UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA Gustavo Henrique de Abreu Silva O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA EM PORTO VELHO-RO Porto velho 2009 GUSTAVO HENRIQUE DE ABREU SILVA O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA EM PORTO VELHO-RO Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Mestrado em Geografia – PPGG, da Universidade Federal de Rondônia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Josué da Costa Silva. PORTO VELHO 2009 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP 911.3 S586e Silva, Gustavo Henrique de Abreu. O espaço vivido da cantoria nordestina em Porto Velho RO / Gustavo Henrique de Abreu Silva. -- Porto Velho, 2009. 149p. Dissertação (Mestrado). – Fundação Universidade Federal de Rondônia, 2009. Orientação Prof. Dr. Josué da Costa Silva, Núcleo de Ciência eTecnologia, Departamento de Geografia. 1. Geografia Humana 2. Geografia Cultural 3. Cantoria Nordestina I. Título II. Silva, Josué da Costa. Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária Leandra Perdigão CRB 11/415 Agradeço: em primeiro lugar a Deus, o grande e verdadeiro Mestre do Universo, pois tenho convicção de que sem ele eu não teria chegado até aqui; a minha querida mãe Heloísa, sempre pronta a me incentivar e apoiar; a meu pai Adélio, por ser um verdadeiro guerreiro e lutador da vida; a meu querido filho Ismael, pois sua alegria e seu sorriso de criança me ensinaram a ter perseverança e paciência e a não esquecer a riqueza das coisas simples da vida; a minha esposa Alana; ao meu orientador professor Josué pelo apoio e orientação; a professora Maria das Graças que diversas vezes me auxiliou de maneira decisiva e inestimável; ao professor Nilson Santos; ao professor Carlos Santos que inúmeras vezes me serviu de inspiração; ao professor Alberto Lins Caldas por suas intrigantes aulas durante o curso de mestrado, e por sua inesquecível participação como membro da banca examinadora; ao professor Sylvio Fausto Gil Filho pelas observações e contribuições enquanto membro da banca examinadora; ao colega de curso Salem Leandro pela amizade e confiança; a todos os meus professores, professoras e colegas de curso que de alguma forma me fizeram crescer humana e intelectualmente; a todos os meus parentes, amigos e amigas que de uma forma ou de outra procuraram me incentivar; ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pelos meses que financiou minha pesquisa e que me foi de uma valia incalculável; e especialmente aos poetas repentistas: Matias Neto; Mozaniel Mendonça; Custódio Queiroz e João Azevedo, pessoas simples, mas dotadas de sabedoria que através da Cantoria Nordestina me fizeram enxergar a vida e o mundo com outros olhos... olhos mais humanos e alegres. Nesta jornada enfrentei algumas dificuldades, contudo o prazer pela descoberta e o amor pela geografia prevaleceram. Muitos foram os que me auxiliaram nesta caminhada. Mas quero dedicar este trabalho, especialmente, a todos os admiradores e amantes da geografia e da Cantoria Nordestina. E mais ainda, aos poetas repentistas, os quais desenvolvem um trabalho legitimamente brasileiro e altamente complexo que precisa ser mais conhecido e melhor valorizado. RESUMO Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura geográfica da Cantoria Nordestina no estado de Rondônia. Para isso, são utilizados pressupostos das geografias cultural e humanista. Através da análise espacial da Cantoria Nordestina é que desenvolve-se o conceito de “espaço vivido da Cantoria Nordestina”. Esse conceito é elaborado tendo por base a teoria do espaço vivido de Armand Frémont (1980) e as concepções de lugar oriundas da geografia humanista e cultural. Este conceito possibilita analisar a Cantoria Nordestina não apenas como uma atividade artísticocultural, mas também como uma complexa manifestação espaço-sócio-cultural. A Cantoria Nordestina é uma atividade que promove a sociabilidade entre seus atores. Sendo mediada através de códigos de comunicação, ela possibilita um contexto propício para a elaboração e reelaboração de representações espaciais. Ao abordar temáticas voltadas aos espaços nordestino e rondoniense, e à cotidianidade de seu grupo social, a Cantoria Nordestina também se insurge como propulsora de sentimentos topofílicos em diferentes níveis. Os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina, compartilham, além do mesmo espaço concreto (no momento de realização da Cantoria), representações, códigos de comunicação e afinidades comuns, ou seja, associado ao contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina, existe uma identidade cultural que interliga os seus atores. O espaço vivido da Cantoria Nordestina é dinâmico, carregado de significados e valores. Seus atores o experienciam emocional e cognitivamente. Analisar o espaço vivido da Cantoria Nordestina, implica na consideração de intersubjetividades espaciais. É nesse sentido, considerando o próprio escopo do trabalho, que as metodologias de pesquisa foram escolhidas: no caso, a história oral (MEIHY, 2005; 2007) e a pesquisa participante (BRANDÃO, 1999). A Cantoria Nordestina é uma atividade legitimamente brasileira, intrinsecamente ela sanciona comunicação. Rondônia é um estado que recebeu e recebe diversos migrantes nordestinos, esses migrantes também trazem consigo a sua cultura e as suas necessidades de adaptação e socialização. A Cantoria Nordestina em Rondônia envolve uma dinâmica complexa: simultaneamente objetiva e subjetiva e simultaneamente nordestina e rondoniense. Compreender o espaço vivido da Cantoria Nordestina é compreender a cultura de um grupo social, é adentrar em meandros da comunicação geradora de significados, é reconhecer o valor simbólico de lugares e sua interligação com os sentimentos de identidade. Palavras-chave: espaço vivido da Cantoria Nordestina, identidade, geografia cultural, geografia humanista, lugar, representações, topofilia. ABSTRACT This work aims to achieve a geographical reading over Cantoria Nordestina (Brasilian Northeastern Chant) in the state of Rondonia. For that, some purposes of humanist and cultural geographies are used. Through a spatial analisis over Brasilian Northeastern Chant, the concept of this chant is developed. This concept is based on Armand Frèmont’s living space theories (1980) and on the spatial notion derived from humanist and cultural geography. It allows not only an examination of the brasilian northeastern Chant as being an artistic and cultural activity, but also as a more complex spatial, social and cultural manifestation. The Brasilian Northeastern Chant promotes sociability among its participants. It is done through comunication codes and permits a propitious context for elaboration and re-elaboration of spatial representations. By aproaching subjects related to northeastern and rondonian spaces, apart from the quotidian of its social group. It also appears as a motion to varied topophilic feelings and in different levels. The participants in Brasilian Northeastern Chant share representations, communication codes and common affinities, apart from the same concrete space of realization, that is, in association to the spatial context of this chant there is a cultural identity that link the participants. The living space of Brasilian Northeastern Chant is dinamic, full of signals and values. The participants experience emotions and cognitions. Thus, analise its living space implies a consideration of spatial intersubjectiveness. The choosen methodologies, considering the target of this work, are Oral History Handbook (MEIHY, 2005; 2007) and Participatory Research (BRANDÃO, 1999). This chant is a legitimous brasilian activity and sanctions an intrinsic communication. Rondonia is a state that boarded, and it keeps boarding, several northeastern immigrants and they bring with them the culture and the needs of adapting and socialising. The Brasilian Northeastern Chant inside Rondonia involves a complex dinamics, simultaneously objective and subjective, northestern and rondonian. Comprehend the living space of Brasilian Northeastern Chant means to understand the culture of a social group, to enter into a winding communication that generates new significations, to recognise the simbolic value of places and their realation to the feeling of identity. Keywords: cultural geography; humanist geography; representations; identity; topophilia; places; living space of Brasilian Northeastern Chant. LISTA DE FIGURAS FIGURA 01 AS INTER-RELAÇÕES ENTRE OS ATORES DO ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA....................................................................................93 FIGURA 02 A INTERSUBJETIVIDADE NO ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA........................................................................................................112 LISTA DE FOTOGRAFIAS FOTO 01 MOZANIEL MENDONÇA (esq) E MATIAS NETO (dir) SEGURANDO SUAS VIOLAS.........................................................................................................................48 FOTO 02 CANTADORES E A BANDEJA, CUSTÓDIO QUEIROZ (esq) E MATIAS NETO (dir)...............................................................................................................................90 FOTO 03 UMA OUVINTE MANIFESTANDO SEU AFETO PELO CANTADOR CUSTÓDIO QUEIROZ.....................................................................................................................92 FOTO 04 A RECIPROCIDADE ENTRE OS CANTADORES MOZANIEL MENDONÇA (esq) E MATIAS NETO (dir).....................................................................................104 FOTO 05 CACAU (esq) E LULU (dir), FILHO DO CANTADOR MOZANIEL MENDONÇA, JÁ MOSTRANDO INTERESSE PELO OFÍCIO DO PAI........................................120 FOTO 06 CRIANÇAS PARTICIPANDO DE CANTORIA PÉ-DE-PAREDE, DOIS GAROTOS (esq) E O NORDESTINO ANTÔNIO (dir) ABRAÇANDO SEU FILHO........................................................................................................................121 FOTO 07 MOZANIEL MENDONÇA (esq), MATIAS NETO (dir) E AS CRIANÇAS TAMBÉM PRESENTES EM CANTORIA PÉ-DE-PAREDE..................................121 FOTO 08 D. LÚCIA E SEUS PAIS, FRANCISCO SANTOS (76 anos) E JÚLIA SANTOS (66 anos), TODOS CEARENSES......................................................................................137 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO..............................................................................................................10 INTRODUÇÃO...................................................................................................................15 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL.................................................19 1.1 Geografia Cultural........................................................................................................21 1.2 Representações..............................................................................................................25 1.3 Identidade......................................................................................................................28 1.4 Geografia Humanista....................................................................................................29 1.5 Lugar..............................................................................................................................35 1.6 Topofilia.........................................................................................................................37 1.7 Espaço Vivido................................................................................................................38 2. METODOLOGIA...........................................................................................................41 2.1 Pesquisa Participante....................................................................................................42 2.2 História Oral..................................................................................................................43 2.2.1 Valorizando os diferentes olhares.............................................................................44 3. O QUE É A CANTORIA NORDESTINA?..................................................................47 3.1 Técnicas da Cantoria Nordestina................................................................................50 3.2 Modalidades da Cantoria Nordestina.........................................................................51 3.2.1 O Desafio..................................................................................................................59 3.3 O Apologista..................................................................................................................65 4. MATIAS NETO: UM REPENTISTA EM RONDÔNIA............................................66 4.1 Em Rio Grande do Norte..............................................................................................68 4.2 Descobrindo a “veia poética”.......................................................................................70 4.3 Morando em um novo lugar.........................................................................................74 4.4 Os estudos......................................................................................................................76 4.5 Lembranças da mãe e da serra de Luiz Gomes..........................................................78 4.6 A Cantoria Nordestina em Rondônia..........................................................................79 4.6.1 A Cantoria em Rondônia antigamente.....................................................................82 4.7 Casos de Cantoria.........................................................................................................83 5. CANTORIA NORDESTINA E LEITURAS GEOGRÁFICAS.................................87 5.1 Os pés-de-parede...........................................................................................................88 5.2 Análise da história oral de Matias Neto......................................................................93 5.2.1 Família e terra natal...................................................................................................94 5.2.2 O esforço em busca dos estudos e o Repente como estímulo social.......................99 5.2.3 A sociabilidade da Cantoria Nordestina.................................................................103 6. O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA...........................................108 6.1 Cantoria Nordestina e representações......................................................................116 6.2 Cantoria Nordestina e sentimentos topofílicos.........................................................122 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................139 BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................143 10 APRESENTAÇÃO Cada ser humano é um ser único, dotado de características próprias. Contudo, a nossa individualidade, as nossas características íntimas, não foram adquiridas ao acaso. Cada um de nós tem um tempo e um espaço próprios que foram e são vivenciados, tudo isso forma a história individual de cada um. Essa história individual não é dissociada de uma história coletiva, muito pelo contrário. É através da convivência social, é através da cultura, das nossas diversas interrelações, que nos construímos como indivíduos e nos afirmamos como alguém no mundo. Sempre que fazemos uma coisa em que acreditamos, fazemos melhor! Existe uma grande diferença em fazer algo por obrigação, e fazer algo por prazer. Quando vemos sentido em algo, quando realmente acreditamos no que estamos fazendo, dificilmente estamos no caminho errado. De certa forma é assim que me sinto em relação à geografia e em relação ao tema abordado nessa dissertação. Geografia pra mim não é somente uma “disciplina acadêmica”, geografia (sob determinados aspectos) é uma característica intrínseca a todo ser humano. Nós somos seres espaciais por excelência. Nós nos dirigimos de um canto a outro, nós habitamos um espaço, nós vivenciamos os lugares, nós temos uma história espacial e temporal. Eu por exemplo nasci em Brasília, em 1979. Ou seja, o meu “lugar de nascimento” e a “época” em que eu nasci estão intrinsecamente inter-relacionados com os contextos das minhas experiências de vida, das minhas experiências de mundo. A língua que eu falo, a estrutura familiar que vivenciei, os conhecimentos e valores que me foram transmitidos... Tudo isso contribui para eu ser a pessoa, o indivíduo que sou hoje. Assim foi e é comigo, e assim também é com cada ser humano. A geografia me encantou, por caminhos inesperados, mas me encantou. Descobri na geografia uma atividade intelectual interessante. Uma atividade que busca compreender os processos sociais, que busca decodificar a antiguíssima e eterna relação dos seres humanos com os seus espaços. A pluralidade da geografia é outro traço marcante, os próprios geógrafos por vezes sentem dificuldades de se comunicar. O que é geografia para um grupo de geógrafos muitas vezes não o é para outro, e vice-versa. Mas é nessa pluralidade, tantas vezes mal compreendida, que reside uma das maiores belezas da geografia: sua complexidade. A geografia abre diversas oportunidades, ser geógrafo é, antes de tudo, ser alguém pensante; é ser alguém 11 interessado em entender cada vez mais os processos e significados humanos sobre a face da Terra. Meu encontro com a geografia se deu no ano de 2002, na época eu fazia o curso de engenharia florestal em uma faculdade particular em Porto Velho. Desde cedo já trazia comigo o interesse pelas paisagens naturais; o contato com a floresta e seus rios, as coisas simples dos caboclos, suas histórias e costumes, chamavam minha atenção. Foi nessa época que fiz o vestibular para o curso de geografia na Universidade Federal de Rondônia. Então, durante um semestre fiz simultaneamente os dois cursos: engenharia florestal e geografia. Gradativamente, fui me identificando mais com a geografia, para mim a geografia apresentava mais possibilidades, principalmente no aspecto de sua potencialidade interdisciplinar. Inicialmente, interessei-me mais pela chamada geografia física, principalmente através das influências dos professores Maniesi e Eliomar. A geomorfologia inter-relacionada aos processos geológicos, permeada pelos aspectos fluviais, climatológicos e bióticos me deixavam fascinado. Contudo, o elemento humano em breve chamaria significativamente minha atenção. No decorrer do curso, por meio da professora Sandra Kely, ouvi falar no nome “geografia cultural”. Digo o nome, porque sobre geografia cultural o que ouvi naquele momento foi somente isso. Mas de certa forma isso já me serviu, através desse “simples nome” portas muito interessantes viriam a ser abertas. Aqui convém esclarecer porque esse nome “geografia cultural” me chamou tanta atenção. Na verdade, isso tem relação com a minha pesquisa de mestrado e objetivamente com a própria existência dessa dissertação. Obviamente, todos nós temos nossos interesses e aptidões, e certamente eu também tenho os meus. Dentre esses interesses existe o meu envolvimento com a música. Na minha família existem alguns músicos: minha mãe toca piano e violão, minha tia toca piano, violão e flauta transversal e meu irmão é um bom professor de piano. Filho de pais divorciados, minha mãe se casou com um músico e artista plástico, ou seja, cresci em um ambiente propício a arte. Era constante, eu ainda criança, ir dormir ao som de boas rodas de violão, regadas principalmente por melodias de autores clássicos da nossa bela música popular brasileira. Nesse contexto, aprendi a tocar violão. Antes de entrar para o curso de engenharia florestal, durante alguns anos até ganhei meu dinheiro dando aulas como professor de violão. Cheguei até a pensar seriamente em fazer o curso de música na UnB em Brasília. Mas 12 gradativamente o meu estilo musical foi se tornando mais “exótico”, comecei a me aproximar cada vez mais das músicas de raízes nordestinas. Foi dentro desse contexto que conheci a Cantoria Nordestina. É estranho... mas desde bem pequeno, em qualquer oportunidade que eu tinha de ouvir o som das “violas nordestinas” eu me emocionava. Sentia aquela sensação que todos nós sentimos quando encontramos algo que realmente achamos interessante. Foi então que em 1997 conheci o jovem Repentista João Santana, que na época ainda não era um Repentista “profissional”, como dizem. Então, eu e João começamos a exercitar o Repente, o cantar de improviso, de uma forma muito amadora. Foi através desse nosso interesse mútuo que conhecemos em Brasília, mais especificamente em Ceilândia, a Casa do Cantador. Uma edificação criada por Oscar Niemeyer, inaugurada em 9 de novembro de 1986, com o intuito de servir de espaço para o encontro entre Cantores e admiradores da Cantoria Nordestina. Assim, voltando ao cenário rondoniense, já em meados de 2005, quando ouvi falar em geografia cultural a minha noção sobre o conceito de cultura era bem mais limitada do que hoje. Mas inicialmente achei interessante a ideia da inter-relação entre cultura e geografia. Foi a partir daí que comecei a pesquisar na internet algumas coisas a respeito de geografia cultural. E nessas pesquisas, além de alguns artigos, encontrei o livro “Introdução à Geografia Cultural” organizado por Roberto Lobato Corrêa e Zeny Ronsendahl. Através da leitura desse livro tive o meu primeiro contato com autores como Paul Claval, Denis Cosgrove e James Duncan. Nessa altura dos acontecimentos já tinha concluído o curso de licenciatura plena em geografia e estava cursando as disciplinas do bacharelado, ou seja, eu precisava pensar em um projeto de pesquisa para o desenvolvimento da minha monografia. Foi quando um amigo faloume que o professor Josué tinha um grupo de pesquisas que trabalhava com questões relacionadas à dimensão espacial da cultura, o GEPCULTURA. Foi neste momento que procurei o professor Josué, quando o encontrei perguntei sobre o grupo de estudos e pesquisa GEPCULTURA, e disse que estava interessado em conhecer mais sobre geografia cultural. Ele me tratou de uma maneira tranqüila e receptiva, perguntou como eu fiquei sabendo do grupo e o que eu já tinha lido a respeito de geografia cultural. Conversamos um pouco, e durante essa conversa falei do meu interesse em desenvolver um trabalho de conclusão de curso relacionado às perspectivas da geografia cultural. Ele me indicou uma bibliografia muito interessante em conteúdo, e consideravelmente grande em quantidade. Recomendou que eu 13 fizesse fichamento de tudo, e quando eu estivesse com o material todo pronto que eu voltasse a procurá-lo. Me lembro bem do seu conselho “bote fogo na leitura”!!! Eu realmente sabia que não conseguiria ler e fichar todo aquele material no, relativamente, pouco tempo que eu tinha. Mas resolvi fazer o máximo que eu pudesse. A bibliografia indicada me agradou e o meu interesse pelo assunto foi aumentando cada vez mais. Depois de ter lido alguns livros e ter feito os fichamentos, resolvi enviar um e-mail ao Josué contando o que tinha achado dos livros e como estava me sentindo em relação às leituras. O resultado deste e-mail foi claro e direto, ele disse que na semana seguinte estaria fazendo uma reunião com todos os seus orientandos, e disse que era pra eu estar presente. Dentro desse contexto desenvolvi meu projeto de pesquisa, visando à conclusão do bacharelado. Contudo, algo interessante aconteceu, o edital do Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia estava prestes a ser publicado. E comecei a amadurecer a ideia de aprimorar o meu projeto de pesquisa para tentar o ingresso no Mestrado. Nesse contexto, tive que tomar uma decisão, ou eu concluiria o meu bacharelado, ou eu tentaria o ingresso no Mestrado; com o apoio do professor Josué e de familiares, principalmente minha mãe, optei pela segunda opção. Obtive resultado positivo, consegui entrar no Mestrado com uma boa classificação. O mestrado para mim não foi um “simples” curso, foi graças ao mestrado que tive oportunidade de vivenciar um ambiente acadêmico de um nível mais alto. Durante esse período pude aprimorar minhas leituras, amadurecer minhas idéias e me preparar de maneira mais segura para esse grande e belo desafio que é a pesquisa. O conhecimento não pode ser construído de forma unidirecional ou isolada, nesse sentido as inter-relações, o debate, o diálogo são fundamentais; o ambiente do mestrado me proporcionou isso: as aulas, as palestras, os eventos... Dentre as inúmeras atividades que pude participar teve uma que me marcou de maneira especial, a viajem que fizemos à Parintins para pesquisarmos sobre aspectos geográficos relacionados ao festejo dos bois-bumbás. Nessa viajem, foram pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia e da Universidade Federal do Paraná, tendo também o apoio da Universidade de Paris Sorbonne IV manifestado na presença do emérito professor Paul Claval. Sobre essa viajem e as experiências que tivemos, se o espaço que me cabe nessa apresentação permitisse, eu poderia me alongar muito mais, mas convém ressaltar que foi uma viajem maravilhosa, que abriu muito mais meus 14 olhos para as diversidades humanas e para a amplitude da geografia. Conviver com todos os membros da expedissão foi gratificante. Porém confesso que Paul Claval superou todas as expectativas. Um homem dotado de uma intelectualidade fabulosa, mas sempre com um sorriso amigo e uma maneira simples e gentil. Portanto, desse curso de mestrado trago muitas histórias, lembranças e amadurecimento. Essa dissertação é um pouco do que pude percorrer nas estradas desse mestrado. 15 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como tema a Cantoria Nordestina, sua proposta é fazer uma leitura geográfica da Cantoria Nordestina no estado de Rondônia, ou seja, será feita uma inter-relação – tanto a nível teórico quanto empírico – entre Cantoria Nordestina e geografia. Mas o que é a Cantoria Nordestina? A Cantoria Nordestina é uma manifestação artística oriunda do Nordeste, legitimamente brasileira; e com alto teor cognitivo. Nela participam, basicamente, os Cantadores e o público. Os Cantadores, os quais sempre cantam em duplas, improvisam os seus versos na hora, daí a denominação repente, ou, improviso. Mas o que faz a Cantoria Nordestina ser pertinente à uma análise geográfica? Considerando o conceito de espaço vivido, a Cantoria Nordestina se caracteriza como um importante elemento de inter-relações sociais para os atores envolvidos em seu contexto. Ou seja, ela tem uma função social, ela subsidia processos de comunicação intersubjetivos que se caracterizam por toda uma série de elementos que vão garantir à Cantoria Nordestina uma dimensão espacial. A Cantoria Nordestina em Rondônia, visualizada como fenômeno sócio-espacial – principalmente nos denominados pés-de-parede1 – faz uma reconstrução do espaço nordestino. Essa reconstrução se dá tanto a nível simbólico, (caracterizada principalmente por códigos de comunicação, regras sociais e representações); quanto a nível empírico de organização espacial. As narrativas cantadas de improviso pelos Cantadores ou Repentistas, expressam diversas facetas da cotidianidade do grupo. Os “Poetas Cantadores” (assim também denominados), versam sobre os mais variados temas: sertão, saudade, educação, violência, política, religião, injustiças sociais, meio ambiente... enfim, o seu repertório temático é imenso, senão infinito. Mas mesmo com toda essa pluralidade, em campo, foi possível observar algumas temáticas que se destacavam: dentre elas a ideia de “sertão”, sendo que, na ótica dos Cantadores, este é caracterizado como “a terra natal” ou o “lugar” de origem. A Cantoria Nordestina é analisada neste trabalho a partir de dois enfoques específicos: a) através dos atores sócio-espaciais da Cantoria Nordestina; e b) através das narrativas cantadas de 1 Cantoria nos moldes tradicionais do nordeste, onde o público tem contato direto com os Cantadores. Caracteriza-se pela colocação de uma bandeja próxima aos Cantadores, aonde os ouvintes contribuem espontaneamente e fazem os seus pedidos. 16 improviso pelos próprios Cantadores. Esses enfoques não são excludentes, e sim complementares. Foi associando o espaço concreto de realização da Cantoria Nordestina com as inter-relações sociais processadas nesse espaço, que desenvolvemos o conceito de “espaço vivido da Cantoria Nordestina”. Este conceito foi elaborado para capacitar uma operacionalização teórica entre geografia e Cantoria Nordestina. Seu desenvolvimento se dá através da articulação do conceito de espaço vivido do geógrafo francês Armand Frémont (1980) com concepções de espaço oriundas tanto da geografia cultural quanto humanista. Esse espaço vivido da Cantoria Nordestina é formado a partir de diversos elementos interatuantes. Dentre eles destaca-se: a organização do espaço da Cantoria em seu sentido material, a intersubjetividade, os códigos de comunicação, as representações, os sentimentos topofílicos, as caracterizações de lugar e a corroboração de uma identidade nordestina. As narrativas cantadas de improviso pelos Cantadores possibilitam uma leitura de suas visões de mundo, de sua cotidianidade, de seus sentimentos em relação aos lugares, e de suas percepções espaciais. Convém lembrar, que os Cantadores são interpretes do povo, ou seja, eles não cantam simplesmente suas idiossincrasias. Como foi abordado acima, a sua temática é variada, e através da inter-relação estabelecida com o público – manifestada de forma mais explícita por meio dos “pedidos” – os Cantadores chegam a ser intérpretes da cotidianidade e anseios de seu grupo social. Os Cantadores em Porto Velho-RO relacionam-se, principalmente, com grupos específicos de nordestinos ou não, localizados em sua maioria em bairros periféricos da cidade. A Cantoria Nordestina tem fortes traços culturais, o que faz com que ela conseqüentemente promova no estado de Rondônia um fortalecimento de uma identidade nordestina. Essa identidade nordestina se associa com uma “identidade rondoniense”, formando uma espécie de identidade cultural híbrida. Além disso, a Cantoria Nordestina possui uma grande potencialidade de sociabilização. Nesse sentido, se faz pertinente um estudo sobre a dimensão sócio-espacial da Cantoria Nordestina. É um tema pouquíssimo abordado até mesmo a nível nacional. A Cantoria Nordestina é uma atividade legitimamente brasileira, componente intrínseco de nossa cultura; e é de uma importância ímpar para os grupos relacionados à ela. O conceito de “poesia” é abordado nesse trabalho através da ótica dos próprios Cantadores. Para eles, poesia faz referência à capacidade criativa manifestada através da oração, 17 tendo por características próprias: a métrica e a rima. Considerar essa conceituação tem relação direta com o escopo do trabalho, que é a decodificação do espaço vivido da Cantoria Nordestina em Rondônia. Este trabalho parte dos seguintes pressupostos: I. A Cantoria Nordestina possui uma dimensão espacial; II. Através da Cantoria Nordestina seus atores constroem representações acerca do espaço nordestino e rondoniense; III. A Cantoria Nordestina contribui na criação e manutenção de sentimentos topofílicos em diferentes níveis; IV. A Cantoria Nordestina empiricamente possui uma função social, o que contribui no fortalecimento de uma identidade nordestina em Rondônia; V. Os atores da Cantoria Nordestina manifestam, através dela, sua visão do espaço rondoniense. O objetivo deste trabalho é fazer uma leitura geográfica da Cantoria Nordestina em Rondônia. Para atingir esse objetivo é que foi desenvolvido o conceito de espaço vivido da Cantoria Nordestina e delineados os seguintes objetivos específicos: 1. Caracterizar o espaço vivido dos Cantadores em Rondônia; 2. Caracterizar como a Cantoria Nordestina contribui nas inter-relações sociais dos atores envolvidos em seu processo; 3. Identificar as principais representações relacionadas ao espaço vivido da Cantoria Nordestina; 4. Analisar as narrativas cantadas de improviso pelos Cantadores sob uma perspectiva geográfica; 5. Identificar as relações existentes entre Cantoria Nordestina, lugar e identidade. Considerando a natureza do tema abordado neste trabalho, utilizaremos como suporte teórico os delineamentos da geografia cultural e humanista. No primeiro capítulo, será feita uma discussão de natureza teórica e conceitual acerca das abordagens das geografias cultural e humanista. Os conceitos de representação, identidade, lugar, topofilia e espaço vivido serão abordados um a um. Em seguida, no segundo capítulo, serão delineadas as metodologias adotadas, no caso a História Oral e a Pesquisa Participante, e os respectivos caminhos que nos conduziram ao encontro destas. 18 O terceiro capítulo trata exclusivamente da Cantoria Nordestina. Para um efetivo entendimento da inter-relação Cantoria Nordestina/ geografia, se faz necessário uma abordagem mais detalhada desta. Nesse capítulo, serão delineados alguns de seus principais aspectos. O quarto capítulo é reservado a apresentação do trabalho de História Oral realizado com o Cantador Nordestino Matias Neto. No quinto capítulo a Cantoria Nordestina será analisada a partir de uma perspectiva geográfica. É neste capítulo que tem início a análise da História Oral de Matias Neto e também das narrativas cantadas de improviso pelos Poetas Cantadores. Por fim, no sexto capítulo, o conceito inédito de espaço vivido da Cantoria Nordestina será trabalhado em maiores detalhes. 