comprometer o resultado da gestão. A Lei nº 9.433/97 aponta, explicitamente, para o valor econômico da água como bem escasso. Por esse motivo, prevê-se a cobrança de uma taxa, de modo genérico, para todo o tipo de uso de água sujeito à outorga 269. O instrumento da cobrança da água representaria um incentivo ao uso responsável e racional da água seguindo os princípios do desenvolvimento sustentável. A cobrança pelo uso da água é um instrumento econômico da economia ambiental que incorpora o conceito de externalidade. Os princípios da cobrança pelo uso da água são fundamentados nos conceitos de “usuário pagador” e do “poluidor pagador”, tendo como objetivo combater o desperdício e a poluição das águas. 268 CARRERA-FERNANDEZ, José; GARRIDO, Raymundo-José. Economia dos recursos hídricos. Salvador: Ed. Edufba, 2002, p.108. 269 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010. p.96. 111 Acontece que a implementação da cobrança nos planos federal e estadual ainda é bastante restrita, pois apenas alguns Estados e algumas bacias brasileiras possuem experiências e propostas concretas sobre as modalidades e a implementação da cobrança. Em princípio, todos os tipos de uso estão sujeitos ao pagamento obrigatório da cobrança. Ressalta-se que a cobrança é um instrumento de gestão caracterizado pela sua descentralização com a participação dos usuários, da sociedade civil organizada e do poder público nos comitês de bacia. Com efeito, por meio dos comitês de bacia hidrográfica, órgão gestor dos RH, que tem entre suas atribuições a aprovação do Plano de Bacia e do valor da cobrança pelo uso da água, a sociedade vai decidir se deseja ou não programar este instrumento da cobrança. Já foi implementada a cobrança em três bacias federais e em dezesseis comitês estaduais. A bacia de Paraíba do Sul, que envolve Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, desde 2003 efetua a cobrança; Piracicaba, que atinge São Paulo e Minas Gerais desde 2006 possui a implementação da cobrança, e São Francisco começou a cobrança em 2010. Segundo o gerente de Cobrança pelo Uso dos RH da Agência Nacional de Águas (ANA), Patrick Thomaz, nas três bacias a cobrança pelo uso dos RH já é efetuada (Paraíba do Sul, Piracicaba/Capivari/Jundiaí e São Francisco), são arrecadados R$ 47 milhões por ano. Esse dinheiro é integralmente investido nas ações definidas pelos comitês para sustentabiliade nas bacias. Os projetos prioritários são construção e ampliação de estações de tratamento de esgoto, construção de rede coletoras, construção de canais de drenagem, reflorestamento e combate a 270 erosão . No Brasil, a efetiva implementação da cobrança prevista por lei encontra-se incipiente, embora, em alguns casos, já exista pelo uso dos RH. A cobrança do uso da água bruta no Ceará existe desde 1996; no Rio de Janeiro foi implantada desde 2004; em São Paulo, diversos municípios a praticam. 270 GIUST, Ricardo. ANA: pagamento estimula uso racional. Correio do Povo, Porto Alegre, 09 de jan 2011, Geral, p.15. 112 Até o início da arrecadação da cobrança no Rio Paraíba do Sul em março de 2003 e no Estado do Rio de Janeiro no início de 2004, assim como, entrementes, no Estado de São Paulo, e, de forma restrita, no Estado da Bahia e em demais mananciais federais brasileiros, o Estado do Ceará era o único que regulamentara e realmente implantara a cobrança pelo uso da 271 água prevista por lei . Em princípio, todos os usos da água serão cobrados, de acordo com os diferentes tipos de utilizadores, refletindo os custos específicos das diferentes classes de utilizadores de água. Por exemplo, todos os usuários que retiram águas dos rios ou de outros corpos da água, açude, poço artesiano, ou seja, água bruta, da natureza estão sujeitos á cobrança, desde que autorizados pelo poder público para usar os RH. Salienta-se que isso ocorre se naquela bacia a sociedade resolver programar este instrumento, o que envolve companhia de saneamento, as fazendas etc. A irrigação também está sujeita a cobrança. Como exemplo, no Vale do Paraíba plantadores de arroz já estão pagando pelo uso da água, assim como ocorre com quaisquer outros usuários, usinas hidrelétricas etc. Conforme o art. 20 da Lei nº 9.433/97, “serão cobrados os usos dos RH sujeitos a outorga.” Este artigo remete a cobrança pelo uso da água a todos os usos de RH sujeitos à outorga pelo poder público. No art. 12 da Lei das Águas encontram-se os vários tipos de uso: derivação ou captação de parcela de água existente em um corpo de água para o consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo; extração de água de aquífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo; lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final; aproveitamento dos potenciais hidrelétricos; outros usos que alterem o regime, a quantidade ou qualidade da água existente em um corpo de água. Em relação à fixação dos valores a serem cobrados pelos usos dos RH, o art. 21 da Lei nº 9.433/97 estabelece, no inciso I, que devem ser observados, dentre outros, nas derivações, captações e extrações de água o volume retirado e seu 271 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010, p.205. 113 regime de variação e, no inciso II, preleciona que, nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, devem-se considerar o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente. Desse modo, além dos critérios referidos, “deverão ser observadas as especificidades da bacia hidrográfica, as características das populações locais e todos os demais elementos relevantes para a composição do preço” 272. É importante destacar que “o valor a ser cobrado não será sempre o mesmo, variando de Estado para Estado, de bacia para bacia, pois dependerá das peculiaridades socioeconômicas e geográfico-climáticas de cada localidade” 273. Em suma, existem três critérios na cobrança: em primeiro lugar a captação, a quantidade de água que se retira do rio; em segundo lugar, a parcela de lançamento, quantidade de efluentes que se devolvem para o rio, esgotos domésticos com ou sem tratamento; em terceiro lugar, a parcela é o consumo retirado e não devolvido ao rio, paga pela poluição que lança no rio. No caso das residências, a companhia de saneamento pagará a transferência para o consumidor final, ou seja, é decisão da companhia de saneamento a transferência dos valores aos usuários. Para isso é importante saber de quem e a competência para realizar a cobrança pelo uso da água. 3.1 COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA PARA EFETUAR A COBRANÇA DO USO DOS RECURSOS HÍDRICOS Compete às agências de água efetuar, mediante delegação do outorgante, a cobrança pelo uso dos RH, conforme o art. 44, III, da Lei nº 9.433/97. À Agência Nacional de Águas cabe implementar a cobrança pelo uso dos RH, em articulação com os comitês de bacia hidrográfica, assim como arrecadar, distribuir e aplicar 272 MATEO, Ramon Martin. Precios del Água y Política Ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 8, n. 32, p.13-31, out/dez 2003. 