UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
Gustavo Henrique de Abreu Silva
O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA
EM PORTO VELHO-RO
Porto velho
2009
GUSTAVO HENRIQUE DE ABREU SILVA
O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA
EM PORTO VELHO-RO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Mestrado em Geografia – PPGG, da
Universidade Federal de Rondônia, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Josué da
Costa Silva.
PORTO VELHO
2009
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP
911.3
S586e
Silva, Gustavo Henrique de Abreu.
O espaço vivido da cantoria nordestina em Porto Velho RO / Gustavo Henrique de Abreu Silva. -- Porto Velho, 2009.
149p.
Dissertação (Mestrado). – Fundação Universidade Federal de
Rondônia, 2009.
Orientação Prof. Dr. Josué da Costa Silva, Núcleo de Ciência
eTecnologia, Departamento de Geografia.
1. Geografia Humana 2. Geografia Cultural 3. Cantoria
Nordestina I. Título II. Silva, Josué da Costa.
Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária Leandra Perdigão CRB 11/415
Agradeço:
em primeiro lugar a Deus, o grande e verdadeiro Mestre do Universo, pois tenho convicção de
que sem ele eu não teria chegado até aqui; a minha querida mãe Heloísa, sempre pronta a me
incentivar e apoiar; a meu pai Adélio, por ser um verdadeiro guerreiro e lutador da vida; a meu
querido filho Ismael, pois sua alegria e seu sorriso de criança me ensinaram a ter perseverança e
paciência e a não esquecer a riqueza das coisas simples da vida; a minha esposa Alana; ao meu
orientador professor Josué pelo apoio e orientação; a professora Maria das Graças que diversas
vezes me auxiliou de maneira decisiva e inestimável; ao professor Nilson Santos; ao professor
Carlos Santos que inúmeras vezes me serviu de inspiração; ao professor Alberto Lins Caldas por
suas intrigantes aulas durante o curso de mestrado, e por sua inesquecível participação como
membro da banca examinadora; ao professor Sylvio Fausto Gil Filho pelas observações e
contribuições enquanto membro da banca examinadora; ao colega de curso Salem Leandro pela
amizade e confiança; a todos os meus professores, professoras e colegas de curso que de alguma
forma me fizeram crescer humana e intelectualmente; a todos os meus parentes, amigos e amigas
que de uma forma ou de outra procuraram me incentivar; ao Programa de Pós-Graduação
Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia; ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pelos meses que financiou minha pesquisa e
que me foi de uma valia incalculável; e especialmente aos poetas repentistas: Matias Neto;
Mozaniel Mendonça; Custódio Queiroz e João Azevedo, pessoas simples, mas dotadas de
sabedoria que através da Cantoria Nordestina me fizeram enxergar a vida e o mundo com outros
olhos... olhos mais humanos e alegres.
Nesta jornada enfrentei algumas dificuldades, contudo o prazer pela descoberta e o amor pela
geografia prevaleceram. Muitos foram os que me auxiliaram nesta caminhada. Mas quero dedicar
este trabalho, especialmente, a todos os admiradores e amantes da geografia e da Cantoria
Nordestina. E mais ainda, aos poetas repentistas, os quais desenvolvem um trabalho
legitimamente brasileiro e altamente complexo que precisa ser mais conhecido e melhor
valorizado.
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura geográfica da Cantoria Nordestina no estado de
Rondônia. Para isso, são utilizados pressupostos das geografias cultural e humanista. Através da
análise espacial da Cantoria Nordestina é que desenvolve-se o conceito de “espaço vivido da
Cantoria Nordestina”. Esse conceito é elaborado tendo por base a teoria do espaço vivido de
Armand Frémont (1980) e as concepções de lugar oriundas da geografia humanista e cultural.
Este conceito possibilita analisar a Cantoria Nordestina não apenas como uma atividade artísticocultural, mas também como uma complexa manifestação espaço-sócio-cultural. A Cantoria
Nordestina é uma atividade que promove a sociabilidade entre seus atores. Sendo mediada
através de códigos de comunicação, ela possibilita um contexto propício para a elaboração e reelaboração de representações espaciais. Ao abordar temáticas voltadas aos espaços nordestino e
rondoniense, e à cotidianidade de seu grupo social, a Cantoria Nordestina também se insurge
como propulsora de sentimentos topofílicos em diferentes níveis. Os atores do espaço vivido da
Cantoria Nordestina, compartilham, além do mesmo espaço concreto (no momento de realização
da Cantoria), representações, códigos de comunicação e afinidades comuns, ou seja, associado ao
contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina, existe uma identidade cultural que interliga os
seus atores. O espaço vivido da Cantoria Nordestina é dinâmico, carregado de significados e
valores. Seus atores o experienciam emocional e cognitivamente. Analisar o espaço vivido da
Cantoria Nordestina, implica na consideração de intersubjetividades espaciais. É nesse sentido,
considerando o próprio escopo do trabalho, que as metodologias de pesquisa foram escolhidas:
no caso, a história oral (MEIHY, 2005; 2007) e a pesquisa participante (BRANDÃO, 1999). A
Cantoria Nordestina é uma atividade legitimamente brasileira, intrinsecamente ela sanciona
comunicação. Rondônia é um estado que recebeu e recebe diversos migrantes nordestinos, esses
migrantes também trazem consigo a sua cultura e as suas necessidades de adaptação e
socialização. A Cantoria Nordestina em Rondônia envolve uma dinâmica complexa:
simultaneamente objetiva e subjetiva e simultaneamente nordestina e rondoniense. Compreender
o espaço vivido da Cantoria Nordestina é compreender a cultura de um grupo social, é adentrar
em meandros da comunicação geradora de significados, é reconhecer o valor simbólico de
lugares e sua interligação com os sentimentos de identidade.
Palavras-chave: espaço vivido da Cantoria Nordestina, identidade, geografia cultural, geografia
humanista, lugar, representações, topofilia.
ABSTRACT
This work aims to achieve a geographical reading over Cantoria Nordestina (Brasilian
Northeastern Chant) in the state of Rondonia. For that, some purposes of humanist and cultural
geographies are used. Through a spatial analisis over Brasilian Northeastern Chant, the concept
of this chant is developed. This concept is based on Armand Frèmont’s living space theories
(1980) and on the spatial notion derived from humanist and cultural geography. It allows not
only an examination of the brasilian northeastern Chant as being an artistic and cultural activity,
but also as a more complex spatial, social and cultural manifestation. The Brasilian Northeastern
Chant promotes sociability among its participants. It is done through comunication codes and
permits a propitious context for elaboration and re-elaboration of spatial representations. By
aproaching subjects related to northeastern and rondonian spaces, apart from the quotidian of its
social group. It also appears as a motion to varied topophilic feelings and in different levels. The
participants in Brasilian Northeastern Chant share representations, communication codes and
common affinities, apart from the same concrete space of realization, that is, in association to the
spatial context of this chant there is a cultural identity that link the participants. The living space
of Brasilian Northeastern Chant is dinamic, full of signals and values. The participants experience
emotions and cognitions. Thus, analise its living space implies a consideration of spatial
intersubjectiveness. The choosen methodologies, considering the target of this work, are Oral
History Handbook (MEIHY, 2005; 2007) and Participatory Research (BRANDÃO, 1999). This
chant is a legitimous brasilian activity and sanctions an intrinsic communication. Rondonia is a
state that boarded, and it keeps boarding, several northeastern immigrants and they bring with
them the culture and the needs of adapting and socialising. The Brasilian Northeastern Chant
inside Rondonia involves a complex dinamics, simultaneously objective and subjective,
northestern and rondonian. Comprehend the living space of Brasilian Northeastern Chant means
to understand the culture of a social group, to enter into a winding communication that generates
new significations, to recognise the simbolic value of places and their realation to the feeling of
identity.
Keywords: cultural geography; humanist geography; representations; identity; topophilia; places;
living space of Brasilian Northeastern Chant.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 01 AS INTER-RELAÇÕES ENTRE OS ATORES DO ESPAÇO VIVIDO DA
CANTORIA NORDESTINA....................................................................................93
FIGURA 02 A INTERSUBJETIVIDADE NO ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA
NORDESTINA........................................................................................................112
LISTA DE FOTOGRAFIAS
FOTO 01 MOZANIEL MENDONÇA (esq) E MATIAS NETO (dir) SEGURANDO SUAS
VIOLAS.........................................................................................................................48
FOTO 02 CANTADORES E A BANDEJA, CUSTÓDIO QUEIROZ (esq) E MATIAS NETO
(dir)...............................................................................................................................90
FOTO 03 UMA OUVINTE MANIFESTANDO SEU AFETO PELO CANTADOR CUSTÓDIO
QUEIROZ.....................................................................................................................92
FOTO 04 A RECIPROCIDADE ENTRE OS CANTADORES MOZANIEL MENDONÇA
(esq) E MATIAS NETO (dir).....................................................................................104
FOTO 05 CACAU (esq) E LULU (dir), FILHO DO CANTADOR MOZANIEL MENDONÇA,
JÁ MOSTRANDO INTERESSE PELO OFÍCIO DO PAI........................................120
FOTO 06 CRIANÇAS PARTICIPANDO DE CANTORIA PÉ-DE-PAREDE, DOIS
GAROTOS (esq) E O NORDESTINO ANTÔNIO (dir) ABRAÇANDO SEU
FILHO........................................................................................................................121
FOTO 07 MOZANIEL MENDONÇA (esq), MATIAS NETO (dir) E AS CRIANÇAS
TAMBÉM PRESENTES EM CANTORIA PÉ-DE-PAREDE..................................121
FOTO 08 D. LÚCIA E SEUS PAIS, FRANCISCO SANTOS (76 anos) E JÚLIA SANTOS (66
anos), TODOS CEARENSES......................................................................................137
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..............................................................................................................10
INTRODUÇÃO...................................................................................................................15
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL.................................................19
1.1 Geografia Cultural........................................................................................................21
1.2 Representações..............................................................................................................25
1.3 Identidade......................................................................................................................28
1.4 Geografia Humanista....................................................................................................29
1.5 Lugar..............................................................................................................................35
1.6 Topofilia.........................................................................................................................37
1.7 Espaço Vivido................................................................................................................38
2. METODOLOGIA...........................................................................................................41
2.1 Pesquisa Participante....................................................................................................42
2.2 História Oral..................................................................................................................43
2.2.1 Valorizando os diferentes olhares.............................................................................44
3. O QUE É A CANTORIA NORDESTINA?..................................................................47
3.1 Técnicas da Cantoria Nordestina................................................................................50
3.2 Modalidades da Cantoria Nordestina.........................................................................51
3.2.1 O Desafio..................................................................................................................59
3.3 O Apologista..................................................................................................................65
4. MATIAS NETO: UM REPENTISTA EM RONDÔNIA............................................66
4.1 Em Rio Grande do Norte..............................................................................................68
4.2 Descobrindo a “veia poética”.......................................................................................70
4.3 Morando em um novo lugar.........................................................................................74
4.4 Os estudos......................................................................................................................76
4.5 Lembranças da mãe e da serra de Luiz Gomes..........................................................78
4.6 A Cantoria Nordestina em Rondônia..........................................................................79
4.6.1 A Cantoria em Rondônia antigamente.....................................................................82
4.7 Casos de Cantoria.........................................................................................................83
5. CANTORIA NORDESTINA E LEITURAS GEOGRÁFICAS.................................87
5.1 Os pés-de-parede...........................................................................................................88
5.2 Análise da história oral de Matias Neto......................................................................93
5.2.1 Família e terra natal...................................................................................................94
5.2.2 O esforço em busca dos estudos e o Repente como estímulo social.......................99
5.2.3 A sociabilidade da Cantoria Nordestina.................................................................103
6. O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA...........................................108
6.1 Cantoria Nordestina e representações......................................................................116
6.2 Cantoria Nordestina e sentimentos topofílicos.........................................................122
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................139
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................143
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APRESENTAÇÃO
Cada ser humano é um ser único, dotado de características próprias. Contudo, a nossa
individualidade, as nossas características íntimas, não foram adquiridas ao acaso. Cada um de nós
tem um tempo e um espaço próprios que foram e são vivenciados, tudo isso forma a história
individual de cada um. Essa história individual não é dissociada de uma história coletiva, muito
pelo contrário. É através da convivência social, é através da cultura, das nossas diversas interrelações, que nos construímos como indivíduos e nos afirmamos como alguém no mundo.
Sempre que fazemos uma coisa em que acreditamos, fazemos melhor! Existe uma grande
diferença em fazer algo por obrigação, e fazer algo por prazer. Quando vemos sentido em algo,
quando realmente acreditamos no que estamos fazendo, dificilmente estamos no caminho errado.
De certa forma é assim que me sinto em relação à geografia e em relação ao tema abordado nessa
dissertação.
Geografia pra mim não é somente uma “disciplina acadêmica”, geografia (sob
determinados aspectos) é uma característica intrínseca a todo ser humano. Nós somos seres
espaciais por excelência. Nós nos dirigimos de um canto a outro, nós habitamos um espaço, nós
vivenciamos os lugares, nós temos uma história espacial e temporal. Eu por exemplo nasci em
Brasília, em 1979. Ou seja, o meu “lugar de nascimento” e a “época” em que eu nasci estão
intrinsecamente inter-relacionados com os contextos das minhas experiências de vida, das minhas
experiências de mundo. A língua que eu falo, a estrutura familiar que vivenciei, os
conhecimentos e valores que me foram transmitidos... Tudo isso contribui para eu ser a pessoa, o
indivíduo que sou hoje. Assim foi e é comigo, e assim também é com cada ser humano.
A geografia me encantou, por caminhos inesperados, mas me encantou. Descobri na
geografia uma atividade intelectual interessante. Uma atividade que busca compreender os
processos sociais, que busca decodificar a antiguíssima e eterna relação dos seres humanos com
os seus espaços. A pluralidade da geografia é outro traço marcante, os próprios geógrafos por
vezes sentem dificuldades de se comunicar. O que é geografia para um grupo de geógrafos
muitas vezes não o é para outro, e vice-versa. Mas é nessa pluralidade, tantas vezes mal
compreendida, que reside uma das maiores belezas da geografia: sua complexidade. A geografia
abre diversas oportunidades, ser geógrafo é, antes de tudo, ser alguém pensante; é ser alguém
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interessado em entender cada vez mais os processos e significados humanos sobre a face da
Terra.
Meu encontro com a geografia se deu no ano de 2002, na época eu fazia o curso de
engenharia florestal em uma faculdade particular em Porto Velho. Desde cedo já trazia comigo o
interesse pelas paisagens naturais; o contato com a floresta e seus rios, as coisas simples dos
caboclos, suas histórias e costumes, chamavam minha atenção.
Foi nessa época que fiz o vestibular para o curso de geografia na Universidade Federal de
Rondônia. Então, durante um semestre fiz simultaneamente os dois cursos: engenharia florestal e
geografia. Gradativamente, fui me identificando mais com a geografia, para mim a geografia
apresentava mais possibilidades, principalmente no aspecto de sua potencialidade interdisciplinar.
Inicialmente, interessei-me mais pela chamada geografia física, principalmente através
das influências dos professores Maniesi e Eliomar. A geomorfologia inter-relacionada aos
processos geológicos, permeada pelos aspectos fluviais, climatológicos e bióticos me deixavam
fascinado. Contudo, o elemento humano em breve chamaria significativamente minha atenção.
No decorrer do curso, por meio da professora Sandra Kely, ouvi falar no nome “geografia
cultural”. Digo o nome, porque sobre geografia cultural o que ouvi naquele momento foi somente
isso. Mas de certa forma isso já me serviu, através desse “simples nome” portas muito
interessantes viriam a ser abertas.
Aqui convém esclarecer porque esse nome “geografia cultural” me chamou tanta atenção.
Na verdade, isso tem relação com a minha pesquisa de mestrado e objetivamente com a própria
existência dessa dissertação.
Obviamente, todos nós temos nossos interesses e aptidões, e certamente eu também tenho
os meus. Dentre esses interesses existe o meu envolvimento com a música. Na minha família
existem alguns músicos: minha mãe toca piano e violão, minha tia toca piano, violão e flauta
transversal e meu irmão é um bom professor de piano. Filho de pais divorciados, minha mãe se
casou com um músico e artista plástico, ou seja, cresci em um ambiente propício a arte. Era
constante, eu ainda criança, ir dormir ao som de boas rodas de violão, regadas principalmente por
melodias de autores clássicos da nossa bela música popular brasileira.
Nesse contexto, aprendi a tocar violão. Antes de entrar para o curso de engenharia
florestal, durante alguns anos até ganhei meu dinheiro dando aulas como professor de violão.
Cheguei até a pensar seriamente em fazer o curso de música na UnB em Brasília. Mas
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gradativamente o meu estilo musical foi se tornando mais “exótico”, comecei a me aproximar
cada vez mais das músicas de raízes nordestinas. Foi dentro desse contexto que conheci a
Cantoria Nordestina. É estranho... mas desde bem pequeno, em qualquer oportunidade que eu
tinha de ouvir o som das “violas nordestinas” eu me emocionava. Sentia aquela sensação que
todos nós sentimos quando encontramos algo que realmente achamos interessante.
Foi então que em 1997 conheci o jovem Repentista João Santana, que na época ainda não
era um Repentista “profissional”, como dizem. Então, eu e João começamos a exercitar o
Repente, o cantar de improviso, de uma forma muito amadora. Foi através desse nosso interesse
mútuo que conhecemos em Brasília, mais especificamente em Ceilândia, a Casa do Cantador.
Uma edificação criada por Oscar Niemeyer, inaugurada em 9 de novembro de 1986, com o
intuito de servir de espaço para o encontro entre Cantores e admiradores da Cantoria Nordestina.
Assim, voltando ao cenário rondoniense, já em meados de 2005, quando ouvi falar em
geografia cultural a minha noção sobre o conceito de cultura era bem mais limitada do que hoje.
Mas inicialmente achei interessante a ideia da inter-relação entre cultura e geografia. Foi a partir
daí que comecei a pesquisar na internet algumas coisas a respeito de geografia cultural. E nessas
pesquisas, além de alguns artigos, encontrei o livro “Introdução à Geografia Cultural” organizado
por Roberto Lobato Corrêa e Zeny Ronsendahl. Através da leitura desse livro tive o meu primeiro
contato com autores como Paul Claval, Denis Cosgrove e James Duncan.
Nessa altura dos acontecimentos já tinha concluído o curso de licenciatura plena em
geografia e estava cursando as disciplinas do bacharelado, ou seja, eu precisava pensar em um
projeto de pesquisa para o desenvolvimento da minha monografia. Foi quando um amigo faloume que o professor Josué tinha um grupo de pesquisas que trabalhava com questões relacionadas
à dimensão espacial da cultura, o GEPCULTURA.
Foi neste momento que procurei o professor Josué, quando o encontrei perguntei sobre o
grupo de estudos e pesquisa GEPCULTURA, e disse que estava interessado em conhecer mais
sobre geografia cultural. Ele me tratou de uma maneira tranqüila e receptiva, perguntou como eu
fiquei sabendo do grupo e o que eu já tinha lido a respeito de geografia cultural. Conversamos um
pouco, e durante essa conversa falei do meu interesse em desenvolver um trabalho de conclusão
de curso relacionado às perspectivas da geografia cultural. Ele me indicou uma bibliografia muito
interessante em conteúdo, e consideravelmente grande em quantidade. Recomendou que eu
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fizesse fichamento de tudo, e quando eu estivesse com o material todo pronto que eu voltasse a
procurá-lo. Me lembro bem do seu conselho “bote fogo na leitura”!!!
Eu realmente sabia que não conseguiria ler e fichar todo aquele material no,
relativamente, pouco tempo que eu tinha. Mas resolvi fazer o máximo que eu pudesse. A
bibliografia indicada me agradou e o meu interesse pelo assunto foi aumentando cada vez mais.
Depois de ter lido alguns livros e ter feito os fichamentos, resolvi enviar um e-mail ao
Josué contando o que tinha achado dos livros e como estava me sentindo em relação às leituras.
O resultado deste e-mail foi claro e direto, ele disse que na semana seguinte estaria fazendo uma
reunião com todos os seus orientandos, e disse que era pra eu estar presente.
Dentro desse contexto desenvolvi meu projeto de pesquisa, visando à conclusão do
bacharelado. Contudo, algo interessante aconteceu, o edital do Mestrado em Geografia da
Universidade Federal de Rondônia estava prestes a ser publicado. E comecei a amadurecer a ideia
de aprimorar o meu projeto de pesquisa para tentar o ingresso no Mestrado. Nesse contexto, tive
que tomar uma decisão, ou eu concluiria o meu bacharelado, ou eu tentaria o ingresso no
Mestrado; com o apoio do professor Josué e de familiares, principalmente minha mãe, optei pela
segunda opção.
Obtive resultado positivo, consegui entrar no Mestrado com uma boa classificação. O
mestrado para mim não foi um “simples” curso, foi graças ao mestrado que tive oportunidade de
vivenciar um ambiente acadêmico de um nível mais alto. Durante esse período pude aprimorar
minhas leituras, amadurecer minhas idéias e me preparar de maneira mais segura para esse
grande e belo desafio que é a pesquisa.
O conhecimento não pode ser construído de forma unidirecional ou isolada, nesse sentido
as inter-relações, o debate, o diálogo são fundamentais; o ambiente do mestrado me proporcionou
isso: as aulas, as palestras, os eventos... Dentre as inúmeras atividades que pude participar teve
uma que me marcou de maneira especial, a viajem que fizemos à Parintins para pesquisarmos
sobre aspectos geográficos relacionados ao festejo dos bois-bumbás.
Nessa viajem, foram pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia e da
Universidade Federal do Paraná, tendo também o apoio da Universidade de Paris Sorbonne IV
manifestado na presença do emérito professor Paul Claval. Sobre essa viajem e as experiências
que tivemos, se o espaço que me cabe nessa apresentação permitisse, eu poderia me alongar
muito mais, mas convém ressaltar que foi uma viajem maravilhosa, que abriu muito mais meus
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olhos para as diversidades humanas e para a amplitude da geografia. Conviver com todos os
membros da expedissão foi gratificante. Porém confesso que Paul Claval superou todas as
expectativas. Um homem dotado de uma intelectualidade fabulosa, mas sempre com um sorriso
amigo e uma maneira simples e gentil.
Portanto, desse curso de mestrado trago muitas histórias, lembranças e amadurecimento.
Essa dissertação é um pouco do que pude percorrer nas estradas desse mestrado.
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INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como tema a Cantoria Nordestina, sua proposta é fazer uma leitura
geográfica da Cantoria Nordestina no estado de Rondônia, ou seja, será feita uma inter-relação –
tanto a nível teórico quanto empírico – entre Cantoria Nordestina e geografia. Mas o que é a
Cantoria Nordestina? A Cantoria Nordestina é uma manifestação artística oriunda do Nordeste,
legitimamente brasileira; e com alto teor cognitivo. Nela participam, basicamente, os Cantadores
e o público. Os Cantadores, os quais sempre cantam em duplas, improvisam os seus versos na
hora, daí a denominação repente, ou, improviso. Mas o que faz a Cantoria Nordestina ser
pertinente à uma análise geográfica?
Considerando o conceito de espaço vivido, a Cantoria Nordestina se caracteriza como um
importante elemento de inter-relações sociais para os atores envolvidos em seu contexto. Ou seja,
ela tem uma função social, ela subsidia processos de comunicação intersubjetivos que se
caracterizam por toda uma série de elementos que vão garantir à Cantoria Nordestina uma
dimensão espacial.
A Cantoria Nordestina em Rondônia, visualizada como fenômeno sócio-espacial –
principalmente nos denominados pés-de-parede1 – faz uma reconstrução do espaço nordestino.
Essa reconstrução se dá tanto a nível simbólico, (caracterizada principalmente por códigos de
comunicação, regras sociais e representações); quanto a nível empírico de organização espacial.
As narrativas cantadas de improviso pelos Cantadores ou Repentistas, expressam diversas
facetas da cotidianidade do grupo. Os “Poetas Cantadores” (assim também denominados), versam
sobre os mais variados temas: sertão, saudade, educação, violência, política, religião, injustiças
sociais, meio ambiente... enfim, o seu repertório temático é imenso, senão infinito. Mas mesmo
com toda essa pluralidade, em campo, foi possível observar algumas temáticas que se
destacavam: dentre elas a ideia de “sertão”, sendo que, na ótica dos Cantadores, este é
caracterizado como “a terra natal” ou o “lugar” de origem.
A Cantoria Nordestina é analisada neste trabalho a partir de dois enfoques específicos: a)
através dos atores sócio-espaciais da Cantoria Nordestina; e b) através das narrativas cantadas de
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Cantoria nos moldes tradicionais do nordeste, onde o público tem contato direto com os Cantadores. Caracteriza-se
pela colocação de uma bandeja próxima aos Cantadores, aonde os ouvintes contribuem espontaneamente e fazem os
seus pedidos.
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improviso pelos próprios Cantadores. Esses enfoques não são excludentes, e sim
complementares. Foi associando o espaço concreto de realização da Cantoria Nordestina com as
inter-relações sociais processadas nesse espaço, que desenvolvemos o conceito de “espaço vivido
da Cantoria Nordestina”.
Este conceito foi elaborado para capacitar uma operacionalização teórica entre geografia e
Cantoria Nordestina. Seu desenvolvimento se dá através da articulação do conceito de espaço
vivido do geógrafo francês Armand Frémont (1980) com concepções de espaço oriundas tanto da
geografia cultural quanto humanista. Esse espaço vivido da Cantoria Nordestina é formado a
partir de diversos elementos interatuantes. Dentre eles destaca-se: a organização do espaço da
Cantoria em seu sentido material, a intersubjetividade, os códigos de comunicação, as
representações, os sentimentos topofílicos, as caracterizações de lugar e a corroboração de uma
identidade nordestina.
As narrativas cantadas de improviso pelos Cantadores possibilitam uma leitura de suas
visões de mundo, de sua cotidianidade, de seus sentimentos em relação aos lugares, e de suas
percepções espaciais. Convém lembrar, que os Cantadores são interpretes do povo, ou seja, eles
não cantam simplesmente suas idiossincrasias. Como foi abordado acima, a sua temática é
variada, e através da inter-relação estabelecida com o público – manifestada de forma mais
explícita por meio dos “pedidos” – os Cantadores chegam a ser intérpretes da cotidianidade e
anseios de seu grupo social.
Os Cantadores em Porto Velho-RO relacionam-se, principalmente, com grupos
específicos de nordestinos ou não, localizados em sua maioria em bairros periféricos da cidade. A
Cantoria Nordestina tem fortes traços culturais, o que faz com que ela conseqüentemente
promova no estado de Rondônia um fortalecimento de uma identidade nordestina. Essa
identidade nordestina se associa com uma “identidade rondoniense”, formando uma espécie de
identidade cultural híbrida. Além disso, a Cantoria Nordestina possui uma grande potencialidade
de sociabilização. Nesse sentido, se faz pertinente um estudo sobre a dimensão sócio-espacial da
Cantoria Nordestina. É um tema pouquíssimo abordado até mesmo a nível nacional. A Cantoria
Nordestina é uma atividade legitimamente brasileira, componente intrínseco de nossa cultura; e é
de uma importância ímpar para os grupos relacionados à ela.
O conceito de “poesia” é abordado nesse trabalho através da ótica dos próprios
Cantadores. Para eles, poesia faz referência à capacidade criativa manifestada através da oração,
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tendo por características próprias: a métrica e a rima. Considerar essa conceituação tem relação
direta com o escopo do trabalho, que é a decodificação do espaço vivido da Cantoria Nordestina
em Rondônia.
Este trabalho parte dos seguintes pressupostos:
I. A Cantoria Nordestina possui uma dimensão espacial;
II. Através da Cantoria Nordestina seus atores constroem representações acerca do espaço
nordestino e rondoniense;
III. A Cantoria Nordestina contribui na criação e manutenção de sentimentos topofílicos
em diferentes níveis;
IV. A Cantoria Nordestina empiricamente possui uma função social, o que contribui no
fortalecimento de uma identidade nordestina em Rondônia;
V. Os atores da Cantoria Nordestina manifestam, através dela, sua visão do espaço
rondoniense.
O objetivo deste trabalho é fazer uma leitura geográfica da Cantoria Nordestina em
Rondônia. Para atingir esse objetivo é que foi desenvolvido o conceito de espaço vivido da
Cantoria Nordestina e delineados os seguintes objetivos específicos:
1. Caracterizar o espaço vivido dos Cantadores em Rondônia;
2. Caracterizar como a Cantoria Nordestina contribui nas inter-relações sociais
dos atores envolvidos em seu processo;
3. Identificar as principais representações relacionadas ao espaço vivido da
Cantoria Nordestina;
4. Analisar as narrativas cantadas de improviso pelos Cantadores sob uma
perspectiva geográfica;
5. Identificar as relações existentes entre Cantoria Nordestina, lugar e identidade.
Considerando a natureza do tema abordado neste trabalho, utilizaremos como suporte
teórico os delineamentos da geografia cultural e humanista. No primeiro capítulo, será feita uma
discussão de natureza teórica e conceitual acerca das abordagens das geografias cultural e
humanista. Os conceitos de representação, identidade, lugar, topofilia e espaço vivido serão
abordados um a um. Em seguida, no segundo capítulo, serão delineadas as metodologias
adotadas, no caso a História Oral e a Pesquisa Participante, e os respectivos caminhos que nos
conduziram ao encontro destas.
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O terceiro capítulo trata exclusivamente da Cantoria Nordestina. Para um efetivo
entendimento da inter-relação Cantoria Nordestina/ geografia, se faz necessário uma abordagem
mais detalhada desta. Nesse capítulo, serão delineados alguns de seus principais aspectos.
O quarto capítulo é reservado a apresentação do trabalho de História Oral realizado com o
Cantador Nordestino Matias Neto.
No quinto capítulo a Cantoria Nordestina será analisada a partir de uma perspectiva
geográfica. É neste capítulo que tem início a análise da História Oral de Matias Neto e também
das narrativas cantadas de improviso pelos Poetas Cantadores.
Por fim, no sexto capítulo, o conceito inédito de espaço vivido da Cantoria Nordestina
será trabalhado em maiores detalhes.
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CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL
Alô Brasil
João Santana e Ismael Pereira
Alô Brasil,
alô terra natal,
Brasil rural
e civilização,
população
praieira e ribeirinha,
nação rainha
da miscigenação...
Quero em São Paulo
ver o pólo industrial
e pousar no cartão postal
que é o Rio de Janeiro,
jogar bola o dia inteiro
nas praias do Capixaba
e comer queijo com goiaba
lá no Triângulo Mineiro...
Eu, na Bahia
quero jogar capoeira
comer sururu na feira
lambreta e acarajé
na festa do candomblé
ver meu senhor do Bonfim
e ouvir o canto sem fim
de Iemanjá na maré...
No Tocantins
vou me banhar sem sobrosso
e entrando no Mato Grosso
vou fitar o céu azul
cruzar chapada e paul
sentir paz e alto astral
e acampar no Pantanal
do Mato Grosso do Sul...
Do Paraná
vou a Santa Catarina
onde a criação bovina
é destaque na nação
onde o vinho é tradição
e a soja ao povo dá luxo
de lá vou ao chão gaúcho
beber um bom chimarrão...
Alô Brasil,
alô terra natal,
Brasil rural
e civilização,
população
praieira e ribeirinha,
nação rainha
da miscigenação...
Alô Brasil,
alô terra natal,
Brasil rural
e civilização,
população
praieira e ribeirinha,
nação rainha
da miscigenação...
Do Acre eu quero
da rabada ao tucupí
de Rondônia o açaí
de Roraima a Boa Vista
e do Amapá fronteirista
a voz do Uirapurú
e o vermelho do urucú
do indígena extrativista,
20
CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL
O ser humano é um ser essencialmente espacial. A geografia é uma atividade intelectual
que busca decifrar os enigmas das inter-relações do ser humano com o seu meio. Como outras
ciências, a geografia perpassa por uma série de paradigmas, e a gama de perspectivas amplia-se
aos olhos dos geógrafos. Com o advento da chamada pós-modernidade muitas certezas são
abaladas, concepções lineares do tempo e do espaço dão lugar a concepções relativas, o olhar
de quem observa tem um peso no entendimento do que é considerado “o real”. Hoje, vive-se a
pluralidade das informações e os avanços tecnológicos são abruptos. E apesar da concepção
positivista de ciência ainda ter muitos adeptos ela é cada vez mais desconstruída por uma série de
pensadores.
É dentro deste arcabouço que o estudo das subjetividades humanas se inserem nas
análises geográficas. Justamente, pela busca da desconstrução da dicotomia rígida entre sujeito e
objeto. E assim auxilia no crescimento de uma compreensão mais ampla a respeito do fenômeno
humano sobre a face da terra, seus motivos, seus significados e suas aspirações.
O ser humano é um ser essencialmente simbólico, construtor de significados e de
sentidos, e toda essa construção perpassa, inegavelmente, por uma cultura, pelo conhecimento
herdado e apreendido dos antepassados, por maneiras de classificar os elementos do mundo e
organizá-los para torná-los inteligíveis. A questão não é unicamente econômica, política ou até
mesmo cultural. A vida humana sobre a terra ou a inter-relação visceral que existe entre o ser
humano e o seu “espaço” perpassa por uma infinidade de elementos interconectados, numa teia
viva de relacionamentos, de significados, de valores... daí a complexidade. (MORIN, 2005,
2006).
