GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE Gilles Dussault1 Luis Eugenio de Souza2 Departamento de Administração da Saúde, Faculdade de Medicina, Universidade de Montreal 1999 1) Introdução 2) Gerir os serviços de saúde ? as particularidades dessa tarefa 3) Organizações de saúde como organizações profissionais 4) Critérios e determinantes do desempenho das organizações de saúde 5) Análise da situação de recursos humanos em saúde (RHS) 6) Problemas da gestão de RHS e suas causas típicas 7) Estratégias de Desenvolvimento dos RHS 8) Ingredientes de políticas e práticas exitosas de gestão dos RHS 9) Glossario 10) Bibliografia 1) INTRODUÇÃO A gestão de recursos humanos em saúde (RHS) é um tema central, mas difícil. Central, por causa do papel fundamental que a força de trabalho desempenha na produção e utilização dos serviços de saúde. Difícil, porque não se trata de uma ciência exata e os resultados são dependentes de um grande número de fatores. Em qualquer sistema de serviços de saúde, são os profissionais da saúde que, em última instância, definem que serviços serão consumidos, como serão consumidos, onde, em que quantidade e, conseqüentemente, que impacto estes serviços terão sobre o estado de saúde das pessoas. O sucesso das ações de saúde depende, portanto, da organização do trabalho, ou seja, de definições sobre a quantidade, a combinação (o mix) de competências, a distribuição, o treinamento e as condições de trabalho dos profissionais da saúde. Temos um indicador da importância dos trabalhadores em saúde quando observamos que até 75% dos gastos totais em saúde é despendido diretamente com os recursos humanos (formação, pagamento de serviços prestados, beneficios sociais) (referência ?). No passado, os recursos humanos eram percebidos de forma instrumental, como um fator de produção entre outros e não como os protagonistas do processo de produção de serviços. Acreditava-se que os ajustes eventualmente necessários no pessoal poderiam ser alcançados através de programas de treinamento. A gestão de recursos humanos recebia limitada atenção dos teóricos da administração e dos responsáveis políticos pela organização dos serviços. Hoje em dia, a relevância da força de trabalho em saúde é amplamente reconhecida. A elaboração de políticas de recursos humanos ocupa lugar de destaque na agenda da maioria dos formuladores de políticas e dos gestores do setor da saúde. A ênfase atual nos recursos humanos é mais do que justificada. Com efeito, em muitos países, observa-se uma série de desequilíbrios na distribuição do pessoal de saúde, seja por tipo de 1 Gilles Dussault, PhD, professor e diretor do Departamento de Administração da Saúde, Faculdade de Medicina, Universidade de Montreal (Canadá). 2 Luis Eugenio de Souza, MD, MSc, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Bahia) e doutorando da Universidade de Montreal. 2 estabelecimento, por nivel de atenção, por categoria ocupacional ou por região. Esses desequilíbrios representam uma utilização inadequada de recursos raros e custosos e limitam o acesso da população aos serviços. A formação profissional e a educação continuada também apresentam uma série de problemas, como a inadequação ao mercado de trabalho e às necessidades de saúde e a insuficiência de qualidade. Além disso, a observação de variações nas práticas dos profissionais indica a possibilidade de melhorias significativas na eficácia e na eficiência dos serviços prestados, desde que, como se sabe, o volume, o custo e a qualidade dos serviços são determinados pelas milhares de micro-decisões tomadas cotidiamente pelos profissionais e técnicos de saúde. As condições de trabalho dos profissionais de saúde, em muitas regiões, são sofríveis. Há problemas de remuneração, de falta de planos de carreira, de precariedade da infra-estrutura. Sem dúvida, todos esses problemas comprometem as chances de sucesso das políticas de saúde. Na realidade, as políticas de saúde não podem ter êxito sem novas políticas de recursos humanos. Os processos de reforma da saúde em andamento, como o do Brasil, que têm como objetivos a melhoria da acessibilidade, da eqüidade e da qualidade dos serviços, não podem se limitar à reforma das estruturas. Devem também, e de modo prioritário, adequar as competências, os comportamentos e as atitudes dos prestadores de serviços. A prática de gestão de recursos humanos não é, contudo, neutra. Ela reflete os valores e a busca de objetivos correspondentes aos valores adotados. A gestão engloba todas as ações realizadas para o estabelecimento de condições que favoreçam o alcance dos objetivos definidos. Ela “consiste em transformar os recursos disponíveis em serviços que respondam efetiva e eficientemente às necessidades dos indivíduos e das populações dentro de um contexto em permanente evolução” (referência ? ). Nesse texto, desejamos dar uma visão geral do significado, da importância, dos problemas e das estratégias de gestão de recursos humanos em saúde, tanto no nível político quanto no operacional. Para tanto, precisaremos primeiramente lembrar as características peculiares do setor da saúde e de suas organizações, discutindo ainda os critérios e os determinantes do desempenho (performance) dos serviços sanitários. Em seguida, apresentaremos as implicações das especificidades do setor para as políticas de recursos humanos. As políticas devem cobrir todos os aspectos da produção e da gestão dos recursos humanos, ou seja: a avaliação do desempenho do pessoal, os processos determinantes desse desempenho (desenvolvimento de competências, distribuição e gerência de pessoal) e os fatores que influenciam esses processos (políticas, recursos, relações de poder). Vamos ilustrar esses aspectos com a descrição de alguns dos problemas típicos de recursos humanos e discutir suas causas principais. Poderemos, então, definir o conceito de Desenvolvimento dos Recursos Humanos (DRH) como estratégia geral de resposta às necessidades de gestão e de gerência de pessoal. Identificaremos, nesse momento, as estratégias de ação relacionadas a cada uma das dimensões das políticas de recursos humanos. Finalmente, concluíremos com a apresentação dos ingredientes principais das políticas exitosas de pessoal e com um breve comentário sobre os papéis do Estado e do mercado no setor da saúde. 2) GERIR OS SERVIÇOS DE SAÚDE ? AS PARTICULARIDADES DESSA TAREFA Os serviços de saúde não são um fim em si mesmo. Eles existem como resposta à certas necessidades sentidas pela sociedade. A importância que assumem é conseqüência do valor socialmente atribuído à manutenção e à recuperação da saúde. Na prática, as formas de organização dos serviços de saúde variam bastante a depender da sociedade e da época consideradas. Atualmente, existem no mundo, grosso modo, duas formas de 3 organização dos serviços, a saber, como resposta às demandas ou como satisfação de necessidades de saúde. A primeira forma, serviços organizados como resposta às demandas, refere-se a oferta de serviços que atendam a demanda direta dos usuários. Assim, são os doentes (ou as pessoas que assim se julgam) e os seus próximos que, tomando a iniciativa de procurar os serviços, vão fazer com que os prestadores se organizem para esperá-los e atendê-los. Conseqüementemente, essa forma de organização é essencialmente individualista e curativista. A segunda forma, serviços organizados para a satisfação de necessidades, refere-se a oferta de serviços para responder à problemas de saúde populacionais, identificados como prioritários através de processos coletivos de decisão. Serviços como a vacinação ou a atenção integral à saúde da mulher são exemplos dessa forma de organização. Em todos os sistemas de saúde, encontram-se as duas formas convivendo lado-a-lado. Pode-se mesmo dizer que as duas são necessárias, embora em escalas diferentes. Na realidade, o que varia é a ênfase em uma ou outra forma. Há paises, como os EEUU, onde a organização como resposta à demanda é largamente predominante e há outros, como o Canadá, onde predomina a forma de satisfação das necessidades. De modo geral, a abordagem pela demanda cria problemas de eficiência e de eqüidade. A demanda é altamente sensível a fatores outros que não a condição de saúde, especialmente fatores econômicos e sócio-culturais. Assim, o nível de renda e o status social, o nível educacional, a rede de relações sociais e o local de residência dos usuários influenciam sobremaneira a organização dos serviços pela demanda. Além disso, uma parte significativa da demanda é induzida pelos prestadores de serviço de saúde, o que pode comprometer a eficiência em prol de interesses particulares dos profissionais. A organização de serviços baseada nas necessidades de saúde tem a vantagem de ser mais eficiente e mais eqüitativa. Ela parte da premissa de que a utilização de serviços apropriados é capaz de produzir um impacto positivo na situação de saúde da população. As dificuldades com a abordagem pelas necessidades se relacionam, em primeiro lugar, com a cumprimento das complexas tarefas de definição, priorização e monitoramento das necessidades de saúde. Em segundo lugar, dado que existem muitos e diversos determinantes da saúde, a abordagem pelas necessidades exige a coordenação de ações inter-setoriais. Apesar das dificuldades, o enfoque pelas necessidades de saúde é o que melhor permite o planejamento das ações de saúde (e dos recursos exigidos) segundo uma racionalidade técnica e baseado em valores socialmente compartilhados. Na verdade, como visualizado no quadro abaixo, o ideal seria o estabelecimento da perfeita concordância entre problemas de saúde, serviços e recursos, com as necessidades indicando os objetivos. Necessidades de saúde Objetivos em termos de saúde Necessidades de serviços Objetivos em termos de servicos Necessidades de recursos Objetivos em termos de recursos Pineault & Daveluy (1995) Este esquema fornece um útil roteiro de questões para a gestão dos serviços de saúde. A primeira questão se refere à identificação e à mensuração das necessidades de saúde da população. 4 Considerando que as necessidades de saúde são muitas (no limite, inesgostáveis, pois sempre haverá novas necessidades), a questão da priorização se impõe. Os especialistas em planejamento de saúde constumam sugerir alguns critérios para a definição das prioridades. Em geral, esses critérios se classificam em quatro categorias: (1) a gravidade atual e a perspectiva de evolução do problema caso nada seja feito, (2) a importância socialmente reconhecida ao problema, (3) a viabilidade das ações de enfrentamento do problema e o impacto previsível da intervenção e (4) o custo da intervenção. Definidas as necessidades de saúde prioritárias, o segundo passo é definir os objetivos em termos de saúde. Os objetivos podem variar de acordo com as características do problema e da intervenção disponível para enfrentá-lo. Assim, por exemplo, as instituicões internacionais de saúde estabeleceram como objetivo, para a poliomielite, a erradicação completa da doença (o que já foi feito com a varíola). O mesmo objetivo não pode, infelizmente, ser definido em relação ao câncer. Estabelecidos os objetivos de saúde, deve-se interrogar sobre as necessidades de serviços. Em primeiro lugar, deve-se questionar se os serviços presentemente oferecidos respondem às necessidades de saúde da população. Em segundo lugar, perguntar que ajustes são necessários nos atuais serviços para que atendam satisfatoriamente a essas necessidades. E, finalmente, indagar se novos serviços (e quais) são necessários. Além de adequados às necessidades, os serviços precisam ser eficazes, ou seja, contribuir a resolver efetivamente os problemas. Estabelecer a eficácia das ações de saúde, no entanto, não é um processo simples. De modo geral, primeiro se define a eficácia potencial, téorica, a partir dos estudos realizados em situações experimentais. Em seguida, define-se a eficácia real, a partir da aplicação da medida de saúde às situações concretas, como no caso dos projetos-pilotos. E, finalmente, estabelecese a eficácia populacional ou efetividade, a partir da adoção, em larga escala, da intervenção referida. Os serviços também precisam ser eficientes, ou seja, produzir o máximo com o menor custo possível ( eficiência técnica ), permitindo o alcance dos melhores resultados de saúde ( eficiência alocativa ). Em muitas sociedades, há ainda uma preocupação com a eqüidade de acesso aos serviços de saúde. Crê-se que os serviços de saúde devem estar disponíveis à todos, em função, exclusivamente, da necessidade de saúde de cada um ( eqüidade vertical ). Acredita-se também que às mesmas necessidades deve corresponder o mesmo tratamento ( eqüidade horizontal ). Fatores como nível de renda, posição social, grau educacional, local de residência, etc, não deveriam ser critérios nem para o acesso aos serviços nem para a seleção de tratamentos. A satisfação dos usuários deve ser também um dos objetivos dos serviços de saúde. Existem, no geral, duas abordagens para a avaliação da satisfação. A primeira, chamada satisfação revelada, assume que os serviços efetivamente consumidos expressam as preferências dos usuários. O problema dessa abordagem é que, na prática, existem tantos obstáculos ao acesso aos serviços que torna-se difícil acreditar que os serviços realmente utilizados foram um resultado das preferências. Outro problema é que a utilização de serviços de saúde reflete talvez mais as preferências dos prestadores do que as dos consumidores. A segunda abordagem, a satisfação expressa ou afirmada, repousa na manifestação explícita do grau de satisfação pelos próprios usuários. Existem atualmente diversas técnicas confiáveis para medir a satisfação expressa, que torna-se assim a abordagem mais apropriada. Finalmente, não se deve esquecer a sustentabilidade dos serviços de saúde. A sustentabilidade se refere à capacidade de produzir efeitos duráveis. Um serviço de saúde é sustentável quando operado por um sistema organizacional capaz de mobilizar e alocar, a longo termo, os recursos adequados. As ações propostas precisam ter um grau suficiente de viabilidade econômica (custo suportável), organizacional (capacidade instalada) e política (apoios suficientes). Precisam ainda respeitar as regras éticas e legais prevalentes e ter ampla aceitação social. 5 Estabelecidos, então, as necessidades e os objetivos em termos de saúde e em termos de serviços, a última etapa é definir as necessidades e os objetivos em termos de recursos. Naturalmente, recursos de diversas ordens (organizacionais, financeiros, materiais, etc) são necessários e devem estar todos alinhados de modo coerente para que os objetivos das políticas de saúde sejam atingidos. No entanto, na continuação do nosso texto, estaremos nos concentrando nos recursos humanos. 3) AS ORGANIZAÇÕES DE SAÚDE COMO ORGANIZAÇÕES PROFISSIONAIS As organizações prestadoras de serviços de saúde detêm muitas características particulares. Certas especificidades advêm, em primeiro lugar, do fato de pertecerem ao setor da saúde. Em geral, as necessidades de saúde, a que buscam responder os serviços, são percebidas como muito importantes. Os serviços são vistos como sendo de elevada utilidade social. Além disso, os problemas de saúde possuem um caráter múltiplo e multidimensional (problemas orgânicos, psicológicos, sociais, éticos, religiosos, etc.) e variam bastante de indivíduo para indivíduo e entre os diferentes grupos populacionais. Em segundo lugar, decorrente das especificidades dos problemas de saúde, o trabalho nas organizações sanitárias é muito variável, complexo e de difícil padronização. As atividades realizadas são especializadas e altamente interdependentes. A definição e a medida dos resultados dessas atividades são tarefas extremamente complicadas a realizar. Com efeito, como medir o sucesso de um ato médico? Se, por exemplo, 90% dos exames laboratoriais apresentam resultados negativos (bons para os pacientes), significa que os médicos estão solicitando de modo excessivo ou inadequado os exames ? Os serviços precisam ainda estar sempre preparados para situações de emergência, que são freqüentes na área da saúde. E como serviços não são bens materiais passíveis de estocagem, estar preparado para urgências é um desafio de resolução complexa. Por último, os serviços de saúde podem ser qualificados como organizações profissionais, segundo a tipologia do professor Mintzberg (1987), da Universidade McGill, no Canadá. As organizações profissionais se caracterizam, essencialmente, por dependerem do trabalho de profissionais para funcionar. Os profissionais são trabalhadores diferenciados, particularmente pelo fato que o próprio exercício das suas competências exige que disponham de um elevado grau de independência. Nenhum superior hierárquico pode impor ao profissional uma conduta determinada. O chefe do serviço, por exemplo, não pode dizer ao nutricionista que dieta adotar para o paciente. Os trabalhadores profissionais têm consciência das suas singularidades, foram treinados por longos períodos e com altos custos para a sociedade. Possuem informações que não estão ao alcance nem dos gerentes nem dos usuários dos serviços, que se encontram, desse modo, em situação de dependência. Em conseqüência disso, a estrutura das organizações profissionais é necessariamente descentralizada, ainda que burocrática. É descentralizada, porque somente o próprio profissional pode ser responsável por seu trabalho. No entanto, é burocratizada pois o trabalho profissional é estável, ou seja, os mesmos procedimentos costumam se repetir ao longo do tempo. (Um cirurgião não costuma reinventar os atos cirúrgicos a cada operação). Dessa maneira, as competências dos profissionais podem ser aperfeiçoadas através de programas padronizados. Toda educação profissional tem como objetivo a internalização de um conjunto de procedimentos, o que faz com que a estrutura seja tecnicamente burocrática (estrutura que adota a padronização como mecanismo de coordenação). A coordenação da organização profissional depende da padronização de competências, que é obtida primariamente através da formação profissional. Os mecanismos de coordenação limitam-se, no essencial, à normatização das qualificações no momento da entrada do profissional na organização. 