19 CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL Alô Brasil João Santana e Ismael Pereira Alô Brasil, alô terra natal, Brasil rural e civilização, população praieira e ribeirinha, nação rainha da miscigenação... Quero em São Paulo ver o pólo industrial e pousar no cartão postal que é o Rio de Janeiro, jogar bola o dia inteiro nas praias do Capixaba e comer queijo com goiaba lá no Triângulo Mineiro... Eu, na Bahia quero jogar capoeira comer sururu na feira lambreta e acarajé na festa do candomblé ver meu senhor do Bonfim e ouvir o canto sem fim de Iemanjá na maré... No Tocantins vou me banhar sem sobrosso e entrando no Mato Grosso vou fitar o céu azul cruzar chapada e paul sentir paz e alto astral e acampar no Pantanal do Mato Grosso do Sul... Do Paraná vou a Santa Catarina onde a criação bovina é destaque na nação onde o vinho é tradição e a soja ao povo dá luxo de lá vou ao chão gaúcho beber um bom chimarrão... Alô Brasil, alô terra natal, Brasil rural e civilização, população praieira e ribeirinha, nação rainha da miscigenação... Alô Brasil, alô terra natal, Brasil rural e civilização, população praieira e ribeirinha, nação rainha da miscigenação... Do Acre eu quero da rabada ao tucupí de Rondônia o açaí de Roraima a Boa Vista e do Amapá fronteirista a voz do Uirapurú e o vermelho do urucú do indígena extrativista, 20 CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL O ser humano é um ser essencialmente espacial. A geografia é uma atividade intelectual que busca decifrar os enigmas das inter-relações do ser humano com o seu meio. Como outras ciências, a geografia perpassa por uma série de paradigmas, e a gama de perspectivas amplia-se aos olhos dos geógrafos. Com o advento da chamada pós-modernidade muitas certezas são abaladas, concepções lineares do tempo e do espaço dão lugar a concepções relativas, o olhar de quem observa tem um peso no entendimento do que é considerado “o real”. Hoje, vive-se a pluralidade das informações e os avanços tecnológicos são abruptos. E apesar da concepção positivista de ciência ainda ter muitos adeptos ela é cada vez mais desconstruída por uma série de pensadores. É dentro deste arcabouço que o estudo das subjetividades humanas se inserem nas análises geográficas. Justamente, pela busca da desconstrução da dicotomia rígida entre sujeito e objeto. E assim auxilia no crescimento de uma compreensão mais ampla a respeito do fenômeno humano sobre a face da terra, seus motivos, seus significados e suas aspirações. O ser humano é um ser essencialmente simbólico, construtor de significados e de sentidos, e toda essa construção perpassa, inegavelmente, por uma cultura, pelo conhecimento herdado e apreendido dos antepassados, por maneiras de classificar os elementos do mundo e organizá-los para torná-los inteligíveis. A questão não é unicamente econômica, política ou até mesmo cultural. A vida humana sobre a terra ou a inter-relação visceral que existe entre o ser humano e o seu “espaço” perpassa por uma infinidade de elementos interconectados, numa teia viva de relacionamentos, de significados, de valores... daí a complexidade. (MORIN, 2005, 2006). A Cantoria Nordestina se inclui dentro dessa ótica de complexidade. Ela não é uma construção abstrata, dissociada dos processos sociais e da dimensão espacial. Não podemos negar a sua função social (RAMALHO, 2000). Ela tem a sua matriz na cotidianidade humana e se corrobora como propulsora de relações intersubjetivas, principalmente naqueles, que de uma forma mais aprofundada, passam a compartilhá-la como conhecimento herdado, ou seja, essa cotidianidade, esses processos sociais constantemente permeados pela cultura e representações não são dissociados do espaço. É neste sentido que tanto a geografia cultural como a geografia humanista são marcos norteadores deste trabalho. 21 1.1 Geografia Cultural A nova perspectiva cultural na geografia se caracteriza, principalmente, por uma melhor compreensão do conceito de cultura (CLAVAL, 1992). Os geógrafos gradativamente descobriram as potencialidades epistemológicas deste conceito dentro do arcabouço das análises geográficas. Antes de adentrarmos nas concepções e abordagens da geografia cultural contemporânea, também conhecida por nova geografia cultural (COSGROVE & JACKSON, 1978; DUNCAN, 1980; CLAVAL, 2001), convém fazermos um breve relato histórico da geografia cultural para seu melhor entendimento. A terminologia “geografia cultural” é introduzida pela primeira vez em 1880, pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), em uma obra dedicada à geografia dos Estados Unidos. Posteriormente, bebendo dos ensinamentos de Humboldt e Ritter, Ratzel desenvolve uma nova concepção geográfica denominada antropogeografia2. (CLAVAL, 2001). Vidal de La Blache (1845-1918), principal expoente da geografia francesa, apesar de não ter falado explicitamente em cultura, mantinha a ideia de cultura em um lugar central dentro de suas concepções geográficas (CLAVAL, 2002: 149). Contudo, a abordagem vidalina sobre cultura dá-se, principalmente, através de seus aspectos técnicos e instrumentais, ou seja, a ênfase que se dava aos elementos culturais era relacionada diretamente aos aspectos materiais da cultura. Para La Blache, “a cultura pertinente é aquela que se apreende através dos instrumentos que as sociedades utilizam e das paisagens que modelam.” (CLAVAL, 2001: 33). La Blache chega a afirmar que “A Geografia é a ciência dos lugares e não dos homens (...)” (1913: 47). O interesse de Vidal se dá em descrever as relações dos grupos humanos com seu meio ambiente. Em seus trabalhos, ele prioriza as “sociedades tradicionais”. Acontece que a temporalidade, os deslocamentos espaciais e as técnicas utilizadas por essas sociedades se processavam de maneira mais simples. Os trabalhos cotidianos não eram tão diversificados, as hierarquias não eram tão 2 A antropogeografia se insere como uma das propostas de Ratzel para a construção de um novo campo de conhecimento. Segundo Carvalho, a antropogeografia deveria “fundamentar pretensões interessadas no entendimento do complexo terrestre, considerando o conjunto de seus elemento constitutivos, sejam eles físico-biológicos ou histórico-culturais. (...) a despeito de alguns de seus críticos afirmarem que nas propostas de Ratzel a ação humana é vista como passiva diante das determinações físico-ambientais, a posição do pensador alemão é clara: ‘A maior parte das influências que a natureza exerce sobre a vida espiritual do homem manifesta-se por meio das condições econômicas e sociais, as quais são, por sua vez, com elas profundamente coligadas.’ A partir da elaboração de discursos pautados no procedimento geográfico, conseqüentemente antropogeográfico, Ratzel via a possibilidade de construção de áreas de conhecimento com características pouco restritivas, que se diferenciavam de outras ciências, principalmente por causa do alcance das suas observações” (2004: 73-77). 22 complexas. Os homens do campo tinham, relativamente, os mesmos horários, guiados pelo amanhecer e anoitecer. E na colheita das safras, eram as estações do ano que regiam as temporalidades. A rotina das mulheres e crianças também era mais previsível, as mulheres eram as guardiãs dos lares e as crianças logo tinham que aprender o ofício de seus pais. Dentro desse contexto, a geografia vidalina analisava o calendário dos grupos sociais, como empregavam o seu tempo, quais eram os seus instrumentos de trabalho e os seus modos de vida. É através desses trabalhos que ele desenvolve o que vai chamar de gêneros de vida. Gêneros de vida passa a ser, então, um dos eixos delineadores da geografia vidalina. Contudo, gêneros de vida vai se mostrar epistemologicamente problemático como instrumento de análise diante da complexidade das sociedades urbano-industriais. O termo geografia cultural volta a ganhar popularidade em 1925, através da influência do geógrafo norte americano Carl Sauer (1889-1975), fundador da escola de Berkeley (CLAVAL, 2001). Essa geografia cultural, tendo em seu cerne os “artefatos culturais” foi bastante difundida (CORRÊA e ROSENDAHL, 2003). Contudo, a cultura ainda continuava sendo vista mais por seus aspectos materiais: tipos de habitat, ferramentas de trabalho, tipos de paisagens cultivadas, etc. (CLAVAL, 2000). Segundo Carl Sauer, a geografia cultural: Continua sendo, em grande parte, observação direta de campo baseada na técnica de análise morfológica desenvolvida em primeiro lugar na geografia física. Seu método é evolutivo, especificamente histórico até onde a documentação permite e, por conseguinte, trata de determinar as sucessões de cultura que ocorreram numa área. (1931: 25) Sauer tem uma importância fundamental nos estudos geográficos envolvendo a cultura. Foi ele por exemplo, quem trouxe para a geografia norte-americana a palavra landscape (paisagem), transmutação da palavra alemã landschaft3 (HOLZER, 1999). Contudo, o seu delineamento de cultura ainda é, principalmente, material. “Sauer e seus discípulos, investigando o mundo rural e arcaico, concentravam-se em artefatos físicos específicos (as cabanas de madeira, as cercas dividindo territórios)” (COSGROVE e JACKSON, 1987: 136). A geografia cultural desenvolvida por Sauer e seus alunos da escola de Berkeley, ainda era uma geografia que 3 De acordo com Holzer, existem diferenças lingüísticas entre as palavras alemã landschaft; a palavra francesa paysage; e a palavra anglo-saxônica landscape. “A palavra alemã é mais antiga, medieval, seu conteúdo é mais abrangente e mais complexo que o das línguas latinas, onde o termo é renascentista, já limitado, em sua origem, às artes plásticas. ‘Landschaft’ se refere a uma associação entre o sítio e os seus habitantes, ou se preferirmos, de uma associação morfológica e cultural.” (HOLZER, 1999: 152). 23 desconsiderava a dimensão imaterial da cultura. Apesar de muito interessante, a geografia saueriana não explicava muitas das indagações a respeito das diversas manifestações humanas sobre a face da terra. Contudo, é interessante observar as considerações de Cosgrove: Os primeiros geógrafos culturais trabalharam num meio intelectual dominado pelo determinismo geográfico, no qual mesmo fenômenos culturais nãomateriais eram considerados como o resultado de ‘fatores geográficos’ (BURGESS, 1978). Eles também enfatizaram a unidade da sociedade e a importância da compreensão histórica. Paul Vidal de la Blache e Carl Sauer são figuras-chave no início do desenvolvimento da geografia cultural européia e americana. (1893: 106) Assim, apesar das relevantes contribuições da antiga geografia cultural, diversos geógrafos continuavam buscando mais explicações sobre os motivos humanos nas construções das paisagens e espaços. É dentro desse contexto que a geografia cultural entra em declínio no decorrer dos anos 1950 e 1960 (CLAVAL, 1992; 1999). A geografia cultural que parecia estar enfraquecendo ganha um novo vigor. Nos anos 1970, a dimensão imaterial da cultura começa a aparecer em trabalhos geográficos. Na França, destaca-se Armand Frémont, com o seu livro La Région, espace vécu “A região, espaço vivido” publicado em 1976 (CLAVAL, 2001; 2002). Na geografia anglo-saxônica, destacam-se geógrafos como: Denis Cosgrove, Peter Jackson e James Duncan. Cosgrove em seu artigo “Em direção a uma geografia cultural radical: problemas da teoria”, faz a seguinte crítica, “Perdemos o reconhecimento crucial de que a produção da ordem simbólica é, em si mesma, uma dimensão do trabalho humano” (1983: 122). Já Duncan, em artigo publicado em 1980, faz duras críticas a concepção supra-orgânico4 de cultura da geografia saueriana, nas palavras dele “Minha posição é a de que a separação do indivíduo da cultura é um erro ontológico” (1980: 89). Claval chega a considerar esse artigo de Duncan como um marco de definição da nova geografia cultural (CLAVAL, 2000: 50). 4 “A teoria da cultura enquanto entidade supra-orgânica foi esboçada pelos antropólogos Alfred Kroeber e Robert Lowie durante os primeiros 25 anos do século XX, sendo, posteriormente, elaborada por Leslie White. A cultura era vista como uma entidade acima do homem, não redutível às ações dos indivíduos e misteriosamente respondendo a leis próprias. Além disso, foi essa visão de cultura que passou a dominar a geografia cultural. Esta perspectiva foi adotada especificamente por Carl Sauer ao se associar a Kroeber e Lowie em Berkeley nas décadas de 1920 e 1930, sendo posteriormente transmitida para seus alunos. (...) De fato, a ambigüidade com a qual muitos geógrafos culturais abordam a questão da natureza supra-orgânica da cultura revela um fracasso no entendimento das implicações dessa posição. (...) [é] uma teoria que vem sendo amplamente contestada e, há muito tempo, rejeitada [até mesmo] pela grande maioria dos antropólogos.” (DUNCAN, 1980: 64-65). 24 Nesse sentido, a cultura passou a ser vista de forma mais abrangente, compreendendo todo um dinamismo que envolve a transmissão de conhecimentos, perpassando pela linguagem, aprendizados e toda uma caracterização de entendimentos de mundo. Constata-se, que “a vida dos grupos humanos e suas atividades jamais são puramente materiais. São a expressão de processos cognitivos, de atividades mentais, de trocas de informação e de idéias” (CLAVAL, 2000:39), ou seja, não podemos concluir que as espacialidades5 humanas estejam somente relacionadas aos elementos materiais. Lembrando Cassirer “devemos analisar as formas da cultura humana para podermos descobrir o verdadeiro caráter do espaço e do tempo no nosso mundo humano” (2005: 74). Uma das maiores diferenças do ser humano para os outros animais é a sua inata capacidade de formulação simbólica. Sendo assim, os geógrafos culturais, gradativamente, se deram conta da dimensão simbólica da cultura. Essa consideração dos aspectos subjetivos da cultura é, sem dúvida, um dos traços mais marcantes da nova geografia cultural. Dessa forma, o conceito de “cultura” passa a ser entendido na geografia cultural de maneira abrangente. Ao observarmos a lingüística, a psicologia social, a própria antropologia e filosofia, percebemos que todas elas estão inseridas no arcabouço do que chamamos de cultura. Assim, a geografia cultural favorece os geógrafos que sentem necessidade de investigar aspectos mais subjetivos da espacialidade humana, pois “O enfoque cultural se interessa pela maneira como as realidades são percebidas e sentidas pelos homens (...)” (CLAVAL, 2004: 35). Compreendemos, da mesma maneira que Amorim Filho (2007) que as correntes geográficas não são, necessariamente, excludentes. Nesse sentido, a abordagem cultural em geografia não se insurge dicotomizando, mas somando perspectivas na busca de um conhecimento mais complexo e abrangente dos fenômenos. Geografia cultural sanciona um esforço por parte do pesquisador em se abstrair de preconceitos, para que dessa maneira possa estar mais apto a compreender o “olhar” do outro. Esse olhar, aqui significando as maneiras próprias que cada grupo social tem de entender o mundo, de compreender a vida. A descoberta dos códigos de comunicação dos grupos humanos perpassa pelo cerne da geografia cultural. Faz-se necessário entender a dinâmica das 5 Ao utilizarmos o termo espacialidade, estamos fazendo referência à ação social no espaço. A terminologia espacialidade envolve uma concepção de espaço construído socialmente, em outras palavras, é o espaço considerado como constructo social. Para maiores detalhes ver Soja (1993). 25 intersubjetividades dos grupos para poder decodificá-los espacialmente. Essas intersubjetividades vão aflorar através dos significados, dos valores atribuídos e das normas existentes para o funcionamento da organização social de cada grupo humano. A linguagem é um eixo norteador nas análises da geografia cultural (CLAVAL, 1992; 1999; 2000; 2001; 2006). Sem a linguagem, nem a cultura e nem mesmo a vida humana poderiam existir. Os processos sociais, construtores de espaços são indissociáveis dos aspectos comunicativos. E é através da linguagem – dentro de um contexto, histórico, social e cultural – que as representações são elaboradas e re-elaboradas. 1.2 Representações As representações têm tanto a ver com seu caráter simbólico o qual perpassa pela sua elaboração – na busca de entendimentos e de maneiras de significar – quanto com práticas sociais que as corroboram. Delinear a abrangência das representações implica em adentrar em aspectos culturais, históricos, sociais e espaciais. Na verdade, o estudo das representações se caracteriza como um dos eixos da geografia cultural. “Estudar a cultura é abordar a vida de relação a partir de um ângulo original: o da invenção e transmissão de representações” (CLAVAL, 1992: 160). Neste trabalho, estaremos articulando o conceito de representações, principalmente, através da teoria das representações sociais do psicólogo social Serge Moscovici (2003). Moscovici delineia as representações como conhecimentos que são elaborados e re-elaborados socialmente através da linguagem e da ação, formando assim entendimentos de mundo que podem ser compartilhados, ou seja, as representações para Moscovici são fenômenos de base sócio-cultural. O conceito de representações sociais desenvolvido por Moscovici tem por raízes a ideia de representação coletiva de Durkheim. De acordo com Gil Filho: A base de aproximação dos trabalhos de Moscovici (1990) está na idéia de representação coletiva de Durkheim (1996), que atribui a ela uma autonomia dos parâmetros puramente psíquicos de sua gênese. As representações coletivas seriam a própria trama da vida social, possuindo um caráter relacional tanto entre indivíduos como entre grupos sociais. Desse modo, são os fenômenos sociais que revestem as representações de seu caráter concreto e inteligível. (2005: 55) 26 Justamente pelas representações serem construções sociais é que podemos utilizá-las na decodificação do espacial, ou em outras palavras, dos espaços vividos. As representações não são construídas a-histórica ou a-culturalmente. Elas são entendimentos de mundo, perpassadas através da linguagem dentro de um contexto histórico, social e cultural. Ou seja, as representações não são uma espécie de entidade independente dissociada do contexto social e espacial. Elas são elaboradas e re-elaboradas socialmente e se modificam através do tempo e do lugar. De acordo com Moscovici, “As representações sociais devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar (...) [elas] têm como seu objetivo abstrair sentido do mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma forma significativa.” (2003: 46). E ainda “Nossas representações, pois, tornam o não-familiar em algo familiar.” (Ibid: 78). Assim, as representações são conhecimentos socialmente construídos, transmitidos e assimilados, que têm a função de tornar familiar o que ainda não era familiar. Ou seja, tornar inteligível o que antes não o era, dar significado ao que antes não possuía uma resposta, uma explicação. Considerando o potencial epistemológico das representações, um número cada vez maior de geógrafos vem utilizando-as em suas pesquisas e análises. E procurando dar um enfoque geográfico mais explícito às representações, alguns geógrafos têm falado em representações espaciais. (ALMEIDA, 2003; KOZEL, 2004). De acordo com Kozel: As representações espaciais advêm de um vivido que se internaliza nos indivíduos, em seu mundo, influenciando seu modo de agir, sua linguagem, tanto no aspecto racional como no imaginário, seguidas por discursos que incorporam ao longo da vida. (...) A geografia, ao incorporar essa vertente, é enriquecida com novas problemáticas que a tornam mais atraente, principalmente em relação ao enfoque ambiental e sociocultural. (2004: 220221) As representações então, nos possibilitam investigar aspectos das intersubjetividades humanas. E faz-se coerente dentro da perspectiva cultural em geografia, justamente, por capacitar o pesquisador a compreender as formas de entendimento de mundo do outro. Segundo Almeida: O estudo das representações espaciais centra-se sobre as modalidades de apreensão do mundo e do status do real (...) É através de um conhecimento das representações das pessoas que é possível captar toda a riqueza de valores que dão sentido aos lugares de vida dos homens e mulheres; pelas representações 27 também é possível entender a maneira pela qual as pessoas modelam as paisagens e nelas firmam suas convicções e suas esperanças. (2003: 71) Cada ser humano e grupos sociais possuem as suas especificidades, as suas idiossincrasias. E as representações se insurgem como um conhecimento facilitador na decodificação dos entendimentos de mundo dos grupos humanos. Para Moscovici (2003), o eixo das representações é a comunicação. É através da comunicação que as representações são elaboradas e re-elaboradas. Esse processo tem íntima relação com o contexto sócio-cultural em que se vive. É através desse contexto sócio-cultural, o qual tem no cerne de sua dinâmica a comunicação, que as imagens, crenças e formas de pensar o mundo são construídas. Para Moscovici, as representações sociais têm por principal finalidade “tornar a comunicação, dentro de um grupo, relativamente não-problemática e reduzir o ‘vago’ através de certo grau de consenso entre seus membros.” (Ibid: 208). Esse “vago” ao qual se refere Moscovici, é justamente a falta de sentidos e significados comuns, o que gera conseqüentemente incompreensão entre as partes. Assim, justamente pelo caráter sócio-cultural das representações, elas têm a característica de estabelecer entendimentos comuns. Conhecimentos pré-existentes servem de base para que através da linguagem entre atores de um grupo formem-se idéias e imagens mentais que serão comumente aceitas e compartilhadas. As próprias concepções de valores humanos, os conceitos e teorias, as coisas que são consideradas interessantes e as coisas que não são dignas de atenção, tudo isso perpassa pela abrangência do que chamamos de representações. É nesse sentido que os comportamentos são influenciados pelas representações, e simultaneamente contribuem para a deterioração, corroboração ou re-elaboração de novas representações. Ao analisarmos o espaço vivido da Cantoria Nordestina, com certeza, nos deparamos com representações construídas por seus atores. Essas representações contribuem para a formulação de modelos de entendimentos específicos entre os mesmos. É nesse sentido, que ao abordarmos as representações relativas ao contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina podemos descortinar traços interessantes, tais como: valores, significados e comportamentos simbólicos. 28 1.3 Identidade O conceito de identidade é articulado neste trabalho, principalmente, através das leituras de Oliveira (1976), Haesbaert (1997; 1999) e Claval (1992; 1999; 2001; 2006). Considerando as abordagens desses autores, podemos afirmar que os diversos grupos sociais se caracterizam por interligações ou similaridades que são estabelecidas entre seus atores através de seus contextos sociais, espaciais e culturais. Ou seja, existe nas inter-relações entre indivíduos e grupos uma dinâmica de identificações. Essa dinâmica é na verdade, o intercâmbio sócio-cultural que caracteriza os diferentes atores e grupos como diferentes ou semelhantes. Segundo Haesbaert, “A identidade, em primeiro lugar, pode tanto estar referida a pessoas como a objetos, coisas. Em segundo lugar, ela implica uma relação de semelhança ou de igualdade” (1999: 173). A ideia de relacionamento entre o “eu” e o “outro”, entre o “nós” e o “eles” é central na caracterização do conceito de identidade. De acordo com Oliveira: a identidade social não se descarta da identidade pessoal, pois esta também de algum modo é um reflexo daquela. (...) O conceito de identidade pessoal e social possui um conteúdo marcadamente reflexivo ou comunicativo, posto que supõe relações sociais tanto quanto um código de categorias destinado a orientar o desenvolvimento dessas relações. (1976: 4-5) Consoante com esta afirmação, Haesbaert acrescenta que “Ao envolver um processo de classificação e/ ou de distinção, a identificação social legitima um existir social onde a percepção das diferenças é fundamental para a afirmação do grupo cultural” (1999: 175). Claval nos fornece um exemplo interessante “Porque somos agricultores, soldados ou operários, porque utilizamos habilidades parecidas e porque lidamos com os mesmos problemas, descobrimos que formamos um corpo” (1992: 174). Este corpo abordado por Claval é uma analogia, um corpo é formado por cada um de seus membros, de seus órgãos e cada um deles têm a sua respectiva função. Descobrir que formamos um corpo, significa descobrir que pertencemos a um determinado grupo, é uma identificação que se estabelece. O sentimento de identidade faz parte da própria contextualização humana, ou seja, os indivíduos e grupos necessitam para sua própria sobrevivência social de um certo grau de identificação entre indivíduos e/ou entre grupos. É essa identificação que possibilita o surgimento de sentimentos de pertencimento, sentimentos esses muitas vezes associados a determinados recortes espaciais ou territórios. 29 Assim, o conceito de identidade tem haver tanto com o sentimento de pertencimento ou não-pertencimento, o qual é desenvolvido através dos processos sociais; quanto a ligações estabelecidas com espaços específicos. De acordo com Claval, a construção do sentimento de identidade “baseia-se na idéia de uma descendência comum (LAFAZANI, 1993), de uma história assumida em conjunto ou de um espaço com o qual o grupo assume elos (...)” (2001: 179). Sobre a relação entre geografia cultural e o conceito de identidade, Claval esclarece que a geografia cultural moderna: se construiu em torno de três eixos que são igualmente necessários e complementares: primeiro, ela parte das sensações e das percepções; segundo, a cultura é estudada através da ótica da comunicação, que é, pois, compreendida como uma criação coletiva; terceiro, a cultura é apreendida na perspectiva da construção de identidades, insiste-se então no papel do indivíduo e nas dimensões simbólicas da vida coletiva. (2006: 92) Assim, consideramos que a construção de identidades está associada à cultura, tanto em sua dimensão material quanto imaterial. Toda a vida humana se desenvolve inevitavelmente em algum lugar específico, os seres humanos convivem socialmente tendo por matriz um espaço físico concreto. Identidade, portanto, é um conceito relevante para decifrarmos significados simbólicos, tanto a nível de inter-relações sociais quanto a nível de concepções espaciais. 1.4 Geografia Humanista A geografia humanista se insurge no pensamento geográfico como uma proposta alternativa aos parâmetros positivistas dominantes na época. Ela vai ser gerada no âmbito norteamericano, por meados da década de 60, no intuito de buscar renovações aos paradigmas até então dominantes. Alguns dos principais expoentes desse movimento são, David Lowenthal, Yifu Tuan, Anne Buttime e Edward Relph. Sendo que o primeiro, um ex-aluno de Sauer, inspirado em John Kirtland Wright6, publicou em 1961 um artigo que propunha uma nova concepção 6 “Na década de 1940 Jonh K. Wright publicou ‘Terrae Incognitae: o lugar da imaginação’, postulando que todos os seres humanos de certa forma são geógrafos e que existem terras pessoais física e simbolicamente.” (KOZEL, 2006: 118). E posteriormente Wright “então presidente da Association of American Geographers (AAG), em 1947, faria um discurso exortando os geógrafos a explorar as ‘terras incógnitas pessoais’, ao estudo da imaginação que povoa a mente de todos nós, e que levasse a geografia pra além do plano acadêmico que a sujeita aos métodos de análise objetivos.” (HOLZER, 1997: 9). 30 epistemológica para a geografia. O paradigma positivista caracterizado na dicotomia sujeitoobjeto já não satisfazia a um contingente cada vez maior de geógrafos. Segundo Lowenthal, “Alguns aspectos da Geografia são recônditos, outros obscuros, ocultos ou esotéricos; (...) Por mais que metodologistas pensem em como a Geografia deve ser, o temperamento de seus praticantes a faz universal e multifacetada” (1961: 104). Lowenthal demonstra que as perspectivas humanas de visão de mundo possuem diferentes pontos de vista. “Os cientistas, como também os leigos, ignoram as evidências incompatíveis com os seus preconceitos” (Ibid: 112). Ao abordar as diferentes perspectivas, Lowenthal trabalha com a percepção e demonstra que o ponto de vista depende do observador. Ele explora as geografias da mente, é uma maneira totalmente diferenciada de se fazer geografia considerando as concepções positivistas dominantes na época. “Os artefatos mais imperativos são apenas pálidos reflexos da arquitetura lapidar da mente (...)” (Ibid: 119). Procurando dar um suporte teórico-filosófico para essa nova concepção geográfica, que em breve seria delineada explicitamente como geografia humanista, alguns geógrafos publicaram trabalhos relacionando-a à fenomenologia. Dentre eles, Relph em 1970, Tuan em 1976, Mercer e Powell em 1972, e Buttimer em 1974 (HOLZER, 1997). O que esses geógrafos tinham em comum era o interesse em pesquisar aspectos intersubjetivos da espacialidade. Convém ressaltar que a fenomenologia continuou sendo utilizada na geografia humanista, porém de maneira mais implícita do que explícita. O conceito fenomenológico de mundo vivido foi o mais utilizado pelos geógrafos, o qual veio a se caracterizar dentro do enfoque geográfico no conceito de lugar. O termo geografia humanista é explicitado através de um artigo de Tuan, intitulado “Humanistic Geography”, publicado em 1976. Nele Tuan delineia que “A Geografia Humanística reflete sobre os fenômenos geográficos com o propósito de alcançar melhor entendimento do homem e de sua condição”7 (1976: 143). Tuan também critica o modelo cartesiano de ciência herdado do iluminismo. Para ele, esses modelos simplificam a complexidade e belezas da manifestação humana sobre a terra. Essa concepção dicotômico-quantitativa é perigosa, no sentido que desconsidera a pluralidade humana, presente justamente, na sua intrínseca natureza simultaneamente objetiva e subjetiva. De acordo com Tuan: 7 A palavra “humanística” colocada aqui, é referente à tradução do artigo para o português presente no livro “Perspectivas da Geografia” (CHRISTOFOLETTI, 1982). No Brasil, essa corrente de pensamento geográfico ficou conhecida através dessas duas terminologias: “geografia humanística” e “geografia humanista”. No entanto dentro deste trabalho estaremos utilizando preferencialmente a palavra humanista. 31 As abordagens científicas para o estudo do homem tendem a minimizar o papel da conscientização e do conhecimento humano. A Geografia Humanística, em contraste, tenta especificamente entender como as atividades e os fenômenos geográficos revelam a qualidade da conscientização humana. (...) todos os modelos científicos do homem simplificam a capacidade humana de saber, criar e ofuscar. (1976: 146) No mesmo ano, e também publicado no mesmo número dos Annals of the AAG, Anne Buttimer publica um artigo que vem corroborar com a proposta de Tuan. Em seu Grasping the dynamism of lifeworld (Apreendendo o dinamismo do mundo vivido), Buttimer trabalha a experiência humana do espaço, e também critica a dicotomia sujeito-objeto tão presente no pensamento científico. Ela fala da “tarefa comum que enfrentamos: um esforço combinado para reconciliar coração e mente, conhecimento e ação, em nossos mundos diários” (1976: 167). Para isso ela utiliza a fenomenologia, articulando-a dentro de um contexto geográfico. Segundo ela “Os fenomenologistas (...) Desafiando muitas das premissas e dos procedimentos da ciência positiva, expuseram uma crítica radical do reducionismo, da racionalidade e da separação de ‘sujeitos’ e ‘objetos’ na pesquisa empírica.” (Ibid: 167). Buttimer também busca uma geografia que valorize mais o humano. Ela argumenta que a pessoa vivencia o lugar de forma ampla e nesta vivência os aspectos subjetivos – como emoções, vontades e significados – estão presentes. Fala também da intersubjetividade da linguagem nas relações humanas, e dos significados subjetivos que são necessários serem apreendidos para o indivíduo se posicionar no grupo. Delineia que a percepção é relacionada com a ligação corpo-mente (condição humana material-dimensão simbólica); e a experiência espacial, já em outra escala, se faz entre pessoa-mundo. Ou seja, é uma geografia que desafia os padrões dicotômicos estabelecidos e que, consoante com as propostas de Tuan e Lowenthal, soma esforços no sentido de considerar o ser humano de modo mais abrangente. Assim, a geografia humanista delineia que o meio ambiente, ou em outras palavras, os espaços físicos, não são simplesmente “observados”. Os seres humanos vivenciam o seu espaço, fazem parte dele. A dicotomia ser humano/meio é útil em sentido didático, mas perigosa no aspecto epistemológico. Na vivência humana na terra, o corpo funciona como matriz à percepção espacial. Não observamos a natureza como simples espectadores, nós há vivenciamos. E nesta vivência, neste viver, nos inter-relacionamos com o meio ambiente utilizando toda nossa potencialidade humano-perceptiva. Essa talvez seja a maior contribuição de Tuan e dos geógrafos humanistas: demonstrar que o espaço é sentido, é percebido, é vivenciado através de múltiplas 32 capacidades humanas, daí o conceito de espaço vivido também utilizado na geografia humanista, e todo o envolvimento desta corrente geográfica com a fenomenologia. Os geógrafos humanistas utilizaram a fenomenologia no sentido de suporte para seus desdobramentos teóricos. Ela entra como uma corrente filosófica que vai se contrapor à dicotomia sujeito-objeto oriunda do iluminismo. Para o filósofo Merleau-Ponty, por exemplo, a aquisição mais importante da fenomenologia foi ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção de mundo ou de racionalidade. E de acordo com Anne Buttimer, “A fenomenologia tenta transcender este dualismo cartesiano [modos subjetivos e objetivos de conhecimento] e propõe um modo de conhecer que reconhece a validade de ambos (...) ambiciona encontrar, mais do que dominar, o objeto a ser conhecido” (1976: 175). O íntimo da geografia reside na inter-relação existente entre o ser humano e o meio, ou seja, uma relação espacial. Neste sentido, a geografia humanista contribui no delineamento que a percepção humana capta da realidade e, conseqüentemente, atribui significado às coisas. Werther Holzer (1997) fala da contribuição de Edward Relph com relação à importância da fenomenologia para a geografia. Segundo Relph: Fenomenologia tem a ver com princípios, com as origens do significado e da experiência. (...) De uma perspectiva fenomenológica, os espaços (...) são os contextos necessários e significantes de todas as nossas ações e proezas. Então, o espaço não é euclidiano ou alguma outra superfície ou forma geométrica, na qual nos movimentamos e que percebemos como sendo separada de nós. (...) Através de nossos sentidos estamos ligados ao espaço – nós penetramos e olhamos dentro dele, movemo-nos através dele, ouvimos e cheiramos através dele. (1979: 1-8) Para Relph, a fenomenologia pode auxiliar a geografia epistemologicamente, possibilitando um campo de trabalho para os geógrafos que se ocupam da subjetividade espacial. De acordo com Holzer, “O método fenomenológico seria utilizado para se fazer uma descrição rigorosa do mundo vivido da experiência humana e com isso, através da intencionalidade, reconhecer as essências de estrutura perceptiva” (HOLZER, 1997: 11-12). Diversos geógrafos trabalharam princípios fenomenológicos na geografia. No entanto, o primeiro deles, o qual serviu de inspiração tanto à geografia humanista quanto à geografia cultural, foi Eric Dardel. Dardel, em 1952, já estaria fazendo uma análise fenomenológica da relação entre o ser humano e o meio ambiente. De acordo com Holzer (2001: 103), “O livro, 33 intitulado L’homme et la terre – nature de la réalité géographique (DARDEL, 1952), não trata de qualquer assunto usualmente abordado pelos filósofos. Seu objetivo é fazer uma análise fenomenológica da relação visceral que o homem mantém com a terra.” Também sobre Eric Dardel de acordo com Claval: para ele, [Dardel] a primeira tarefa da geografia era a de compreender o sentido que os homens davam a suas vidas na Terra. (...) Dardel enfocou uma idéia central: a geografia tinha de explorar o sentido da presença humana na superfície da Terra. (...) Os geógrafos franceses dos anos cinqüenta ignoraram completamente o livro de Eric Dardel [L’Homme et la Terre]. Ele foi redescoberto no começo dos anos setenta pelo geógrafo canadense Edward Relph, e influiu muito na nova corrente da geografia humanista, nos países de língua inglesa. (CLAVAL, 2002: 156-157) Assim, a visão geográfica de Eric Dardel divergia muito das concepções positivistas dominantes na época. Dardel já trabalhava uma geografia que buscava significados, que valorizava aspectos subjetivos da natureza humana na construção de suas paisagens e lugares. A visão, unicamente, cartesiana e o espaço geométrico não eram suficientes para ele: O espaço puro do geógrafo não é o espaço abstrato do geômetra: é o azul do céu, fronteira entre o visível e o invisível... Geografia sanciona uma fenomenologia do espaço. Em certo sentido, podemos dizer que o espaço concreto da geografia liberta-nos do espaço humano infinito da geometria ou da astronomia. (DARDEL, apud, NOGUEIRA, 2004: 219). Assim, a geografia humanista, defende que os espaços não são simplesmente técnicos, instrumentais ou mercantis. Os espaços são vivenciados e são percebidos através de suas especificidades, de diferentes maneiras, por quem os vivencia. Os espaços então, não devem ser analisados unicamente pelo viés lógico instrumental e quantitativo. É neste sentido, que a geografia humanista se insurge como uma maneira de humanizar o pensamento geográfico, através da valorização das características intersubjetivas. Ballesteros, no livro Geografía y humanismo, considera que a geografia humanista seja “uma geografia do mundo vivido em que os valores são a chave da totalidade das experiências e o lugar é um importante componente de nossa identidade como sujeitos”8 (BALLESTEROS, 1992: 10). 