273 JARDIM Sérgio Brião. Cobrança pelo uso da água: uma proposta de modelagem. In: BALARINE Oscar Fernando Osório (Org.). Projeto Rio Santa Maria: a cobrança como instrumento de gestão das águas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 109. 114 receitas auferidas com a cobrança pelo uso de RH de domínio da União, de acordo com o art. 4, incisos VIII e IX, da Lei 9.984/2000. Conforme o art. 38, inciso VI, da Lei nº 9.433/97, compete aos comitês de bacia hidrográfica propor ao Conselho Nacional de RH os valores a serem cobrados. Competem as agências de água propor ao respectivo comitê de bacia hidrográfica os valores relativos à cobrança pelo uso de RH, de acordo com o art. 44, XI, “b”, da Lei nº 9.433/97. Ao Conselho Nacional de RH compete fixar critérios gerais para a cobrança, de acordo com o que estabelece o art. 35, X, da Lei nº 9.433/97. 3.2 ASPECTOS POSITIVOS DA COBRANÇA DOS RECURSOS HÍDRICOS Algumas considerações sobre a importância da cobrança dos RH devem ser expostas de forma objetiva. A partir da publicização da água possibilita-se a aplicação concreta do instituto da cobrança pelo seu uso, porém a cobrança efetiva ainda não é uma realidade. A cobrança pelo uso dos RH também foi autorizada pela Lei nº 9.433/97, porém a pretensão dos Municípios, além de não ter sido por ela vislumbrada, em relação à dominialidade, resta intransponível. Conforme o art. 20, III da Constituição Federal de 1988, os rios, lagos e quaisquer correntes de água são bens da União, e pelo art. 26, I, da Constituição Federal de 1988, as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes e emergentes e em depósito pertencem aos Estados. Assim, os Municípios não possuem domínio sobre os corpos de águas do território nacional. Logo, não podem, via de consequência, outorgar os direitos de uso a que alude o art. 12 da Lei nº 9.433/97. Referida Lei estabeleceu apenas a compensação dos municípios como instrumento da política nacional de RH (art. 5, V). Aliás, a Constituição Federal de 1988 já assegurava aos municípios participação no resultado da exploração de RH para fins de geração de 274 energia elétrica e de outros recursos minerais. 274 FREITAS, Vladimir Passos de. Poluição de águas. In: FREITAS, Vladimir Passos de (Org.). Curitiba: Juruá, 1998, p.99. 115 A participação dos Municípios em matéria de cobrança pelo uso de RH por prazo determinado poderá ser feita por intermédio de consórcios e associações intermunicipais de bacias hidrográficas. Enquanto não for aprovada a lei que disporá sobre a criação das agências de água e não estiverem tais órgãos definitivamente constituídos, poderão os consórcios e associações intermunicipais de bacias hidrográficas receber a delegação do Conselho Nacional ou dos Conselhos Estaduais de RH para, mediante delegação do outorgante, efetuar a cobrança pelo uso da 275 água (art. 44, III, c.c. art. 51, ambos da Lei 9.433/97) . A esse propósito, a implantação do instrumento da cobrança pelo uso da água é um tema bastante complexo, que envolve questões econômicas, legais, institucionais, técnicas e também sociais. A escolha do modelo econômico mais apropriado e o estabelecimento do valor para a água requerem uma instituição com capacidade de execução de políticas públicas e com informações e pessoal qualificados. Nesse sentido, é importante elencar os principais aspectos positivos e negativos relativos à cobrança dos RH. E assim, “independentemente da posição que se assuma em relação ao acerto da política de cobrança pela utilização da água, é inegável que o instrumento possibilita uma melhor conscientização de parte do usuário no sentido de que o líquido potável”276 está cada vez mais escasso no Brasil e no mundo. É importante lembrar277que, no Brasil, as pessoas pagam apenas pelo serviço de saneamento básico, tratamento e a distribuição da água e coleta de esgoto, não pelo uso do RH. Portanto, o pagamento refere-se à prestação de serviços de saneamento, diferente da cobrança pelo uso da água, um instrumento da política de RH. Conforme já analisado no primeiro capítulo, a cobrança pelo uso da água está em conformidade com a Constituição Federal de 1988 (art. 26, I). De fato, “o marco legal da cobrança pelo uso dos RH está definido pelo Código Civil de 1916, pelo Código das Águas de 1934, pelas Leis Federais nº 6.938/81, nº 9.433/97 e nº 275 FREITAS, Vladimir Passos de. Poluição de águas. In: FREITAS, Vladimir Passos de (Org.). Curitiba: Juruá, 1998, p.99. 276 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.55. 277 Ibidem, p.106. 