6 Os profissionais-operadores se coordenam automaticamente através do conjunto das suas competências, que tornam previsíveis os comportamentos de cada um. Por outro lado, apesar da padronização, a complexidade do trabalho profissional exige que um alto grau de discernimento individual seja utilizado na aplicação das competências. O que diferencia a burocracia profissional das demais é que, enquanto estas geram seus próprios padrões, os daquela se originam fora da sua estrutura, nas entidades representativas dos profissionais. A organização profissional pode ser vista como um conjunto de programas padrões - de fato, o repertório de competências dos profissionais - que são aplicados à situações conhecidas, ou contingências, também padronizadas. O profissional tem, assim, duas tarefas básicas: (1) categorizar, ou diagnosticar, a necessidade do cliente em termos de uma das contingências, o que indica que programa padrão aplicar e (2) executar o programa. A organização procura combinar uma contingência pré-determinada com um programa padronizado. Desse modo, a estrutura se apresenta organizada em “nichos”, onde cada indivíduo trabalha autonomamente, com ampla margem de controle sobre o seu próprio trabalho. Não só o superior hierárquico, mas também os colegas têm poucas possibilidades de impor uma conduta determinada à um dos seus pares. O único controle ao qual os profissionais admitem se submeter é o exercido pelas entidades corporativas (Conselhos Federais e Regionais das profissões), cujos representantes foram por eles mesmos escolhidos. Acrescente-se que esse controle é limitado aos aspectos éticos, baseia-se num Código de Ética elaborado pela própria profissão e visa proteger tanto o público usuário quanto os próprios profissionais. Dada essa configuração bastante descentralizada, os profissionais controlam não somente seu próprio trabalho mas também conseguem controlar boa parte das decisões administrativas. Fazem isso assumindo eles mesmos postos administrativos ou indicando pessoais da sua confiança para esses postos. A autonomia dos profissionais-operadores torna a intervenção dos gerentes na produção bastante difícil. Na prática, o que possibilita a intervenção dos gerentes é que os operadores, por sua vez, precisam da organização. Ela fornece os instrumentos de trabalho e a infra-estrutura material e humana de apoio, essencial para que possam exercer as suas competências. A infra-estrutura de apoio é organizada, em geral, de forma mais convencional, o que leva à coexistência, dentro das organizações profissionais, de duas estruturas de gestão: uma democrática, para os profissionais, outra centralizada, para o pessoal de apoio. Por conseguinte, dos gerentes é exigida uma capacidade também dupla. A definição da missão básica das burocracias profissionais (os produtos ou serviços a serem oferecidos ao público) é um processo, no fundamental, controlado por cada um dos profissionais. No entanto, este poder de decisão é dado aos indivíduos apenas porque o longo treinamento assegura que eles vão decidir de modo aceitável pelas suas profissões. Assim, no limite, a liberdade individual é controle profissional. É liberdade em relação aos administradores, mas não em relação ao conjunto da profissão. Outras decisões estratégicas, como as relativas aos insumos (seleção de profissionais, definição de clientela, levantamento de fundos), aos meios de trabalho (rede física, equipamentos), à estrutura e às formas de direção (comitês, hierarquia), são tomadas ou pelos administradores ou através de mecanismos coletivos. A estratégia geral ou a missão básica das organizações profissionais costuma ser bastante estável. Reorientações maiores são desencorajadas pela fragmentação das atividades e pelo poder de influência de cada indivíduo. Entretanto, as estratégias específicas (como, por quem, em que quantidade, com que qualidade, com que prioridade oferecer cada serviço), modificam-se 7 continuamente e, pior, podem levar à uma excessiva e deletéria fragmentação das atividades. Manter a coordenação entre as estratégias, fundamental para a garantia do desempenho, é uma tarefa complexa que o gerente não consegue cumprir sem a colaboração dos trabalhadores. A organização profissional é democrática, os trabalhadores profissionais são responsáveis pelas principais decisões e são livres para estabelecer diretamente as relações com os clientes. O resultado é que os profissionais são trabalhadores motivados e dedicados. Além disso, a autonomia que gozam permite o aperfeiçoamento das competências através da repetição dos mesmos programas complexos ao longo do tempo. Por outro lado, estas mesmas características - democracia e autonomia - estão na base do problemas desse tipo de organização. Um problema se relaciona às dificuldades de coordenação das atividades. O principal mecanismo de coordenação, a padronização das competências, não é suficiente para responder a todas as necessidades de coordenação, seja dos profissionais entre si ou deles com o setor de apoio. Um segundo problema se refere à má conduta de certos profissionais. A organização profissional depende essencialmente do discernimento e do julgamento dos profissionais para poder funcionar. Quando os indivíduos são sérios, não há problemas. No entanto, sempre existem pessoas irresponsáveis ou que confundem as necessidades dos clientes com seus interesses particulares. Corrigir a má conduta de um profissional é extremamente difícil. Primeiro, pela dificuldade real de avaliação do produto do trabalho profissional. Segundo, porque o corporativismo, sempre forte entre os profissionais, dificulta qualquer ação contra um dos membros da corporação. Não só os clientes, mas também a organização pode ser prejudicada por problemas de má conduta. Muitos especialistas limitam sua lealdade à profissão, esquecendo que as organizações também precisam da lealdade e da colaboração de seus membros. Finalmente, há o problema da resistência às inovações. Em essência, as organizações profissionais são burocracias, mais voltadas para aperfeiçoar programas existentes em ambientes estáveis do que para criar novos programas para necessidades não previstas. Além disso, inovações importantes exigem ações coletivas, cuja realização não é uma característica marcante dos profissionais. Normalmente, tenta-se resolver estes problemas através do aumento do controle externo sobre os profissionais. Adotam-se ou a supervisão direta ou a padronização do processo ou do produto do trabalho. Ora, um trabalho complexo como o profissional não pode ser padronizado a partir de regras, regulamentos ou medidas de desempenho. Todos esses tipos de contrôle, transferindo a responsabilidade pelo serviço do indivíduo profissional para a administração, comprometem a eficácia do trabalho. Se o profissional é incompetente, não há regras que possam torná-lo competente. As soluções talvez passem pelo controle financeiro das organizções profissionais e pela legislação contra o comportamento profissional irresponsável. Fora isso, as mudanças nessas organizações não vêm de grandes gestos da administração, mas sim de modificações progressivas do comportamento dos profissionais, através da educação dos novos e do chamamento à responsabildade de todos os profissionais, através da pressão, se preciso, sobre as associações profissionais. Enfim, estar consciente das características das organizações típicas do setor da saúde é essencial para os formuladores de políticas e para os gestores. Dificilmente, uma política de saúde ou de recursos humanos em saúde terá êxito, ignorando como funcionam as organizações profissionais. O mesmo se pode dizer das práticas de gerência de serviços de saúde, em geral, ou do pessoal de saúde, em particular. 4) CRITÉRIOS E DETERMINANTES DO DESEMPENHO DAS ORGANIZAÇÕES DE SAÚDE 8 A definição de desempenho ou performance organizacional é determinada, antes de tudo, pelo conceito de organização adotado. Entre os estudiosos do assunto, não há consenso sobre como definir uma organização. Em uma recente revisão da literatura especializada, o professor Claude Sicotte, da Universidade de Montreal, em colaboração com outros pesquisadores, classificou, em quatro modelos, as concepções existentes de organização e os respectivos critérios de desempenho. Primeiramente, há o modelo racional. De acordo com esse modelo, uma organização existe para cumprir certos objetivos. As pessoas que decidiram montar a organização, o fizeram tendo em vista atingir, através dela, resultados previamente almejados. Nesse caso, o critério de desempenho não poderia deixar de ser o alcance dos objetivos pré-estabelecidos. O segundo modelo, chamado de relações humanas, percebe as organizações como um corpo orgânico, como um ser vivo, onde os atores sociais desempenham funções metaforicamente correspondentes às funções vitais. Assim, os dirigentes da organização são o cérebro, os operadores, os braços, etc. O desempenho é expresso, aqui, em termos do bom funcionamento de todos os órgãos, da “saúde” interna da organização. Quando as organizações são concebidas como sistemas abertos e, portanto, a ênfase é posta sobre as relações entre a organização e o ambiente externo, a aquisição, pela organização, de recursos que se encontram no ambiente exterior se torna o critério de performance. Finalmente, o quarto modelo é o do processo interno de decisão. Neste modelo, a sobrevivência da organização é tida como resultante do equilíbrio organizacional, obtido através do consenso e da cooperação. Logo, uma organização performante é a que funciona dentro de um bom clima organizacional, sem tensões internas indevidas. Mas, não só os critérios, também os fatores considerados determinantes do desempenho variam de acordo com a conceito de organização adotado. Assim, para o modelo do alcance dos objetivos (modelo racional), a performance de uma organização é influenciada pelas características do ambiente, pela estrutura da organização, pelos processos de gestão e pelas expectativas dos indivíduos e grupos interessados nas atividades da organização. Para o modelo de relações humanas, os determinantes da performance se situam no ambiente externo (a complexidade, a estabilidade) e no ambiente interno (o clima organizacional). As características estruturais e tecnológicas da organização (decentralização, especialização, formalização, operações, conhecimentos utilizados, etc.) são outros determinantes. Por fim, as características dos recursos humanos e as políticas e práticas de gestão são também consideradas determinantes do desempenho organizacional. Para o modelo de aquisição des recursos (modelo de sistemas abertos), as relações entre a organização e seu ambiente são o componente essencial da performance. E no ambiente, são sobretudo as relações inter-organizacionais que são determinantes. Desse modo, o nível de concentração dos recursos de financiamento e de poder, a natureza dos sistemas de regulação, o grau de cooperação e o de coordenação entre as diferentes organizações são os fatores decisivos. Finalmente, para o modelo do processo de decisões, o grau de integração e de coordenação das atividades internas é o determinante principal do desempenho. Os processos internos representam os esforços despendidos para a realização das atividades da organização. Se pouco ou mal integrados, esses processos comprometem o desempenho organizacional. O professor Sicotte e seus colegas têm razão em notar que a adoção de qualquer um desses modelos é problemática. Pode-se facilmente admitir que os aspectos levantados pelos diferentes modelos são todos importantes e, portanto, não há motivo para se limitar a apenas alguns deles. Por outro lado, não parece possível a definição de um modelo universal de performance, aplicável a toda e qualquer organização. Cada tipo de organização tem características particulares que recomendam a adoção de definições distintas de performance. Além disso, o desempenho implica necessariamente em “trade-offs”: não se pode ser performante, ao mesmo tempo, em todos os aspectos 9 de uma organização. A busca de uma melhor performance em certo aspecto quase sempre leva à perdas de desempenho em outros aspectos. O desafio é encontrar um modelo de performance que, mesmo não sendo universal, seja abrangente e integrativo, evidenciando as vantagens e desvantagens de cada opção. Para tanto, o passo fundamental é tornar explícito o processo de escolha dos indicadores de desempenho, sabendo que diferentes atores valorizam diferentes dimensões da performance. Figura 1- Critérios e determinantes do desempenho Modelos de organização Racional Critérios de desempenho Determinantes do desempenho Alcance dos objetivos Características do ambiente, Estrutura da organização, Processos de gestão e Expectativas dos interessados. Relações humanas Bom funcionamento das divisões internas Complexidade e estabilidade do Ambiente externo, Clima organizacional, Estrutura da organização, Características dos recursos humanos e Políticas e práticas de gestão. Sistemas abertos Aquisição de recursos Relações entre a organização e seu ambiente, sobretudo as relações inter-organizacionais. Processo de decisão Clima organizacional Grau de integração e de coordenação das atividades internas. Numa tentativa de formulação desse modelo integrativo, o mesmo professor Sicotte, com seus colaboradores, propõe um modelo de avaliação do desempenho, cuja apresentação aqui nos parece útil à compreensão do tema. Partindo da Teoria da Ação do Sistema Social, do célebre sociólogo estadunidense Talcott Parsons, os autores canadenses propõem um quadro conceitual do desempenho das organizações de saúde que repousa sobre a interação de quatro sub-sistemas funcionais. O primeiro sub-sistema se refere à função de adaptação da organização ao seu ambiente. Tratase da garantia da sobrevivência e do crescimento institucional através da manipulação judiciosa das oportunidades e ameaças presentes no meio-ambiente. Aqui, as dimensões do desempenho se relacionam à capacidade de: adquirir recursos, mobilizar apoios, responder às necessidades da população e aos valores sociais, se fazer presente no mercado e aprender e inovar. O segundo sub-sistema é a função de alcance dos objetivos que se refere à habilidade da organização de tomar as decisões estratégicas que vão assegurar a realização das metas de longo prazo. As dimensões do desempenho incluem a eficácia, a eficiência e a satisfação de todos os envolvidos com os resultados. A função de produção de serviços constitue a terceiro sub-sistema. As dimensões da performance são o volume de serviços produzidos, a coordenação dos fatores de produção, a produtividade e a qualidade dos serviços (humanização, acessibilidade, integralidade, continuidade, qualidade técnica e satisfação dos clientes). 