A Cantoria Nordestina se inclui dentro dessa ótica de complexidade. Ela não é uma
construção abstrata, dissociada dos processos sociais e da dimensão espacial. Não podemos negar
a sua função social (RAMALHO, 2000). Ela tem a sua matriz na cotidianidade humana e se
corrobora como propulsora de relações intersubjetivas, principalmente naqueles, que de uma
forma mais aprofundada, passam a compartilhá-la como conhecimento herdado, ou seja, essa
cotidianidade, esses processos sociais constantemente permeados pela cultura e representações
não são dissociados do espaço. É neste sentido que tanto a geografia cultural como a geografia
humanista são marcos norteadores deste trabalho.
21
1.1 Geografia Cultural
A nova perspectiva cultural na geografia se caracteriza, principalmente, por uma melhor
compreensão do conceito de cultura (CLAVAL, 1992). Os geógrafos gradativamente
descobriram as potencialidades epistemológicas deste conceito dentro do arcabouço das análises
geográficas. Antes de adentrarmos nas concepções e abordagens da geografia cultural
contemporânea, também conhecida por nova geografia cultural (COSGROVE & JACKSON,
1978; DUNCAN, 1980; CLAVAL, 2001), convém fazermos um breve relato histórico da
geografia cultural para seu melhor entendimento.
A terminologia “geografia cultural” é introduzida pela primeira vez em 1880, pelo
geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), em uma obra dedicada à geografia dos Estados
Unidos. Posteriormente, bebendo dos ensinamentos de Humboldt e Ritter, Ratzel desenvolve uma
nova concepção geográfica denominada antropogeografia2. (CLAVAL, 2001).
Vidal de La Blache (1845-1918), principal expoente da geografia francesa, apesar de não
ter falado explicitamente em cultura, mantinha a ideia de cultura em um lugar central dentro de
suas concepções geográficas (CLAVAL, 2002: 149). Contudo, a abordagem vidalina sobre
cultura dá-se, principalmente, através de seus aspectos técnicos e instrumentais, ou seja, a ênfase
que se dava aos elementos culturais era relacionada diretamente aos aspectos materiais da cultura.
Para La Blache, “a cultura pertinente é aquela que se apreende através dos instrumentos
que as sociedades utilizam e das paisagens que modelam.” (CLAVAL, 2001: 33). La Blache
chega a afirmar que “A Geografia é a ciência dos lugares e não dos homens (...)” (1913: 47). O
interesse de Vidal se dá em descrever as relações dos grupos humanos com seu meio ambiente.
Em seus trabalhos, ele prioriza as “sociedades tradicionais”. Acontece que a temporalidade, os
deslocamentos espaciais e as técnicas utilizadas por essas sociedades se processavam de maneira
mais simples. Os trabalhos cotidianos não eram tão diversificados, as hierarquias não eram tão
2
A antropogeografia se insere como uma das propostas de Ratzel para a construção de um novo campo de
conhecimento. Segundo Carvalho, a antropogeografia deveria “fundamentar pretensões interessadas no entendimento
do complexo terrestre, considerando o conjunto de seus elemento constitutivos, sejam eles físico-biológicos ou
histórico-culturais. (...) a despeito de alguns de seus críticos afirmarem que nas propostas de Ratzel a ação humana é
vista como passiva diante das determinações físico-ambientais, a posição do pensador alemão é clara: ‘A maior parte
das influências que a natureza exerce sobre a vida espiritual do homem manifesta-se por meio das condições
econômicas e sociais, as quais são, por sua vez, com elas profundamente coligadas.’ A partir da elaboração de
discursos pautados no procedimento geográfico, conseqüentemente antropogeográfico, Ratzel via a possibilidade de
construção de áreas de conhecimento com características pouco restritivas, que se diferenciavam de outras ciências,
principalmente por causa do alcance das suas observações” (2004: 73-77).
22
complexas. Os homens do campo tinham, relativamente, os mesmos horários, guiados pelo
amanhecer e anoitecer. E na colheita das safras, eram as estações do ano que regiam as
temporalidades. A rotina das mulheres e crianças também era mais previsível, as mulheres eram
as guardiãs dos lares e as crianças logo tinham que aprender o ofício de seus pais. Dentro desse
contexto, a geografia vidalina analisava o calendário dos grupos sociais, como empregavam o seu
tempo, quais eram os seus instrumentos de trabalho e os seus modos de vida. É através desses
trabalhos que ele desenvolve o que vai chamar de gêneros de vida. Gêneros de vida passa a ser,
então, um dos eixos delineadores da geografia vidalina. Contudo, gêneros de vida vai se mostrar
epistemologicamente problemático como instrumento de análise diante da complexidade das
sociedades urbano-industriais.
O termo geografia cultural volta a ganhar popularidade em 1925, através da influência do
geógrafo norte americano Carl Sauer (1889-1975), fundador da escola de Berkeley (CLAVAL,
2001). Essa geografia cultural, tendo em seu cerne os “artefatos culturais” foi bastante difundida
(CORRÊA e ROSENDAHL, 2003). Contudo, a cultura ainda continuava sendo vista mais por
seus aspectos materiais: tipos de habitat, ferramentas de trabalho, tipos de paisagens cultivadas,
etc. (CLAVAL, 2000). Segundo Carl Sauer, a geografia cultural:
Continua sendo, em grande parte, observação direta de campo baseada na
técnica de análise morfológica desenvolvida em primeiro lugar na geografia
física. Seu método é evolutivo, especificamente histórico até onde a
documentação permite e, por conseguinte, trata de determinar as sucessões de
cultura que ocorreram numa área. (1931: 25)
Sauer tem uma importância fundamental nos estudos geográficos envolvendo a cultura.
Foi ele por exemplo, quem trouxe para a geografia norte-americana a palavra landscape
(paisagem), transmutação da palavra alemã landschaft3 (HOLZER, 1999). Contudo, o seu
delineamento de cultura ainda é, principalmente, material. “Sauer e seus discípulos, investigando
o mundo rural e arcaico, concentravam-se em artefatos físicos específicos (as cabanas de
madeira, as cercas dividindo territórios)” (COSGROVE e JACKSON, 1987: 136). A geografia
cultural desenvolvida por Sauer e seus alunos da escola de Berkeley, ainda era uma geografia que
3
De acordo com Holzer, existem diferenças lingüísticas entre as palavras alemã landschaft; a palavra francesa
paysage; e a palavra anglo-saxônica landscape. “A palavra alemã é mais antiga, medieval, seu conteúdo é mais
abrangente e mais complexo que o das línguas latinas, onde o termo é renascentista, já limitado, em sua origem, às
artes plásticas. ‘Landschaft’ se refere a uma associação entre o sítio e os seus habitantes, ou se preferirmos, de uma
associação morfológica e cultural.” (HOLZER, 1999: 152).
23
desconsiderava a dimensão imaterial da cultura. Apesar de muito interessante, a geografia
saueriana não explicava muitas das indagações a respeito das diversas manifestações humanas
sobre a face da terra. Contudo, é interessante observar as considerações de Cosgrove:
Os primeiros geógrafos culturais trabalharam num meio intelectual dominado
pelo determinismo geográfico, no qual mesmo fenômenos culturais nãomateriais eram considerados como o resultado de ‘fatores geográficos’
(BURGESS, 1978). Eles também enfatizaram a unidade da sociedade e a
importância da compreensão histórica. Paul Vidal de la Blache e Carl Sauer são
figuras-chave no início do desenvolvimento da geografia cultural européia e
americana. (1893: 106)
Assim, apesar das relevantes contribuições da antiga geografia cultural, diversos
geógrafos continuavam buscando mais explicações sobre os motivos humanos nas construções
das paisagens e espaços. É dentro desse contexto que a geografia cultural entra em declínio no
decorrer dos anos 1950 e 1960 (CLAVAL, 1992; 1999).
A geografia cultural que parecia estar enfraquecendo ganha um novo vigor. Nos anos
1970, a dimensão imaterial da cultura começa a aparecer em trabalhos geográficos. Na França,
destaca-se Armand Frémont, com o seu livro La Région, espace vécu “A região, espaço vivido”
publicado em 1976 (CLAVAL, 2001; 2002). Na geografia anglo-saxônica, destacam-se
geógrafos como: Denis Cosgrove, Peter Jackson e James Duncan. Cosgrove em seu artigo “Em
direção a uma geografia cultural radical: problemas da teoria”, faz a seguinte crítica,
“Perdemos o reconhecimento crucial de que a produção da ordem simbólica é, em si mesma, uma
dimensão do trabalho humano” (1983: 122). Já Duncan, em artigo publicado em 1980, faz duras
críticas a concepção supra-orgânico4 de cultura da geografia saueriana, nas palavras dele “Minha
posição é a de que a separação do indivíduo da cultura é um erro ontológico” (1980: 89). Claval
chega a considerar esse artigo de Duncan como um marco de definição da nova geografia cultural
(CLAVAL, 2000: 50).
4
“A teoria da cultura enquanto entidade supra-orgânica foi esboçada pelos antropólogos Alfred Kroeber e Robert
Lowie durante os primeiros 25 anos do século XX, sendo, posteriormente, elaborada por Leslie White. A cultura era
vista como uma entidade acima do homem, não redutível às ações dos indivíduos e misteriosamente respondendo a
leis próprias. Além disso, foi essa visão de cultura que passou a dominar a geografia cultural. Esta perspectiva foi
adotada especificamente por Carl Sauer ao se associar a Kroeber e Lowie em Berkeley nas décadas de 1920 e 1930,
sendo posteriormente transmitida para seus alunos. (...) De fato, a ambigüidade com a qual muitos geógrafos
culturais abordam a questão da natureza supra-orgânica da cultura revela um fracasso no entendimento das
implicações dessa posição. (...) [é] uma teoria que vem sendo amplamente contestada e, há muito tempo, rejeitada
[até mesmo] pela grande maioria dos antropólogos.” (DUNCAN, 1980: 64-65).
24
Nesse sentido, a cultura passou a ser vista de forma mais abrangente, compreendendo
todo um dinamismo que envolve a transmissão de conhecimentos, perpassando pela linguagem,
aprendizados e toda uma caracterização de entendimentos de mundo. Constata-se, que “a vida
dos grupos humanos e suas atividades jamais são puramente materiais. São a expressão de
processos cognitivos, de atividades mentais, de trocas de informação e de idéias” (CLAVAL,
2000:39), ou seja, não podemos concluir que as espacialidades5 humanas estejam somente
relacionadas aos elementos materiais. Lembrando Cassirer “devemos analisar as formas da
cultura humana para podermos descobrir o verdadeiro caráter do espaço e do tempo no nosso
mundo humano” (2005: 74). Uma das maiores diferenças do ser humano para os outros animais é
a sua inata capacidade de formulação simbólica. Sendo assim, os geógrafos culturais,
gradativamente, se deram conta da dimensão simbólica da cultura. Essa consideração dos
aspectos subjetivos da cultura é, sem dúvida, um dos traços mais marcantes da nova geografia
cultural.
Dessa forma, o conceito de “cultura” passa a ser entendido na geografia cultural de
maneira abrangente. Ao observarmos a lingüística, a psicologia social, a própria antropologia e
filosofia, percebemos que todas elas estão inseridas no arcabouço do que chamamos de cultura.
Assim, a geografia cultural favorece os geógrafos que sentem necessidade de investigar aspectos
mais subjetivos da espacialidade humana, pois “O enfoque cultural se interessa pela maneira
como as realidades são percebidas e sentidas pelos homens (...)” (CLAVAL, 2004: 35).
Compreendemos, da mesma maneira que Amorim Filho (2007) que as correntes
geográficas não são, necessariamente, excludentes. Nesse sentido, a abordagem cultural em
geografia não se insurge dicotomizando, mas somando perspectivas na busca de um
conhecimento mais complexo e abrangente dos fenômenos.
Geografia cultural sanciona um esforço por parte do pesquisador em se abstrair de
preconceitos, para que dessa maneira possa estar mais apto a compreender o “olhar” do outro.
Esse olhar, aqui significando as maneiras próprias que cada grupo social tem de entender o
mundo, de compreender a vida. A descoberta dos códigos de comunicação dos grupos humanos
perpassa pelo cerne da geografia cultural. Faz-se necessário entender a dinâmica das
5
Ao utilizarmos o termo espacialidade, estamos fazendo referência à ação social no espaço. A terminologia
espacialidade envolve uma concepção de espaço construído socialmente, em outras palavras, é o espaço considerado
como constructo social. Para maiores detalhes ver Soja (1993).
25
intersubjetividades dos grupos para poder decodificá-los espacialmente. Essas intersubjetividades
vão aflorar através dos significados, dos valores atribuídos e das normas existentes para o
funcionamento da organização social de cada grupo humano.
A linguagem é um eixo norteador nas análises da geografia cultural (CLAVAL, 1992;
1999; 2000; 2001; 2006). Sem a linguagem, nem a cultura e nem mesmo a vida humana
poderiam existir. Os processos sociais, construtores de espaços são indissociáveis dos aspectos
comunicativos. E é através da linguagem – dentro de um contexto, histórico, social e cultural –
que as representações são elaboradas e re-elaboradas.
1.2 Representações
As representações têm tanto a ver com seu caráter simbólico o qual perpassa pela sua
elaboração – na busca de entendimentos e de maneiras de significar – quanto com práticas sociais
que as corroboram. Delinear a abrangência das representações implica em adentrar em aspectos
culturais, históricos, sociais e espaciais. Na verdade, o estudo das representações se caracteriza
como um dos eixos da geografia cultural. “Estudar a cultura é abordar a vida de relação a partir
de um ângulo original: o da invenção e transmissão de representações” (CLAVAL, 1992: 160).
Neste trabalho, estaremos articulando o conceito de representações, principalmente,
através da teoria das representações sociais do psicólogo social Serge Moscovici (2003).
Moscovici delineia as representações como conhecimentos que são elaborados e re-elaborados
socialmente através da linguagem e da ação, formando assim entendimentos de mundo que
podem ser compartilhados, ou seja, as representações para Moscovici são fenômenos de base
sócio-cultural. O conceito de representações sociais desenvolvido por Moscovici tem por raízes a
ideia de representação coletiva de Durkheim. De acordo com Gil Filho:
A base de aproximação dos trabalhos de Moscovici (1990) está na idéia de
representação coletiva de Durkheim (1996), que atribui a ela uma autonomia
dos parâmetros puramente psíquicos de sua gênese. As representações coletivas
seriam a própria trama da vida social, possuindo um caráter relacional tanto
entre indivíduos como entre grupos sociais. Desse modo, são os fenômenos
sociais que revestem as representações de seu caráter concreto e inteligível.
(2005: 55)
26
Justamente pelas representações serem construções sociais é que podemos utilizá-las na
decodificação do espacial, ou em outras palavras, dos espaços vividos. As representações não são
construídas a-histórica ou a-culturalmente. Elas são entendimentos de mundo, perpassadas
através da linguagem dentro de um contexto histórico, social e cultural. Ou seja, as
representações não são uma espécie de entidade independente dissociada do contexto social e
espacial. Elas são elaboradas e re-elaboradas socialmente e se modificam através do tempo e do
lugar. De acordo com Moscovici, “As representações sociais devem ser vistas como uma maneira
específica de compreender e comunicar (...) [elas] têm como seu objetivo abstrair sentido do
mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma forma
significativa.” (2003: 46). E ainda “Nossas representações, pois, tornam o não-familiar em algo
familiar.” (Ibid: 78). Assim, as representações são conhecimentos socialmente construídos,
transmitidos e assimilados, que têm a função de tornar familiar o que ainda não era familiar. Ou
seja, tornar inteligível o que antes não o era, dar significado ao que antes não possuía uma
resposta, uma explicação.
Considerando o potencial epistemológico das representações, um número cada vez maior
de geógrafos vem utilizando-as em suas pesquisas e análises. E procurando dar um enfoque
geográfico mais explícito às representações, alguns geógrafos têm falado em representações
espaciais. (ALMEIDA, 2003; KOZEL, 2004). De acordo com Kozel:
As representações espaciais advêm de um vivido que se internaliza nos
indivíduos, em seu mundo, influenciando seu modo de agir, sua linguagem,
tanto no aspecto racional como no imaginário, seguidas por discursos que
incorporam ao longo da vida. (...) A geografia, ao incorporar essa vertente, é
enriquecida com novas problemáticas que a tornam mais atraente,
principalmente em relação ao enfoque ambiental e sociocultural. (2004: 220221)
As representações então, nos possibilitam investigar aspectos das intersubjetividades humanas. E
faz-se coerente dentro da perspectiva cultural em geografia, justamente, por capacitar o
pesquisador a compreender as formas de entendimento de mundo do outro. Segundo Almeida:
O estudo das representações espaciais centra-se sobre as modalidades de
apreensão do mundo e do status do real (...) É através de um conhecimento das
representações das pessoas que é possível captar toda a riqueza de valores que
dão sentido aos lugares de vida dos homens e mulheres; pelas representações
27
também é possível entender a maneira pela qual as pessoas modelam as
paisagens e nelas firmam suas convicções e suas esperanças. (2003: 71)
Cada ser humano e grupos sociais possuem as suas especificidades, as suas
idiossincrasias. E as representações se insurgem como um conhecimento facilitador na
decodificação dos entendimentos de mundo dos grupos humanos. Para Moscovici (2003), o eixo
das representações é a comunicação. É através da comunicação que as representações são
elaboradas e re-elaboradas. Esse processo tem íntima relação com o contexto sócio-cultural em
que se vive. É através desse contexto sócio-cultural, o qual tem no cerne de sua dinâmica a
comunicação, que as imagens, crenças e formas de pensar o mundo são construídas.
Para Moscovici, as representações sociais têm por principal finalidade “tornar a
comunicação, dentro de um grupo, relativamente não-problemática e reduzir o ‘vago’ através de
certo grau de consenso entre seus membros.” (Ibid: 208). Esse “vago” ao qual se refere
Moscovici, é justamente a falta de sentidos e significados comuns, o que gera conseqüentemente
incompreensão entre as partes. Assim, justamente pelo caráter sócio-cultural das representações,
elas têm a característica de estabelecer entendimentos comuns. Conhecimentos pré-existentes
servem de base para que através da linguagem entre atores de um grupo formem-se idéias e
imagens mentais que serão comumente aceitas e compartilhadas.
As próprias concepções de valores humanos, os conceitos e teorias, as coisas que são
consideradas interessantes e as coisas que não são dignas de atenção, tudo isso perpassa pela
abrangência do que chamamos de representações. É nesse sentido que os comportamentos são
influenciados pelas representações, e simultaneamente contribuem para a deterioração,
corroboração ou re-elaboração de novas representações.
Ao analisarmos o espaço vivido da Cantoria Nordestina, com certeza, nos deparamos com
representações construídas por seus atores. Essas representações contribuem para a formulação
de modelos de entendimentos específicos entre os mesmos. É nesse sentido, que ao abordarmos
as representações relativas ao contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina podemos
descortinar traços interessantes, tais como: valores, significados e comportamentos simbólicos.
28
1.3 Identidade
O conceito de identidade é articulado neste trabalho, principalmente, através das leituras
de Oliveira (1976), Haesbaert (1997; 1999) e Claval (1992; 1999; 2001; 2006). Considerando as
abordagens desses autores, podemos afirmar que os diversos grupos sociais se caracterizam por
interligações ou similaridades que são estabelecidas entre seus atores através de seus contextos
sociais, espaciais e culturais. Ou seja, existe nas inter-relações entre indivíduos e grupos uma
dinâmica de identificações. Essa dinâmica é na verdade, o intercâmbio sócio-cultural que
caracteriza os diferentes atores e grupos como diferentes ou semelhantes. Segundo Haesbaert, “A
identidade, em primeiro lugar, pode tanto estar referida a pessoas como a objetos, coisas. Em
segundo lugar, ela implica uma relação de semelhança ou de igualdade” (1999: 173).
A ideia de relacionamento entre o “eu” e o “outro”, entre o “nós” e o “eles” é central na
caracterização do conceito de identidade. De acordo com Oliveira:
a identidade social não se descarta da identidade pessoal, pois esta também de
algum modo é um reflexo daquela. (...) O conceito de identidade pessoal e
social possui um conteúdo marcadamente reflexivo ou comunicativo, posto que
supõe relações sociais tanto quanto um código de categorias destinado a
orientar o desenvolvimento dessas relações. (1976: 4-5)
Consoante com esta afirmação, Haesbaert acrescenta que “Ao envolver um processo de
classificação e/ ou de distinção, a identificação social legitima um existir social onde a percepção
das diferenças é fundamental para a afirmação do grupo cultural” (1999: 175). Claval nos fornece
um exemplo interessante “Porque somos agricultores, soldados ou operários, porque utilizamos
habilidades parecidas e porque lidamos com os mesmos problemas, descobrimos que formamos
um corpo” (1992: 174). Este corpo abordado por Claval é uma analogia, um corpo é formado por
cada um de seus membros, de seus órgãos e cada um deles têm a sua respectiva função. Descobrir
que formamos um corpo, significa descobrir que pertencemos a um determinado grupo, é uma
identificação que se estabelece. O sentimento de identidade faz parte da própria contextualização
humana, ou seja, os indivíduos e grupos necessitam para sua própria sobrevivência social de um
certo grau de identificação entre indivíduos e/ou entre grupos. É essa identificação que possibilita
o surgimento de sentimentos de pertencimento, sentimentos esses muitas vezes associados a
determinados recortes espaciais ou territórios.
29
Assim, o conceito de identidade tem haver tanto com o sentimento de pertencimento ou
não-pertencimento, o qual é desenvolvido através dos processos sociais; quanto a ligações
estabelecidas com espaços específicos. De acordo com Claval, a construção do sentimento de
identidade “baseia-se na idéia de uma descendência comum (LAFAZANI, 1993), de uma história
assumida em conjunto ou de um espaço com o qual o grupo assume elos (...)” (2001: 179). Sobre
a relação entre geografia cultural e o conceito de identidade, Claval esclarece que a geografia
cultural moderna:
se construiu em torno de três eixos que são igualmente necessários e
complementares: primeiro, ela parte das sensações e das percepções; segundo, a
cultura é estudada através da ótica da comunicação, que é, pois, compreendida
como uma criação coletiva; terceiro, a cultura é apreendida na perspectiva da
construção de identidades, insiste-se então no papel do indivíduo e nas
dimensões simbólicas da vida coletiva. (2006: 92)
Assim, consideramos que a construção de identidades está associada à cultura, tanto em
sua dimensão material quanto imaterial. Toda a vida humana se desenvolve inevitavelmente em
algum lugar específico, os seres humanos convivem socialmente tendo por matriz um espaço
físico concreto. Identidade, portanto, é um conceito relevante para decifrarmos significados
simbólicos, tanto a nível de inter-relações sociais quanto a nível de concepções espaciais.
1.4 Geografia Humanista
A geografia humanista se insurge no pensamento geográfico como uma proposta
alternativa aos parâmetros positivistas dominantes na época. Ela vai ser gerada no âmbito norteamericano, por meados da década de 60, no intuito de buscar renovações aos paradigmas até
então dominantes. Alguns dos principais expoentes desse movimento são, David Lowenthal, Yifu Tuan, Anne Buttime e Edward Relph. Sendo que o primeiro, um ex-aluno de Sauer, inspirado
em John Kirtland Wright6, publicou em 1961 um artigo que propunha uma nova concepção
6
“Na década de 1940 Jonh K. Wright publicou ‘Terrae Incognitae: o lugar da imaginação’, postulando que todos os
seres humanos de certa forma são geógrafos e que existem terras pessoais física e simbolicamente.” (KOZEL, 2006:
118). E posteriormente Wright “então presidente da Association of American Geographers (AAG), em 1947, faria
um discurso exortando os geógrafos a explorar as ‘terras incógnitas pessoais’, ao estudo da imaginação que povoa a
mente de todos nós, e que levasse a geografia pra além do plano acadêmico que a sujeita aos métodos de análise
objetivos.” (HOLZER, 1997: 9).
30
epistemológica para a geografia. O paradigma positivista caracterizado na dicotomia sujeitoobjeto já não satisfazia a um contingente cada vez maior de geógrafos. Segundo Lowenthal,
“Alguns aspectos da Geografia são recônditos, outros obscuros, ocultos ou esotéricos; (...) Por
mais que metodologistas pensem em como a Geografia deve ser, o temperamento de seus
praticantes a faz universal e multifacetada” (1961: 104). Lowenthal demonstra que as
perspectivas humanas de visão de mundo possuem diferentes pontos de vista. “Os cientistas,
como também os leigos, ignoram as evidências incompatíveis com os seus preconceitos” (Ibid:
112). Ao abordar as diferentes perspectivas, Lowenthal trabalha com a percepção e demonstra
que o ponto de vista depende do observador. Ele explora as geografias da mente, é uma maneira
totalmente diferenciada de se fazer geografia considerando as concepções positivistas dominantes
na época. “Os artefatos mais imperativos são apenas pálidos reflexos da arquitetura lapidar da
mente (...)” (Ibid: 119).
Procurando dar um suporte teórico-filosófico para essa nova concepção geográfica, que
em breve seria delineada explicitamente como geografia humanista, alguns geógrafos publicaram
trabalhos relacionando-a à fenomenologia. Dentre eles, Relph em 1970, Tuan em 1976, Mercer e
Powell em 1972, e Buttimer em 1974 (HOLZER, 1997). O que esses geógrafos tinham em
comum era o interesse em pesquisar aspectos intersubjetivos da espacialidade. Convém ressaltar
que a fenomenologia continuou sendo utilizada na geografia humanista, porém de maneira mais
implícita do que explícita. O conceito fenomenológico de mundo vivido foi o mais utilizado pelos
geógrafos, o qual veio a se caracterizar dentro do enfoque geográfico no conceito de lugar.
O termo geografia humanista é explicitado através de um artigo de Tuan, intitulado
“Humanistic Geography”, publicado em 1976. Nele Tuan delineia que “A Geografia Humanística
reflete sobre os fenômenos geográficos com o propósito de alcançar melhor entendimento do
homem e de sua condição”7 (1976: 143). Tuan também critica o modelo cartesiano de ciência
herdado do iluminismo. Para ele, esses modelos simplificam a complexidade e belezas da
manifestação humana sobre a terra. Essa concepção dicotômico-quantitativa é perigosa, no
sentido que desconsidera a pluralidade humana, presente justamente, na sua intrínseca natureza
simultaneamente objetiva e subjetiva. De acordo com Tuan:
7
A palavra “humanística” colocada aqui, é referente à tradução do artigo para o português presente no livro
“Perspectivas da Geografia” (CHRISTOFOLETTI, 1982). No Brasil, essa corrente de pensamento geográfico ficou
conhecida através dessas duas terminologias: “geografia humanística” e “geografia humanista”. No entanto dentro
deste trabalho estaremos utilizando preferencialmente a palavra humanista.
31
As abordagens científicas para o estudo do homem tendem a minimizar o papel
da conscientização e do conhecimento humano. A Geografia Humanística, em
contraste, tenta especificamente entender como as atividades e os fenômenos
geográficos revelam a qualidade da conscientização humana. (...) todos os
modelos científicos do homem simplificam a capacidade humana de saber, criar
e ofuscar. (1976: 146)
No mesmo ano, e também publicado no mesmo número dos Annals of the AAG, Anne
Buttimer publica um artigo que vem corroborar com a proposta de Tuan. Em seu Grasping the
dynamism of lifeworld (Apreendendo o dinamismo do mundo vivido), Buttimer trabalha a
experiência humana do espaço, e também critica a dicotomia sujeito-objeto tão presente no
pensamento científico. Ela fala da “tarefa comum que enfrentamos: um esforço combinado para
reconciliar coração e mente, conhecimento e ação, em nossos mundos diários” (1976: 167). Para
isso ela utiliza a fenomenologia, articulando-a dentro de um contexto geográfico. Segundo ela
“Os fenomenologistas (...) Desafiando muitas das premissas e dos procedimentos da ciência
positiva, expuseram uma crítica radical do reducionismo, da racionalidade e da separação de
‘sujeitos’ e ‘objetos’ na pesquisa empírica.” (Ibid: 167). Buttimer também busca uma geografia
que valorize mais o humano. Ela argumenta que a pessoa vivencia o lugar de forma ampla e nesta
vivência os aspectos subjetivos – como emoções, vontades e significados – estão presentes. Fala
também da intersubjetividade da linguagem nas relações humanas, e dos significados subjetivos
que são necessários serem apreendidos para o indivíduo se posicionar no grupo. Delineia que a
percepção é relacionada com a ligação corpo-mente (condição humana material-dimensão
simbólica); e a experiência espacial, já em outra escala, se faz entre pessoa-mundo. Ou seja, é
uma geografia que desafia os padrões dicotômicos estabelecidos e que, consoante com as
propostas de Tuan e Lowenthal, soma esforços no sentido de considerar o ser humano de modo
mais abrangente.
Assim, a geografia humanista delineia que o meio ambiente, ou em outras palavras, os
espaços físicos, não são simplesmente “observados”. Os seres humanos vivenciam o seu espaço,
fazem parte dele. A dicotomia ser humano/meio é útil em sentido didático, mas perigosa no
aspecto epistemológico. Na vivência humana na terra, o corpo funciona como matriz à percepção
espacial. Não observamos a natureza como simples espectadores, nós há vivenciamos. E nesta
vivência, neste viver, nos inter-relacionamos com o meio ambiente utilizando toda nossa
potencialidade humano-perceptiva. Essa talvez seja a maior contribuição de Tuan e dos geógrafos
humanistas: demonstrar que o espaço é sentido, é percebido, é vivenciado através de múltiplas
32
capacidades humanas, daí o conceito de espaço vivido também utilizado na geografia humanista,
e todo o envolvimento desta corrente geográfica com a fenomenologia.
Os geógrafos humanistas utilizaram a fenomenologia no sentido de suporte para seus
desdobramentos teóricos. Ela entra como uma corrente filosófica que vai se contrapor à
dicotomia sujeito-objeto oriunda do iluminismo. Para o filósofo Merleau-Ponty, por exemplo, a
aquisição mais importante da fenomenologia foi ter unido o extremo subjetivismo ao extremo
objetivismo em sua noção de mundo ou de racionalidade. E de acordo com Anne Buttimer, “A
fenomenologia tenta transcender este dualismo cartesiano [modos subjetivos e objetivos de
conhecimento] e propõe um modo de conhecer que reconhece a validade de ambos (...)
ambiciona encontrar, mais do que dominar, o objeto a ser conhecido” (1976: 175). O íntimo da
geografia reside na inter-relação existente entre o ser humano e o meio, ou seja, uma relação
espacial. Neste sentido, a geografia humanista contribui no delineamento que a percepção
humana capta da realidade e, conseqüentemente, atribui significado às coisas.
Werther Holzer (1997) fala da contribuição de Edward Relph com relação à importância
da fenomenologia para a geografia. Segundo Relph:
Fenomenologia tem a ver com princípios, com as origens do significado e da
experiência. (...) De uma perspectiva fenomenológica, os espaços (...) são os
contextos necessários e significantes de todas as nossas ações e proezas. Então,
o espaço não é euclidiano ou alguma outra superfície ou forma geométrica, na
qual nos movimentamos e que percebemos como sendo separada de nós. (...)
Através de nossos sentidos estamos ligados ao espaço – nós penetramos e
olhamos dentro dele, movemo-nos através dele, ouvimos e cheiramos através
dele. (1979: 1-8)
Para Relph, a fenomenologia pode auxiliar a geografia epistemologicamente,
possibilitando um campo de trabalho para os geógrafos que se ocupam da subjetividade espacial.
De acordo com Holzer, “O método fenomenológico seria utilizado para se fazer uma descrição
rigorosa do mundo vivido da experiência humana e com isso, através da intencionalidade,
reconhecer as essências de estrutura perceptiva” (HOLZER, 1997: 11-12).
Diversos geógrafos trabalharam princípios fenomenológicos na geografia. No entanto, o
primeiro deles, o qual serviu de inspiração tanto à geografia humanista quanto à geografia
cultural, foi Eric Dardel. Dardel, em 1952, já estaria fazendo uma análise fenomenológica da
relação entre o ser humano e o meio ambiente. De acordo com Holzer (2001: 103), “O livro,
33
intitulado L’homme et la terre – nature de la réalité géographique (DARDEL, 1952), não trata de
qualquer assunto usualmente abordado pelos filósofos. Seu objetivo é fazer uma análise
fenomenológica da relação visceral que o homem mantém com a terra.” Também sobre Eric
Dardel de acordo com Claval:
para ele, [Dardel] a primeira tarefa da geografia era a de compreender o sentido
que os homens davam a suas vidas na Terra. (...) Dardel enfocou uma idéia
central: a geografia tinha de explorar o sentido da presença humana na
superfície da Terra. (...) Os geógrafos franceses dos anos cinqüenta ignoraram
completamente o livro de Eric Dardel [L’Homme et la Terre]. Ele foi
redescoberto no começo dos anos setenta pelo geógrafo canadense Edward
Relph, e influiu muito na nova corrente da geografia humanista, nos países de
língua inglesa. (CLAVAL, 2002: 156-157)
Assim, a visão geográfica de Eric Dardel divergia muito das concepções positivistas
dominantes na época. Dardel já trabalhava uma geografia que buscava significados, que
valorizava aspectos subjetivos da natureza humana na construção de suas paisagens e lugares. A
visão, unicamente, cartesiana e o espaço geométrico não eram suficientes para ele:
O espaço puro do geógrafo não é o espaço abstrato do geômetra: é o azul do
céu, fronteira entre o visível e o invisível... Geografia sanciona uma
fenomenologia do espaço. Em certo sentido, podemos dizer que o espaço
concreto da geografia liberta-nos do espaço humano infinito da geometria ou da
astronomia. (DARDEL, apud, NOGUEIRA, 2004: 219).