116 9.984/00, bem como pelas leis e decretos estaduais sobre RH” 278. O art. 68 do Código Civil 1916 estabelecia que o uso comum pode ser gratuito ou retribuído, conforme as leis da União, dos Estados, ou dos Municípios. Assim, previa a remuneração pelo uso dos RH considerados bens públicos de uso comum. No entanto, apesar da previsão legal da cobrança pelo uso da água, essa cobrança nunca ocorreu. Com efeito, a captação e o tratamento da água tinham um valor econômico agregado à água que não possuía até então valor. A partir da implementação das leis federais e estaduais de atribuição de valor econômico para água, haverá aumento dos valores das atuais contas de água em razão das parcelas remuneratórias distintas. “A nova visão da Política de Águas no Brasil sofre grande influência do processo em andamento na Europa, principalmente na França. A Associação Brasileira de Recursos Hídricos- ABRH, através de seus congressos”279 , grupos de trabalho etc., constitui-se em importante instituição para tratar dos RH. “Para a esfera privada, não constitui surpresa que a valorização econômica apareça como mecanismo, por excelência, de resolução de conflitos. Muitos problemas ecológicos, aparentemente, assemelham-se aos econômicos”280. O meio ambiente e a economia são interdependentes e devem ser compatibilizados com o desenvolvimento sustentável. Destaca-se no exemplo da cobrança da água a importância de uma gestão racional de seus recursos, sendo um instrumento de desenvolvimento e, portanto, devendo ser conciliável com a política ambiental. A partir do reconhecimento da escassez dos RH, o instrumento da cobrança passa a ter um importante papel no processo de gerenciamento desses recursos. A questão da gestão das águas, se articulando como fonte estratégica de desenvolvimento, possui um papel fundamental para as políticas públicas. 278 CARRERA-FERNANDEZ, José; GARRIDO, Raymundo-José. Economia dos recursos hídricos. Salvador: Ed. Edufba, 2002, p.148. 279 CAMPOS, Nilson; STUDART, Ticiana. Gestão das águas: princípios e práticas. Porto Alegre: ABRH, 2003, p.120. 280 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.411. 117 O fenômeno da escassez, entretanto, vem dando mostras visíveis de sua ocorrência em várias partes do território nacional. O crescimento desordenado, a ocupação não apropriada do solo e a forte dependência hidro-energética do setor elétrico, aliado ao uso perdulário dos recursos da água, tem contribuído para tornar a disponibilidade hídrica em certas bacias hidrográficas incompatível com as demandas nas suas múltiplas modalidades de uso. O descarte de esgotamentos sanitários e efluentes industriais sem nenhum tratamento, aliado a disposição não apropriada dos resíduos sólidos urbanos e das fábricas, tem contribuído para degradar a 281 qualidade das águas. Da mesma forma, há também o interesse difuso das gerações presentes e futuras na proteção dos recursos naturais. Assegurar a atual e as futuras gerações além dos seres vivos em geral a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos, a utilização racional e integrada dos RH, a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos são objetivos a serem alcançados, portanto, por meio da Política Nacional de RH e da cobrança 282 pelo uso da água doce . Nesse aspecto, destaca-se a esfera pública da água na busca da proteção ética da água. Assim, a preservação ambiental para as presentes e futuras gerações está estreitamente ligada ao espírito da solidariedade, caracterizando os direitos a ações positivas do Estado, “direitos de libertação da necessidade 283”, analisados do prisma intertemporal. Ulrich Beck refere-se a uma “ética nova” do dever de cada pessoa, uma preocupação nova, simultaneamente individual e social. O autor busca, assim, uma outra forma ética de agir, Longe da ética tradicional em que os deveres se inserem numa teia de reciprocidades, o sistema de valores da pós-modernidade, resultado da individualização crescente da sociedade de risco, repousa num princípio de “deveres para consigo próprio”, fundado num processo de libertação 281 CARRERA-FERNANDEZ, José; GARRIDO, Raymundo-José. Economia dos recursos hídricos. Salvador: Ed. Edufba, 2002, p.147. 282 FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p.412. 283 Assim, conforme afirma Miranda (1988, t. 4, p. 98), se os direitos de defesa “são direitos de libertação do poder”, os direitos a ações positivas do Estado “são direitos de libertação da necessidade” – o âmbito dos primeiros e configurados pela “limitação jurídica do poder”, o conteúdo irredutível destes últimos e a “organização da solidariedade”. 118 pessoal e de saber pessoal, que parte do indivíduo, mas que procura outros 284 deveres sociais . Essa ética nova pode e deve-se incorporar na gestão hídrica, dizendo respeito a um princípio de dever, o qual deve partir, primeiro, de cada indivíduo, com consciência de sua responsabilidade, até alcançar o coletivo na busca de sua emancipação. Na questão da cobrança da água, o reconhecimento do valor econômico da água é uma realidade social globalizada. No entanto, também precisamos incluir uma nova ética em relação à cobrança, sobretudo porque envolve a democracia e a solidariedade. Destaca-se que a cobrança pelo uso da água carrega um propósito nobre, que é a mudança de mentalidade do uso descontrolado e irresponsável da água, na medida em que se propõe a promover uma eficiente alocação e uso dos recursos. O instrumento da cobrança pelo uso da água contribui para evitar o uso perdulário deste recurso natural, sendo, portanto, considerado um dos instrumentos mais importantes na gestão dos RH. O instrumento da cobrança é fundamental para o equilíbrio entre a oferta e a demanda desses recursos na bacia ou região hidrográfica. Além de ser utilizada com a finalidade de racionalizar o uso, a cobrança pelo uso da água atua também como mecanismo eficiente de redistribuir os custos sociais de forma mais equitativa, para disciplinar a localização dos usuários; promover o desenvolvimento regional integrado nas suas dimensões social e ambiental; e incentivar a melhoria nos níveis de qualidade dos efluentes lançados nos 285 mananciais. Com efeito, a cobrança pelo uso da água representava, há pouco tempo, mais uma meta do que uma prática no Brasil. Felizmente, a cobrança pelo uso da água atualmente está passando por uma atenção especial em todo país. Acontece que a cobrança pelo uso da água é um instrumento de gestão adequado e eficaz para conduzir ao uso racional dos RH e combater o uso perdulário da água. Nesse sentido, o objetivo principal da cobrança da água é “alocar eficientemente os RH entre seus múltiplos usuários, além de racionalizar seu uso”286. 284 GARCIA, Maria da Glória F.P.D., O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p.90. 285 CARRERA-FERNANDEZ, José; GARRIDO, Raymundo-José. Economia dos recursos hídricos. Salvador: Ed. Edufba, 2002, p.111. 286 Ibidem, p.50. 