10 Enfim, o quarto sub-sistema refere-se à função de manutenção da cultura e dos valores organizacionais. Esta função é responsável pela produção de sentido, de significado e de coesão entre os membros da organização. O clima de colaboração e o consenso sobre os valores fundamentais da organização, ingredientes importantes do desempenho, são as duas dimensões ligadas à esta função. Deve-se notar que estes quatro sub-sistemas não são independentes um do outro. Ao contrário, existem os sub-sistemas de integração entre as funções que asseguram a coesão e o equilíbrio ao sistema como um todo. Estes sub-sistemas de integração, em número de seis, são os chamados “alinhamentos”: estratégico, alocativo, tático, operacional, de legitimação e contextual. O alinhamento estratégico liga as funções de adaptação e de alcance dos objetivos. A congruência entre o processo de adaptação e os objetivos organizacionais, de um lado, e a pertinência dos objetivos em relação ao processo de adaptação, de outro, são as dimensões do desempenho componentes desse sub-sistema. O alinhamento alocativo exprime as interrelações entre as funções de adaptação e de produção de serviços. As dimensões da performance referem-se à adequação do processo de adaptação em relação à produção e, vice-versa, a adequação do sistema de produção ao processo de adaptação. O alinhamento tático representa as trocas entre as funções de alcance dos objetivos e de produção de serviços. A adequação do sistema de produção aos objetivos organizacionais e a pertinência da escolha dos objetivos ao sistema de produção de serviços são as duas dimensões do desempenho nesse sub-sistema. O quarto sub-sistema de integração é o alinhamento operacional, que exprime as interrelações entre as funções de manutenção da cultura e de produção. As dimensões do desempenho, aqui, são a congruência do sistema de produção à cultura organizacional, de um lado, e o impacto do sistema de produção sobre a promoção dos valores organizacionais, de outro lado. O alinhamento da legitimação representa as interrelações entre as funções de manutenção da cultura e de alcance dos objetivos. A coerência dos objetivos com os valores organizacionais e o impacto do alcance desses objetivos sobre a cultura da organização são as dimensões do desempenho nesse sub-sistema. Finalmente, o sexto e último sub-sistema de integração é o alinhamento contextual, que representa as interrelações entre as funções de adaptação e de manutenção da cultura. A congruência do processo de adaptação com os valores organizacionais, de um lado, e o impacto desse processo sobre a cultura e os valores são as duas dimensões do desempenho. Um quadro conceitual como o descrito tem a vantagem de permitir uma compreensão mais completa do desempenho organizacional. Ele enumera as várias dimensões da performance, evidenciando as suas interrelações. Mais importante, este quadro de referência permite que os distintos pontos de vistas dos diferentes atores sejam explicitados e levados em consideração. Os recursos humanos têm um papel a cumprir em todas as dimensões da performance organizacional. Compreender como se caracterizam e se relacionam estas dimensões é, portanto, fundamental para quem se ocupa da gestão ou da gerência de pessoal. A valorização ou a priorização de uma ou outra dimensão terá consequências diferentes e exigirá respostas diferentes da parte dos gestores da força de trabalho. 11 Figura 2 – Quadro de referência para a avaliação do desempenho de uma organização de saúde (Sicotte et al, 1998) Ambiente externo Adaptação Alinhamento estratégico Alcance objetivos dos Alinhamento tático Alinhamento contextual Alinhamento alocativo Alinhamento de legitimação Ambiente interno Manutenção da cultura e dos valores organizacionais Produção de serviços Alinhamento operacional Meios Fins 5) ANÁLISE DA SITUAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS Após termos compreendido as características do setor da saúde e as particulariades de suas organizações, incluindo a definição de desempenho, podemos começar a discutir mais especificamente a questão dos recursos humanos. Em regra, no processo de formulação de políticas, o primeiro passo é conhecer a situação presente. A área de recursos humanos não é exceção. Vamos, então, discutir agora porque e como fazer uma análise da situação de recursos humanos em saúde (RHS). Não é preciso refletir muito para ver a importância de uma análise bem feita da situação de pessoal. Em primeiro lugar, um bom diagnóstico da situação torna possível a identificação de problemas e a medida da sua extensão. Em segundo, possibilita a priorização dos problemas. Em terceiro, permite a formulação de objetivos. Em quarto, orienta a definição de estratégias e operações. E em quinto, fornece um padrão de referência para a avaliação posterior dos resultados das intervenções. Enfim, é um instrumento útil ao planejamento como um todo. Além disso, uma análise bem feita da situação pode ajudar à sensibilizar os atores sociais para a importância de dedicar uma atenção especial às questões de recursos humanos. Pode contribuir, assim, para pôr essas questões na agenda política do país. E mais: se o processo de análise é conduzido com a participação de todos os envolvidos, é mais fácil se chegar à um consenso sobre quais são as questões essenciais a serem tratadas. Figura 3. A importância da análise da situação dos recursos humanos em saúde Informar os processos de formulação de políticas e de tomada de decisão, contribuindo à: • Identificar e priorizar problemas • Definir objetivos • Identificar estratégias de intervenção • Criar um padrão para a avaliação • Sensibilizar os interessados • Pôr os problemas de RRHH na agenda política • Contribuir para a construção do consenso Discutida, então, a sua importância, apresentaremos a seguir, um quadro de referência para a análise da situação de RHS. (Para outros quadros de referência, consultar Egger e Adams, 1998 ou Martineau e Martinez, 1997) Uma análise dos recursos humanos em saúde pode se basear, com vantagens, em uma avaliação normativa, que consiste na comparação dos resultados observados com os resultados esperados de uma determinada intervenção. Esse tipo de análise não tem o poder explicativo das avaliações científicas, mas é talvez mais útil aos formuladores de políticas. Em termos de RHS, os resultados correspondem ao desempenho da força de trabalho. Esse desempenho é definido em função da contribuição da força de trabalho para o alcance dos objetivos dos serviços de saúde. O quadro de referência aqui proposto organiza a análise da situação dos RHS em um modelo dinâmico de três dimensões: o desempenho da força de trabalho, os processos que governam a utilização da força de trabalho e os principais fatores que influenciam esses processos (ver figura 4). A análise consiste em (1) uma descrição das três dimensões, (2) uma avaliação das diferenças entre a situação atual e a situação desejada, em cada dimensão e (3) uma explicação dessas diferenças. 14 Num setor de serviços como o da saúde, a performance da força de trabalho é determinante para o alcance dos objetivos. Esses objetivos são, ao mesmo tempo, o critério da avaliação da performance da força de trabalho. Propomos, assim, analisar os seguintes objetivos dos serviços de saúde como dimensões do desempenho da força de trabalho: • Cobertura. Em termos dos serviços, a cobertura significa a proporção da população que tem efetivamente assegurado o acesso aos serviços. Como dimensão do desempenho dos RHS, a cobertura mede a extensão em que a força de trabalho contribui para garantir o acesso dos diferentes sub-grupos da população à gama completa de serviços oferecidos. • Produtividade. Em geral, a produtividade é a relação entre a quantidade de insumos utilizados e o volume do produto resultante. Como desempenho dos RHS, a produtividade mede o volume de serviços produzidos, dada a quantidade existente de pessoal. • Qualidade técnica. Refere-se ao grau de impacto (positivo) dos serviços no estado de saúde da população. Mais especificamente em RHS, a qualidade técnica reflete o impacto do trabalho dos profissionais sobre a saúde dos usuários. Como o setor da saúde é trabalho-intensivo, a dimensão mais específica da qualidade técnica, na prática, se superpõe à dimensão mais geral. • Qualidade sócio-cultural. Refere-se ao grau de aceitabilidade dos serviços e de responsividade às expectativas dos usuários. Em termos de RHS, o grau de aceitabilidade e responsividade do trabalho profissional. • Estabilidade organizacional. A estabilidade mede a extensão em que é garantida (1) a manutenção, ao longo do tempo, da capacidade de produção de serviços e (2) a adaptação às novas necessidades e circunstâncias. Três processos são determinantes da performance dos RHS: o desenvolvimento de competências, a distribuição e a gerência de pessoal. O desenvolvimento de competências se refere ao processo de produção, em cada categoria profissional, do número adequado de trabalhadores, possuidores dos conhecimentos, das habilidades e das atitudes necessários ao alcance dos níveis de desempenho exigidos pelos objetivos dos serviços de saúde. A distribuição de pessoal é o processo de alocação dos profissionais nos diferentes tipos e níveis de serviços, nas diferentes regiões e sub-regiões do país, de modo a garantir a eqüidade de acesso de todos os grupos populacionais a todos os serviços. A gerência de pessoal é o processo que visa garantir um ambiente de trabalho apropriado e um nível adequado de desempenho dos recursos humanos. Desse modo, a gerência não se limita ao controle das atividades do pessoal, mas se ocupa também de assegurar a disponibilidade dos instrumentos e meios de trabalho dos profissionais. Por sua vez, esses processos são fortemente influenciados pelas políticas implementadas no setor da saúde e em outros setores, pela disponibilidade de recursos e pelas relações de poder entre os diversos atores envolvidos. Todas as decisões, ações e inações que têm influência sobre a produção, a distribuição e a gerência de pessoal são políticas que precisam ser levadas em consideração na análise da situação dos RHS. A disponibilidade de recursos financeiros, de infra-estrutura física, de equipamentos, de informação e mesmo de certos profissionais (existência de candidatos potenciais, de professores bem preparados, de gerentes capacitados, etc.), em quantidade suficiente, é essencial para a realização dos processos de desenvolvimento de competências, distribuição e gerência de pessoal. As relações de poder, os conflitos e as alianças entre os diversos atores sociais (o Estado, os prestadores de serviços, as instituições de educação, os pesquisadores, os produtores de insumos, os 15 terceiro-pagantes, os consumidores, etc.) determinam a capacidade relativa de cada um de influenciar as decisões e as ações sobre as políticas de recursos humanos. A descrição da situação dos RHS consiste principalmente em reunir as informações sobre todas as dimensões mencionadas acima, um processo guiado por questões como as seguintes: • Em que medida o desempenho observado da força de trabalho contribui para o alcance dos objetivos dos serviços de saúde ? • Em que medida os processos de desenvolvimento de competências, de distribuição e de gerência da força de trabalho contribuem para produzir o desempenho esperado ? São adequadamente coordenados esses três processos ? • Em que medida as políticas atuais, a disponibilidade de recursos e as relações de poder apoiam o desenvolvimento de competências, a distribuição e a gerência da força de trabalho ? A fase descritiva da análise da situação de recursos humanos em saúde começa, portanto, com a definição sobre que informações são necessárias e como coletá-las. Para guiar esse processo de coleta de informações, propomos uma lista de questões e apresentamos algumas sugestões de informações possivelmente úteis. 1. Em relação ao desempenho: 1.1.Cobertura Questões: • A força de trabalho atual oferece serviços a todos os sub-grupos populacionais (por nível sócioeconômico, por sexo, por faixas etárias, por etnias, por local de moradia – rural/urbano) ? • Oferece todos os tipos de serviços (preventivos, curativos, paliativos, de reabilitação, de promoção da saúde) ? • Cobre todos os problema prioritários ? Informações úteis: Distribuição atual e prevista dos prestadores por tipos de serviços, numéro de profissionais por habitantes, proporção da população com acesso aos serviços, distribuição dos usuários por sexo, faixa etária, nível sócio-econômico, local de residência, etnia. Tempo de espera para ter acesso aos serviços. 1.2. Produtividade Questões: • Quais são os níveis atuais de produtividade por tipo de serviço ? • Como se comparam aos níveis de outros grupos similares de prestadores ? • Há variações geográficas significativas ? • Os níveis atuais permitem responder às necessidades do país ? Informações úteis: Número de procedimentos realizados (consultas, duração das internações, cirurgias, partos, ect.) por médicos, por enfermeiros, por leitos hospitalares. Número de pacientes atendidos. Comparações regionais. 1.3. Qualidade técnica Questões: • O trabalho profissional produz os resultados esperados ? É eficaz ? Alcança os padrões estabelecidos ? 16 Informações úteis: Taxa de incidência de eventos preveníveis (doenças nosocomias, mortalidade materna, mortes por doenças imuno-preveníveis, complicações cirúrgicas). 1.4. Qualidade sócio-cultural Questões: • Os profissionais produzem serviços adaptados às características sociais e culturais dos usuários ? • Os serviços que respeitam os valores, as expectativas e as preferências dos clientes ? Informações úteis: Proproção de usuários satisfeitos, número de reclamações, taxa de utilização de serviços eletivos (pré-natal, vacinação) e de serviços alternativos (rezadores, curandeiros, parteiras, etc.). 1.5. Estabilidade organizacional Questões: • O bom desempenho pode ser mantido em base contínua ? • A força de trabalho é estável ou flutua de modo imprevisível ? • O país consegue reter seus profissionais mais qualificados ? Informações úteis: Rotatividade dos empregados, taxa de emigração de profissionais, proporção de pessoal da saúde trabalhando em outros setores, proporção de postos não-preenchidos, número de dias de trabalho perdidos (absenteísmo, greves, etc.). 2. Em relação ao desenvolvimento de competências 2.1. Avaliação das necessidades e planejamento Questões: • Existe algum processo de identificação das competências que os prestadores devem possuir ? • É conhecido o número de prestadores necessários em cada categoria profissional ? • É planejada a combinação (mix) de prestadores, de modo que seja coerente com os problemas de saúde e que seja a alternativa mais eficiente ? • O treinamento é planejado, em termos de pessoal e recursos materiais ? • O planejamento dos RHS em geral é realista, em função das possibilidades do país ? Informações úteis: Identificação das necessidades de treinamento por estudos já realizados, proporções médicos/enfermeiros, médicos/técnicos, médicos/farmacêuticos. Evidências de excesso de profissionais (desemprego, sub-emprego) ou de escassez (postos vacantes). 2.2. Recrutamento e retenção Questões: • Existe algum processo que assegure que as instituições educativas recrutem os estudantes que possuem as capacidades necessárias à aquisição das competências ? • Qual a proporção de graduandos em relação ao número de admitidos ? Informações úteis: 17 Evidências da utilização de procedimentos de seleção de estudantes. Taxas de abandono após cada ano de treinamento. Duração média dos cursos. Custos totais por graduado. Proporção de alunos por professor. 2.3. Treinamento Questões: • Qual a capacidade de treinamento em termos de pessoal qualificado, material e equipamento e infra-estrutura física ? • Os conteúdos dos treinamentos são coerentes com as necessidades de saúde e as características da população ? • É de boa qualidade e eficaz, o treinamento ? • Há mecanismos de educação continuada ? Informações úteis: Porporção de professores em tempo integral e parcial. Porporção de professores com pósgraduação, número de professores, de livros e de equipamentos por estudante. Opinião das agências de acreditação das instituições de ensino.Proporção de profissionais engajados em atividades de educação continuada. Satisfação dos profissionais com a sua educação e seu treinamento. Evidências da existência de treinamento em áreas como garantia de qualidade e trabalho de equipe, além das competências específicas de cada categoria. 3. Em relação à distribuição da força de trabalho 3.1. Distribuição por nível de intervenção, por tipo de serviços e de estabelecimento Questões: • Há desequilíbrios na distribuição de pessoal entre os níveis primário, secundário e terciário ? • Há desequilíbrios entre os serviços preventivos, curativos, de reabilitação ? Saúde física e saúde mental ? • Entre hospitais e serviços não-hospitalares ? • Entre serviços públicos e privados ? Informações úteis: Proporção de prestadores por nível de intervenção. Proporção de médicos generalistas e especialistas. Razão prestadores/pacientes por tipo de serviço. Número de leitos por habitantes. Proporção de leitos públicos e privados. 3.2. Distribuição geográfica Questões: • Existem regiões mal servidas ? Periferias urbanas, áreas rurais, áreas longíquas ? • Que tipos de prestadores estão faltando nessas regiões ? Informações úteis: Densidade relativa de prestadores por região. Razões prestadores/população. 4. Em relação à gerência de pessoal 4.1. Capacidade gerencial 18 Questões: • Há gerentes, em número suficiente, com capacidade de definir objetivos e prioridades, de comunicá-los, de motivar os profissionais e de avaliar o desempenho ? • É adequado o processo de seleção de gerentes ? • Os gerentes dispõem de condições de trabalho apropriadas ? Informações úteis: Proporção de gerentes com treinamento em gestão de serviços de saúde. Descrição dos procedimentos de seleção. Proporção de gerentes satisfeitos com suas condições de trabalho. Tempo médio de experiência dos gerentes. 