Assim, a geografia humanista, defende que os espaços não são simplesmente técnicos,
instrumentais ou mercantis. Os espaços são vivenciados e são percebidos através de suas
especificidades, de diferentes maneiras, por quem os vivencia. Os espaços então, não devem ser
analisados unicamente pelo viés lógico instrumental e quantitativo. É neste sentido, que a
geografia humanista se insurge como uma maneira de humanizar o pensamento geográfico,
através da valorização das características intersubjetivas. Ballesteros, no livro Geografía y
humanismo, considera que a geografia humanista seja “uma geografia do mundo vivido em que
os valores são a chave da totalidade das experiências e o lugar é um importante componente de
nossa identidade como sujeitos”8 (BALLESTEROS, 1992: 10).
8
“una geografía del mundo vivido en la que los valores son la clave de la totalidad de las experiencias y el lugar es
un importante componente de nuestra identidad como sujetos.”
34
A geografia humanista e a geografia cultural, apesar de terem históricos e contextos
diferentes, não são necessariamente excludentes. De acordo com Buttimer:
O termo ‘humanista’ tem também diferentes significados de um país ou
tradição lingüística à outro (Racine, 1978; Relph, 1981; Claval, 1984). Em
alguns casos os termos ‘social’, ‘cultural’ e ‘humanismo’ são intercambiáveis.
(...) Apelo a sua indulgência e não me adentro em questões de definição e
limites para um campo chamado Geografia Humanista. Os termos com letras
maiúsculas acabados em ‘-ismos’ e ‘-logias’, sempre me preocupam. Desde
logo aportam vias para etiquetar e classificar as escolas e os estudiosos, mas
9
também desagregam a empresa intelectual em seu conjunto. (1992: 20-21).
Amorim Filho, também reflete sobre a aproximação entre a geografia cultural e a
humanista. Segundo ele, a geografia humanista que:
nas etapas iniciais, tinha-se dado preferencialmente com os modelos e os
profissionais da psicologia – começou também, mais recentemente, a se
desenvolver com outras orientações epistemológicas, entre elas com a geografia
cultural. Isto vem ocorrendo, em grande parte, porque temas como os das
religiões, nacionalidades, etnias, valores, entre outros fundamentais na
elaboração de representações e imagens geográficas, possuem também peso
significativo na temática e nas reflexões da geografia cultural. (2004: 235)
Assim, escolhemos trabalhar com as premissas tanto da geografia cultural quanto
humanista, justamente pela natureza de nossa pesquisa. A análise do espaço vivido da Cantoria
Nordestina sanciona um estudo tanto a nível de mundo vivido, (o qual se relaciona diretamente
com percepção e experiência); quanto a nível sócio-cultural, (o qual está inter-ligado com a
elaboração e re-elaboração de representações). É nesse sentido que “Uma geografia humanista
considera a cultura como central para seu objetivo: compreender o mundo vivido de grupos
humanos” (COSGROVE, 1983: 104).
9
El término ‘humanista’ tiene también diferentes significados de un país o tradición lingüística a otro (Racine, 1978;
Relph, 1981; Claval, 1984). En algunos casos los términos ‘social’, ‘cultural’ y ‘humanístico’ son intercambiables.
(...) Apelo a su indulgencia y no me adentro en cuestiones de definición y límites para un campo llamado Geografía
Humanística. Los términos con letras mayúsculas acabados en ‘-ismos’ y ‘-ologías’, siempre me inquietan. Desde
luego aportan vías para etiquetar y clasificar a las escuelas y a los estudiosos, pero también disgregan la empresa
intelectual en su conjunto.
35
1.5 Lugar
Considerando premissas tanto da geografia cultural quanto humanista, pode-se falar
inicialmente que lugar é um determinado ponto no espaço que possui significado. A significância
do lugar é, justamente, o complexo elemento subjetivo que dá vida a ele. O que isso quer dizer?
Quer dizer que o lugar só existe através de uma íntima inter-relação pessoa/ lugar, e essa relação
se processa permeada tanto por aspectos subjetivos como objetivos. A cultura, a história, os
processos sociais, influenciam em como as pessoas percebem os lugares. Convém ressaltar que
ao utilizarmos a palavra “pessoa” não estamos nos referindo unicamente ao corpo como objeto
mecânico, e sim a inter-relação mente-corpo. O corpo não deve ser considerado apenas por seus
aspectos materiais, pois mente e corpo se completam na experiência de vivenciar o mundo. “Se se
considera o corpo como objeto, como no behaviorismo, deixa-se de reconhecer a importância da
psique” (BUTTIMER, 1976: 176). É dentro dessa ótica que os lugares, em uma análise
geográfica, não podem ser caracterizados apenas por seus aspectos materiais. Na verdade, o lugar
é construído em sua significância de forma inter-relacionada com o humano. De acordo com
Silva, “o lugar é pleno de emoções, de conhecimentos incorporados que nascem da vivência, da
observação e do acúmulo da sensibilidade oriunda do lugar” (2007: 233).
Tanto a emoção como o pensamento tem relevância na construção do que chamamos de
lugar. Isso se explica no sentido de que os lugares são lugares para alguém. Os lugares não são
neutros, abstratos... eles são vivenciados. Dentro desse contexto é que existe uma intrínseca
relação pessoa/ lugar. Os lugares possuem cheiro, som, textura, cor... e também tem uma ligação
com a lembrança, é justamente por isso que são importantes elementos das histórias de vida das
pessoas. As pessoas se identificam através dos lugares. O lugar de nascimento por exemplo, na
maioria das vezes, é uma referência durante toda a vida de alguém.
Assim, a abordagem exclusivamente geométrica, ou cartesiana,
é insuficiente para
explorar as especificidades do lugar. “A experiência subjetiva, a fantasia e o gosto influenciam o
caráter dos lugares.” (BUTTIMER, 1976: 173). Um dos geógrafos que deu bastante ênfase ao
conceito de lugar foi Tuan (1976; 1980; 1983; 2005). De acordo com ele:
Como um mero espaço se torna um lugar intensamente humano é uma tarefa
para o geógrafo humanista; para tanto, ele apela a interesses distintamente
humanísticos, como a natureza da experiência, a qualidade da ligação
36
emocional aos objetos físicos, as funções dos conceitos e símbolos na criação
da identidade do lugar. (1976: 149-150)
Portanto, Tuan trabalha com a ideia de que a construção do lugar é feita gradativamente
através da percepção e experiência. Ele explica que “O espaço transforma-se em lugar à medida
que adquire definição e significado” (1983: 151). E também afirma que “Lugar é uma pausa no
movimento” (Ibid: 153). Esta “pausa no movimento” significa na ótica tuaniana o mínimo de
tempo necessário para que um lugar possa ser percebido. Adquirir definição e significado passa a
ser, então, o eixo do processo pelo qual um determinado espaço se transforma em lugar. Mas essa
definição e significado só existem devido à existência do componente humano, que é justamente
quem consagra ao lugar uma dimensão simbólica e imaterial.
Almeida fazendo uma análise das representações acerca do sertão, aborda a temática dos
lugares da seguinte maneira: “Os lugares vividos são frutos das relações tecidas entre os homens
e o meio e os sentimentos de pertencimento; sentimentos que correspondem às práticas e às
aspirações, estando estas relações codificadas por signos que lhes dão sentido” (2003: 73).
Assim, é interessante observar que a comunicação também faz parte do processo de
caracterização e significação do lugar. O lugar pode ter um significado a nível individual, mas na
maioria das vezes essa significação se desenvolve através de um contexto sócio-cultural. O apego
ao lugar se caracteriza por inter-relações estabelecidas no mesmo; inter-relações essas que são
constantemente mediadas através da linguagem.
Então, lugar pode ser entendido como uma parte de espaço que possui significado; sendo
que este significado é construído através da linguagem e da própria experiência do lugar, ou seja,
o lugar possui características materiais mas também possui inevitavelmente uma dimensão
simbólica. De acordo com Claval:
os lugares não têm somente uma forma e uma cor, uma racionalidade funcional
e econômica. Eles estão carregados de sentido para aqueles que os habitam ou
que os freqüentam. As pesquisas sobre a percepção do espaço e do ambiente
desenvolvidas pelos psicólogos são proveitosas. O romance torna-se algumas
vezes um documento: a intuição sutil dos romancistas nos ajuda a perceber a
região pelos olhos de seus personagens e através de suas emoções. (2001: 55)
É dentro dessas perspectivas que o conceito de lugar é delineado neste trabalho. Existe um
sentimento relacionado ao lugar que conseqüentemente contribui na caracterização de uma
37
identidade tanto do indivíduo quanto do grupo em questão. Assim, estudar o lugar implica abrirse pra aspectos intersubjetivos dos atores relacionados ao lugar. É neste sentido que a Cantoria
Nordestina – e mais especificamente as narrativas poéticas cantadas de improviso – pode
contribuir na decodificação de lugar relativa aos atores envolvidos na Cantoria Nordestina como
fenômeno sócio-espacial.
1.6 Topofilia
Topofilia também é um conceito relevante neste trabalho por diversos motivos, este
conceito trata sobre as inter-relações afetivas que os seres humanos estabelecem pelos lugares.
Topofilia é um neologismo desenvolvido10 por Yi-fu Tuan (1980) para designar a abrangência de
laços afetivos que o ser humano tem pelo meio ambiente ou pelo lugar. A primeira vista pode
parecer um conceito de fácil assimilação, mas ele não é tão simples. Compreender as topofilias de
indivíduos ou de grupos específicos, implica em decodificar os significados simbólicos existentes
por trás de aparentes materialidades espaciais. Ou seja, justamente por abranger aspectos
subjetivos do ser humano, tais como: percepção, valores, sentimentos e significados é que
topofilia se torna um conceito simultaneamente complexo e rico.
Assim, considerando a utilização da perspectiva de espaço vivido, a qual tem relação
tanto com os aspectos materiais como imateriais do espaço, é que percebemos que a análise
topofílica tem relevância no contexto deste trabalho. De acordo com Tuan, “O termo topofilia
associa sentimento com lugar” (1980: 129). É interessante lembrar que os aspectos físicos de um
determinado espaço, ou, lugar funcionam como estímulos às capacidades perceptivas e
cognitivas. Logicamente, essa percepção e essa construção do sentimento topofílico não estão
associadas, exclusivamente, aos aspectos físicos. A inter-relação social, juntamente com todo um
sistema de crenças e uma carga simbólica, contribuem de maneira bastante acentuada para a
configuração dos sentimentos que desenvolvemos pelos lugares. De acordo com Guimarães:
10
Não podemos dizer que topofilia é um neologismo “criado” exclusivamente por Tuan. Gaston Bachelard por
exemplo, já havia utilizado este termo para designar as imagens relacionadas ao espaço feliz. (BACHELARD, 2005:
19). No entanto, foi através dos trabalhos de Tuan que a concepção de topofilia ganhou maiores desenvolvimentos e
popularidade. Mas vale ressaltar, que outros geógrafos articularam o conceito de topofilia e sua antítese “topofobia”,
é o caso do geógrafo canadense Edward Relph. (RELPH, 1979).
38
Topofilia e topofobia implicam o reconhecimento de espaços e lugares muito
além da realidade objetiva. Trata-se de uma paisagem interna construída a partir
da concretude dos laços com o exterior, onde são múltiplos os símbolos, as
imagens, os sentimentos e expressões, o que também acontece com as formas
de interpretação e representação das experiências ambientais decorrentes.
(2003: 64-65)
Nos sentimos felizes quando estamos em lugares dos quais gostamos, lugares com os
quais nos identificamos. Tanto a geografia humanista quanto a geografia cultural trazem a
premissa de que o fenômeno humano não deve ser analisado unicamente através de suas
características sócio-econômicas. As análises sobre as inter-relações ser humano/meio, seriam
empobrecidas se ficassem presas a padrões limitados de investigação. É pertinente lembrar que a
emoção11 é uma das principais geradoras de ação dos seres humanos. E as ações são, justamente,
as efetivas geradoras da espacialidade.
1.7 Espaço vivido
Atualmente já existe um certo consenso entre os geógrafos de que o espaço é por
excelência o objeto de estudo da geografia. Contudo, essa palavra tão pequena, mas tão complexa
gera inúmeras interpretações, “espaço” na verdade é uma palavra altamente polissêmica. No
dicionário Aurélio, por exemplo, podemos encontrar mais de 13 verbetes para significar
“espaço”.
No entanto, geograficamente falando, o espaço é compreendido como um constructo
social. Ou seja, são as relações sociais que produzem o espaço e, simultaneamente, são
influenciadas por ele. Na verdade, o que existe é uma indissociável inter-relação entre os espaços
físicos e os processos sociais (SANTOS, 1996; 1997; 2004; 2006).
No entanto, considerando perspectivas da geografia crítica ou neomarxista, alguns
elementos intrínsecos dos próprios processos sociais como: os aspectos simbólicos, as
11
Milton Santos em seu livro “A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção” trás uma abordagem
altamente relevante para o conceito de emoção. De acordo com Milton: “a ação humana não é exclusivamente uma
ação racional. (...) E existe um agir simbólico, que não é regulado por cálculo e compreende formas afetivas,
emotivas, rituais, determinadas pelos modelos gerais de significação e de representação.” (2006: 81-82). Assim,
pode-se perceber que na geografia miltoniana mais recente, as emoções permeiam as relações sociais interpessoais, é
aonde ainda existe o espaço da solidariedade, aonde o racionalismo rígido e a lógica instrumental não infectaram de
forma totalizante o ser humano. De acordo com Milton, são os espaços das chamadas horizontalidades. O que
pretende-se demonstrar aqui, é a premissa de que na proposição que Milton Santos faz de “forma-conteúdo” existe
campo para se estudar os aspectos subjetivos do ser humano, pois os conteúdos são as relações sociais e estas são
prenhes de simbolismos, significados, códigos de comunicação e representações.
39
intersubjetividades, os códigos de comunicação, os sentimentos e as representações; ou eram
simplesmente deixados de lado, ou eram estudados de uma forma bastante superficial.
É através da geografia cultural e da geografia humanista, como vimos acima, que um
número cada vez maior de geógrafos procura desconstruir velhos paradigmas e reinserir dentro
das perspectivas geográficas a dimensão intersubjetiva do espaço. O espaço não deixa de ser
considerado um constructo social; todos os elementos se inter-relacionam: o político, o
ambiental, o econômico, o cultural, o social... Mas a dimensão intersubjetiva antes negligenciada
(pois considerada não-científica) passa a ganhar maior ênfase. É dentro desse contexto que
falaremos em espaço vivido.
O conceito de espaço vivido é desenvolvido primeiramente pelo geógrafo francês Armand
Frémont (1980). Ele não desconsidera as abordagens quantitativas e nem os estudos clássicos da
geografia, pelo contrário defende-os, mas ele também considera que o espaço possui uma
dimensão mais íntima, mais obscura. O espaço para Frémont não é simplesmente mecânico ou
quantitativo; o espaço para esse geógrafo é antes de qualquer coisa vivido. Assim, de acordo com
Frémont:
O espaço vivido é uma experiência contínua. (...) O espaço vivido é um espaçomovimento e um espaço-tempo vivido. (...) O espaço vivido é também, desde a
mais tenra idade, um espaço social. (...) Mas temos de constatar que, se o
espaço vivido acede às conceptualizações racionais da inteligência, ao
raciocínio num espaço cartesiano e euclidiano, também se revela portador de
cargas mais obscuras, em que se misturam as escórias do afectivo, do mágico,
do imaginário. (1980: 26-27)
O espaço vivido é, portanto, um espaço do sentir, da percepção e do vivenciar. Essa
concepção de espaço traz em si toda a pluralidade dos processos sociais e incorpora a ela
aspectos mais íntimos da percepção humana sobre o espaço; aspectos esses traduzidos através das
intersubjetividades, da dimensão imaterial do espaço e da inter-relação mente-corpo no processo
da percepção espacial.
Frémont considera os traços sócio-culturais na constituição do espaço vivido. Segundo
ele:
O espaço vivido toma dimensões sociais à medida que se forma, da criança até
ao homem. A mãe e o pai, os irmãos, os camaradas e os professores, os parentes
e as amizades, os grupos profissionais e as relações de vizinhança, mais além a
40
sociedade regional ou o “vasto mundo” da sociedade global constituem outras
tantas pessoas ou grupos que animam os círculos da vida. (Ibid: 35)
Espaço vivido é, portanto, como o próprio nome já diz, um espaço vivenciado através de
toda a potencialidade humana de vivenciar. Toda uma gama de elementos é experienciada
simultaneamente: cores, sons, texturas, cheiros... Através das relações sociais apreende-se os
códigos de comunicação, as normas de comportamento. Os valores simbólicos são construídos; a
mente humana divaga e busca sonhos, e os sonhos muitas vezes se materializam em ações. As
representações são construídas, e as maneiras de compreender o mundo são edificadas. “A vida é
vivida e não é um desfile do qual nos mantemos á parte e simplesmente observamos. O real são
os afazeres diários, é como respirar. O real envolve todo o nosso ser, todos os nossos sentidos”
(TUAN, 1980: 161).
A teoria do espaço vivido desenvolvida por Frémont tem muitas semelhanças com os
trabalhos desenvolvidos por geógrafos humanistas na década de 70. Contudo, Frémont
desenvolveu seus estudos independentemente do contato com esse grupo de geógrafos. Segundo
Claval, Frémont desenvolve “uma teoria do espaço vivido que explicita entre 1972 e 1975. Só no
final da apresentação desta é que toma consciência do que ela tem em comum com os trabalhos
dos investigadores anglo-saxônicos” (2006b: 117).
41
CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA
Alô Brasil
João Santana e Ismael Pereira
No Amazônas,
vou saudar o “boi-tatá”
no estado do Pará
contemplar o carimbó
e no Maranhão de codó
vou colher o babaçu
pescar no Turiaçú
e cantar em Piritoró...
Vou ao Recife
pular no maracatú
e passando em Caruarú,
dançar um tarrabufado
ouvir verso improvisado
em São José, ponto forte
do Grande Leão do Norte
berço do frevo encarnado...
Alô Brasil,
alô terra natal,
Brasil rural
e civilização,
população
praieira e ribeirinha,
nação rainha
da miscigenação...
Quero Sergipe,
terra da pele dourada
vou brincar na vaqueijada
nas Alagoas reais
percorrer canaviais
chupar cana e cantar coco
de tudo fazer um pouco
na terra dos marechais...
Em Teresina,
vou beijar o Piauí
de doce de buriti,
caju, mangaba e cajá,
depois vou ao Ceará
nadar em cultura viva,
onde escreveu Patativa,
vaca estrela e boi fubá...
Alô Brasil,
alô terra natal,
Brasil rural
e civilização,
população
praieira e ribeirinha,
nação rainha
da miscigenação...
Quero em Natal
ver o “papa-gerimum”
e conhecer o sal comum
produzido em Mossoró
na Paraíba eu vou só
ver Cabedelo de novo
e dançar no Parque do Povo
da capital do forró...
Quero o piquí
na culinária goiana
com guariroba serrana
e galinha com pouco sal
no Distrito Federal
quero ver a paz sorrindo
e um governo construindo
a justiça social...
Alô Brasil,
alô terra natal,
Brasil rural
e civilização,
população
praieira e ribeirinha,
nação rainha
da miscigenação...
Brasil amado,
pátria da boa esperança
tens o verde por herança
e a música por pedestal
viva o país tropical
a nação beleza pura
viva o povo e a cultura
viva o Brasil musical...
42
CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA
As pesquisas geográficas, considerando os aspectos subjetivos do humano, não podem ser
desenvolvidas exatamente da mesma maneira que as ciências naturais desenvolvem seus estudos
a cerca da natureza. Conforme observado anteriormente, espaço vivido é um espaço construído
socialmente, ele é rico em representações, dinâmico, intersubjetivo, prenhe de significantes e
significados. Ao trabalharmos com o espaço vivido da Cantoria Nordestina adentramos em um
campo de intersubjetividade espacial. É dentro desse enfoque que as metodologias adotadas
foram escolhidas.
Através das premissas da geografia cultural e humanista, sabemos que o pesquisador não
é um agente neutro dentro do contexto da pesquisa. Como vimos, o pesquisador também possui
os seus traços culturais, suas idiossincrasias, suas próprias representações de mundo. É neste
sentido que tanto a História Oral, como a Pesquisa Participante se tornam interessantes dentro do
contexto desse trabalho.
Neste trabalho, optamos por não operacionalizar a História Oral e a Pesquisa Participante
de forma dicotômica ou fragmentada. Na verdade, neste trabalho, uma complementa a outra. O
que foi vivenciado em campo nos possibilitou uma melhor leitura da História Oral do Cantador
Matias Neto. E simultaneamente, a experiência de realizar um trabalho de História Oral com
Matias ampliou nossa visão sobre o universo da Cantoria Nordestina, ou seja, metodologicamente
trabalhamos de modo simultâneo com a Pesquisa Participante, a História Oral, o estudo
bibliográfico e fonográfico.
Além do trabalho de História Oral e do registro das Cantorias propriamente ditas, foram
feitos registros de diversos diálogos com os Cantadores e com os ouvintes, contabilizando um
total de mais de 20 horas de gravações. O universo de informantes comporta 4 Cantadores, na
faixa etária entre 35 a 67 anos e diversos ouvintes/ apologistas. A História Oral adotada neste
trabalho é a de José Carlos Sebe B. Meihy (2005; 2007). E a Pesquisa Participante está
fundamentada principalmente em Brandão (1999).
2.1 Pesquisa Participante
A Pesquisa Participante é em seus delineamentos diretamente relacionada à cotidianidade
do grupo social em questão. Nela, a pesquisa não deve ser feita simplesmente sobre os grupos em
43
questão, mas com os grupos. Isso possibilita um diálogo mais amplo entre os atores sociais
envolvidos no fenômeno e o pesquisador, justamente porque o mesmo passa também a fazer parte
da dinâmica do fenômeno (BRANDÃO, 1999).
Numa pesquisa dessa natureza, a dimensão intersubjetiva dos participantes da Cantoria
Nordestina deve ser considerada. Dentro do tema abordado estarão sendo trabalhadas
representações, e estas são inter-relacionadas com todo um contexto social, espacial e cultural dos
atores envolvidos no processo. Assim, ao estudarmos o espaço vivido da Cantoria Nordestina não
o compreenderemos amplamente se não levarmos em consideração as percepções que os próprios
atores da Cantoria Nordestina tem sobre ela. Sobre a Pesquisa Participante, Paulo Freire
esclarece:
O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem
peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os
níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se
encontram envolvidos seus “temas geradores” (...) (FREIRE apud OLIVEIRA e
OLIVEIRA: 1999: 20).
O interesse pela Pesquisa Participante como uma das metodologias adotadas no trabalho é
o de poder captar, na maior plenitude possível, a dinâmica sócio-espacial dos atores construtores
do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Concordamos plenamente com a geógrafa Nogueira,
quando afirma que “Pensaremos os sujeitos das pesquisas não mais como meros informantes dos
dados necessários para a pesquisa, mas que sejam também reconhecidos como autores, pois a
experiência vivida por eles será a principal fonte de interpretação de nossas reflexões” (2004:
210).
2.2 História Oral
Neste trabalho, é utilizada a História Oral desenvolvida por José Carlos Sebe Bom Meihy.
Sebe publicou cinco versões do chamado “Manual de História Oral” (MEIHY, 1996, 1998, 2000,
2002, 2005). Dentro dessa perspectiva se apresenta a preocupação de esclarecer como essa linha
de História Oral “compreendia as relações entre Memória e História; Oralidade e Escrita;
Identidade. É um momento interessante porque vai indicar que o conjunto desses conceitos,
idéias e preocupações poderiam conferir-lhe um status diferenciado (...)” (BARBOSA, 2006: 32).
Assim, gradativamente a História Oral vai desenvolvendo um corpo teórico próprio, o que traz a
44
certeza de que a História Oral nos moldes de Sebe, e outros autores, já não pode mais ser pensada
simplesmente como uma mera prática de registros ou arquivamentos. Segundo Sebe:
Pode-se, em nível material, considerar que a História Oral consiste em
gravações premeditadas de narrativas pessoais, feitas diretamente de pessoa a
pessoa, em fitas ou vídeo, tudo prescrito por um projeto que detalhe os
procedimentos. (...) O projeto prevê: planejamento da condução das gravações;
transcrição; conferência da fita com o texto; autorização para o uso;
arquivamento e, sempre que possível, publicação dos resultados, que devem,
em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas. (...) Atualmente, a
História Oral já se constitui em parte integrante do debate sobre a função do
conhecimento social (...). (2005: 17-19).
Apesar de existirem algumas divergências entre autores que trabalham a História Oral,
existem também muitos pontos em comum “A ideia de que a História Oral pressupõe um projeto
e que o uso da entrevista vai além do registro documental é ponto pacífico entre os pesquisadores
que pensam a História Oral como um conhecimento que vai além da técnica de captação de
entrevistas.” (BARBOSA, 2006: 35). Ou seja, a História Oral não é uma simples entrevista, ela
precisa de um projeto, ela precisa de uma reflexão, ela precisa de uma preparação para a sua
realização. A pesquisa é o encontro com o novo, e a História Oral busca preparar o pesquisador
para esse encontro. Essa preparação acontece, inicialmente, através de um respeito que se confere
ao entrevistado, o qual Sebe vai denominar de “colaborador” justamente valorizando este
indivíduo não como um mero “objeto de pesquisa”, mas como um ser humano que precisa e deve
ser valorizado, respeitado e ouvido.
Esse respeito, o qual tem haver, intimamente, com o caráter ético presente na História
Oral; também é considerado dentro do processo de transformação da gravação oral para o texto
escrito. Isso ocorre porque o pesquisador tem um compromisso com a fidelidade da mensagem
que o colaborador deseja espontaneamente transmitir. Prova disto, que o texto final só chega a ser
publicado após ser verificado e aprovado pelo próprio narrador. Na verdade, o narrador ou
colaborador participa conjuntamente de todo o processo de realização da História Oral.
2.2.1 Valorizando os diferentes olhares
As abordagens geográficas, durante muito tempo, articularam-se principalmente sob o
ponto de vista do homem branco, adulto, europeu, do sexo masculino. “Os geógrafos do início do
45
século XX de bom grado falavam do homem. Na verdade, tratavam dos adultos masculinos do
grupo social dominante” (CLAVAL, 2000: 61). Contudo, tanto a geografia cultural quanto a
geografia humanista contribuem para novas perspectivas sobre essas questões.
Essas correntes geográficas passam a valorizar aspectos das subjetividades humanas, o
que faz com que os métodos exclusivamente quantitativos já não sirvam para a totalidade de suas
pesquisas. “A geografia cultural moderna, ao fazer do homem o centro de sua análise, foi
obrigada a desenvolver novas abordagens” (CLAVAL, 2006: 92). Não estamos com isso
querendo desconsiderar a validade dos procedimentos quantitativos dentro de análises
geográficas, muito pelo contrário, consideramos a sua necessidade e utilidade. Mas ao
adentrarmos em aspectos mais subjetivos da espacialidade humana, passamos a ter que
operacionalizar categorias como: sentimentos, significados, códigos de comunicação e
representações. E é nesse sentido que a História Oral se apresenta como uma alternativa
interessante, pois através dela o pesquisador tem a possibilidade de entrar em contato com
aspectos mais subjetivos do humano.
O que é “verdade” para um, não é, necessariamente, “verdade” para o outro e vice-versa.
A História Oral em seus fundamentos possibilita uma leitura despretensiosa sobre essas questões;
considera a legitimidade das visões de mundo e dos significados do grupo estudado. Ao tratar da
pesquisa, como o pesquisador poderá entender um grupo social, se ele não entender os seus
motivos, as suas crenças, as suas aspirações? É nesse sentido que se torna necessário o
pesquisador se despir ao máximo de preconceitos, e procurar entender da melhor maneira
possível as representações características do grupo ao qual está estudando.
A História Oral possui essa característica de abertura para olhares antes desconsiderados.
Como os Cantadores, migrantes nordestinos, entendem e vivenciam o espaço rondoniense? O que
é a Cantoria Nordestina para eles? São perguntas aparentemente simples, mas é preciso uma
preparação prévia do pesquisador para ouvi-las. E a História Oral, ao possibilitar um contato mais
íntimo entre pesquisador e entrevistado, facilita no funcionamento dessas dinâmicas
intersubjetivas.
Uma das críticas mais comuns à História Oral é a de que ela não teria abrangência social
justamente por trabalhar com narrativas individuais. Contudo, convém considerarmos, que todos
os indivíduos estão inseridos dentro de um contexto sócio-cultural. Os conhecimentos necessários
para a formação de um indivíduo são compartilhados socialmente. Dentre eles destaca-se os
46
códigos de comunicação, os quais não são referentes somente à linguagem falada, mas também
aos gestos, aos gostos, aos rituais... Na verdade, “o indivíduo só se explica na vida comunitária.”
(MEIHY, 2005: 79).
Assim, a História Oral tem validade tanto pela singularidade do narrador, como pelo
coletivo que ele representa. De acordo com Meihy:
As histórias pessoais ganham alcance social na medida da inscrição de cada
pessoa nos grupos mais amplos que lhe servem de contexto. Com isso se
neutraliza a relevância de uma História Oral valorizadora do indivíduo como se
ele fosse uma abstração. A História Oral é sempre social. (2005: 42)
Por exemplo, no caso específico do Cantador Matias Neto, no transcorrer de sua narrativa se
visualiza nitidamente todo um contexto sócio-espacial referente ao Nordeste e a Rondônia.
Matias, através de sua narrativa, delineia uma série de inter-relações sociais, sem as quais ele
simplesmente não seria quem ele é. É justamente através das inter-relações sociais vividas por
Matias, que ele se caracteriza como indivíduo, e que concomitantemente desenvolve a sua própria
história de vida. Segundo Claval, “para apreender os processos culturais verdadeiramente
significativos, os geógrafos se debruçam sobre a experiência das pessoas, sobre seus contatos,
sobre suas maneiras de falar” (2006: 108).
47
CAPÍTULO 3 – O QUE É A CANTORIA NORDESTINA?
Menino de rua
Matias Neto
Você que vive na riqueza
e em sua fortaleza
não sabe o que é pobreza
duma fortuna usufrui
filho de homem nobre
divida o que tem com o pobre
use o ouro e dê o cobre
ao pobre que não possui...
Menino de rua sem teto
que cresce analfabeto
sem carinho e sem afeto
dos parentes e dos pais
seu sofrimento é enorme
o seu leito é desconforme
um pouquinho que ele dorme
é junto com os marginais...
O menino afavelado
vendo o pai desempregado
logo cresce indignado
sem direito de estudar
a revolta continua
se o estado não atua
ele se junta aos da rua
e cedo começa a roubar...
O jornal é sua cama
lamenta, chora e reclama
sente saudade da mama
e do colo da mãe querida
sem teto, sem alimento
vivendo exposto ao relento
vai dobrando o sofrimento
pelas estradas da vida...
Se alguém lhe interroga
por que é que usa droga
na mágoa ele se afoga
e não tem explicação
dormindo em banco de praça
tem desprezo como taça
o vício é quem ameaça
o futuro de uma nação...
Quem do futuro precisa
pouca gente analisa
descalço e sem camisa
o seu sofrer perpetua
vivendo um triste dilema
não resolvo o seu problema
mas dedico este poema
para o menino de rua...
48
CAPÍTULO 3 – O QUE É A CANTORIA NORDESTINA?
Analisar a Cantoria Nordestina sob uma perspectiva geográfica, implica em ter-se um
considerável conhecimento do que é a Cantoria Nordestina. Sem esse conhecimento, o espaço
vivido da Cantoria Nordestina seria de difícil inteligibilidade. Portanto, este capítulo visa
esclarecer, em maiores detalhes, a estrutura e funcionamentos próprios da Cantoria Nordestina.
A Cantoria Nordestina é uma manifestação artística legitimamente brasileira, oriunda do
sertão nordestino, em que dois “Cantadores” improvisam versos cantados ao som das violas. A
Cantoria Nordestina possui suas características específicas, características essas que a tornam
inconfundível: a presença das violas, as apresentações sempre feitas em duplas e o cantar de
improviso são apenas algumas delas.
FOTO 01 – MOZANIEL MENDONÇA (esq) E MATIAS NETO (dir)
SEGURANDO SUAS VIOLAS
Fonte: foto feita pelo autor em 13/07/07 em Porto Velho-RO.
Os Cantadores Nordestinos são também chamados de “violeiros”, aonde vão levam os
seus instrumentos, a viola. Tratam as violas com carinho e com cuidado, falam nela como se
estivessem falando de uma grande amiga ou de uma querida amante. A afinação da viola
nordestina não é a mesma da denominada “viola caipira”. A viola caipira tem dez cordas, e tem
49
uma série de variações de afinação. A viola nordestina utilizada pelos Cantadores, em sua grande
maioria, utiliza apenas sete cordas em sua afinação; essa afinação específica é denominada pelos
Cantadores como “regra inteira”.
A viola é mais do que um simples instrumento para o Cantador, com ela ele se identifica,
ele mantém uma relação sentimental com esse objeto. Existe uma intimidade entre Cantador e
viola. A viola para o Cantador representa o sertão, representa os seus pais, representa o seu
passado, representa toda uma dinâmica de um universo sertanejo.
A Cantoria Nordestina é sempre feita em duplas, ou seja, não existe “Cantoria
Nordestina” com uma só pessoa, ou que aconteça simultaneamente com mais de duas pessoas:
três ou quatro por exemplo. O que pode acontecer e comumente acontece, é o revezamento entre
parceiros; mas ela sempre se desenvolve através das duplas. Essa parceria é um dos elementos
chaves da Cantoria, através da parceria os Cantadores desenvolvem uma espécie de diálogo
cantado. A dinâmica de perguntas e respostas, e de respostas e contra-respostas é característica
intrínseca da Cantoria.