119 Ora, a cobrança pela utilização da água viabilizará financeiramente (art. 22, I e II, da Lei nº 9433/97) as ações dos planos de RH (arts. 6 a 8 da Lei nº 9.433/97), bem como a operacionalização das agências de águas (art. 41 a 44 da Lei nº 9.433/97). “São os fins da Política Nacional dos RH que devem ser priorizados, razão pela qual apenas 7,5% do valor arrecadado serão aplicados no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos do SNRH” 287. Os valores arrecadados com a cobrança serão aplicados, prioritariamente, na bacia hidrográfica onde foram gerados, no pagamento de implantação e custeio administrativo dos órgãos. Conforme o art. 20 da Lei nº 9.433/97, a outorga e a cobrança estão interligadas, de modo que a outorga (autorização e concessão) é um instrumento antecedente à cobrança e indispensável para sua viabilização. Dada essa relação entre a outorga e a cobrança, também é possível afirmar que os usos que dispensam a outorga não estão sujeitos ao pagamento pela utilização da água. Assim, a legislação estabelece um sistema de justiça social (art. 193 Constituição Federal), na medida em que as pessoas menos abastadas não ficarão sujeitas ao pagamento pelo uso da água, posto que seus usos, via de regra, serão tidos como insignificantes (art., 12, p.1, da Lei nº 9.433/97). A cobrança, portanto, não afastará a incidência do 288 princípio do acesso universal a água. A cobrança será feita com base no uso efetivo do recurso natural e conforme as diretrizes do art. 21, I e II, da Lei nº 9.433/97, a qual estabelece situações que independem de outorga do poder público como uso dos RH para a satisfação de necessidades de pequenos núcleos populacionais distribuídos no meio rural, as derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes, as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes (§ 1º art. 12 da Lei nº 9.433/97). À medida que a outorga e a cobrança são atreladas, “também é possível afirmar que os usos que dispensam a outorga não estão sujeitos ao pagamento pela utilização da água.”289 Assim, conforme Viegas, 287 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.108. Ibidem. 289 Ibidem. 288 120 a legislação estabelece um sistema de justiça social (art. 193 Constituição Federal de 1988), na medida em que as pessoas menos abastadas não ficarão sujeitas ao pagamento pelo uso da água, posto que seus usos, via de regra, serão todos como insignificantes (art. 12 § 1º da Lei 9.433/97). A cobrança, portanto, não afastará a incidência do princípio do acesso 290 universal a água . A cobrança pelo uso da água corrige as externalidades negativas que os usuários dos RH impõem aos demais usuários do sistema ao utilizarem a água no consumo. “Com base no princípio do poluidor-pagador, busca a cobrança internalizar as externalidades, ou seja, passa a ocorrer a internalização dos custos da poluição ambiental e/ou do uso dos RH” 291 . Dessa forma, estarão embutidos nos preços os custos ambientais externos à produção, e os beneficiários diretos ou indiretos dessa atividade arcarão com os custos da degradação/exploração do bem público. Afasta-se, portanto, o Estado, que antes socializava os custos dos danos ambientais com os contribuintes de um modo geral. A cobrança pelo uso da água funciona como um elemento educativo, que combate eficazmente o desperdício e garante um padrão aceitável de preservação deste recurso natural. Outro fator importante que deve ser aprimorado para a efetividade de uma boa política ambiental reside em uma política do conhecimento que se interliga à educação, afinal, “a crise ambiental não é uma crise ecológica, mas uma crise da razão”292. Pode-se dizer que muitos problemas ambientais, em sua essência, são problemas do conhecimento. Beck afirma que a sociedade de risco também é uma sociedade da formação e do saber, que a aprendizagem permanente com vista a ampliar e aprofundar competências sociais e desenvolver visões interdisciplinares deve ser “uma exigência a cada membro da sociedade atual, como uma resposta a questão ecológica, aos problemas ambientais”293. A experiência internacional tem mostrado que a cobrança pelo uso e poluição da água, além de ser utilizada como forma de racionalizar o uso dos RH, atua como 290 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.108. Ibidem, p.109. 292 LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2006, p.217. 293 A sociedade actual não percepciona só o risco global ecológico e ambiental. Percepciona também a crise global, fruto da ameaça terrorista e da guerra, que anula fronteiras, entre nós e os outros, o interno e o externo, o nacional e o internacional. Esta nova realidade abre caminho a procura cosmopolita. Beck, Ulrich. La sociedad cosmopolita. Prospettive dell’epoca postnazionale, il Mulino, 2003, p. 16, pp.52 ss. Apud Maria da Glória Garcia, 2007, p.93. 291 121 mecanismo eficiente de gerenciar a demanda, aumentando a produtividade e a eficiência na utilização dos RH, redistribuir os custos sociais de forma mais equitativa; disciplinar a localização dos usuários, buscando a conservação dos RH; de promover o desenvolvimento regional integrado, principalmente nas suas dimensões sociais e ambientais, e incentivar a melhoria dos níveis de qualidade dos efluentes lançados nos mananciais294. Portanto, o instrumento da cobrança da água possibilita uma melhor conscientização por parte dos usuários para que o seu uso seja racionalizado. Conforme grande parte de especialistas, a cobrança pela água também é essencial para garantir abastecimento futuro, portanto, possibilitando a sobrevivência das futuras gerações. Ainda que se critique a cobrança do ponto de vista ambiental, é impossível deixar de reconhecer que se trata de uma realidade globalizada. Finalmente, é incontestável a eficácia do instrumento da cobrança na luta contra a crise da água, porque o custo zero dos recursos naturais conduz a um desperdício e à exploração do meio ambiente. Em Porto Alegre, por exemplo, depende da quantidade de água que a Companhia de Saneamento retira; porém, se a companhia repassar integralmente para o consumidor final, haverá aumento na ordem de um real por mês, um acréscimo pequeno por mês, por domicílio. Existem companhias que não repassam para o consumidor final. O valor nas bacias é assimilável. A população da capital paulista (Sabesp) está pagando pelo uso da água, inclusive no Rio de Janeiro (Cedae) na região metropolitana, e em Belo Horizonte (Copasa), já se efetua o pagamento, assim como nas indústrias e nas fazendas. Primeiramente, há uma resistência inicial, porém, após percebem o benefício para a bacia a população passa a aceitar porque vê o benefício voltando para sociedade. Todos os recursos são obrigatoriamente, transferidos para a agência da bacia nas ações que a sociedade escolhe através do comitê que representa a sociedade. O comitê define o que vai ser feito com o recurso. O recurso da cobrança 294 CARRERA-FERNANDEZ, José; GARRIDO, Raymundo-José. Economia dos recursos hídricos. Salvador: Ed. Edufba, 2002, p.150. 