4.2. Gerência da distribuição e da retenção de pessoal Questões: • O processo de alocação de pessoal leva em conta os objetivos dos serviços de saúde ? • Há descompassos entre as competências dos profissionais e as posições que ocupam ? • Há incentivos para encorajar os profissionais a trabalharem em áreas menos atraentes ? • Há incentivos à permanência no emprego ? Informações úteis: Critérios utilizados para alocação de pessoal. Congruência entre as exigências do posto de trabalho e as qualificações dos prestadores. Evidência da existência de incentivos à melhoria da distribuição e à permanência de pessoal. Proporção de prestadores satisfeitos com as condições de trabalho. Proporção de profissionais com mais de uma ocupação. 4.3. Gerência da produtividade Questões: • Em que medida as condições de trabalho atuais, a divisão de tarefas, os sistemas de incentivo, os estilos e as práticas de gestão favorecem a produtividade ? • A substituição é possível e encorajada ? • O trabalho em equipe é estimulado ? • Há obstáculos à produtividade ? • Técnicas mais custo-efetivas são disponibilizadas aos prestadores ? Informações úteis: Proporção de prestadores satisfeitos com as condições de trabalho. Evidência de multiemprego. Descrições dos postos de emprego. Metas de produção. Mecanismos de avaliação. Opinião de especialistas em gestão. 4.4. Gerência da qualidade Questões: • Em que medida as condições de trabalho atuais, a organização do trabalho, os sistemas de incentivo, os estilos e as práticas de gestão favorecem a provisão de serviços de qualidade ? • Há mecanismos para premiar os serviços de boa qualidade e punir os de má qualidade ? Informações úteis: Existência de normas escritas de qualidade, incluindo conduta ética, e mecanismos para tornálas conhecidas pelos prestadores. Existência de sistemas de acompanhamento e avaliação da qualidade (licensiamento, acreditação). 19 4.5. Gerência do ambiente e das relações de trabalho Questões: • Em que medida os atuais mecanismos de gerência do ambiente e das relações de trabalho são coerentes com os objetivos dos serviços ? Informações úteis: Opinião de observadores e peritos. Algoritmo da tomada de decisões (reconstrução do processo real de tomada de decisões). 5. Em relação às políticas 5.1. Origem das políticas Questões: • Quem formula as políticas que podem influenciar a utilização da força de trabalho ? Informações úteis: Políticas de financiamento dos serviços, de pagamento dos prestadores, de educação, de relações trabalhistas, de responsabilização, de descentralização, de acesso à prática profissional. 5.2. Consistência das políticas Questões: • Em que medida as políticas conduzem a uma utilização apropriada dos RHS ? • Em que medida são consistentes com os objetivos dos serviços ? • Em que medida não se contradizem entre si e são coordenadas ? Informações úteis: Opinião de observadores e peritos. 5.3. Implementação e efeitos das políticas Questões: • As políticas proclamadas são, de fato, implementadas ? • Produzem os efeitos esperados ? • Produzem efeitos indesejados ? Informações úteis: Evidência de resultados coerentes com os objetivos das políticas ou de resultados negativos. Opinião de observadores. 6. Em relação aos recursos 6.1. Volume Questões: • Os recursos são disponíveis em quantidade suficiente para permitir o alcance dos objetivos ? • Há suficientes educadores para formar o número necessário de pessoal ? • O país tem condições de manter financeiramente sua força de trabalho atual e futura ? • Há desequilíbrios no investimento em diferentes recursos (muito em equipamento, pouco em educação, por exemplo) ? 20 Informações úteis: Razão candidatos/vagas nas instituições de ensino. Razão estudantes/professor em cada programa. Número de equipamentos por habitantes. 6.2. Qualidade Questões: • Os recursos disponíveis têm as características necessárias para apoiar a utilização adequada da força de trabalho ? Informações úteis: Qualificação dos educadores e dos formuladores de política. Idade e funcionalidade de equipamentos e infra-estrutra física. Validade das informações. 7. Em relação às relações de poder 7.1. Atores envolvidos Questões: • Quem são os envolvidos na gestão de RHS ? • Qual a natureza e o tipo do envolvimento de cada um ? • Que interesses estão em jogo ? • Como cada ator vê a atual utilização da força de trabalho ? Estão satisfeitos ? Propõem mudanças ? Informações úteis: Censo dos atores (instituições, organizações, associações, indivíduos). Descrição dos seus interesses, das áreas de conflitos ou de consenso. Opinião de observadores. 7.2. Distribuição da influência Questões: • Quem são os atores mais influentes ? • Quem favorece e quem se opõe às mudanças ? • Quais são as alianças e as oposições ? Informações úteis: Mapeamento político do setor. Opinião de observadores. Em muitos países, informações confiáveis não estão imediatamente disponíveis. Pode-se, então, usar fontes secundárias ou dados qualitativos, como a opinião de peritos. Após a fase descritiva, os próximos passos são avaliar e explicar as diferenças entre a situação atual e a desejada. Não detalharemos estes passos aqui, pois dependem da situação concreta em que estão sendo desenvolvidos. No entanto, cabe fazer alguns comentários de ordem geral. É preciso ter em mente que julgamento de valores sempre estará presente na realização da análise da situação de RHS. Contudo, é possível tornar mais racional e menos conflitivo o processo de formulação de políticas, se os envolvidos concordam, ao menos, quanto à validade das informações disponíveis. O envolvimento de todos os interessados em discutir a situação da força de trabalho é, como já afirmamos, essencial para o sucesso das políticas. Entretanto, deve-se estar ciente que é um processo muito delicado e que precisa ser conduzido de modo hábil para não levar à impasses ou conflitos paralisantes. 21 Finalmente, após toda essa exposição, acreditamos estar claro que a análise da situação dos recursos humanos em saúde já é, em si mesma, parte do processo de formulação de políticas. Podemos, então, passar ao ponto seguinte que é, exatamente, o resultado de muitas análises de situação. Naturalmente, trata-se de resultados gerais que não são, por certo, idênticos em todos os casos concretos. Figura 4 - A lógica da análise da situação de RHS Insumos Processos Resultados Objetivos dos Serviços de Saúde __ Desenvolvimento de competências Eqüidade Políticas Eficácia Recursos Distribuição Relações de poder Performance Observada/Esperada Eficiência __ Satisfação Gerência Sustentabilidade Outros fatores Objetivos em termos da situação de saúde 6) PROBLEMAS DA GESTÃO DE RHS E SUAS CAUSAS TÍPICAS Os problemas com a força de trabalho são, em geral, multidimensionais e interconectados. No entanto, de acordo com o quadro de referência apresentado na seção precedente, podemos classificar os problemas em termos do desempenho, dos processos que governam a utilização da força de trabalho e dos fatores determinantes desses processos. Além disso, considerando que, grosso modo, os sistemas de serviços de saúde nos diversos países do mundo se dividem entre os predominantemente orientados pelo mercado e os predominantemente governados pelo Estado, estaremos, sempre que pertinente, indicando a correlação do problema com a forma geral de organização do sistema de serviços. 1. Desempenho da força de trabalho 1.1. Cobertura Na maioria dos países, há problemas importantes de cobertura. Os profissionais de saúde não conseguem contribuir para a garantia do acesso de todos os grupos da população aos serviços de saúde. Particularmente nos sistemas dominados pelo mercado, as pessoas de melhor situação sócioeconômica têm um acesso privilegiado aos serviços. Os idosos têm mais dificuldade de acesso, seja porque os prêmios dos seguros são mais elevados, seja porque não existem serviços especializados, como a atenção à domicílio. Os residentes de regiões rurais também dispõem de menores possibilidades de acesso. Além disso, os profissionais não oferecem toda a gama de serviços. Muitos deles, simplesmente, negligenciam os cuidados preventivos e de promoção da saúde. Algumas vezes, o acesso a certos serviços não é ditado pelas necessidades dos pacientes, mas pela rede de relações pessoais. Os problemas de saúde prioritários do ponto de vista populacional nem sempre são os mesmos do ponto de vista dos profissionais. Os especialistas tendem à pressionar a organização dos serviços no sentido de valorizar os problemas diretamente relacionados à sua especialidade. Nos países com sistemas serviços de acesso universal, os problemas de cobertura são bem menores, mas existem. A rede de relações pessoais e o local de moradia, por exemplo, influenciam o acesso dos usuários aos serviços. Para certos serviços mais complexos e custosos, existem listas de espera que podem demorar meses. 1.2. Produtividade A produtividade da força de trabalho é, freqüentemente, baixa, ou seja, os recursos humanos existentes poderiam produzir um volume maior de serviços. É certo que a produtividade varia com o tipo de serviço. As urgências/emergências, por exemplo, tendem a ser serviços mais produtivos do que os ambulatórios. Certos estabelecimentos, por suas características particulares, são mais produtivos que outros. Regiões mais densamente povoadas também tendem a ter serviços mais produtivos. É sempre difícil saber se o nível atual de produtividade dos recursos humanos atende às necessidades do país. O que podemos fazer são comparações regionais das necessidades e da produtividade. E nessas comparações, as regiões com maiores necessidades são, geralmente, as que possuem serviços menos produtivos. As causas da baixa produtividade são muitas. Podemos enumerar as mais comuns. Em geral, o trabalho é organizado de modo ineficiente: estratégias como o trabalho em equipe, o uso sistemático de auxiliares e a delegação de tarefas são pouco utilizadas. Dificuldades na manutenção de equipamentos, 25 ausência de supervisão, planejamento inadequado e falhas nos sistemas de suprimentos também contribuem para a reduzida produtividade. 1.3. Qualidade técnica Há também problemas de qualidade técnica no trabalho dos profissionais. Nem sempre se verifica o resultado esperado das ações de saúde. Muitas ações reconhecidamente ineficazes ou mesmo danosas continuam a ser praticadas por muitos profissionais. Um exemplo são os partos cesarianos, cuja a alta proporção em alguns países não se explica por razões de ordem médica. E mais: muitas vezes, os próprios padrões de qualidade estabelecidos não são respeitados, levando, por exemplo, a taxas elevadas de infecção hospitalar ou de complicações cirúrgicas. Por fim, os mecanismos de melhoria de qualidade ainda não estão suficientemente difundidos, apesar dos processos de implantação terem sido iniciados há alguns anos. 1.4. Qualidade sócio-cultural Avaliar a qualidade sócio-cultural do trabalho dos profissionais de saúde é uma tarefa de difícil realização. De início, sem um grau mínimo de aceitabilidade social, os profissionais não poderiam nem começar a trabalhar. Entretanto, as pesquisas de opinião sobre a satisfação dos usuários com os serviços dão algumas indicações de problemas. Um dos mais citados relaciona-se à chamada “desumanização” dos serviços de saúde. Parece que alguns profissionais enfatizam tanto o uso de tecnologias que descuidam da relação com o paciente. Outro problema, comum em países multiculturais, se refere à dificuldade dos grupos populacionais minoritários em utilizar serviços que só são oferecidos segundo os costumes ou na língua da maioria. Em regiões pobres, uma eventual postura de superioridade por parte dos profissionais também cria problemas de aceitabilidade. 1.5. Estabilidade organizacional Certamente, uma das dimensões do desempenho que apresenta mais problemas é a estabilidade organizacional. Nos países menos desenvolvidos, a instabilidade permanente do contexto político e a inexistência de uma tecno-burocracia sólida tornam quase impossível a estabilidade das organizações. Em consequência, a rotatividade da mão-de-obra é intensa, os profissionais raramente permanecem o tempo suficiente para criar o sentimento de fazer parte da organização onde trabalham. Os gerentes, por sua vez, têm imensas dificuldades em planejar à médio ou longo prazo, pois sabem que não podem fazer muitas previsões sobre os recursos com que contarão no ano seguinte. Além disso, a instabilidade política leva a ocorrência de greves e outros meios de pressão sindical que contribuem para perda de dias de trabalho e para a instabilidade organizacional. Em certos países mais pobres, as condições de trabalho precárias estimulam a emigração dos profissionais que vão tentar a sorte em países mais desenvolvidos. Assim, o investimento na formação de pessoal, feito com esforço por uma sociedade carente, é totalmente perdido. Dois estudiosos africanos, Dovlo e Nyonator (1998), estimam que apenas 40% dos cerca de 500 médicos formados em Gana, entre 1985 e 1994, estavam ainda trabalhando no país em 1997. Mesmo nos países mais ricos, há problemas de estabilidade organizacional. Menos relacionados à manutenção da capacidade de produção de serviços, os problemas se referem, principalmente, às dificuldades de adaptação às novas necessidades e circunstâncias. Em primeiro lugar, por causa das próprias características das organizações profissionais, pouco afeitas às inovações. E em segundo 26 lugar, pela ameaça que as mudanças podem representar às posições privilegiadas que certas categorias profissionais conquistaram. 2. Processos determinantes do desempenho 2.1. Desenvolvimento de competências Como vimos na seção precedente, o desenvolvimento de competências se refere ao processo de formação de trabalhadores qualificados, em número adequado, para atender às necessidades do país. Os problemas começam, logo, na avaliação das necessidades em termos de recursos humanos. Em geral, não existe nenhum processo coordenado, no nível nacional, de identificação das competências, da quantidade e da combinação de profissionais necessárias ao país. Não há responsáveis claramente identificados nem recursos materiais previstos para o planejamento integrado da produção de mão-de-obra. Particularmente evidente é o divórcio entre o sistema de educação e o planejamento, pelo Ministério da Saúde, da oferta de serviços. As iniciativas de planejamento, quando existentes, são setoriais, limitadas à uma categoria profissional ou visam apenas atender às exigências formais de organismos financiadores. Não são realistas, desde que não são tomadas em função das necessidades e das possibilidades do país. Essa falta de planejamento, consequência da dominância do mercado ou da incapacidade do Estado, leva a desequilíbrios entre as diferentes categorias profissionais (poucos enfermeiros em relação ao número de médicos, por exemplo). Assim, o mix de pessoal se torna inadequado, seja para responder às necessidades da populaçã, seja para produzir serviços de maneira eficiente. Outra consequência da ausência de planejamento é o excesso ou a escassez de profissionais, que podem provocar, respectivamente, desemprego e sub-emprego ou vacância de postos de trabalho. Na Itália, estima-se que 15% dos enfermeiros e 25% dos médicos estavam desempregados em 1997 (Panorama della Sanità, nº 43, 1997). Essas mesmas proporções eram encontradas em Bangladesh, em 1994 (Bangladesh, 1997). Os problemas do desenvolvimento de competências se mostram ainda no processo de recrutamento e retenção dos candidatos à profissional. Os mecanismos de seleção das instituições educativas nem sempre conseguem assegurar que os estudantes admitidos tenham as capacidades necessárias à aquisição das competências. Em certas instituições, a taxa de abandono de curso são elevadas, revelando incongruências entre as características dos estudantes e as dos cursos. Às vezes, os custos são excessivamente elevados para que os alunos ou mesmo a sociedade possam arcar. Outra vezes, por falta de recursos, as instituições aceitam perdas na qualidade do ensino. Finalmente, há os problemas de educação propriamente dita. Em muitos países, a capacidade do sistema de educação, em termos de pessoal qualificado, material e infra-estrutura física, não é suficiente para formar os recursos humanos necessários. Ou ainda, os conteúdos dos cursos não são coerentes com as necessidades de saúde e as características da população. O ensino é, muitas vezes, excessivamente teórico e concentrado em hospitais. Pouca atenção é dada à prevenção. Observa-se uma grande variação na qualidade das diversas escolas. Em certos países, as Universidades públicas formam profissionais que vão depois trabalhar no setor privado, o que representa uma forma de subsídio indireto a esse setor. Indicadores dos problemas da educação são as baixas proporções de professores em tempo integral e de professores com pós-graduação na maioria das escolas de saúde. Ou o despreparo dos recém-ingressos na vida profissional, revelando que as competências adquiridas na formação não foram suficientes ou adequadas. Os mesmos problemas se repetem com os treinamentos realizados pelas instituições de ensino ou pelo próprio setor da saúde. Acrescente-se que as iniciativas de educação continuada são, em regra, esporádicas. O pessoal não-clínico é raramente treinado em como lidar com os usuários, mesmo se 27 lidam tanto quanto os profissionais de saúde. E o treinamento em gestão de serviços de saúde está ainda em seus primórdios. 