O cantar de improviso, sem dúvida, é a característica mais marcante da Cantoria. Os
versos são feitos de improviso, ou seja, são versos feitos na hora; daí a denominação para os
Cantadores de “Repentistas”, e para a Cantoria Nordestina “Repente Nordestino” ou
simplesmente “Repente”. Os Cantadores Nordestinos são também chamados de “Poetas
Nordestinos” ou “Poetas Cantadores”, todas essas denominações são comumente usadas, tanto na
Cantoria Nordestina em Rondônia como a nível nacional.
O cantar de improviso requer uma habilidade mental e perceptiva muito grande. Os
“Poetas” “cantam de tudo”, a sua variedade de temas é impressionante. De acordo com eles,
antigamente cantava-se, principalmente, a tríade: sertão, bíblia sagrada e saudade. Mas de alguns
tempos pra cá o temário se ampliou, cantam: política, religião, problemas sociais, ambientais,
urbanos, desenganos amorosos, etc. Mas cantam principalmente as coisas que vivenciam, as
coisas do se dia-a-dia, os seus sofrimentos, as suas vitórias, os seus sonhos e aspirações; e as
coisas do Nordeste, as coisas da sua “terra natal”, coisas essas que são exemplificadas na ideia
central de “sertão”. Esse ponto será abordado em maiores detalhes nos capítulos cinco e seis.
50
3.1 Técnicas da Cantoria Nordestina
A Cantoria Nordestina possui as suas técnicas. De acordo com os Cantadores, os três
pilares indispensáveis para se fazer um bom “repente” são: métrica, rima e oratória. Vejamos
cada um deles.
A métrica se caracteriza na quantidade específica de sílabas de cada verso. É importante
ressaltar que essa sílaba falada pelos Cantadores não é a sílaba gramatical, e sim a sílaba rítmica.
A métrica também está relacionada com o tamanho das estrofes, que de acordo com cada estilo
específico deve ser respeitada. Alguns dos principais estilos utilizados na Cantoria Nordestina em
Rondônia serão abordados logo adiante.
As rimas dizem respeito ao final das palavras, os Cantadores também as denominam de
“pés”. A Cantoria Nordestina é mais rígida que o “Coco de Embolada”12 em relação à utilização
das rimas. Na Cantoria por exemplo, não é considerado correto rimar “café” com “mulher”; nem
rimar “Ceará” com “amar”, e nem “céu” com “mel”. Mas ela tem as suas flexibilidades, rima-se
por exemplo: “rapaz” com “pais”, ou, “seduz” com “azuis” ou com “Jesus”; são regras próprias e
internas da Cantoria. É preciso ressaltar, que os próprios Cantadores, às vezes, pela necessidade
do improviso, utilizam dessas rimas consideradas por eles mesmos “erradas”. Mas eles procuram
evitar, pois sabem que os mais “entendidos” em Cantoria percebem e é considerada uma falha.
A oratória tem relação direta com o sentido de toda a estrofe. A estrofe bem feita é aquela
que tem toda a sua construção concatenada, toda ela está dentro do mesmo tema e todos os seus
versos fazem sentido entre si. Na verdade o fechamento da estrofe é a chave. É no fechamento da
estrofe (chamada por eles, muitas vezes, simplesmente de “verso”) onde está o elemento
principal, o elemento “surpresa”. Uma estrofe bem construída tem início, meio e fim. Os
Cantadores explicam que rimar “pão” com “mão” é muito fácil, qualquer um rima; o importante é
dar um sentido ao verso. O importante é a “oratória”.
Alem dos “repentes” propriamente ditos, os Cantadores (não todos) também cantam
“poemas” e “canções”. Os repentes são os principais, é realmente o foco da Cantoria, são os
12
O Coco de embolada também é uma manifestação artística oriunda do Nordeste. Os coquistas, ou emboladores de
coco, como são chamados os praticantes dessa arte, utilizam por seus instrumentos o pandeiro. “O coco-de-embolada
é sempre cantado em dupla e a comicidade faz-se destaque em seu cantar. Em geral, cantam trabalhos por eles
escritos, mais em diversas situações dispõem do improviso.” (MOREIRA, 2006: 67). No Coco de embodada as rimas
são mais flexíveis do que na Cantoria Nordestina. Por exemplo, são consideradas corretas rimas entre “anel” e
“chapéu”, ou “viajar” e “Amapá”, ou “colher” e “fé”.
51
versos cantados de improviso, feitos na hora de acordo com o momento. Já os poemas são
trabalhos preparados com antecedência, pode ser de autoria do próprio Cantador que o canta ou
pode ser de autoria de outros Cantadores. No entanto, o que diferencia o poema da canção é que o
poema sempre é construído respeitando as regras rígidas de rima e metrificação. Ou seja, existem
poemas cantados em métrica de sextilha, quadrões, martelo, etc. A canção já é diferente, além de
não ser de improviso, a canção possui flexibilidade tanto em relação à métrica quanto as rimas; o
tamanho dos versos também não tem tanta importância. E a sua constituição melódica também é
bem mais elaborada.
Os Cantadores utilizam com freqüência os poemas e as canções em suas apresentações.
As canções e poemas são muito pedidas pelo público. Existem poemas e canções de Cantadores
de nível nacional que são famosas entre os ouvintes da Cantoria. Muitas dessas canções e poemas
são conhecidas pelos ouvintes desde o tempo em que residiam no Nordeste. Outro momento em
que os poemas e canções são freqüentemente utilizados é quando um dos parceiros para beber ou
comer alguma coisa; dessa maneira os Cantadores não interrompem a dinâmica de sua
apresentação.
3.2 Modalidades da Cantoria Nordestina
A Cantoria Nordestina possui atualmente mais de 80 modalidades em uso (RAMALHO,
2000; MOREIRA, 2006). Isso foi verificado tanto em bibliografia, como em discografia e através
de entrevistas com Cantadores. Algumas delas são mais tradicionais, outras são criações mais
recentes.
Neste trabalho, serão abordadas apenas algumas das modalidades encontradas junto aos
Cantadores residentes em Rondônia. As mais utilizadas são: a sextilha, o mourão, o mourão a
desafio, o mote em sete, o mote em dez, o quadrão perguntado, o oito-a-quadrão, o dez-a-quarão,
o galope a beira-mar, o galope a miudinho, o dez de queixo caído, o voa sabiá, o boi na cajarana,
o coqueiro da Bahia, o martelo agalopado e outros. Lembrando que cada uma dessas modalidades
têm as suas regras específicas com relação à metrificação e ao conjunto de rimas; e, em alguns
casos, dependendo da modalidade, a temática a ser cantada também já está implicitamente
relacionada.
52
Uma das principais modalidades, senão a principal, é a sextilha. É com elas que os
Cantadores começam todas as suas apresentações. A sextilha é uma estrofe de 6 versos, com
metrificação de sete sílabas em cada verso na qual o 2º, o 4º e o 6º versos rimam entre si; e o 1º, o
3º e o 5º são livres. A estrutura da sua estrofe é da seguinte forma: ABCBDB. Contudo, convém
ressaltar, que a última rima usada por um Cantador será a rima utilizada no primeiro verso da
estrofe seguinte, ou seja, da estrofe do outro cantador; a isso os Cantadores chamam de “deixa”,
eles dizem “pegar na deixa”. Segundo Câmara Cascudo, “Repetir o cantador o último verso do
adversário para iniciar sua resposta é uma reminiscência dos troubadours medievais” (2005:
181). Observemos a sextilha cantada pelos Cantadores Matias Neto e João Azevedo, em
05/08/07, em Porto Velho-RO.
Eu canto as grandes florestas
(Matias Neto)
jacaré, onça e guariba
se eu levantar um prédio
poeta nenhum derriba
que agora é Rio Grande
enfrentando Paraíba...
Meu valor ninguém derriba
(Mozaniel Mendonça)
nessa minha trajetória
que o repente que eu trago
é da gaveta da memória
e quem canta como eu canto
garante a sua história...
Dá a mão à palmatória
sei que você não vai dar
mas também não vou abrir
se não você vai entrar
e aí findo sendo fraco
e Lourival vai me vaiar...
(MN)
53
Eu pensei em vacilar
(MM)
mas Deus deu-me inspiração
que poeta potiguarino
quando toca o seu baião
tem o repente nas veias
pra defender o sertão...
Eu não vou abrir a mão
(MN)
de cantar um gabinete
de fazer a construção
de usar meu capacete
que onde tem rastro de cobra
eu só entro é no cacete...
Eu já cantei gabinete
(MM)
e martelo mal criado
sextilha, mote e quadrão
tudo bem metrificado
e quem canta do meu tanto
merece ser respeitado...
Poeta bem renomado
(MN)
hoje aqui tem mais de dez
cada um com seu estilo
seu carisma e seus papéis
e não vou deixar essas cobras
virem morder os meus pés...
Tô fazendo mais de dez
anos nessa profissão
há vinte anos que canto
(MM)
54
mantendo a tradição
arrancando a poesia
do miolo do sertão...
Você tem a condição
(MN)
de cantar de improviso
de correr por onde eu corro
de batizar igual batizo
de falar como eu falo
e de pisar aonde eu piso...
Eu tiro do meu juízo
(MM)
cada gota de cultura
o Nordeste é a viola
é a nossa literatura
mais quente que milho assado
e mais doce que rapadura...
A vida é uma aventura
(MN)
e eu sou aventureiro
assim como o Ivan
nasceu pra ser garimpeiro
eu nasci pra mergulhar
no garimpo do violeiro...
Eu nunca fui pistoleiro
ou carreguei arma na mão
mas carrego uma viola
por cima do coração
e essa viola é a mola
que representa o sertão...
(MM)
55
Algumas das modalidades remontam alguns dos históricos da Cantoria. De acordo com
Francisco Linhares e Otacílio Batista, em seu livro “Antologia Ilustrada dos Cantadores” (1982),
no início os Repentes eram feitos em “quadras”, essas oriundas de Portugal. Daí eles explicam a
origem de um dos estilos, ou modalidades, cantados pelos Cantadores o “quadrão”, que seria
justamente a união de duas “quadras”. O quadrão possui algumas variações, uma delas muito
utilizada pelos Cantadores em Rondônia é o “oito-a-quadrão”. O oito-a-quadrão é uma estrofe
composta de 8 versos, sendo que cada verso tem a metrificação de sete sílabas. O 1º verso rima
com o 2º e o 3º, o 4º com o 5º e o 8º, e o 6º com o 7º. A estrofe se configura da seguinte forma:
AAABBCCB, e o último verso é sempre a frase “cantando os oito-a-quadrão”. Vamos observar
um exemplo de oito-a-quarão cantado pelos Repentistas Custódio Queiroz e João Azevedo, em
11/11/07, em Porto Velho-RO.
Belezas tem mais de mil
(Custódio Queiroz)
neste solo do Brasil
com esse povo tão gentil
da nossa grande nação
eu sou só um ancião
mas sei que aqui tem cultura
amor, talento e fartura
cantando os oito-a-quadrão...
Eu sei que aqui tem cultura
mas tem vez que a vida é dura
eu não vi essa fartura
nunca ganhei mensalão
também não tenho carrão
e só ando de bicicleta
mas sou feliz, sou poeta
cantando os oito-a-quadrão...
(João Azevedo)
56
Outra modalidade muito utilizada pelos Cantadores é o “mote em sete”. A palavra “mote”
significa uma definição preestabelecida dos dois últimos versos da estrofe. O mote está
diretamente relacionado com o tema a ser explorado. É uma maneira muito direta de participação
dos ouvintes no processo da Cantoria. Por exemplo, um ouvinte pode querer ouvir falar de um
grande amor do passado ou de um parente que ele não vê há muito tempo, então ele cria um mote
que faça referência a esse tema. Se ele não tiver o conhecimento necessário para criar o mote,
pessoas (apologistas) de dentro do contexto da Cantoria o ajudam a criá-lo; isso é muito comum
no contexto da Cantoria.
O mote de sete é uma estrofe composta de 10 versos. O 1º verso rima com o 4º e com o
5º, o 2º com o 3º, o 6º com o 7º e com o 10º, e o 8º com o 9º. Ele se configura da seguinte
maneira: ABBAACCDDC. Em Cantoria realizada no dia 12/04/08, em Porto Velho-RO,
cantavam Matias Neto e Custódio Queiroz quando um determinado ouvinte pediu o seguinte
mote: “Não há amor que agüente, ingratidão todo dia”.
Eu sei que é desgastante
(Custódio Queiroz)
tratar com tanto carinho
e ela só dá espinho
a quem dá flor todo instante
pois aquela minha amante
viver com ela eu queria
mas ela sem alegria
mal qué me ver na sua frente
não há amor que agüente
ingratidão todo dia...
Um sorvete de ameixa
eu quero depois do rango
ela qué um de morango
só para me causar queixa
eu abro a porta ela fecha
eu tô no fogão, ela na pia
(Matias Neto)
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eu só tomo água fria
e ela só quer café quente
não há amor que agüente
ingratidão todo dia...
Eu quero ir pro Maranhão
(CQ)
ela qué ir pro Paraná
quando eu estou no Pará
ela qué ir pro Japão
quando eu pego em sua mão
ela xinga e não me guia
quando eu vou pra Turquia
ela vai pro Oriente
não há amor que agüente
ingratidão todo dia...
A cama está muito estreita
(MN)
para nós dois nesse lar
já tô pra abandonar
aquela ingrata sujeita
tô querendo uma receita
para viver com Maria
um pai de santo da Bahia
me ensinou um remédio quente
não há amor que agüente
ingratidão todo dia...
O mote de dez funciona de maneira muito semelhante ao mote de sete, a estrutura de
rimas da estrofe é a mesma: ABBAACCDDC. A diferença é que no mote de dez, a metrificação é
de 10 sílabas rítmicas para cada verso. Em Cantoria realizada no dia 29/02/08, em Porto Veho-
58
RO, foi pedido o seguinte mote decassílabo para os Poetas Mozaniel Mendonça e Matias Neto:
“Quando o homem se encontra apaixonado, desce a lágrima no rosto e molha o peito”.
Dou um tiro e canto no espaço
(Mozaniel Mendonça)
que esse mote eu vou cantar agora
se eu lembrar de você meu peito chora
sinto falta do beijo e do abraço
era gostoso demais o seu amasso
te esquecer ainda não achei um jeito
eu recordo as delícias do seu leito
e não consigo esquecer esse passado
quando o homem se encontra apaixonado
desce a lágrima no rosto e molha o peito...
Eu não sei como aconteceu comigo (Matias Neto)
eu só sei que eu estou muito gamado
todo dia eu vivo embriagado
não esqueço seu corpo, seu umbigo
minha vida tornou-se um castigo
meu caminho tornou-se muito estreito
meu viver tá repleto de defeito
tenho dívidas e tô desempregado
quando o homem se encontra apaixonado
desce a lágrima no rosto e molha o peito...
Pra você vou tocar esse baião
peço a Deus e lhe faço um apelo
eu me lembro dos lábios, do cabelo
eu me lembro do amor em seu colchão
tô sentindo que a máquina do coração
já tá perto de dá algum defeito
(MM)
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já falei com o padre e com o prefeito
mesmo assim continuo arrasado
quando o homem se encontra apaixonado
desce a lágrima no rosto e molha o peito...
Eu estou me sentindo muito mal
(MN)
e preciso compartilhar com alguém
essa história já vai pra mais de cem
e agora eu falei pra o Lourival
vou falar até mesmo pra um rival
ou Roberto Sobrinho o prefeito
ou até pra um juiz de direito
ou Cassol o governador do estado
quando o homem se encontra apaixonado
desce a lágrima no rosto e molha o peito...
3.2.1
O Desafio
A característica do “desafio” dentro do contexto da Cantoria Nordestina merece de nossa
parte uma atenção um pouco maior. O desafio está nas raízes da Cantoria Nordestina. O debate
das ideias, a velocidade do raciocínio e a formulação da resposta são experiências que os
Cantadores vivenciam com emoção e com orgulho. Alguns deles dizem que a Cantoria
Nordestina é o “esporte da mente”.
A Cantoria Nordestina tem um caráter lúdico muito forte, e esse caráter se manifesta de
forma mais acentuada nos desafios, são momentos empolgantes. Quem já assistiu uma legítima
Cantoria Nordestina sabe que a intensidade dos olhares, o timbre das vozes e a alegria dos risos
acontecem muito espontaneamente no desenrolar de um “desafio ao som das violas”. Esse caráter
lúdico tão presente nos desafios aproxima muito o público da Cantoria, e serve para “entrosar” as
pessoas que participam. Através dos desafios é muito difícil não entrar no “clima” da Cantoria.
Segundo Verônica Moreira, professora de arte, pesquisadora e atriz, casada com Antonio Lisboa
um dos mais consagrados repentistas do Brasil:
60
Depois do improviso que é a principal característica da Poesia Popular Cantada,
o desafio tem uma importância de destaque. Pode-se observar esta disputa
quando um poeta procura demonstrar cantando que seus conhecimentos
superam aqueles de seu colega, ou quando cada cantador usa a cantoria para
destratar o companheiro que canta ao seu lado. O desafio entre poetas faz parte
da história da Cantoria, onde desde os primórdios era comum um poeta desafiar
um outro. (...) Estas contendas deram origem a grandes torneios (...) Por
reunirem um número maior de poetas vindos de várias localidades, como em
uma vitrine, pelo espírito de competitividade e pela grande aceitação do
público; estes acontecimentos tornaram-se comuns, assim diversas cidades
adotaram a realização de um festival a cada ano. (MOREIRA, 2006: 55-56)
Foi tendo o desafio como propulsor que alguns aspectos da espacialidade da Cantoria
Nordestina foram gerados. Atualmente, os festivais são muito comuns no Nordeste e em diversas
partes do Brasil, principalmente no Sudeste e Centro-Oeste. Esses festivais mobilizam um grande
quantitativo de admiradores, nordestinos ou não. Através deles também são veiculados muitos
materiais sobre a Cantoria Nordestina, principalmente CD’s, DVD’s e livros. Sobre os festivais:
Mais recentemente, surgiram os Congressos, Torneios e Festivais de
Cantadores e Poetas Repentistas. No ano de 1948, o poeta Rogaciano Leite
organizou o primeiro CONGRESSO DE CANTADORES DO NORDESTE,
acontecido no Teatro Santa Isabel. Essa iniciativa foi seguida por várias cidades
e outros estados do Nordeste, dando continuidade até os dias atuais. Neste tipo
de evento os poetas, que como sempre cantam de improviso, são julgados em
seus desempenhos levando em conta as regras de “rimas, métrica e oração”.
(Ibid: 18)
Nestes festivais, é claro que não são cantados somente desafios, os temas são diversos.
Mas é a essência do desafio que mobiliza a competição. Note-se que a avaliação dentro do
contexto de um festival não é totalmente subjetiva. Para avaliá-los, é formado um corpo de
jurados (exímios conhecedores da Cantoria Nordestina) os quais utilizam em sua avaliação os
critérios de “rimas, métrica e oração” rigorosamente. De acordo com Cascudo, os Repentistas
“Não podem resistir à sugestão poderosa do canto, da luta, da exibição intelectual ante um
público rústico, entusiasta e arrebatado” (2005: 130).
Existem modalidades específicas para os desafios como: o mourão a desafio, o treze por
doze, o oitavão rebatido, o mourão você cai... Mas dentre todos, é o “martelo agalopado a
desafio”, ou simplesmente “martelo a desafio” ou “martelo malcriado” o que tem maior tradição
na Cantoria. Segundo Cascudo, “É o tipo maior, a grande arma do desafio. Cantador que resiste
61
ao embate está consagrado. Pela sua imponência é a sedução de todos os cantadores. Não há
peleja em que o martelo-de-dez-pés não apareça, melhor ou pior manejado” (Ibid: 21).
O “martelo-de-dez-pés” que é o mesmo martelo agalopado13 é composto por uma estrofe
de 10 versos, sendo que cada verso possui dez sílabas; é semelhante ao mote de dez, com a
diferença de que não possui os dois últimos versos prontos. Ou seja, a ordem de suas rimas
continua sendo: ABBAACCDDC. Ele é também conhecido como “trinta-por-dez”. O que
significa isso? São trinta sílabas fortes distribuídas dentro dos dez versos da estrofe. Cada verso
contém três sílabas fortes, que entram, especificamente, na 3ª, 6ª e 10ª sílabas. É da seguinte
forma:
1º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
2º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
3º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
4º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
5º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
6º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
7º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
8º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
9º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ tá
10º verso: ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ tá/ ta/ ta/ ta/ ta...
Segundo Francisco Linhares e Otacílio Batista, estudiosos da Cantoria Nordestina, o martelo
agalopado é esse “gênero belo e difícil, via crucis dos fracos repentistas (...)” (1982: 23).
No dia 13/09/07, em Porto Velho-RO, estavam cantando Matias Neto e Custódio Queiroz
quando lhes foi pedido que cantassem um “martelo a desafio”.
13
“Por que o sertanejo chama ‘martelo’ a um verso de dez sílabas, com seis, sete, oito, nove ou dez linhas? Pedro
Jaime Martelo (1665-1727), professor de Literatura na Universidade de Bolonha, diplomata e político, inventou os
‘versos martelianos’ ou simplesmente ‘martelos’. Eram de doze sílabas, com rimas emparelhadas. Esse tipo de
“alexandrino” nunca foi conhecido na poesia tradicional do Brasil. Ficou a denominação cuja origem erudita é
visível em sua ligação clássica com os poetas portugueses do século XVII.” (CASCUDO, 2005: 21).
62
Você pensa que é bom repentista
(Custódio Queiroz)
mas lhe acho pequeno e atrasado
um buchudo nojento e mal cuidado
que não sabe ter um ponto de vista
mas cantando eu sou um recordista
excelente poeta e violeiro
não tolero poeta desordeiro
meu repente é a marreta mais pesada
que arrebenta conversa mal contada
e da conversa não sobra nem o cheiro...
Você diz que é ótimo violeiro
(Matias Neto)
não conheço essa fama do senhor
você pode ser bom agricultor
mas cantando, pra mim é um desespero
tem talento demais pra desordeiro
com a justiça você não colabora
e se eu te pego essa noite você chora
que Matias cantando é muito homem
mas você eu não sei se é lobisomem
chupa-cabra ou então o caipora...
Se eu quiser posso calçar uma espora
bem pontuda com as lâminas de aço
e depois montar no seu espinhaço
que o povo vai ver quem é que chora
vou mostrar quem que é o caipora
vou mostrar quem é cobra e é leão
dou-lhe um chute no meio do salão
que você se atrapalha e leva um tombo
vou descer chicotadas no seu lombo
(CQ)
63
igual batia nos jegues do sertão...
Oh Custódio você é um ancião
(MN)
eu não quero apertar o seu pescoço
que você é raquítico, pele e osso
e não guenta um tapa, um empurrão
se eu pegar-lhe com a força da minha mão
é possível você não aguentar
os seus olhos começam a lagrimar
o seu corpo sacode, pula e treme
sua boca engasga, chora e geme
e fica ruim pra você continuar...
Você pensa que vai me esfregar
(CQ)
mas Custódio cantando tem mais raça
que eu me viro no vento e na fumaça
e é difícil demais tu me pegar
se é no rio já aprendi nadar
na ribeira, no fundo e até na foz
canto o antes, o agora e após
canto as trevas da noite e a luz do dia
e tão dizendo que o rei da poesia
em Rondônia é Custódio Queiroz...
Você foi igualmente um Tapajós
teve a força de um rio Madeira
mas agora caiu da ribanceira
que quebrou queixo, ouvido e mocotós
ta fanhosa e gasguenta a sua voz
seu aspecto ta feio e moribundo
e enquanto isso eu canto em um segundo
(MN)
64
a esmeralda mais linda, pura e rica
que a minha mente é a máquina que fabrica
os maiores repentes desse mundo...
Você pode pensar que é o rei do mundo
(CQ)
mas cantando você é uma criança
é ridícula demais a sua pança
e sua cara parece com seu fundo
se você refletir um só segundo
vai é ver que eu lhe ensino igual um pai
se eu mandar com certeza você vai
seu caboco safado e atrevido
e se eu taca-lhe a mão no pé do ouvido
a cabeça eu não sei aonde cai...
Você pensa que cantando é meu pai
(MN)
deixe dessa besteira e heresia
que Matias cantando tem poesia
minha conta de versos não retrai
o seu verso essa noite ele não cai
e se cair, só cai dentro da cacimba
não te xingo e você não me xinga
pare a agulha, desligue as radiolas
vamo logo é parar com essas violas
que eu tô doido é pra beber uma pinga...
Apesar do conteúdo aparentemente ofensivo, o desafio na Cantoria Nordestina não incita
agressividade; até pelo contrário, é uma forma lúdica de atrair a atenção das pessoas.
Antigamente, os desafios dentro da Cantoria tinham uma significação pessoal mais forte
(RAMALHO, 2000; CASCUDO, 2005). Atualmente, principalmente devido à profissionalização
da Cantoria, os Cantadores aparentam não se sentirem “vencedores” ou “derrotados”. Eles sabem
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que o desafio faz parte do contexto da Cantoria e encaram isso, na maioria das vezes, de maneira
muito espontânea e alegre. É muito comum os próprios Cantadores rirem dos versos do
adversário e ao final da disputa se cumprimentarem cordialmente.
3.3 O Apologista
Os apologistas são aquelas pessoas que, além de terem uma grande admiração pela
Cantoria Nordestina a conhecem em maior profundidade. Eles têm uma importante função social
dentro do contexto da Cantoria. É através dos apologistas, por exemplo, que são combinadas as
apresentações dos Cantadores. Normalmente, eles têm grande intimidade com os Repentistas e
vice-versa. De acordo com Ramalho:
Dentre a gama variada de ouvintes, destacam-se os apologistas, ou seja, aqueles
“iniciados” na compreensão das técnicas da arte de improvisar poeticamente,
possuidores de aguçada sensibilidade, e que representam os principais
“promoventes” de Cantorias. (...) Eles dão a esse evento uma atmosfera de
entusiasmo. (...) A figura do apologista se destaca pela sua capacidade de lidar
com o público, de conduzir o evento, de ser familiarizado com as técnicas de
rimar, metrificar e construir a oração, identificado com o linguajar próprio
usado nas Cantorias, e, principalmente por ter sensibilidade artística. Ele é
portanto um ouvinte diferenciado. (2000: 93-94)
O apologista se insere, portanto, como uma espécie de mediador entre o público e os
Cantadores. Quando um ouvinte por exemplo, quer pedir um mote, mas não consegue metrificálo de acordo com as regras da Cantoria; muitas vezes o apologista entra em ação auxiliando-o na
metrificação. É também o apologista que, vez por outra, incentiva os ouvintes a contribuírem
financeiramente com os Cantadores.
Gostaríamos de ter sido mais detalhistas em relação à Cantoria Nordestina (técnicas,
modalidades e estrutura da Cantoria de modo geral), mas este não é o escopo desse trabalho. A
intenção da inserção deste capítulo dentro da dissertação tem um sentido didático. O que se
pretende é possibilitar ao leitor uma compreensão consistente do que é a Cantoria Nordestina.
Esse entendimento facilitará as análises das inter-relações entre Cantoria Nordestina e espaço
vivido, o que caracterizamos geograficamente sob o conceito de “espaço vivido da Cantoria
Nordestina”.
66
CAPÍTULO 4 – MATIAS NETO: UM REPENTISTA EM RONDÔNIA
O homem e o terçado
Matias Neto
Viram um doutor descer do carro
com um terçado na mão
cortando faixa e gritando
no meio da multidão
parecia ter incorporado
o espírito de Lampião...
Doutor faça isso não
nós é que tamo acuados
cortaram nosso salário
tamo todos endividados
nós sim é que deveríamos
estarmos todos de terçados...
Nós estamos revoltados
mas sim é com o presidente
seus ministros e assessores
que formam a mesma corrente
que não respeitam a justiça
nem os direitos da gente...
Por isso daqui pra frente
é melhor tomar cuidado
dentro da universidade
o terror está implantado
a mão que conduz um diploma
também carrega um terçado...
Isso é fruto gerado
de uma política devassa
que a coisa só piora
no decorrer que o tempo passa
botando uns contra os outros
pra destruição da raça...
67
CAPÍTULO 4 – MATIAS NETO: UM REPENTISTA EM RONDÔNIA
Meu encontro com Matias Neto deu-se bem antes do meu ingresso no Mestrado em
Geografia. Nos encontramos pela primeira vez no ano de 2000, justamente numa legítima
Cantoria pé-de-parede, no bairro Nova Porto Velho, na cidade de Porto Velho-RO. Rapidamente
nasceu uma boa amizade entre nós e o interesse pela Cantoria Nordestina foi, então, o elemento
em comum que nos aproximou.
Desde aquele tempo, eu já vinha acompanhando os Cantadores em suas apresentações.
Até que surgiu a proposta do desenvolvimento de um trabalho que inter-relacionasse a Cantoria
Nordestina com a geografia. Eu já sabia, devido experiência empírica, que existe um contexto
sócio-cultural dentro do fenômeno da Cantoria Nordestina, mas nem por isso essa proposta
deixava de ser altamente desafiadora.
Me propus a examinar esse tema com maior atenção. Minha primeira tarefa foi
exclusivamente bibliográfica e descobri nos autores da geografia cultural e humanista algumas
possibilidades de articulação geográfica desse tema. Concomitantemente a esse percurso
bibliográfico, as metodologias a serem utilizadas no trabalho foram se apresentando.
A História Oral se apresentou como uma alternativa interessante, primeiramente devido a
minha proximidade com Matias; e segundo, devido à própria proposta da História Oral, a qual me
permitiria adentrar em aspectos mais subjetivos dos significados da Cantoria Nordestina na vida
deste Cantador.
Matias Neto é antes de tudo um lutador, nordestino nascido no Rio Grande do Norte, veio
pra Rondônia em busca de melhores oportunidades. Apesar das enormes dificuldades, não
desistiu nunca de estudar e nem de cantar. Insistente em seus sonhos, trouxe do Nordeste um
“dom” que o acompanha por toda sua trajetória, o dom de cantar de improviso, o dom do
Repente. Essa é uma característica intrínseca de Matias, ter como dizem os próprios Cantadores
“a veia poética”.
O que será apresentado a seguir é o trabalho de História Oral realizado com Matias Neto
entre junho de 2007 a junho de 2008. Além dos nossos encontros para a realização específica dos
trabalhos de História Oral, nós sempre nos víamos. E pude perceber, tanto através dos trabalhos
de História Oral, como através de diversas conversas informais que tivemos, o amor dele pela
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Cantoria e o significado desta na vida dele. Espero que essa história dele, e contada por ele
mesmo, possa esclarecer melhor essas íntimas inter-relações.
4.1 Em Rio Grande do Norte
Eu sou de uma família nordestina, família de 14 irmãos, ou melhor 13 irmãos, desses 13
só 6 se criaram. Pra você vê como é que era... era bravo, não era fácil... Minha família é do Rio
Grande do Norte, no Alto Oeste Potiguá, uma família grande, humilde... Esses dias eu tava
fazendo as contas, da minha família os que têm curso superior; tem três que têm curso superior e
eu agora que tô conseguindo... No próximo ano, com a graça de Deus, vê se eu consigo também
concluí. Você vê que não é fácil... Trabalhador, e da roça, e essa luta... mas se chega lá! De vês
em quando um tem que chega né? (risos)
Então, é por aí... Aí, meu pai... Em 70 eu tinha sete anos de idade quando eu via meu pai
falar das secas, as secas do Nordeste... A seca de 15 foi uma das maiores secas, teve a seca de 30,
32, a de 48... mas foi em 58 que parte da minha família foi pro Maranhão, família da minha mãe e
a do meu pai também... Então, até hoje boa parte da minha família continua lá no Maranhão.
Aqueles que eram mais velhos, muitos já morreram, mas têm muitos que continuam lá até hoje.
Eles tão morando no sul do Maranhão... É tudo assim, uns num canto, outros no outro...
Foi minha vó junto com a minha mãe e meus tios que venderam um pedaço de terra que
tinham no Rio Grande do Norte pra poder ir pro Maranhão. Acabou que teve uns que até
voltaram, mas teve outros que ficaram por lá mesmo. Era a seca que expulsava o povo pra fora
desse jeito. O que acontece, é que o Maranhão não tem aquelas crises de seca igual tem lá na
Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte... Principalmente o sul do Maranhão, já é uma região que
chove mais, é mais abundante lá! Então, teve um pessoal que foi pra essa região, sul do
Maranhão, e até hoje tão lá. De vês em quando eu vou lá no nordeste, aí eu vou lá com eles e a
gente conversa bastante... E com o tempo cada um foi dando um jeito, conseguiram um pedaço
de terra... então, todo mundo por lá ta situado, tocando a sua vida lá, conseguindo o seu pão.
E aí tá, em 58 a gente foi pro Maranhão... só que meu pai e minha mãe voltaram pro Rio
Grande do Norte de novo! A verdade é que meu pai nunca gostou muito do Maranhão e acabou
que retornou pro Rio Grande do Norte novamente. Só que aí veio a seca de 70... foi outro ano,
outra seca muito difícil... apesar de não ter sido como a anterior, mas foi muito dura... Com essa
69
seca muitos nordestinos foram embora do Rio Grande do Norte. Foi aí que meus pais voltaram
pro Maranhão de novo. Aí minha mãe já tava cansada daquele negócio, foi quando ela disse:
“Não, não volto mais pro Rio Grande do Norte não!”