122 tem sido utilizado na ampliação da rede de esgotos, do saneamento, em redes coletoras, ações que melhoram o saneamento em geral. 3.3 ASPECTOS CONTRÁRIOS À COBRANÇA DA ÁGUA O primeiro impacto da maioria da população atingida com o pagamento pelo uso da água será, provavelmente, negativo e, principalmente, com uma forte resistência por parte dos grandes usuários. A integração da comunidade no processo de cobrança e a sua conscientização sobre o real valor da água, conforme preconiza o art. 19, I, da Lei nº 9.433/97, serão fundamentais para ultrapassar essa etapa com êxito. Conforme Caubet é preciso considerar a água como insumo de produção e como mercadoria, ou seja, a mercantilização (fazer da água uma mercadoria ou commodity), a privatização, a desregulamentação e a renormatização, bem como diversas modalidades de deslocalização, são as características da política preconizada sob a égide dos grandes estados-maiores internacionais da água, que surgiram há cerca de uma década e consideram a água uma 295 nova fronteira de realização de lucros. Petrella lança a pergunta: “Será que a falta e a escassez de água são realmente resultantes do fato de a água não ser considerada um bem econômico”296? Neste aspecto, afirma que esse argumento, “que contém não mais que um grão de verdade, responsabiliza principalmente o preço artificialmente baixo da água pelo enorme desperdício dos últimos cinquenta anos no uso e gerenciamento da água”297. Assim, mesmo considerando, em parte, verdade que os problemas relacionados à água resultam do fato de não ser considerada um bem econômico, por outro lado, critica o valor muito baixo da cobrança. Como consequência, não alcança o objetivo de estimular o uso racional do RH, levando-se em conta o seu real valor econômico. Entre os fatores responsáveis pela falta de água e problemas em seu gerenciamento estão a “superexploração agrícola, a poluição industrial, a falta de uma visão de longo prazo envolvendo um planejamento e um gerenciamento global 295 CAUBET, Christian Guy. A água, a lei, a política... e o meio ambiente? Curitiba: Juruá, 2004, p.33. PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 79. 297 Ibidem. 296 123 integrado, ou a incapacidade de implementar esses elementos de maneira eficaz298 por motivos de interesses econômicos. Essa evolução na maneira de usar a água acarretou mudanças estruturais que deverão ter como consequência uma reorganização estrutural em nível global integrado. O maior usuário de água brasileiro é a agricultura, com perdas por ineficiência próximas a 50%. Portanto, muitos fatores envolvem o problema do desperdício no uso e no gerenciamento da água, e a falta da cobrança da água pode ser um dos fatores que colabora para isso, mas não é o principal. A irregular distribuição da água no Brasil produz vários cenários de disponibilidades hídricas. Embora a maioria dos estados não possua escassez elevada de água, em algumas regiões o abastecimento público depende da importação da água de bacias vizinhas, como é o caso da região metropolitana de São Paulo. A poluição ambiental e hídrica vem afetando diversos países há muitas décadas, processo que se acelerou a partir da Revolução Industrial, sendo um dos principais fatores responsáveis pela crise da água. Alguns países mais ricos e mais desenvolvidos conseguiram diminuir a poluição das águas. Nesses, enormes programas de antipoluição conseguiram diminuir (as vezes de forma bastante significativa) o índice de contaminação das águas continentais causada pelo lixo doméstico e industrial que leva matéria orgânica fermentável. Mas este tipo de contaminação foi substituído pela poluição química, especialmente metais tóxicos e compostos orgânicos com 299 altos níveis de toxicidade aguda ou crônica. Portanto, a poluição ambiental aumentou muito atualmente, em relação, a quarenta anos atrás. Todas essas mudanças ambientais parecem não acompanharem, não ter como consequência uma reorganização estrutural profunda nos setores político, econômico e/ou cultural. A poluição originada de resíduos urbanos e industriais, além de afetar a água da superfície, afeta as fontes subterrâneas. Em alguns países a poluição é preocupante: “na América do Norte a 298 PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 79-80. 299 Ibidem, p. 82. 124 situação dos Grandes Lagos é particularmente catastrófica e, nos casos do lago Ontário e do lago Erie, a poluição é irreversível” 300. A poluição em grande intensidade em um rio, por exemplo, vai demandar maior quantidade de produtos químicos, maior investimento em instalações adequadas para tornar esta água potável; consequentemente, os custos aumentarão para consumidor final. Assim, a diminuição da qualidade dos RH provoca uma elevação do custo da captação e do tratamento da água e, igualmente, atinge o seu valor final. Além do aumento do custo do serviço de abastecimento da água, outra consequência da crise da água será a cobrança pelo uso do RH, atingindo duplamente o consumidor final, pois representa mais um “implemento em nossas despesas em razão da necessidade de comprarmos água que será fornecida pela empresa, pública ou privada, responsável pelo abastecimento da população” 301. A este propósito, é importante destacar que se precisa da água em quantidade e também com boa qualidade, ou seja, que tenha condições para o consumo humano. Conforme Caubet, “não é o fato de institucionalizar a água como bem econômico que poderá garantir que o usuário tenha uma indicação real de seu valor. O real valor da água só faz sentido para os evangelistas do mercado” 302. O termo foi utilizado para caracterizar o papel dos intelectuais na conquista neoliberal. Nesse sentido, há de se discordar em parte, pois uma cobrança dos RH deverá servir de motivação para a redução do consumo da água e do lançamento de poluentes nos cursos de água. Alguns autores justificam que a água é mais que um bem econômico ou um recurso comercializável. Portanto, é uma escolha ideológica no momento que dá prioridade ao valor econômico em detrimento de todos os outros valores, está enfatizando apenas uma das muitas dimensões específicas da água. Essa escolha ideológica e, por sua vez, baseada na 300 PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 82. 