8 “una geografía del mundo vivido en la que los valores son la clave de la totalidad de las experiencias y el lugar es un importante componente de nuestra identidad como sujetos.” 34 A geografia humanista e a geografia cultural, apesar de terem históricos e contextos diferentes, não são necessariamente excludentes. De acordo com Buttimer: O termo ‘humanista’ tem também diferentes significados de um país ou tradição lingüística à outro (Racine, 1978; Relph, 1981; Claval, 1984). Em alguns casos os termos ‘social’, ‘cultural’ e ‘humanismo’ são intercambiáveis. (...) Apelo a sua indulgência e não me adentro em questões de definição e limites para um campo chamado Geografia Humanista. Os termos com letras maiúsculas acabados em ‘-ismos’ e ‘-logias’, sempre me preocupam. Desde logo aportam vias para etiquetar e classificar as escolas e os estudiosos, mas 9 também desagregam a empresa intelectual em seu conjunto. (1992: 20-21). Amorim Filho, também reflete sobre a aproximação entre a geografia cultural e a humanista. Segundo ele, a geografia humanista que: nas etapas iniciais, tinha-se dado preferencialmente com os modelos e os profissionais da psicologia – começou também, mais recentemente, a se desenvolver com outras orientações epistemológicas, entre elas com a geografia cultural. Isto vem ocorrendo, em grande parte, porque temas como os das religiões, nacionalidades, etnias, valores, entre outros fundamentais na elaboração de representações e imagens geográficas, possuem também peso significativo na temática e nas reflexões da geografia cultural. (2004: 235) Assim, escolhemos trabalhar com as premissas tanto da geografia cultural quanto humanista, justamente pela natureza de nossa pesquisa. A análise do espaço vivido da Cantoria Nordestina sanciona um estudo tanto a nível de mundo vivido, (o qual se relaciona diretamente com percepção e experiência); quanto a nível sócio-cultural, (o qual está inter-ligado com a elaboração e re-elaboração de representações). É nesse sentido que “Uma geografia humanista considera a cultura como central para seu objetivo: compreender o mundo vivido de grupos humanos” (COSGROVE, 1983: 104). 9 El término ‘humanista’ tiene también diferentes significados de un país o tradición lingüística a otro (Racine, 1978; Relph, 1981; Claval, 1984). En algunos casos los términos ‘social’, ‘cultural’ y ‘humanístico’ son intercambiables. (...) Apelo a su indulgencia y no me adentro en cuestiones de definición y límites para un campo llamado Geografía Humanística. Los términos con letras mayúsculas acabados en ‘-ismos’ y ‘-ologías’, siempre me inquietan. Desde luego aportan vías para etiquetar y clasificar a las escuelas y a los estudiosos, pero también disgregan la empresa intelectual en su conjunto. 35 1.5 Lugar Considerando premissas tanto da geografia cultural quanto humanista, pode-se falar inicialmente que lugar é um determinado ponto no espaço que possui significado. A significância do lugar é, justamente, o complexo elemento subjetivo que dá vida a ele. O que isso quer dizer? Quer dizer que o lugar só existe através de uma íntima inter-relação pessoa/ lugar, e essa relação se processa permeada tanto por aspectos subjetivos como objetivos. A cultura, a história, os processos sociais, influenciam em como as pessoas percebem os lugares. Convém ressaltar que ao utilizarmos a palavra “pessoa” não estamos nos referindo unicamente ao corpo como objeto mecânico, e sim a inter-relação mente-corpo. O corpo não deve ser considerado apenas por seus aspectos materiais, pois mente e corpo se completam na experiência de vivenciar o mundo. “Se se considera o corpo como objeto, como no behaviorismo, deixa-se de reconhecer a importância da psique” (BUTTIMER, 1976: 176). É dentro dessa ótica que os lugares, em uma análise geográfica, não podem ser caracterizados apenas por seus aspectos materiais. Na verdade, o lugar é construído em sua significância de forma inter-relacionada com o humano. De acordo com Silva, “o lugar é pleno de emoções, de conhecimentos incorporados que nascem da vivência, da observação e do acúmulo da sensibilidade oriunda do lugar” (2007: 233). Tanto a emoção como o pensamento tem relevância na construção do que chamamos de lugar. Isso se explica no sentido de que os lugares são lugares para alguém. Os lugares não são neutros, abstratos... eles são vivenciados. Dentro desse contexto é que existe uma intrínseca relação pessoa/ lugar. Os lugares possuem cheiro, som, textura, cor... e também tem uma ligação com a lembrança, é justamente por isso que são importantes elementos das histórias de vida das pessoas. As pessoas se identificam através dos lugares. O lugar de nascimento por exemplo, na maioria das vezes, é uma referência durante toda a vida de alguém. Assim, a abordagem exclusivamente geométrica, ou cartesiana, é insuficiente para explorar as especificidades do lugar. “A experiência subjetiva, a fantasia e o gosto influenciam o caráter dos lugares.” (BUTTIMER, 1976: 173). Um dos geógrafos que deu bastante ênfase ao conceito de lugar foi Tuan (1976; 1980; 1983; 2005). De acordo com ele: Como um mero espaço se torna um lugar intensamente humano é uma tarefa para o geógrafo humanista; para tanto, ele apela a interesses distintamente humanísticos, como a natureza da experiência, a qualidade da ligação 36 emocional aos objetos físicos, as funções dos conceitos e símbolos na criação da identidade do lugar. (1976: 149-150) Portanto, Tuan trabalha com a ideia de que a construção do lugar é feita gradativamente através da percepção e experiência. Ele explica que “O espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado” (1983: 151). E também afirma que “Lugar é uma pausa no movimento” (Ibid: 153). Esta “pausa no movimento” significa na ótica tuaniana o mínimo de tempo necessário para que um lugar possa ser percebido. Adquirir definição e significado passa a ser, então, o eixo do processo pelo qual um determinado espaço se transforma em lugar. Mas essa definição e significado só existem devido à existência do componente humano, que é justamente quem consagra ao lugar uma dimensão simbólica e imaterial. Almeida fazendo uma análise das representações acerca do sertão, aborda a temática dos lugares da seguinte maneira: “Os lugares vividos são frutos das relações tecidas entre os homens e o meio e os sentimentos de pertencimento; sentimentos que correspondem às práticas e às aspirações, estando estas relações codificadas por signos que lhes dão sentido” (2003: 73). Assim, é interessante observar que a comunicação também faz parte do processo de caracterização e significação do lugar. O lugar pode ter um significado a nível individual, mas na maioria das vezes essa significação se desenvolve através de um contexto sócio-cultural. O apego ao lugar se caracteriza por inter-relações estabelecidas no mesmo; inter-relações essas que são constantemente mediadas através da linguagem. Então, lugar pode ser entendido como uma parte de espaço que possui significado; sendo que este significado é construído através da linguagem e da própria experiência do lugar, ou seja, o lugar possui características materiais mas também possui inevitavelmente uma dimensão simbólica. De acordo com Claval: os lugares não têm somente uma forma e uma cor, uma racionalidade funcional e econômica. Eles estão carregados de sentido para aqueles que os habitam ou que os freqüentam. As pesquisas sobre a percepção do espaço e do ambiente desenvolvidas pelos psicólogos são proveitosas. O romance torna-se algumas vezes um documento: a intuição sutil dos romancistas nos ajuda a perceber a região pelos olhos de seus personagens e através de suas emoções. (2001: 55) É dentro dessas perspectivas que o conceito de lugar é delineado neste trabalho. Existe um sentimento relacionado ao lugar que conseqüentemente contribui na caracterização de uma 37 identidade tanto do indivíduo quanto do grupo em questão. Assim, estudar o lugar implica abrirse pra aspectos intersubjetivos dos atores relacionados ao lugar. É neste sentido que a Cantoria Nordestina – e mais especificamente as narrativas poéticas cantadas de improviso – pode contribuir na decodificação de lugar relativa aos atores envolvidos na Cantoria Nordestina como fenômeno sócio-espacial. 1.6 Topofilia Topofilia também é um conceito relevante neste trabalho por diversos motivos, este conceito trata sobre as inter-relações afetivas que os seres humanos estabelecem pelos lugares. Topofilia é um neologismo desenvolvido10 por Yi-fu Tuan (1980) para designar a abrangência de laços afetivos que o ser humano tem pelo meio ambiente ou pelo lugar. A primeira vista pode parecer um conceito de fácil assimilação, mas ele não é tão simples. Compreender as topofilias de indivíduos ou de grupos específicos, implica em decodificar os significados simbólicos existentes por trás de aparentes materialidades espaciais. Ou seja, justamente por abranger aspectos subjetivos do ser humano, tais como: percepção, valores, sentimentos e significados é que topofilia se torna um conceito simultaneamente complexo e rico. Assim, considerando a utilização da perspectiva de espaço vivido, a qual tem relação tanto com os aspectos materiais como imateriais do espaço, é que percebemos que a análise topofílica tem relevância no contexto deste trabalho. De acordo com Tuan, “O termo topofilia associa sentimento com lugar” (1980: 129). É interessante lembrar que os aspectos físicos de um determinado espaço, ou, lugar funcionam como estímulos às capacidades perceptivas e cognitivas. Logicamente, essa percepção e essa construção do sentimento topofílico não estão associadas, exclusivamente, aos aspectos físicos. A inter-relação social, juntamente com todo um sistema de crenças e uma carga simbólica, contribuem de maneira bastante acentuada para a configuração dos sentimentos que desenvolvemos pelos lugares. De acordo com Guimarães: 10 Não podemos dizer que topofilia é um neologismo “criado” exclusivamente por Tuan. Gaston Bachelard por exemplo, já havia utilizado este termo para designar as imagens relacionadas ao espaço feliz. (BACHELARD, 2005: 19). No entanto, foi através dos trabalhos de Tuan que a concepção de topofilia ganhou maiores desenvolvimentos e popularidade. Mas vale ressaltar, que outros geógrafos articularam o conceito de topofilia e sua antítese “topofobia”, é o caso do geógrafo canadense Edward Relph. (RELPH, 1979). 38 Topofilia e topofobia implicam o reconhecimento de espaços e lugares muito além da realidade objetiva. Trata-se de uma paisagem interna construída a partir da concretude dos laços com o exterior, onde são múltiplos os símbolos, as imagens, os sentimentos e expressões, o que também acontece com as formas de interpretação e representação das experiências ambientais decorrentes. (2003: 64-65) Nos sentimos felizes quando estamos em lugares dos quais gostamos, lugares com os quais nos identificamos. Tanto a geografia humanista quanto a geografia cultural trazem a premissa de que o fenômeno humano não deve ser analisado unicamente através de suas características sócio-econômicas. As análises sobre as inter-relações ser humano/meio, seriam empobrecidas se ficassem presas a padrões limitados de investigação. É pertinente lembrar que a emoção11 é uma das principais geradoras de ação dos seres humanos. E as ações são, justamente, as efetivas geradoras da espacialidade. 1.7 Espaço vivido Atualmente já existe um certo consenso entre os geógrafos de que o espaço é por excelência o objeto de estudo da geografia. Contudo, essa palavra tão pequena, mas tão complexa gera inúmeras interpretações, “espaço” na verdade é uma palavra altamente polissêmica. No dicionário Aurélio, por exemplo, podemos encontrar mais de 13 verbetes para significar “espaço”. No entanto, geograficamente falando, o espaço é compreendido como um constructo social. Ou seja, são as relações sociais que produzem o espaço e, simultaneamente, são influenciadas por ele. Na verdade, o que existe é uma indissociável inter-relação entre os espaços físicos e os processos sociais (SANTOS, 1996; 1997; 2004; 2006). No entanto, considerando perspectivas da geografia crítica ou neomarxista, alguns elementos intrínsecos dos próprios processos sociais como: os aspectos simbólicos, as 11 Milton Santos em seu livro “A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção” trás uma abordagem altamente relevante para o conceito de emoção. De acordo com Milton: “a ação humana não é exclusivamente uma ação racional. (...) E existe um agir simbólico, que não é regulado por cálculo e compreende formas afetivas, emotivas, rituais, determinadas pelos modelos gerais de significação e de representação.” (2006: 81-82). Assim, pode-se perceber que na geografia miltoniana mais recente, as emoções permeiam as relações sociais interpessoais, é aonde ainda existe o espaço da solidariedade, aonde o racionalismo rígido e a lógica instrumental não infectaram de forma totalizante o ser humano. De acordo com Milton, são os espaços das chamadas horizontalidades. O que pretende-se demonstrar aqui, é a premissa de que na proposição que Milton Santos faz de “forma-conteúdo” existe campo para se estudar os aspectos subjetivos do ser humano, pois os conteúdos são as relações sociais e estas são prenhes de simbolismos, significados, códigos de comunicação e representações. 39 intersubjetividades, os códigos de comunicação, os sentimentos e as representações; ou eram simplesmente deixados de lado, ou eram estudados de uma forma bastante superficial. É através da geografia cultural e da geografia humanista, como vimos acima, que um número cada vez maior de geógrafos procura desconstruir velhos paradigmas e reinserir dentro das perspectivas geográficas a dimensão intersubjetiva do espaço. O espaço não deixa de ser considerado um constructo social; todos os elementos se inter-relacionam: o político, o ambiental, o econômico, o cultural, o social... Mas a dimensão intersubjetiva antes negligenciada (pois considerada não-científica) passa a ganhar maior ênfase. É dentro desse contexto que falaremos em espaço vivido. O conceito de espaço vivido é desenvolvido primeiramente pelo geógrafo francês Armand Frémont (1980). Ele não desconsidera as abordagens quantitativas e nem os estudos clássicos da geografia, pelo contrário defende-os, mas ele também considera que o espaço possui uma dimensão mais íntima, mais obscura. O espaço para Frémont não é simplesmente mecânico ou quantitativo; o espaço para esse geógrafo é antes de qualquer coisa vivido. Assim, de acordo com Frémont: O espaço vivido é uma experiência contínua. (...) O espaço vivido é um espaçomovimento e um espaço-tempo vivido. (...) O espaço vivido é também, desde a mais tenra idade, um espaço social. (...) Mas temos de constatar que, se o espaço vivido acede às conceptualizações racionais da inteligência, ao raciocínio num espaço cartesiano e euclidiano, também se revela portador de cargas mais obscuras, em que se misturam as escórias do afectivo, do mágico, do imaginário. (1980: 26-27) O espaço vivido é, portanto, um espaço do sentir, da percepção e do vivenciar. Essa concepção de espaço traz em si toda a pluralidade dos processos sociais e incorpora a ela aspectos mais íntimos da percepção humana sobre o espaço; aspectos esses traduzidos através das intersubjetividades, da dimensão imaterial do espaço e da inter-relação mente-corpo no processo da percepção espacial. Frémont considera os traços sócio-culturais na constituição do espaço vivido. Segundo ele: O espaço vivido toma dimensões sociais à medida que se forma, da criança até ao homem. A mãe e o pai, os irmãos, os camaradas e os professores, os parentes e as amizades, os grupos profissionais e as relações de vizinhança, mais além a 40 sociedade regional ou o “vasto mundo” da sociedade global constituem outras tantas pessoas ou grupos que animam os círculos da vida. (Ibid: 35) Espaço vivido é, portanto, como o próprio nome já diz, um espaço vivenciado através de toda a potencialidade humana de vivenciar. Toda uma gama de elementos é experienciada simultaneamente: cores, sons, texturas, cheiros... Através das relações sociais apreende-se os códigos de comunicação, as normas de comportamento. Os valores simbólicos são construídos; a mente humana divaga e busca sonhos, e os sonhos muitas vezes se materializam em ações. As representações são construídas, e as maneiras de compreender o mundo são edificadas. “A vida é vivida e não é um desfile do qual nos mantemos á parte e simplesmente observamos. O real são os afazeres diários, é como respirar. O real envolve todo o nosso ser, todos os nossos sentidos” (TUAN, 1980: 161). A teoria do espaço vivido desenvolvida por Frémont tem muitas semelhanças com os trabalhos desenvolvidos por geógrafos humanistas na década de 70. Contudo, Frémont desenvolveu seus estudos independentemente do contato com esse grupo de geógrafos. Segundo Claval, Frémont desenvolve “uma teoria do espaço vivido que explicita entre 1972 e 1975. Só no final da apresentação desta é que toma consciência do que ela tem em comum com os trabalhos dos investigadores anglo-saxônicos” (2006b: 117). 41 CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA Alô Brasil João Santana e Ismael Pereira No Amazônas, vou saudar o “boi-tatá” no estado do Pará contemplar o carimbó e no Maranhão de codó vou colher o babaçu pescar no Turiaçú e cantar em Piritoró... Vou ao Recife pular no maracatú e passando em Caruarú, dançar um tarrabufado ouvir verso improvisado em São José, ponto forte do Grande Leão do Norte berço do frevo encarnado... Alô Brasil, alô terra natal, Brasil rural e civilização, população praieira e ribeirinha, nação rainha da miscigenação... Quero Sergipe, terra da pele dourada vou brincar na vaqueijada nas Alagoas reais percorrer canaviais chupar cana e cantar coco de tudo fazer um pouco na terra dos marechais... Em Teresina, vou beijar o Piauí de doce de buriti, caju, mangaba e cajá, depois vou ao Ceará nadar em cultura viva, onde escreveu Patativa, vaca estrela e boi fubá... Alô Brasil, alô terra natal, Brasil rural e civilização, população praieira e ribeirinha, nação rainha da miscigenação... Quero em Natal ver o “papa-gerimum” e conhecer o sal comum produzido em Mossoró na Paraíba eu vou só ver Cabedelo de novo e dançar no Parque do Povo da capital do forró... Quero o piquí na culinária goiana com guariroba serrana e galinha com pouco sal no Distrito Federal quero ver a paz sorrindo e um governo construindo a justiça social... Alô Brasil, alô terra natal, Brasil rural e civilização, população praieira e ribeirinha, nação rainha da miscigenação... Brasil amado, pátria da boa esperança tens o verde por herança e a música por pedestal viva o país tropical a nação beleza pura viva o povo e a cultura viva o Brasil musical... 42 CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA As pesquisas geográficas, considerando os aspectos subjetivos do humano, não podem ser desenvolvidas exatamente da mesma maneira que as ciências naturais desenvolvem seus estudos a cerca da natureza. Conforme observado anteriormente, espaço vivido é um espaço construído socialmente, ele é rico em representações, dinâmico, intersubjetivo, prenhe de significantes e significados. Ao trabalharmos com o espaço vivido da Cantoria Nordestina adentramos em um campo de intersubjetividade espacial. É dentro desse enfoque que as metodologias adotadas foram escolhidas. Através das premissas da geografia cultural e humanista, sabemos que o pesquisador não é um agente neutro dentro do contexto da pesquisa. Como vimos, o pesquisador também possui os seus traços culturais, suas idiossincrasias, suas próprias representações de mundo. É neste sentido que tanto a História Oral, como a Pesquisa Participante se tornam interessantes dentro do contexto desse trabalho. Neste trabalho, optamos por não operacionalizar a História Oral e a Pesquisa Participante de forma dicotômica ou fragmentada. Na verdade, neste trabalho, uma complementa a outra. O que foi vivenciado em campo nos possibilitou uma melhor leitura da História Oral do Cantador Matias Neto. E simultaneamente, a experiência de realizar um trabalho de História Oral com Matias ampliou nossa visão sobre o universo da Cantoria Nordestina, ou seja, metodologicamente trabalhamos de modo simultâneo com a Pesquisa Participante, a História Oral, o estudo bibliográfico e fonográfico. Além do trabalho de História Oral e do registro das Cantorias propriamente ditas, foram feitos registros de diversos diálogos com os Cantadores e com os ouvintes, contabilizando um total de mais de 20 horas de gravações. O universo de informantes comporta 4 Cantadores, na faixa etária entre 35 a 67 anos e diversos ouvintes/ apologistas. A História Oral adotada neste trabalho é a de José Carlos Sebe B. Meihy (2005; 2007). E a Pesquisa Participante está fundamentada principalmente em Brandão (1999). 2.1 Pesquisa Participante A Pesquisa Participante é em seus delineamentos diretamente relacionada à cotidianidade do grupo social em questão. Nela, a pesquisa não deve ser feita simplesmente sobre os grupos em 43 questão, mas com os grupos. Isso possibilita um diálogo mais amplo entre os atores sociais envolvidos no fenômeno e o pesquisador, justamente porque o mesmo passa também a fazer parte da dinâmica do fenômeno (BRANDÃO, 1999). Numa pesquisa dessa natureza, a dimensão intersubjetiva dos participantes da Cantoria Nordestina deve ser considerada. Dentro do tema abordado estarão sendo trabalhadas representações, e estas são inter-relacionadas com todo um contexto social, espacial e cultural dos atores envolvidos no processo. Assim, ao estudarmos o espaço vivido da Cantoria Nordestina não o compreenderemos amplamente se não levarmos em consideração as percepções que os próprios atores da Cantoria Nordestina tem sobre ela. Sobre a Pesquisa Participante, Paulo Freire esclarece: O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se encontram envolvidos seus “temas geradores” (...) (FREIRE apud OLIVEIRA e OLIVEIRA: 1999: 20). O interesse pela Pesquisa Participante como uma das metodologias adotadas no trabalho é o de poder captar, na maior plenitude possível, a dinâmica sócio-espacial dos atores construtores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Concordamos plenamente com a geógrafa Nogueira, quando afirma que “Pensaremos os sujeitos das pesquisas não mais como meros informantes dos dados necessários para a pesquisa, mas que sejam também reconhecidos como autores, pois a experiência vivida por eles será a principal fonte de interpretação de nossas reflexões” (2004: 210). 2.2 História Oral Neste trabalho, é utilizada a História Oral desenvolvida por José Carlos Sebe Bom Meihy. Sebe publicou cinco versões do chamado “Manual de História Oral” (MEIHY, 1996, 1998, 2000, 2002, 2005). Dentro dessa perspectiva se apresenta a preocupação de esclarecer como essa linha de História Oral “compreendia as relações entre Memória e História; Oralidade e Escrita; Identidade. É um momento interessante porque vai indicar que o conjunto desses conceitos, idéias e preocupações poderiam conferir-lhe um status diferenciado (...)” (BARBOSA, 2006: 32). Assim, gradativamente a História Oral vai desenvolvendo um corpo teórico próprio, o que traz a 44 certeza de que a História Oral nos moldes de Sebe, e outros autores, já não pode mais ser pensada simplesmente como uma mera prática de registros ou arquivamentos. Segundo Sebe: Pode-se, em nível material, considerar que a História Oral consiste em gravações premeditadas de narrativas pessoais, feitas diretamente de pessoa a pessoa, em fitas ou vídeo, tudo prescrito por um projeto que detalhe os procedimentos. (...) O projeto prevê: planejamento da condução das gravações; transcrição; conferência da fita com o texto; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, publicação dos resultados, que devem, em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas. (...) Atualmente, a História Oral já se constitui em parte integrante do debate sobre a função do conhecimento social (...). (2005: 17-19). Apesar de existirem algumas divergências entre autores que trabalham a História Oral, existem também muitos pontos em comum “A ideia de que a História Oral pressupõe um projeto e que o uso da entrevista vai além do registro documental é ponto pacífico entre os pesquisadores que pensam a História Oral como um conhecimento que vai além da técnica de captação de entrevistas.” (BARBOSA, 2006: 35). Ou seja, a História Oral não é uma simples entrevista, ela precisa de um projeto, ela precisa de uma reflexão, ela precisa de uma preparação para a sua realização. A pesquisa é o encontro com o novo, e a História Oral busca preparar o pesquisador para esse encontro. Essa preparação acontece, inicialmente, através de um respeito que se confere ao entrevistado, o qual Sebe vai denominar de “colaborador” justamente valorizando este indivíduo não como um mero “objeto de pesquisa”, mas como um ser humano que precisa e deve ser valorizado, respeitado e ouvido. Esse respeito, o qual tem haver, intimamente, com o caráter ético presente na História Oral; também é considerado dentro do processo de transformação da gravação oral para o texto escrito. Isso ocorre porque o pesquisador tem um compromisso com a fidelidade da mensagem que o colaborador deseja espontaneamente transmitir. Prova disto, que o texto final só chega a ser publicado após ser verificado e aprovado pelo próprio narrador. Na verdade, o narrador ou colaborador participa conjuntamente de todo o processo de realização da História Oral. 2.2.1 Valorizando os diferentes olhares As abordagens geográficas, durante muito tempo, articularam-se principalmente sob o ponto de vista do homem branco, adulto, europeu, do sexo masculino. “Os geógrafos do início do 45 século XX de bom grado falavam do homem. Na verdade, tratavam dos adultos masculinos do grupo social dominante” (CLAVAL, 2000: 61). Contudo, tanto a geografia cultural quanto a geografia humanista contribuem para novas perspectivas sobre essas questões. Essas correntes geográficas passam a valorizar aspectos das subjetividades humanas, o que faz com que os métodos exclusivamente quantitativos já não sirvam para a totalidade de suas pesquisas. “A geografia cultural moderna, ao fazer do homem o centro de sua análise, foi obrigada a desenvolver novas abordagens” (CLAVAL, 2006: 92). Não estamos com isso querendo desconsiderar a validade dos procedimentos quantitativos dentro de análises geográficas, muito pelo contrário, consideramos a sua necessidade e utilidade. Mas ao adentrarmos em aspectos mais subjetivos da espacialidade humana, passamos a ter que operacionalizar categorias como: sentimentos, significados, códigos de comunicação e representações. E é nesse sentido que a História Oral se apresenta como uma alternativa interessante, pois através dela o pesquisador tem a possibilidade de entrar em contato com aspectos mais subjetivos do humano. O que é “verdade” para um, não é, necessariamente, “verdade” para o outro e vice-versa. A História Oral em seus fundamentos possibilita uma leitura despretensiosa sobre essas questões; considera a legitimidade das visões de mundo e dos significados do grupo estudado. Ao tratar da pesquisa, como o pesquisador poderá entender um grupo social, se ele não entender os seus motivos, as suas crenças, as suas aspirações? É nesse sentido que se torna necessário o pesquisador se despir ao máximo de preconceitos, e procurar entender da melhor maneira possível as representações características do grupo ao qual está estudando. A História Oral possui essa característica de abertura para olhares antes desconsiderados. Como os Cantadores, migrantes nordestinos, entendem e vivenciam o espaço rondoniense? O que é a Cantoria Nordestina para eles? São perguntas aparentemente simples, mas é preciso uma preparação prévia do pesquisador para ouvi-las. E a História Oral, ao possibilitar um contato mais íntimo entre pesquisador e entrevistado, facilita no funcionamento dessas dinâmicas intersubjetivas. Uma das críticas mais comuns à História Oral é a de que ela não teria abrangência social justamente por trabalhar com narrativas individuais. Contudo, convém considerarmos, que todos os indivíduos estão inseridos dentro de um contexto sócio-cultural. Os conhecimentos necessários para a formação de um indivíduo são compartilhados socialmente. Dentre eles destaca-se os 46 códigos de comunicação, os quais não são referentes somente à linguagem falada, mas também aos gestos, aos gostos, aos rituais... Na verdade, “o indivíduo só se explica na vida comunitária.” (MEIHY, 2005: 79). Assim, a História Oral tem validade tanto pela singularidade do narrador, como pelo coletivo que ele representa. De acordo com Meihy: As histórias pessoais ganham alcance social na medida da inscrição de cada pessoa nos grupos mais amplos que lhe servem de contexto. Com isso se neutraliza a relevância de uma História Oral valorizadora do indivíduo como se ele fosse uma abstração. A História Oral é sempre social. (2005: 42) Por exemplo, no caso específico do Cantador Matias Neto, no transcorrer de sua narrativa se visualiza nitidamente todo um contexto sócio-espacial referente ao Nordeste e a Rondônia. Matias, através de sua narrativa, delineia uma série de inter-relações sociais, sem as quais ele simplesmente não seria quem ele é. É justamente através das inter-relações sociais vividas por Matias, que ele se caracteriza como indivíduo, e que concomitantemente desenvolve a sua própria história de vida. Segundo Claval, “para apreender os processos culturais verdadeiramente significativos, os geógrafos se debruçam sobre a experiência das pessoas, sobre seus contatos, sobre suas maneiras de falar” (2006: 108). 47 CAPÍTULO 3 – O QUE É A CANTORIA NORDESTINA? Menino de rua Matias Neto Você que vive na riqueza e em sua fortaleza não sabe o que é pobreza duma fortuna usufrui filho de homem nobre divida o que tem com o pobre use o ouro e dê o cobre ao pobre que não possui... Menino de rua sem teto que cresce analfabeto sem carinho e sem afeto dos parentes e dos pais seu sofrimento é enorme o seu leito é desconforme um pouquinho que ele dorme é junto com os marginais... O menino afavelado vendo o pai desempregado logo cresce indignado sem direito de estudar a revolta continua se o estado não atua ele se junta aos da rua e cedo começa a roubar... O jornal é sua cama lamenta, chora e reclama sente saudade da mama e do colo da mãe querida sem teto, sem alimento vivendo exposto ao relento vai dobrando o sofrimento pelas estradas da vida... Se alguém lhe interroga por que é que usa droga na mágoa ele se afoga e não tem explicação dormindo em banco de praça tem desprezo como taça o vício é quem ameaça o futuro de uma nação... Quem do futuro precisa pouca gente analisa descalço e sem camisa o seu sofrer perpetua vivendo um triste dilema não resolvo o seu problema mas dedico este poema para o menino de rua... 48 CAPÍTULO 3 – O QUE É A CANTORIA NORDESTINA? Analisar a Cantoria Nordestina sob uma perspectiva geográfica, implica em ter-se um considerável conhecimento do que é a Cantoria Nordestina. Sem esse conhecimento, o espaço vivido da Cantoria Nordestina seria de difícil inteligibilidade. Portanto, este capítulo visa esclarecer, em maiores detalhes, a estrutura e funcionamentos próprios da Cantoria Nordestina. A Cantoria Nordestina é uma manifestação artística legitimamente brasileira, oriunda do sertão nordestino, em que dois “Cantadores” improvisam versos cantados ao som das violas. A Cantoria Nordestina possui suas características específicas, características essas que a tornam inconfundível: a presença das violas, as apresentações sempre feitas em duplas e o cantar de improviso são apenas algumas delas. FOTO 01 – MOZANIEL MENDONÇA (esq) E MATIAS NETO (dir) SEGURANDO SUAS VIOLAS Fonte: foto feita pelo autor em 13/07/07 em Porto Velho-RO. Os Cantadores Nordestinos são também chamados de “violeiros”, aonde vão levam os seus instrumentos, a viola. Tratam as violas com carinho e com cuidado, falam nela como se estivessem falando de uma grande amiga ou de uma querida amante. A afinação da viola nordestina não é a mesma da denominada “viola caipira”. A viola caipira tem dez cordas, e tem 49 uma série de variações de afinação. A viola nordestina utilizada pelos Cantadores, em sua grande maioria, utiliza apenas sete cordas em sua afinação; essa afinação específica é denominada pelos Cantadores como “regra inteira”. A viola é mais do que um simples instrumento para o Cantador, com ela ele se identifica, ele mantém uma relação sentimental com esse objeto. Existe uma intimidade entre Cantador e viola. A viola para o Cantador representa o sertão, representa os seus pais, representa o seu passado, representa toda uma dinâmica de um universo sertanejo. A Cantoria Nordestina é sempre feita em duplas, ou seja, não existe “Cantoria Nordestina” com uma só pessoa, ou que aconteça simultaneamente com mais de duas pessoas: três ou quatro por exemplo. O que pode acontecer e comumente acontece, é o revezamento entre parceiros; mas ela sempre se desenvolve através das duplas. Essa parceria é um dos elementos chaves da Cantoria, através da parceria os Cantadores desenvolvem uma espécie de diálogo cantado. A dinâmica de perguntas e respostas, e de respostas e contra-respostas é característica intrínseca da Cantoria. O cantar de improviso, sem dúvida, é a característica mais marcante da Cantoria. Os versos são feitos de improviso, ou seja, são versos feitos na hora; daí a denominação para os Cantadores de “Repentistas”, e para a Cantoria Nordestina “Repente Nordestino” ou simplesmente “Repente”. Os Cantadores Nordestinos são também chamados de “Poetas Nordestinos” ou “Poetas Cantadores”, todas essas denominações são comumente usadas, tanto na Cantoria Nordestina em Rondônia como a nível nacional. O cantar de improviso requer uma habilidade mental e perceptiva muito grande. Os “Poetas” “cantam de tudo”, a sua variedade de temas é impressionante. De acordo com eles, antigamente cantava-se, principalmente, a tríade: sertão, bíblia sagrada e saudade. Mas de alguns tempos pra cá o temário se ampliou, cantam: política, religião, problemas sociais, ambientais, urbanos, desenganos amorosos, etc. Mas cantam principalmente as coisas que vivenciam, as coisas do se dia-a-dia, os seus sofrimentos, as suas vitórias, os seus sonhos e aspirações; e as coisas do Nordeste, as coisas da sua “terra natal”, coisas essas que são exemplificadas na ideia central de “sertão”. Esse ponto será abordado em maiores detalhes nos capítulos cinco e seis. 50 3.1 Técnicas da Cantoria Nordestina A Cantoria Nordestina possui as suas técnicas. De acordo com os Cantadores, os três pilares indispensáveis para se fazer um bom “repente” são: métrica, rima e oratória. Vejamos cada um deles. A métrica se caracteriza na quantidade específica de sílabas de cada verso. É importante ressaltar que essa sílaba falada pelos Cantadores não é a sílaba gramatical, e sim a sílaba rítmica. A métrica também está relacionada com o tamanho das estrofes, que de acordo com cada estilo específico deve ser respeitada. Alguns dos principais estilos utilizados na Cantoria Nordestina em Rondônia serão abordados logo adiante. As rimas dizem respeito ao final das palavras, os Cantadores também as denominam de “pés”. A Cantoria Nordestina é mais rígida que o “Coco de Embolada”12 em relação à utilização das rimas. Na Cantoria por exemplo, não é considerado correto rimar “café” com “mulher”; nem rimar “Ceará” com “amar”, e nem “céu” com “mel”. Mas ela tem as suas flexibilidades, rima-se por exemplo: “rapaz” com “pais”, ou, “seduz” com “azuis” ou com “Jesus”; são regras próprias e internas da Cantoria. É preciso ressaltar, que os próprios Cantadores, às vezes, pela necessidade do improviso, utilizam dessas rimas consideradas por eles mesmos “erradas”. Mas eles procuram evitar, pois sabem que os mais “entendidos” em Cantoria percebem e é considerada uma falha. A oratória tem relação direta com o sentido de toda a estrofe. A estrofe bem feita é aquela que tem toda a sua construção concatenada, toda ela está dentro do mesmo tema e todos os seus versos fazem sentido entre si. Na verdade o fechamento da estrofe é a chave. É no fechamento da estrofe (chamada por eles, muitas vezes, simplesmente de “verso”) onde está o elemento principal, o elemento “surpresa”. Uma estrofe bem construída tem início, meio e fim. Os Cantadores explicam que rimar “pão” com “mão” é muito fácil, qualquer um rima; o importante é dar um sentido ao verso. O importante é a “oratória”. Alem dos “repentes” propriamente ditos, os Cantadores (não todos) também cantam “poemas” e “canções”. Os repentes são os principais, é realmente o foco da Cantoria, são os 12 O Coco de embolada também é uma manifestação artística oriunda do Nordeste. Os coquistas, ou emboladores de coco, como são chamados os praticantes dessa arte, utilizam por seus instrumentos o pandeiro. “O coco-de-embolada é sempre cantado em dupla e a comicidade faz-se destaque em seu cantar. Em geral, cantam trabalhos por eles escritos, mais em diversas situações dispõem do improviso.” (MOREIRA, 2006: 67). No Coco de embodada as rimas são mais flexíveis do que na Cantoria Nordestina. Por exemplo, são consideradas corretas rimas entre “anel” e “chapéu”, ou “viajar” e “Amapá”, ou “colher” e “fé”. 