Então, meu pai voltou comigo e minha irmã mais nova, e os mais velhos ficaram por lá.
Depois eles casaram e tocaram a vida deles pra frente. Mas pra nós foi uma fase difícil, morando
pela casa dos outros, parentes, tal... e parente tem aquele negócio, é bom pra gente ir final de
semana lá, pra almoçar ou palestrar, mas pra ir lá e morar junto... mas depois acabou que minha
mãe também voltou pro Rio Grande do Norte, aí já não teve mais aquelas crises de seca brava
não. Com o retorno da minha mãe facilitou bastante, aí a gente tocou a vida pra frente...
Aí veio em 80, Setenta e nove, oitenta... foi quando teve outra crise. As crises são
constantes no nordeste! Foi uma crise que teve frente de emergência, aí parece que o governo já
se preocupou um pouco mais, aí com isso o pessoal já não saiu tanto de lá não.
Eu trabalhei em frente de emergência! Em 79 eu com a violinha já começando a cantar...
mas ainda não tava assim bem garantido, tava com pouca experiência ainda. Mas já fazia minhas
cantorias pra ganhar meu dinheiro. Fora isso, eu ia é pra chibanca arrancar toco, palear a terra,
carregar em carrinho pra fazer açude. Lá pelas fazendas, nas propriedades, o pessoal mantinham
aquelas turmas de dez homens, quinze... E tinha sempre um que era o encarregado, mas na época
eu não cheguei a ser nem encarregado, porque eu mal assinava meu nome, tinha que botar era o
dedão. Então, o encarregado era aquela pessoa que pelo menos sabia anotar o nome dele e dos
outros trabalhadores...
Depois eu com uns 17 anos já tava cursando a 3ª série primária, mas não era fácil, a gente
sabia alguma coisinha, mas não tinha confiança... quando ficava diante de uma pessoa da cidade,
que tem o conhecimento maior, a pessoa da roça por mais que saiba alguma coisa acaba ficando
tímida. Por causa disso, a gente acaba perdendo muita oportunidade, eu mesmo perdi algumas
oportunidades nesse sentido... Mas aí eu concluí minha 4ª série no Rio Grande do Norte. Acho
que foi com 18 anos que eu terminei a 4ª série...
Aí tá... aí foi nessa época que eu comecei a cantar com mais freqüência. Pintaram umas
viagens pro Ceará, pra Paraíba... E dentro do Rio Grande do Norte mesmo eu passei a visitar as
cidades...
70
4.2 Descobrindo a “veia poética”
De vez em quando, alguém pergunta se têm outros Cantadores na minha família. O único
Cantador que tinha na minha família ele morreu. O nome dele era João Vicente, era um primo da
minha mãe. Ele começou cantar... e acho que ele devia ter uns vinte anos quando mataram ele.
Dizem que foi por causa de mulher... O pessoal diz que ele era bom, me falaram que se ele
tivesse vivido ia ser um grande Cantador!
Então, no período de 58, quando o pessoal foi pro Maranhão, foram três Cantadores nessa
comitiva. Um deles foi esse primo da minha mãe que morreu. O outro foi o “Azulão”, que até
quando eu fui recentemente lá no Rio Grande do Norte me encontrei com ele. E o outro foi
“Antônio Ferreira de Lima” que quando eu escuto o Zé Ferreira é a mesma coisa que eu tá
escutando ele. Inclusive, ele disse que o Zé Ferreira, quando começou a cantar, começou com ele.
Então, com esse Antônio Ferreira de Lima, eu cheguei a viajar com ele. Ele era muito
amigo do meu pai. Minha mãe não confiava de eu viajar com outras pessoas, mas com ele ela
acabou liberando. E isso eu com 17 anos de idade. Então, teve esse meu primo que começou a
cantar, mas ele ainda novo lá pelo Maranhão mataram ele, lá em Coroatá no Maranhão. E depois
dele de Cantador já passaram mais de 20, 30 anos, e só surgiu eu mesmo.
Teve um tempo que eu queria cantar brega, mas depois eu fui vendo que aquilo não tinha
futuro. Graças a Deus eu sempre fui um cara da roça que tinha uma visão privilegiada, sempre
tive esse privilégio de ver um pouco das coisas. Então, eu comecei a enxergar que aquilo ali não
tinha futuro pra mim. Eu digo: “não, não é isso que eu quero pra mim.” Além do que, meu pai
gostava muito das Cantorias, ele sempre tava fazendo Cantoria lá em casa. Então, eu comecei a
ouvir bastante o Repentista João Neto, que hoje mora em Brasília, e também o Chico de Elino.
Nós somos da mesma época, mas o Chico e o João começaram a cantar primeiro do que eu. Eles
formavam dupla, e eu achava interessante que a gente ia pras Cantorias, eu acompanhava eles né?
E eu observava eles cantando e eu pensava: “rapaz... eu acho que se eu botar pra cantar Repente
eu canto também!”
A família do João Neto tem muitos poetas, tem o Chico Guedes, tem o Zé Vicente, sem
ser o pai do Welinton14, o outro Zé Vicente. Então, era família de poetas mesmo e todo mundo se
14
Welinton é um nordestino da cidade de Altinho-PE, filho do antigo repentista já falecido Zé Vicente. Atualmente,
Welinton reside em Porto Velho e está sempre em contato com os Cantadores.
71
conhecia. João Neto já é bem da quarta geração de Cantadores da família dele. Já a família do
Chico não, a família do Chico é igual a minha, não tem outros Cantadores.
Mas aí, eu comecei através dessa influência deles. Eu tinha um violãozinho e aí eu pedi
pra um deles, nem lembro mais se foi pro Chico ou pro João: “rapaz, eu tô querendo mudar as
cordas do meu violão pra viola, pra afinação regra-inteira, que eu tô querendo começar a cantar.”
E foi assim que eu comecei. Às vezes eu treinava com um colega, vizinho meu, que até hoje tá
cantando. Ficávamos lá até mais de meia-noite, um rebatendo os versos do outro... E foi assim
que eu comecei a improvisar...
Aí eu comecei, eu afinei a viola e comecei a tocar. Minha voz sempre foi uma voz boa.
Hoje, eu nem digo tanto... mas na época o pessoal gostava muito. E além do Repente, eu cantava
muita canção e era aquela animação, a moçada gostava! Aí mandavam bilhetinho pedindo
canção, canção tal, tal... E isso pra gente era um incentivo. Aí fui arrumando Cantoria, aí quando
o pessoal descobriu que eu sabia. “Ah, é o neto de Chico de Pinto!” Meu pai é Chico de Pinto.
Meu pai é Chico de Pinto por quê? O nome dele é Francisco Matias, mas minha vó era tão
baixinha que botaram o apelido nela de “pinta”, a “pintinha”. Aí pegou, Chico de Pinto,
Francisco de Pinto.
Aí, “neto de Chico de Pinto já é cantador”, aí o pessoal naquela curiosidade. E nisso meu pai
sempre fazendo aquelas Cantorias lá em casa, e lotava... A gente morava numa casa grande,
numa encruzilhada, tinha um calçadão, calçada alta mesmo! Então, a gente ficava lá na sala
cantando, uns namorando ali pelas calçadas... e as meninas mandavam bilhetes... e já mandava o
dinheiro junto lá da canção ó! (risos) A gente tinha tipo uma certa tabela, uma canção era tanto...
outra era tanto... O Ismael Pereira15 cantou muito lá em casa pra o meu pai. Aniversário do meu
pai, todo ano Ismael ia e eu cantava com Ismael e outros Cantadores. Ismael chamava meu pai e
minha mãe de madrinha e padrinho, porque deram uma leitoa pro casamento dele né? E aí
começou nossa amizade por aí. Aí Ismael tinha um programa em Cajazeiras e sempre quando ele
ia pras bandas de lá ele ligava, ou avisava na rádio que estava indo pra Luiz Gomes que era pra
eu arrumar umas Cantorias.
15
Ismael Pereira é de Aurora-CE, é um conhecido Repentista dentro do circuito dos Cantadores, e é considerado um
dos maiores Repentistas do Brasil na atualidade.
72
E foi por aí que eu comecei. Mas eu além de ainda tá meio inexperiente na viola, minha
mãe também não deixava eu viajar. Por lá tinha um Cantador por nome Zé Mourão que era muito
amigo da gente, mas ele bebia muito e aí minha mãe não confiava. Ele dizia: “Ah Dona Chica,
deixa ele ir comigo?” Ai a mãe falava: “Não, num tá na hora dele viajar não!”
Então, esse Antônio Ferreira de Lima morava no Ceará, mas de vez em quando ele
passava por lá. E numa dessas viagens dele passando por lá disseram: “Quem começou a cantar
foi o filho de Chico de Pinto!” Aí nisso ele já foi lá pra casa. Ele andava numa burrona toda
arrumada, é... e usava paletó! Quando eu vejo o Custódio falar de paletó eu só lembro dele
(risos). Ele usava paletó, tal... e chegava assim, parecia um parlamentar (risos...). Aí nesse dia ele
chegou lá em casa e a gente já fez uma Cantoria, aí no outro dia ele falou pra minha mãe: “Dona
Chica deixa ele viajar comigo!” Aí a mamãe: “Não, deixo não!” Mas ele insistia: “Não, não...
pode deixar! Comigo pode deixar que eu cuido dele!”
Aí foi que eu comecei a viajar com a viola, fazendo Cantoria... Rapaz, olha, ele tinha um
conhecimento muito grande. Ele era pernambucano e ele dizia que era parente do Lampião, que é
Antônio Ferreira de Lima né? Diz ele que o Lampião era parente dele, e era metido a valente ele!
Era todo riscado de faca, que na época ele era muito mulherengo e por causa de mulher arrumava
briga. Aí a mamãe dizia: “Não seu Antônio, a gente sabe que o senhor é muito valente por aí!”
Mas aí ele dizia: “Não, mas agora eu melhorei! Foi naquele tempo quando eu tava mais novo e
era cheio de namoradas, hoje eu não faço mais isso não!” E ele também rezava nas pessoas... E aí
rapaz, eu viajando com ele lá pela região do Ceará a gente fez muita amizade. E aí foi uma
experiência muito boa que eu tive com ele ó!
Aí, quando foi em 86 que eu vim pra cá que ele ficou sabendo, ele: “Rapaz, o cara foi
embora!!!” Que a gente morava distante né, aí num se via direto não, a gente demorava pra se
ver. Aí passou uns tempos ele faleceu. Ele morreu tá com o que? Tá com uns três anos que eu
tive no Nordeste e disseram que ele morreu afogado ó! Diz que botou uma linhada no açude pra
pegar peixe e foi lá pro meio do açude, e por lá parece que se enganchou, a canoa virou... e ele,
acho que já tava com 70 e poucos anos, aí faltou o fôlego, e quando foram atrás dele ele já tava
morto. Antônio Ferreira de Lima...
No Nordeste é assim, no Nordeste se você começa a cantar aí já é uma referência; que se
um cantador vai passando lá em tal sítio aí o pessoal já diz logo: “Rapaz, ali tem um Cantador, é
fulano de tal!” Aí já vai pra casa do cara porque os Cantadores dão apoio um pro outro. E lá em
73
casa era uma casa grande, tinha um quarto lá... E quando chegava Cantador por lá a gente já dava
logo a rede pra ele. Cantador ficava até de semana com a gente lá em casa. E eu fazia o mesmo,
quando eu viajava ficava na casa dos parceiros. A gente tem... os Cantadores têm essa união.
Quando chega o Repentista numa daquelas regiões do nordeste, hoje eu não sei como é que tá,
porque eu já tô há muito tempo fora de lá. Mas na época a gente chegava num lugar daqueles e já
fazia logo amizade.
Uma coisa eu digo do nordestino: o nordestino não é miserável não, ele é barriga cheia! O
que falta realmente é as condições que são precárias. Mas o que ele tem, se ele tiver um pouco de
farinha ele divide contigo, numa boa... em qualquer lugar que você chega ali no nordeste é assim.
Eu lembro que minha mãe tinha o café e não tinha o açúcar, mas a vizinha tinha o açúcar
aí fazia a troca... Uma dava colher de café pra outra, às vezes quando queria fritar um ovo, fritar
alguma coisa... quando não tinha o óleo, uma dava um pinguinho de óleo pra outra e assim vai...
Assim o nordestino vive...
Mas falando das viagens, a viagem que eu fiz assim com mais sucesso foi pro Maranhão,
passei 6 meses cantando por lá. Naquele tempo, foi a última viagem que eu fiz pelo Nordeste com
a viola. Aí depois que eu voltei dessa viajem do Maranhão, em dezembro, tinham uns parentes
meus que tavam vindo pra Rondônia. E tinha um primo nosso que é engenheiro e tal... e na época
do governador Jerônimo Santana ele tinha muita amizade e contato com os políticos, aí ele pegou
muitas obras. Ele falava: “dinheiro pra vocês virem não tem não, mas dá um jeito de vim pra cá
que aqui não falta trabalho”.
Naquela época no Nordeste eu tinha um campo de algodão, um campo bonito e o cara
quando é solteiro no nordeste, quando é a época da safra boa, ele já pensa em casar ó! E era o
meu pensamento ó? (risos) Então, eu já pensando que aquele ano ia dá pra eu casar, porque eu ia
construir uma casa e tal... E no final das contas, quando eu fui colher o algodão no campo, eu
acho que não chegou a dez arrobas, aí eu fiquei desgostoso. Aí eu tava visitando meus parentes, a
turma que tava vindo pra Rondônia, aí eu disse: eu vou junto! Eu vou junto porque se lá tiver
Cantador a gente começa a cantar, senão eu vou partir pra outra coisa. E aconteceu que eu
cheguei aqui.
74
4.3 Morando em um novo lugar
Interessante que eu cheguei aqui 3 horas da tarde, quando foi 6 da noite comecei a
trabalhar. Tanto serviço que tinha aqui, porque aqui na época era o auge do garimpo e o povão
tava mais interessado no garimpo do que em obra, ninguém queria saber de obra não. No serviço
público era só chegar num órgão desses aí, apresentava a documentação e já tava contratado. Só
que era muito pouco o que o pessoal ganhava nos órgãos públicos na época, o garimpo é que era
a fonte. Mas pra inteirar tinham as empreitadas, os pedreiros trabalhavam por fora também, aí
dava pra dar um reforço.
E era desse jeito, quando eu cheguei aqui o meu trabalho foi na construção civil. Ali onde
é a Ivã Marrocos, ali era o alojamento de uma firma, de uma construtora, a Jaú. A Construtora
Jaú era uma empresa de São Paulo, e quando eu cheguei aqui eu fazia uns bicos com meu primo e
trabalhava por lá.
Aí eu trabalhando na Jaú, um certo dia, eu fiquei meio chateado porque eu fiz umas horas
extras e a firma não me pagou. E lá tinha uma piãozada, que naquele tempo tinham muitas firmas
trabalhando por aqui, e aí a piãozada dizia: “Vamo trabalhar na Odebrecht que paga melhor, a
Camargo Corrêa paga melhor!” E nós lá na Jaú, além do salário ser o menor, a piãozada dizia que
o marmitex era o pior de todos (risos). Aí um dia, a gente terminou de almoçar e tava
conversando lá na hora do descanso, aí eu fiz um verso! Ouvindo a lamentação dos piões eu fui e
disse:
É mais fácil um carrapato
pilotar um avião
um fusca virar caminhão
veado deixar o mato
rico não usar sapato
barbeiro não usar navalha
jegue não aceitar cangalha
garça virar urubu
do que a firma Jaú
pagar bem à quem trabalha... (risos)
75
Rapaz, aí a piãozada gostou de mim e eu fiquei foi conhecido! Aí depois, os caras
escreveram, os carpinteiros, com aqueles lápis de marcar; escreveram num papel de cimento lá
pra ficar declamando (risos). Aí depois, a turma contando a história o encarregado soube. Ele
sabia que era eu, só que o encarregado era gente boa também. Mas aí fazer o quê? Ele também
ganhava mal (risos). E aí eu ainda fiquei lá uns três meses... (risos).
Então, naquela época tudo era favorável, até 86, 87 quando eu cheguei aqui era assim. E
era assim que eu trabalhava, na construção civil. Aí eu trabalhava pintando nas obras do Paulo,
primo da gente. Aí depois de 6 meses eu já tava com minha carteira assinada como pintor e aí foi
melhorando...
E nisso eu tinha um sonho de comprar uma viola dinâmica. Rapaz, cheguei na Loja
Americana ali na Sete de Setembro, ali entre a Marechal Teodoro e a Joaquim Nabuco, bem ali
tinha uma loja, até hoje quando eu passo por ali eu me lembro. Aí eu vi a viola na vitrine ó,
aquela viola bonita, aquelas dinâmica. Uma viola daquela pra mim era uma coisa muito especial,
era o sonho que eu tinha. Que eu só usava violãozinho com as cordinhas de naylon... Rapaz, o
primeiro salário que eu peguei, com mais um rapaz que me emprestou uma parte, fui lá e comprei
minha viola!
Aí tá, aí eu trabalhando na construção civil, aconteceu que apareceu uma reforma lá pela
Unir Centro e a gente foi fazer um serviço por lá, pintar a Unir Centro. Foi aí que eu conheci o
Ceará, o Ceará é um eletricista que trabalha lá na Unir. Aí o Ceará me disse: “Rapaz, vem
trabalhar aqui!” Pra você vê a situação, o Ceará nem ajudante tinha, ele subia no forro pra puxar
um fio e ficava ali fora pra um ou outro que passasse por lá entregar a perna do fio pra ele; e eu
tava pintando largava o meu serviço e ia lá ajudar ele.
E a gente foi fazendo uma amizade tão grande que depois o Ceará me disse: “Rapaz, vai
haver concurso aqui!” Foi o primeiro concurso que houve na Unir, foi em oitenta e oito, antes
você chegava lá e entrava pela janela. Aí eu dizia pro Ceará, “Ceará a prova aqui é muito difícil,
minha escolaridade só é até a quarta série”. Mas aí ele dizia: “não rapaz, pra trabalhar de ajudante
aqui quarta-série é suficiente”.
Aí eu disse e agora? Mas eu não tinha o comprovante da quarta-série, tinha que ter o
comprovante. Um comprovante que provasse, um histórico escolar que provasse que eu tinha a
quarta-série. Aí eu... naquele tempo telefone não tinha, minha mãe morava num sítio. Aí o que
que eu fiz? Tive que escrever umas linhas e mandei pra minha mãe, pra ela urgentemente
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procurar lá com a diretora o meu histórico escolar e mandar que eu tava precisando... Eu sei que a
inscrição ficou aberta durante um mês, eu fui o último a me inscrever (risos). E só tinha uma
vaga pra três candidatos. Só que no dia da prova, dos três candidatos que se inscreveram só eu
compareci (risos...).
Rapaz aí foi, aí sei que eu fiz a prova e... mas era muito pouco o salário, quando eu recebi
o primeiro pagamento me deu um desgosto porque na construção civil eu ganhava o triplo. Aí eu
pensei “e agora, o que é que eu faço?” Solteiro, acostumado na farra... eu pegava assim, digamos
assim cem reais, e gastava em uma semana o que era pra durar um mês. Aí, às vezes batia aquele
pensamento de voltar pro Nordeste, mas eu digo “não... eu vou é ficar por aqui que é essa a
oportunidade que eu vou ter pra estudar!”
Mas aí pra complementar minha renda o que é que eu fazia? Fui trabalhar de garçom,
trabalhava de segunda à sexta na Unir e sábado e domingo ia trabalhar de garçom num forró lá no
Tancredo Neves, o nome era “Forró do Chico”. Mas rapaz, lá tinha um negócio dumas brigas...
que quando começava... era uma tal dumas brigas de gangue, aí o tempo fechava! E os
seguranças lá pra botar aqueles caras pra fora eram os garçons. Aí se juntavam os garçons e iam
lá... e rapaz não era brincadeira! Aí eu disse: “Rapaz, eu não tô sendo pago pra brigar não!” Os
garçons também apartavam briga! Teve muitos colegas meus que acabavam é apanhando porque
tinham que ir junto com os seguranças (risos) o tempo fechava mesmo.
4.4 Os estudos
Eu sei que eu saí de lá, de trabalhar de garçom, eu digo: “rapaz não é isso que eu quero
não.” Aí foi passando, e a gente vai se estabelecendo né? Vai arrumando estabilidade e tal... Aí
eu comecei a estudar, fui fazer supletivo no Padre Morete. Só que no Padre Morete eles só faziam
banco de questão, ou então modular, eu digo não! Aí um colega meu disse: “Rapaz, eu tô
estudando no Sesc, vamos pro Sesc!” Aí me matriculei no Sesc, aí comecei a estudar no Sesc. Eu
comprava os módulos, ia lá e estudava em casa. Era tipo uma apostilinha, ainda hoje eu tenho um
bocado aqui em casa: de português, de matemática, ciências, geografia...
Eu sei que eu batalhei muito ó! Matemática, quando eu não ia bem na matemática tinha
vezes que eu fazia o módulo três vezes, quatro vezes... O meu professor foi o Tito. Mas eu sei
que eu consegui. Você vê que é tanta emoção que eu chorei no dia de receber o certificado de
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oitava-série. O do segundo-grau eu não senti tanta emoção não, mas o da oitava-série foi sofrido
ó! Não foi fácil não, eu trabalhava no campus da Unir, aí eu saía da Unir seis horas da noite... ia
pro Sesc, aí do Sesc estudava lá, fazia prova e depois pegava dois ônibus, um ônibus do Sesc pra
Sete de Setembro e depois outro da Sete de Setembro pro Tancredo Neves. Eu nessa época
morava lá no Tancredo e o ônibus era lotado, chegava em casa lá pra meia-noite. E aí eu sozinho
pra fazer janta, como é que eu fazia? Não tinha jeito não, eu pegava um pão, alguma coisa, um
ovo e comia e assim ia tocando a vida...
Aí veja bem, a gente morava num barraco lá duma tia da gente, morava em nove. Eram
nove pessoas que moravam lá. A gente trabalhava na construção civil né? E aí eu comprei um
terreno depois do Tancredo, lá no JK numa invasão (risos). Comprei um terreno e eu digo:
“rapaz, vou fazer um barraco e vou morar aqui!” Eu queria ter o meu lugar né? A gente tinha as
namoradas da gente, e a namorada não ia pro barraco que só tinha homem né? Aí rapaz, era uma
situação, nem energia tinha, aí a gente dormia no meio dos carapanã, era muito carapanã ó! A
rede, eu dormia em rede, a rede amanhecia assim que parecia uma sangria, desse jeito...
horrível... Rapaz, e quando às vezes eu levava a rede pra lavadeira ela dizia: “Rapaz, o que foi
isso? Enfiaram a faca em tu ontem a noite? A rede toda cheia de sangue...” (risos) Eu digo:
“rapaz, é o carapanã!” Mas é que o bicho era feroz mesmo!!! Mas era por causa das lâmpadas...
não tinha energia, não tinha ventilador, não tinha como!
Aí tá, e nisso eu ficando lá pela Unir, trabalhando tal... aí quando foi em 88, não em 90,
teve outro concurso. Aí eu já fiz o concurso interno e passei, passei pra pintor, que como pintor
mesmo eu já trabalhava, mas a minha função mesmo era “auxiliar operacional”. Quando eu vi o
nome da função eu pensei: “rapaz, o que é que eu vou operar aqui dentro? Tem alguma máquina
que eu possa operar?” Que nada, era pra carregar mesa, ajudar pedreiro, era isso.
Aí quando eu fiz o concurso pra pintor e passei, aí melhorou meu salário né? E aí eu entrei
com uma profissão. Aí eu continuei estudando, nisso eu tinha concluído a oitava-série, aí fui
fazer o segundo grau. Fiz contabilidade na Escola Rio Branco. Aí as condições já tava melhor né?
Aí eu já tava casado, já tinha até um fusca já! Naquela época um carro era difícil, até os anos
noventa, noventa e pouco era difícil carro. O mercado não tava assim como hoje, com essa
facilidade de arrumar carro não. Então, quem tinha um fusquinha, um chevetinho, mesmo que
fosse velho tinha que segurar ele e ir reformando que não era fácil comprar carro não.
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Aí as coisas foram andando assim... depois eu fiz uns cursinhos, aí eu fiz vestibular da
Unir; em dois vestibulares passei na primeira fase e dancei na segunda. O primeiro eu fiz pra
História, passei na primeira, na segunda não passei... Foi o seguinte, a dificuldade que a gente
tem quando a gente faz um curso como eu fiz, é na hora de escrever mesmo. Eu fiz a oitava-série
num supletivo e a gente não praticava redação. Fiz também o curso técnico e também não
lembro, não tenho nenhuma lembrança da professora ter passado pra gente fazer redação. Então,
tudo isso dificultou pro vestibular. Eu conseguia passar da primeira fase, mas quando vinha pra
discursiva eu caia, por três vezes foi assim. Mas o que eu acho que ainda me auxiliou um tanto
foi a viola. Porque com a viola a gente nunca para de tá exercitando a mente, o raciocínio, né?
É... a Cantoria é tipo um esporte da mente!
Mas aí foi quando eu resolvi... o último vestibular de 2004 que foi em parceria com a Unir
e a Uniron, quem não passasse na Unir tinha o direito de entrar na Uniron. E aí eu aproveitei e
entrei na Uniron, tô lá fazendo o curso de jornalismo. Espero no próximo ano já tá concluindo
né? E continuar a vida pra frente...
4.5 Lembranças da mãe e da serra de Luiz Gomes
Minha mãe teve uma barrigada de três, se tivessem vivas elas seriam mais novas do que
eu. Duas nasceram morta, e a que nasceu viva em menos de uma hora também já faleceu... É
porque minha mãe trabalhava muito na roça, minha mãe lavava roupa nas pedras da cachoeira,
pegava chuva no caminho da roça, uma vida sofrida... Minha mãe tá com 78 anos, se você vê ela
e ela contar a história dela você se emociona... Rapaz, ela sofreu desse tanto pra chegar a essa
idade... Um pessoal forte, resistente ó, muito resistente!!! E acabou que ela tá lá. A minha mãe, se
você olhar pro meu cabelo e pro dela, eu tenho mais cabelo branco do que ela.
A minha mãe, hoje, tá morando no Rio Grande do Norte, uma cidade de nome Luiz
Gomes lá no Alto Oeste Potiguar. Eu tava vendo outro dia, eu entrei num site e uma jornalista
fazendo um percurso pelo nordeste. Ela foi até Luiz Gomes e ela se encantou tanto com a cidade
que apelidou Luiz Gomes de “Suíça Nordestina”. Isso porque é o seguinte, se você tá no sertão...
a diferença do Nordeste pro Norte, é porque no Nordeste é mais ventilado. Agente por aqui é um
calor que não é brincadeira, e lá já não é tão assim não.
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Mas lá venta mesmo é nas serras, e aonde minha mãe mora é uma região de muitas serras:
Serra de Luiz Gomes, Serra de São Miguel, Serra do Mel, Serra de Porto Alegre... Você tá aqui
no sertão e de repente você vê uma serra lá, uma cidade em cima da serra. Rapaz... a serra lá é
cheia de curva, aí os caras tomam uns gorozinhos de vez em quando e mete uma banguela no
carro... Aí já viu né? Já morreu muita gente desse jeito. Lá no Nordeste o pessoal tem aquela
tradição de quando morre uma pessoa botar uma cruz na beira da estrada. Eu me lembro que
quando eu vou por lá eu pergunto pra minha mãe: “Ah mãe, quem foi que morreu aqui?” Aí ela
diz: “Ah, foi fulano de tal.” Aí eu digo: “mãe, essa cruz aí?” “Ah, essa é de fulano de tal, lembra
dele?” Isso é os caras na farra entendeu?
A serra lá tá a 600 e poucos metros do nível do mar. Então, ela tá bem alta num tá? Pra
você vê, o prefeito concluiu um mirante, hoje é o ponto turístico da cidade. Se você não botar
uma capa você treme de frio, o vento chega e sopra mesmo, é muito bom ó! Lá tem muita
produção de caju, castanha, manga, banana. A minha mulher até se admirou quando ela chegou lá
que eu comprei as bananas, ela disse: “rapaz... essa banana é muito bonita!” Pois é, tá vendo aqui
o tamanho das bananas? Isso aqui é da serra... muito produtiva a serra! Tem muita farinhada,
muita goma. Você chega lá e o clima é totalmente diferente, parece até que você tá em Goiânia
ou Brasília, é bem interessante...
Então, minha mãe mora nesse lugar, é um lugar muito bom... sempre eu lembro de lá. A
minha mãe é uma pessoa que batalhou muito, então tudo isso foi fazendo com que a gente tivesse
realmente esse respeito por ela. Minha mãe sempre foi uma pessoa assim sabe, que todo mundo
gosta dela. O meu pai havia assim, um pouco assim, de uns gostar outros não, que meu pai era
meio polêmico. Mas minha mãe não, minha mãe é unânime! Até hoje o pessoal na nossa cidade
vem do sítio, traz as coisas pra ela, dorme lá em casa. E nós fomos crescendo desse jeito. A
consideração e o respeito que a gente tem, é coisa que eu não vejo por aí assim tão fácil não. Pra
você vê, as minhas irmãs todas se casaram, numa boa, foram construir a família delas e estamos
aí. Eu também tenho um irmão em Brasília que também já tem a família dele... E eu tô por aqui,
mas sempre tô falando com eles...
4.6 A Cantoria Nordestina em Rondônia
Em 88, quando eu cheguei em Porto Velho a família do Xexéu já tava morando por aqui.
O Xexéu não tava aqui, ele tava pra Manaus, mas a família dele tava por aqui, mas tinha o
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Rouxinol que cantava com ele. O Rouxinol tem mais ou menos a minha idade. Ele é filho de
nordestinos, ele já nasceu aqui, mas tanto o pai como a mãe dele são nordestinos. A mãe dele
ainda é viva, mas o pai já é falecido.
Ele e o Xexéu trabalharam juntos nas Casas Pernambucanas, trabalharam na Auto Santo
que hoje é Norte Malhas. Aí o proprietário da Norte Malhas era muito fã de Cantoria. E o
Rouxinol conhecia lá esse cara, Zé Fernandes o nome dele. Aí eles vinham à noite me pegar pra
eu ir cantar na casa dele, era uma mansão que tinha ali no bairro liberdade. E a gente ficava lá até
mais de meia-noite, quando terminava ele enfiava a mão no bolso dava um cachê pra cada um. Ai
eu digo: “rapaz, isso aí é que é profissão!” Eu passava a semana todinha trabalhando de servente
e digamos que eu ganhasse é... cinqüenta reais, ele enfiava a mão no bolso e me dava cinqüenta.
Eu digo, isso é que é profissão!!! Quando é que eu vou ganhar uma coisa dessas, nunca! Aí eu
ficava, aí ele me pegava, aí vinha e me deixava depois. Eu lembro dele naquela época um carrão
do ano assim, ele era cheio de pulseiras de ouro.
E foi assim que eu conheci o Zé Fernandes, aí depois eu ia na loja dele fazer compras.
Com ele era tranqüilo, a gente podia comprar numa boa, não precisava fazer cadastro nem nada.
Mas aí ele chegou a falecer... mas foi uma pessoa que ajudou muito a gente. O Rouxinol mesmo
trabalhou muito tempo com ele. Então, o Rouxinol era empregado, e por não ser da região
também, não tinha aquela tradição de levar a sério à questão da viola. É tanto que o Rouxinol
depois com o tempo até parou de cantar.
Mas aí o Xexéu sabendo que eu tava aqui, que ele tava em Manaus porque não tinha
Cantador pra cantar com ele aqui na noitada. Mas aí quando ele chegou aqui, apesar de eu
também já tá empregado eu nunca quis largar a viola. Às vezes, não dava pra fazer Cantoria nos
dias de semana, mas nos finais de semana eu nunca abandonei. Era direto, de sexta-feira até
domingo a gente tava por aí cantando e isso marcou muito.
Eu e o Xexéu começamos a cantar em 88, naquele tempo era muito difícil o transporte, a
gente saía pra cantar nos bairros e aí depois de meia-noite não tinha mais ônibus. E às vezes
quando não tinha algum colega que desse uma carona pra gente, a gente tinha que vim a pé
mesmo. E com isso, muitas vezes nós pegamos carona até com o pessoal da viatura, da polícia
militar. É que aqui em Porto Velho tem muitos policiais do Pernambuco né, que gostam da
Cantoria, e eles ficavam passando por lá. E dava uma parada no carro, assistia a cantoria e às
vezes coincidia que a gente tava saindo e eles passavam e davam carona pra nós. Quer dizer, se
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algum conhecido visse a gente podia até pensar: “o que que esses caras aprontaram por aí, tão
indo preso”, né? (risos)
Então, foi muito bom, a gente cantava nos bares, na casa de algum nordestino, e nisso a
gente ia fazendo muita amizade, não tinha tempo ruim. E aí depois com o tempo foi-se
arrumando transporte, passamos a ficar mais conhecidos, fomos conquistando espaço. A gente
cantou muito na noite por aí. Nós podemos dizer que fomos os pioneiros em Porto Velho.
Podemos dizer até do estado de Rondônia que, hoje, pra esse pessoal que gosta da Cantoria, nós
somos conhecidos em Guajará Mirim, Pimenta Bueno, Ariquemes, Jarú. Aqui por Rondônia
aonde você vai que tem nordestino e gente que gosta da Cantoria, você ouve falar dos repentistas
Xexéu e Graúna16. Acho que ainda tem muita gente que lembra da gente.