301 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.39. 302 CAUBET, Christian Guy. A água, a lei, a política... e o meio ambiente? Curitiba: Juruá, 2004, p.33. 125 asserção de que o mercado é o mecanismo principal, superior a todos os demais (regulamentação política, cooperação ou solidariedade), quando se trata de distribuição ótima de recursos materiais e imateriais, e o mais 303 eficiente para a distribuição da riqueza produzida. A água é imprescindível à vida humana é um recurso insubstituível, ao contrário de outros, como o petróleo, que pode ser substituído por carvão. Sendo, portanto, um bem social, bem comum, básico a qualquer sociedade humana, “a transformação da água em uma mercadoria, como ocorreu com o petróleo, é uma aberração ligada ao economizou atualmente dominante entre as classes no poder um modo de pensar que reduz tudo a uma mercadoria”304. Portanto, “há um problema da água no mundo apesar do progresso científico e tecnológico dos últimos cinquenta anos e dos esforços econômicos e financeiros realizados para solucionar esse problema”305. Dessa forma, a cobrança é um aspecto polêmico porque, ao transformar a água em mercadoria, a lógica do mercado é que estaria vencendo. Logo, a conversão da água em um bem econômico não teria como objetivo torná-la acessível a todos, mas, sim, seria regulada pela solvência dos usuários. 3.4 A COBRANÇA INCITATIVA NA BACIA DO RIO DOS SINOS (RS) Nesta seção é tratada a cobrança incitativa na Bacia do Rio dos Sinos, pelo fato de a cobrança pelo uso da água ainda não estar efetivada em nosso estado. Inicialmente, destaca-se que o comitê de bacia hidrográfica do Rio dos Sinos foi criado pelo Decreto nº 32.774 de 17 de março de 1988, com uma área de 3.700 km2 e população de 1.249.000, envolvendo 31 municípios306. A cobrança pelo uso da água é uma matéria controvertida no Vale dos Sinos, onde há muita poluição, mortandade de peixes. Em primeiro lugar, a cobrança não pode ser imposta pelo poder público; é, sim, um instrumento de gestão implantado quando a sociedade da bacia desejar fazê-lo. 303 PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 83. 304 Ibidem, p. 85. 305 Ibidem, p. 121. 306 Agência Nacional de Águas – ANA Disponível em: http://www.cbh.gov.br/DataGrid/GridRioGrande 126 Embora o Estado do Rio Grande do Sul não tenha efetivada a cobrança do uso dos RH, foi um dos estados que mais avançou no tocante ao planejamento da cobrança. Dessa forma, a Constituição do Estado, em seu artigo 171, §3º, prevê a cobrança pelo uso da água307. O Estado de São Paulo foi pioneiro na implantação de uma política de águas. Porém, em relação aos usuários dos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, pode-se afirmar que os usuários deste Estado têm, ademais, uma representação sensivelmente maior nos respectivos órgãos competentes. A Lei 10.350 confere aos representantes dos usuários 40% dos assentos (com uma participação quantitativa, dentro do grupo dos usuários, a mais proporcional possível em relação a sua importância e relevância econômica para o sistema de RH), aos representantes da população da respectiva bacia 40% e dos diversos 308 órgãos da administração federal e estadual 20% . Em outro caso, na visão de Philipp Hartmann, a cobrança da água no Rio Grande do Sul é entendida da seguinte forma: Na verdade, ainda não se chegou realmente a implantar, no Rio Grande do Sul, a cobrança prevista. Mas, de acordo com alguns, a recente evolução dos trabalhos de instauração dos órgãos descentralizados e a intensa pesquisa no campo da gestão dos RH dão margem a que se espere que isso acontecerá nos próximos anos. Outros críticos são mais pessimistas e vêem o Rio Grande do Sul muito atrasado na área de implementação da 309 cobrança pelo uso da água . As pesquisas sobre cobrança pelo uso da água no Rio Grande do Sul estão ligadas a modelos elaborados em parceria com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e a Fundação Estadual de Ciência e Tecnologia (Cientec). 307 Artigo 171, §3º da Constituição do Estado do RS “os recursos arrecadados para utilização da água deverão ser destinados a obras e a gestão dos recursos hídricos na própria bacia, garantindo sua conservação e a dos recursos ambientais, com prioridades para as ações preventivas. 308 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010, p.152. 309 Ibidem, p.152-153. Assim, se manifestou Eduardo Lanna em novembro de 2008. Após a trágica mortandade de peixes no Rio dos Sinos em outubro de 2006, consequência da degradação constante desse rio, mas também da irresponsabilidade de um usuário específico (a empresa UTRESA), foram empreendidas várias iniciativas como o objetivo de avançar na gestão de RH para, entre outras coisas, evitar similares catástrofes no futuro. 