51 versos cantados de improviso, feitos na hora de acordo com o momento. Já os poemas são trabalhos preparados com antecedência, pode ser de autoria do próprio Cantador que o canta ou pode ser de autoria de outros Cantadores. No entanto, o que diferencia o poema da canção é que o poema sempre é construído respeitando as regras rígidas de rima e metrificação. Ou seja, existem poemas cantados em métrica de sextilha, quadrões, martelo, etc. A canção já é diferente, além de não ser de improviso, a canção possui flexibilidade tanto em relação à métrica quanto as rimas; o tamanho dos versos também não tem tanta importância. E a sua constituição melódica também é bem mais elaborada. Os Cantadores utilizam com freqüência os poemas e as canções em suas apresentações. As canções e poemas são muito pedidas pelo público. Existem poemas e canções de Cantadores de nível nacional que são famosas entre os ouvintes da Cantoria. Muitas dessas canções e poemas são conhecidas pelos ouvintes desde o tempo em que residiam no Nordeste. Outro momento em que os poemas e canções são freqüentemente utilizados é quando um dos parceiros para beber ou comer alguma coisa; dessa maneira os Cantadores não interrompem a dinâmica de sua apresentação. 3.2 Modalidades da Cantoria Nordestina A Cantoria Nordestina possui atualmente mais de 80 modalidades em uso (RAMALHO, 2000; MOREIRA, 2006). Isso foi verificado tanto em bibliografia, como em discografia e através de entrevistas com Cantadores. Algumas delas são mais tradicionais, outras são criações mais recentes. Neste trabalho, serão abordadas apenas algumas das modalidades encontradas junto aos Cantadores residentes em Rondônia. As mais utilizadas são: a sextilha, o mourão, o mourão a desafio, o mote em sete, o mote em dez, o quadrão perguntado, o oito-a-quadrão, o dez-a-quarão, o galope a beira-mar, o galope a miudinho, o dez de queixo caído, o voa sabiá, o boi na cajarana, o coqueiro da Bahia, o martelo agalopado e outros. Lembrando que cada uma dessas modalidades têm as suas regras específicas com relação à metrificação e ao conjunto de rimas; e, em alguns casos, dependendo da modalidade, a temática a ser cantada também já está implicitamente relacionada. 52 Uma das principais modalidades, senão a principal, é a sextilha. É com elas que os Cantadores começam todas as suas apresentações. A sextilha é uma estrofe de 6 versos, com metrificação de sete sílabas em cada verso na qual o 2º, o 4º e o 6º versos rimam entre si; e o 1º, o 3º e o 5º são livres. A estrutura da sua estrofe é da seguinte forma: ABCBDB. Contudo, convém ressaltar, que a última rima usada por um Cantador será a rima utilizada no primeiro verso da estrofe seguinte, ou seja, da estrofe do outro cantador; a isso os Cantadores chamam de “deixa”, eles dizem “pegar na deixa”. Segundo Câmara Cascudo, “Repetir o cantador o último verso do adversário para iniciar sua resposta é uma reminiscência dos troubadours medievais” (2005: 181). Observemos a sextilha cantada pelos Cantadores Matias Neto e João Azevedo, em 05/08/07, em Porto Velho-RO. Eu canto as grandes florestas (Matias Neto) jacaré, onça e guariba se eu levantar um prédio poeta nenhum derriba que agora é Rio Grande enfrentando Paraíba... Meu valor ninguém derriba (Mozaniel Mendonça) nessa minha trajetória que o repente que eu trago é da gaveta da memória e quem canta como eu canto garante a sua história... Dá a mão à palmatória sei que você não vai dar mas também não vou abrir se não você vai entrar e aí findo sendo fraco e Lourival vai me vaiar... (MN) 53 Eu pensei em vacilar (MM) mas Deus deu-me inspiração que poeta potiguarino quando toca o seu baião tem o repente nas veias pra defender o sertão... Eu não vou abrir a mão (MN) de cantar um gabinete de fazer a construção de usar meu capacete que onde tem rastro de cobra eu só entro é no cacete... Eu já cantei gabinete (MM) e martelo mal criado sextilha, mote e quadrão tudo bem metrificado e quem canta do meu tanto merece ser respeitado... Poeta bem renomado (MN) hoje aqui tem mais de dez cada um com seu estilo seu carisma e seus papéis e não vou deixar essas cobras virem morder os meus pés... Tô fazendo mais de dez anos nessa profissão há vinte anos que canto (MM) 54 mantendo a tradição arrancando a poesia do miolo do sertão... Você tem a condição (MN) de cantar de improviso de correr por onde eu corro de batizar igual batizo de falar como eu falo e de pisar aonde eu piso... Eu tiro do meu juízo (MM) cada gota de cultura o Nordeste é a viola é a nossa literatura mais quente que milho assado e mais doce que rapadura... A vida é uma aventura (MN) e eu sou aventureiro assim como o Ivan nasceu pra ser garimpeiro eu nasci pra mergulhar no garimpo do violeiro... Eu nunca fui pistoleiro ou carreguei arma na mão mas carrego uma viola por cima do coração e essa viola é a mola que representa o sertão... (MM) 55 Algumas das modalidades remontam alguns dos históricos da Cantoria. De acordo com Francisco Linhares e Otacílio Batista, em seu livro “Antologia Ilustrada dos Cantadores” (1982), no início os Repentes eram feitos em “quadras”, essas oriundas de Portugal. Daí eles explicam a origem de um dos estilos, ou modalidades, cantados pelos Cantadores o “quadrão”, que seria justamente a união de duas “quadras”. O quadrão possui algumas variações, uma delas muito utilizada pelos Cantadores em Rondônia é o “oito-a-quadrão”. O oito-a-quadrão é uma estrofe composta de 8 versos, sendo que cada verso tem a metrificação de sete sílabas. O 1º verso rima com o 2º e o 3º, o 4º com o 5º e o 8º, e o 6º com o 7º. A estrofe se configura da seguinte forma: AAABBCCB, e o último verso é sempre a frase “cantando os oito-a-quadrão”. Vamos observar um exemplo de oito-a-quarão cantado pelos Repentistas Custódio Queiroz e João Azevedo, em 11/11/07, em Porto Velho-RO. Belezas tem mais de mil (Custódio Queiroz) neste solo do Brasil com esse povo tão gentil da nossa grande nação eu sou só um ancião mas sei que aqui tem cultura amor, talento e fartura cantando os oito-a-quadrão... Eu sei que aqui tem cultura mas tem vez que a vida é dura eu não vi essa fartura nunca ganhei mensalão também não tenho carrão e só ando de bicicleta mas sou feliz, sou poeta cantando os oito-a-quadrão... (João Azevedo) 56 Outra modalidade muito utilizada pelos Cantadores é o “mote em sete”. A palavra “mote” significa uma definição preestabelecida dos dois últimos versos da estrofe. O mote está diretamente relacionado com o tema a ser explorado. É uma maneira muito direta de participação dos ouvintes no processo da Cantoria. Por exemplo, um ouvinte pode querer ouvir falar de um grande amor do passado ou de um parente que ele não vê há muito tempo, então ele cria um mote que faça referência a esse tema. Se ele não tiver o conhecimento necessário para criar o mote, pessoas (apologistas) de dentro do contexto da Cantoria o ajudam a criá-lo; isso é muito comum no contexto da Cantoria. O mote de sete é uma estrofe composta de 10 versos. O 1º verso rima com o 4º e com o 5º, o 2º com o 3º, o 6º com o 7º e com o 10º, e o 8º com o 9º. Ele se configura da seguinte maneira: ABBAACCDDC. Em Cantoria realizada no dia 12/04/08, em Porto Velho-RO, cantavam Matias Neto e Custódio Queiroz quando um determinado ouvinte pediu o seguinte mote: “Não há amor que agüente, ingratidão todo dia”. Eu sei que é desgastante (Custódio Queiroz) tratar com tanto carinho e ela só dá espinho a quem dá flor todo instante pois aquela minha amante viver com ela eu queria mas ela sem alegria mal qué me ver na sua frente não há amor que agüente ingratidão todo dia... Um sorvete de ameixa eu quero depois do rango ela qué um de morango só para me causar queixa eu abro a porta ela fecha eu tô no fogão, ela na pia (Matias Neto) 57 eu só tomo água fria e ela só quer café quente não há amor que agüente ingratidão todo dia... Eu quero ir pro Maranhão (CQ) ela qué ir pro Paraná quando eu estou no Pará ela qué ir pro Japão quando eu pego em sua mão ela xinga e não me guia quando eu vou pra Turquia ela vai pro Oriente não há amor que agüente ingratidão todo dia... A cama está muito estreita (MN) para nós dois nesse lar já tô pra abandonar aquela ingrata sujeita tô querendo uma receita para viver com Maria um pai de santo da Bahia me ensinou um remédio quente não há amor que agüente ingratidão todo dia... O mote de dez funciona de maneira muito semelhante ao mote de sete, a estrutura de rimas da estrofe é a mesma: ABBAACCDDC. A diferença é que no mote de dez, a metrificação é de 10 sílabas rítmicas para cada verso. Em Cantoria realizada no dia 29/02/08, em Porto Veho- 58 RO, foi pedido o seguinte mote decassílabo para os Poetas Mozaniel Mendonça e Matias Neto: “Quando o homem se encontra apaixonado, desce a lágrima no rosto e molha o peito”. Dou um tiro e canto no espaço (Mozaniel Mendonça) que esse mote eu vou cantar agora se eu lembrar de você meu peito chora sinto falta do beijo e do abraço era gostoso demais o seu amasso te esquecer ainda não achei um jeito eu recordo as delícias do seu leito e não consigo esquecer esse passado quando o homem se encontra apaixonado desce a lágrima no rosto e molha o peito... Eu não sei como aconteceu comigo (Matias Neto) eu só sei que eu estou muito gamado todo dia eu vivo embriagado não esqueço seu corpo, seu umbigo minha vida tornou-se um castigo meu caminho tornou-se muito estreito meu viver tá repleto de defeito tenho dívidas e tô desempregado quando o homem se encontra apaixonado desce a lágrima no rosto e molha o peito... Pra você vou tocar esse baião peço a Deus e lhe faço um apelo eu me lembro dos lábios, do cabelo eu me lembro do amor em seu colchão tô sentindo que a máquina do coração já tá perto de dá algum defeito (MM) 59 já falei com o padre e com o prefeito mesmo assim continuo arrasado quando o homem se encontra apaixonado desce a lágrima no rosto e molha o peito... Eu estou me sentindo muito mal (MN) e preciso compartilhar com alguém essa história já vai pra mais de cem e agora eu falei pra o Lourival vou falar até mesmo pra um rival ou Roberto Sobrinho o prefeito ou até pra um juiz de direito ou Cassol o governador do estado quando o homem se encontra apaixonado desce a lágrima no rosto e molha o peito... 3.2.1 O Desafio A característica do “desafio” dentro do contexto da Cantoria Nordestina merece de nossa parte uma atenção um pouco maior. O desafio está nas raízes da Cantoria Nordestina. O debate das ideias, a velocidade do raciocínio e a formulação da resposta são experiências que os Cantadores vivenciam com emoção e com orgulho. Alguns deles dizem que a Cantoria Nordestina é o “esporte da mente”. A Cantoria Nordestina tem um caráter lúdico muito forte, e esse caráter se manifesta de forma mais acentuada nos desafios, são momentos empolgantes. Quem já assistiu uma legítima Cantoria Nordestina sabe que a intensidade dos olhares, o timbre das vozes e a alegria dos risos acontecem muito espontaneamente no desenrolar de um “desafio ao som das violas”. Esse caráter lúdico tão presente nos desafios aproxima muito o público da Cantoria, e serve para “entrosar” as pessoas que participam. Através dos desafios é muito difícil não entrar no “clima” da Cantoria. Segundo Verônica Moreira, professora de arte, pesquisadora e atriz, casada com Antonio Lisboa um dos mais consagrados repentistas do Brasil: 60 Depois do improviso que é a principal característica da Poesia Popular Cantada, o desafio tem uma importância de destaque. Pode-se observar esta disputa quando um poeta procura demonstrar cantando que seus conhecimentos superam aqueles de seu colega, ou quando cada cantador usa a cantoria para destratar o companheiro que canta ao seu lado. O desafio entre poetas faz parte da história da Cantoria, onde desde os primórdios era comum um poeta desafiar um outro. (...) Estas contendas deram origem a grandes torneios (...) Por reunirem um número maior de poetas vindos de várias localidades, como em uma vitrine, pelo espírito de competitividade e pela grande aceitação do público; estes acontecimentos tornaram-se comuns, assim diversas cidades adotaram a realização de um festival a cada ano. (MOREIRA, 2006: 55-56) Foi tendo o desafio como propulsor que alguns aspectos da espacialidade da Cantoria Nordestina foram gerados. Atualmente, os festivais são muito comuns no Nordeste e em diversas partes do Brasil, principalmente no Sudeste e Centro-Oeste. Esses festivais mobilizam um grande quantitativo de admiradores, nordestinos ou não. Através deles também são veiculados muitos materiais sobre a Cantoria Nordestina, principalmente CD’s, DVD’s e livros. Sobre os festivais: Mais recentemente, surgiram os Congressos, Torneios e Festivais de Cantadores e Poetas Repentistas. No ano de 1948, o poeta Rogaciano Leite organizou o primeiro CONGRESSO DE CANTADORES DO NORDESTE, acontecido no Teatro Santa Isabel. Essa iniciativa foi seguida por várias cidades e outros estados do Nordeste, dando continuidade até os dias atuais. Neste tipo de evento os poetas, que como sempre cantam de improviso, são julgados em seus desempenhos levando em conta as regras de “rimas, métrica e oração”. (Ibid: 18) Nestes festivais, é claro que não são cantados somente desafios, os temas são diversos. Mas é a essência do desafio que mobiliza a competição. Note-se que a avaliação dentro do contexto de um festival não é totalmente subjetiva. Para avaliá-los, é formado um corpo de jurados (exímios conhecedores da Cantoria Nordestina) os quais utilizam em sua avaliação os critérios de “rimas, métrica e oração” rigorosamente. De acordo com Cascudo, os Repentistas “Não podem resistir à sugestão poderosa do canto, da luta, da exibição intelectual ante um público rústico, entusiasta e arrebatado” (2005: 130). Existem modalidades específicas para os desafios como: o mourão a desafio, o treze por doze, o oitavão rebatido, o mourão você cai... Mas dentre todos, é o “martelo agalopado a desafio”, ou simplesmente “martelo a desafio” ou “martelo malcriado” o que tem maior tradição na Cantoria. Segundo Cascudo, “É o tipo maior, a grande arma do desafio. Cantador que resiste 61 ao embate está consagrado. Pela sua imponência é a sedução de todos os cantadores. Não há peleja em que o martelo-de-dez-pés não apareça, melhor ou pior manejado” (Ibid: 21). O “martelo-de-dez-pés” que é o mesmo martelo agalopado13 é composto por uma estrofe de 10 versos, sendo que cada verso possui dez sílabas; é semelhante ao mote de dez, com a diferença de que não possui os dois últimos versos prontos. Ou seja, a ordem de suas rimas continua sendo: ABBAACCDDC. Ele é também conhecido como “trinta-por-dez”. O que significa isso? São trinta sílabas fortes distribuídas dentro dos dez versos da estrofe. Cada verso contém três sílabas fortes, que entram, especificamente, na 3ª, 6ª e 10ª sílabas. É da seguinte forma: 1º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 2º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 3º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 4º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 5º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 6º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 7º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 8º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 9º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá 10º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ ta... Segundo Francisco Linhares e Otacílio Batista, estudiosos da Cantoria Nordestina, o martelo agalopado é esse “gênero belo e difícil, via crucis dos fracos repentistas (...)” (1982: 23). No dia 13/09/07, em Porto Velho-RO, estavam cantando Matias Neto e Custódio Queiroz quando lhes foi pedido que cantassem um “martelo a desafio”. 13 “Por que o sertanejo chama ‘martelo’ a um verso de dez sílabas, com seis, sete, oito, nove ou dez linhas? Pedro Jaime Martelo (1665-1727), professor de Literatura na Universidade de Bolonha, diplomata e político, inventou os ‘versos martelianos’ ou simplesmente ‘martelos’. Eram de doze sílabas, com rimas emparelhadas. Esse tipo de “alexandrino” nunca foi conhecido na poesia tradicional do Brasil. Ficou a denominação cuja origem erudita é visível em sua ligação clássica com os poetas portugueses do século XVII.” (CASCUDO, 2005: 21). 62 Você pensa que é bom repentista (Custódio Queiroz) mas lhe acho pequeno e atrasado um buchudo nojento e mal cuidado que não sabe ter um ponto de vista mas cantando eu sou um recordista excelente poeta e violeiro não tolero poeta desordeiro meu repente é a marreta mais pesada que arrebenta conversa mal contada e da conversa não sobra nem o cheiro... Você diz que é ótimo violeiro (Matias Neto) não conheço essa fama do senhor você pode ser bom agricultor mas cantando, pra mim é um desespero tem talento demais pra desordeiro com a justiça você não colabora e se eu te pego essa noite você chora que Matias cantando é muito homem mas você eu não sei se é lobisomem chupa-cabra ou então o caipora... Se eu quiser posso calçar uma espora bem pontuda com as lâminas de aço e depois montar no seu espinhaço que o povo vai ver quem é que chora vou mostrar quem que é o caipora vou mostrar quem é cobra e é leão dou-lhe um chute no meio do salão que você se atrapalha e leva um tombo vou descer chicotadas no seu lombo (CQ) 63 igual batia nos jegues do sertão... Oh Custódio você é um ancião (MN) eu não quero apertar o seu pescoço que você é raquítico, pele e osso e não guenta um tapa, um empurrão se eu pegar-lhe com a força da minha mão é possível você não aguentar os seus olhos começam a lagrimar o seu corpo sacode, pula e treme sua boca engasga, chora e geme e fica ruim pra você continuar... Você pensa que vai me esfregar (CQ) mas Custódio cantando tem mais raça que eu me viro no vento e na fumaça e é difícil demais tu me pegar se é no rio já aprendi nadar na ribeira, no fundo e até na foz canto o antes, o agora e após canto as trevas da noite e a luz do dia e tão dizendo que o rei da poesia em Rondônia é Custódio Queiroz... Você foi igualmente um Tapajós teve a força de um rio Madeira mas agora caiu da ribanceira que quebrou queixo, ouvido e mocotós ta fanhosa e gasguenta a sua voz seu aspecto ta feio e moribundo e enquanto isso eu canto em um segundo (MN) 64 a esmeralda mais linda, pura e rica que a minha mente é a máquina que fabrica os maiores repentes desse mundo... Você pode pensar que é o rei do mundo (CQ) mas cantando você é uma criança é ridícula demais a sua pança e sua cara parece com seu fundo se você refletir um só segundo vai é ver que eu lhe ensino igual um pai se eu mandar com certeza você vai seu caboco safado e atrevido e se eu taca-lhe a mão no pé do ouvido a cabeça eu não sei aonde cai... Você pensa que cantando é meu pai (MN) deixe dessa besteira e heresia que Matias cantando tem poesia minha conta de versos não retrai o seu verso essa noite ele não cai e se cair, só cai dentro da cacimba não te xingo e você não me xinga pare a agulha, desligue as radiolas vamo logo é parar com essas violas que eu tô doido é pra beber uma pinga... Apesar do conteúdo aparentemente ofensivo, o desafio na Cantoria Nordestina não incita agressividade; até pelo contrário, é uma forma lúdica de atrair a atenção das pessoas. Antigamente, os desafios dentro da Cantoria tinham uma significação pessoal mais forte (RAMALHO, 2000; CASCUDO, 2005). Atualmente, principalmente devido à profissionalização da Cantoria, os Cantadores aparentam não se sentirem “vencedores” ou “derrotados”. Eles sabem 65 que o desafio faz parte do contexto da Cantoria e encaram isso, na maioria das vezes, de maneira muito espontânea e alegre. É muito comum os próprios Cantadores rirem dos versos do adversário e ao final da disputa se cumprimentarem cordialmente. 3.3 O Apologista Os apologistas são aquelas pessoas que, além de terem uma grande admiração pela Cantoria Nordestina a conhecem em maior profundidade. Eles têm uma importante função social dentro do contexto da Cantoria. É através dos apologistas, por exemplo, que são combinadas as apresentações dos Cantadores. Normalmente, eles têm grande intimidade com os Repentistas e vice-versa. De acordo com Ramalho: Dentre a gama variada de ouvintes, destacam-se os apologistas, ou seja, aqueles “iniciados” na compreensão das técnicas da arte de improvisar poeticamente, possuidores de aguçada sensibilidade, e que representam os principais “promoventes” de Cantorias. (...) Eles dão a esse evento uma atmosfera de entusiasmo. (...) A figura do apologista se destaca pela sua capacidade de lidar com o público, de conduzir o evento, de ser familiarizado com as técnicas de rimar, metrificar e construir a oração, identificado com o linguajar próprio usado nas Cantorias, e, principalmente por ter sensibilidade artística. Ele é portanto um ouvinte diferenciado. (2000: 93-94) O apologista se insere, portanto, como uma espécie de mediador entre o público e os Cantadores. Quando um ouvinte por exemplo, quer pedir um mote, mas não consegue metrificálo de acordo com as regras da Cantoria; muitas vezes o apologista entra em ação auxiliando-o na metrificação. É também o apologista que, vez por outra, incentiva os ouvintes a contribuírem financeiramente com os Cantadores. Gostaríamos de ter sido mais detalhistas em relação à Cantoria Nordestina (técnicas, modalidades e estrutura da Cantoria de modo geral), mas este não é o escopo desse trabalho. A intenção da inserção deste capítulo dentro da dissertação tem um sentido didático. O que se pretende é possibilitar ao leitor uma compreensão consistente do que é a Cantoria Nordestina. Esse entendimento facilitará as análises das inter-relações entre Cantoria Nordestina e espaço vivido, o que caracterizamos geograficamente sob o conceito de “espaço vivido da Cantoria Nordestina”. 66 CAPÍTULO 4 – MATIAS NETO: UM REPENTISTA EM RONDÔNIA O homem e o terçado Matias Neto Viram um doutor descer do carro com um terçado na mão cortando faixa e gritando no meio da multidão parecia ter incorporado o espírito de Lampião... Doutor faça isso não nós é que tamo acuados cortaram nosso salário tamo todos endividados nós sim é que deveríamos estarmos todos de terçados... Nós estamos revoltados mas sim é com o presidente seus ministros e assessores que formam a mesma corrente que não respeitam a justiça nem os direitos da gente... Por isso daqui pra frente é melhor tomar cuidado dentro da universidade o terror está implantado a mão que conduz um diploma também carrega um terçado... Isso é fruto gerado de uma política devassa que a coisa só piora no decorrer que o tempo passa botando uns contra os outros pra destruição da raça... 67 CAPÍTULO 4 – MATIAS NETO: UM REPENTISTA EM RONDÔNIA Meu encontro com Matias Neto deu-se bem antes do meu ingresso no Mestrado em Geografia. Nos encontramos pela primeira vez no ano de 2000, justamente numa legítima Cantoria pé-de-parede, no bairro Nova Porto Velho, na cidade de Porto Velho-RO. Rapidamente nasceu uma boa amizade entre nós e o interesse pela Cantoria Nordestina foi, então, o elemento em comum que nos aproximou. Desde aquele tempo, eu já vinha acompanhando os Cantadores em suas apresentações. Até que surgiu a proposta do desenvolvimento de um trabalho que inter-relacionasse a Cantoria Nordestina com a geografia. Eu já sabia, devido experiência empírica, que existe um contexto sócio-cultural dentro do fenômeno da Cantoria Nordestina, mas nem por isso essa proposta deixava de ser altamente desafiadora. Me propus a examinar esse tema com maior atenção. Minha primeira tarefa foi exclusivamente bibliográfica e descobri nos autores da geografia cultural e humanista algumas possibilidades de articulação geográfica desse tema. Concomitantemente a esse percurso bibliográfico, as metodologias a serem utilizadas no trabalho foram se apresentando. A História Oral se apresentou como uma alternativa interessante, primeiramente devido a minha proximidade com Matias; e segundo, devido à própria proposta da História Oral, a qual me permitiria adentrar em aspectos mais subjetivos dos significados da Cantoria Nordestina na vida deste Cantador. Matias Neto é antes de tudo um lutador, nordestino nascido no Rio Grande do Norte, veio pra Rondônia em busca de melhores oportunidades. Apesar das enormes dificuldades, não desistiu nunca de estudar e nem de cantar. Insistente em seus sonhos, trouxe do Nordeste um “dom” que o acompanha por toda sua trajetória, o dom de cantar de improviso, o dom do Repente. Essa é uma característica intrínseca de Matias, ter como dizem os próprios Cantadores “a veia poética”. O que será apresentado a seguir é o trabalho de História Oral realizado com Matias Neto entre junho de 2007 a junho de 2008. Além dos nossos encontros para a realização específica dos trabalhos de História Oral, nós sempre nos víamos. E pude perceber, tanto através dos trabalhos de História Oral, como através de diversas conversas informais que tivemos, o amor dele pela 68 Cantoria e o significado desta na vida dele. Espero que essa história dele, e contada por ele mesmo, possa esclarecer melhor essas íntimas inter-relações. 4.1 Em Rio Grande do Norte Eu sou de uma família nordestina, família de 14 irmãos, ou melhor 13 irmãos, desses 13 só 6 se criaram. Pra você vê como é que era... era bravo, não era fácil... Minha família é do Rio Grande do Norte, no Alto Oeste Potiguá, uma família grande, humilde... Esses dias eu tava fazendo as contas, da minha família os que têm curso superior; tem três que têm curso superior e eu agora que tô conseguindo... No próximo ano, com a graça de Deus, vê se eu consigo também concluí. Você vê que não é fácil... Trabalhador, e da roça, e essa luta... mas se chega lá! De vês em quando um tem que chega né? (risos) Então, é por aí... Aí, meu pai... Em 70 eu tinha sete anos de idade quando eu via meu pai falar das secas, as secas do Nordeste... A seca de 15 foi uma das maiores secas, teve a seca de 30, 32, a de 48... mas foi em 58 que parte da minha família foi pro Maranhão, família da minha mãe e a do meu pai também... Então, até hoje boa parte da minha família continua lá no Maranhão. Aqueles que eram mais velhos, muitos já morreram, mas têm muitos que continuam lá até hoje. Eles tão morando no sul do Maranhão... É tudo assim, uns num canto, outros no outro... Foi minha vó junto com a minha mãe e meus tios que venderam um pedaço de terra que tinham no Rio Grande do Norte pra poder ir pro Maranhão. Acabou que teve uns que até voltaram, mas teve outros que ficaram por lá mesmo. Era a seca que expulsava o povo pra fora desse jeito. O que acontece, é que o Maranhão não tem aquelas crises de seca igual tem lá na Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte... Principalmente o sul do Maranhão, já é uma região que chove mais, é mais abundante lá! Então, teve um pessoal que foi pra essa região, sul do Maranhão, e até hoje tão lá. De vês em quando eu vou lá no nordeste, aí eu vou lá com eles e a gente conversa bastante... E com o tempo cada um foi dando um jeito, conseguiram um pedaço de terra... então, todo mundo por lá ta situado, tocando a sua vida lá, conseguindo o seu pão. E aí tá, em 58 a gente foi pro Maranhão... só que meu pai e minha mãe voltaram pro Rio Grande do Norte de novo! A verdade é que meu pai nunca gostou muito do Maranhão e acabou que retornou pro Rio Grande do Norte novamente. Só que aí veio a seca de 70... foi outro ano, outra seca muito difícil... apesar de não ter sido como a anterior, mas foi muito dura... Com essa 69 seca muitos nordestinos foram embora do Rio Grande do Norte. Foi aí que meus pais voltaram pro Maranhão de novo. Aí minha mãe já tava cansada daquele negócio, foi quando ela disse: “Não, não volto mais pro Rio Grande do Norte não!” Então, meu pai voltou comigo e minha irmã mais nova, e os mais velhos ficaram por lá. Depois eles casaram e tocaram a vida deles pra frente. Mas pra nós foi uma fase difícil, morando pela casa dos outros, parentes, tal... e parente tem aquele negócio, é bom pra gente ir final de semana lá, pra almoçar ou palestrar, mas pra ir lá e morar junto... mas depois acabou que minha mãe também voltou pro Rio Grande do Norte, aí já não teve mais aquelas crises de seca brava não. Com o retorno da minha mãe facilitou bastante, aí a gente tocou a vida pra frente... Aí veio em 80, Setenta e nove, oitenta... foi quando teve outra crise. As crises são constantes no nordeste! Foi uma crise que teve frente de emergência, aí parece que o governo já se preocupou um pouco mais, aí com isso o pessoal já não saiu tanto de lá não. Eu trabalhei em frente de emergência! Em 79 eu com a violinha já começando a cantar... mas ainda não tava assim bem garantido, tava com pouca experiência ainda. Mas já fazia minhas cantorias pra ganhar meu dinheiro. Fora isso, eu ia é pra chibanca arrancar toco, palear a terra, carregar em carrinho pra fazer açude. Lá pelas fazendas, nas propriedades, o pessoal mantinham aquelas turmas de dez homens, quinze... E tinha sempre um que era o encarregado, mas na época eu não cheguei a ser nem encarregado, porque eu mal assinava meu nome, tinha que botar era o dedão. Então, o encarregado era aquela pessoa que pelo menos sabia anotar o nome dele e dos outros trabalhadores... Depois eu com uns 17 anos já tava cursando a 3ª série primária, mas não era fácil, a gente sabia alguma coisinha, mas não tinha confiança... quando ficava diante de uma pessoa da cidade, que tem o conhecimento maior, a pessoa da roça por mais que saiba alguma coisa acaba ficando tímida. Por causa disso, a gente acaba perdendo muita oportunidade, eu mesmo perdi algumas oportunidades nesse sentido... Mas aí eu concluí minha 4ª série no Rio Grande do Norte. Acho que foi com 18 anos que eu terminei a 4ª série... Aí tá... aí foi nessa época que eu comecei a cantar com mais freqüência. Pintaram umas viagens pro Ceará, pra Paraíba... E dentro do Rio Grande do Norte mesmo eu passei a visitar as cidades... 70 4.2 Descobrindo a “veia poética” De vez em quando, alguém pergunta se têm outros Cantadores na minha família. O único Cantador que tinha na minha família ele morreu. O nome dele era João Vicente, era um primo da minha mãe. Ele começou cantar... e acho que ele devia ter uns vinte anos quando mataram ele. Dizem que foi por causa de mulher... O pessoal diz que ele era bom, me falaram que se ele tivesse vivido ia ser um grande Cantador! Então, no período de 58, quando o pessoal foi pro Maranhão, foram três Cantadores nessa comitiva. Um deles foi esse primo da minha mãe que morreu. O outro foi o “Azulão”, que até quando eu fui recentemente lá no Rio Grande do Norte me encontrei com ele. E o outro foi “Antônio Ferreira de Lima” que quando eu escuto o Zé Ferreira é a mesma coisa que eu tá escutando ele. Inclusive, ele disse que o Zé Ferreira, quando começou a cantar, começou com ele. Então, com esse Antônio Ferreira de Lima, eu cheguei a viajar com ele. Ele era muito amigo do meu pai. Minha mãe não confiava de eu viajar com outras pessoas, mas com ele ela acabou liberando. E isso eu com 17 anos de idade. Então, teve esse meu primo que começou a cantar, mas ele ainda novo lá pelo Maranhão mataram ele, lá em Coroatá no Maranhão. E depois dele de Cantador já passaram mais de 20, 30 anos, e só surgiu eu mesmo. Teve um tempo que eu queria cantar brega, mas depois eu fui vendo que aquilo não tinha futuro. Graças a Deus eu sempre fui um cara da roça que tinha uma visão privilegiada, sempre tive esse privilégio de ver um pouco das coisas. Então, eu comecei a enxergar que aquilo ali não tinha futuro pra mim. Eu digo: “não, não é isso que eu quero pra mim.” Além do que, meu pai gostava muito das Cantorias, ele sempre tava fazendo Cantoria lá em casa. Então, eu comecei a ouvir bastante o Repentista João Neto, que hoje mora em Brasília, e também o Chico de Elino. Nós somos da mesma época, mas o Chico e o João começaram a cantar primeiro do que eu. Eles formavam dupla, e eu achava interessante que a gente ia pras Cantorias, eu acompanhava eles né? E eu observava eles cantando e eu pensava: “rapaz... eu acho que se eu botar pra cantar Repente eu canto também!” A família do João Neto tem muitos poetas, tem o Chico Guedes, tem o Zé Vicente, sem ser o pai do Welinton14, o outro Zé Vicente. Então, era família de poetas mesmo e todo mundo se 14 Welinton é um nordestino da cidade de Altinho-PE, filho do antigo repentista já falecido Zé Vicente. Atualmente, Welinton reside em Porto Velho e está sempre em contato com os Cantadores. 