Quando a gente chegava num lugar a primeira coisa que a gente fazia era ir pra rádio, a
rádio da cidade. Ia lá, fazia uma apresentação e assim a gente divulgava o trabalho. O Xexéu sob
esse ponto aí é um cara que se dedica muito, ele sempre foi dedicado à Cantoria. Eu também
sempre fui, sempre defendi a Cantoria Nordestina, mas só que devido o meu emprego eu não
podia fazer o que ele fazia. Ele vivia diariamente da viola e... por aí, mas o importante é que a
gente continua... Nós tivemos um programa na rádio Tropical, rádio AM. Isso foi na época de 90,
92 por aí. Foi o período que veio um Cantador do Ceará, Zé Ricardo e ficou com a gente também
por uma boa temporada.
Depois, fomos pra Eldorado que hoje é uma rádio evangélica, Boas Novas é a antiga
Eldorado. Aí ficamos um tempo fora do rádio, aí quando surgiu a Transamazônica a gente
ocupou aquele espaço ali de 2000 até 2005, depois a gente passou pra Caiarí. Na época da Caiarí
foi quando o Xexéu resolveu dar uma volta no Nordeste (risos) e já vai fazer dois anos que ele ta
pra lá.
Então, nós fizemos quatro rádios com a Caiarí. Televisão nós fizemos já várias vezes, TV
Rondônia já nos mostrou umas três, quatro vezes. Teve também um programa que tinha na TV
Norte, o apresentador era o Paulo Benito, lá também nós nos apresentamos umas três vezes.
Fizemos o lançamento do nosso CD no programa do Paulo Benito que é um programa de
entrevista. E com isso a gente ficou muito conhecido. Aí o nosso CD que é “O país que nós
queremos” foi uma proposta muito boa que a gente teve, que a gente já tinha esse projeto de fazer
16
Matias Neto inicialmente utilizou o nome artístico de Graúna, posteriormente por motivos pessoais resolveu
utilizar o seu próprio nome.
82
esse CD. E a gente já induplado esse tempo todo... o Xexéu já tinha gravado com outros
Cantadores mas comigo nunca tinha dado certo. Então eu falava pro Xexéu: “se um dia a gente
gravar vamos fazer um trabalho que pelo menos chame atenção!” E graças a Deus deu certo!
Tem duas faixas no CD que são as que o pessoal mais comenta. Uma é um trabalho meu, e a
outra é um trabalho dele. Uma é o “país que nós queremos” que é a sextilha do CD; e a outra é o
“sertão em duas fases”, que é um trabalho que a gente fala em dez, feito em dez linhas, que é o
sertão inverno e verão, como é a fase de cada um.
Então, essas duas faixas são as que o pessoal mais comenta. Graças à Deus tá saindo
muito bem o CD. Às vezes, quando eu to com o CD, o pessoal compra mesmo, procura. Às
vezes, eu digo quais são as lojas que têm o CD e assim a gente vai divulgando o trabalho. E agora
tem outra proposta pra um CD, vamos ver se a gente consegue fazer, se não for pra esse ano, até
o meio de 2008 vamos vê se a gente consegue né? Porque com o CD o artista não consegue
ganhar dinheiro não, mas é uma forma da gente ficar reconhecido e também de divulgar a
Cantoria. A Cantoria fala de tudo, pela Cantoria o poeta tem sempre alguma coisa pra dizer.
E quando a gente tem um programa no rádio e tem um trabalho publicado, fica mais fácil
do público enxergar. Nem todo mundo sabe o que é um pé-de-parede, a maioria das pessoas não
sabe. Isso é uma experiência que a gente já tem e sabe disso, a gente tem que tá realmente
preocupado em fazer esse trabalho de gravar. Pensar em ganhar dinheiro não ganha não. Até os
Cantadores famosos também falam que eles não ganham dinheiro com CD, o que dá dinheiro são
os shows. Mas pro cara ficar conhecido tem que ter um trabalho publicado.
4.6.1 A Cantoria em Rondônia antigamente
Antigamente tinha mais pé-de-parede aqui em Porto Velho. Tinha mais porque nós
pegamos Rondônia numa época do garimpo, o auge do ouro. Tinha muitos garimpeiros e muitos
nordestinos e esse pessoal quando vinham dos garimpos, eles procuravam a gente mesmo. Eles
ficavam dois três dias na cidade, às vezes uma semana.
E me lembro que tinha um cidadão aqui por nome de José, a gente chamava ele de Zé
Gordo porque ele era meio forte, o apelido dele era Zé Gordo. Os garimpeiros, até conhecidos do
Xexéu, que vieram do Ceará, quando vinham do garimpo ficavam de três a quatro dias na casa
dele bebendo e assando carne. E esse Zé Gordo levava nós pra lá e a gente ficava de sexta,
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sábado e domingo com eles cantando direto! E assim a notícia que tinha Repentista em Rondônia
se espalhava pelos garimpeiros, e quando eles vinham do garimpo eles procuravam agente pra
ficar com eles. Então, a moeda era boa e um cachê bom... aí a gente cantava mais.
Hoje em dia o negócio do garimpo acabou, mas eu acho também que é até uma questão de
divulgação sabe? Eu às vezes acho que se a gente fizesse um trabalho de mídia melhor, se se
aproximasse do pessoal... eu acho que o público tá aí, só depende da gente saber fazer os
contatos. Por exemplo, a gente tem a idéia de um projeto “cantoria na escola”, é um projeto
interessante. Mas a gente precisa provocar o poder, provocar os políticos, provocar os vereadores
pra que esse projeto seja aprovado na câmara. Porque o público jovem, se fala assim ah... o
jovem não gosta de Cantoria, não é bem por aí não! As vezes que a gente tem cantado nas
faculdades e em escolas, a reação é totalmente positiva! Pra eles é uma coisa nova, é o novo, é
uma criatividade. O pessoal quer isso, foge da mesmice né? Então, só falta divulgação mesmo, é
isso que falta.
Mas de qualquer forma a Cantoria pé-de-parede ainda tá presente em Porto Velho, é muito
difícil a gente ficar mais de quinze dias sem fazer um baião. E é bom demais, cantar até altas
horas, exercitar a cabeça... É uma pena que aqui em Porto Velho tem poucos Cantadores... Mas, a
gente faz a nossa parte.
4.7 Casos de Cantoria
Teve uma vez que nós fomos cantar em Nova Mamoré, a gente chegou lá por volta das
três horas da tarde de sexta-feira, aí oito horas da noite começamos a cantar e só paramos às 4 da
manhã (risos) por que não dava pra aguentar mais.
Aí, a gente cochilou um pouquinho, quando foi 10 horas da manhã o rapaz abriu o bar e já
tinha gente querendo Cantoria de novo, aí foi até dez da noite. Resultado, foram 12 horas de
Cantoria direto. Foi um dos rojões mais pesados que eu já passei, e a gente se aguentou porque a
gente realmente tinha um compromisso com o público. E o dono do bar assava carne, e trazia
cerveja, e bate papo e pede um mote, pede uma sextilha, pede uma canção. E o dinheiro caindo
na bandeja. Foi uma Cantoria muito boa essa.
Isso são coisas que é pra você vê como é que é o Cantador. Agente faz uma apresentação
de 5, 10 minutos e o pessoal acha que é só aquilo ali. Pensa que em 5 minutos o Cantador esgota,
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mas não esgota mesmo! Como eu contei pra você, que nós cantamos da noite de sexta até às 4 da
manhã; e no outro dia começamos às 10 da manhã e fomos parar só às 10 da noite. E num foi
coisa repetida não! Foi o pessoal pedindo mote, pedindo estilo, pedindo tema e a gente buscando.
Então, é uma fonte inesgotável a do Cantador de viola. Às vezes, uma apresentação de 10
minutos pode até ser um trabalho pronto. Mas a Cantoria mesmo, do Cantador mesmo de verdade
é o pé-de-parede que você segura três, quatro horas ali cantando sem parar. E quanto mais você
canta mais tem facilidade, mais o raciocínio fica rápido pra você buscar as palavras.
Então, esse é o lado do Repentista, essa fonte inesgotável! Isso que eu te contei é uma
prova, nós superamos... eu achei que ia ficar rouco e tal, mas não. E a gente conseguiu numa boa,
e conseguimos cantar! Se você pensar aí ó, de 8 da noite até 4 da manhã do outro dia, aí você
dormir um pouquinho e começar às 10 horas e ir até as 10 da noite... dá um tempo né? Dá uma
média de umas 20 horas, foi um pega mesmo! O pessoal tava era com saudade das coisas do
sertão!
O que acontece é o seguinte, aqui em Rondônia tem gente de todos os estados. E você vai
pra um lugar como Guajará Mirim, como Nova Mamoré, aí é composto de cearense, de
paraibano, de rio grandense, de pernambucano, de piauiense... E cada pessoa que chegava
daquela colônia, chegava uma colônia de piauiense, por exemplo, chegava uma outra de
paraibano, aí cada um que ia chegando ia pedindo as coisas do seu lugar. E assim a gente ia
cantando... e pediam vaquejada, e pediam mote falando do lugar dele e tal, e foi desse jeito que a
gente segurou essa barra.
Você conhece a canção “casa amarela” né? A canção “casa amarela” é uma das canções
hoje mais solicitadas, mais completas. Mas por quê? Isso é porque o pessoal que vem embora do
nordeste, geralmente, é um pessoal humilde, é um pessoal que deixou lá pelo Nordeste o pai, a
mãe... Aquela casinha lá aonde eles nasceram, todo mundo junto.
Então, o pessoal tando fora do Nordeste quando é final do ano eles resolvem se juntar. Aí
vem um de Manaus, outro do Pará, Rondônia, se reúnem na casa de um dos parentes e fazem
aquela festa! Esse é o lema da canção casa amarela.
Aí, o pai mata um porco, mata um bode, convida a vizinhança; e recebe os filhos... aí faz
uma Cantoria! Então, quem tá fora como eu, como outros que deixaram a sua terra, tem essa
lembrança.
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Então, quando você encontra um repentista, ou então um sanfoneiro daqueles pé-de-serra
mesmo que vem de lá do Nordeste, então você começa a viajar... seu pensamento viaja a mil.
Então, é isso que faz os ouvintes pedirem as coisas pro Cantador cantar, é pra poder recordar...
Lembrar daquele jumentinho que você andou montado, o cara hoje ta de carrão né? Mas ele
lembra daquele jumentinho que andava, que carregava água, carroça, entendeu? Então, tudo isso
acontece!
Você vê, o cara hoje às vezes tem até uma casa boa, mas num esquece da casinha de taipa
que morou... O nordestino tem muito isso... dizem que é sofrer duas vezes, mas a gente lembra,
não tem jeito, não tem como não lembrar. Assim como o rico lembra do palácio dele, o pobre
também lembra!!! O extrato social mudou, mas num tem como, porque ficou lá o primo, ficou a
tia, até a mãe às vezes tá por lá. Então, ele lembra de voltar, de comer aquela comidinha por lá,
aquela buchadinha de bode, aquele cuscuz (risos), por mais que o cara melhore ou piore num vai
esquecer isso nunca! Tá no sangue, isso é do ser humano mesmo... E o cantador retrata isso muito
bem nos seus trabalhos, faz com que o caboclo até chore!..
Outra canção que meche muito com o nordestino também é aquela “saudade dos meus
pais”. “Saudade dos meus pais” é aquela canção que fala da casa pobre né? Daquela casinha da
gente, que faltava dinheiro, mas sobrava felicidade! Ela é assim:
Seria bom, seria bom demais
se eu voltasse a ser criança
pra viver de esperança
lá na casa dos meus pais...
Como era linda a casa pobre da gente,
notei que o amor somente ali podia existir
anoitecia a dormida eu procurava,
papai no quarto cantava pro seu caçula dormir...
Eu aprendi fazer o que ele fez
aí meu Deus como eu queria ser criança outra vez...
Como era bom, seria bom demais,
se eu voltasse a ser criança pra viver de esperança
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lá na casa dos meus pais...
Quando papai ia batendo na gente,
mamãe tomava a frente ninguém apanhava mais
ela dizia: dá em criança é perigo
e o que mamãe fez comigo outra pessoa não faz
pobre demais sofri necessidade
era faltando riqueza e sobrando felicidade...
Seria bom, seria bom demais,
se eu voltasse a ser criança pra viver de esperança
lá na casa dos meus pais...
Como eu queria na quentura da fogueira,
casar só de brincadeira pensando que era verdade.
E sem maldade fui crescendo, fui crescendo
parece que estou vendo tudo como aconteceu
papai morreu a terra os donos venderam
e os que ainda não morreram estão velhos como eu...
Seria bom, seria bom demais,
se eu voltasse a ser criança pra viver de esperança
lá na casa dos meus pais...
Isso é uma letra do João Lourenço! Poeta muito bom o João Lourenço... A maioria das
vezes que eu canto essa canção às pessoas se emocionam. Já aconteceu de gente me vê pela rua e
dizer: “rapaz, aquela canção que você cantou lá pra mim, olha... assim, assim... emocionou!”
então, essas coisas me marcam demais.
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CAPÍTULO 5 – CANTORIA NORDESTINA E LEITURAS GEOGRÁFICAS
Presente de mãe
Pedro Bandeira
Mãe padroeira das raças
sombra que alivia as dores
árvore das ramas espaças
cobrindo o mundo de flores
forte amazonas sem pausas
a divulgada das causas
de tudo que aconteceu
dama, alfaiate e maestra
escrava, rainha e mestra
do filho que Deus lhe deu...
Quando o sol rasgava a peça
dos lençóis do firmamento
você fazia depressa
o meu primeiro alimento
quando parava o chuveiro
eu pulava no barreiro
como quem vai se banhar
tudo em casa eu quebrava
mas você não reclamava
para não me ver chorar...
Deusa do nosso convívio
arquivo do meu altar
eu nunca lhe dei alívio
nem direito de gozar
ninfa do meu mar sem ondas
lâmpada das noites redondas
bússola que mostra o perigo
véu que cobria meu berço
eu morro mas não esqueço
o que você fez comigo...
Eu de camisa sem manga
calça curta e pele fina
olhava minha fianga
estendida na faxina
meu lençol branco molhado
você com todo cuidado
esquentava no fogão
dizendo de olhar vazio
eu posso dormir no frio
mas o meu filhinho não...
De noite você cantava
triste como uma viúva
sua voz se concertava
à voz sonora da chuva
quando o trovão tenebroso
rangia espalhafatoso
você parava pra ouvir
eu chorava e lhe chamava
e a minha insônia não dava
direito a você dormir...
O crime que mais impede
de no homem acreditar
e ver uma mãe que pede
a quem se nega de dar
é triste pra natureza
e é triste como a tristeza
duma tristeza infantil
eu não resolvo o problema
mas ofereço um poema
a todas mães do Brasil...
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CAPÍTULO 5 – CANTORIA NORDESTINA E LEITURAS GEOGRÁFICAS
Esse capítulo se dedica à leitura geográfica da Cantoria Nordestina. É aqui que tem início
a análise da História Oral de Matias Neto. Visando o enriquecimento tanto teórico quanto
empírico dessa análise, optamos por fazê-la de forma inter-relacionada com o conhecimento
gerado através da Pesquisa Participante. Ou seja, de forma concatenada com a análise da História
Oral, estaremos ampliando a perspectiva para o contexto social e espacial da Cantoria Nordestina.
As narrativas cantadas de improviso entrarão como elemento chave nessa análise, sendo
utilizadas constantemente para a contextualização da dinâmica do espaço vivido da Cantoria
Nordestina.
Convém esclarecer que nesse trabalho será dada ênfase aos modelos de Cantoria
Nordestina denominados “pés-de-parede”, por dois motivos básicos: 1) em Porto Velho-RO, a
grande maioria das apresentações dos Cantadores se enquadram dentro dessa categoria; 2) é
justamente nas Cantorias pé-de-parede que as inter-relações dos atores participantes do evento
acontecem de maneira mais direta e espontânea. É justamente nesse formato de Cantoria que as
intersubjetividades fluem de maneira mais intensa, ou seja, é nesse formato de apresentação que o
espaço vivido da Cantoria Nordestina é mais explícito e pode ser melhor analisado.
Inicialmente, delinearemos o que são os pés-de-parede, para isso as suas principais
características serão apontadas. Em seguida terá início a análise da História Oral de Matias Neto,
que será desenvolvida através de blocos temáticos. Essa análise está dividida em duas partes
(capítulo 5 e 6), ela foi assim dividida devido à necessidade de aprofundamento do conceito de
espaço vivido da Cantoria Nordestina.
5.1 Os Pés-de-parede
Os Cantadores podem se apresentar em diversas ocasiões: eventos, festas, comemorações
de aniversários, em escolas, em festivais, etc. Mas é nos denominados “pés-de-parede” que o
contato público/Cantadores acontece de maneira mais direta e mais espontânea. Os pés-de-parede
são as apresentações consideradas mais “tradicionais” da Cantoria. Eles remontam o formato das
antigas Cantorias realizadas no sertão nordestino.
89
Tudo inicia-se através de um acordo firmado entre Cantadores e apologista, é marcada
uma data e local para a realização da Cantoria. Após esse combinado, apologista e Cantadores se
encarregam de convidar as demais pessoas. O convite é externalizado principalmente a pessoas já
conhecidas, pessoas consideradas amigas e que gostem da Cantoria. Observem que desde o
princípio da organização do evento, a Cantoria Nordestina já possui uma função social de
aproximar pessoas que têm algo em comum, a apreciação pelo Repente. Muitas vezes, essas
pessoas têm origem nordestina, mas isso não é regra, em muitos casos amigos de participantes
são convidados para conhecer e passam a serem freqüentadores assíduos. A divulgação do evento
é feita de maneira bastante simples, de “boca em boca”; utilizam principalmente o telefone e em
alguns casos, quando os Cantadores estão se apresentando em programas de rádio ou televisão
aproveitam para anunciar o evento.
Uma Cantoria pé-de-parede se diferencia de outros tipos de apresentações por diversas
razões, as principais delas são: o tempo de duração do evento; a maneira como é estabelecido o
cachê dos Cantadores; e a dinâmica do contato intersubjetivo público/Cantadores. Vamos nos
concentrar nesses três pontos.
a. O tempo de duração
Quando os Cantadores se apresentam em algum clube, ou escola, por exemplo, a
apresentação tem em média de 15 a 30 minutos de duração; e a maioria das pessoas não conhece
a fundo o que é a Cantoria Nordestina. Ou seja, as inter-relações estabelecidas são mais
superficiais. Já o pé-de-parede tem em média uma duração de 3 a 5 horas, e as pessoas
participantes normalmente entendem melhor as regras da Cantoria (CAPÍTULO 3) e seu
funcionamento.
Aos que ainda não estão familiarizados com a dinâmica do evento, a sua temporalidade e
informalidade características lhes possibilitam um gradativo entendimento. Com três, quatro, ou
cinco horas, os atores têm mais tempo para vivenciarem a experiência da Cantoria Nordestina. A
informalidade potencializa a espontaneidade, isso gera maior fluidez nos processos
comunicacionais entre os atores. A própria dinâmica do espaço vivido da Cantoria Nordestina
possibilita aos atores não-familiarizados um certo entendimento. Ao observar os pedidos dos
ouvintes por exemplo, esses atores já passam a identificar que existe uma comunicação direta
entre ouvintes e Cantadores. Nesse sentido, os apologistas têm também uma função importante,
são eles os principais atores que explicam sobre as regras e funcionamento da Cantoria.
90
b. O cachê dos Cantadores
Em outros formatos de apresentação que não os pés-de-parede, o cachê dos Cantadores é
acertado previamente. Já nos pés-de-parede, o cachê dos Cantadores vai ser pago através do
sistema da “bandeja”. Mas o que é esta bandeja? O início de uma Cantoria pé-de-parede dá-se da
seguinte maneira: É escolhida uma posição estratégica para os Cantadores, um lugar com boa
acústica, onde eles possam ser bem visualizados e ter uma boa visualização. Eles sentam lado a
lado, próximos um do outro. Depois de afinadas às violas, a Cantoria começa. O primeiro baião17
sempre é uma sextilha, livre, sem tema definido, eles estão se concentrando... buscando
“inspiração”.
FOTO 02 - CANTADORES E A BANDEJA,
CUSTÓDIO QUEIROZ (esq) E MATIAS NETO (dir)
Fonte: foto feita pelo autor em 29/02/08, em Porto Velho-RO.
17
O termo “baião” tem duas acepções dentro do contexto da Cantoria Nordestina: 1) ele designa o ritmo
característico do repente, o “baião de viola”. Por exemplo, ao se referir a um iniciante que já tenha aprendido a tocar
a viola nos moldes exigidos pela Cantoria, os Cantadores podem afirmar: “ah, ele já sabe tocar o baião de viola” ou
“o baião dele está bem tocado”; 2) os Cantadores se referem à palavra baião em sentido quantitativo. Ou seja,
qualquer modalidade tocada e cantada inteira é um baião. Por exemplo, eles costumam dizer que o primeiro baião da
Cantoria é sempre uma sextilha. Ou, pode acontecer de um ouvinte fazer um pedido e eles responderem: “tinha um
outro pedido na frente, mas no próximo baião a gente canta o seu pedido”.
91
Após cantarem o primeiro ou o segundo baião, o promovente18 da Cantoria anuncia que
vai colocar a bandeja. A bandeja é colocada próxima aos Cantadores e o promovente faz a
primeira contribuição financeira na bandeja, o que sinaliza a abertura oficial da Cantoria. A partir
daí, os pedidos de motes, estilos ou assuntos dos mais variados estão liberados. Normalmente, os
pedidos são acompanhados de contribuições. Essas contribuições são espontâneas, ninguém que
vá a uma Cantoria pé-de-parede é obrigado a contribuir; (a não ser o próprio apologista
promovente do evento, o que já faz parte do próprio ritual da Cantoria). Os Cantadores também
não atendem somente pedidos pagos. Foi presenciado inúmeras vezes, pessoas que fizeram
pedidos sem terem colocado dinheiro na bandeja e os Cantadores terem atendido.
A bandeja funciona como uma espécie de intercâmbio entre os Cantadores e o público.
Um ouvinte ao se aproximar da bandeja para fazer sua contribuição, ele automaticamente se
aproxima dos Cantadores. Nesse momento, o ar de simpatia e reciprocidade entre ambas as partes
é grande. Os Cantadores ficam atentos a um possível pedido; e o ouvinte se sente acolhido,
porque os Cantadores lhe dão atenção especial. É muito comum logo após uma “paga” na
bandeja, os Cantadores em seus improvisos falarem carinhosamente do ouvinte e de pessoas
acompanhadas a ele.
c. O contato público/Cantadores
O contato entre público e Cantadores dentro de uma Cantoria pé-de-parede é o traço mais
marcante e complexo do espaço vivido da Cantoria Nordestina. Complexo, porque é através
desse contato intersubjetivo, o qual é mediado através dos códigos de comunicação, que diversos
elementos como memória, sentimentos e representações são trabalhados simultaneamente.
Todo esse processo tem por eixo o que é o cerne da própria Cantoria Nordestina, que é o
cantar de improviso. O cantar de improviso dentro do contexto social da Cantoria Nordestina tem
uma íntima ligação com os pedidos do público. São os pedidos, as provas máximas da
legitimidade do improviso. Ao cantarem os pedidos (os quais são portadores das temáticas mais
inesperadas) os Cantadores comprovam ao público a autenticidade de suas improvisações. E é
justamente através dos pedidos que eles desenvolvem as suas narrativas cantadas no decorrer de
toda a apresentação.
18
Esse promovente, na grande maioria das vezes, é um apologista dono do estabelecimento aonde está sendo
realizada a Cantoria pé-de-parede, ou o dono da residência.
92
Assim, os Cantadores, durante todo o processo, estão atentos às respostas do público, eles
esperam serem incentivados; já o público, de maneira geral, a sua expectativa está voltada ao
caráter lúdico da Cantoria e a sua capacidade própria de emocionar e fazer relembrar entes
queridos e a terra natal. Ou seja, existe uma inter-relação dialógica no contexto sócio-espacial da
Cantoria.
FOTO 03 – UMA OUVINTE MANIFESTANTO SEU
AFETO PELO CANTADOR CUSTÓDIO QUEIROZ.
Fonte: foto feita pelo autor em 29/02/08, em Porto Velho-RO.
Convém ressaltar, que na dinâmica interna do espaço vivido da Cantoria Nordestina
existem inter-relações diferenciadas (fig. 1), essas diferenças estão caracterizadas sob os
diferentes tipos de comunicação existentes entre os atores. Basicamente, essas inter-relações são
de três tipos: as inter-relações Cantador/Cantador, as inter-relações público/Cantadores e as interrelações entre os atores do público.
93
FIGURA 01 – AS INTER-RELAÇÕES ENTRE OS ATORES
DO ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA
Fonte: desenvolvido pelo autor.
A) Diálogo intersubjetivo entre os Cantadores: normalmente os Cantadores possuem muita
afinidade entre si. Sua relação dentro do espaço vivido da Cantoria Nordestina é mediada,
principalmente, através de suas narrativas cantadas de improviso. Através de suas narrativas eles
desenvolvem uma espécie de diálogo cantado, esse diálogo é permeado de elementos próprios de sua
cultura e de seu espaço. Ou seja, os Cantadores cantam sobre sua própria cotidianidade, suas visões
de mundo, suas saudades, suas utopias, seus valores.
B) Inter-relações público/Cantadores: é mediada principalmente através da dinâmica dos pedidos.
Os atores do público pedem aos Cantadores o que querem ouvir, isso possibilita uma grande
pluralidade de temas, o que enriquece a Cantoria. E reciprocamente, quando os Cantadores cantam os
temas pedidos, eles constroem um elo com os ouvintes, adquirindo sua atenção e simpatia. Tendo por
eixo os pedidos, além dos ouvintes contribuírem financeiramente com os Cantadores, eles
contribuem empírica e simbolicamente com o funcionamento da própria Cantoria Nordestina.
C) Inter-relações entre os atores do público: é mediada pelos códigos de comunicação.
Considerando o caráter lúdico e descontraído da Cantoria, essa relação normalmente é pautada na
cordialidade, no calor humano e na cooperação.
A+B+C) Inter-relações entre os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina.
5.2 Análise da História Oral de Matias Neto
Geografia sanciona abordagens espaciais; e espaço, em níveis de análise mais avançados,
sanciona “tempo”. Todo ser humano tem, presente em toda sua trajetória de vida, esses dois
elementos indissociáveis, espaço e tempo... tempo e espaço. Inicialmente, todos têm um lugar de
nascimento e uma data natalícia; essas na verdade, se configuram em uma das principais
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características de cada indivíduo. O lugar de origem e o tempo de experiência de vida. O lugar de
nascimento tem relação direta com o contexto sócio-cultural que será vivenciado pelo indivíduo;
e o tempo de vida tem relação direta com as qualidades sensório-perceptivas do indivíduo. Matias
Neto em sua narrativa perpassa constantemente por essas duas categorias, espaço e tempo.
Matias é um narrador nato, a temporalidade e a espacialidade da sua história são ditadas
por ele. Ele inicia a sua narrativa confirmando a sua identidade nordestina, a qual está ligada
tanto a uma base material: o Nordeste; como a um conteúdo social: a família. A sua primeira
frase é: “Eu sou de uma família nordestina, família de 14 irmãos ou melhor 13 irmãos, desses 13
só 6 se criaram.” (pág. 68).
O eixo de sua narrativa se desenvolve basicamente entre o Nordeste e Rondônia. Na sua
narrativa alguns aspectos são mais acentuados que outros. Dentre eles podem ser destacados: a
família, a terra natal, a Cantoria Nordestina, o esforço em busca dos estudos e a vida em
Rondônia. Entretanto, nenhum desses aspectos de sua história exclui o outro, na verdade eles se
completam, se interagem constituindo a própria individualidade “Matias Neto”. Matias é um
indivíduo, mas que se gerou dentro de um contexto sócio-cultural específico: ele é um nordestino,
ele trabalhava na lavoura, ele é um migrante e é um Cantador. Isso dá a ele características que
legitimam sua identidade. Matias, sob um determinado aspecto, não deixa de ser um
representante de um “universo sertanejo”.
5.2.1 Família e terra natal
Para Matias, a lembrança do Nordeste tem íntima ligação com as lembranças relacionadas
à sua família. Falar do Nordeste é falar de sua família, e relembrar a sua família é relembrar o
Nordeste. Essa interação mostra características relacionadas à própria concepção de lugar. O
lugar não é simplesmente uma base material, ao lugar estão relacionadas qualidades simbólicas, e
essas provêm das inter-relações sociais geradoras de significados. Assim, o Nordeste tem
significado porque lá ele viveu, lá ele ouviu histórias contadas por seu pai, lá ele recebeu os
carinhos e cuidados de sua mãe, lá ele teve os primeiros contatos com os Poetas Cantadores. É de
lá que Matias traz os seus conhecimentos de vida e as suas concepções de valores.
Uma das figuras mais presentes em toda a sua narrativa é a “mãe”. À ela, ele confere
prestígios que não confere ao pai, segundo ele:
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minha mãe trabalhava muito na roça, minha mãe lavava roupa nas pedras da
cachoeira, pegava chuva no caminho da roça, uma vida sofrida... Minha mãe tá
com 78 anos, se você vê ela e ela contar a história dela você se emociona...
Rapaz, ela sofreu desse tanto pra chegar a essa idade... Um pessoal forte,
resistente ó, muito resistente!!! (...) A minha mãe é uma pessoa que batalhou
muito, então tudo isso foi fazendo com que a gente tivesse realmente esse
respeito por ela. Minha mãe sempre foi uma pessoa assim sabe, que todo
mundo gosta dela. O meu pai havia assim, um pouco assim, de uns gostar
outros não, que meu pai era meio polêmico. Mas minha mãe não, minha mãe é
unânime! (pág. 78-79) (grifos do autor)
A imagem da mãe é um referencial importante na vida de Matias, ele a associa a
características como: esforço pessoal, trabalho e resistência; traços que ele carregará consigo
durante toda sua trajetória. Para Matias, trabalho é uma coisa que dignifica o ser humano; tanto é
que ele reconhece os esforços da mãe, e é em parte esse reconhecimento que corrobora ainda
mais o respeito que nutri por ela.
Ao falar de sua mãe na atualidade, ele cita com freqüência o lugar em que ela mora, a
cidade de Luiz Gomes. E esta cidade fica localizada em “uma região de muitas serras”; nesse
contexto, ao lembrar da mãe, Matias conseqüentemente lembra da “serra”. Essa associação entre
a figura da mãe e o lugar em que ela mora é constante:
aonde minha mãe mora é uma região de muitas serras: Serra de Luiz Gomes,
Serra de São Miguel, Serra do Mel, Serra de Porto Alegre... Você tá aqui no
sertão e de repente você vê uma serra lá, uma cidade em cima da serra. (...) Se
você não botar uma capa você treme de frio, o vento chega e sopra mesmo, é
muito bom ó! (...) Então minha mãe mora nesse lugar, é um lugar muito bom...
sempre eu lembro de lá. (pág. 78-79) (Grifos do autor)
Matias afirma que sempre lembra do “lugar” em que a mãe mora. Existe uma associação
muito forte entre as experiências vividas e a caracterização de lugar. “Os acontecimentos simples
podem com o tempo se transformar em um sentimento profundo pelo lugar” (TUAN, 1983: 158).
Um espaço qualquer passa a ser “lugar” a partir do momento que esse espaço adquire um
“significado especial”; e esse significado é adquirido através da vivência, cada momento
vivenciado é um momento único. Essas experiências vivenciadas deixam marcas na memória, as
quais caracterizam lugares específicos. De acordo com Tuan:
96
Os lugares íntimos são lugares onde encontramos carinho, onde nossas
necessidades fundamentais são consideradas e merecem atenção sem
espalhafato. Há ocasiões em que até o adulto saudável anseia pelo aconchego
que conheceu na infância. Que tranqüilidade se compara àquela de uma criança
sentada no colo dos pais quando lhe estão lendo uma estória para dormir? (...) A
afeição duradoura pelo lar é em parte o resultado de experiências íntimas e
aconchegantes. (1983: 152-153)
A família tem uma importância fundamental em como o futuro adolescente e o adulto irão
encarar as diferentes situações da vida. Para Claval, “A família e a comunidade local constituem
as matrizes que asseguram a transmissão de uma parte essencial da vida social” (2001: 119). A
importância das figuras familiares (pai, mãe, tios, irmãos, maridos, esposas...) é variável de
acordo com cada indivíduo. No caso de Matias, a figura materna é preponderante.
Na Cantoria Nordestina, as referências à importância familiar também têm um destaque
bem acentuado. Os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina constantemente abordam a
temática família, principalmente nas figuras do pai e da mãe. Essa abordagem das figuras paterna
e materna, na maioria das vezes, é relacionada simultaneamente com descrições do espaço
nordestino. Todo esse processo acontece através das intercomunicações entre ouvintes e
Cantadores. Isso é possível, justamente pelo fato dos Cantadores, constantemente, privilegiarem
em seus improvisos temáticas relacionadas à memória e cotidianidade de seu próprio grupo.
Para a melhor contextualização dessa dinâmica no espaço vivido da Cantoria Nordestina,
serão mostrados dois repentes que foram cantados em Cantorias pé-de-parede, todos os dois em
Porto Velho-RO. O primeiro é uma sextilha cantada por Matias Neto e Mozaniel Mendonça, em
11/08/07:
De ser honesta e forte
(Matias Neto)
minha mamãe foi capaz
de parir quatorze filhos
dentre moças e rapaz
e ensinar pra todos nós
suas lições principais...
Eu não esqueço meus pais
meus irmãos e irmãzinha
(Mozaniel Mendonça)
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mãe temperando o almoço
no fogão lá da cozinha
e por mais que o tempo passe
não esqueço minha mãezinha...