127 Os autores utilizam como exemplo o Rio dos Sinos, situado ao norte da capital Porto Alegre, cuja bacia se destaca com atividades da agricultura e pecuária. Constata-se nos municípios localizados nos arredores de Porto Alegre, como São Leopoldo e Novo Hamburgo, um crescimento da população e da indústria. “A taxa de urbanização na bacia e de 94,2%. Do ponto de vista econômico, a bacia do Rio dos Sinos é uma região muito significativa: em apenas um pouco mais de 3% da superfície gaucha são produzidos quase 22% do PIB do Estado”310. A cobrança incitativa tem como efeito que os valores de cobrança arrecadados retornam ao próprio sistema como recurso financeiro. Diante disso, o comitê de bacia decide a forma de utilização dos recursos auferidos. Ele pode utilizá-los tanto para investimentos gerais na proteção dos RH, por ex., em medidas de educação ambiental, no reflorestamento em áreas de proteção de RH etc., quanto pode possibilitar o financiamento total ou parcial dos investimentos realizados pelos usuários descentralizadamente visando ao abatimento de emissões. Para este último, também seriam pensáveis diferentes alternativas: por ex. O subsidiamento completo de investimentos, a concessão de crédito a juros subsidiados ou também 311 empréstimos com juros de mercado . Assim, a cobrança incitativa serviria como um sinalizador de preço para que os próprios usuários reduzam o consumo de água ou o lançamento de poluentes nos cursos de água. Essa cobrança tem como função controlar a demanda de forma a evitar os problemas, diferentemente da cobrança financeira, que parte da oferta da água e arrecada recursos para solucionar os danos posteriormente. Para Cânepa, Pereira e Lanna uma forma mista dos aspectos incitativo e financeiro seria a mais adequada: “A disposição de um órgão representativo da sociedade (comitê) representa uma promessa muito importante em matéria de recuperação da qualidade e da quantidade de nossos cursos de água 312”, tornando possível, dessa forma, a compatibilização do crescimento econômico com a proteção de um recurso natural essencial. 310 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010. p.154. Dados para o ano 2000, conforme Pereira (2002), p. 151 ss. 311 Ibidem, p.160. 312 Ibidem. 128 Portanto, a forma mais eficiente, na prática, seria a mescla dos aspectos incitativos e financeiros, tanto para a ecologia quanto para a economia. Na realidade, no Brasil a maior parte das cobranças praticadas observa apenas o instrumento financeiro, não utilizando, dessa maneira, o modelo incitativo da cobrança. Assim, os “futuros estudos sobre a cobrança deveriam não só pesquisar mais profundamente os citados estudos de Cânepa/Pereira/Lanna, mas também deveriam ampliar o enfoque deste modelo e adequá-lo a outras regiões e problemas hidrológicos”313. 313 HARTMANN, Philipp. A cobrança pelo uso da água como instrumento econômico na política ambiental: estudo comparativo e avaliação econômica dos modelos de cobrança pelo uso da água bruta propostos e implementados no Brasil. Porto alegre: AEBA, 2010, p.169. 129 CONCLUSÃO A observação da realidade em nosso entorno revela que, enquanto a demanda por água aumenta, a sua qualidade diminui. Conforme informações da ONU, no século XX a população mundial triplicou, enquanto o consumo da água tornou-se seis vezes maior. Se continuar nesse ritmo, dentro de poucas décadas um terço da população mundial terá grandes problemas com o abastecimento de água. Segundo a ONU, faltará água potável para 40% da humanidade, sendo, então, inevitável o risco de guerras pelos RH, não só pela sua quantidade, mas também pela sua qualidade. Mesmo com todo avanço tecnológico, o custo “gratuito” da água continua crescente. Nesse sentido, a sociedade também deve adotar medidas não estruturais que resultem em economia de água e participar da gestão hídrica. Precisa-se de um gerenciamento mais eficiente dos RH, para tanto, são criados diversos instrumentos, dentre os quais, a cobrança pelo uso da água, quer como água bruta, quer como água tratada. No tocante ao conteúdo da legislação brasileira de RH, inicialmente havia uma política de águas exercida e voltada principalmente aos interesses de produtores de energia, porém hoje se rege por novos princípios e por um novo enfoque participativo. Assim, abandona o rigor do centralismo e realiza grandes avanços nos aspectos legais e institucionais. Nesse rumo, após breve relato sobre a legislação federal sobre os RH, denota-se que não basta o Estado garantir os recursos naturais; faz-se necessário que se tornem realidade social, por meio de uma gestão de RH eficaz. No mesmo sentido, os documentos internacionais protetivos do meio ambiente, tais como a Declaração de Dublin, Agenda 21, Conferência das Ações Unidas sobre o Desenvolvimento e o Meio Ambiente, Declaração de San José da Costa Rica, Declaração de Paris e Declaração de Haia, foram marcos importantes e que muito influenciaram com seus princípios e diretrizes na política e gestão dos RH de diversos países, entre eles o Brasil. 130 Para que haja gerenciamento em uma bacia hidrográfica é necessário, entre outras coisas, o enquadramento dos dados sobre as características das águas utilizadas na bacia; que haja plano de bacia, cobrança e outorga, instrumentos que possibilitam a manutenção do processo e o domínio da água pelo Estado. Nota-se também, que é preciso haver harmonia e eficiência na execução das questões hídricas reunidas nos comitês de bacia hidrográfica. Sendo a água bem de domínio comum, o Estado é apenas administrador deste recurso vital. A gestão dos RH deverá se situar no tempo e realizar o desenvolvimento sustentável em solidariedade. Ora, a própria noção de sustentabilidade (também possui uma ética de solidariedade) busca a conciliação da preservação dos RH com o desenvolvimento econômico. Atualmente, entre os diversos riscos decorrentes do desenvolvimento tecnológico e científico estão os riscos que envolvem os RH. Os riscos ambientais, caracterizados como riscos abstratos, envolvem uma abstração descritiva em razão do caráter aleatório das grandezas hidrológicas e das suas variáveis econômicas, sociais e ambientais. Assim, após a pesquisa e avaliação dos riscos ambientais, denota-se que o gerenciamento desses riscos deverá colaborar para capacitar melhor o Direito Ambiental nas decisões em contextos de insegurança. É importante destacar que a operacionalização da comunicação jurídica do risco no Direito Ambiental se dá pela distinção precaução/prevenção. O conhecimento da teoria do risco proporciona o estabelecimento de estratégias para a minimização desses riscos, para a imposição de planos de emergência preventivos, por exemplo, e, se possível, a mitigação dos mesmos. Com o presente estudo, foi possível verificar que entre os diversos princípios ambientais, o princípio da prevenção consiste no dever de agir antecipadamente, visando evitar a ocorrência de um evento futuro e provável. Os princípios da prevenção, da cooperação e do poluidor-pagador colaboram na formação de uma ordem jurídica preocupada com a distribuição de riscos na sociedade. 