71 conhecia. João Neto já é bem da quarta geração de Cantadores da família dele. Já a família do Chico não, a família do Chico é igual a minha, não tem outros Cantadores. Mas aí, eu comecei através dessa influência deles. Eu tinha um violãozinho e aí eu pedi pra um deles, nem lembro mais se foi pro Chico ou pro João: “rapaz, eu tô querendo mudar as cordas do meu violão pra viola, pra afinação regra-inteira, que eu tô querendo começar a cantar.” E foi assim que eu comecei. Às vezes eu treinava com um colega, vizinho meu, que até hoje tá cantando. Ficávamos lá até mais de meia-noite, um rebatendo os versos do outro... E foi assim que eu comecei a improvisar... Aí eu comecei, eu afinei a viola e comecei a tocar. Minha voz sempre foi uma voz boa. Hoje, eu nem digo tanto... mas na época o pessoal gostava muito. E além do Repente, eu cantava muita canção e era aquela animação, a moçada gostava! Aí mandavam bilhetinho pedindo canção, canção tal, tal... E isso pra gente era um incentivo. Aí fui arrumando Cantoria, aí quando o pessoal descobriu que eu sabia. “Ah, é o neto de Chico de Pinto!” Meu pai é Chico de Pinto. Meu pai é Chico de Pinto por quê? O nome dele é Francisco Matias, mas minha vó era tão baixinha que botaram o apelido nela de “pinta”, a “pintinha”. Aí pegou, Chico de Pinto, Francisco de Pinto. Aí, “neto de Chico de Pinto já é cantador”, aí o pessoal naquela curiosidade. E nisso meu pai sempre fazendo aquelas Cantorias lá em casa, e lotava... A gente morava numa casa grande, numa encruzilhada, tinha um calçadão, calçada alta mesmo! Então, a gente ficava lá na sala cantando, uns namorando ali pelas calçadas... e as meninas mandavam bilhetes... e já mandava o dinheiro junto lá da canção ó! (risos) A gente tinha tipo uma certa tabela, uma canção era tanto... outra era tanto... O Ismael Pereira15 cantou muito lá em casa pra o meu pai. Aniversário do meu pai, todo ano Ismael ia e eu cantava com Ismael e outros Cantadores. Ismael chamava meu pai e minha mãe de madrinha e padrinho, porque deram uma leitoa pro casamento dele né? E aí começou nossa amizade por aí. Aí Ismael tinha um programa em Cajazeiras e sempre quando ele ia pras bandas de lá ele ligava, ou avisava na rádio que estava indo pra Luiz Gomes que era pra eu arrumar umas Cantorias. 15 Ismael Pereira é de Aurora-CE, é um conhecido Repentista dentro do circuito dos Cantadores, e é considerado um dos maiores Repentistas do Brasil na atualidade. 72 E foi por aí que eu comecei. Mas eu além de ainda tá meio inexperiente na viola, minha mãe também não deixava eu viajar. Por lá tinha um Cantador por nome Zé Mourão que era muito amigo da gente, mas ele bebia muito e aí minha mãe não confiava. Ele dizia: “Ah Dona Chica, deixa ele ir comigo?” Ai a mãe falava: “Não, num tá na hora dele viajar não!” Então, esse Antônio Ferreira de Lima morava no Ceará, mas de vez em quando ele passava por lá. E numa dessas viagens dele passando por lá disseram: “Quem começou a cantar foi o filho de Chico de Pinto!” Aí nisso ele já foi lá pra casa. Ele andava numa burrona toda arrumada, é... e usava paletó! Quando eu vejo o Custódio falar de paletó eu só lembro dele (risos). Ele usava paletó, tal... e chegava assim, parecia um parlamentar (risos...). Aí nesse dia ele chegou lá em casa e a gente já fez uma Cantoria, aí no outro dia ele falou pra minha mãe: “Dona Chica deixa ele viajar comigo!” Aí a mamãe: “Não, deixo não!” Mas ele insistia: “Não, não... pode deixar! Comigo pode deixar que eu cuido dele!” Aí foi que eu comecei a viajar com a viola, fazendo Cantoria... Rapaz, olha, ele tinha um conhecimento muito grande. Ele era pernambucano e ele dizia que era parente do Lampião, que é Antônio Ferreira de Lima né? Diz ele que o Lampião era parente dele, e era metido a valente ele! Era todo riscado de faca, que na época ele era muito mulherengo e por causa de mulher arrumava briga. Aí a mamãe dizia: “Não seu Antônio, a gente sabe que o senhor é muito valente por aí!” Mas aí ele dizia: “Não, mas agora eu melhorei! Foi naquele tempo quando eu tava mais novo e era cheio de namoradas, hoje eu não faço mais isso não!” E ele também rezava nas pessoas... E aí rapaz, eu viajando com ele lá pela região do Ceará a gente fez muita amizade. E aí foi uma experiência muito boa que eu tive com ele ó! Aí, quando foi em 86 que eu vim pra cá que ele ficou sabendo, ele: “Rapaz, o cara foi embora!!!” Que a gente morava distante né, aí num se via direto não, a gente demorava pra se ver. Aí passou uns tempos ele faleceu. Ele morreu tá com o que? Tá com uns três anos que eu tive no Nordeste e disseram que ele morreu afogado ó! Diz que botou uma linhada no açude pra pegar peixe e foi lá pro meio do açude, e por lá parece que se enganchou, a canoa virou... e ele, acho que já tava com 70 e poucos anos, aí faltou o fôlego, e quando foram atrás dele ele já tava morto. Antônio Ferreira de Lima... No Nordeste é assim, no Nordeste se você começa a cantar aí já é uma referência; que se um cantador vai passando lá em tal sítio aí o pessoal já diz logo: “Rapaz, ali tem um Cantador, é fulano de tal!” Aí já vai pra casa do cara porque os Cantadores dão apoio um pro outro. E lá em 73 casa era uma casa grande, tinha um quarto lá... E quando chegava Cantador por lá a gente já dava logo a rede pra ele. Cantador ficava até de semana com a gente lá em casa. E eu fazia o mesmo, quando eu viajava ficava na casa dos parceiros. A gente tem... os Cantadores têm essa união. Quando chega o Repentista numa daquelas regiões do nordeste, hoje eu não sei como é que tá, porque eu já tô há muito tempo fora de lá. Mas na época a gente chegava num lugar daqueles e já fazia logo amizade. Uma coisa eu digo do nordestino: o nordestino não é miserável não, ele é barriga cheia! O que falta realmente é as condições que são precárias. Mas o que ele tem, se ele tiver um pouco de farinha ele divide contigo, numa boa... em qualquer lugar que você chega ali no nordeste é assim. Eu lembro que minha mãe tinha o café e não tinha o açúcar, mas a vizinha tinha o açúcar aí fazia a troca... Uma dava colher de café pra outra, às vezes quando queria fritar um ovo, fritar alguma coisa... quando não tinha o óleo, uma dava um pinguinho de óleo pra outra e assim vai... Assim o nordestino vive... Mas falando das viagens, a viagem que eu fiz assim com mais sucesso foi pro Maranhão, passei 6 meses cantando por lá. Naquele tempo, foi a última viagem que eu fiz pelo Nordeste com a viola. Aí depois que eu voltei dessa viajem do Maranhão, em dezembro, tinham uns parentes meus que tavam vindo pra Rondônia. E tinha um primo nosso que é engenheiro e tal... e na época do governador Jerônimo Santana ele tinha muita amizade e contato com os políticos, aí ele pegou muitas obras. Ele falava: “dinheiro pra vocês virem não tem não, mas dá um jeito de vim pra cá que aqui não falta trabalho”. Naquela época no Nordeste eu tinha um campo de algodão, um campo bonito e o cara quando é solteiro no nordeste, quando é a época da safra boa, ele já pensa em casar ó! E era o meu pensamento ó? (risos) Então, eu já pensando que aquele ano ia dá pra eu casar, porque eu ia construir uma casa e tal... E no final das contas, quando eu fui colher o algodão no campo, eu acho que não chegou a dez arrobas, aí eu fiquei desgostoso. Aí eu tava visitando meus parentes, a turma que tava vindo pra Rondônia, aí eu disse: eu vou junto! Eu vou junto porque se lá tiver Cantador a gente começa a cantar, senão eu vou partir pra outra coisa. E aconteceu que eu cheguei aqui. 74 4.3 Morando em um novo lugar Interessante que eu cheguei aqui 3 horas da tarde, quando foi 6 da noite comecei a trabalhar. Tanto serviço que tinha aqui, porque aqui na época era o auge do garimpo e o povão tava mais interessado no garimpo do que em obra, ninguém queria saber de obra não. No serviço público era só chegar num órgão desses aí, apresentava a documentação e já tava contratado. Só que era muito pouco o que o pessoal ganhava nos órgãos públicos na época, o garimpo é que era a fonte. Mas pra inteirar tinham as empreitadas, os pedreiros trabalhavam por fora também, aí dava pra dar um reforço. E era desse jeito, quando eu cheguei aqui o meu trabalho foi na construção civil. Ali onde é a Ivã Marrocos, ali era o alojamento de uma firma, de uma construtora, a Jaú. A Construtora Jaú era uma empresa de São Paulo, e quando eu cheguei aqui eu fazia uns bicos com meu primo e trabalhava por lá. Aí eu trabalhando na Jaú, um certo dia, eu fiquei meio chateado porque eu fiz umas horas extras e a firma não me pagou. E lá tinha uma piãozada, que naquele tempo tinham muitas firmas trabalhando por aqui, e aí a piãozada dizia: “Vamo trabalhar na Odebrecht que paga melhor, a Camargo Corrêa paga melhor!” E nós lá na Jaú, além do salário ser o menor, a piãozada dizia que o marmitex era o pior de todos (risos). Aí um dia, a gente terminou de almoçar e tava conversando lá na hora do descanso, aí eu fiz um verso! Ouvindo a lamentação dos piões eu fui e disse: É mais fácil um carrapato pilotar um avião um fusca virar caminhão veado deixar o mato rico não usar sapato barbeiro não usar navalha jegue não aceitar cangalha garça virar urubu do que a firma Jaú pagar bem à quem trabalha... (risos) 75 Rapaz, aí a piãozada gostou de mim e eu fiquei foi conhecido! Aí depois, os caras escreveram, os carpinteiros, com aqueles lápis de marcar; escreveram num papel de cimento lá pra ficar declamando (risos). Aí depois, a turma contando a história o encarregado soube. Ele sabia que era eu, só que o encarregado era gente boa também. Mas aí fazer o quê? Ele também ganhava mal (risos). E aí eu ainda fiquei lá uns três meses... (risos). Então, naquela época tudo era favorável, até 86, 87 quando eu cheguei aqui era assim. E era assim que eu trabalhava, na construção civil. Aí eu trabalhava pintando nas obras do Paulo, primo da gente. Aí depois de 6 meses eu já tava com minha carteira assinada como pintor e aí foi melhorando... E nisso eu tinha um sonho de comprar uma viola dinâmica. Rapaz, cheguei na Loja Americana ali na Sete de Setembro, ali entre a Marechal Teodoro e a Joaquim Nabuco, bem ali tinha uma loja, até hoje quando eu passo por ali eu me lembro. Aí eu vi a viola na vitrine ó, aquela viola bonita, aquelas dinâmica. Uma viola daquela pra mim era uma coisa muito especial, era o sonho que eu tinha. Que eu só usava violãozinho com as cordinhas de naylon... Rapaz, o primeiro salário que eu peguei, com mais um rapaz que me emprestou uma parte, fui lá e comprei minha viola! Aí tá, aí eu trabalhando na construção civil, aconteceu que apareceu uma reforma lá pela Unir Centro e a gente foi fazer um serviço por lá, pintar a Unir Centro. Foi aí que eu conheci o Ceará, o Ceará é um eletricista que trabalha lá na Unir. Aí o Ceará me disse: “Rapaz, vem trabalhar aqui!” Pra você vê a situação, o Ceará nem ajudante tinha, ele subia no forro pra puxar um fio e ficava ali fora pra um ou outro que passasse por lá entregar a perna do fio pra ele; e eu tava pintando largava o meu serviço e ia lá ajudar ele. E a gente foi fazendo uma amizade tão grande que depois o Ceará me disse: “Rapaz, vai haver concurso aqui!” Foi o primeiro concurso que houve na Unir, foi em oitenta e oito, antes você chegava lá e entrava pela janela. Aí eu dizia pro Ceará, “Ceará a prova aqui é muito difícil, minha escolaridade só é até a quarta série”. Mas aí ele dizia: “não rapaz, pra trabalhar de ajudante aqui quarta-série é suficiente”. Aí eu disse e agora? Mas eu não tinha o comprovante da quarta-série, tinha que ter o comprovante. Um comprovante que provasse, um histórico escolar que provasse que eu tinha a quarta-série. Aí eu... naquele tempo telefone não tinha, minha mãe morava num sítio. Aí o que que eu fiz? Tive que escrever umas linhas e mandei pra minha mãe, pra ela urgentemente 76 procurar lá com a diretora o meu histórico escolar e mandar que eu tava precisando... Eu sei que a inscrição ficou aberta durante um mês, eu fui o último a me inscrever (risos). E só tinha uma vaga pra três candidatos. Só que no dia da prova, dos três candidatos que se inscreveram só eu compareci (risos...). Rapaz aí foi, aí sei que eu fiz a prova e... mas era muito pouco o salário, quando eu recebi o primeiro pagamento me deu um desgosto porque na construção civil eu ganhava o triplo. Aí eu pensei “e agora, o que é que eu faço?” Solteiro, acostumado na farra... eu pegava assim, digamos assim cem reais, e gastava em uma semana o que era pra durar um mês. Aí, às vezes batia aquele pensamento de voltar pro Nordeste, mas eu digo “não... eu vou é ficar por aqui que é essa a oportunidade que eu vou ter pra estudar!” Mas aí pra complementar minha renda o que é que eu fazia? Fui trabalhar de garçom, trabalhava de segunda à sexta na Unir e sábado e domingo ia trabalhar de garçom num forró lá no Tancredo Neves, o nome era “Forró do Chico”. Mas rapaz, lá tinha um negócio dumas brigas... que quando começava... era uma tal dumas brigas de gangue, aí o tempo fechava! E os seguranças lá pra botar aqueles caras pra fora eram os garçons. Aí se juntavam os garçons e iam lá... e rapaz não era brincadeira! Aí eu disse: “Rapaz, eu não tô sendo pago pra brigar não!” Os garçons também apartavam briga! Teve muitos colegas meus que acabavam é apanhando porque tinham que ir junto com os seguranças (risos) o tempo fechava mesmo. 4.4 Os estudos Eu sei que eu saí de lá, de trabalhar de garçom, eu digo: “rapaz não é isso que eu quero não.” Aí foi passando, e a gente vai se estabelecendo né? Vai arrumando estabilidade e tal... Aí eu comecei a estudar, fui fazer supletivo no Padre Morete. Só que no Padre Morete eles só faziam banco de questão, ou então modular, eu digo não! Aí um colega meu disse: “Rapaz, eu tô estudando no Sesc, vamos pro Sesc!” Aí me matriculei no Sesc, aí comecei a estudar no Sesc. Eu comprava os módulos, ia lá e estudava em casa. Era tipo uma apostilinha, ainda hoje eu tenho um bocado aqui em casa: de português, de matemática, ciências, geografia... Eu sei que eu batalhei muito ó! Matemática, quando eu não ia bem na matemática tinha vezes que eu fazia o módulo três vezes, quatro vezes... O meu professor foi o Tito. Mas eu sei que eu consegui. Você vê que é tanta emoção que eu chorei no dia de receber o certificado de 77 oitava-série. O do segundo-grau eu não senti tanta emoção não, mas o da oitava-série foi sofrido ó! Não foi fácil não, eu trabalhava no campus da Unir, aí eu saía da Unir seis horas da noite... ia pro Sesc, aí do Sesc estudava lá, fazia prova e depois pegava dois ônibus, um ônibus do Sesc pra Sete de Setembro e depois outro da Sete de Setembro pro Tancredo Neves. Eu nessa época morava lá no Tancredo e o ônibus era lotado, chegava em casa lá pra meia-noite. E aí eu sozinho pra fazer janta, como é que eu fazia? Não tinha jeito não, eu pegava um pão, alguma coisa, um ovo e comia e assim ia tocando a vida... Aí veja bem, a gente morava num barraco lá duma tia da gente, morava em nove. Eram nove pessoas que moravam lá. A gente trabalhava na construção civil né? E aí eu comprei um terreno depois do Tancredo, lá no JK numa invasão (risos). Comprei um terreno e eu digo: “rapaz, vou fazer um barraco e vou morar aqui!” Eu queria ter o meu lugar né? A gente tinha as namoradas da gente, e a namorada não ia pro barraco que só tinha homem né? Aí rapaz, era uma situação, nem energia tinha, aí a gente dormia no meio dos carapanã, era muito carapanã ó! A rede, eu dormia em rede, a rede amanhecia assim que parecia uma sangria, desse jeito... horrível... Rapaz, e quando às vezes eu levava a rede pra lavadeira ela dizia: “Rapaz, o que foi isso? Enfiaram a faca em tu ontem a noite? A rede toda cheia de sangue...” (risos) Eu digo: “rapaz, é o carapanã!” Mas é que o bicho era feroz mesmo!!! Mas era por causa das lâmpadas... não tinha energia, não tinha ventilador, não tinha como! Aí tá, e nisso eu ficando lá pela Unir, trabalhando tal... aí quando foi em 88, não em 90, teve outro concurso. Aí eu já fiz o concurso interno e passei, passei pra pintor, que como pintor mesmo eu já trabalhava, mas a minha função mesmo era “auxiliar operacional”. Quando eu vi o nome da função eu pensei: “rapaz, o que é que eu vou operar aqui dentro? Tem alguma máquina que eu possa operar?” Que nada, era pra carregar mesa, ajudar pedreiro, era isso. Aí quando eu fiz o concurso pra pintor e passei, aí melhorou meu salário né? E aí eu entrei com uma profissão. Aí eu continuei estudando, nisso eu tinha concluído a oitava-série, aí fui fazer o segundo grau. Fiz contabilidade na Escola Rio Branco. Aí as condições já tava melhor né? Aí eu já tava casado, já tinha até um fusca já! Naquela época um carro era difícil, até os anos noventa, noventa e pouco era difícil carro. O mercado não tava assim como hoje, com essa facilidade de arrumar carro não. Então, quem tinha um fusquinha, um chevetinho, mesmo que fosse velho tinha que segurar ele e ir reformando que não era fácil comprar carro não. 78 Aí as coisas foram andando assim... depois eu fiz uns cursinhos, aí eu fiz vestibular da Unir; em dois vestibulares passei na primeira fase e dancei na segunda. O primeiro eu fiz pra História, passei na primeira, na segunda não passei... Foi o seguinte, a dificuldade que a gente tem quando a gente faz um curso como eu fiz, é na hora de escrever mesmo. Eu fiz a oitava-série num supletivo e a gente não praticava redação. Fiz também o curso técnico e também não lembro, não tenho nenhuma lembrança da professora ter passado pra gente fazer redação. Então, tudo isso dificultou pro vestibular. Eu conseguia passar da primeira fase, mas quando vinha pra discursiva eu caia, por três vezes foi assim. Mas o que eu acho que ainda me auxiliou um tanto foi a viola. Porque com a viola a gente nunca para de tá exercitando a mente, o raciocínio, né? É... a Cantoria é tipo um esporte da mente! Mas aí foi quando eu resolvi... o último vestibular de 2004 que foi em parceria com a Unir e a Uniron, quem não passasse na Unir tinha o direito de entrar na Uniron. E aí eu aproveitei e entrei na Uniron, tô lá fazendo o curso de jornalismo. Espero no próximo ano já tá concluindo né? E continuar a vida pra frente... 4.5 Lembranças da mãe e da serra de Luiz Gomes Minha mãe teve uma barrigada de três, se tivessem vivas elas seriam mais novas do que eu. Duas nasceram morta, e a que nasceu viva em menos de uma hora também já faleceu... É porque minha mãe trabalhava muito na roça, minha mãe lavava roupa nas pedras da cachoeira, pegava chuva no caminho da roça, uma vida sofrida... Minha mãe tá com 78 anos, se você vê ela e ela contar a história dela você se emociona... Rapaz, ela sofreu desse tanto pra chegar a essa idade... Um pessoal forte, resistente ó, muito resistente!!! E acabou que ela tá lá. A minha mãe, se você olhar pro meu cabelo e pro dela, eu tenho mais cabelo branco do que ela. A minha mãe, hoje, tá morando no Rio Grande do Norte, uma cidade de nome Luiz Gomes lá no Alto Oeste Potiguar. Eu tava vendo outro dia, eu entrei num site e uma jornalista fazendo um percurso pelo nordeste. Ela foi até Luiz Gomes e ela se encantou tanto com a cidade que apelidou Luiz Gomes de “Suíça Nordestina”. Isso porque é o seguinte, se você tá no sertão... a diferença do Nordeste pro Norte, é porque no Nordeste é mais ventilado. Agente por aqui é um calor que não é brincadeira, e lá já não é tão assim não. 79 Mas lá venta mesmo é nas serras, e aonde minha mãe mora é uma região de muitas serras: Serra de Luiz Gomes, Serra de São Miguel, Serra do Mel, Serra de Porto Alegre... Você tá aqui no sertão e de repente você vê uma serra lá, uma cidade em cima da serra. Rapaz... a serra lá é cheia de curva, aí os caras tomam uns gorozinhos de vez em quando e mete uma banguela no carro... Aí já viu né? Já morreu muita gente desse jeito. Lá no Nordeste o pessoal tem aquela tradição de quando morre uma pessoa botar uma cruz na beira da estrada. Eu me lembro que quando eu vou por lá eu pergunto pra minha mãe: “Ah mãe, quem foi que morreu aqui?” Aí ela diz: “Ah, foi fulano de tal.” Aí eu digo: “mãe, essa cruz aí?” “Ah, essa é de fulano de tal, lembra dele?” Isso é os caras na farra entendeu? A serra lá tá a 600 e poucos metros do nível do mar. Então, ela tá bem alta num tá? Pra você vê, o prefeito concluiu um mirante, hoje é o ponto turístico da cidade. Se você não botar uma capa você treme de frio, o vento chega e sopra mesmo, é muito bom ó! Lá tem muita produção de caju, castanha, manga, banana. A minha mulher até se admirou quando ela chegou lá que eu comprei as bananas, ela disse: “rapaz... essa banana é muito bonita!” Pois é, tá vendo aqui o tamanho das bananas? Isso aqui é da serra... muito produtiva a serra! Tem muita farinhada, muita goma. Você chega lá e o clima é totalmente diferente, parece até que você tá em Goiânia ou Brasília, é bem interessante... Então, minha mãe mora nesse lugar, é um lugar muito bom... sempre eu lembro de lá. A minha mãe é uma pessoa que batalhou muito, então tudo isso foi fazendo com que a gente tivesse realmente esse respeito por ela. Minha mãe sempre foi uma pessoa assim sabe, que todo mundo gosta dela. O meu pai havia assim, um pouco assim, de uns gostar outros não, que meu pai era meio polêmico. Mas minha mãe não, minha mãe é unânime! Até hoje o pessoal na nossa cidade vem do sítio, traz as coisas pra ela, dorme lá em casa. E nós fomos crescendo desse jeito. A consideração e o respeito que a gente tem, é coisa que eu não vejo por aí assim tão fácil não. Pra você vê, as minhas irmãs todas se casaram, numa boa, foram construir a família delas e estamos aí. Eu também tenho um irmão em Brasília que também já tem a família dele... E eu tô por aqui, mas sempre tô falando com eles... 4.6 A Cantoria Nordestina em Rondônia Em 88, quando eu cheguei em Porto Velho a família do Xexéu já tava morando por aqui. O Xexéu não tava aqui, ele tava pra Manaus, mas a família dele tava por aqui, mas tinha o 80 Rouxinol que cantava com ele. O Rouxinol tem mais ou menos a minha idade. Ele é filho de nordestinos, ele já nasceu aqui, mas tanto o pai como a mãe dele são nordestinos. A mãe dele ainda é viva, mas o pai já é falecido. Ele e o Xexéu trabalharam juntos nas Casas Pernambucanas, trabalharam na Auto Santo que hoje é Norte Malhas. Aí o proprietário da Norte Malhas era muito fã de Cantoria. E o Rouxinol conhecia lá esse cara, Zé Fernandes o nome dele. Aí eles vinham à noite me pegar pra eu ir cantar na casa dele, era uma mansão que tinha ali no bairro liberdade. E a gente ficava lá até mais de meia-noite, quando terminava ele enfiava a mão no bolso dava um cachê pra cada um. Ai eu digo: “rapaz, isso aí é que é profissão!” Eu passava a semana todinha trabalhando de servente e digamos que eu ganhasse é... cinqüenta reais, ele enfiava a mão no bolso e me dava cinqüenta. Eu digo, isso é que é profissão!!! Quando é que eu vou ganhar uma coisa dessas, nunca! Aí eu ficava, aí ele me pegava, aí vinha e me deixava depois. Eu lembro dele naquela época um carrão do ano assim, ele era cheio de pulseiras de ouro. E foi assim que eu conheci o Zé Fernandes, aí depois eu ia na loja dele fazer compras. Com ele era tranqüilo, a gente podia comprar numa boa, não precisava fazer cadastro nem nada. Mas aí ele chegou a falecer... mas foi uma pessoa que ajudou muito a gente. O Rouxinol mesmo trabalhou muito tempo com ele. Então, o Rouxinol era empregado, e por não ser da região também, não tinha aquela tradição de levar a sério à questão da viola. É tanto que o Rouxinol depois com o tempo até parou de cantar. Mas aí o Xexéu sabendo que eu tava aqui, que ele tava em Manaus porque não tinha Cantador pra cantar com ele aqui na noitada. Mas aí quando ele chegou aqui, apesar de eu também já tá empregado eu nunca quis largar a viola. Às vezes, não dava pra fazer Cantoria nos dias de semana, mas nos finais de semana eu nunca abandonei. Era direto, de sexta-feira até domingo a gente tava por aí cantando e isso marcou muito. Eu e o Xexéu começamos a cantar em 88, naquele tempo era muito difícil o transporte, a gente saía pra cantar nos bairros e aí depois de meia-noite não tinha mais ônibus. E às vezes quando não tinha algum colega que desse uma carona pra gente, a gente tinha que vim a pé mesmo. E com isso, muitas vezes nós pegamos carona até com o pessoal da viatura, da polícia militar. É que aqui em Porto Velho tem muitos policiais do Pernambuco né, que gostam da Cantoria, e eles ficavam passando por lá. E dava uma parada no carro, assistia a cantoria e às vezes coincidia que a gente tava saindo e eles passavam e davam carona pra nós. Quer dizer, se 81 algum conhecido visse a gente podia até pensar: “o que que esses caras aprontaram por aí, tão indo preso”, né? (risos) Então, foi muito bom, a gente cantava nos bares, na casa de algum nordestino, e nisso a gente ia fazendo muita amizade, não tinha tempo ruim. E aí depois com o tempo foi-se arrumando transporte, passamos a ficar mais conhecidos, fomos conquistando espaço. A gente cantou muito na noite por aí. Nós podemos dizer que fomos os pioneiros em Porto Velho. Podemos dizer até do estado de Rondônia que, hoje, pra esse pessoal que gosta da Cantoria, nós somos conhecidos em Guajará Mirim, Pimenta Bueno, Ariquemes, Jarú. Aqui por Rondônia aonde você vai que tem nordestino e gente que gosta da Cantoria, você ouve falar dos repentistas Xexéu e Graúna16. Acho que ainda tem muita gente que lembra da gente. Quando a gente chegava num lugar a primeira coisa que a gente fazia era ir pra rádio, a rádio da cidade. Ia lá, fazia uma apresentação e assim a gente divulgava o trabalho. O Xexéu sob esse ponto aí é um cara que se dedica muito, ele sempre foi dedicado à Cantoria. Eu também sempre fui, sempre defendi a Cantoria Nordestina, mas só que devido o meu emprego eu não podia fazer o que ele fazia. Ele vivia diariamente da viola e... por aí, mas o importante é que a gente continua... Nós tivemos um programa na rádio Tropical, rádio AM. Isso foi na época de 90, 92 por aí. Foi o período que veio um Cantador do Ceará, Zé Ricardo e ficou com a gente também por uma boa temporada. Depois, fomos pra Eldorado que hoje é uma rádio evangélica, Boas Novas é a antiga Eldorado. Aí ficamos um tempo fora do rádio, aí quando surgiu a Transamazônica a gente ocupou aquele espaço ali de 2000 até 2005, depois a gente passou pra Caiarí. Na época da Caiarí foi quando o Xexéu resolveu dar uma volta no Nordeste (risos) e já vai fazer dois anos que ele ta pra lá. Então, nós fizemos quatro rádios com a Caiarí. Televisão nós fizemos já várias vezes, TV Rondônia já nos mostrou umas três, quatro vezes. Teve também um programa que tinha na TV Norte, o apresentador era o Paulo Benito, lá também nós nos apresentamos umas três vezes. Fizemos o lançamento do nosso CD no programa do Paulo Benito que é um programa de entrevista. E com isso a gente ficou muito conhecido. Aí o nosso CD que é “O país que nós queremos” foi uma proposta muito boa que a gente teve, que a gente já tinha esse projeto de fazer 16 Matias Neto inicialmente utilizou o nome artístico de Graúna, posteriormente por motivos pessoais resolveu utilizar o seu próprio nome. 82 esse CD. E a gente já induplado esse tempo todo... o Xexéu já tinha gravado com outros Cantadores mas comigo nunca tinha dado certo. Então eu falava pro Xexéu: “se um dia a gente gravar vamos fazer um trabalho que pelo menos chame atenção!” E graças a Deus deu certo! Tem duas faixas no CD que são as que o pessoal mais comenta. Uma é um trabalho meu, e a outra é um trabalho dele. Uma é o “país que nós queremos” que é a sextilha do CD; e a outra é o “sertão em duas fases”, que é um trabalho que a gente fala em dez, feito em dez linhas, que é o sertão inverno e verão, como é a fase de cada um. Então, essas duas faixas são as que o pessoal mais comenta. Graças à Deus tá saindo muito bem o CD. Às vezes, quando eu to com o CD, o pessoal compra mesmo, procura. Às vezes, eu digo quais são as lojas que têm o CD e assim a gente vai divulgando o trabalho. E agora tem outra proposta pra um CD, vamos ver se a gente consegue fazer, se não for pra esse ano, até o meio de 2008 vamos vê se a gente consegue né? Porque com o CD o artista não consegue ganhar dinheiro não, mas é uma forma da gente ficar reconhecido e também de divulgar a Cantoria. A Cantoria fala de tudo, pela Cantoria o poeta tem sempre alguma coisa pra dizer. E quando a gente tem um programa no rádio e tem um trabalho publicado, fica mais fácil do público enxergar. Nem todo mundo sabe o que é um pé-de-parede, a maioria das pessoas não sabe. Isso é uma experiência que a gente já tem e sabe disso, a gente tem que tá realmente preocupado em fazer esse trabalho de gravar. Pensar em ganhar dinheiro não ganha não. Até os Cantadores famosos também falam que eles não ganham dinheiro com CD, o que dá dinheiro são os shows. Mas pro cara ficar conhecido tem que ter um trabalho publicado. 4.6.1 A Cantoria em Rondônia antigamente Antigamente tinha mais pé-de-parede aqui em Porto Velho. Tinha mais porque nós pegamos Rondônia numa época do garimpo, o auge do ouro. Tinha muitos garimpeiros e muitos nordestinos e esse pessoal quando vinham dos garimpos, eles procuravam a gente mesmo. Eles ficavam dois três dias na cidade, às vezes uma semana. E me lembro que tinha um cidadão aqui por nome de José, a gente chamava ele de Zé Gordo porque ele era meio forte, o apelido dele era Zé Gordo. Os garimpeiros, até conhecidos do Xexéu, que vieram do Ceará, quando vinham do garimpo ficavam de três a quatro dias na casa dele bebendo e assando carne. E esse Zé Gordo levava nós pra lá e a gente ficava de sexta, 83 sábado e domingo com eles cantando direto! E assim a notícia que tinha Repentista em Rondônia se espalhava pelos garimpeiros, e quando eles vinham do garimpo eles procuravam agente pra ficar com eles. Então, a moeda era boa e um cachê bom... aí a gente cantava mais. Hoje em dia o negócio do garimpo acabou, mas eu acho também que é até uma questão de divulgação sabe? Eu às vezes acho que se a gente fizesse um trabalho de mídia melhor, se se aproximasse do pessoal... eu acho que o público tá aí, só depende da gente saber fazer os contatos. Por exemplo, a gente tem a idéia de um projeto “cantoria na escola”, é um projeto interessante. Mas a gente precisa provocar o poder, provocar os políticos, provocar os vereadores pra que esse projeto seja aprovado na câmara. Porque o público jovem, se fala assim ah... o jovem não gosta de Cantoria, não é bem por aí não! As vezes que a gente tem cantado nas faculdades e em escolas, a reação é totalmente positiva! Pra eles é uma coisa nova, é o novo, é uma criatividade. O pessoal quer isso, foge da mesmice né? Então, só falta divulgação mesmo, é isso que falta. Mas de qualquer forma a Cantoria pé-de-parede ainda tá presente em Porto Velho, é muito difícil a gente ficar mais de quinze dias sem fazer um baião. E é bom demais, cantar até altas horas, exercitar a cabeça... É uma pena que aqui em Porto Velho tem poucos Cantadores... Mas, a gente faz a nossa parte. 4.7 Casos de Cantoria Teve uma vez que nós fomos cantar em Nova Mamoré, a gente chegou lá por volta das três horas da tarde de sexta-feira, aí oito horas da noite começamos a cantar e só paramos às 4 da manhã (risos) por que não dava pra aguentar mais. Aí, a gente cochilou um pouquinho, quando foi 10 horas da manhã o rapaz abriu o bar e já tinha gente querendo Cantoria de novo, aí foi até dez da noite. Resultado, foram 12 horas de Cantoria direto. Foi um dos rojões mais pesados que eu já passei, e a gente se aguentou porque a gente realmente tinha um compromisso com o público. E o dono do bar assava carne, e trazia cerveja, e bate papo e pede um mote, pede uma sextilha, pede uma canção. E o dinheiro caindo na bandeja. Foi uma Cantoria muito boa essa. Isso são coisas que é pra você vê como é que é o Cantador. Agente faz uma apresentação de 5, 10 minutos e o pessoal acha que é só aquilo ali. Pensa que em 5 minutos o Cantador esgota, 84 mas não esgota mesmo! Como eu contei pra você, que nós cantamos da noite de sexta até às 4 da manhã; e no outro dia começamos às 10 da manhã e fomos parar só às 10 da noite. E num foi coisa repetida não! Foi o pessoal pedindo mote, pedindo estilo, pedindo tema e a gente buscando. Então, é uma fonte inesgotável a do Cantador de viola. Às vezes, uma apresentação de 10 minutos pode até ser um trabalho pronto. Mas a Cantoria mesmo, do Cantador mesmo de verdade é o pé-de-parede que você segura três, quatro horas ali cantando sem parar. E quanto mais você canta mais tem facilidade, mais o raciocínio fica rápido pra você buscar as palavras. Então, esse é o lado do Repentista, essa fonte inesgotável! Isso que eu te contei é uma prova, nós superamos... eu achei que ia ficar rouco e tal, mas não. E a gente conseguiu numa boa, e conseguimos cantar! Se você pensar aí ó, de 8 da noite até 4 da manhã do outro dia, aí você dormir um pouquinho e começar às 10 horas e ir até as 10 da noite... dá um tempo né? Dá uma média de umas 20 horas, foi um pega mesmo! O pessoal tava era com saudade das coisas do sertão! O que acontece é o seguinte, aqui em Rondônia tem gente de todos os estados. E você vai pra um lugar como Guajará Mirim, como Nova Mamoré, aí é composto de cearense, de paraibano, de rio grandense, de pernambucano, de piauiense... E cada pessoa que chegava daquela colônia, chegava uma colônia de piauiense, por exemplo, chegava uma outra de paraibano, aí cada um que ia chegando ia pedindo as coisas do seu lugar. E assim a gente ia cantando... e pediam vaquejada, e pediam mote falando do lugar dele e tal, e foi desse jeito que a gente segurou essa barra. Você conhece a canção “casa amarela” né? A canção “casa amarela” é uma das canções hoje mais solicitadas, mais completas. Mas por quê? Isso é porque o pessoal que vem embora do nordeste, geralmente, é um pessoal humilde, é um pessoal que deixou lá pelo Nordeste o pai, a mãe... Aquela casinha lá aonde eles nasceram, todo mundo junto. Então, o pessoal tando fora do Nordeste quando é final do ano eles resolvem se juntar. Aí vem um de Manaus, outro do Pará, Rondônia, se reúnem na casa de um dos parentes e fazem aquela festa! Esse é o lema da canção casa amarela. Aí, o pai mata um porco, mata um bode, convida a vizinhança; e recebe os filhos... aí faz uma Cantoria! Então, quem tá fora como eu, como outros que deixaram a sua terra, tem essa lembrança. 