A sua mãe e a minha
(MN)
todas duas nordestinas
a vida não era fácil
lá por aquelas esquinas
mas todas duas criaram
seus meninos e meninas...
Elas cumpriram suas sinas
(MM)
com especial valor
sua mãe pariu 14
minha mãe 17 gerou
e é graças a minha mãe
que hoje sou um cantador...
A minha mamãe criou
(MN)
seus 14 sem perigo
e foi só uma parteira
que de todos cortou o umbigo
e são todos do mesmo pai
e todos parecem comigo...
O segundo é o mote “meu passado é tão presente, que eu não consigo esquecer” o qual foi
pedido por um ouvinte, aos mesmos Poetas na data de 29/02/08:
Lembro a mãe que me pariu
com seu gesto meigo e franco
(Matias Neto)
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hoje tem cabelo branco
eu vi ela, ela me viu
depois pegou e sorriu
e com paz veio dizer
meu filho aprenda a viver
pois quero te ver contente
meu passado é tão presente
que eu não consigo esquecer...
De papai eu lembro o grito
(Mozaniel Mendonça)
os conselhos e os baiões
dele escutava os sermões
do que é certo e bonito
vejo pai no infinito
orando pra eu vencer
não sei porque eu vim viver
nessa terra longe e quente
meu passado é tão presente
que eu não consigo esquecer...
Eu me lembro do embalo
da rede no meu terreiro
me lembro até do vaqueiro
em cima do seu cavalo
me lembro o cantar do galo
na hora do amanhecer
quando mãe ia fazer
um cafezinho bem quente
meu passado é tão presente
que eu não consigo esquecer...
(MN)
99
Eu lembro lá do sertão
(Mozaniel Mendonça)
que nasci e me criei
dos lugares que andei
sem passar decepção
e mamãe na ocasião
que queria me bater
pai vinha me defender
ele ficava valente
meu passado é tão presente
que eu não consigo esquecer...
Nesses dois exemplos, existe uma interação ouvintes/Cantadores, o público se identifica
na narrativa cantada de improviso pelos Cantadores. Os versos “não sei porque eu vim viver/
nessa terra longe e quente...” traduzem bem a apologia que é feita à terra natal; essa,
constantemente inter-relacionada com a convivência familiar. E “Eu me lembro do embalo/ da
rede no meu terreiro (...) me lembro o cantar do galo/ na hora do amanhecer/ quando mãe ia
fazer/ um cafezinho bem quente...” explicita novamente elementos característicos do lugar, como
“a rede no meu terreiro” e o “cantar do galo”, os quais se misturam com a sociabilidade da
presença materna. Sobre essa inter-relação entre a presença materna e a dimensão espacial, o
geógrafo francês Armand Frémont faz a seguinte afirmação-interrogação: “O ninho materno é ao
mesmo tempo invólucro, proteção, nutrição, comunicação... Não continuará o espaço a ser
sempre um pouco isso?” (1980: 48)
5.2.2 O esforço em busca dos estudos e o Repente como estímulo social
Matias Neto assemelha-se a muitos migrantes nordestinos que vieram pra Rondônia, com
muita esperança e poucas condições materiais. O seu primeiro trabalho em Rondônia é no ramo
da construção civil, atuando principalmente como pintor. Inicialmente, ele mora em uma
residência que não lhe proporciona condições adequadas de habitação, tanto a nível de
privacidade e conforto como de locomoção. Segundo ele, “Aí veja bem, a gente morava num
barraco lá duma tia da gente, morava em nove. Eram nove pessoas que moravam lá.” (pág. 77).
100
Depois, com o objetivo de ter o seu próprio “lugar”, Matias compra um terreno em uma área
“periférica” da cidade. “E aí eu comprei um terreno depois do Tancredo, lá no JK numa invasão
(risos)... Comprei um terreno e eu digo: ‘rapaz, vou fazer um barraco e vou morar aqui!’ Eu
queria ter o meu lugar (...)” (pág. 77).
Matias, da mesma maneira que muitos migrantes oriundos do Nordeste e de outras regiões
do país, se esforça para conseguir o seu lugar, ter um espaço que seja seu, aonde ele possa ter a
sua privacidade e conforto, Matias anseia por um “lar”. Contudo, mesmo após comprar a sua
casa, esta ainda não lhe dava as condições ideais de moradia. A casa não possuía energia elétrica,
devido a isso ele sofria simultaneamente com o calor e com os ataques de pernilongos, os
“carapanãs”. Pra quem não conheça a região Norte do Brasil, mais especificamente Porto Velho,
talvez não compreenda o sofrimento que Matias passou apenas ao ler estas linhas. O calor em
Porto Velho circula na média dos 28 ºC e a umidade do ar gira em torno dos 90%, ou seja, o suor
não evapora do corpo com facilidade o que causa uma sensação desagradável. Os carapanãs são
realmente violentos. Quando Matias descreve em sua narrativa, que levava a rede pra lavadeira e
ela se impressionava com o sangue em sua rede; a olhos “estrangeiros” pode até parecer exagero,
mas qualquer rondoniense que não viva “trancafiado” em quartos com ar-condicionado sabe que
isso é a mais pura verdade. E por fim, a distância da sua casa para o centro da cidade, também era
um fator que causava transtornos com relação ao deslocamento.
Apesar de todas as dificuldades, na História Oral de Matias, percebe-se que ele enfrentou
todos esses problemas com bom humor e inteligência. Ele acredita firmemente que os estudos são
uma possibilidade de solução para os seus problemas. O esforço em querer estudar é uma
característica marcante em sua narrativa. Segundo Matias, “Aí, às vezes batia aquele pensamento
de voltar pro Nordeste, mas eu digo ‘não... eu vou é ficar por aqui que é essa a oportunidade que
eu vou ter pra estudar!” (pág. 76)
Matias em sua narrativa demonstra o quanto se esforçou para conquistar seus ideais. Pra
muitas pessoas, um diploma de conclusão do ensino fundamental, um “certificado de oitavasérie”, pode não parecer muita coisa. Mas o geógrafo cultural, deve ter a capacidade de enxergar
através das lentes de seu interlocutor, de adentrar nos meandros da culturalidade do outro para
compreender a sua logissidade e sua significação. Matias aos 17 anos de idade tinha um campo
de algodão e como ele mesmo disse, quando não tinha outra alternativa “ia é pra chibanca
arrancar toco”. Matias, é antes de qualquer coisa um vencedor. E é a prova viva que,
101
empiricamente, razão e emoção são indissociáveis. Essas duas características intrinsecamente
humanas são propulsoras de motivações e propósitos, e conseqüentemente geradoras de ações. A
razão de Matias o manda estudar, buscar melhores condições; enquanto que sua emoção alimenta
seus sonhos e enaltece a coroação de sua vitória. Segundo Matias, “Eu sei que eu batalhei muito
ó! Matemática, quando eu não ia bem na matemática tinha vezes que eu fazia o módulo três
vezes, quatro vezes... (...) Mas eu sei que eu consegui. Você vê que é tanta emoção que eu chorei
no dia de receber o certificado de oitava-série” (pág. 76-77). (grifos do autor).
Nesse momento, convém ampliar a perspectiva da experiência vivida por Matias Neto,
para demonstrar as similaridades existentes entre a sua experiência e a experiência de outros
atores também envolvidos no contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina.
É relevante ressaltar que foi verificado em campo, que muitos dos atores do espaço vivido
da Cantoria Nordestina têm experiências de vida que se assemelham às de Matias. A maioria
desses atores não tiveram condições ideais de acesso aos estudos. Dos Cantadores por exemplo, o
que tem o maior grau de escolaridade é Matias Neto; João Azevedo tem somente a quarta-série,
Custódio Queiroz também, e Mozaniel Mendonça não é alfabetizado. Nessa questão, porém,
existe um ponto muito interessante que merece nossa atenção.
Qualquer estudante de sociologia ou qualquer pessoa que tenha uma certa sensibilidade,
sabe que os graus de escolaridade na sociedade ocidental-urbano-industrial possuem uma
significância social. É aí que entra um ponto crucial, os Cantadores simplesmente não se
incomodam com o seu baixo grau de instrução escolar. Por que? Um dos motivos, provavelmente
o mais preponderante, é que a Cantoria Nordestina funciona para eles como um elemento de
auto-afirmação social. Segundo Mendonça:
Quando eu estava com 15 anos eu disse, eu vou ser Cantador! Eu vou ser
Cantador, eu nasci pra ser isso, e vou ser isso! Mil novecentos e oitenta e cinco
fui pra São Paulo, pro bairro de Osasco, município de Murubim. Nessa época
havia a reunião dos nordestinos, aonde Sebastião da Silva se encontrava,
Moacir Laurentino, Valdir Teles, Zé Cardoso, João Rosa... muitos Cantadores.
E Terezinha de Jesus, a qual já é falecida; nós nos encontramos e cantamos por
lá... A qual na época rimava viola com hora e achava que era rima. E eles me
aplaudiam. E eu achei que era o ideal, mas não era. O ideal seria eu me esforçar
mais e cantar mais! E eu me esforcei, e cantei, e Deus me deu uma ajuda
espetacular e eu consegui chegar “um pouquinho” da onde eu interessava. Esse
lugar eu agradeço a meu pai José Ferreira de Mendonça e a minha mãe Maria
das Dores de Mendonça... (neste momento o Cantador derrama lágrimas).
(entrevista cedida ao pesquisador em 10/03/08, em Porto Velho-RO)
102
Apesar das inúmeras dificuldades financeiras de Mendonça, ele considera que conseguiu
chegar em um lugar especial. Esse lugar que Mendonça se refere, está relacionado com a sua
condição de Cantador. Ao se intitular “Cantador”, e ao ser reconhecido perante o grupo como
Cantador, Mendonça passa a ter um destaque em seu meio social. Essa análise não é válida
somente ao “indivíduo” Mendonça, na verdade essa característica está presente em todos os
outros Cantadores, em menor ou maior grau. Os Cantadores são cônscios que possuem uma
habilidade específica que os diferencia dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria
Nordestina. Eles são atores diferenciados, justamente, pela potencialidade intersubjetivacomunicacional conferida a eles. Nesse sentido, é interessante observar o que Paul Claval escreve
sobre o “poder carismático”:
Nas civilizações onde as ideologias aboliram as religiões, atribui-se o poder
carismático ao intelectual capaz de compreender os mecanismos que moldam a
matéria, transformam os seres e orientam a história. Este é compartilhado,
freqüentemente, com o artista ao qual a beleza se revela (...) Sobre os líderes
carismáticos recai a responsabilidade de construir o sistema de valores em que a
sociedade se baseia. (2001: 153) (grifos do autor)
Ao utilizar essa citação, não estamos querendo afirmar que os Cantadores são “líderes
carismáticos”, mas com certeza, dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria Nordestina eles
são “indivíduos carismáticos”. Nesse momento, eles são altamente visualizados e ouvidos, a
dinâmica intersubjetiva do espaço vivido da Cantoria Nordestina propicia a eles um status
diferenciado.
Matias Neto, ao falar das suas tentativas de ingresso no curso superior, faz uma
associação entre a capacidade cognitiva e a prática da Cantoria Nordestina. Segundo ele:
Foi o seguinte, a dificuldade que a gente tem quando a gente faz um curso como
eu fiz, é na hora de escrever mesmo. Eu fiz a oitava-série num supletivo, e a
gente não praticava redação. Fiz também o curso técnico, e também não
lembro, não tenho nenhuma lembrança da professora ter passado pra gente fazer
redação. Então, tudo isso dificultou pro vestibular. Eu conseguia passar da
primeira fase, mas quando vinha pra discursiva eu caia, por três vezes foi assim.
Mas o que eu acho que ainda me auxiliou um tanto foi à viola. Porque com a
viola a gente nunca para de tá exercitando a mente, o raciocínio né? É... a
Cantoria é tipo um esporte da mente! (pág. 78). (grifos do autor).
103
O Repente para Matias Neto, e para os Cantadores em geral, corrobora a sua auto-estima,
funcionando como um elemento potencializador de inter-relações sociais. Por exemplo, Matias
após ter ouvido as lamentações dos companheiros de trabalho e ter feito um improviso sobre o
assunto, afirmou: “Rapaz, aí a piãozada gostou de mim e eu fiquei foi conhecido!” (pág. 75).
5.2.3 A sociabilidade da Cantoria Nordestina
A relação de Matias Neto com a Cantoria Nordestina é uma relação muito forte! Em
diversos momentos de sua narrativa Matias aborda aspectos da Cantoria em sua vida. Na verdade,
a Cantoria para Matias tem íntima relação com sua culturalidade, com o contexto sócio-cultural
em que ele viveu. Desde criança, Matias já tem contato com os Cantadores e com a dinâmica da
Cantoria Nordestina. Ele cresce ouvindo/assistindo (participando) das Cantorias Nordestinas
realizadas por seu pai, em sua própria casa. É interessante observar que os primeiros contatos
dele com a Cantoria Nordestina acontecem em um ambiente familiar. A dimensão espacial de
uma criança é mais limitada que a de um adulto, a casa para a criança é o seu “lar”, é o seu
espaço por excelência, é o seu “lugar”. Tudo isso corrobora para que a imagem da Cantoria
Nordestina gradativamente assuma uma significância cada vez maior na vida de Matias Neto.
Segundo Matias, “meu pai gostava muito das Cantorias, ele sempre tava fazendo Cantoria lá em
casa. (...)” (pág. 70).
Sobre esses momentos lúdicos, de inter-relações sociais, que caracterizamos sob o nome
de “festas” e que a Cantoria Nordestina se enquadra perfeitamente. É interessante observar o que
Paul Claval tem a dizer a respeito:
A energia dos indivíduos não é jamais totalmente mobilizada pela a perseguição
de objetivos utilitários ou pela ambição (Sansot et alii, 1978). É necessário
entrepor à existência momentos de repouso, de distração e de jogo. (...) A festa
marca uma ruptura coletiva e particularmente clara e significativa no
desenvolvimento ordinário dos dias (Duvignaud, 1973). Ela dá ritmo aos
momentos importantes da vida familiar (...) Cada um de nós é por sua vez ator e
espectador e vive um momento de intensa emoção, de comunhão e de evasão. O
sentimento do pertencer coletivo é, então, muito forte. (2001: 130-131)
É nítido que através do contexto espacial, social e cultural que Matias vive, a Cantoria
Nordestina lhe é apresentada como uma coisa agradável e interessante. A realização de uma
104
Cantoria caracteriza-se como um momento de alegria e de comunhão familiar e social. A partir
daí, é uma questão de tempo para Matias Neto criar laços afetivos mais fortes com a Cantoria; e
descobrir nele próprio a “veia poética” (como dizem os Cantadores) e a capacidade para tornar-se
um legítimo Cantador de Viola.
FOTO 04 – A RECIPROCIDADE ENTRE OS CANTADORES
MOZANIEL MENDONÇA (esq) E MATIAS NETO (dir).
Fonte: foto feita pelo autor em 13/07/07 em Porto Velho-RO.
Outro ponto relevante sobre a Cantoria Nordestina é a sua potencialidade de aproximação
social. Matias faz referência a esse ponto em diversos momentos de sua narrativa. Tendo a
Cantoria como elemento-chave, os diferentes atores estabelecem um elo em comum; ao
compartilharem a mesma afinidade pela Cantoria, eles interarticulam laços afetivos que se
materializam em práticas sócio-espaciais. Sobre as viagens que Matias fez acompanhado de seu
parceiro de viola Antônio Ferreira de Lima, ele afirma, “eu viajando com ele lá pela região do
Ceará a gente fez muita amizade. E aí foi uma experiência muito boa que eu tive com ele ó!”
(pág. 63). (grifos do autor). As viagens, que são caracterizadas pelos deslocamentos espaciais,
são potencializadas devido a vínculos sociais estabelecidos através de mecanismos da própria
105
Cantoria. As ênfases em amizades construídas, tendo por intermédio a Cantoria Nordestina, estão
presentes em diversos pontos da narrativa de Matias.
Ao considerarmos a experiência empírica de Matias com a Cantoria Nordestina, fica claro
que esta possui uma função socializadora, principalmente com referência aos próprios
Cantadores. Matias, de acordo com sua própria experiência, afirma que quando os Cantadores
fazem viagens pelo interior do Nordeste, procuram saber notícias de outros Cantadores, para que
possam assim receber hospedagem e apoio.
Aí já vai pra casa do cara porque os Cantadores dão apoio um pro outro. E lá
em casa era uma casa grande, tinha um quarto lá... E quando chegava Cantador
por lá a gente já dava logo a rede pra ele. Cantador ficava até de semana com
a gente lá em casa. E eu fazia o mesmo, quando eu viajava ficava na casa dos
parceiros. A gente tem... os Cantadores têm essa união. Quando chega o
Repentista numa daquelas regiões do nordeste, hoje eu não sei como é que tá,
porque eu já tô há muito tempo fora de lá. Mas na época a gente chegava num
lugar daqueles e já fazia logo amizade (pág. 72-73). (grifos do autor)
Matias vai conservar por toda sua vida a ligação cognitivo-emocional com a Cantoria
Nordestina, ser um Cantador já faz parte de sua identidade e de suas concepções de mundo. Para
ele, a Cantoria não é apenas uma “arte” no sentido lúdico do termo. A Cantoria Nordestina já está
referenciada no seu comportamento simbólico, contribui no dimensionamento de suas práticas
sociais e faz parte de seus sonhos e aspirações. Segundo Matias:
E nisso, eu tinha um sonho de comprar uma viola dinâmica. Rapaz, cheguei na
Loja Americana ali na Sete de Setembro, ali entre a Marechal Teodoro e a
Joaquim Nabuco, bem ali tinha uma loja, até hoje quando eu passo por ali eu
me lembro. Aí eu vi a viola na vitrine ó, aquela viola bonita, aquelas dinâmica.
Uma viola daquela pra mim era uma coisa muito especial, era o sonho que eu
tinha. Que eu só usava violãozinho com as cordinhas de naylon... Rapaz, o
primeiro salário que eu peguei, com mais um rapaz que me emprestou uma
parte, fui lá e comprei minha viola! (pág. 75) (grifos do autor)
É interessante observar que, naquela época, de acordo com o próprio Matias, a sua
situação financeira era “um tanto delicada”. Mesmo assim, ele pegou o seu “primeiro salário” e
ainda pegou mais uma quantia “emprestada” e comprou a sua tão estimada viola. Com certeza,
essa viola para ele não tem apenas o significado de um simples instrumento musical. Para Matias,
essa viola tem uma significação intimamente relacionada com sua terra natal, com a sua
106
identidade nordestina e com o seu status de Cantador. Ou seja, a viola que materialmente é um
simples objeto de madeira, pode possuir, dentro de contextos específicos, um dimensionamento
simbólico. Ao possuir esse objeto, Matias possui simbolicamente um “pedaço” do seu povo, um
pedaço do Nordeste, um pedaço de sua terra natal e um pedaço de sua própria história
“simbolicamente materializada”. Além de se sentir mais nordestino possuindo sua viola, Matias
corrobora pra si mesmo e perante o seu círculo social, o seu status de Cantador. Ao comprar sua
viola, Matias não estava agindo exclusivamente por impulsos racionais; existe uma considerável
carga emocional dentro dessa atitude. Segundo Tuan “As emoções dão colorido a toda
experiência humana, incluindo os níveis mais altos do pensamento” (1983: 9).
Dessa forma, Matias continua em Rondônia desenvolvendo seus trabalhos relacionados à
Cantoria Nordestina. Ele explica que não vive exclusivamente da Cantoria, mas de maneira
nenhuma quis deixar de lado esse que é um de seus traços mais marcantes. Segundo ele, “apesar
de eu também já tá empregado eu nunca quis largar a viola. Às vezes não dava pra fazer Cantoria
nos dias de semana, mas nos finais de semana eu nunca abandonei. Era direto, de sexta-feira até
domingo a gente tava por aí cantando, e isso marcou muito.” (pág. 80).
O fato de Matias ser Cantador constantemente contribui na potencialização de suas interrelações pessoais. A sua amizade com o Zé Fernandes é um bom exemplo, “E foi assim que eu
conheci o Zé Fernandes, aí depois eu ia na loja dele fazer compras. Com ele era tranqüilo, a gente
podia comprar numa boa, não precisava fazer cadastro nem nada.” (pág. 80). As inter-relações
mediadas através da Cantoria eram tão diversificadas que Matias e seu parceiro Xexéu, quando
ainda não tinham transporte, chegaram até a pegar carona em viatura de policiais nordestinos,
admiradores da Cantoria.
Gradativamente, Matias vai conseguindo seu espaço como artista. Esse espaço foi sendo
construído, principalmente, através das inter-relações estabelecidas com nordestinos residentes
em Rondônia. Matias também ressalta em sua narrativa a parceria com o Cantador Xexéu, que
segundo ele:
foi muito bom, a gente cantava nos bares, na casa de algum nordestino, e nisso
a gente ia fazendo muita amizade, não tinha tempo ruim. E aí depois com o
tempo foi-se arrumando transporte, passamos a ficar mais conhecidos, fomos
conquistando espaço. A gente cantou muito na noite por aí. Nós podemos dizer
que fomos os pioneiros em Porto Velho. Podemos dizer até do estado de
Rondônia, que hoje, pra esse pessoal que gosta da Cantoria, nós somos
conhecidos em Guajará Mirim, Pimenta Bueno, Ariquemes, Jarú. Aqui por
107
Rondônia aonde você vai que tem nordestino e gente que gosta da Cantoria,
você ouve falar dos repentistas Xexéu e Graúna. Acho que ainda tem muita
gente que lembra da gente (pág. 81). (grifos do autor)
Para Matias, “é uma fonte inesgotável a do Cantador de viola.” (pág. 74). Essa fonte a que
ele se refere é a “inspiração”, é a capacidade criativa manifestada através da improvisação.
Matias em sua narrativa conta de uma vez em que ele e seu parceiro cantaram aproximadamente
20 horas em um final de semana. Nessa ocasião, ele admite ter pensado que não conseguiria, mas
orgulhosamente ele afirma terem saído vitoriosos. Mas o que é realmente interessante neste
trecho de sua narrativa é a explicação que ele dá sobre o motivo de terem conseguido cantar
fluentemente todo esse tempo. Segundo ele:
O pessoal tava era com saudade das coisas do sertão! O que acontece é o
seguinte, aqui em Rondônia tem gente de todos os estados. E você vai pra um
lugar como Guajará Mirim, como Nova Mamoré, aí é composto de cearense, de
paraibano, de rio grandense, de pernambucano, de piauiense... E cada pessoa
que chegava daquela colônia, chegava uma colônia de piauiense por exemplo,
chegava uma outra de paraibano, aí cada um que ia chegando ia pedindo as
coisas do seu lugar. E assim a gente ia cantando... e pediam vaquejada, e
pediam mote falando do lugar dele e tal, e foi desse jeito que a gente segurou
essa barra (pág. 84). (grifos do autor)
A frase “O pessoal tava era com saudade das coisas do sertão!” possui um conteúdo
semântico muito rico, e condensa nela o eixo de muita coisa relacionada ao espaço vivido da
Cantoria Nordestina. Por que Matias e Xexéu conseguiram cantar de improviso todo esse tempo?
Da onde eles tiraram inspiração para isso? O que foi que os motivou? O que motiva as pessoas,
principalmente nordestinos, a quererem participar de Cantorias como essa? Para respondermos
essas e outras perguntas, faz-se necessário adentrarmos em aspectos do próprio espaço vivido da
Cantoria Nordestina.
108
CAPÍTULO 6 – O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA
Pai e filho
Rogério Menezes e Hipólito Moura
A meu pai e meu filho eu ofereço
esses versos que vou fazer agora
o meu filho eu abraço todo dia
o meu pai a um ano foi embora
ta morando no céu com Jesus Cristo
e o meu filho comigo ainda mora...
Quando eu saio de casa papai chora
e se meu filho sair eu vou sofrer
dois pedaços de mim dos quais dependo
pra na luta da vida me manter
vendo um deles dois sofrendo eu fico
sem vontade nenhuma de viver...
O meu pai me ensinava sem bater
e até hoje eu ainda lhe obedeço
eu passei por colégio e faculdade
e um mestre igual ele eu não conheço
e as lições que ganhei de mãos beijadas
beijo a mão do meu filho e lhe ofereço...
Essa nosso amizade não tem preço
e apesar da distância só cresceu
quando beijo meu filho estou beijando
o presente melhor que Deus me deu
todo filho acha isso eu também acho
que o melhor pai do mundo é sempre o meu...
O meu pai era pobre e padeceu
pra criar nove filhos no pesado
se não pode estudar lutou pra ver
cada filho estudar pra ser formado
se eu tiver sendo um pai como o meu foi
o meu filho está sendo bem criado...
Eu me sinto por Deus presenteado
por ter uma família que me adora
o meu pai completou sessenta e quatro
meu menino tem oito, fez agora
gosto mais deles dois do que de mim
dou a vida por eles qualquer hora...
O meu pai trabalhava toda hora
e nunca disse que a vida estava ruim
o prazer que eu sinto em ser seu filho
o amor sem limites e sem fim
serei muito feliz aqui na terra
se o meu filho também sentir por mim...
Quando Deus abençoa é sempre assim
a família é unida de verdade
mesmo sendo do sítio pai fez tudo
pra me ver estudando na cidade
eu também faço tudo pra não ver
meu menino passar necessidade...
Eu me sinto feliz e na verdade
a riqueza que tenho é meu guri
o tesouro de todos os palácios
o dinheiro do FMI
valem menos que todas as lições
que o meu pai ao passar deixou aqui...
Nos conselhos de pai eu aprendi
que o amor paternal não tem fronteira
quem tiver pai e filho tente amá-los
que essa vida da gente é passageira
hoje sou eu quem faço por meu filho
o que pai fez por mim a vida inteira...
O meu pai nunca foi de bebedeira
o meu filho não é, como eu não sou
o meu pai me ajudava, o filho ajuda
um eu crio, e o outro me criou
vou usar as virtudes do que foi
pra tentar educar o que ficou...
A meu pai com certeza Deus doou
o mais puro de todos corações
nas conversas que tenho com meu filho
uso sempre a melhor das intenções
agradeço a meu Deus pela família
e obrigado papai pelas lições...
Misturando saudades e emoções
em repente ou em prece eu sempre digo
obrigado papai pelo que fez
o senhor está vivo aqui comigo
e ao meu filho também quero dizer
que entre todos eu sou seu grande amigo...
109
CAPÍTULO 6 – O ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA
Por que espaço vivido da Cantoria Nordestina? Por alguns motivos. Em primeiro lugar,
porque, considerando a Cantoria Nordestina nos formatos de apresentação pé-de-parede, pode-se
considerar que os atores não são neutros dentro do contexto da Cantoria. Eles não são
simplesmente “observadores” passivos dentro de um conjunto mecânico e previsível. A Cantoria
Nordestina é vivenciada por seus atores tanto objetivamente como subjetivamente. A palavra
vivenciar, é uma palavra que está inter-relacionada simultaneamente com perceber, sentir, avaliar
e compartilhar. Vivenciar é experienciar a vida em sua complexidade; e essa experienciação,
simultaneamente objetiva e subjetiva é também uma experienciação simultaneamente espacial e
temporal.
A primeira característica objetiva da experienciação do espaço vivido da Cantoria
Nordestina é a presença empírica dos diversos atores da Cantoria Nordestina (fig. 1), os quais
compartilham o mesmo espaço físico. Subjetivamente, existe uma carga emocional e simbólica
dentro desse espaço, e esses atores se inter-relacionam através de códigos de comunicação. Sobre
os códigos de comunicação Cosgrove esclarece que:
incluem não apenas a linguagem em seu sentido formal, mas também o gesto, o
vestuário, a conduta pessoal e social, a música, pintura, a dança, o ritual, a
cerimônia e as construções. Mesmo essa lista não esgota a série de produções
simbólicas através das quais mantemos o nosso mundo vivido, porque toda
atividade humana é, ao mesmo tempo, material e simbólica, produção e
comunicação. (1983: 103)
A Cantoria Nordestina possui uma lógica simbólico-cultural que é compartilhada pelos
atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina através dos códigos de comunicação. Um ponto
muito relevante dessa dinâmica comunicatica são as narrativas poéticas cantadas de improviso.
Segundo Buttimer “A expressão latina poesis (...) deve ser entendida de forma equivalente ao
termo grego po(i)ēsis (πσ, “um fazer”, “um formar”, “um criar”)19” (1993: 237). É interessante
observar essa consideração etimológica, pois é através da linguagem que as diversas
representações são construídas.
19
The Latin expression poesis used throughout this book should be understood as equivalent to the Greek term
po(i)ēsis (πσ, “a making”, “a forming”, “a creating”).
110
Como foi dito mais acima, nesse trabalho a palavra poesia é abordada através da ótica dos
próprios Cantadores. O interesse aqui, é decodificar o espaço vivido desses atores, e dentro dessa
lógica, o que queremos é conseguir enxergar, no máximo possível, através de suas próprias
lentes. Para os Cantadores, a palavra poesia esta relacionada à capacidade criativa manifestada
através da oração. Essa capacidade criativa se manifesta a partir de um ponto original: o da
cotidianidade de seu próprio grupo. Segundo Tuan, “Nas obras de arte, as experiências pessoais
sobre a vida e sobre o mundo são vivamente objetificadas” (1976: 145).
O conjunto narrativas cantadas de improviso-música possui contribuição ímpar na
caracterização do espaço vivido da Cantoria Nordestina. O som das violas também é uma
característica marcante desse espaço. Claval afirma que “O ambiente sonoro faz parte da imagem
que guardamos dos lugares” (2006: 99). Essa questão da imagem guardada dos lugares e sua
significação é uma questão muito forte dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria
Nordestina. Lembrem-se que Matias fala exatamente sobre isso quando explica o porque de
terem conseguido cantar aproximadamente 20 horas em menos de dois dias: “aí cada um que ia
chegando ia pedindo as coisas do seu lugar. E assim a gente ia cantando...” Segundo o geógrafo
americano George O. Carney, “Nosso lugar de nascimento deixa uma marca que determina a
maneira como percebemos outros lugares. A música contribui para recordações de experiências
do lugar doméstico (...)” (2003: 132). E também “As características únicas de lugares específicos
podem oferecer as pré-condições necessárias a novas ideias musicais. O contexto histórico,
ambiental e social de um lugar, muitas vezes, fornece cenário e inspiração para determinado
indivíduo ou grupo criar música.” (Ibid: 138). Música, dentro do contexto explicativo de Carney,
se encaixa perfeitamente ao contexto dos repentes desenvolvidos pelos Cantadores.
“O pessoal tava era com saudade das coisas do sertão!” Essa é a afirmativa de Matias
para explicar o que motivou tantos pedidos de atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina.
Ele explica que “Rondônia tem gente de todos os estados. E você vai pra um lugar como Guajará
Mirim, como Nova Mamoré, aí é composto de cearense, de paraibano, de rio grandense, de
pernambucano, de piauiense...” Essa saudade das coisas do sertão, é a saudade de sua terra natal,
de suas origens, de sua identidade:
Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólicos. Elas
têm aquilo que Edward Saïd chama de suas ‘geografias imaginárias’: suas
‘paisagens’ características, seu senso de ‘lugar’, de casa/lar, de heimat, bem
111
como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas (...). (HALL, apud,
HAESBAERT, 1999: 179)
Observa-se que através da Cantoria Nordestina seus atores, objetiva e subjetivamente,
fazem uma recriação do espaço nordestino. A organização do espaço para a realização de uma
Cantoria pé-de-parede tem o mesmo formato que as Cantorias no Nordeste: o posicionamento dos
Cantadores, a presença da bandeja, os assuntos discutidos, as regras sociais... até mesmo a
culinária, em diversas Cantorias, imita a culinária nordestina.
Essa recriação do espaço nordestino se configura tanto por aspectos materiais como
simbólicos. Quem vivencia um pé-de-parede, através da dimensão simbólica presente em seu
espaço, mentalmente se transporta a um espaço nordestino. Segundo Buttimer, “Certamente, uma
pessoa poderia estar presente psicologicamente em espaços e meios ambientes distantes: lugares
habitados pelos enamorados ou meios ambientes tornados vívidos por meio de comunicação
literária ou visual” (1976: 178). Essa “projeção mental” acontece tanto através das lembranças
como da imaginação, ela possui um teor espaço-emotivo ou topofílico. Matias, falando sobre o
nordestino que está distante de sua terra natal, afirma que “quando você encontra um repentista,
ou então um sanfoneiro daqueles pé-de-serra mesmo que vem de lá do Nordeste, então você
começa a viajar... seu pensamento viaja à mil. Então, é isso que faz os ouvintes pedirem as coisas
pro Cantador cantar, é pra poder recordar...” (pág. 85). (grifos do autor).
Assim, os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina se inter-relacionam tanto
materialmente como simbolicamente. Empiricamente, eles usufruem do mesmo espaço concreto;
ao usufruírem desse espaço eles se inter-relacionam (através dos códigos de comunicação)
dotando esse espaço de um conteúdo simbólico. Através da Cantoria Nordestina, esses atores,
recriam nesse espaço concreto, uma dinâmica que relembra um espaço nordestino específico: os
pés-de-parede realizados no Nordeste. O efeito dessa “re-criação” não é um efeito simplesmente
abstrato. Através do espaço vivido da Cantoria Nordestina representações são elaboradas e reelaboradas, e sentimentos topofílicos são corroborados, o que conseqüentemente gera uma
espécie de manutenção da identidade nordestina em Rondônia. (fig. 2).