2.2. Distribuição de pessoal A distribuição dos recursos humanos costuma apresentar desequilíbrios de todos os tipos. Especialmente nos sistemas dominados pelo mercado, há uma forte tendência de concentração de pessoal no nível terciário, especializado e super-especializado, da atenção à saúde. Os profissionais tendem a se concentrar nos serviços curativos e hospitalares em detrimento dos preventivos e do nível primário de atenção. Os desequilíbrios na distribuição geográfica são patentes. Mesmo nos sistemas mais planejados, as periferias urbanas e as áreas rurais são proporcionalmente menos servidas. Freqüentemente, manifesta-se a "Lei Inversa da Atenção à Saúde" (Tudor e Hart, 1971), ou seja, menor disponibilidade de recursos e serviços em regiões mais carentes. Há ainda outros desequilíbrios. As mulheres tendem a se concentrar nas ocupações de status social menos elevado, o que expressa um tipo de discriminação e a reproduz, ao dificultar a oferta de serviços eqüitativa em relação ao gênero. Certas etnias minoritárias, ou às vezes mesmo majoritárias, são sub-representadas no contingente de profissionais, com as mesmas conseqüências da discriminação de gênero em termos de eqüidade. 2.3. Gerência de pessoal Os problemas de gerência de pessoal, como os de desenvovimento de competências, são bastante variados. Começam pela própria capacidade gerencial. Em muitos países, não há gerentes adequadamente capacitados em número suficiente. Às vezes, o processo de seleção de gerentes obedece a critérios outros que a capacidade técnica. Além disso, em muitos lugares, os gerentes não dispõem de condições de trabalho apropriadas. Os problemas de gerência envolvem também a alocação de pessoal. Nem sempre o processo de alocação leva em conta os objetivos dos serviços de saúde. Muitas vezes, postos são preenchidos com pessoas que não dispõem das competências adequadas, seja por falta de candidato mais apropriado, seja por causa da utilização de outros critérios de alocação. Faltam incentivos para atrair profissionais para certas posições. Mesmo a permanência no emprego não é, em regra, estimulada. Em países onde coexistem sistemas público e privado, há o problema da dupla militância, que tende a reduzir o compromisso do profissional com ambos. Gerir a produtividade apresenta uma série de dificuldades. As condições de trabalho, a divisão de tarefas, os sistemas de incentivo, os estilos e as práticas de gestão são, frequentemente, obstáculos à produtividade. Certos costumes profissionais dificultam a substituição, levando a um uso inapropriado dos médicos, que cumprem tarefas perfeitamente realizáveis por enfermeiros ou técnicos. Esses mesmos costumes dificultam o trabalho em equipe. Metas de produção e mecanismos de avaliação da produtividade apenas raramente são definidos e utilizados. Gerir a qualidade é tão ou mais complicado que gerir a produtividade. Os mesmos fatores que podem ser obstáculos à uma podem ser à outra. Mecanismos para premiar os serviços de boa qualidade e punir os de má qualidade quase nunca são adotados. Normas escritas de qualidade, quando existem, não são suficientemente divulgadas. A prática de acreditação já é relativamente comum nos países desenvolvidos, mas é ainda incipiente nos menos desenvolvidos. A gerência do ambiente e das relações de trabalho também é local de muitos problemas. A começar pela freqüente falta de coerência entre os mecanismos de gerência e os objetivos dos serviços. Mecanismos autoritários persistem, mesmo quando os objetivos proclamados são de participação. A 28 gerência de recursos humanos tende a ser centralizada e burocrática, mesmo quando os objetivos são de descentralização e flexibilidade. As relações de trabalho são ainda prejudicadas pelos baixos salários, pela ausência de incentivos aos profissionais e pela dificuldades de fazer carreira, sobretudo no setor público. Surge o problema dos pagamentos “por fora” e do multiemprego, com efeitos nefastos para os serviços e para os próprios profissionais. Os níveis de satisfação e de motivação do pessoal encontram-se, em consequência, em níveis muito baixos. A professora Maria Helena Machado e seus colaboradores (1998) da Escola Nacional de Saúde Pública (Rio de Janeiro) documentaram exaustivamente esses problemas, em um importante estudo sobre os médicos brasileiros. 3. Fatores que influenciam os processos determinantes do desempenho 3.1. Políticas As políticas que nos interessam aqui são, como vimos, todas as decisões, ações e falta de ações que têm influência sobre a produção, a distribuição e a gerência de pessoal. O primeiro problema se relaciona exatamente à quantidade e à diversidade de atores sociais, da administração pública e da esfera privada, que estão envolvidos na formulação e/ou implementação de políticas que influenciam a gestão de recursos humanos, seja no plano do financiamento, da educação, da prática profissional. Um segundo problema se atém à consistência e à coerência das políticas. Não é raro que políticas formuladas, por exemplo, no Ministério das Finanças, tenham impacto negativo na utilização dos recursos em humanos em saúde. Do mesmo modo, objetivos dos serviços como a eqüidade, por exemplo, podem ser pejudicados por políticas de favorecimento das práticas de mercado no setor da saúde. Às vezes, políticas oriundas de um mesmo setor apresentam contradições entre si. Há também problemas de implementação das políticas. É freqüente a existência de discrepâncias entre as políticas no discurso e na prática. Além do mais, as políticas nem sempre produzem os efeitos esperados. Ou ainda produzem efeitos inesperados. Quando os deputados constituintes brasileiros aprovaram, em 1988, a universalização da atenção à saúde, não imaginavam que esta universalização seria excludente, empurrando, por causa da perda de qualidade dos serviços públicos, as classes médias para o sistema de seguro-saúde privado (Mendes, 1993). Por fim, especialmente nos sistemas contolados pelo Estado, ocorrem problemas de clientelismo e patrimonialismo. As políticas elaboradas e implementadas visam sobretudo o favorecimento das pessoas ligadas aos grupos que se encontram no poder. Os recursos públicos são tratados como se fossem propriedade privada dos governantes. Estreitamente vinculado a esses problemas, a descontinuidade administrativa mina as bases da implementação de políticas de longo prazo, essenciais para o sucesso da gestão de recursos humanos. 3.2. Disponibilidade de recursos Os problemas de disponibilidade de recursos são de duas ordens: quantidade e qualidade. Em relação ao volume, é difícil estabelecer o nível ótimo de recursos. Um dos parâmetros para identificar este nível pode ser, exatamente, os objetivos definidos. O problema começa, então, pela defasagem existente entre os recursos postos à disposição e os necessários para atingir os objetivos. Um exemplo brasileiro: o efeito inesperado da universalização excludente foi, provavelmente, resultado da defasagem entre os recursos disponibilizados e os necessários para viabilizar a universalização. Outro parâmetro para estabelecer o volume adequado de recursos é a capacidade nacional de produção de riquezas. O Canadá, por exemplo, investe no setor da saúde cerca de 2.000 dólares per capita por ano, o que representa 10% da renda nacional per capita. Tal volume não seria, certamente, 29 adequado para o Haiti, onde a quantia de 2.000 dólares per capita representa 100% do produto interior bruto per capita. O segundo problema, portanto, especialmente para os países mais pobres, é a manutenção financeira da sua força de trabalho mais qualificada. Com freqüência, o resultado é a emigração. Um terceiro problema relacionado à quantidade se atém à desproporção no investimento em diferentes recursos. É comum a ocorrência de privilegiamento das inversões em rede física, com a construção de prédios novos, sem o correspondente investimento, por exemplo, na melhoria dos salários do pessoal. Em relação à qualidade, os problemas de recursos se referem às diferenças entre as características existentes e as necessárias para apoiar a utilização adequada da força de trabalho. Assim, nem sempre os formuladores de política, ou os gerentes, ou os educadores têm a qualificação ideal. Os equipamentos e os instrumentos de trabalho, não raro, encontram-se em precário estado de conservação. As informações, recurso sempre valioso, freqüentemente apresentam problemas de validade. 3.3. Relações de poder De forma mais evidente do que nos outros ítens do nosso quadro de referência, os problemas nas relações de poder dependem do ponto de vista de quem analisa a situação. Quem controla a situação dificilmente vê algum problema na distribuição atual de poder. Todavia, os diversos atores podem adotar, por consenso, certos critérios para permitir uma análise menos parcial da situação. Por exemplo, uma vez estabelecidos, os objetivos dos serviços de saúde podem servir de balizas para a identificação de interesses favorecidos ou contrariados e, portanto, de atores que tendem a apoiar ou a resistir às estratégias de realização dos objetivos. Normalmente, os maiores problemas de relações de poder advém dos conflitos entre os interesses da sociedade, expressos através dos mecanismos da democracia, e os interesses particulares de atores poderosos. Na área da saúde, chama logo a atenção o poder da indústria farmacêutica, cujos interesses particulares muitas vezes se sobrepõem aos interesses públicos. Um exemplo específico, ocorrido no Brasil, foi a derrota da lei que impunha a utilização dos nomes genéricos dos medicamentos que, apesar de sancionada, nunca entrou de fato em vigor. Nos sistemas de saúde dominados pelo mercado, um problema de relação de poder se expressa na tendência do setor privado a selecionar os casos de doenças mais “lucrativos” e a deixar os mais complicados para a setor público. Alguns problemas de poder são criados pela categoria médica, ator também poderoso, quando se sente ameaçada. No Quebec, a Federação dos Médicos conseguiu negociar com o governo um acordo pelo qual o montante de verbas total destinado ao pagamentos dos seus membros seria reduzido (como o foram o de todos os servidores públicos), mas o valor de cada ato médico seria preservado. O resultado óbvio foi a redução do número de atos realizados, com prejuízo para a população que passou a dispor de menos serviços. Os médicos, se perderam renda, ganharam tempo livre. Muitos exemplos de problemas desse tipo podem ser citados. Mais importante é observar que a maior dificuldade nas relações de poder surge na ausência de democracia, quando os grupos dominantes impõem seus interesses pela força em detrimento dos interesses da maioria. Infelizmente, ainda existem problemas de falta de democracia em alguns países do mundo. 4. A necessidade de enfrentar os problemas Todos esses problemas, desde o desempenho dos profissionais até as relações de poder, levam à utilização inapropriada da força de trabalho, com conseqüências negativas consideráveis para a eqüidade, a eficácia e a eficiência dos serviços de saúde e para a satisfação de usuários e trabalhadores. 30 Medidas de correção, portanto, se impõem. Atualmente, mais do que nunca, os ajustes na organização do trabalho se impõem em reação a fenômenos que estão afetando todos os países do mundo: • As condições de saúde têm se modificado rapidamente e, assim, o perfil das necessidades de saúde. • Mudanças sociais e culturais têm criado novas expectativas, atitudes e comportamentos de usuários e provedores de serviços de saúde. • Os custos dos serviços têm crescido de modo incontrolado. • Melhores sistemas de informação têm levado ao questionamento da efetividade e da eficiência de muitas das ações de saúde. Na seção seguinte, vamos abordar exatamente as estratégias para enfrentar (e tentar solucionar) esses problemas. 7. ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO DOS RECURSOS HUMANOS Para enfrentar os problemas dos sistemas de serviços de saúde, em geral, e os problemas dos recursos humanos, em particular, três grandes abordagens têm sido propostas. Uma delas afirma que a melhor forma de resolver os problemas é através do mercado. A segunda propõe uma regulação mais estrita dos sistemas de saúde pelo Estado. A terceira via apresenta como possível um uso combinado dos mecanismos de mercado e da intervenção estatal. Após discutirmos brevemente as duas primeiras abordagens, tentaremos demonstrar que a terceira via é a mais frutífera. Para tanto, apresentaremos mais detalhadamente como essa via se propõe a enfrentar os desafios relativos à gestão de recursos humanos. A via do mercado Os partidários dessa via argumentam que permitir aos produtores e consumidores de cuidados de saúde que ajustem seus interesses, diretamente entre si, é a forma mais eficiente de resolver os problemas de alocação de recursos. Argumentam também que, nos países em que foi adotada, a regulação estatal não deu bons resultados. Segundo a teoria econômica clássica, os pré-requisitos para o mercado livre funcionar são, entre outros: "(a) que consumidores e produtores sejam bem informados, (b) que os mercados sejam verdadeiramente competitivos, (c) que não existam mercados inexplorados e (d) que não existam bens públicos, externalidades nem retornos em escala" (Barr 1994, p.35). Ora, não nos parece que tais pré-requisitos sejam preenchidos no setor da saúde. Nem os consumidores nem os produtores são perfeitamente informados. Existe uma assimetria de conhecimentos entre produtor e consumidor: se o doente procura o médico é porque não sabe do que sofre nem como se tratar e espera que o médico saiba. A competição entre os produtores está longe de ser perfeita. Na verdade, eles formam corporações, o que torna a cooperação tão ou mais importante do que a competição. Os mercados de saúde dificilmente serão completamente explorados, pois os próprios produtores têm a capacidade de criar novas necessidades. O surgimento constante de novas especialidades médicas é, em parte, uma demonstração disso. A atenção à saúde tem as características de um bem público, possuindo muitas externalidades. Com efeito, o fato de ser vacinado beneficia não só ao indivíduo que tomou a vacina, mas a toda a comunidade. 31 Em relação à força de trabalho, o mercado tende a favorecer as preferências dos produtores em detrimento das dos consumidores. São os profissionais que escolhem a especialidade e o local em que querem praticar. Estudo patrocinado pela seção européia da Organização Mundial da Saúde (Saltman e Figueras, 1997) evidenciou que as forças de mercado não têm sido capazes de controlar a produção de profissionais, mesmo onde o excedente já se traduz em desemprego e sub-emprego. A suposição que as instituições educacionais se ajustariam espontaneamente às novas realidades não tem se confirmado. Os partidários do mercado propõem, como soluções para estas falhas, mecanismos que reestabeleçam os pré-requisitos da eficiência do mercado: mais informação, incentivos à mobilidade geográfica e intersetorial, remuneração e emprego determinados pela oferta e demanda. Falta verificar se e como estas medidas são aplicáveis ao setor da saúde. A regulação pelo Estado A regulação estatal pura, onde existiu, deixou uma herança de muitas ineficiências. Mesmo em países onde a regulação nunca foi absoluta, os governos falharam em suas intervenções. Em geral, introduziram rigidez aos processos de trabalho, dificultando a obtenção de graus mais elevados de produtividade e desmotivando os trabalhadores. As falhas dos governos têm múltiplas raízes: falta de capacidade técnica, ausência de compromisso político, ausência ou inadequação dos mecanismos de regulação dos recursos humanos, politização do uso dos recursos humanos, controle exclusivo da formulação de políticas pela profissão médica. No entanto, as imperfeições dos mecanismos de mercado e o reconhecimento de que a atenção à saúde é um bem público justificam a intervenção do Estado no setor. Ressalte-se que estamos nos referindo ao Estado como o responsável maior pela garantia dos interesses públicos, o que implica necessariamente o seu caráter democrático. De toda maneira, resta verificar como os governos democráticos podem intervir de modo eficaz e eficiente. A terceira via A terceira via busca levar em conta todos os aspectos do processo da gestão dos serviços de saúde. Não apenas as dimensões econômicas, mas também as dimensões sociais, culturais, organizacionais e políticas. A idéia é buscar um equilíbrio entre os diferentes objetivos dos serviços, entre os interesses individuais e os coletivos, entre a autonomia dos profissionais e a eficiência, entre a liberdade do consumidor e o controle de custos. A terceira via propõe a descentralização administrativa, que facilita a adaptação dos serviços às realidades locais e a responsabilização dos prestadores e dos usuários. Por outro lado, recomenda a centralização do financiamento para assegurar a redistribuição dos recursos, necessária à garantia da eqüidade. Valoriza a melhoria da qualidade da educação e do