85 Então, quando você encontra um repentista, ou então um sanfoneiro daqueles pé-de-serra mesmo que vem de lá do Nordeste, então você começa a viajar... seu pensamento viaja a mil. Então, é isso que faz os ouvintes pedirem as coisas pro Cantador cantar, é pra poder recordar... Lembrar daquele jumentinho que você andou montado, o cara hoje ta de carrão né? Mas ele lembra daquele jumentinho que andava, que carregava água, carroça, entendeu? Então, tudo isso acontece! Você vê, o cara hoje às vezes tem até uma casa boa, mas num esquece da casinha de taipa que morou... O nordestino tem muito isso... dizem que é sofrer duas vezes, mas a gente lembra, não tem jeito, não tem como não lembrar. Assim como o rico lembra do palácio dele, o pobre também lembra!!! O extrato social mudou, mas num tem como, porque ficou lá o primo, ficou a tia, até a mãe às vezes tá por lá. Então, ele lembra de voltar, de comer aquela comidinha por lá, aquela buchadinha de bode, aquele cuscuz (risos), por mais que o cara melhore ou piore num vai esquecer isso nunca! Tá no sangue, isso é do ser humano mesmo... E o cantador retrata isso muito bem nos seus trabalhos, faz com que o caboclo até chore!.. Outra canção que meche muito com o nordestino também é aquela “saudade dos meus pais”. “Saudade dos meus pais” é aquela canção que fala da casa pobre né? Daquela casinha da gente, que faltava dinheiro, mas sobrava felicidade! Ela é assim: Seria bom, seria bom demais se eu voltasse a ser criança pra viver de esperança lá na casa dos meus pais... Como era linda a casa pobre da gente, notei que o amor somente ali podia existir anoitecia a dormida eu procurava, papai no quarto cantava pro seu caçula dormir... Eu aprendi fazer o que ele fez aí meu Deus como eu queria ser criança outra vez... Como era bom, seria bom demais, se eu voltasse a ser criança pra viver de esperança 86 lá na casa dos meus pais... Quando papai ia batendo na gente, mamãe tomava a frente ninguém apanhava mais ela dizia: dá em criança é perigo e o que mamãe fez comigo outra pessoa não faz pobre demais sofri necessidade era faltando riqueza e sobrando felicidade... Seria bom, seria bom demais, se eu voltasse a ser criança pra viver de esperança lá na casa dos meus pais... Como eu queria na quentura da fogueira, casar só de brincadeira pensando que era verdade. E sem maldade fui crescendo, fui crescendo parece que estou vendo tudo como aconteceu papai morreu a terra os donos venderam e os que ainda não morreram estão velhos como eu... Seria bom, seria bom demais, se eu voltasse a ser criança pra viver de esperança lá na casa dos meus pais... Isso é uma letra do João Lourenço! Poeta muito bom o João Lourenço... A maioria das vezes que eu canto essa canção às pessoas se emocionam. Já aconteceu de gente me vê pela rua e dizer: “rapaz, aquela canção que você cantou lá pra mim, olha... assim, assim... emocionou!” então, essas coisas me marcam demais. 87 CAPÍTULO 5 – CANTORIA NORDESTINA E LEITURAS GEOGRÁFICAS Presente de mãe Pedro Bandeira Mãe padroeira das raças sombra que alivia as dores árvore das ramas espaças cobrindo o mundo de flores forte amazonas sem pausas a divulgada das causas de tudo que aconteceu dama, alfaiate e maestra escrava, rainha e mestra do filho que Deus lhe deu... Quando o sol rasgava a peça dos lençóis do firmamento você fazia depressa o meu primeiro alimento quando parava o chuveiro eu pulava no barreiro como quem vai se banhar tudo em casa eu quebrava mas você não reclamava para não me ver chorar... Deusa do nosso convívio arquivo do meu altar eu nunca lhe dei alívio nem direito de gozar ninfa do meu mar sem ondas lâmpada das noites redondas bússola que mostra o perigo véu que cobria meu berço eu morro mas não esqueço o que você fez comigo... Eu de camisa sem manga calça curta e pele fina olhava minha fianga estendida na faxina meu lençol branco molhado você com todo cuidado esquentava no fogão dizendo de olhar vazio eu posso dormir no frio mas o meu filhinho não... De noite você cantava triste como uma viúva sua voz se concertava à voz sonora da chuva quando o trovão tenebroso rangia espalhafatoso você parava pra ouvir eu chorava e lhe chamava e a minha insônia não dava direito a você dormir... O crime que mais impede de no homem acreditar e ver uma mãe que pede a quem se nega de dar é triste pra natureza e é triste como a tristeza duma tristeza infantil eu não resolvo o problema mas ofereço um poema a todas mães do Brasil... 88 CAPÍTULO 5 – CANTORIA NORDESTINA E LEITURAS GEOGRÁFICAS Esse capítulo se dedica à leitura geográfica da Cantoria Nordestina. É aqui que tem início a análise da História Oral de Matias Neto. Visando o enriquecimento tanto teórico quanto empírico dessa análise, optamos por fazê-la de forma inter-relacionada com o conhecimento gerado através da Pesquisa Participante. Ou seja, de forma concatenada com a análise da História Oral, estaremos ampliando a perspectiva para o contexto social e espacial da Cantoria Nordestina. As narrativas cantadas de improviso entrarão como elemento chave nessa análise, sendo utilizadas constantemente para a contextualização da dinâmica do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Convém esclarecer que nesse trabalho será dada ênfase aos modelos de Cantoria Nordestina denominados “pés-de-parede”, por dois motivos básicos: 1) em Porto Velho-RO, a grande maioria das apresentações dos Cantadores se enquadram dentro dessa categoria; 2) é justamente nas Cantorias pé-de-parede que as inter-relações dos atores participantes do evento acontecem de maneira mais direta e espontânea. É justamente nesse formato de Cantoria que as intersubjetividades fluem de maneira mais intensa, ou seja, é nesse formato de apresentação que o espaço vivido da Cantoria Nordestina é mais explícito e pode ser melhor analisado. Inicialmente, delinearemos o que são os pés-de-parede, para isso as suas principais características serão apontadas. Em seguida terá início a análise da História Oral de Matias Neto, que será desenvolvida através de blocos temáticos. Essa análise está dividida em duas partes (capítulo 5 e 6), ela foi assim dividida devido à necessidade de aprofundamento do conceito de espaço vivido da Cantoria Nordestina. 5.1 Os Pés-de-parede Os Cantadores podem se apresentar em diversas ocasiões: eventos, festas, comemorações de aniversários, em escolas, em festivais, etc. Mas é nos denominados “pés-de-parede” que o contato público/Cantadores acontece de maneira mais direta e mais espontânea. Os pés-de-parede são as apresentações consideradas mais “tradicionais” da Cantoria. Eles remontam o formato das antigas Cantorias realizadas no sertão nordestino. 89 Tudo inicia-se através de um acordo firmado entre Cantadores e apologista, é marcada uma data e local para a realização da Cantoria. Após esse combinado, apologista e Cantadores se encarregam de convidar as demais pessoas. O convite é externalizado principalmente a pessoas já conhecidas, pessoas consideradas amigas e que gostem da Cantoria. Observem que desde o princípio da organização do evento, a Cantoria Nordestina já possui uma função social de aproximar pessoas que têm algo em comum, a apreciação pelo Repente. Muitas vezes, essas pessoas têm origem nordestina, mas isso não é regra, em muitos casos amigos de participantes são convidados para conhecer e passam a serem freqüentadores assíduos. A divulgação do evento é feita de maneira bastante simples, de “boca em boca”; utilizam principalmente o telefone e em alguns casos, quando os Cantadores estão se apresentando em programas de rádio ou televisão aproveitam para anunciar o evento. Uma Cantoria pé-de-parede se diferencia de outros tipos de apresentações por diversas razões, as principais delas são: o tempo de duração do evento; a maneira como é estabelecido o cachê dos Cantadores; e a dinâmica do contato intersubjetivo público/Cantadores. Vamos nos concentrar nesses três pontos. a. O tempo de duração Quando os Cantadores se apresentam em algum clube, ou escola, por exemplo, a apresentação tem em média de 15 a 30 minutos de duração; e a maioria das pessoas não conhece a fundo o que é a Cantoria Nordestina. Ou seja, as inter-relações estabelecidas são mais superficiais. Já o pé-de-parede tem em média uma duração de 3 a 5 horas, e as pessoas participantes normalmente entendem melhor as regras da Cantoria (CAPÍTULO 3) e seu funcionamento. Aos que ainda não estão familiarizados com a dinâmica do evento, a sua temporalidade e informalidade características lhes possibilitam um gradativo entendimento. Com três, quatro, ou cinco horas, os atores têm mais tempo para vivenciarem a experiência da Cantoria Nordestina. A informalidade potencializa a espontaneidade, isso gera maior fluidez nos processos comunicacionais entre os atores. A própria dinâmica do espaço vivido da Cantoria Nordestina possibilita aos atores não-familiarizados um certo entendimento. Ao observar os pedidos dos ouvintes por exemplo, esses atores já passam a identificar que existe uma comunicação direta entre ouvintes e Cantadores. Nesse sentido, os apologistas têm também uma função importante, são eles os principais atores que explicam sobre as regras e funcionamento da Cantoria. 90 b. O cachê dos Cantadores Em outros formatos de apresentação que não os pés-de-parede, o cachê dos Cantadores é acertado previamente. Já nos pés-de-parede, o cachê dos Cantadores vai ser pago através do sistema da “bandeja”. Mas o que é esta bandeja? O início de uma Cantoria pé-de-parede dá-se da seguinte maneira: É escolhida uma posição estratégica para os Cantadores, um lugar com boa acústica, onde eles possam ser bem visualizados e ter uma boa visualização. Eles sentam lado a lado, próximos um do outro. Depois de afinadas às violas, a Cantoria começa. O primeiro baião17 sempre é uma sextilha, livre, sem tema definido, eles estão se concentrando... buscando “inspiração”. FOTO 02 - CANTADORES E A BANDEJA, CUSTÓDIO QUEIROZ (esq) E MATIAS NETO (dir) Fonte: foto feita pelo autor em 29/02/08, em Porto Velho-RO. 17 O termo “baião” tem duas acepções dentro do contexto da Cantoria Nordestina: 1) ele designa o ritmo característico do repente, o “baião de viola”. Por exemplo, ao se referir a um iniciante que já tenha aprendido a tocar a viola nos moldes exigidos pela Cantoria, os Cantadores podem afirmar: “ah, ele já sabe tocar o baião de viola” ou “o baião dele está bem tocado”; 2) os Cantadores se referem à palavra baião em sentido quantitativo. Ou seja, qualquer modalidade tocada e cantada inteira é um baião. Por exemplo, eles costumam dizer que o primeiro baião da Cantoria é sempre uma sextilha. Ou, pode acontecer de um ouvinte fazer um pedido e eles responderem: “tinha um outro pedido na frente, mas no próximo baião a gente canta o seu pedido”. 91 Após cantarem o primeiro ou o segundo baião, o promovente18 da Cantoria anuncia que vai colocar a bandeja. A bandeja é colocada próxima aos Cantadores e o promovente faz a primeira contribuição financeira na bandeja, o que sinaliza a abertura oficial da Cantoria. A partir daí, os pedidos de motes, estilos ou assuntos dos mais variados estão liberados. Normalmente, os pedidos são acompanhados de contribuições. Essas contribuições são espontâneas, ninguém que vá a uma Cantoria pé-de-parede é obrigado a contribuir; (a não ser o próprio apologista promovente do evento, o que já faz parte do próprio ritual da Cantoria). Os Cantadores também não atendem somente pedidos pagos. Foi presenciado inúmeras vezes, pessoas que fizeram pedidos sem terem colocado dinheiro na bandeja e os Cantadores terem atendido. A bandeja funciona como uma espécie de intercâmbio entre os Cantadores e o público. Um ouvinte ao se aproximar da bandeja para fazer sua contribuição, ele automaticamente se aproxima dos Cantadores. Nesse momento, o ar de simpatia e reciprocidade entre ambas as partes é grande. Os Cantadores ficam atentos a um possível pedido; e o ouvinte se sente acolhido, porque os Cantadores lhe dão atenção especial. É muito comum logo após uma “paga” na bandeja, os Cantadores em seus improvisos falarem carinhosamente do ouvinte e de pessoas acompanhadas a ele. c. O contato público/Cantadores O contato entre público e Cantadores dentro de uma Cantoria pé-de-parede é o traço mais marcante e complexo do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Complexo, porque é através desse contato intersubjetivo, o qual é mediado através dos códigos de comunicação, que diversos elementos como memória, sentimentos e representações são trabalhados simultaneamente. Todo esse processo tem por eixo o que é o cerne da própria Cantoria Nordestina, que é o cantar de improviso. O cantar de improviso dentro do contexto social da Cantoria Nordestina tem uma íntima ligação com os pedidos do público. São os pedidos, as provas máximas da legitimidade do improviso. Ao cantarem os pedidos (os quais são portadores das temáticas mais inesperadas) os Cantadores comprovam ao público a autenticidade de suas improvisações. E é justamente através dos pedidos que eles desenvolvem as suas narrativas cantadas no decorrer de toda a apresentação. 18 Esse promovente, na grande maioria das vezes, é um apologista dono do estabelecimento aonde está sendo realizada a Cantoria pé-de-parede, ou o dono da residência. 92 Assim, os Cantadores, durante todo o processo, estão atentos às respostas do público, eles esperam serem incentivados; já o público, de maneira geral, a sua expectativa está voltada ao caráter lúdico da Cantoria e a sua capacidade própria de emocionar e fazer relembrar entes queridos e a terra natal. Ou seja, existe uma inter-relação dialógica no contexto sócio-espacial da Cantoria. FOTO 03 – UMA OUVINTE MANIFESTANTO SEU AFETO PELO CANTADOR CUSTÓDIO QUEIROZ. Fonte: foto feita pelo autor em 29/02/08, em Porto Velho-RO. Convém ressaltar, que na dinâmica interna do espaço vivido da Cantoria Nordestina existem inter-relações diferenciadas (fig. 1), essas diferenças estão caracterizadas sob os diferentes tipos de comunicação existentes entre os atores. Basicamente, essas inter-relações são de três tipos: as inter-relações Cantador/Cantador, as inter-relações público/Cantadores e as interrelações entre os atores do público. 93 FIGURA 01 – AS INTER-RELAÇÕES ENTRE OS ATORES DO ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA Fonte: desenvolvido pelo autor. A) Diálogo intersubjetivo entre os Cantadores: normalmente os Cantadores possuem muita afinidade entre si. Sua relação dentro do espaço vivido da Cantoria Nordestina é mediada, principalmente, através de suas narrativas cantadas de improviso. Através de suas narrativas eles desenvolvem uma espécie de diálogo cantado, esse diálogo é permeado de elementos próprios de sua cultura e de seu espaço. Ou seja, os Cantadores cantam sobre sua própria cotidianidade, suas visões de mundo, suas saudades, suas utopias, seus valores. B) Inter-relações público/Cantadores: é mediada principalmente através da dinâmica dos pedidos. Os atores do público pedem aos Cantadores o que querem ouvir, isso possibilita uma grande pluralidade de temas, o que enriquece a Cantoria. E reciprocamente, quando os Cantadores cantam os temas pedidos, eles constroem um elo com os ouvintes, adquirindo sua atenção e simpatia. Tendo por eixo os pedidos, além dos ouvintes contribuírem financeiramente com os Cantadores, eles contribuem empírica e simbolicamente com o funcionamento da própria Cantoria Nordestina. C) Inter-relações entre os atores do público: é mediada pelos códigos de comunicação. Considerando o caráter lúdico e descontraído da Cantoria, essa relação normalmente é pautada na cordialidade, no calor humano e na cooperação. A+B+C) Inter-relações entre os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. 5.2 Análise da História Oral de Matias Neto Geografia sanciona abordagens espaciais; e espaço, em níveis de análise mais avançados, sanciona “tempo”. Todo ser humano tem, presente em toda sua trajetória de vida, esses dois elementos indissociáveis, espaço e tempo... tempo e espaço. Inicialmente, todos têm um lugar de nascimento e uma data natalícia; essas na verdade, se configuram em uma das principais 94 características de cada indivíduo. O lugar de origem e o tempo de experiência de vida. O lugar de nascimento tem relação direta com o contexto sócio-cultural que será vivenciado pelo indivíduo; e o tempo de vida tem relação direta com as qualidades sensório-perceptivas do indivíduo. Matias Neto em sua narrativa perpassa constantemente por essas duas categorias, espaço e tempo. Matias é um narrador nato, a temporalidade e a espacialidade da sua história são ditadas por ele. Ele inicia a sua narrativa confirmando a sua identidade nordestina, a qual está ligada tanto a uma base material: o Nordeste; como a um conteúdo social: a família. A sua primeira frase é: “Eu sou de uma família nordestina, família de 14 irmãos ou melhor 13 irmãos, desses 13 só 6 se criaram.” (pág. 68). O eixo de sua narrativa se desenvolve basicamente entre o Nordeste e Rondônia. Na sua narrativa alguns aspectos são mais acentuados que outros. Dentre eles podem ser destacados: a família, a terra natal, a Cantoria Nordestina, o esforço em busca dos estudos e a vida em Rondônia. Entretanto, nenhum desses aspectos de sua história exclui o outro, na verdade eles se completam, se interagem constituindo a própria individualidade “Matias Neto”. Matias é um indivíduo, mas que se gerou dentro de um contexto sócio-cultural específico: ele é um nordestino, ele trabalhava na lavoura, ele é um migrante e é um Cantador. Isso dá a ele características que legitimam sua identidade. Matias, sob um determinado aspecto, não deixa de ser um representante de um “universo sertanejo”. 5.2.1 Família e terra natal Para Matias, a lembrança do Nordeste tem íntima ligação com as lembranças relacionadas à sua família. Falar do Nordeste é falar de sua família, e relembrar a sua família é relembrar o Nordeste. Essa interação mostra características relacionadas à própria concepção de lugar. O lugar não é simplesmente uma base material, ao lugar estão relacionadas qualidades simbólicas, e essas provêm das inter-relações sociais geradoras de significados. Assim, o Nordeste tem significado porque lá ele viveu, lá ele ouviu histórias contadas por seu pai, lá ele recebeu os carinhos e cuidados de sua mãe, lá ele teve os primeiros contatos com os Poetas Cantadores. É de lá que Matias traz os seus conhecimentos de vida e as suas concepções de valores. Uma das figuras mais presentes em toda a sua narrativa é a “mãe”. À ela, ele confere prestígios que não confere ao pai, segundo ele: 95 minha mãe trabalhava muito na roça, minha mãe lavava roupa nas pedras da cachoeira, pegava chuva no caminho da roça, uma vida sofrida... Minha mãe tá com 78 anos, se você vê ela e ela contar a história dela você se emociona... Rapaz, ela sofreu desse tanto pra chegar a essa idade... Um pessoal forte, resistente ó, muito resistente!!! (...) A minha mãe é uma pessoa que batalhou muito, então tudo isso foi fazendo com que a gente tivesse realmente esse respeito por ela. Minha mãe sempre foi uma pessoa assim sabe, que todo mundo gosta dela. O meu pai havia assim, um pouco assim, de uns gostar outros não, que meu pai era meio polêmico. Mas minha mãe não, minha mãe é unânime! (pág. 78-79) (grifos do autor) A imagem da mãe é um referencial importante na vida de Matias, ele a associa a características como: esforço pessoal, trabalho e resistência; traços que ele carregará consigo durante toda sua trajetória. Para Matias, trabalho é uma coisa que dignifica o ser humano; tanto é que ele reconhece os esforços da mãe, e é em parte esse reconhecimento que corrobora ainda mais o respeito que nutri por ela. Ao falar de sua mãe na atualidade, ele cita com freqüência o lugar em que ela mora, a cidade de Luiz Gomes. E esta cidade fica localizada em “uma região de muitas serras”; nesse contexto, ao lembrar da mãe, Matias conseqüentemente lembra da “serra”. Essa associação entre a figura da mãe e o lugar em que ela mora é constante: aonde minha mãe mora é uma região de muitas serras: Serra de Luiz Gomes, Serra de São Miguel, Serra do Mel, Serra de Porto Alegre... Você tá aqui no sertão e de repente você vê uma serra lá, uma cidade em cima da serra. (...) Se você não botar uma capa você treme de frio, o vento chega e sopra mesmo, é muito bom ó! (...) Então minha mãe mora nesse lugar, é um lugar muito bom... sempre eu lembro de lá. (pág. 78-79) (Grifos do autor) Matias afirma que sempre lembra do “lugar” em que a mãe mora. Existe uma associação muito forte entre as experiências vividas e a caracterização de lugar. “Os acontecimentos simples podem com o tempo se transformar em um sentimento profundo pelo lugar” (TUAN, 1983: 158). Um espaço qualquer passa a ser “lugar” a partir do momento que esse espaço adquire um “significado especial”; e esse significado é adquirido através da vivência, cada momento vivenciado é um momento único. Essas experiências vivenciadas deixam marcas na memória, as quais caracterizam lugares específicos. De acordo com Tuan: 96 Os lugares íntimos são lugares onde encontramos carinho, onde nossas necessidades fundamentais são consideradas e merecem atenção sem espalhafato. Há ocasiões em que até o adulto saudável anseia pelo aconchego que conheceu na infância. Que tranqüilidade se compara àquela de uma criança sentada no colo dos pais quando lhe estão lendo uma estória para dormir? (...) A afeição duradoura pelo lar é em parte o resultado de experiências íntimas e aconchegantes. (1983: 152-153) A família tem uma importância fundamental em como o futuro adolescente e o adulto irão encarar as diferentes situações da vida. Para Claval, “A família e a comunidade local constituem as matrizes que asseguram a transmissão de uma parte essencial da vida social” (2001: 119). A importância das figuras familiares (pai, mãe, tios, irmãos, maridos, esposas...) é variável de acordo com cada indivíduo. No caso de Matias, a figura materna é preponderante. Na Cantoria Nordestina, as referências à importância familiar também têm um destaque bem acentuado. Os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina constantemente abordam a temática família, principalmente nas figuras do pai e da mãe. Essa abordagem das figuras paterna e materna, na maioria das vezes, é relacionada simultaneamente com descrições do espaço nordestino. Todo esse processo acontece através das intercomunicações entre ouvintes e Cantadores. Isso é possível, justamente pelo fato dos Cantadores, constantemente, privilegiarem em seus improvisos temáticas relacionadas à memória e cotidianidade de seu próprio grupo. Para a melhor contextualização dessa dinâmica no espaço vivido da Cantoria Nordestina, serão mostrados dois repentes que foram cantados em Cantorias pé-de-parede, todos os dois em Porto Velho-RO. O primeiro é uma sextilha cantada por Matias Neto e Mozaniel Mendonça, em 11/08/07: De ser honesta e forte (Matias Neto) minha mamãe foi capaz de parir quatorze filhos dentre moças e rapaz e ensinar pra todos nós suas lições principais... Eu não esqueço meus pais meus irmãos e irmãzinha (Mozaniel Mendonça) 97 mãe temperando o almoço no fogão lá da cozinha e por mais que o tempo passe não esqueço minha mãezinha... A sua mãe e a minha (MN) todas duas nordestinas a vida não era fácil lá por aquelas esquinas mas todas duas criaram seus meninos e meninas... Elas cumpriram suas sinas (MM) com especial valor sua mãe pariu 14 minha mãe 17 gerou e é graças a minha mãe que hoje sou um cantador... A minha mamãe criou (MN) seus 14 sem perigo e foi só uma parteira que de todos cortou o umbigo e são todos do mesmo pai e todos parecem comigo... O segundo é o mote “meu passado é tão presente, que eu não consigo esquecer” o qual foi pedido por um ouvinte, aos mesmos Poetas na data de 29/02/08: Lembro a mãe que me pariu com seu gesto meigo e franco (Matias Neto) 98 hoje tem cabelo branco eu vi ela, ela me viu depois pegou e sorriu e com paz veio dizer meu filho aprenda a viver pois quero te ver contente meu passado é tão presente que eu não consigo esquecer... De papai eu lembro o grito (Mozaniel Mendonça) os conselhos e os baiões dele escutava os sermões do que é certo e bonito vejo pai no infinito orando pra eu vencer não sei porque eu vim viver nessa terra longe e quente meu passado é tão presente que eu não consigo esquecer... Eu me lembro do embalo da rede no meu terreiro me lembro até do vaqueiro em cima do seu cavalo me lembro o cantar do galo na hora do amanhecer quando mãe ia fazer um cafezinho bem quente meu passado é tão presente que eu não consigo esquecer... (MN) 99 Eu lembro lá do sertão (Mozaniel Mendonça) que nasci e me criei dos lugares que andei sem passar decepção e mamãe na ocasião que queria me bater pai vinha me defender ele ficava valente meu passado é tão presente que eu não consigo esquecer... Nesses dois exemplos, existe uma interação ouvintes/Cantadores, o público se identifica na narrativa cantada de improviso pelos Cantadores. Os versos “não sei porque eu vim viver/ nessa terra longe e quente...” traduzem bem a apologia que é feita à terra natal; essa, constantemente inter-relacionada com a convivência familiar. E “Eu me lembro do embalo/ da rede no meu terreiro (...) me lembro o cantar do galo/ na hora do amanhecer/ quando mãe ia fazer/ um cafezinho bem quente...” explicita novamente elementos característicos do lugar, como “a rede no meu terreiro” e o “cantar do galo”, os quais se misturam com a sociabilidade da presença materna. Sobre essa inter-relação entre a presença materna e a dimensão espacial, o geógrafo francês Armand Frémont faz a seguinte afirmação-interrogação: “O ninho materno é ao mesmo tempo invólucro, proteção, nutrição, comunicação... Não continuará o espaço a ser sempre um pouco isso?” (1980: 48) 5.2.2 O esforço em busca dos estudos e o Repente como estímulo social Matias Neto assemelha-se a muitos migrantes nordestinos que vieram pra Rondônia, com muita esperança e poucas condições materiais. O seu primeiro trabalho em Rondônia é no ramo da construção civil, atuando principalmente como pintor. Inicialmente, ele mora em uma residência que não lhe proporciona condições adequadas de habitação, tanto a nível de privacidade e conforto como de locomoção. Segundo ele, “Aí veja bem, a gente morava num barraco lá duma tia da gente, morava em nove. Eram nove pessoas que moravam lá.” (pág. 77). 100 Depois, com o objetivo de ter o seu próprio “lugar”, Matias compra um terreno em uma área “periférica” da cidade. “E aí eu comprei um terreno depois do Tancredo, lá no JK numa invasão (risos)... Comprei um terreno e eu digo: ‘rapaz, vou fazer um barraco e vou morar aqui!’ Eu queria ter o meu lugar (...)” (pág. 77). Matias, da mesma maneira que muitos migrantes oriundos do Nordeste e de outras regiões do país, se esforça para conseguir o seu lugar, ter um espaço que seja seu, aonde ele possa ter a sua privacidade e conforto, Matias anseia por um “lar”. Contudo, mesmo após comprar a sua casa, esta ainda não lhe dava as condições ideais de moradia. A casa não possuía energia elétrica, devido a isso ele sofria simultaneamente com o calor e com os ataques de pernilongos, os “carapanãs”. Pra quem não conheça a região Norte do Brasil, mais especificamente Porto Velho, talvez não compreenda o sofrimento que Matias passou apenas ao ler estas linhas. O calor em Porto Velho circula na média dos 28 ºC e a umidade do ar gira em torno dos 90%, ou seja, o suor não evapora do corpo com facilidade o que causa uma sensação desagradável. Os carapanãs são realmente violentos. Quando Matias descreve em sua narrativa, que levava a rede pra lavadeira e ela se impressionava com o sangue em sua rede; a olhos “estrangeiros” pode até parecer exagero, mas qualquer rondoniense que não viva “trancafiado” em quartos com ar-condicionado sabe que isso é a mais pura verdade. E por fim, a distância da sua casa para o centro da cidade, também era um fator que causava transtornos com relação ao deslocamento. Apesar de todas as dificuldades, na História Oral de Matias, percebe-se que ele enfrentou todos esses problemas com bom humor e inteligência. Ele acredita firmemente que os estudos são uma possibilidade de solução para os seus problemas. O esforço em querer estudar é uma característica marcante em sua narrativa. Segundo Matias, “Aí, às vezes batia aquele pensamento de voltar pro Nordeste, mas eu digo ‘não... eu vou é ficar por aqui que é essa a oportunidade que eu vou ter pra estudar!” (pág. 76) Matias em sua narrativa demonstra o quanto se esforçou para conquistar seus ideais. Pra muitas pessoas, um diploma de conclusão do ensino fundamental, um “certificado de oitavasérie”, pode não parecer muita coisa. Mas o geógrafo cultural, deve ter a capacidade de enxergar através das lentes de seu interlocutor, de adentrar nos meandros da culturalidade do outro para compreender a sua logissidade e sua significação. Matias aos 17 anos de idade tinha um campo de algodão e como ele mesmo disse, quando não tinha outra alternativa “ia é pra chibanca arrancar toco”. Matias, é antes de qualquer coisa um vencedor. E é a prova viva que, 101 empiricamente, razão e emoção são indissociáveis. Essas duas características intrinsecamente humanas são propulsoras de motivações e propósitos, e conseqüentemente geradoras de ações. A razão de Matias o manda estudar, buscar melhores condições; enquanto que sua emoção alimenta seus sonhos e enaltece a coroação de sua vitória. Segundo Matias, “Eu sei que eu batalhei muito ó! Matemática, quando eu não ia bem na matemática tinha vezes que eu fazia o módulo três vezes, quatro vezes... (...) Mas eu sei que eu consegui. Você vê que é tanta emoção que eu chorei no dia de receber o certificado de oitava-série” (pág. 76-77). (grifos do autor). Nesse momento, convém ampliar a perspectiva da experiência vivida por Matias Neto, para demonstrar as similaridades existentes entre a sua experiência e a experiência de outros atores também envolvidos no contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina. É relevante ressaltar que foi verificado em campo, que muitos dos atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina têm experiências de vida que se assemelham às de Matias. A maioria desses atores não tiveram condições ideais de acesso aos estudos. Dos Cantadores por exemplo, o que tem o maior grau de escolaridade é Matias Neto; João Azevedo tem somente a quarta-série, Custódio Queiroz também, e Mozaniel Mendonça não é alfabetizado. Nessa questão, porém, existe um ponto muito interessante que merece nossa atenção. Qualquer estudante de sociologia ou qualquer pessoa que tenha uma certa sensibilidade, sabe que os graus de escolaridade na sociedade ocidental-urbano-industrial possuem uma significância social. É aí que entra um ponto crucial, os Cantadores simplesmente não se incomodam com o seu baixo grau de instrução escolar. Por que? Um dos motivos, provavelmente o mais preponderante, é que a Cantoria Nordestina funciona para eles como um elemento de auto-afirmação social. Segundo Mendonça: Quando eu estava com 15 anos eu disse, eu vou ser Cantador! Eu vou ser Cantador, eu nasci pra ser isso, e vou ser isso! Mil novecentos e oitenta e cinco fui pra São Paulo, pro bairro de Osasco, município de Murubim. Nessa época havia a reunião dos nordestinos, aonde Sebastião da Silva se encontrava, Moacir Laurentino, Valdir Teles, Zé Cardoso, João Rosa... muitos Cantadores. E Terezinha de Jesus, a qual já é falecida; nós nos encontramos e cantamos por lá... A qual na época rimava viola com hora e achava que era rima. E eles me aplaudiam. E eu achei que era o ideal, mas não era. O ideal seria eu me esforçar mais e cantar mais! E eu me esforcei, e cantei, e Deus me deu uma ajuda espetacular e eu consegui chegar “um pouquinho” da onde eu interessava. Esse lugar eu agradeço a meu pai José Ferreira de Mendonça e a minha mãe Maria das Dores de Mendonça... (neste momento o Cantador derrama lágrimas). (entrevista cedida ao pesquisador em 10/03/08, em Porto Velho-RO) 102 Apesar das inúmeras dificuldades financeiras de Mendonça, ele considera que conseguiu chegar em um lugar especial. Esse lugar que Mendonça se refere, está relacionado com a sua condição de Cantador. Ao se intitular “Cantador”, e ao ser reconhecido perante o grupo como Cantador, Mendonça passa a ter um destaque em seu meio social. Essa análise não é válida somente ao “indivíduo” Mendonça, na verdade essa característica está presente em todos os outros Cantadores, em menor ou maior grau. Os Cantadores são cônscios que possuem uma habilidade específica que os diferencia dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Eles são atores diferenciados, justamente, pela potencialidade intersubjetivacomunicacional conferida a eles. Nesse sentido, é interessante observar o que Paul Claval escreve sobre o “poder carismático”: Nas civilizações onde as ideologias aboliram as religiões, atribui-se o poder carismático ao intelectual capaz de compreender os mecanismos que moldam a matéria, transformam os seres e orientam a história. Este é compartilhado, freqüentemente, com o artista ao qual a beleza se revela (...) Sobre os líderes carismáticos recai a responsabilidade de construir o sistema de valores em que a sociedade se baseia. (2001: 153) (grifos do autor) Ao utilizar essa citação, não estamos querendo afirmar que os Cantadores são “líderes carismáticos”, mas com certeza, dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina eles são “indivíduos carismáticos”. Nesse momento, eles são altamente visualizados e ouvidos, a dinâmica intersubjetiva do espaço vivido da Cantoria Nordestina propicia a eles um status diferenciado. Matias Neto, ao falar das suas tentativas de ingresso no curso superior, faz uma associação entre a capacidade cognitiva e a prática da Cantoria Nordestina. Segundo ele: Foi o seguinte, a dificuldade que a gente tem quando a gente faz um curso como eu fiz, é na hora de escrever mesmo. Eu fiz a oitava-série num supletivo, e a gente não praticava redação. Fiz também o curso técnico, e também não lembro, não tenho nenhuma lembrança da professora ter passado pra gente fazer redação. Então, tudo isso dificultou pro vestibular. Eu conseguia passar da primeira fase, mas quando vinha pra discursiva eu caia, por três vezes foi assim. Mas o que eu acho que ainda me auxiliou um tanto foi à viola. Porque com a viola a gente nunca para de tá exercitando a mente, o raciocínio né? É... a Cantoria é tipo um esporte da mente! (pág. 78). (grifos do autor). 103 O Repente para Matias Neto, e para os Cantadores em geral, corrobora a sua auto-estima, funcionando como um elemento potencializador de inter-relações sociais. Por exemplo, Matias após ter ouvido as lamentações dos companheiros de trabalho e ter feito um improviso sobre o assunto, afirmou: “Rapaz, aí a piãozada gostou de mim e eu fiquei foi conhecido!” (pág. 75). 