131 Sem uma atuação preventiva, os riscos tendem a surgir concretamente, frequentemente multiplicados, em detrimento de bens tutelados como o equilíbrio ecológico, o bem-estar, a saúde humana e a segurança. Sem a inclusão da análise do risco nos processos decisórios, dificilmente haverá ação útil as vítimas, que continuarão sofrendo danos aos seus direitos, infelizmente, muitas vezes, graves e irreparáveis. A Lei nº 9.433/97 criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de RH (art. 32,IV), destacando como órgão de base, o Comitê de Bacia Hidrográfica. Os planos de bacia deverão ser apreciados na adequação urbana contra os efeitos da sociedade de risco. Especificamente no caso do Estado do RS, temos um número razoável de comitês, faltando, no entanto, agências de bacias. A gestão dos RH, de modo geral, apresenta avanços relevantes, entretanto ainda com necessidade de aperfeiçoamentos. A sociedade de risco induziu profundas alterações no campo social, político, científico, cultural e, conseqüentemente, jurídico, o Direito passou a ser um dos mais importantes instrumentos de gestão do risco. O enfrentamento pelo Direito dos “novos riscos” proporcionou o surgimento de novas formas de tutela, com destaque para a descentralização da bacia hidrográfica. O novo modelo de gerenciamento brasileiro de RH caracteriza-se pela gestão descentralizada com a participação do poder público, dos usuários e da sociedade. Assim, a descentralização da gestão apresenta-se como um tema contemporâneo e ainda em consolidação em nosso país. A cobrança pelo uso da água, prevista nos artigos 19 a 22 da Lei nº 9.433/97, é praticamente uma novidade no campo ambiental e econômico, ainda em vias de efetivação em muitos estados. A cobrança dos RH vem adquirindo crescente importância no cenário nacional. O instrumento da cobrança deverá ser entendido como um aliado e um mecanismo na defesa do meio ambiente. Nota-se a cobrança pelo uso da água como medida para racionalizar o uso da água e melhorar a alocação desse recurso, imprescindível para todos. De fato, a previsão de escassez em algumas regiões do planeta ensejou mudanças nas políticas públicas, as quais, mais que gerar receita, provocaram uma mudança nos setores industriais, agrícolas e outros. 132 Portanto, não se preconiza neste trabalho a impossibilidade de cobrança pelo uso da água; pelo contrário, propõe-se que o Brasil invista na racionalização e na qualidade de seus RH, observando o princípio do desenvolvimento sustentável. O fato de a água ser indispensável à vida não a torna coisa fora do comércio 314. Todavia, na gestão econômica da água precisa ser estabelecida uma relação envolvendo a ética, indispensável no tratamento da matéria. Assim, o que mais importa é o caminho que se busca, devendo conduzir a um processo mais racional de gestão de águas. Dessa forma, é imprescindível criar um empreendimento que opere sobre o gerenciamento da água com princípio cooperativo, integrado, solidário, sustentável e eficiente. O instrumento da cobrança pelo uso da água, se bem administrado, poderá ser um método eficaz diante do problema da crescente qualitativa e quantitativa escassez deste recurso. Além do mais, a importância é estratégica para que se desenvolvam mecanismos eficientes de gestão dos RH, social e ambientalmente sustentáveis. Nesse sentido, a cobrança da água bruta, ou seja, da água retirada dos rios, é uma ferramenta para tentar implantar o uso eficiente e conscientizar as pessoas e os setores de que a água é um bem escasso e, por isso, tem valor econômico. Portanto, o seu uso racional e eficiente é de fundamental importância para a manutenção da quantidade e qualidade dos RH. Verifica-se que a cobrança pelo uso da água é um instrumento de gestão que poderá gerar efeitos salutares aos usuários da água. Pode-se apontar que o referido instrumento é de válida utilidade para a atenuação ou até a extinção de conflitos pelo uso da água, possibilitando uma reorganização na maneira do uso da água. Entretanto, é bom lembrar que a cobrança pelo uso da água é apenas um dos instrumentos de gestão dos RH, os demais instrumentos também devem ser efetivamente utilizados e integrados na gestão de RH. Em vista de a cobrança pelo uso da água ser praticamente uma novidade no território brasileiro, encontrando-se ainda em fase inicial de implantação, é aceitável que este trabalho não tenha condições de fornecer uma análise e avaliação 314 VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.63. 133 exaustiva e conclusiva sobre a temática em questão. Assim, poderá no futuro ser continuado o estudo desta temática, até porque somente serão possíveis resultados mais efetivos após amplas análises dentro de alguns anos, com o processo de desenvolvimento da cobrança como um instrumento eficaz para uma política de RH orientada aos problemas ecológicos. A água é um bem escasso e anuncia-se como um dos principais vetores de sustentabilidade no século XXI. É necessário que a sociedade deva proceder a um uso cada vez mais eficiente da água disponível, ou seja, utilizando menos água para ter os mesmos níveis de qualidade de vida e de desenvolvimento. Torna-se imprescindível um processo de conscientização em relação à escassez da água e da sua importância para a sustentabilidade, bem como a inclusão e o desenvolvimento dos instrumentos da análise do risco e da cobrança pelo uso da água, na teoria e na prática. 134 REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. ANTUNES, Paulo Bessa. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998. ANTUNES, Tiago. O ambiente entre o direito e a técnica. Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2003. ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O princípio do nível elevado de proteção e a renovação ecológica do direito do ambiente e dos resíduos. Coimbra: Almedina, 2006. ______. 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