treinamento, mas também a da capacidade de auto-regulação profissional. Sugere a utilização de sistemas de incentivo, mas encoraja a independência de decisão dos prestadores de serviços. Enfim, propõe que os mecanismos de mercado e a intervenção estatal sejam utilizados em função dos objetivos a serem atingidos e não de querelas ideológicas. Desenvolvimento de Recursos Humanos Especificamente em relação à força de trabalho, a terceira via adota a estratégia de Desenvolvimento de Recursos Humanos (DRH), que pode ser definida como o conjunto de ações 32 coordenadas, que visa criar as condições que permitam aos RHS produzir serviços de qualidade, em quantidade suficiente para responder às necessidades da população. Martineau e Martinez (1997) definem o DRH como “as diferentes funções envolvidas no planejamento, na gestão e no apoio ao desenvolvimento profissional da força de trabalho em saúde, dentro de um sistema de saúde, geralmente no nível estratégico e político. O DRH objetiva pôr a pessoa certa, com as qualificações e a motivação certas, no lugar certo, na hora certa”. O Desenvolvimento de Recursos Humanos visa, sobretudo, encontrar as formas mais eficazes de regulação do pessoal. Regular significa influir deliberadamente no comportamento dos recursos humanos. A regulação pode tomar várias formas, mas o critério da sua eficácia é sempre o mesmo: influenciar os diversos atores sociais, indivíduos e instituições, no sentido da adoção de comportamentos consistentes com os objetivos perseguidos pelo regulador. Para implementar a estratégia de Desenvolvimento de Recursos Humanos é preciso, antes de tudo, situá-la no contexto. Os fatores contextuais exercem uma forte influência sobre o DRH. Podemos decompor este contexto em seus vários aspectos: legais, econômicos, organizacionais, tecnológicos, sócio-culturais e políticos Os aspectos legais incluem as leis e os regulamentos existentes (Constituição, leis trabalhistas, regulamentos sanitários, convenções internacionais, regulamentos profissionais e administrativos). Deve-se considerar também os procedimentos de aprovação das leis e dos regulamentos e os processos pelos quais são modificados. Os fatores econômicos se referem à disponibilidade de recursos para o setor da saúde, a situação geral de emprego, as taxas de crescimento econômico e de inflação, as prioridades econômicas do governo. A influência desses fatores sobre o DRH é visível, por exemplo, na desmotivação para adotar práticas de gestão mais eficientes quando a tendência da economia é de crescimento. Os fatores organizacionais se referem à distribuição de responsabilidades entre as instâncias centrais e regionais, ao número de ministérios e agências envolvidas nas políticas de RHS, à localização do centro do poder de decisão (Ministério do Trabalho ? da Saúde ? da Economia ?) e à capacidade institucional de formulação de políticas e de gestão. Os aspectos tecnológicos envolvem a utilização de novos instrumentos de trabalho, como equipamentos de apoio diagnóstico e terapêutico, que podem exigir novas formas de organização do trabalho. Envolvem também tecnologias, como a telemedicina ou a internet, que podem modificar bastante as práticas de ensino. Os aspectos sócio-culturais a influenciar o DRH são inúmeros. Apenas como exemplo, podemos citar o status social das ocupações (menos elevado o status, menor atração de bons candidatos). Ou o valor atribuído à autonomia das Universidades, que pode torná-las relutantes a responder às demandas vindas de outros setores. Ou ainda o valor dado aos cuidados curativos em detrimento dos preventivos, com repercussões no tipo de profissional a ter priorizada a sua formação. Ou a crença que os homens são mais comprometidos com a carreira do que as mulheres, o que pode levar os empregadores a favorecer o sexo masculino. Os aspectos políticos incluem o lugar da Saúde na agenda política, o grau de consenso sobre as necessidades de mudanças, o grau de clientelismo, a proximidade de certos grupos profissionais ao poder político. É essencial conhecer bem o contexto do Desenvolvimento de Recursos Humanos para estabelecer a viabilidade das intervenções possíveis. Dentro de um contexto definido, a estratégia de DRH se ocupa das diversas funções de gestão de pessoal, envolvendo, portanto, os processos de: • identificação das necessidades de pessoal, em termos quantitativos e qualitativos, • definição dos objetivos das políticas de recursos humanos, 33 • • • desenho e implementação das intervenções sobre a força de trabalho, mobilização dos recursos requeridos por estas intervenções e acompanhamento e avaliação das atividades realizadas. A identificação das necessidades de pessoal é balizada, por um lado, pela identificação das necessidades de serviços que, por sua vez, devem corresponder às necessidades de saúde. Por outro lado, a identificação das necessidades de pessoal decorre da análise da situação dos RHS, onde se avalia a defasagem entre os recursos existentes e os necessários. Uma vez conhecidas as necessidades de pessoal, pode-se formular os objetivos das políticas de recursos humanos. Essa formulação é, ainda, subordinada à definição dos objetivos dos serviços, os quais por sua vez devem ser subordinados aos objetivos de saúde. O desenho e a implementação das intervenções em recursos humanos, no sentido de alcançar os objetivos definidos, comportam um conjunto variado de medidas, que devem ser coerentes entre si. Assim, por exemplo, para alcançar o objetivo de uma distribuição eqüitativa de profissionais, é preciso intervir de modo coerente na formação, na contratação e lotação e nas condições de trabalho. As intervenções, por sua vez, dependem de recursos de diversas ordens, que precisam ser claramente identificados. Os recursos podem estar ou não imediatamente disponíveis. De qualquer maneira, com maior ou menor dificuldade, a tarefa que se impõe é mobilizar os recursos requeridos. Enfim, todas as intervenções precisam ser acompanhadas e avaliadas para a garantia do sucesso, ou seja, do alcance dos objetivos e do suprimento das necessidades. Em resumo, as políticas de desenvolvimento de recursos humanos são resultado de um esforço importante de planejamento. A prática do planejamento perdeu muita credibilidade nos últimos tempos. O planejamento centralizado, de tipo soviético, apesar do grande sucesso inicial, deixou no fim uma carga pesada de problemas. Nos países capitalistas, o “planejamento estratégico” esteve na moda por alguns anos, mas caiu em desuso, após ter se tornado um exercício meramente formal. Contudo, a necessidade de identificar corretamente os problemas, de definir objetivos e de elaborar estratégias conscientemente não desapareceu. Além disso, sabemos que as falhas dos mecanismos de mercado são muito importantes no setor da saúde para lhes conceder a responsabilidade de gerir os recursos humanos. Uma prática renovada de planejamento é, portanto, essencial à implementação das políticas de DRH. Uma primeira característica desse planejamento deve ser a participação de todos os interessados. De fato, quem pode definir quais são as necessidades da população se não um conjunto representativo de atores sociais ? A participação dos profissionais é particularmente importante, pois a provisão dos cuidados de saúde depende diretamente deles. As instituições de educação também devem ter um papel destacado na formulação das políticas de RHS. A coordenação da formulação de políticas deve ser uma preocupação constante dos planejadores. Políticas de recursos humanos são geradas por múltiplas agências, que se não se coordenarem formularão políticas desencontradas ou mesmo contraditórias. A coordenação também é necessária para que as políticas de recursos humanos sejam definidas não por profissões, mas por conjunto de funções necessárias ao alcance de cada objetivo. A produção e a difusão de informações é também parte essencial do planejamento. Muitos problemas não são atacados porque não são bem documentados. Certos objetivos não são melhor definidos por falta de informação. Algumas estratégias fracassam porque não foram suficientemente divulgadas. Dada a a incertitude dos problemas de saúde, o planejamento deve conduzir a formas de regulação dos recursos humanos que sejam flexíveis. A regulação tecnocrática, de cima para baixo, na maioria das vezes, não tem a aceitabilidade e a legitimidade essenciais à garantia dessa flexibilidade. 34 Por outro lado, importância das externalidades no setor da saúde pode exigir um determinado grau de coerção regulatória. Um exemplo comum é a obrigatoriedade, para todos os profissionais de saúde, de notificar os casos suspeitos ou diagnosticados de certas doenças transmissíveis. O planejamento tem que levar em conta que o DRH se situa em dois planos que guardam entre si uma relação de complementariedade e, ao mesmo tempo, de subordinação. O primeiro plano é o nível político, onde se encontram os fatores que influenciam os processos determinantes do desempenho dos RHS (políticas, disponibilidade de recursos e relações de poder) e uma parte desses processos mesmos (desenvolvimento de competências e distribuição de pessoal). O segundo plano é o nivel operacional, onde se encontra a outra parte dos processos determinantes do desempenho dos RHS (a gerência de pessoal). O nível operacional é complementar e, ao mesmo tempo, subordinado ao político. Quando falamos de gestão de recursos humanos, estamos nos referindo ao conjunto de políticas e de estratégias formuladas e implementadas, sobretudo, no nível político. O termo gerência é reservado para as ações desenvolvidas no nível operacional. Todavia, como o nível operacional está subordinado ao político, o termo gestão pode ser aplicado também no sentido geral do conjunto das políticas, estratégias e ações desenvolvidas nos dois níveis. Vistas as características gerais da estratégia de Desenvolvimento de Recursos Humanos, podemos agora observar mais de perto as suas características em relação à cada uma das dimensões da gestão de RHS. A) Nível político 1. Fatores que influenciam os processos determinantes do desempenho dos RHS 1.1. Políticas As políticas que influenciam o processo de Desenvolvimento de Recursos Humanos são das mais variadas ordens e provêm das mais diversas fontes, muitas vezes não são nem mesmo explícitas. Como regra geral, os resultados em termos de produção e utilização da força de trabalho dependerão, em grande medida, da disposição dos líderes à investir no setor da saúde e à correr riscos políticos. Aos gestores de recursos humanos cabe a difícil tarefa de viabilizar as políticas de pessoal dentro desse emaranhado de interesses. Os gestores farão bem se são capazes de definir explicitamente os objetivos das políticas, levando em conta a situação inicial e a possibilidade de mudanças. O fato de definir explicitamente os objetivos, difundí-los amplamente e contar com o apoio da opinião pública contribui para pôr os formuladores de políticas de pessoal numa posição de força para negociar com os atores sociais que tentam influenciar as políticas no sentido dos seus interesses particulares. Esses objetivos passam, assim, a ser o critério principal para decidir quais políticas são as mais apropriadas. Um segundo critério que ajuda a estabelecer a adequação das políticas é a coerência. Além de ser coerentes com as políticas de saúde, as políticas de recursos humanos devem ser coerentes entre si. Políticas específicas que, isoladamente, são interessantes, podem ser desastrosas se mal coordenadas com as demais. Dado que as políticas de recursos humanos se encontram sob jurisdições diversas, este problema ocorre frequentemente. Um exemplo é o caso de países onde o ministro da Saúde deseja a redução da oferta de médicos e o ministro da Educação autoriza a abertura de novas faculdades de medicina. Enfim, um processo transparente e coordenado de formulação é um meio útil para fazer com que o contexto político não seja desfavorável às políticas de recursos humanos baseadas no interesse público. 35 1.2. Disponibilidade de recursos Em relação à disponibilidade de recursos, a estratégia de Desenvolvimento de Recursos Humanos parte inicialmente da consideração do volume total do produto interior bruto (PIB). Consideração essa que tem duas faces: de um lado, a disponibilidade de recursos, definida pelo PIB, limita as possibilidades de escolha dos objetivos das políticas de recursos humanos; por outro lado, as políticas de pessoal podem ter como um dos objetivos contribuir para o aumento do PIB. Assim, os gestores de pessoal devem se preocupar em propor objetivos adequados à realidade nacional. Alguns países mais pobres, por exemplo, talvez devessem investir o pouco que têm em serviços comunitários, de impacto comprovado sobre a situação de saúde, e adiar os investimentos na formação de profissionais super-especializados que provavelmente emigrarão depois de graduados. Por outro lado, os gestores podem propor certas políticas, visando a produção de riquezas. Em muitos países, o setor da saúde já representa parte substancial da economia, empregando numerosa mão-de-obra. Cuba é um exemplo de país pobre que tem nos serviços de saúde uma fonte de renda considerável. Além disso, não devemos esquecer que toda riqueza é produzida pelo trabalho humano e, portanto, a melhoria do estado de saúde das pessoas é, em si, uma contribuição indireta ao crescimento do PIB. O Desenvolvimento de Recursos Humanos considera não só o volume total, mas também a proporção da riqueza do país que é destinada à saúde e ao desenvolvimento de pessoal. Naturalmente, essa proporção depende de decisões políticas. Aos gestores da força de trabalho cabe demonstrar qual o volume de recursos necessários para o alcance dos objetivos democraticamente definidos. Além do volume, os gestores têm a incumbência de mostrar qual a melhor combinação de recursos. Não adianta, por exemplo, investir fortemente na produção de uma categoria profissional, descuidando da formação das demais categorias necessárias ao alcance dos objetivos de saúde. Como também não tem sentido investir na formação e não garantir as condições de trabalho para os futuros profissionais. Finalmente, vale a pena reafirmar que a estratégia de DRH valoriza sobremaneira a disponibilidade de informações válidas e atualizadas. Os gestores, portanto, devem se esforçar para ter sempre à disposição as informações necessárias. Dados epidemiológicos, sócio-demográficos, econômicos, políticos, organizacionais, etc. da população e dos trabalhadores da saúde são ferramentas de base do administrador de recursos humanos em saúde. A construção de sistemas de informação em saúde é uma forma eficaz de ter disponíveis estas informações. 1.3. Relações de poder A estratégia de Desenvolvimento de Recursos Humanos exige a observação atenciosa das relações de poder. Como sabemos, numerosos indivíduos, grupos e instituições têm interesses (empregos, negócios, busca de prestígio ou de poder, preocupação com a qualidade dos serviços, etc.) na gestão de pessoal. Uma listagem mesmo rápida desses atores sociais, certamente, incluirá: • O Estado, nas esferas federal, estadual e municipal e em suas múltiplas agências; • Os partidos políticos, pela capacidade de influenciar as ações dos governos; • Os produtores de serviços e seus representantes, como os conselhos profissionais, os sindicatos e as associações; • As instituições de ensino, os professores e os estudantes e suas associações; • Os pesquisadores e produtores de conhecimento; 36 • • Os empregadores de profissionais da saúde, sejam governos ou empresas privadas; Os terceiros-pagadores, como companhias de seguro ou planos de saúde, cuja influência varia de acordo com sua importância no financiamento dos serviços; • Os formuladores de política e gestores de recursos humanos que também têm seus interesses particulares; • Os financiadores externos, como ONGs, agências multi-laterais e bancos de desenvolvimento; • Os consumidores e suas associações, muitas vezes organizados segundo interesses bastante específicos (portadores de uma doença, vítimas de erros médicos, etc); • Os produtores e fornecedores de equipamentos e insumos, cujo primeiro interesse é evidentemente aumentar o consumo de seus produtos; • Os meios de comunicação, que podem expor problemas ou promover campanhas por uma política específica. Cada uma dessas categorias de atores não é, naturalmente, homogênea. Em todas existem subgrupos, com interesses específicos, que desenvolvem as suas próprias estratégias, atividades e alianças. Os gestores de recursos humanos precisam identificar todos esses grupos e sub-grupos e seus interesses para que as políticas de pessoal sejam viabilizadas. São muitos os papéis desempenhados por estes atores sociais em relação ao DRH: • Formular de políticas de pessoal; • Implementar essas políticas; • Regular a força de trabalho; • Financiar a educação e o treinamento, a remuneração dos trabalhadores, a infra-estrutura física e os insumos materiais; • Educar e treinar; • Comprar os serviços produzidos pela força de trabalho; • Pagar pelos serviços (quem paga nem sempre é o comprador ou o financiador); • Gerenciar o pessoal • Informar os vários atores sobre as necessidades, demandas e expectativas a serem atendidas pelos recursos humanos; • Avaliar a produção e a utilização da força de trabalho; • Militar em prol de mudanças ou em prol do status quo; • Consumir os serviços produzidos pelo pessoal da saúde. Muitos atores desempenham mais de um papel, alguns cumprem papéis que não deveriam lhes caber pelo conflito de interesses que representam. Um exemplo é dar aos conselhos profissionais as duas tarefas de proteger o público, garantindo a qualidade do serviço prestado por seus membros, e de defender os interesses dos profissionais. A influência de cada um dos atores sociais varia de acordo com o aspecto da gestão de recursos humanos que está em jogo. Varia também ao longo tempo. É bastante útil para os gestores de pessoal fazer o mapa da distribuição de papéis. 