5.2.3 A sociabilidade da Cantoria Nordestina A relação de Matias Neto com a Cantoria Nordestina é uma relação muito forte! Em diversos momentos de sua narrativa Matias aborda aspectos da Cantoria em sua vida. Na verdade, a Cantoria para Matias tem íntima relação com sua culturalidade, com o contexto sócio-cultural em que ele viveu. Desde criança, Matias já tem contato com os Cantadores e com a dinâmica da Cantoria Nordestina. Ele cresce ouvindo/assistindo (participando) das Cantorias Nordestinas realizadas por seu pai, em sua própria casa. É interessante observar que os primeiros contatos dele com a Cantoria Nordestina acontecem em um ambiente familiar. A dimensão espacial de uma criança é mais limitada que a de um adulto, a casa para a criança é o seu “lar”, é o seu espaço por excelência, é o seu “lugar”. Tudo isso corrobora para que a imagem da Cantoria Nordestina gradativamente assuma uma significância cada vez maior na vida de Matias Neto. Segundo Matias, “meu pai gostava muito das Cantorias, ele sempre tava fazendo Cantoria lá em casa. (...)” (pág. 70). Sobre esses momentos lúdicos, de inter-relações sociais, que caracterizamos sob o nome de “festas” e que a Cantoria Nordestina se enquadra perfeitamente. É interessante observar o que Paul Claval tem a dizer a respeito: A energia dos indivíduos não é jamais totalmente mobilizada pela a perseguição de objetivos utilitários ou pela ambição (Sansot et alii, 1978). É necessário entrepor à existência momentos de repouso, de distração e de jogo. (...) A festa marca uma ruptura coletiva e particularmente clara e significativa no desenvolvimento ordinário dos dias (Duvignaud, 1973). Ela dá ritmo aos momentos importantes da vida familiar (...) Cada um de nós é por sua vez ator e espectador e vive um momento de intensa emoção, de comunhão e de evasão. O sentimento do pertencer coletivo é, então, muito forte. (2001: 130-131) É nítido que através do contexto espacial, social e cultural que Matias vive, a Cantoria Nordestina lhe é apresentada como uma coisa agradável e interessante. A realização de uma 104 Cantoria caracteriza-se como um momento de alegria e de comunhão familiar e social. A partir daí, é uma questão de tempo para Matias Neto criar laços afetivos mais fortes com a Cantoria; e descobrir nele próprio a “veia poética” (como dizem os Cantadores) e a capacidade para tornar-se um legítimo Cantador de Viola. FOTO 04 – A RECIPROCIDADE ENTRE OS CANTADORES MOZANIEL MENDONÇA (esq) E MATIAS NETO (dir). Fonte: foto feita pelo autor em 13/07/07 em Porto Velho-RO. Outro ponto relevante sobre a Cantoria Nordestina é a sua potencialidade de aproximação social. Matias faz referência a esse ponto em diversos momentos de sua narrativa. Tendo a Cantoria como elemento-chave, os diferentes atores estabelecem um elo em comum; ao compartilharem a mesma afinidade pela Cantoria, eles interarticulam laços afetivos que se materializam em práticas sócio-espaciais. Sobre as viagens que Matias fez acompanhado de seu parceiro de viola Antônio Ferreira de Lima, ele afirma, “eu viajando com ele lá pela região do Ceará a gente fez muita amizade. E aí foi uma experiência muito boa que eu tive com ele ó!” (pág. 63). (grifos do autor). As viagens, que são caracterizadas pelos deslocamentos espaciais, são potencializadas devido a vínculos sociais estabelecidos através de mecanismos da própria 105 Cantoria. As ênfases em amizades construídas, tendo por intermédio a Cantoria Nordestina, estão presentes em diversos pontos da narrativa de Matias. Ao considerarmos a experiência empírica de Matias com a Cantoria Nordestina, fica claro que esta possui uma função socializadora, principalmente com referência aos próprios Cantadores. Matias, de acordo com sua própria experiência, afirma que quando os Cantadores fazem viagens pelo interior do Nordeste, procuram saber notícias de outros Cantadores, para que possam assim receber hospedagem e apoio. Aí já vai pra casa do cara porque os Cantadores dão apoio um pro outro. E lá em casa era uma casa grande, tinha um quarto lá... E quando chegava Cantador por lá a gente já dava logo a rede pra ele. Cantador ficava até de semana com a gente lá em casa. E eu fazia o mesmo, quando eu viajava ficava na casa dos parceiros. A gente tem... os Cantadores têm essa união. Quando chega o Repentista numa daquelas regiões do nordeste, hoje eu não sei como é que tá, porque eu já tô há muito tempo fora de lá. Mas na época a gente chegava num lugar daqueles e já fazia logo amizade (pág. 72-73). (grifos do autor) Matias vai conservar por toda sua vida a ligação cognitivo-emocional com a Cantoria Nordestina, ser um Cantador já faz parte de sua identidade e de suas concepções de mundo. Para ele, a Cantoria não é apenas uma “arte” no sentido lúdico do termo. A Cantoria Nordestina já está referenciada no seu comportamento simbólico, contribui no dimensionamento de suas práticas sociais e faz parte de seus sonhos e aspirações. Segundo Matias: E nisso, eu tinha um sonho de comprar uma viola dinâmica. Rapaz, cheguei na Loja Americana ali na Sete de Setembro, ali entre a Marechal Teodoro e a Joaquim Nabuco, bem ali tinha uma loja, até hoje quando eu passo por ali eu me lembro. Aí eu vi a viola na vitrine ó, aquela viola bonita, aquelas dinâmica. Uma viola daquela pra mim era uma coisa muito especial, era o sonho que eu tinha. Que eu só usava violãozinho com as cordinhas de naylon... Rapaz, o primeiro salário que eu peguei, com mais um rapaz que me emprestou uma parte, fui lá e comprei minha viola! (pág. 75) (grifos do autor) É interessante observar que, naquela época, de acordo com o próprio Matias, a sua situação financeira era “um tanto delicada”. Mesmo assim, ele pegou o seu “primeiro salário” e ainda pegou mais uma quantia “emprestada” e comprou a sua tão estimada viola. Com certeza, essa viola para ele não tem apenas o significado de um simples instrumento musical. Para Matias, essa viola tem uma significação intimamente relacionada com sua terra natal, com a sua 106 identidade nordestina e com o seu status de Cantador. Ou seja, a viola que materialmente é um simples objeto de madeira, pode possuir, dentro de contextos específicos, um dimensionamento simbólico. Ao possuir esse objeto, Matias possui simbolicamente um “pedaço” do seu povo, um pedaço do Nordeste, um pedaço de sua terra natal e um pedaço de sua própria história “simbolicamente materializada”. Além de se sentir mais nordestino possuindo sua viola, Matias corrobora pra si mesmo e perante o seu círculo social, o seu status de Cantador. Ao comprar sua viola, Matias não estava agindo exclusivamente por impulsos racionais; existe uma considerável carga emocional dentro dessa atitude. Segundo Tuan “As emoções dão colorido a toda experiência humana, incluindo os níveis mais altos do pensamento” (1983: 9). Dessa forma, Matias continua em Rondônia desenvolvendo seus trabalhos relacionados à Cantoria Nordestina. Ele explica que não vive exclusivamente da Cantoria, mas de maneira nenhuma quis deixar de lado esse que é um de seus traços mais marcantes. Segundo ele, “apesar de eu também já tá empregado eu nunca quis largar a viola. Às vezes não dava pra fazer Cantoria nos dias de semana, mas nos finais de semana eu nunca abandonei. Era direto, de sexta-feira até domingo a gente tava por aí cantando, e isso marcou muito.” (pág. 80). O fato de Matias ser Cantador constantemente contribui na potencialização de suas interrelações pessoais. A sua amizade com o Zé Fernandes é um bom exemplo, “E foi assim que eu conheci o Zé Fernandes, aí depois eu ia na loja dele fazer compras. Com ele era tranqüilo, a gente podia comprar numa boa, não precisava fazer cadastro nem nada.” (pág. 80). As inter-relações mediadas através da Cantoria eram tão diversificadas que Matias e seu parceiro Xexéu, quando ainda não tinham transporte, chegaram até a pegar carona em viatura de policiais nordestinos, admiradores da Cantoria. Gradativamente, Matias vai conseguindo seu espaço como artista. Esse espaço foi sendo construído, principalmente, através das inter-relações estabelecidas com nordestinos residentes em Rondônia. Matias também ressalta em sua narrativa a parceria com o Cantador Xexéu, que segundo ele: foi muito bom, a gente cantava nos bares, na casa de algum nordestino, e nisso a gente ia fazendo muita amizade, não tinha tempo ruim. E aí depois com o tempo foi-se arrumando transporte, passamos a ficar mais conhecidos, fomos conquistando espaço. A gente cantou muito na noite por aí. Nós podemos dizer que fomos os pioneiros em Porto Velho. Podemos dizer até do estado de Rondônia, que hoje, pra esse pessoal que gosta da Cantoria, nós somos conhecidos em Guajará Mirim, Pimenta Bueno, Ariquemes, Jarú. Aqui por 107 Rondônia aonde você vai que tem nordestino e gente que gosta da Cantoria, você ouve falar dos repentistas Xexéu e Graúna. Acho que ainda tem muita gente que lembra da gente (pág. 81). (grifos do autor) Para Matias, “é uma fonte inesgotável a do Cantador de viola.” (pág. 74). Essa fonte a que ele se refere é a “inspiração”, é a capacidade criativa manifestada através da improvisação. Matias em sua narrativa conta de uma vez em que ele e seu parceiro cantaram aproximadamente 20 horas em um final de semana. Nessa ocasião, ele admite ter pensado que não conseguiria, mas orgulhosamente ele afirma terem saído vitoriosos. Mas o que é realmente interessante neste trecho de sua narrativa é a explicação que ele dá sobre o motivo de terem conseguido cantar fluentemente todo esse tempo. Segundo ele: O pessoal tava era com saudade das coisas do sertão! O que acontece é o seguinte, aqui em Rondônia tem gente de todos os estados. E você vai pra um lugar como Guajará Mirim, como Nova Mamoré, aí é composto de cearense, de paraibano, de rio grandense, de pernambucano, de piauiense... E cada pessoa que chegava daquela colônia, chegava uma colônia de piauiense por exemplo, chegava uma outra de paraibano, aí cada um que ia chegando ia pedindo as coisas do seu lugar. E assim a gente ia cantando... e pediam vaquejada, e pediam mote falando do lugar dele e tal, e foi desse jeito que a gente segurou essa barra (pág. 84). (grifos do autor) A frase “O pessoal tava era com saudade das coisas do sertão!” possui um conteúdo semântico muito rico, e condensa nela o eixo de muita coisa relacionada ao espaço vivido da Cantoria Nordestina. Por que Matias e Xexéu conseguiram cantar de improviso todo esse tempo? Da onde eles tiraram inspiração para isso? O que foi que os motivou? O que motiva as pessoas, principalmente nordestinos, a quererem participar de Cantorias como essa? Para respondermos essas e outras perguntas, faz-se necessário adentrarmos em aspectos do próprio espaço vivido da Cantoria Nordestina. 108 CAPÍTULO 6 – O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA Pai e filho Rogério Menezes e Hipólito Moura A meu pai e meu filho eu ofereço esses versos que vou fazer agora o meu filho eu abraço todo dia o meu pai a um ano foi embora ta morando no céu com Jesus Cristo e o meu filho comigo ainda mora... Quando eu saio de casa papai chora e se meu filho sair eu vou sofrer dois pedaços de mim dos quais dependo pra na luta da vida me manter vendo um deles dois sofrendo eu fico sem vontade nenhuma de viver... O meu pai me ensinava sem bater e até hoje eu ainda lhe obedeço eu passei por colégio e faculdade e um mestre igual ele eu não conheço e as lições que ganhei de mãos beijadas beijo a mão do meu filho e lhe ofereço... Essa nosso amizade não tem preço e apesar da distância só cresceu quando beijo meu filho estou beijando o presente melhor que Deus me deu todo filho acha isso eu também acho que o melhor pai do mundo é sempre o meu... O meu pai era pobre e padeceu pra criar nove filhos no pesado se não pode estudar lutou pra ver cada filho estudar pra ser formado se eu tiver sendo um pai como o meu foi o meu filho está sendo bem criado... Eu me sinto por Deus presenteado por ter uma família que me adora o meu pai completou sessenta e quatro meu menino tem oito, fez agora gosto mais deles dois do que de mim dou a vida por eles qualquer hora... O meu pai trabalhava toda hora e nunca disse que a vida estava ruim o prazer que eu sinto em ser seu filho o amor sem limites e sem fim serei muito feliz aqui na terra se o meu filho também sentir por mim... Quando Deus abençoa é sempre assim a família é unida de verdade mesmo sendo do sítio pai fez tudo pra me ver estudando na cidade eu também faço tudo pra não ver meu menino passar necessidade... Eu me sinto feliz e na verdade a riqueza que tenho é meu guri o tesouro de todos os palácios o dinheiro do FMI valem menos que todas as lições que o meu pai ao passar deixou aqui... Nos conselhos de pai eu aprendi que o amor paternal não tem fronteira quem tiver pai e filho tente amá-los que essa vida da gente é passageira hoje sou eu quem faço por meu filho o que pai fez por mim a vida inteira... O meu pai nunca foi de bebedeira o meu filho não é, como eu não sou o meu pai me ajudava, o filho ajuda um eu crio, e o outro me criou vou usar as virtudes do que foi pra tentar educar o que ficou... A meu pai com certeza Deus doou o mais puro de todos corações nas conversas que tenho com meu filho uso sempre a melhor das intenções agradeço a meu Deus pela família e obrigado papai pelas lições... Misturando saudades e emoções em repente ou em prece eu sempre digo obrigado papai pelo que fez o senhor está vivo aqui comigo e ao meu filho também quero dizer que entre todos eu sou seu grande amigo... 109 CAPÍTULO 6 – O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA Por que espaço vivido da Cantoria Nordestina? Por alguns motivos. Em primeiro lugar, porque, considerando a Cantoria Nordestina nos formatos de apresentação pé-de-parede, pode-se considerar que os atores não são neutros dentro do contexto da Cantoria. Eles não são simplesmente “observadores” passivos dentro de um conjunto mecânico e previsível. A Cantoria Nordestina é vivenciada por seus atores tanto objetivamente como subjetivamente. A palavra vivenciar, é uma palavra que está inter-relacionada simultaneamente com perceber, sentir, avaliar e compartilhar. Vivenciar é experienciar a vida em sua complexidade; e essa experienciação, simultaneamente objetiva e subjetiva é também uma experienciação simultaneamente espacial e temporal. A primeira característica objetiva da experienciação do espaço vivido da Cantoria Nordestina é a presença empírica dos diversos atores da Cantoria Nordestina (fig. 1), os quais compartilham o mesmo espaço físico. Subjetivamente, existe uma carga emocional e simbólica dentro desse espaço, e esses atores se inter-relacionam através de códigos de comunicação. Sobre os códigos de comunicação Cosgrove esclarece que: incluem não apenas a linguagem em seu sentido formal, mas também o gesto, o vestuário, a conduta pessoal e social, a música, pintura, a dança, o ritual, a cerimônia e as construções. Mesmo essa lista não esgota a série de produções simbólicas através das quais mantemos o nosso mundo vivido, porque toda atividade humana é, ao mesmo tempo, material e simbólica, produção e comunicação. (1983: 103) A Cantoria Nordestina possui uma lógica simbólico-cultural que é compartilhada pelos atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina através dos códigos de comunicação. Um ponto muito relevante dessa dinâmica comunicatica são as narrativas poéticas cantadas de improviso. Segundo Buttimer “A expressão latina poesis (...) deve ser entendida de forma equivalente ao termo grego po(i)ēsis (πσ, “um fazer”, “um formar”, “um criar”)19” (1993: 237). É interessante observar essa consideração etimológica, pois é através da linguagem que as diversas representações são construídas. 19 The Latin expression poesis used throughout this book should be understood as equivalent to the Greek term po(i)ēsis (πσ, “a making”, “a forming”, “a creating”). 110 Como foi dito mais acima, nesse trabalho a palavra poesia é abordada através da ótica dos próprios Cantadores. O interesse aqui, é decodificar o espaço vivido desses atores, e dentro dessa lógica, o que queremos é conseguir enxergar, no máximo possível, através de suas próprias lentes. Para os Cantadores, a palavra poesia esta relacionada à capacidade criativa manifestada através da oração. Essa capacidade criativa se manifesta a partir de um ponto original: o da cotidianidade de seu próprio grupo. Segundo Tuan, “Nas obras de arte, as experiências pessoais sobre a vida e sobre o mundo são vivamente objetificadas” (1976: 145). O conjunto narrativas cantadas de improviso-música possui contribuição ímpar na caracterização do espaço vivido da Cantoria Nordestina. O som das violas também é uma característica marcante desse espaço. Claval afirma que “O ambiente sonoro faz parte da imagem que guardamos dos lugares” (2006: 99). Essa questão da imagem guardada dos lugares e sua significação é uma questão muito forte dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Lembrem-se que Matias fala exatamente sobre isso quando explica o porque de terem conseguido cantar aproximadamente 20 horas em menos de dois dias: “aí cada um que ia chegando ia pedindo as coisas do seu lugar. E assim a gente ia cantando...” Segundo o geógrafo americano George O. Carney, “Nosso lugar de nascimento deixa uma marca que determina a maneira como percebemos outros lugares. A música contribui para recordações de experiências do lugar doméstico (...)” (2003: 132). E também “As características únicas de lugares específicos podem oferecer as pré-condições necessárias a novas ideias musicais. O contexto histórico, ambiental e social de um lugar, muitas vezes, fornece cenário e inspiração para determinado indivíduo ou grupo criar música.” (Ibid: 138). Música, dentro do contexto explicativo de Carney, se encaixa perfeitamente ao contexto dos repentes desenvolvidos pelos Cantadores. “O pessoal tava era com saudade das coisas do sertão!” Essa é a afirmativa de Matias para explicar o que motivou tantos pedidos de atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Ele explica que “Rondônia tem gente de todos os estados. E você vai pra um lugar como Guajará Mirim, como Nova Mamoré, aí é composto de cearense, de paraibano, de rio grandense, de pernambucano, de piauiense...” Essa saudade das coisas do sertão, é a saudade de sua terra natal, de suas origens, de sua identidade: Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólicos. Elas têm aquilo que Edward Saïd chama de suas ‘geografias imaginárias’: suas ‘paisagens’ características, seu senso de ‘lugar’, de casa/lar, de heimat, bem 111 como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas (...). (HALL, apud, HAESBAERT, 1999: 179) Observa-se que através da Cantoria Nordestina seus atores, objetiva e subjetivamente, fazem uma recriação do espaço nordestino. A organização do espaço para a realização de uma Cantoria pé-de-parede tem o mesmo formato que as Cantorias no Nordeste: o posicionamento dos Cantadores, a presença da bandeja, os assuntos discutidos, as regras sociais... até mesmo a culinária, em diversas Cantorias, imita a culinária nordestina. Essa recriação do espaço nordestino se configura tanto por aspectos materiais como simbólicos. Quem vivencia um pé-de-parede, através da dimensão simbólica presente em seu espaço, mentalmente se transporta a um espaço nordestino. Segundo Buttimer, “Certamente, uma pessoa poderia estar presente psicologicamente em espaços e meios ambientes distantes: lugares habitados pelos enamorados ou meios ambientes tornados vívidos por meio de comunicação literária ou visual” (1976: 178). Essa “projeção mental” acontece tanto através das lembranças como da imaginação, ela possui um teor espaço-emotivo ou topofílico. Matias, falando sobre o nordestino que está distante de sua terra natal, afirma que “quando você encontra um repentista, ou então um sanfoneiro daqueles pé-de-serra mesmo que vem de lá do Nordeste, então você começa a viajar... seu pensamento viaja à mil. Então, é isso que faz os ouvintes pedirem as coisas pro Cantador cantar, é pra poder recordar...” (pág. 85). (grifos do autor). Assim, os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina se inter-relacionam tanto materialmente como simbolicamente. Empiricamente, eles usufruem do mesmo espaço concreto; ao usufruírem desse espaço eles se inter-relacionam (através dos códigos de comunicação) dotando esse espaço de um conteúdo simbólico. Através da Cantoria Nordestina, esses atores, recriam nesse espaço concreto, uma dinâmica que relembra um espaço nordestino específico: os pés-de-parede realizados no Nordeste. O efeito dessa “re-criação” não é um efeito simplesmente abstrato. Através do espaço vivido da Cantoria Nordestina representações são elaboradas e reelaboradas, e sentimentos topofílicos são corroborados, o que conseqüentemente gera uma espécie de manutenção da identidade nordestina em Rondônia. (fig. 2). 112 FIG. 02 – A INTERSUBJETIVIDADE NO ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA Fonte: desenvolvido pelo autor. Através da convivência no espaço vivido da Cantoria Nordestina, os indivíduos experienciam um contexto sóciocultural específico, o qual lhes permite estabelecer (através dos códigos de comunicação) uma dinâmica de relações intersubjetivas. Através dessas inter-relações, representações acerca do espaço nordestino e rondoniense são elaboradas e re-elaboradas; as quais contribuem para a corroboração de sentimentos topofílicos e conseqüentemente à manutenção de uma identidade nordestina em Rondônia. E ciclicamente, essa mesma identidade nordestina (associada a representações e sentimentos topofílicos) contribui para a preservação da Cantoria Nordestina em Rondônia. Claval, escrevendo sobre o desenvolvimento da geografia cultural no Brasil, afirma que “não cabe mais hesitar em refletir sobre as representações. (...) O papel da comunicação na transmissão dos saberes e a modelagem das atitudes é admitido por todos. Sabemos o quanto o pensamento simbólico permite reduzir ou alongar as distâncias reais.” (1999b: 22). É interessante refletirmos sobre essas “distâncias reais” e seus significados. A saudade da terra natal, as interrelações entre os atores do grupo e a manutenção de uma identidade nordestina são tentativas de transpor essas “distâncias reais”. O pensamento simbólico, presente em todo o contexto da Cantoria, é compartilhado entre seus atores através das representações. Essas representações, muitas vezes, possuem temáticas relacionadas à cotidianidade do sertanejo, e se caracterizam simbolicamente de diversas formas; uma delas, muito marcante, é a ideia de “sertão”. Nesse momento, para um entendimento mais completo dessa dinâmica intersubjetiva presente no espaço vivido da Cantoria Nordestina, é relevante que vejamos um repente cantado 113 por Matias Neto e Custódio em 11/11/07, em Porto Velho-RO, numa Cantoria pé-de-parede, onde um ouvinte pediu o seguinte mote decassílabo “Eu nasci pra cantar e fazer rima/ das belezas que existem no sertão”. Tô cantando desde oitenta e um (Matias Neto) as belezas da terra Potiguar nunca mais eu quis parar de cantar o cantar da Petica e o vôo do anum pois eu sou da terra do jerimum e quando eu falo dela sinto emoção pois é lá que está minha tradição e se eu pudesse eu estava lá em cima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... O meu pai me ensinou a trabalhar (Custódio Queiroz) desde cedo nas lutas do roçado cada dedo da mão bem calejado pois não tinha dinheiro pra me dar não podia me mandar estudar mesmo assim me ensinou grande lição fui comendo batata e feijão e agradecendo a Deus o lá de cima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... Na memória revejo o duelo do pica-pau que está lá madeira Rouxinol cantando na cumieira e o sabiá que tem o papo amarelo minha casa não era um castelo (MN) 114 mas lá tinha um moinho e um pilão inda tinha de lenha um fogão e o café que eu tomava bem em cima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... Eu me lembro do queijo, leite e nata (CQ) do cuscuz e também da tapioca e do milho que fazia paçoca que plantando nascia lá na mata eu me lembro da água da cascata que passava e molhava o boqueirão não me esqueço do Teju e Camaleão que da árvore me olhavam lá de cima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... Eu só tinha 15 anos de idade (MN) mas eu já era doido por namoro e quando eu via um vaqueiro aboiar touro para mim era grande a novidade ao pensar no sertão sinto saudade bate forte no peito o coração que eu até me recordo da paixão que senti por Helena minha prima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... Quando eu via um vaqueiro encourado no cavalo colocar uma cela e depois passar a perna por ela (CQ) 115 e em cima dela ficar montado e correr dentro do mato fechado atrás de derrubar um barbatão aquilo vem na minha recordação é o tipo de coisa que me anima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... Inda lembro de papai no roçado (MN) quando ele puxava a inchada e mamãe preparava uma buchada de um bode que já era capado e eu ficava ali bem animado com papai ia lá cavar o chão e no céu se formava um torrião que a chuva chegando muda o clima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... Muitas coisas eu lembro da minha terra (CQ) desde a fome, a riqueza e a desgraça meu cachorro que era bom de caça farejando o tatu no pé da serra o cavalo e a ovelha quando berra tudo isso me traz recordação o empregado na casa do patrão e só há crise pra quem se desanima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... Sei que o filho do homem camponês (MN) 116 seu brinquedo em casa é um pião diferente do filho de um barão pra comprar os brinquedos não tem vez se o pai dele possui uma rês e um cavalo que chama de gangão e se ele não pode ter carrão mas possui uma cabra que ele estima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... De papai lembro sempre do bigode (CQ) e das noites de lindas cantorias das piadas, canções e poesias e da cabra que corria do bode tudo isso por dentro me sacode e me causa a maior recordação e se eu parar pra ouvir meu coração sei que é só o sertão que me anima eu nasci pra cantar e fazer rima das belezas que existem no sertão... 6.1 Cantoria Nordestina e representações A ideia de “sertão” é assimilada a ideia de terra natal, de lugar de origem. Essa concepção de sertão é compartilhada entre os atores da Cantoria Nordestina de maneira comumente aceita. Ou seja, existe uma representação acerca do sertão dentro do espaço vivido da Cantoria Nordestina. De acordo com Moscovici: Representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presentes as coisas ausentes (...) É, portanto, muito importante que isso se dê de forma comunicativa e difusiva (...) Conseqüentemente, o status dos fenômenos da representação social é o de um status simbólico: estabelecendo um vínculo, 117 construindo uma imagem, evocando, dizendo e fazendo com que se fale, partilhando um significado através de algumas proposições transmissíveis e, no melhor dos casos, sintetizando em um clichê que se torna um emblema. (2003: 216) Como já foi esboçado, existe uma intercomunicação entre ouvintes e Cantadores pois através dos pedidos os ouvintes manifestam o que desejam ouvir; e os Cantadores por sua vez, utilizam os pedidos como molas propulsoras para o desenvolvimento de suas narrativas cantadas de improviso. Moscovici explica que representar significa “trazer presente as coisas ausentes”, através dessa dinâmica de pedidos e “respostas” (pedidos e improvisos cantados destinados a atender os pedidos) a uma interação público/Cantadores aonde as coisas ausentes, no caso “o espaço nordestino” caracterizado sob o “emblema” de sertão é trazido simbolicamente através da linguagem e do próprio contexto sócio-espacial da Cantoria Nordestina. A difusão das caracterizações de sertão acontece de maneira simultaneamente direta, espontânea e intersubjetiva: direta, porque as narrativas caracterizadoras das idéias de sertão se processam empiricamente no mesmo espaço físico, tanto para os ouvintes como para os Cantadores; espontânea, porque imanente à própria Cantoria Nordestina existe um caráter lúdico, esse caráter lúdico propicia nos atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina uma sensação de informalidade e liberdade. Isso foi verificado através do próprio comportamento dos atores, uma vez que os sorrisos, as gargalhadas e as brincadeiras são muito comuns; e intersubjetiva porque as inter-relações próprias do espaço vivido da Cantoria Nordestina acontecem através da mediação dos códigos de comunicação: o som das violas com os seus ritmos e melodias, as narrativas cantadas de improviso, os debates travados entre os Cantadores, os olhares, os gestos, os detalhes das regras sociais, ou seja, toda a dinâmica semiológica entre os diversos atores da Cantoria Nordestina. Assim, pode-se dizer que no espaço vivido da Cantoria Nordestina existe uma interação simbólico-cultural. Seus atores participam de um mesmo contexto espaço-cultural, e através dessa vivência compartilhada são geradas concepções simbólicas caracterizadas como representações. Essas representações, que são compartilhadas, estabelecem vínculos cognitivoemocionais entre os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. O espaço de realização de uma Cantoria pé-de-parede é, então, o espaço físico onde se corroboram práticas sociais destinadas à recriação simbólica de um espaço nordestino. É nesse espaço re-criado simbólica e culturalmente que os atores vivenciam experiências que os possibilitam conectar-se mentalmente 118 a um espaço nordestino, espaço esse que corrobora a identidade individual e coletiva, estabelecendo assim inter-relações de entendimento e cooperação social. É uma questão simultaneamente de palavras e de imagens mentais. De acordo com Almeida, geógrafa que tem trabalhos desenvolvidos à cerca de representações sobre o sertão: A construção discursiva sobre o sertão espelha a maneira como ele é pensado e uma maneira específica de “ver” o mundo. O olhar, o ato de contemplar a natureza, não é uma atitude natural. Pelo contrário, ele é resultante de uma instituição da cultura que inventou essa contemplação e lhe deu uma significação e valor. (...) [e ainda] Na adoção do conceito de representações, abriu-se uma via de estudos, pela inclusão do imaginário no trato dos objetos geográficos. O imaginário nos permite, afirma Bailly (1992), pela carga simbólica, ligar o ser humano e o espaço em sua plenitude, fazendo com que o espaço seja inteligível em todas dimensões. (2003: 71-73) Representar significa buscar compreender algo. As representações do sertão dentro do espaço vivido da Cantoria Nordestina traduzem uma maneira de compreensão do espaço nordestino, “sertão” torna-se uma espécie de emblema dialogicamente compartilhado. A ideia do “homem forte do sertão”, do “vaqueiro destemido”, da “mulher sincera e trabalhadora” são concepções psicossociológicas presentes no arcabouço representativo do sertão. Pode até parecer uma concepção romantizada, e talvez até seja, mas o pertinente é que essas representações possuem a sua função sócio-espacial. Através dessas representações, os indivíduos pertencentes a esse grupo social específico (os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina) identificam-se, criam laços afetivos, e com isso corroboram práticas sociais significativas de vivência mútua e colaboração. A difusão deste tipo de representação através da cultura é característica marcante no contexto da Cantoria Nordestina. Sobre a sua condição de Cantador, João Azevedo afirma que “eu sendo da terra da Cantoria e sendo filho de Cantador, é o que a gente herda. Eu herdei a poesia do meu pai, o dom do repente do meu pai!”20 João Azevedo associa o seu “dom do repente” ao fato de ser nordestino e filho de Cantador. Alguns podem, compreensivelmente, questionar esse tipo de afirmação perguntando-se: quer dizer que por ser filho de Cantador alguém será Cantador? Como se fosse genético, ou hereditário? A resposta a essa pergunta se encontra ancorada na perspectiva sócio-cultural. É lógico, que nem todos os filhos de Cantadores 20 Entrevista cedida ao pesquisador em 20/03/08, em Porto Velho-RO. 119 serão Cantadores, isso foi visto na própria narrativa de Matias Neto. Mas, através da perspectiva cultural, torna-se possível desenvolver raciocínios que possibilitam a inteligibilidade de afirmações como essas de João Azevedo. Convém consideramos que essas concepções de “hereditariedade poética” não foram inventadas exclusivamente por João Azevedo; elas são concepções “herdadas” não geneticamente, mas culturalmente. No espaço vivido da Cantoria Nordestina é comum ouvirmos conversas sobre genealogias de grandes Cantadores. Mozaniel Mendonça também faz uma associação entre a Cantoria Nordestina e suas raízes familiares, segundo ele: A Cantoria pra mim, ela tem um aspecto de muita nobreza, de muita especialidade; não só por eu ser um Cantador, eu sou um pequeno Cantador, não é só por isso... É porque o meu pai foi Cantador, ele começou a cantar com 15 anos de idade e cantou durante 35 anos. Eu também comecei a cantar com 15 anos, então eu já tenho 20 anos cantando. Por isso, a Cantoria pra mim é uma coisa muito fundamental... A Cantoria é fundamental porque ela me trás aquela recordação que eu nunca vou esquecer... uma recordação muito boa do meu velho pai, da minha mãe que permanece viva, das Cantorias do Nordeste e das boas amizades... (entrevista cedida ao pesquisador em 10/03/08, em Porto Velho-RO). Muitos ouvintes de Cantoria começaram a participar de Cantorias ainda crianças, e as ideias do que é a Cantoria e de quais são seus significados foram sendo transmitidas a eles paulatinamente. Nesse sentido, podem ser observadas características intrínsecas do contexto necessário para a formação de representações específicas. Ou seja, o espaço vivido da Cantoria Nordestina (constantemente permeado pela linguagem) propicia condições sócio-culturais e histórico-espaciais para a formação e manutenção de representações do espaço nordestino e de outros elementos da cotidianidade dos atores. Essas representações corroboram “raízes culturais” associadas à identidade do grupo. O apologista Lourival, sobre a sua relação com a Cantoria Nordestina, faz a seguinte afirmação: Do fundo do coração, eu digo o seguinte: a Cantoria Nordestina pra mim, é uma cultura que com 7 anos de idade eu já apreciava a Cantoria Nordestina. Ia pras Cantorias mais meu pai. E cheguei aqui em Rondônia, tenho 37 anos como morador de Rondônia, cheguei aqui bem jovem e sempre abracei a Cantoria Nordestina (entrevista cedida ao pesquisador em 10/11/07). (grifos do autor) 120 Empiricamente, foi verificado que o espaço vivido da Cantoria Nordestina é um espaço heterogêneo, ou seja, os seus atores não se caracterizam apenas por adultos do sexo masculino, muito pelo contrário, deste espaço participam: mulheres, crianças, idosos e até mesmo portadores de necessidades especiais. É interessante ressaltar que o tratamento dispensado às crianças no espaço vivido da Cantoria Nordestina tem como forte característica a afabilidade. FOTO 05 – CACAU (esq) E LULU (dir), FILHO DO CANTADOR MOZANIEL MENDONÇA, JÁ MOSTRANDO INTERESSE PELO OFÍCIO DO PAI. Fonte: foto feita pelo autor em 13/07/07, em Porto Velho-RO. 121 FOTO 06 – CRIANÇAS PARTICIPANDO DE CANTORIA PÉ-DE-PAREDE, DOIS GAROTOS (esq) E O NORDESTINO ANTÔNIO (dir) ABRAÇANDO SEU FILHO. Fonte: foto feita pelo autor em 09/09/07, em Porto Velho-RO. FOTO 07 – MOZANIEL MENDONÇA (esq), MATIAS NETO (dir) E AS CRIANÇAS TAMBÉM PRESENTES EM CANTORIA PÉ-DE-PAREDE. Fonte: foto feita pelo autor em 11/08/07, em Porto Velho-RO. 122 6.2 Cantoria Nordestina e sentimentos topofílicos Topofilia sanciona simultaneamente a associação entre lugar e sentimento, e no bojo dessa associação reside uma considerável carga de significação. Isso está relacionado com a própria caracterização de lugar. Ou seja, os lugares possuem, para indivíduos e grupos, significados específicos que traduzem os tipos de relações estabelecidas nos mesmos. O espaço vivido da Cantoria Nordestina pode estimular em seus atores sentimentos topofílicos? Se pode, como acontece esse processo? E o que ele significa? O que pretende-se nesse subitem é delinear respostas a essas perguntas. Primeiramente, é pertinente esclarecer que para Tuan, topofilia, inicialmente, estaria associada à relação dos seres humanos com ambientes próximos. Ou seja, de ambientes, ou lugares, que podem ser vivenciados, experienciados intimamente. Sobre essa questão Tuan escreve que: Tal como o pretenso “amor pela humanidade” levanta nossas suspeitas, também a topofilia soa falsa quando é manifestada por um extenso território. Parece que a topofilia necessita um tamanho compacto, reduzido às necessidades biológicas do homem e às capacidades limitadas dos sentidos. (1980: 116) Observando essa afirmação de Tuan, é lícito nos perguntarmos sobre as abrangências do conceito de topofilia. Será que a utilização deste conceito só se enquadraria mediante relações empíricas do ser humano com o seu meio ambiente? Ou existiriam outras formas de experiência que poderiam suscitar sentimentos topofílicos? O próprio Yi-fu Tuan nos dá a resposta: Se tanto o Império como o Estado são muito grandes para se praticar a verdadeira topofilia, é paradoxal refletir que a própria terra possa eventualmente provocar tal afeição: esta possibilidade existe, porque a terra é indubitavelmente uma unidade natural e tem uma história comum (Ibid: 117). (grifos do autor). Ou seja, Tuan admite a possibilidade da existência de sentimentos topofílicos por lugares que não tenham sido, necessariamente, empiricamente experienciados. Contudo, é inexoravelmente necessário que haja uma perspectiva desses lugares. Dando como exemplo a própria Terra (ou seja, trabalhando em uma macro escala) Tuan sinaliza como possível vínculo topofílico a “unidade natural da Terra” e “a existência de uma história comum”. 123 É interessante a abordagem dessas questões, justamente porque nem todos os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina são nordestinos e/ou viveram no Nordeste. Contudo, é nítida a presença de sentimentos topofílicos dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina. É fato, que a maioria dos seus atores são nordestinos, são pessoas que conheceram e vivenciaram empiricamente espaços, paisagens e lugares nordestinos. Os que não o são, na maioria das vezes, tem em comum laços de parentesco, ou alguma afinidade psicológica. O exemplo mais marcante são os filhos, ou sobrinhos de nordestinos, que já nasceram em Rondônia, ou saíram do Nordeste ainda muito pequenos, mas mesmo não tendo um contato empírico com o Nordeste, manifestam fortes sentimentos topofílicos relacionados a ele. Ou seja, existe uma “história comum”, existe, apesar das distâncias materiais, uma afinidade psicológica. Existe um sentimento e uma imagem de lugar, ou seja, uma idéia de lugar; e concomitante a essa ideia, existe uma caracterização de identidade corroborada através da ligação psicológica ao lugar. Pode até parecer abstrato pra quem está de fora, mas para quem vivencia esse espaço esse sentimento é muito real e significativo. Contudo, apesar dessas ressalvas sobre a abrangência do conceito de topofilia, preferimos (em alguns momentos do texto) utilizar a expressão “sentimentos topofílicos”, pois a expressão assim referida ressalta o caráter simbólico do conceito. De acordo com David Lowenthal: Cada imagem e idéia sobre o mundo é composta, então, de experiência pessoal, aprendizado, imaginação e memória. Os lugares em que vivemos, aqueles que visitamos e percorremos, os mundos sobre os quais lemos e vemos em trabalhos de arte, e os domínios da imaginação e de cada fantasia contribuem para as nossas imagens da natureza e do homem. (1961: 141) A experiência do espaço vivido da Cantoria Nordestina é prenhe de construções imagéticas, de conteúdos semânticos, e em alguns momentos descreve fidedignamente experiências próprias do espaço nordestino, ou rondoniense. Ou seja, a memória relativa à cotidianidade se mistura com imagens mentais de paisagens e lugares, tudo isso gera significados que vão desembocar na presença nítida de um sentimento topofílico. Sobre a Cantoria Nordestina, um ouvinte afirma que: Pra mim se tiver uma festa acolá e uma Cantoria, eu vou pra Cantoria! Porque eu sei o que é uma Cantoria, faz parte do passado da vida do cara, da pessoa 124 né? Porque o Cantador ta cantando ali você bota aquilo na cabeça, você cantou uma canção aqui, o cara fica com ela, pensativo com ela. É uma coisa muito importante! Pra mim isso é uma grande coisa, o cara tá cantando aqui, eu chego boto dois reais, três reais... eu vou numa festa acolá, eu num vou botar! O que? Eu vou dar é pra uma pessoa que é nordestino, e tão tirando do peito, da garganta... Alguma coisa que tá caçando o que o cara fez, como se fosse alguma coisa que tivesse adivinhando o passado do cara, que às vezes canta e dá certo. É uma coisa muito importante! Se eu fosse uma pessoa que pudesse, que tivesse condições, eu num ia chegar aqui e botar dois reais, três reais. Chegava e botava era cinqüenta, cem reais! Que eu dou valor! (entrevista cedida ao pesquisador em 10/11/07, em Porto Velho-RO) Nas afirmações “faz parte do passado da vida do cara” e “como se fosse alguma coisa que tivesse adivinhando o passado do cara” está implícito que os Cantadores, através das narrativas cantadas de improviso, conseguem traduzir a cotidianidade de seu grupo social. Essa “tradução”, remete os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina a um tempo e um espaço simbólico, que ligando o cognitivo com o emocional corrobora sentimentos topofílicos. Esses sentimentos topofílicos são compartilhados tanto pelos Cantadores como pelos ouvintes. Os Cantadores inspiram-se através desses sentimentos, e os ouvintes por sua vez identificam-se com essas construções poéticas; concomitantemente, os Cantadores percebendo que os ouvintes estão se identificando se inspiram mais ainda e buscam cantar ainda mais elementos que possam fazer emocionar, ou seja, é um processo cíclico. Para efeito de contextualização, é interessante observarmos uma sextilha cantada por Mozaniel Mendonça e Matias Neto em uma Cantoria péde-parede realizada no dia 11/08/07, em Porto Velho-RO: Me inspiro quando eu lembro (Mozaniel Mendonça) do meu sertão nordestino da colheita do algodão da cabra, bode e suíno das missas no fim da tarde e do badalar do sino... Canto o sertão nordestino do padre Cícero Romão do forró de Januário do seu filho Gonzagão (Matias Neto) 125 e sei que corre em minhas veias o sangue de Lampião... E eu não esqueço o gibão (MM) do vaqueiro que vivia campeando touro brabo com a sua montaria correndo de noite a dentro correndo dentro do dia... No sertão que eu vivia (MN) eu suei o meu cangote ouvi o cantar da jia vi o pulo do garrote dormi em rede de algodão e tomei água de pote... A rã roendo no pote (MM) é linda a ocasião Poeta agora me ouça me escute com precisão minha mãe não lhe pariu mas você é meu irmão... Eu nasci em um sertão de chapada e de buraco vi mamãe fazer costura vi papai varrendo caco eu vi um guiné cantando todo dia “eu tô fraco”... (MN) 126 O canto do “eu tô fraco” (MM) tem acordes musicais lembro o aboio do vaqueiro forte, autêntico e capaz e do café que mãe fazia sinto é saudade demais... Eu corri nos carrascais (MN) montado em um cavalo levava minha rapadura e só andava no embalo e o meu despertador era o cantar do galo... Lembro a cela do cavalo (MM) a moenda e a cachaça e a primeira namorada que era cheia de pirraça as tardes nos pés-de-serra e meu cachorro bom de caça... No sertão num tinha praça (MN) e eu me achava bonito tomava o leite que a cabra preta disputava com o cabrito mesmo assim eu era tão magro que parecia um palito... Outro exemplo é o “dez-a-quadrão” cantado por Matias Neto e Custódio Queiroz, em 12/04/08 em Porto Velho-RO: 127 MN: Já passeei no Nordeste CQ: e não me esqueço de lá MN: Pernambuco e Ceará CQ: de belezas se reveste MN: também vi o bom agreste CQ: e as quebradas do sertão MN: vi falar de Lampião CQ: Antônio Silvino e Jararaca MN: de cerca, vara e estaca C e M: lá se vão dez a quadrão... CQ: Vi cerca de arame grosso MN: no meu Nordeste querido CQ: que não será esquecido MN: no tempo que eu era moço CQ: bebia água de poço MN: nadava no cacimbão CQ: pescava no ribeirão MN: andava por toda área CQ: sem ter medo de malária C e M: lá se vão dez a quadrão... De acordo com a narrativa de Matias, o nordestino mesmo longe do Nordeste tem a tendência de lembrar de sua terra natal. Segundo ele: Você vê, o cara hoje às vezes tem até uma casa boa, mas num esquece da casinha de taipa que morou... O nordestino tem muito isso... dizem que é sofrer duas vezes, mas a gente lembra, não tem jeito, não tem como não lembrar. (...) O extrato social mudou, mas num tem como, porque ficou lá o primo, ficou a tia, até a mãe às vezes tá por lá. Então, ele lembra de voltar, de comer aquela comidinha por lá, aquela buchadinha de bode, aquele cuscuz (risos) por mais que o cara melhore ou piore num vai esquecer isso nunca! Tá no sangue, isso é do ser humano mesmo... E o Cantador retrata isso muito bem nos seus trabalhos, faz com que o caboclo até chore!.. (pág. 85). 128 De acordo com Edward Relph: Topofilia é um sentimento direcionado para o lar, para o que é confortável, detalhado, diverso e ambíguo sem confusão e tensão; (...) Em resumo, topofilia inclui qualquer coisa dos ambientes que nos faça senti-los como estar nos relaxando ou estimulando, e tudo o que nas nossas atitudes ou costumes nos capacite a experienciar locais como dando-nos prazer. [e ainda] A importância da topofilia (...) está explícita em muitas formas de recreação ao ar livre, na pintura de paisagem e na fotografia (...). (1979: 19) Segundo Relph, a importância da topofilia pode estar presente em diferentes práticas humanas, e além disso é um “sentimento direcionado para o lar, para o que é confortável (...) sem confusão e tensão”. Essa ligação afetiva com o lugar é nitidamente expressa através das palavras de Matias “o cara hoje às vezes tem até uma casa boa, mas num esquece da casinha de taipa que morou...”. Depois ele afirma que “o Cantador retrata isso [o universo sertanejo, o espaço nordestino, a cotidianidade do povo] muito bem nos seus trabalhos, faz com que o caboclo até chore!” Deste modo, é nítido que ao participarem do espaço vivido da Cantoria Nordestina, seus atores interagem em um processo que os possibilita desenvolverem e/ou fortalecerem vínculos topofílicos tanto com o espaço nordestino (o qual é retratado na própria contextualização da Cantoria Nordestina) quanto com o espaço rondoniense (o qual os atores vivenciam empiricamente). Contudo, é relevante mencionar que, ao recriar um espaço nordestino simbolicamente e vivenciá-lo, o grupo corrobora para si uma identidade cultural que influenciará diretamente em como ele percebe, vivencia e compreende o seu espaço empírico, ou seja, o espaço rondoniense. É quase inevitável, entre os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina, a não comparação entre os espaços nordestino e rondoniense. Assim, visualiza-se uma espécie de identidade híbrida, onde se misturam elementos do “nordestino” com elementos do “rondoniense”; mas esse encontro cultural apesar de múltiplo, não é impreciso. Os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina criam a sua própria caracterização sócio-cultural, e baseados nela, inter-relacionam-se estabelecendo uma cooperação cimentada em códigos e significados compartilhados. 129 Vamos observar duas narrativas cantadas de improviso que desenvolvem temáticas relacionadas ao espaço rondoniense. A primeira é uma sextilha cantada por Matias Neto e Custódio Queiroz em 13/09/07, em Porto Velho-RO: Garanto que em Rondônia (Matias Neto) tem muita coisa bonita tem o povo trabalhador tem vegetais e bauxita tem o ouro do madeira e também a cassiterita... Tem diamante e pepita (Custódio Queiroz) de Urucum tem o gás tem propaganda e comércio de produtos naturais tem tudo isso em Rondônia e ainda tem muito mais... Me inspiro com os animais (MN) que nessa fauna está a paca, e a cutia a anta, e o tamanduá o gavião de rapina e também o bom sabiá... Banana e maracujá (CQ) isso tem na agricultura Rondônia tem tudo isso pois é terra de fartura e são essas coisas na vida que um homem de bem procura... 130 Falando da agricultura (MN) a produção predomina a banana, o abacaxi o arroz da folha fina e o feijão que no futuro se exporta até pra China... Temos água cristalina (CQ) e tem a água do Madeira acidentes hidrográficos rio, córrego e cachoeira isso é um pouco do que tem na área desta fronteira... Rondônia dessa maneira (MN) no futuro não vai mal melhora o interior e a nossa capital com o aumento da energia pra o centro industrial... E também tem o cacau (CQ) açaí e tucumã Tem o peixe tambaqui pacú e curimatã e farinha pra merendar todo dia de manhã... De Rondônia eu virei fã deste lugar, desse chão mas falta investimento (MN) 131 na área da educação mais lugares de lazer pro povo ter diversão... Rondônia tem produção (CQ) do povo lá do nordeste que vieram viver aqui trabalhando inconteste e os soldados da borracha enfrentaram todo teste... Para não passar no teste (MN) uma corda se quebrou a língua então não foi bem o pensamento falhou e agora se para um pouco depois se volta o show... Você se atrapalhou (CQ) mas é coisa que acontece na arte do improviso onde a poesia cresce isso é defeito pequeno que na cantiga aparece... O ouvinte reconhece o verso de improviso quando a poesia foge também se acaba o riso e quando a corda se quebra o verso não sai preciso... (MN) 132 A segunda é o mote decassílabo “quem beber um só gole do Madeira/ não esquece Rondônia nunca mais” pedido aos mesmos Poetas, por um ouvinte em 10/05/08, em Cantoria péde-parede em Porto Velho-RO: Eu que sou um poeta potiguar (Matias Neto) e cheguei pela década de oitenta até hoje esse Graúna inventa muitas coisas aqui nesse lugar foi aqui que construí o meu lar pois cheguei ainda jovem bem rapaz e hoje em dia já fiz o meu cartaz só cantando as coisas da ribeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Imigrantes que vêm do Piauí (Custódio Queiroz) Ceará, Pernambuco ou Mato Grosso seja velho, adulto ou seja moço quando vem se chegando por aqui come um peixe por nome tambaqui e também bebe os sucos naturais e na feira do 1 toma mingais tapioca e bolo de macaxeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Venha ver a Madeira Mamoré construção que está abandonada vem provar tambaqui e a pescada jatuarana e também tucunaré venha ver onde nasce o igarapé (MN) 133 suas fontes lindíssimas, seus canais e no Cainágua venha ver os seus cais e do Teotônio a linda cachoeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Chega aquele e planta o cacau (CQ) mandioca, pupunha e banana pra fazer sua feira da semana e pros filhinhos poder dar o mingau Porto Velho é a nossa capital que é manchete em todos os jornais o que entristece é ver os marginais e o Urso Branco que não é brincadeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Em Rondônia tem rebanho bovino (MN) tem o ouro e tem cassiterita admiro essa terra tão bonita que acolhe o sulista e o nordestino também temos o rebanho eqüino e jazidas de muitos minerais tem rebanhos de muitos animais de Jarú até a Jorge Teixeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Nesta terra se vê pernambucanos cearenses e também piauienses que vieram ajudar os rondonienses (CQ) 134 trabalhar e viver melhores anos paraibanos, também alagoanos e os soldados da borracha lá atrás que enfrentaram malária e matagais e ajudaram a povoar esta fronteira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Venha ver o lago do Cuniã (MN) conhecer a pérola do Mamoré venha ver o Vale do Guaporé o Candeias também Itapoã venha ver bela serra e linda chã por exemplo a Serra do Pacaás e brevemente pra Rondônia vem gás e hidrelétrica que alaga cachoeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Interessante é o clima tropical (CQ) que existe no solo de Rondônia o nordestino morar na Amazônia é uma coisa que eu acho legal me acostumei com o lugar e o pessoal com os bairros, as ruas e os canais só queria que tivesse mais cartaz o repentista e a poesia verdadeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... É agradável o clima de Vilhena (MN) 135 se parece com o clima sulista também temos o ambientalista defendendo flora e fauna terrena Porto Velho é uma capital pequena necessita de asfalto e hospitais mesmo assim aqui ainda reina paz e eu me sinto feliz nessa ribeira e quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... Nós sabemos que aqui é muito bom (CQ) pois chegaram pessoas importantes no passado os bravos bandeirantes mais na frente o marechal Rondon pelos índios lutou e mostrou dom pra fazer o telégrafo foi capaz enfrentando floresta e animais em Rondônia ergueu sua bandeira quem beber um só gole do madeira não esquece Rondônia nunca mais... O trabalho poético dos Cantadores é muito rico, através de suas narrativas cantadas de improviso eles conseguem abarcar uma grande variedade de elementos. Falam sobre as belezas naturais de lugares do espaço rondoniense como o Lago do Cuniã, o Vale do Guaporé, a Serra dos Pacaás e outros. Citam municípios do estado de Rondônia: Porto Velho, Vilhena, Candeias, Itapoã do Oeste, Jarú, Jorge Teixeira, etc. Falam da culinária típica da região como a tapioca, mingau, bolo de macaxeira, sucos naturais... Enaltecendo a flora e fauna citam nomes de peixes e frutas regionais: tambaqui, pescada, jatuarana, tucunaré, pacu, curimatã, pupunha, tucumã, banana, açaí, cacau, mandioca... Falam sobre aspectos econômicos do estado como agricultura, pecuária e extração mineral. E retratam o próprio sentimento do migrante nordestino residente em Rondônia: “o nordestino morar na Amazônia/ é uma coisa que eu acho legal/ me acostumei com 136 o lugar e o pessoal/ com os bairros, as ruas e os canais”. Matias que chegou no estado de Rondônia ainda novo, cantando afirma: “Eu que sou um poeta potiguar/ e cheguei pela década de oitenta/ até hoje esse Graúna inventa/ muitas coisas aqui nesse lugar/ foi aqui que construí o meu lar/ pois cheguei ainda jovem bem rapaz...” Através de suas narrativas, os Poetas afirmam que se acostumaram com o lugar e o pessoal. Matias cantando fala que foi aqui, em Rondônia, no espaço rondoniense, que construiu o seu lar. Mas o que é esse lugar, o que é esse lar que esses Repentistas, Poetas Cantadores, tanto falam em suas narrativas improvisadas? Esse lugar, é um lugar vivenciado, e justamente por isso dotado de significância; e justamente por isso, lugar. Se “acostumar com o pessoal” está intimamente ligado com se acostumar com as ruas, as casas, os bairros, os lugares... Eric Dardel afirma que “A cidade não é um panorama numa simples vista. A cidade como realidade geográfica é a rua: a rua como o centro e cenário para a vida de todos os dias, onde o homem é um transeunte, um residente, um artesão” (DARDEL apud RELPH, 1979: 11-12). O espaço vivido da Cantoria Nordestina sanciona simultaneamente dimensões simbólicas e empíricas, experiência e imaginação, sonhos e memória. Viajar mentalmente através das narrativas improvisadas no espaço vivido da Cantoria Nordestina é agradavelmente permitido. É como disse John K. Wrighy, em seu discurso presidencial perante a Associação de Geógrafos Americanos, em 1946 “A mais fascinante terrae incognitae, entre todas, é aquela que se encontra no interior da alma e do coração dos homens” (WRIGHT apud LOWENTHAL, 1961: 103). A ideia de espaço vivido sanciona a inseparabilidade do ser que sente, pensa, está inserido em um universo simbólico e, simultaneamente experiencia empiricamente o espaço concreto. Neste sentido, o conceito de espaço vivido se torna complexo, complexo porque não dicotômico. Ninguém vivencia o abstrato puro, o neutro. Mas pra se existir a experiência do vivenciar é preciso existir o “eu”, o “sujeito”, o “quem” vivencia; e simultaneamente essa vivência não é jamais exclusivamente individual. Até os nossos raciocínios são desenvolvidos por palavras, palavras essas que nos foram ensinadas; os significados dessas palavras também nos foram ensinados. A pluralidade do mundo, a individualidade do ser... não são coisas tão excludentes dependendo da perspectiva de análise. Os Cantadores, enaltecendo as belezas dos espaços rondonienses, convidam “venha ver onde nasce o igarapé/ suas fontes lindíssimas, seus canais/ e no Cainágua venha ver os seus cais/ e do Teotônio a linda cachoeira...”. Os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina, 137 envolvidos em sua dinâmica de inter-relações sociais pautadas na cordialidade e na cooperação, se sentem agradavelmente capacitados para desbravar esses espaços discursivamente simbólicos. Segundo Edward Relph, o “Espaço é também estruturado pela projeção da imaginação” (1979: 9). Contudo, convém esclarecer que além desses espaços não serem “exclusivamente” simbólicos, eles possuem uma função sócio-cultural. Espaços como: fontes, igarapés, e a própria cachoeira do Teotônio existem concretamente em Rondônia. Mas ao serem decantados em versos, eles estimulam os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina a se sentirem mais rondonienses; e esse sentimento é compartilhado socialmente entre os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. A ideia do que é “ser” rondoniense, simbolicamente é associada ao indivíduo que vive em uma terra grandiosa, agradável, uma terra de rios, de florestas, de maravilhosas plantas e animais. Topofilicamente é nesse sentido que “A imaginação pode até transcender o espaço físico” (RELPH, 1979: 9). FOTO 08 – D. LÚCIA E SEUS PAIS, FRANCISCO SANTOS (76 anos) E JÚLIA SANTOS (66 anos), TODOS CEARENSES. Fonte: foto feita pelo autor em 29/02/08, em Porto Velho-RO. 138 Mas este “ser” rondoniense, esse relance de uma possível identidade cultural, também é simultaneamente um “ser” nordestino. É o nordestino que veio desbravar as terras rondonianas, somar esforços em prol da construção de um mundo melhor, de um espaço melhor: “Nesta terra se vê pernambucanos/ cearenses e também piauienses/ que vieram ajudar os rondonienses/ trabalhar e viver melhores anos/ paraibanos, também alagoanos/ e os soldados da borracha lá atrás/ que enfrentaram malária e matagais/ e ajudaram a povoar esta fronteira...” O espaço vivido da Cantoria Nordestina em sua simplicidade e pluralidade também é agregador: “seja velho, adulto ou seja moço/ quando vem se chegando por aqui/ come um peixe por nome tambaqui/ e também bebe os sucos naturais...” O espaço vivido da Cantoria Nordestina não é um conceito estático, congelado, e sim um conceito fluido, dinâmico. Ser um ator do espaço vivido da Cantoria Nordestina implica em experienciar um espaço metamorfoseante, flexível. Metamorfoseante em primeiro lugar pela imprevisibilidade dos versos, das narrativas cantadas; e flexível, porque as inter-relações sociais também não são fixas... as intersubjetividades são plurais. Considerando a belíssima geografia de Lowenthal “Todos os tipos de experiências, desde os mais estreitamente ligados com o nosso mundo diário até aqueles que parecem remotamente distanciados, vêm juntos compor o nosso quadro individual da realidade” (1961: 141). 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ter a Cantoria Nordestina como tema de uma pesquisa geográfica foi simultaneamente desafiador e instigante. A cada encontro com os Cantadores, a cada nova participação em pés-deparede, novas ideias surgiam, novos elementos eram observados. O espaço vivido da Cantoria Nordestina sanciona inter-relações sociais, sanciona diálogo, comunicação. Essa comunicação é pautada por traços em comum, eixos, representações que possibilitam o entendimento mútuo. É próprio do geógrafo que se interessa pela perspectiva cultural estar atento as sutilezas dos diferentes “olhares”. Não conseguiríamos ter desenvolvido um trabalho geográfico sobre a Cantoria Nordestina se não considerássemos a Cantoria Nordestina enquanto fenômeno sóciocultural ou, em outras palavras, fenômeno espaço-sócio-cultural. Para compreendermos esse dimensionamento da Cantoria Nordestina foi necessário a considerarmos sob o ponto de vista de seus próprios participantes. É essencialmente sob esse “ponto de vista” que a Cantoria Nordestina realmente apresenta a sua dimensão espacial. É nesse sentido que as metodologias de pesquisa foram adotadas, era preciso mergulhar profundamente na Cantoria Nordestina enquanto experiência vivida para descortinar os seus aspectos espaciais. Neste sentido, tanto a História Oral quanto a Pesquisa Participante possibilitaram esse “encontro” despretensioso e aberto. A História Oral possibilitou um diálogo íntimo e franco com o narrador, através dela tivemos o tempo e o espaço necessários para que a narrativa se desenvolvesse aberta e espontaneamente. Já a Pesquisa Participante nos possibilitou conhecer o grupo social estudado de uma forma mais aprofundada e humana. Justamente, porque nos fundamentos da Pesquisa Participante, a pesquisa não é feita exclusivamente sobre o grupo, mas com o grupo. É nesse sentido que muitos detalhes, muitas sutilezas (que não apareceriam através de metodologias quantitativas, em uma entrevista fechada por exemplo) puderam ser percebidas e consideradas. Assim, a História Oral e a Pesquisa Participante foram articuladas simultaneamente, uma complementando a outra. Acreditamos sinceramente que somente a História Oral não nos possibilitaria a realização desse trabalho com a segurança desejada; e similarmente, se dispuséssemos somente da Pesquisa Participante não teríamos a riqueza de dados e detalhes necessários para as nossas contextualizações explicativas. Em outras palavras, enquanto o trabalho de História Oral nos possibilitou uma maior familiaridade com o universo da Cantoria 140 Nordestina, a Pesquisa Participante nos capacitou para a decodificação dos dados obtidos através da História Oral. Além disso, foi graças a Pesquisa Participante que a potencialidade de socialização da Cantoria Nordestina pôde ser verificada empiricamente. Vivenciar o espaço vivido da Cantoria Nordestina foi uma experiência única e, sob determinados aspectos, “indescritível”. Existem momentos em que o olhar e a expressão facial podem falar melhor do que palavras. Ver pessoas se emocionarem ao escutar improvisos falando sobre suas terras natais... sorrisos, lágrimas, apertos de mãos e abraços, experiências que só a convivência despretensiosa é capaz de proporcionar. Significados, valores, visões de mundo... todos esses elementos perpassam pelo contexto do que chamamos de espaço vivido da Cantoria Nordestina. As experiências de Matias foram visualizadas nas experiências de outros atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina, e de certa forma (dentro do contexto desse trabalho) Matias se tornou uma espécie de porta-voz desses atores. Mas objetivamente não foi somente a voz de Matias que foi ouvida e considerada; e sim o casamento, a congruência, o inter-relacionamento de diversas vozes que se complementavam, vozes de diferentes atores desse espaço. As narrativas cantadas de improviso serviram para contextualizar a dinâmica própria da Cantoria Nordestina. Através delas foi possível perceber os principais temas envolvidos no contexto da Cantoria, esses “temas principais” revelaram os principais interesses e afinidades dos atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. A dinâmica intersubjetiva da Cantoria Nordestina está intrinsecamente ligada à comunicação, e nesse sentido as narrativas cantadas de improviso, ou os repentes, foram eixos norteadores nas análises dessa pesquisa. Buscamos através deste trabalho, demonstrar que a Cantoria Nordestina possui uma dimensão espacial. Ao falarmos em espaço vivido da Cantoria Nordestina, não estamos falando em nada mais do que a Cantoria Nordestina vivenciada pelos seus atores. Ou seja, o conceito de espaço vivido da Cantoria Nordestina, é um conceito desenvolvido com o intuito de tornar a Cantoria Nordestina espacialmente inteligível. A complexidade desse conceito, reside no fato de que a experienciação desse espaço envolve, simultaneamente, aspectos objetivos e subjetivos. O espaço concreto da realização da Cantoria Nordestina é empiricamente compartilhado, mas a sua contextualização envolve uma dinâmica de relações intersubjetivas. Para explicarmos teoricamente essa dinâmica, buscamos articular (sob a luz das abordagens da geografia cultural e 141 humanista) alguns conceitos que potencializassem a inteligibilidade do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Entre eles os de: representações, identidade, lugar e topofilia. Procuramos demonstrar que, através da sociabilidade da Cantoria Nordestina, seus atores se inter-relacionam produzindo toda uma dinâmica intercomunicativa geradora de significados, valores e representações. Essas inter-relações processadas nos espaços de realização das Cantorias não são dissociadas dos traços sócio-culturais, muito pelo contrário, a Cantoria Nordestina nos moldes de apresentação dos pés-de-parede é intrinsecamente social, cultural e espacial. O espaço vivido da Cantoria Nordestina, através das inter-relações sociais permeadas pelos códigos de comunicação, gera, constantemente, representações. Essas representações, que são comumente compartilhadas entre os atores do grupo, possuem funções sociais. Suas funções se caracterizam principalmente na ideia de uma identidade comum ao grupo. Comum no sentido de comumente compartilhada, aceita e interiorizada. Através dessa identificação, os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina compartilham ideias, valores e afetos. Ou seja, o espaço vivido da Cantoria Nordestina comporta um alto grau de sociabilidade, o qual através de sua dinâmica intercomunicativa possibilita a elaboração e re-elaboração de representações; e essas por sua vez, auxiliam os atores do grupo a tornarem seus espaços e relações inteligíveis. As contextualizações discursivas de lugares são vivamente experienciadas através do espaço vivido da Cantoria Nordestina. A própria dinâmica da Cantoria Nordestina está relacionada à recriação simbólica de “lugares nordestinos”. Esses lugares são reconstruídos através de discursos, os quais são intimamente inter-relacionados com imagens mentais. A recriação desses lugares é simultaneamente relacionada à memória dos: espaços materiais referentes ao Nordeste; e às relações sócio-afetivas envolvendo, principalmente, familiares e amigos. As re-construções dos lugares, através do espaço vivido da Cantoria Nordestina, geram em seus atores o surgimento e/ ou manutenção de sentimentos topofílicos. Na verdade, topofilia é uma capacidade intrínseca do próprio ser humano intimamente ligada à vivência e à experienciação. Topofilia tem haver simultaneamente com aspectos objetivos (pois tem relação, mesmo que indiretamente, com espaços concretos) e subjetivos (pois tem haver com percepções, sentimentos, significações e valores). O conceito de topofilia é interessante, justamente por associar o que foi insistentemente dicotomiazado: o objetivo e o subjetivo, o espaço concreto 142 (mundo natural) e as diferentes maneiras de percepção desse espaço (dimensões cultural e simbólica). Assim, o espaço geográfico não é exclusivamente natural, nem exclusivamente simbólico. O que existe é uma constante e indissociável inter-relação entre espaços físicos e relações sociais, essas permeadas constantemente por fatores tanto concretos, quanto psicológicos e culturais. Num mundo onde as culturas ditas “populares” cedem lugar às culturas de massa (as quais são impulsionadas pelo poder midiático, e têm como eixo de sua temática a alusão a hábitos de consumo e a adoração à estética), o espaço vivido da Cantoria Nordestina se apresenta como uma espécie de contra-cultura. Ele corrobora em seus atores, através de toda sua dinâmica, sentimentos de auto-estima; proporciona a valorização da matriz familiar e estimula a sociabilidade e a cooperação mútua entre seus atores. Este trabalho não teve a pretensão de decodificar a Cantoria Nordestina em sua totalidade, existem muitos pontos ainda a serem aprofundados. Mas acreditamos que através dessa dissertação, já demos um primeiro passo no intuito de compreender de forma mais ampla uma atividade artístico-social com raízes culturais tão profundas. O desafio continua, muitas perguntas ainda precisam de respostas. Neste trabalho demos ênfase aos formatos de apresentação “pés-de-parede”. Mas sabemos que considerando a escala nacional existem outros formatos de apresentação que congregam grandes quantitativos de participantes, principalmente os grandes torneios e festivais de Cantoria. O recorte espacial de nossa pesquisa deu-se sobre Porto Velho-RO, contudo também sabemos que a Cantoria Nordestina é uma atividade de abrangência nacional. Nesse sentido, surgem muitas perguntas sobre a abrangência, formas, funções e significados da Cantoria Nordestina no Brasil: Como é a Cantoria Nordestina enquanto profissão? Como se configura a espacialidade dos festivais e torneios de Cantoria Nordestina nos grandes centros urbanos e cidades do Nordeste? Como a Cantoria Nordestina se insere nos atuais meios de comunicação? Como a Cantoria Nordestina sobreviverá aos avanços da pós-modernidade? Essas são apenas algumas das questões que poderão ser trabalhadas sob perspectivas geográficas, tendo em vista a Cantoria Nordestina enquanto fenômeno sócio-espacial. No momento nos damos por satisfeitos pelo trabalho realizado, mas estamos cônscios que este é apenas um começo. E aos geógrafos interessados na perspectiva cultural em geografia, e que por ventura queiram pesquisar sobre a Cantoria Nordestina; existe ainda um vasto campo e longos e belos caminhos a se percorrer. 143 BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. ALES BELLO, Angela. Introdução à fenomenologia. Bauru, SP: Edusc, 2006. ALMEIDA, Maria Geralda de & RATTS, Alecsandro JP (orgs.) Geografia: leituras culturais. Goiânia: Alternativa, 2003. AMORIM FILHO, Oswaldo Bueno. “Imagem, representação e geopolítica”. In MENDONÇA, Francisco e KOZEL, Salete (orgs.) Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Ed. UFPR, 2004. ________. “A Pluralidade da Geografia e a Necessidade das Abordagens Culturais”. In KOZEL, Salete, SILVA, Josué da Costa e GIL FILHO, Sylvio Fausto (orgs.) Da percepção e cognição a representação: reconstruções teóricas da Geografia Cultural e Humanista. 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