2. Processos determinantes do desempenho dos RHS 2.1. Desenvolvimento de competências A estratégia de DRH recomenda, de início, o planejamento da formação de pessoal em função das necessidades e das possibilidades do país. Um processo coordenado e realista de planejamento é 37 capaz de evitar, no futuro, problemas de excesso ou de escassez de pessoal qualificado, assim como de desequilíbrios na oferta de profissionais das distintas categorias. Um adequado desenvolvimento de competências exige das instituições de ensino a adoção de mecanismos de seleção capazes de identificar os melhores candidatos. Definir que mecanismos serão estes é uma tarefa complexa, da qual os gestores de recursos humanos não devem se abster de participar. Os conteúdos dos cursos de formação profissional precisam ser coerentes com necessidades de saúde da população. A atenção equilibrada ao ensino teórico e prático, nos níveis hospitalar e de cuidados primários é recomendável. Na maioria dos países, a ênfase na abordagem comunitária durante o processo de ensino/aprendizagem também é recomendável. Existem algumas experiências no plano internacional cujos resultados parecem ser favoráveis ao desenvolvimento adequado das competências. Um exemplo é o Projeto UNI (Uma Nova Iniciativa na Educação de Profissionais de Saúde: Parceria com a Comunidade), financiado pela Fundação Kellog e desenvolvido em alguns países latino-americanos. Este projeto busca estimular as escolas de saúde a trocarem o currículo baseado em disciplinas por uma abordagem voltada para a comunidade. A ênfase é posta na aproximação entre as escolas da área da saúde, os estabelecimentos de saúde e as respectivas comunidades no processo de planejamento e de organização dos serviços (Chaves e Kisil, 1994). A educação, para ser completa, não pode se limitar à transmissão de informações. Ao contrário, a garantia da competência profissional exige não só a aquisição de conhecimentos, mas também o desenvolvimento de habilidades e de atitudes apropriadas a cada categoria profissional (Dussault, 1992). Assim, o raciocínio crítico, a sensibilidade humana, a conduta ética, a capacidade de adaptar-se a novas situações, de se comunicar e de liderar são habilidades e atitudes fundamentais em um profissional de saúde. Certas estratégias de educação podem favorecer a aquisição equilibrada dessas das três dimensões da competência. O ensino baseado em problemas, já adotado por muitas instituições educacionais, parece ser uma dessas estratégias. Existem ainda outras metodologias de ensino que estimulam os alunos a tomarem iniciativas, a serem elementos ativos do processo ensino/aprendizagem, o que favorece o desenvolvimento combinado de conhecimentos, habilidades e atitudes. Um outro aspecto do desenvolvimento de competências, bastante valorizado pelo DRH, é a garantia da qualidade do ensino. A acreditação das instituições de ensino, que implica na realização de uma avaliação aprofundada das escolas, baseada em critérios abrangentes e rigorosos, por um grupo independente de peritos reconhecidos é, certamente, um mecanismo eficaz de estímulo a melhoria da qualidade. A acreditação tem ainda o papel de informar ao público quais as instituições que alcançaram níveis de excelência em seus serviços. A qualidade está relacionada diretamente com os custos das atividades de educação. Existe um patamar mínimo de custos, abaixo do qual não é possível assegurar nenhum padrão de qualidade. Por outro lado, existem custos indevidos, provocados por uma gestão ineficiente das instituições de ensino. O DRH se preocupa, portanto, com o financiamento adequado e com a administração do sistema educacional. Por último, mas não menos importante, o desenvolvimento de competências exige a realização permanente de atividades de treinamento, tanto para os profissionais de saúde como para o pessoal administrativo. As atividades de educação continuada, especialmente quando exigem o afastamento temporário do profissional do seu serviço, não devem ser utilizadas como mecanismo para afastar o mal profissional, mas sim para atualizar o mais comprometido. Na área de educação continuada, a utilização de incentivos aos trabalhadores é muito útil. O uso das técnicas de ensino à distância, hoje facilmente acessíveis, pode também ser útil. 38 2.2. Distribuição de pessoal O Desenvolvimento de Recursos Humanos tem como objetivo promover uma distribuição de pessoal que assegure a eqüidade da oferta de serviços, seja por localidade geográfica, seja por nível de atenção, seja por tipo de serviço. Tal objetivo não é, no entanto, facilmente atingível. Em primeiro lugar, o objetivo de eqüidade não é sempre conciliável com o de eficiência. Muitas vezes, a priorização de um deles se impõe, o que implica julgamentos de valores e, consequentemente, controvérsias. E em segundo lugar, a produção de profissionais é um processo demorado, de anos. Exige, portanto, uma capacidade de previsão (p.ex., quantos farmacêuticos serão necessários na próxima década?) que as informações atuais raramente conferem aos planejadores. Contudo, as dificuldades de intervir não eliminam a necessidade da intervenção consciente sobre a distribuição de pessoal. Já conhecemos os problemas que um mercado não-regulado provoca. Na realidade, há diversas estratégias para enfrentar os desequilíbrios na distribuição da força de trabalho. Assim, o eventual excesso de profissionais pode ser reduzido pela introdução de um numerus clausus, preferencialmente negociado com as associações profissionais e as instituições educacionais. Pode-se ainda condicionar o financiamento das escolas ao alcance do número desejado de graduados. Ou adotar incentivos para encorajar ou desencorajar os futuros profissionais a escolherem certas especialidades e certos locais de trabalho. Na província do Quebec (Canadá), um conjunto de incentivos econômicos e profissionais, adotado no final dos anos 70, ajudou a reduzir a diferença nas taxas de médicos por habitantes entre as regiões urbanas e as rurais (Contandriopoulos e Fournier, 1992). Por fim, a abertura e o fechamento de postos de trabalho no setor público pode também contribuir para a correção dos desequilíbrios na distribuição de pessoal. Por exemplo, abrindo-se vagas exclusivamente nas regiões mal servidas e para as especialidades de profissionais mais escassos. B) Nível operacional 2.3. Gerência de recursos humanos em saúde A tarefa básica da gerência de pessoal é garantir aos trabalhadores as condições quotidianas adequadas de trabalho. Estas condições incluem os procedimentos de recrutamento e lotação, a definição de cargos e funções, os mecanismos de promoção e ascensão nas carreiras, os sistemas de incentivos ao desempenho, os modos e níveis de remuneração, o acesso aos instrumentos apropriados de trabalho e as relações de trabalho. De modo geral, em todos esses aspectos das condições de trabalho, o DRH sugere que o critério essencial para a tomada de decisões pelos gerentes seja a busca dos objetivos dos serviços de saúde. Quem e como recrutar, onde lotar, que cargos e carreiras definir, que incentivos adotar, quanto e como remunerar, que instrumentos fornecer, como se relacionar, tudo deve ser consistente com os objetivos democraticamente definidos para os serviços. Os interesses particulares, sejam os das lideranças políticas, sejam os dos profissionais, não devem servir de critério. De novo, a transparência do processo é o melhor mecanismo de favorecimento dos interesses públicos. Ter um critério claro para a tomada de decisões já resolve metade dos problemas dos gerentes, mas não resolve tudo. Em todos os aspectos mencionados, os gerentes de pessoal não têm autonomia completa para tomar as decisões. Pelo contrário, muitos outros atores estão envolvidos. O DRH recomenda, em consequência, o estabelecimento de mecanismos de coordenação entre as agências implicadas em cada um desses aspectos das condições de trabalho. Pelo mesmo motivo, o envolvimento dos profissionais e funcionários é fundamental. O DRH chama atenção ainda para as especificidades do setor da saúde. A gerência de pessoal de saúde tem que saber adaptar as condições de trabalho a tais particularidades. Os gerentes devem se 39 lembrar que os provedores de serviços de saúde são profissionais e suas instituições são burocracias profissionais, com todas as características a que nos referimos em seção precedente. Em suma, são três as estratégias gerais de gerência de pessoal: (1) adotar como critério de tomada de decisões a busca dos objetivos dos serviços, (2) buscar a participação e a coordenação dos interessados e (3) observar as especificidades do setor da saúde. Podemos passar, então, às estratégias mais específicas. 2.3.1. Capacidade gerencial O Desenvolvimento de Recursos Humanos recomenda, em primeiro lugar, a profissionalização dos gerentes. A responsabilidade e a complexidade das tarefas relacionadas à gerência da força de trabalho fazem com que o “bom-senso” ou o senso-comum não sejam suficientes. Felizmente, os programas de formação em gestão de recursos humanos estão se expandindo e se consolidando na maioria dos países. Agora, é preciso que estes programas formem gerentes bem capacitados e em número suficiente para atender as necessidades do país. Em segundo lugar, o DRH recomenda que o processo de seleção de gerentes valorize, sobremaneira, o fato do candidato ao posto ser um profissional formalmente capacitado. Naturalmente, outras formas de capacitação como a experiência de trabalho também podem ser valorizadas. Por outro lado, critérios político-partidários e outros do gênero devem ser, sempre que possível, evitados. Por fim, o DRH se ocupa da garantia das condições de trabalho dos gerentes. Como os demais profissionais, os gerentes precisam dispor de certos instrumentos de trabalho, ser bem remunerados, ter possibilidades de progredir na carreira e de atualizar seus conhecimentos, suas habilidades e suas atitudes. 2.3.2. Gerência da distribuição e da retenção de pessoal No nível político, foram definidas as regras básicas da distribuição e da retenção de pessoal. Essas regras, entretanto, têm suas aplicações concluídas no nível operacional. Cabe, portanto, ao gerente velar pelo respeito aos critérios de lotação, identificar eventuais descompassos entre as competências dos profissionais e as posições que ocupam, aplicar os incentivos ao trabalho em áreas menos atraentes e os incentivos à permanência no emprego. Em outras palavras, cabe ao gerente tomar as medidas ao seu alcance para garantir a mais ampla cobertura dos serviços, ou seja, garantir o acesso dos diferentes sub-grupos da população à gama completa dos serviços oferecidos pelos profissionais de saúde. 2.3.3. Gerência da produtividade A gerência de pessoal, dentro dos princípios do DRH, assume a responsabilidade de se esforçar para que o pessoal existente produza o máximo possível de serviços. Várias estratégias podem ser utilizadas. Melhorar as competências do pessoal, através de atividades de educação continuada, é uma das estratégias mais evidentes, mas nem por isso menos importante. As atividades educativas realizadas fora dos serviços são muito úteis, mas o treinamento em serviço tem certas vantagens pedagógicas e não cria solução de continuidade na oferta dos serviços. A produtividade pode ser melhorada também pela padronização relativa das práticas dos profissionais. A adoção de guias de prática e de protocolos, definindo as formas ideias de conduta clínica, contribui para aumentar a produtividade. Eliminar as duplicações desnecessárias de serviços é um procedimento básico para a melhoria da produtividade. A implantação de sistemas de referência e contra-referência, em uma rede 40 hierarquizada de serviços, evita as duplicações sem comprometer a cobertura e a eqüidade. Informar bem os profissionais e orientar devidamente os usuários é fundamental para o sucesso desses sistemas. A utilização de incentivos financeiros e profissionais à produtividade é um outra estratégia bastante tradicional, que pode dar bons resultados, em determinados contextos. Garantir o suprimento contínuo de materiais, através do manejo adequado de estoque, e zelar pelo bom estado dos equipamentos, através da manutenção preventiva, são também tarefas básicas para evitar perdas de produtividade. Modificações na organização do trabalho representam estratégias mais arrojadas de melhoria da produtividade, que demandam, por isso, maior cautela na sua utilização. Uma forma de modificar o trabalho é adotar técnicas mais custo-efetivas. As cirurgias sem internação são um exemplo. Os cuidados à domicílio, outro. Naturalmente, a adoção destas técnicas exigem um esforço considerável: treinamentos ou admissão de novos profissionais, aquisição de novos equipamentos e materiais, novas normas e rotinas de funcionamento, novas orientações a serem passadas à clientela. Contudo, este esforço de reorganização do trabalho é, posteriormente, bem recompensado. Outra forma de modificar a organização do trabalho, melhorando a produtividade e a eficiência dos serviços, é a delegação de tarefas ou substituição, "mecanismo pelo qual um recurso é substituído por um outro menos custoso, mas possuidor da mesma capacidade de produzir um bem ou um serviço dentro do respeito às normas estabelecidas" (????). O trabalho multiprofissional, implicando a participação de profissionais de distintas categorias no desenvolvimento de um mesmo programa, representa uma terceira forma de modificar a produção de serviços. E pode melhorar bastante a produtividade e a eficiência dos profissionais. O trabalho em equipe apresenta benefícios diretos para os usuários dos serviços: abordagem mais global e percepção integral dos problemas, intervenções melhor coordenadas, menor risco de erros, comunicação facilitada com vocabulário uniforme. Os profissionais mesmos são beneficiados pessoalmente através do compartilhamento de saberes e informações, da melhor utilização da sua competência e do reconhecimento dos colegas. Por outro lado, o trabalho de equipe não é apropriado para todas as tarefas. Cabe aos gerentes distinguí-las. Finalmente, o estabelecimento de metas de produção pode também contribuir para o aumento da produtividade dos profissionais, desde que sirvam de fonte de motivação para os trabalhadores. 2.3.4. Gerência da qualidade As estratégias de gerência de pessoal especificamente relacionadas à qualidade têm dois objetivos: garantir a eficácia dos serviços e o consequente impacto no estado de saúde da população e responder às expectativas dos usuários. De maneira global, as mesmas estratégias adotadas para aumentar a produtividade e a eficiência produzem efeitos positivos sobre a eficácia. De fato, profissionais melhor treinados, condutas clínicas baseadas em protocolos cientificamente elaborados, mecanismos de incentivos à qualidade, ausência de interrupções no suprimento de materiais ou no funcionamento dos equipamentos, utilização de técnicas mais efetivas e o trabalho em equipe são estratégias importantes para favorecer a eficácia do trabalho profissional. Podemos, entretanto, acrescentar outras estratégias de gerência da qualidade. Entre outras coisas, é importante que as normas de qualidade estejam escritas e sejam bastante divulgadas, com ênfase nos aspectos relativos à ética profissional. Infelizmente, em muitos lugares, a permissão para praticar uma profissão de saúde é um processo meramente burocrático de registro de diplomas no Ministério da Saúde ou no respectivo conselho profissional. Como se todas as instituições educacionais tivessem a mesma qualidade e todos os egressos, a mesma competência. Ora, os procedimentos de licenciamento podem ser utilizados como uma certificação a mais da competência profissional. 41 Com efeito, certos orgãos nacionais de licenciamento adotam mecanismos de verificação da capacidade dos requerentes, através de exames teóricos e práticos. Naturalmente, estes órgãos precisam dispor das condições necessárias para desempenhar este papel. A primeira dessas condições é dispor do mandato específico de proteção do público através da garantia da qualidade do trabalho profissional. Outra condição é a separação das funções de proteção do público e de defesa dos interesses particulares das profissões. A primeira função poderia, por exemplo, ser confiada aos conselhos profissionais, enquanto a segunda ficaria a cargo das associações e dos sindicatos. Em alguns países, está sendo adotada a recertificação ou o relicenciamento dos especialistas. Após um período determinado de tempo (5 anos na Argentina, 9 anos no Chile), os profissionais são obrigados a prestar novos exames e, caso não tenham um bom desempenho, podem perder o direito de praticar a especialidade. A gerência da qualidade pode ainda adotar a estratégia da acreditação dos serviços de saúde. Assim como as instituições educacionais, os estabelecimentos de saúde podem ser submetidos à uma avaliação criteriosa, conduzida por agências independentes e idôneas. Os resultados dessa avaliação ajudariam os gerentes a identificar os pontos fortes e fracos dos serviços e, em conseqüência, a orientar suas ações. Os gerentes de pessoal não podem esquecer que a satisfação dos prestadores de serviços é componente fundamental da qualidade. Em consequência, devem medir regularmente o grau de satisfação e tomar as medidas cabíveis, segundo as necessidades. Finalmente, a gerência da qualidade, dentro da estratégia de DRH, exige a implantação de sistemas de avaliação dos serviços. Além das avaliações periódicas realizados no processo de acreditação, os gerentes podem definir momentos de reflexão coletiva sobre o desempenho dos serviços. Podem ainda estabelecer indicadores de alerta que assinalarão quando os aspectos mais importantes da qualidade estiverem ameaçados. A supervisão regular do trabalho profissional também faz parte dos sistemas de acompanhamento e avaliação. Não é demais repetir que o processo de avaliação deve ser conduzido com a participação de todos, desde a definição dos critérios até as conclusões. As avaliações devem incluir, naturalmente, as próprias práticas gerenciais. Muitas vezes, as práticas se cristalizam em procedimentos rígidos, comprometando a flexibilidade que a administração de pessoal deve ter. Além disso, assim como exige dos trabalhadores a prestação de contas das atividades, os gerentes devem também prestar contas do cumprimento das suas responsabilidades. 2.3.5. Gerência do ambiente e das relações de trabalho Os determinantes principais do ambiente e das relações de trabalho não se situam, como sabemos, no nível operacional, mas sim no nível político. O contexto político, a disponibilidade de recursos e as relações de poder são os fatores que mais influenciam a configuração do ambiente e das relações de trabalho. Com efeito, a estabilidade ou a instabilidade política, a maior ou menor alocação de recursos para o setor da saúde e os interesses dos atores mais importantes vão estabelecer um ambiente mais ou menos propício ao bom desempenho profissional. Todavia, certas ações podem ser desenvolvidas no nível operacional para apoiar o estabelecimento de um ambiente e de relações de trabalho que favoreçam o alcance dos objetivos dos serviços de saúde. A estabilidade organizacional não pode ser garantida, mas pode ser fortalecida no nível operacional. Lembramos que os estabelecimentos de saúde são organizações profissionais, cuja estrutura é, simultaneamente, descentralizada e burocrática. A descentralização contribui para a estabilidade ao responsabilizar cada profissional pelo seu próprio trabalho. O aspecto burocrático 42 reflete a necessidade de estabilidade para que o profissional possa, pela repetição dos atos, aperfeiçoar suas práticas. Ao gerente de pessoal cabe tentar criar nos trabalhadores o sentimento de pertencer à organização. Esse sentimento contribui a diminuir a rotatividade de pessoal e o absenteísmo. Para criálo, as estratégias mais eficazes parecem ser as práticas participativas de gerência. Talvez a estratégia mais importante, passível de ser realizada, ou melhor, iniciada no nível operacional é a elaboração de um Plano de Carreiras, Cargos e Vencimentos (PCCV). Um plano estabelece as bases para as relações de trabalho, definindo os mecanismos de promoção e ascensão nas carreiras, os cargos e as funções, os modos e níveis de remuneração. Se feito com competência e de maneira democrática, o PCCV contribui bastante para a estabilidade organizacional, para a satisfação dos profissionais e para a possibilidade de planejamento a longo prazo das políticas de recursos humanos. 3. Desempenho dos recursos humanos em saúde Apresentamos, acima, alguns exemplos de ações, gerais e particulares, políticas e operacionais, que podem compor a estratégia de Desenvolvimento de Recursos Humanos. Nosso objetivo foi unicamente oferecer algumas pistas de reflexão para os gestores e gerentes de pessoal. Mesmo se procuramos dar exemplos que consideramos pertinentes para muitos países no momento atual, nunca pretendemos fornecer receitas prontas. Evidentemente, em cada realidade social, em cada conjuntura específica, o conjunto de ações que constituirá a estratégia mais apropriada de DRH será diferente. O importante, independentemente de local ou momento, é que a estratégia elaborada produza os efeitos esperados, ou seja, contribua para elevar ao máximo o desempenho dos profissionais de saúde e, por esta via, atender as necessidades de saúde da população. 8) INGREDIENTES DE POLÍTICAS EXITOSAS DE RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE O sucesso das políticas depende de muitos fatores. A discussão sobre a estratégia de Desenvolvimento de Recursos Humanos, na seção precedente, certamente deu uma idéia da amplitude dos aspectos envolvidos na formulação e na implementação das políticas de pessoal. Nesta parte de conclusão do texto, pretendemos apenas salientar os aspectos que consideramos os mais fundamentais para o êxito das políticas relacionadas à produção e à utilização da força de trabalho. O primeiro ingrediente fundamental de uma política exitosa é a existência de um ambiente político favorável e de um verdadeiro compromisso das lideranças nacionais. É claro que os gestores de pessoal podem e devem tomar iniciativas no sentido de contribuir para tanto. Contudo, não tenhamos ilusões, as iniciativas dos gestores, por melhores que sejam, não são suficientes. É preciso que a sociedade, em seu conjunto, esteja convencida da necessidade de investir nos recursos humanos para alcançar os objetivos em termos de saúde. O segundo ingrediente básico é a existência, real ou potencial, de um grau suficiente de capacidade técnica de gestão. Como mencionamos na introdução, a área de administração de recursos humanos foi, durante muito tempo, negligenciada. O resultado é que, em muitos lugares, falta uma cultura de gestão de pessoal já impregnada nas práticas políticas e institucionais. Em certos locais, faltam mesmo administradores experimentados, faltam recursos materiais, faltam normas e rotinas definidas. Felizmente, a tendência geral, neste momento, é de investimento na capacitação técnica. O terceiro ingrediente das políticas bem sucedidas é a disponibilidade de informações válidas e completas. Em certos aspectos, como na identificação de necessidades de pessoal ou na apreciação da qualidade do trabalho profissional, a disponibilidade de informações é mínima. Para outros aspectos, no entanto, existem extensos bancos de dados, como os registros dos conselhos profissionais ou a folha 43 de pagamentos das instituições. De todo modo, a análise da situação de recursos humanos, utilizando um quadro de referência como o que apresentamos, poderá fornecer as informações necessárias ao sucesso das políticas. Ao longo de todo o texto, afirmamos a necessidade e as vantagens da participação de todos os interessados na formulação e na implementação das políticas de pessoal. Logo, não poderíamos deixar de incluir o envolvimento sistemático dos diversos atores sociais implicados na gestão de recursos humanos como um dos ingredientes essenciais das políticas bem sucedidas. Como dizia Maquiavel, as mudanças políticas são as tarefas mais ingratas. O seu promotor costuma ter a oposição decidida dos privilegiados com a situação presente e apenas um tímido apoio dos futuros beneficiados. Por isso, um ingrediente fundamental para o êxito das novas políticas é a adoção de um conjunto amplo e coerente de incentivos à mudança, que reduza a resistência de uns e aumente o entusiasmo de outros. Finalmente, o sexto e último ingrediente das políticas exitosas é a elaboração de uma estratégia de melhoria da utilização da força de trabalho que tenha objetivos bem definidos. Esperamos que nossa argumentação ao longo do texto tenha evidenciado a importância de ter objetivos claros. São eles que servirão de critérios para julgar a adequação das políticas, para selecionar as intervenções e para avaliar o desempenho dos profissionais. Além disso, são os objetivos que vão dar aos gestores a força do argumento do interesse público para negociar com os diferentes atores particulares. Para finalizar, uma palavra merece ser dita sobre a redefinição das funções do Estado e do papel do mercado na regulação da força de trabalho. De tudo o que falamos, parece-nos essencial reter o seguinte: uma sociedade democrática não pode prescindir de um Estado de direito que assegure a defesa dos interesses públicos. No setor da saúde, especificamente, as comparações internacionais têm demonstrado que é do interesse coletivo o acesso universal e eqüitativo ao conjunto dos serviços oferecidos. Cabe, portanto, ao Estado, assegurá-lo. A garantia da universalidade e da eqüidade de acesso exige a intervenção consciente, planejada, de muitos atores sociais. Só o Estado tem as condições de conduzir este processo complexo de intervenção. Os recursos que uma sociedade dispõe, no entanto, não são ilimitados. Portanto, o acesso aos serviços deve ser garantido da forma mais eficiente possível. A eficiência impõe algumas exigências à organização da oferta dos serviços. Antes de tudo, é preciso que o conjunto das ações de saúde seja bem coordenado, o que exige a presença de um agente coordenador. No nível societal, só o Estado pode assumir este papel. Em segundo lugar, a eficiência exige uma flexibilidade de adaptação dos serviços às realidades locais e conjunturais. Tal flexibilidade não é favorecida pelos mecanismos burocráticos característicos da intervenção estatal. Aqui, a possibilidade, oferecida pelos mecanismos de mercado, de ajustes diretos entre produtores e consumidores de serviços é a melhor maneira de garantir a eficiência. Assim, o Estado cumpre melhor seu papel de guardião do interesse público se desempenha bem a função de dirigente e de coordenador das ações de saúde. As funções executivas, em geral, são melhor desempenhadas por organismos descentralizados, submetidos à competição. O estatuto jurídico desses organismos, se público ou privado, é de menor importância. 11) Glossario GLOSSÁRIO Acesso – possibilidade de utilização dos serviços de saúde. As barreiras ao acesso podem ser geográficas, econômicas, sócio-culturais e organizacionais. 44 Acreditação – processo de avaliação que visa verificar se um serviço, um programa ou uma organização atende aos padrões de excelência definidos pelas associações profissionais ou por avaliadores independentes. Em alguns países, como a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia, a acreditação é um processo voluntário baseado na auto-avaliação e na opinião dos pares. Já nos EEUU, é um processo mais prescritivo, de cima para baixo, conduzido pela Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organizations. Alocação de pessoal – processo gerencial de preenchimento dos postos de trabalho com trabalhadores formalmente indicados. É importante distinguir de distribuição de pessoal (ver abaixo). Burocracias profissionais – São organizações que se caracterizam, essencialmente, por dependerem do trabalho de profissionais para funcionar. Os profissionais são trabalhadores cujo exercício das competências exige que disponham de um elevado grau de independência. São, contudo, burocracias porque seus mecanismos de coordenação se baseiam na padronização das atividades. Combinação de competências – disponibilidade, em proporções determinadas, de membros das diversas categorias de profissionais necessárias ao funcionamento de um serviço. Competência – qualificação obtida após um processo específico de formação profissional, seja no nível universitário, seja no nível técnico. Conhecimentos, habilidades e atitudes – as três dimensões de um processo de educação. Os conhecimentos se referem às informações (ao saber) que o estudante deve adquirir. As habilidades se relacionam as tarefas que o estudante deve aprender a realizar (o saber-fazer). As atitudes se referem ao comportamento, apropriado à uma ocupação, que o estudante deve interiorizar ao longo da sua formação (o saber ser). Desempenho da força de trabalho– resultado efetivo (desempenho real) ou esperado (desempenho potencial) do trabalho profissional. A avaliação do desempenho dependerá dos critérios utilizados (alcance dos objetivos, adaptação ao meio, produtividade, satisfação, etc). Sinônimo de performance. Distribuição de pessoal – processo de criação e preencimento de postos de trabalho que determina a localização geográfica, por nível de atenção, por tipo de serviço e por estabelecimento dos trabalhadores. A distribuição pode ser conduzida de modo planejado, no nível político da gestão de recursos humanos, ou ser determinada pelos mecanismos de mercado. É importante distinguir da alocação de pessoal, que se refere ao nível operacional. Educação continuada – atividades de aprendizagem, em geral de curta duração, realizadas após a formação, com o pessoal em serviço, para reciclar ou atualizar as competências profissionais. O mesmo que treinamento. Ensino baseado em problemas – metodologia de ensino profissional que não adota o currículo baseado em disciplinas, mas utiliza exemplos de problemas normalmente vividos na prática dos profissionais para organizar os conteúdos a serem discutidos. Usualmente adota-se forma seminários de discussão. Uma grande capacidade de iniciativa é exigida do estudante. Externalidades – conceito que denota o fato de certas transações econômicas produzirem efeitos para outros agentes além dos dois (produtor e consumidor, por exemplo) diretamente envolvidos. 45 Força de trabalho – apesar de existirem diferenças significativas entre os conceitos teóricos de força de trabalho e de recursos humanos, preferimos tomá-los como sinônimos, visto que nosso texto busca adotar uma abordagem mais prática da gestão, mais voltada para os gestores do que para os acadêmicos. Assim, para nós força de trabalho ou recursos humanos se referem aos trabalhadores, aos profissionais, ao pessoal que trabalha nos serviços de saúde. Formação de pessoal – processo formal de educação, em geral de longa duração e de nível técnico ou superior, ao fim do qual o aluno bem sucedido adquire o direito de exercer a ocupação correspondente ao seu curso. Guias de prática e protocolos – normas escritas e adotadas por um serviço de orientação dos profissionais quanto às condutas a serem adotadas em casos específicos previamente definidos. Impacto – modificação produzida em uma situação a partir de uma ou várias ações realizadas. O impacto é positivo se a situação é melhorada pela ação. É negativo, no caso contrário. Licenciamento/ relicenciamento – processo burocrático-legal de autorização do exercício profissional. A primeira vez configura o caso do licenciamento. Se repetido, uma ou mais vezes ao longo da vida do profissional, caracteriza o relicenciamento ou a recertificação. Mix de competências – ver Combinação de competências Multiemprego – situação dos profissionais que, por motivos em geral associados aos baixos vencimentos, possuem mais de um contrato de trabalho. Podem ter um ou mais empregos públicos, um ou mais empregos no setor privado e ainda atuar como autônomos. Nivel de atenção – critério de organização da rede de serviços de saúde, baseado na complexidade tecnológica dos estabelecimentos. Assim, o nível primário de atenção corresponde aos serviços mais genéricos, que não exigem a presença de especialistas e nem de equipamentos mais sofisticados. O nível terciário é o que oferece os serviços mais especializados. O nível secundário é o intermediário. Às vezes, acrescenta-se o nível quaternário, para os estabelecimentos ultra-especializados. Organizações profissionais – ver Burocracias profissionais Performance – ver Desempenho Produção e utilização da força de trabalho – designa o processo de formação (desenvolvimento de competências), de distribuição e de gerência de pessoal. Setor da saúde – conjunto das organizações prestadoras de serviços de saúde e das instituições administrativas ligadas a essas organizações. Pode-se dividir o setor da saúde em um sub-setor público e um sub-setor privado. Sistemas de referência e contra-referência – arranjo inter-organizacional, onde os diversos estabelecimentos de saúde, nos diferentes níveis de atenção, definem mecanismos de coordenação para o encaminhamento de pacientes e de informações, no sentido de garantir a cobertura e a eficiência do sistema de serviços. 46 Treinamento – ver Educação continuada. 10) BIBLIOGRAFIA