112
FIG. 02 – A INTERSUBJETIVIDADE NO ESPAÇO VIVIDO DA CANTORIA NORDESTINA
Fonte: desenvolvido pelo autor.
Através da convivência no espaço vivido da Cantoria Nordestina, os indivíduos experienciam um contexto sóciocultural específico, o qual lhes permite estabelecer (através dos códigos de comunicação) uma dinâmica de relações
intersubjetivas. Através dessas inter-relações, representações acerca do espaço nordestino e rondoniense são
elaboradas e re-elaboradas; as quais contribuem para a corroboração de sentimentos topofílicos e conseqüentemente
à manutenção de uma identidade nordestina em Rondônia. E ciclicamente, essa mesma identidade nordestina
(associada a representações e sentimentos topofílicos) contribui para a preservação da Cantoria Nordestina em
Rondônia.
Claval, escrevendo sobre o desenvolvimento da geografia cultural no Brasil, afirma que
“não cabe mais hesitar em refletir sobre as representações. (...) O papel da comunicação na
transmissão dos saberes e a modelagem das atitudes é admitido por todos. Sabemos o quanto o
pensamento simbólico permite reduzir ou alongar as distâncias reais.” (1999b: 22). É interessante
refletirmos sobre essas “distâncias reais” e seus significados. A saudade da terra natal, as interrelações entre os atores do grupo e a manutenção de uma identidade nordestina são tentativas de
transpor essas “distâncias reais”. O pensamento simbólico, presente em todo o contexto da
Cantoria, é compartilhado entre seus atores através das representações. Essas representações,
muitas vezes, possuem temáticas relacionadas à cotidianidade do sertanejo, e se caracterizam
simbolicamente de diversas formas; uma delas, muito marcante, é a ideia de “sertão”.
Nesse momento, para um entendimento mais completo dessa dinâmica intersubjetiva
presente no espaço vivido da Cantoria Nordestina, é relevante que vejamos um repente cantado
113
por Matias Neto e Custódio em 11/11/07, em Porto Velho-RO, numa Cantoria pé-de-parede,
onde um ouvinte pediu o seguinte mote decassílabo “Eu nasci pra cantar e fazer rima/ das
belezas que existem no sertão”.
Tô cantando desde oitenta e um
(Matias Neto)
as belezas da terra Potiguar
nunca mais eu quis parar de cantar
o cantar da Petica e o vôo do anum
pois eu sou da terra do jerimum
e quando eu falo dela sinto emoção
pois é lá que está minha tradição
e se eu pudesse eu estava lá em cima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
O meu pai me ensinou a trabalhar
(Custódio Queiroz)
desde cedo nas lutas do roçado
cada dedo da mão bem calejado
pois não tinha dinheiro pra me dar
não podia me mandar estudar
mesmo assim me ensinou grande lição
fui comendo batata e feijão
e agradecendo a Deus o lá de cima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
Na memória revejo o duelo
do pica-pau que está lá madeira
Rouxinol cantando na cumieira
e o sabiá que tem o papo amarelo
minha casa não era um castelo
(MN)
114
mas lá tinha um moinho e um pilão
inda tinha de lenha um fogão
e o café que eu tomava bem em cima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
Eu me lembro do queijo, leite e nata
(CQ)
do cuscuz e também da tapioca
e do milho que fazia paçoca
que plantando nascia lá na mata
eu me lembro da água da cascata
que passava e molhava o boqueirão
não me esqueço do Teju e Camaleão
que da árvore me olhavam lá de cima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
Eu só tinha 15 anos de idade
(MN)
mas eu já era doido por namoro
e quando eu via um vaqueiro aboiar touro
para mim era grande a novidade
ao pensar no sertão sinto saudade
bate forte no peito o coração
que eu até me recordo da paixão
que senti por Helena minha prima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
Quando eu via um vaqueiro encourado
no cavalo colocar uma cela
e depois passar a perna por ela
(CQ)
115
e em cima dela ficar montado
e correr dentro do mato fechado
atrás de derrubar um barbatão
aquilo vem na minha recordação
é o tipo de coisa que me anima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
Inda lembro de papai no roçado
(MN)
quando ele puxava a inchada
e mamãe preparava uma buchada
de um bode que já era capado
e eu ficava ali bem animado
com papai ia lá cavar o chão
e no céu se formava um torrião
que a chuva chegando muda o clima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
Muitas coisas eu lembro da minha terra
(CQ)
desde a fome, a riqueza e a desgraça
meu cachorro que era bom de caça
farejando o tatu no pé da serra
o cavalo e a ovelha quando berra
tudo isso me traz recordação
o empregado na casa do patrão
e só há crise pra quem se desanima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
Sei que o filho do homem camponês
(MN)
116
seu brinquedo em casa é um pião
diferente do filho de um barão
pra comprar os brinquedos não tem vez
se o pai dele possui uma rês
e um cavalo que chama de gangão
e se ele não pode ter carrão
mas possui uma cabra que ele estima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
De papai lembro sempre do bigode
(CQ)
e das noites de lindas cantorias
das piadas, canções e poesias
e da cabra que corria do bode
tudo isso por dentro me sacode
e me causa a maior recordação
e se eu parar pra ouvir meu coração
sei que é só o sertão que me anima
eu nasci pra cantar e fazer rima
das belezas que existem no sertão...
6.1 Cantoria Nordestina e representações
A ideia de “sertão” é assimilada a ideia de terra natal, de lugar de origem. Essa concepção
de sertão é compartilhada entre os atores da Cantoria Nordestina de maneira comumente aceita.
Ou seja, existe uma representação acerca do sertão dentro do espaço vivido da Cantoria
Nordestina. De acordo com Moscovici:
Representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presentes as coisas
ausentes (...) É, portanto, muito importante que isso se dê de forma
comunicativa e difusiva (...) Conseqüentemente, o status dos fenômenos da
representação social é o de um status simbólico: estabelecendo um vínculo,
117
construindo uma imagem, evocando, dizendo e fazendo com que se fale,
partilhando um significado através de algumas proposições transmissíveis e, no
melhor dos casos, sintetizando em um clichê que se torna um emblema. (2003:
216)
Como já foi esboçado, existe uma intercomunicação entre ouvintes e Cantadores pois
através dos pedidos os ouvintes manifestam o que desejam ouvir; e os Cantadores por sua vez,
utilizam os pedidos como molas propulsoras para o desenvolvimento de suas narrativas cantadas
de improviso. Moscovici explica que representar significa “trazer presente as coisas ausentes”,
através dessa dinâmica de pedidos e “respostas” (pedidos e improvisos cantados destinados a
atender os pedidos) a uma interação público/Cantadores aonde as coisas ausentes, no caso “o
espaço nordestino” caracterizado sob o “emblema” de sertão é trazido simbolicamente através da
linguagem e do próprio contexto sócio-espacial da Cantoria Nordestina.
A difusão das caracterizações de sertão acontece de maneira simultaneamente direta,
espontânea e intersubjetiva: direta, porque as narrativas caracterizadoras das idéias de sertão se
processam empiricamente no mesmo espaço físico, tanto para os ouvintes como para os
Cantadores; espontânea, porque imanente à própria Cantoria Nordestina existe um caráter lúdico,
esse caráter lúdico propicia nos atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina uma sensação de
informalidade e liberdade. Isso foi verificado através do próprio comportamento dos atores, uma
vez que os sorrisos, as gargalhadas e as brincadeiras são muito comuns; e intersubjetiva porque
as inter-relações próprias do espaço vivido da Cantoria Nordestina acontecem através da
mediação dos códigos de comunicação: o som das violas com os seus ritmos e melodias, as
narrativas cantadas de improviso, os debates travados entre os Cantadores, os olhares, os gestos,
os detalhes das regras sociais, ou seja, toda a dinâmica semiológica entre os diversos atores da
Cantoria Nordestina.
Assim, pode-se dizer que no espaço vivido da Cantoria Nordestina existe uma interação
simbólico-cultural. Seus atores participam de um mesmo contexto espaço-cultural, e através
dessa vivência compartilhada são geradas concepções simbólicas caracterizadas como
representações. Essas representações, que são compartilhadas, estabelecem vínculos cognitivoemocionais entre os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. O espaço de realização de
uma Cantoria pé-de-parede é, então, o espaço físico onde se corroboram práticas sociais
destinadas à recriação simbólica de um espaço nordestino. É nesse espaço re-criado simbólica e
culturalmente que os atores vivenciam experiências que os possibilitam conectar-se mentalmente
118
a um espaço nordestino, espaço esse que corrobora a identidade individual e coletiva,
estabelecendo assim inter-relações de entendimento e cooperação social. É uma questão
simultaneamente de palavras e de imagens mentais. De acordo com Almeida, geógrafa que tem
trabalhos desenvolvidos à cerca de representações sobre o sertão:
A construção discursiva sobre o sertão espelha a maneira como ele é pensado e
uma maneira específica de “ver” o mundo. O olhar, o ato de contemplar a
natureza, não é uma atitude natural. Pelo contrário, ele é resultante de uma
instituição da cultura que inventou essa contemplação e lhe deu uma
significação e valor. (...) [e ainda] Na adoção do conceito de representações,
abriu-se uma via de estudos, pela inclusão do imaginário no trato dos objetos
geográficos. O imaginário nos permite, afirma Bailly (1992), pela carga
simbólica, ligar o ser humano e o espaço em sua plenitude, fazendo com que o
espaço seja inteligível em todas dimensões. (2003: 71-73)
Representar significa buscar compreender algo. As representações do sertão dentro do
espaço vivido da Cantoria Nordestina traduzem uma maneira de compreensão do espaço
nordestino, “sertão” torna-se uma espécie de emblema dialogicamente compartilhado. A ideia do
“homem forte do sertão”, do “vaqueiro destemido”, da “mulher sincera e trabalhadora” são
concepções psicossociológicas presentes no arcabouço representativo do sertão. Pode até parecer
uma concepção romantizada, e talvez até seja, mas o pertinente é que essas representações
possuem a sua função sócio-espacial. Através dessas representações, os indivíduos pertencentes a
esse grupo social específico (os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina) identificam-se,
criam laços afetivos, e com isso corroboram práticas sociais significativas de vivência mútua e
colaboração.
A difusão deste tipo de representação através da cultura é característica marcante no
contexto da Cantoria Nordestina. Sobre a sua condição de Cantador, João Azevedo afirma que
“eu sendo da terra da Cantoria e sendo filho de Cantador, é o que a gente herda. Eu herdei a
poesia do meu pai, o dom do repente do meu pai!”20 João Azevedo associa o seu “dom do
repente” ao fato de ser nordestino e filho de Cantador. Alguns podem, compreensivelmente,
questionar esse tipo de afirmação perguntando-se: quer dizer que por ser filho de Cantador
alguém será Cantador? Como se fosse genético, ou hereditário? A resposta a essa pergunta se
encontra ancorada na perspectiva sócio-cultural. É lógico, que nem todos os filhos de Cantadores
20
Entrevista cedida ao pesquisador em 20/03/08, em Porto Velho-RO.
119
serão Cantadores, isso foi visto na própria narrativa de Matias Neto. Mas, através da perspectiva
cultural, torna-se possível desenvolver raciocínios que possibilitam a inteligibilidade de
afirmações como essas de João Azevedo. Convém consideramos que essas concepções de
“hereditariedade poética” não foram inventadas exclusivamente por João Azevedo; elas são
concepções “herdadas” não geneticamente, mas culturalmente. No espaço vivido da Cantoria
Nordestina é comum ouvirmos conversas sobre genealogias de grandes Cantadores. Mozaniel
Mendonça também faz uma associação entre a Cantoria Nordestina e suas raízes familiares,
segundo ele:
A Cantoria pra mim, ela tem um aspecto de muita nobreza, de muita
especialidade; não só por eu ser um Cantador, eu sou um pequeno Cantador,
não é só por isso... É porque o meu pai foi Cantador, ele começou a cantar com
15 anos de idade e cantou durante 35 anos. Eu também comecei a cantar com
15 anos, então eu já tenho 20 anos cantando. Por isso, a Cantoria pra mim é
uma coisa muito fundamental... A Cantoria é fundamental porque ela me trás
aquela recordação que eu nunca vou esquecer... uma recordação muito boa do
meu velho pai, da minha mãe que permanece viva, das Cantorias do Nordeste e
das boas amizades... (entrevista cedida ao pesquisador em 10/03/08, em Porto
Velho-RO).
Muitos ouvintes de Cantoria começaram a participar de Cantorias ainda crianças, e as
ideias do que é a Cantoria e de quais são seus significados foram sendo transmitidas a eles
paulatinamente. Nesse sentido, podem ser observadas características intrínsecas do contexto
necessário para a formação de representações específicas. Ou seja, o espaço vivido da Cantoria
Nordestina (constantemente permeado pela linguagem) propicia condições sócio-culturais e
histórico-espaciais para a formação e manutenção de representações do espaço nordestino e de
outros elementos da cotidianidade dos atores. Essas representações corroboram “raízes culturais”
associadas à identidade do grupo. O apologista Lourival, sobre a sua relação com a Cantoria
Nordestina, faz a seguinte afirmação:
Do fundo do coração, eu digo o seguinte: a Cantoria Nordestina pra mim, é uma
cultura que com 7 anos de idade eu já apreciava a Cantoria Nordestina. Ia pras
Cantorias mais meu pai. E cheguei aqui em Rondônia, tenho 37 anos como
morador de Rondônia, cheguei aqui bem jovem e sempre abracei a Cantoria
Nordestina (entrevista cedida ao pesquisador em 10/11/07). (grifos do autor)
120
Empiricamente, foi verificado que o espaço vivido da Cantoria Nordestina é um espaço
heterogêneo, ou seja, os seus atores não se caracterizam apenas por adultos do sexo masculino,
muito pelo contrário, deste espaço participam: mulheres, crianças, idosos e até mesmo portadores
de necessidades especiais. É interessante ressaltar que o tratamento dispensado às crianças no
espaço vivido da Cantoria Nordestina tem como forte característica a afabilidade.
FOTO 05 – CACAU (esq) E LULU (dir), FILHO DO CANTADOR
MOZANIEL MENDONÇA, JÁ MOSTRANDO INTERESSE PELO OFÍCIO DO PAI.
Fonte: foto feita pelo autor em 13/07/07, em Porto Velho-RO.
121
FOTO 06 – CRIANÇAS PARTICIPANDO DE CANTORIA PÉ-DE-PAREDE, DOIS
GAROTOS (esq) E O NORDESTINO ANTÔNIO (dir) ABRAÇANDO SEU FILHO.
Fonte: foto feita pelo autor em 09/09/07, em Porto Velho-RO.
FOTO 07 – MOZANIEL MENDONÇA (esq), MATIAS NETO (dir) E
AS CRIANÇAS TAMBÉM PRESENTES EM CANTORIA PÉ-DE-PAREDE.
Fonte: foto feita pelo autor em 11/08/07, em Porto Velho-RO.
122
6.2 Cantoria Nordestina e sentimentos topofílicos
Topofilia sanciona simultaneamente a associação entre lugar e sentimento, e no bojo dessa
associação reside uma considerável carga de significação. Isso está relacionado com a própria
caracterização de lugar. Ou seja, os lugares possuem, para indivíduos e grupos, significados
específicos que traduzem os tipos de relações estabelecidas nos mesmos.
O espaço vivido da Cantoria Nordestina pode estimular em seus atores sentimentos
topofílicos? Se pode, como acontece esse processo? E o que ele significa? O que pretende-se
nesse subitem é delinear respostas a essas perguntas.
Primeiramente, é pertinente esclarecer que para Tuan, topofilia, inicialmente, estaria
associada à relação dos seres humanos com ambientes próximos. Ou seja, de ambientes, ou
lugares, que podem ser vivenciados, experienciados intimamente. Sobre essa questão Tuan
escreve que:
Tal como o pretenso “amor pela humanidade” levanta nossas suspeitas, também
a topofilia soa falsa quando é manifestada por um extenso território. Parece que
a topofilia necessita um tamanho compacto, reduzido às necessidades
biológicas do homem e às capacidades limitadas dos sentidos. (1980: 116)
Observando essa afirmação de Tuan, é lícito nos perguntarmos sobre as abrangências do
conceito de topofilia. Será que a utilização deste conceito só se enquadraria mediante relações
empíricas do ser humano com o seu meio ambiente? Ou existiriam outras formas de experiência
que poderiam suscitar sentimentos topofílicos? O próprio Yi-fu Tuan nos dá a resposta:
Se tanto o Império como o Estado são muito grandes para se praticar a
verdadeira topofilia, é paradoxal refletir que a própria terra possa
eventualmente provocar tal afeição: esta possibilidade existe, porque a terra é
indubitavelmente uma unidade natural e tem uma história comum (Ibid: 117).
(grifos do autor).
Ou seja, Tuan admite a possibilidade da existência de sentimentos topofílicos por lugares
que
não
tenham
sido,
necessariamente,
empiricamente
experienciados.
Contudo,
é
inexoravelmente necessário que haja uma perspectiva desses lugares. Dando como exemplo a
própria Terra (ou seja, trabalhando em uma macro escala) Tuan sinaliza como possível vínculo
topofílico a “unidade natural da Terra” e “a existência de uma história comum”.
123
É interessante a abordagem dessas questões, justamente porque nem todos os atores do
espaço vivido da Cantoria Nordestina são nordestinos e/ou viveram no Nordeste. Contudo, é
nítida a presença de sentimentos topofílicos dentro do contexto do espaço vivido da Cantoria
Nordestina. É fato, que a maioria dos seus atores são nordestinos, são pessoas que conheceram e
vivenciaram empiricamente espaços, paisagens e lugares nordestinos. Os que não o são, na
maioria das vezes, tem em comum laços de parentesco, ou alguma afinidade psicológica. O
exemplo mais marcante são os filhos, ou sobrinhos de nordestinos, que já nasceram em
Rondônia, ou saíram do Nordeste ainda muito pequenos, mas mesmo não tendo um contato
empírico com o Nordeste, manifestam fortes sentimentos topofílicos relacionados a ele. Ou seja,
existe uma “história comum”, existe, apesar das distâncias materiais, uma afinidade psicológica.
Existe um sentimento e uma imagem de lugar, ou seja, uma idéia de lugar; e concomitante a essa
ideia, existe uma caracterização de identidade corroborada através da ligação psicológica ao
lugar. Pode até parecer abstrato pra quem está de fora, mas para quem vivencia esse espaço esse
sentimento é muito real e significativo.
Contudo, apesar dessas ressalvas sobre a abrangência do conceito de topofilia, preferimos
(em alguns momentos do texto) utilizar a expressão “sentimentos topofílicos”, pois a expressão
assim referida ressalta o caráter simbólico do conceito.
De acordo com David Lowenthal:
Cada imagem e idéia sobre o mundo é composta, então, de experiência pessoal,
aprendizado, imaginação e memória. Os lugares em que vivemos, aqueles que
visitamos e percorremos, os mundos sobre os quais lemos e vemos em trabalhos
de arte, e os domínios da imaginação e de cada fantasia contribuem para as
nossas imagens da natureza e do homem. (1961: 141)
A experiência do espaço vivido da Cantoria Nordestina é prenhe de construções
imagéticas, de conteúdos semânticos, e em alguns momentos descreve fidedignamente
experiências próprias do espaço nordestino, ou rondoniense. Ou seja, a memória relativa à
cotidianidade se mistura com imagens mentais de paisagens e lugares, tudo isso gera significados
que vão desembocar na presença nítida de um sentimento topofílico.
Sobre a Cantoria
Nordestina, um ouvinte afirma que:
Pra mim se tiver uma festa acolá e uma Cantoria, eu vou pra Cantoria! Porque
eu sei o que é uma Cantoria, faz parte do passado da vida do cara, da pessoa
124
né? Porque o Cantador ta cantando ali você bota aquilo na cabeça, você cantou
uma canção aqui, o cara fica com ela, pensativo com ela. É uma coisa muito
importante! Pra mim isso é uma grande coisa, o cara tá cantando aqui, eu chego
boto dois reais, três reais... eu vou numa festa acolá, eu num vou botar! O que?
Eu vou dar é pra uma pessoa que é nordestino, e tão tirando do peito, da
garganta... Alguma coisa que tá caçando o que o cara fez, como se fosse alguma
coisa que tivesse adivinhando o passado do cara, que às vezes canta e dá certo.
É uma coisa muito importante! Se eu fosse uma pessoa que pudesse, que tivesse
condições, eu num ia chegar aqui e botar dois reais, três reais. Chegava e botava
era cinqüenta, cem reais! Que eu dou valor! (entrevista cedida ao pesquisador
em 10/11/07, em Porto Velho-RO)
Nas afirmações “faz parte do passado da vida do cara” e “como se fosse alguma coisa
que tivesse adivinhando o passado do cara” está implícito que os Cantadores, através das
narrativas cantadas de improviso, conseguem traduzir a cotidianidade de seu grupo social. Essa
“tradução”, remete os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina a um tempo e um espaço
simbólico, que ligando o cognitivo com o emocional corrobora sentimentos topofílicos. Esses
sentimentos topofílicos são compartilhados tanto pelos Cantadores como pelos ouvintes. Os
Cantadores inspiram-se através desses sentimentos, e os ouvintes por sua vez identificam-se com
essas construções poéticas; concomitantemente, os Cantadores percebendo que os ouvintes estão
se identificando se inspiram mais ainda e buscam cantar ainda mais elementos que possam fazer
emocionar, ou seja, é um processo cíclico. Para efeito de contextualização, é interessante
observarmos uma sextilha cantada por Mozaniel Mendonça e Matias Neto em uma Cantoria péde-parede realizada no dia 11/08/07, em Porto Velho-RO:
Me inspiro quando eu lembro
(Mozaniel Mendonça)
do meu sertão nordestino
da colheita do algodão
da cabra, bode e suíno
das missas no fim da tarde
e do badalar do sino...
Canto o sertão nordestino
do padre Cícero Romão
do forró de Januário
do seu filho Gonzagão
(Matias Neto)
125
e sei que corre em minhas veias
o sangue de Lampião...
E eu não esqueço o gibão
(MM)
do vaqueiro que vivia
campeando touro brabo
com a sua montaria
correndo de noite a dentro
correndo dentro do dia...
No sertão que eu vivia
(MN)
eu suei o meu cangote
ouvi o cantar da jia
vi o pulo do garrote
dormi em rede de algodão
e tomei água de pote...
A rã roendo no pote (MM)
é linda a ocasião
Poeta agora me ouça
me escute com precisão
minha mãe não lhe pariu
mas você é meu irmão...
Eu nasci em um sertão
de chapada e de buraco
vi mamãe fazer costura
vi papai varrendo caco
eu vi um guiné cantando
todo dia “eu tô fraco”...
(MN)
126
O canto do “eu tô fraco”
(MM)
tem acordes musicais
lembro o aboio do vaqueiro
forte, autêntico e capaz
e do café que mãe fazia
sinto é saudade demais...
Eu corri nos carrascais
(MN)
montado em um cavalo
levava minha rapadura
e só andava no embalo
e o meu despertador
era o cantar do galo...
Lembro a cela do cavalo
(MM)
a moenda e a cachaça
e a primeira namorada
que era cheia de pirraça
as tardes nos pés-de-serra
e meu cachorro bom de caça...
No sertão num tinha praça
(MN)
e eu me achava bonito
tomava o leite que a cabra preta
disputava com o cabrito
mesmo assim eu era tão magro
que parecia um palito...
Outro exemplo é o “dez-a-quadrão” cantado por Matias Neto e Custódio Queiroz, em
12/04/08 em Porto Velho-RO:
127
MN: Já passeei no Nordeste
CQ: e não me esqueço de lá
MN: Pernambuco e Ceará
CQ: de belezas se reveste
MN: também vi o bom agreste
CQ: e as quebradas do sertão
MN: vi falar de Lampião
CQ: Antônio Silvino e Jararaca
MN: de cerca, vara e estaca
C e M: lá se vão dez a quadrão...
CQ: Vi cerca de arame grosso
MN: no meu Nordeste querido
CQ: que não será esquecido
MN: no tempo que eu era moço
CQ: bebia água de poço
MN: nadava no cacimbão
CQ: pescava no ribeirão
MN: andava por toda área
CQ: sem ter medo de malária
C e M: lá se vão dez a quadrão...
De acordo com a narrativa de Matias, o nordestino mesmo longe do Nordeste tem a
tendência de lembrar de sua terra natal. Segundo ele:
Você vê, o cara hoje às vezes tem até uma casa boa, mas num esquece da
casinha de taipa que morou... O nordestino tem muito isso... dizem que é sofrer
duas vezes, mas a gente lembra, não tem jeito, não tem como não lembrar. (...)
O extrato social mudou, mas num tem como, porque ficou lá o primo, ficou a
tia, até a mãe às vezes tá por lá. Então, ele lembra de voltar, de comer aquela
comidinha por lá, aquela buchadinha de bode, aquele cuscuz (risos) por mais
que o cara melhore ou piore num vai esquecer isso nunca! Tá no sangue, isso é
do ser humano mesmo... E o Cantador retrata isso muito bem nos seus
trabalhos, faz com que o caboclo até chore!.. (pág. 85).
128
De acordo com Edward Relph:
Topofilia é um sentimento direcionado para o lar, para o que é confortável,
detalhado, diverso e ambíguo sem confusão e tensão; (...) Em resumo, topofilia
inclui qualquer coisa dos ambientes que nos faça senti-los como estar nos
relaxando ou estimulando, e tudo o que nas nossas atitudes ou costumes nos
capacite a experienciar locais como dando-nos prazer. [e ainda] A importância
da topofilia (...) está explícita em muitas formas de recreação ao ar livre, na
pintura de paisagem e na fotografia (...). (1979: 19)
Segundo Relph, a importância da topofilia pode estar presente em diferentes práticas
humanas, e além disso é um “sentimento direcionado para o lar, para o que é confortável (...) sem
confusão e tensão”. Essa ligação afetiva com o lugar é nitidamente expressa através das palavras
de Matias “o cara hoje às vezes tem até uma casa boa, mas num esquece da casinha de taipa que
morou...”. Depois ele afirma que “o Cantador retrata isso [o universo sertanejo, o espaço
nordestino, a cotidianidade do povo] muito bem nos seus trabalhos, faz com que o caboclo até
chore!”
Deste modo, é nítido que ao participarem do espaço vivido da Cantoria Nordestina, seus
atores interagem em um processo que os possibilita desenvolverem e/ou fortalecerem vínculos
topofílicos tanto com o espaço nordestino (o qual é retratado na própria contextualização da
Cantoria Nordestina) quanto com o espaço rondoniense (o qual os atores vivenciam
empiricamente). Contudo, é relevante mencionar que, ao recriar um espaço nordestino
simbolicamente e vivenciá-lo, o grupo corrobora para si uma identidade cultural que influenciará
diretamente em como ele percebe, vivencia e compreende o seu espaço empírico, ou seja, o
espaço rondoniense.
É quase inevitável, entre os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina, a não
comparação entre os espaços nordestino e rondoniense. Assim, visualiza-se uma espécie de
identidade híbrida, onde se misturam elementos do “nordestino” com elementos do
“rondoniense”; mas esse encontro cultural apesar de múltiplo, não é impreciso. Os atores do
espaço vivido da Cantoria Nordestina criam a sua própria caracterização sócio-cultural, e
baseados nela, inter-relacionam-se estabelecendo uma cooperação cimentada em códigos e
significados compartilhados.
129
Vamos observar duas narrativas cantadas de improviso que desenvolvem temáticas
relacionadas ao espaço rondoniense. A primeira é uma sextilha cantada por Matias Neto e
Custódio Queiroz em 13/09/07, em Porto Velho-RO:
Garanto que em Rondônia
(Matias Neto)
tem muita coisa bonita
tem o povo trabalhador
tem vegetais e bauxita
tem o ouro do madeira
e também a cassiterita...
Tem diamante e pepita
(Custódio Queiroz)
de Urucum tem o gás
tem propaganda e comércio
de produtos naturais
tem tudo isso em Rondônia
e ainda tem muito mais...
Me inspiro com os animais (MN)
que nessa fauna está
a paca, e a cutia
a anta, e o tamanduá
o gavião de rapina
e também o bom sabiá...
Banana e maracujá
(CQ)
isso tem na agricultura
Rondônia tem tudo isso
pois é terra de fartura
e são essas coisas na vida
que um homem de bem procura...
130
Falando da agricultura
(MN)
a produção predomina
a banana, o abacaxi
o arroz da folha fina
e o feijão que no futuro
se exporta até pra China...
Temos água cristalina
(CQ)
e tem a água do Madeira
acidentes hidrográficos
rio, córrego e cachoeira
isso é um pouco do que tem
na área desta fronteira...
Rondônia dessa maneira
(MN)
no futuro não vai mal
melhora o interior
e a nossa capital
com o aumento da energia
pra o centro industrial...
E também tem o cacau
(CQ)
açaí e tucumã
Tem o peixe tambaqui
pacú e curimatã
e farinha pra merendar
todo dia de manhã...
De Rondônia eu virei fã
deste lugar, desse chão
mas falta investimento
(MN)
131
na área da educação
mais lugares de lazer
pro povo ter diversão...
Rondônia tem produção
(CQ)
do povo lá do nordeste
que vieram viver aqui
trabalhando inconteste
e os soldados da borracha
enfrentaram todo teste...
Para não passar no teste
(MN)
uma corda se quebrou
a língua então não foi bem
o pensamento falhou
e agora se para um pouco
depois se volta o show...
Você se atrapalhou
(CQ)
mas é coisa que acontece
na arte do improviso
onde a poesia cresce
isso é defeito pequeno
que na cantiga aparece...
O ouvinte reconhece
o verso de improviso
quando a poesia foge
também se acaba o riso
e quando a corda se quebra
o verso não sai preciso...
(MN)
132
A segunda é o mote decassílabo “quem beber um só gole do Madeira/ não esquece
Rondônia nunca mais” pedido aos mesmos Poetas, por um ouvinte em 10/05/08, em Cantoria péde-parede em Porto Velho-RO:
Eu que sou um poeta potiguar
(Matias Neto)
e cheguei pela década de oitenta
até hoje esse Graúna inventa
muitas coisas aqui nesse lugar
foi aqui que construí o meu lar
pois cheguei ainda jovem bem rapaz
e hoje em dia já fiz o meu cartaz
só cantando as coisas da ribeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Imigrantes que vêm do Piauí
(Custódio Queiroz)
Ceará, Pernambuco ou Mato Grosso
seja velho, adulto ou seja moço
quando vem se chegando por aqui
come um peixe por nome tambaqui
e também bebe os sucos naturais
e na feira do 1 toma mingais
tapioca e bolo de macaxeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Venha ver a Madeira Mamoré
construção que está abandonada
vem provar tambaqui e a pescada
jatuarana e também tucunaré
venha ver onde nasce o igarapé
(MN)
133
suas fontes lindíssimas, seus canais
e no Cainágua venha ver os seus cais
e do Teotônio a linda cachoeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Chega aquele e planta o cacau
(CQ)
mandioca, pupunha e banana
pra fazer sua feira da semana
e pros filhinhos poder dar o mingau
Porto Velho é a nossa capital
que é manchete em todos os jornais
o que entristece é ver os marginais
e o Urso Branco que não é brincadeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Em Rondônia tem rebanho bovino (MN)
tem o ouro e tem cassiterita
admiro essa terra tão bonita
que acolhe o sulista e o nordestino
também temos o rebanho eqüino
e jazidas de muitos minerais
tem rebanhos de muitos animais
de Jarú até a Jorge Teixeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Nesta terra se vê pernambucanos
cearenses e também piauienses
que vieram ajudar os rondonienses
(CQ)
134
trabalhar e viver melhores anos
paraibanos, também alagoanos
e os soldados da borracha lá atrás
que enfrentaram malária e matagais
e ajudaram a povoar esta fronteira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Venha ver o lago do Cuniã
(MN)
conhecer a pérola do Mamoré
venha ver o Vale do Guaporé
o Candeias também Itapoã
venha ver bela serra e linda chã
por exemplo a Serra do Pacaás
e brevemente pra Rondônia vem gás
e hidrelétrica que alaga cachoeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Interessante é o clima tropical
(CQ)
que existe no solo de Rondônia
o nordestino morar na Amazônia
é uma coisa que eu acho legal
me acostumei com o lugar e o pessoal
com os bairros, as ruas e os canais
só queria que tivesse mais cartaz
o repentista e a poesia verdadeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
É agradável o clima de Vilhena
(MN)
135
se parece com o clima sulista
também temos o ambientalista
defendendo flora e fauna terrena
Porto Velho é uma capital pequena
necessita de asfalto e hospitais
mesmo assim aqui ainda reina paz
e eu me sinto feliz nessa ribeira
e quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
Nós sabemos que aqui é muito bom
(CQ)
pois chegaram pessoas importantes
no passado os bravos bandeirantes
mais na frente o marechal Rondon
pelos índios lutou e mostrou dom
pra fazer o telégrafo foi capaz
enfrentando floresta e animais
em Rondônia ergueu sua bandeira
quem beber um só gole do madeira
não esquece Rondônia nunca mais...
O trabalho poético dos Cantadores é muito rico, através de suas narrativas cantadas de
improviso eles conseguem abarcar uma grande variedade de elementos. Falam sobre as belezas
naturais de lugares do espaço rondoniense como o Lago do Cuniã, o Vale do Guaporé, a Serra
dos Pacaás e outros. Citam municípios do estado de Rondônia: Porto Velho, Vilhena, Candeias,
Itapoã do Oeste, Jarú, Jorge Teixeira, etc. Falam da culinária típica da região como a tapioca,
mingau, bolo de macaxeira, sucos naturais... Enaltecendo a flora e fauna citam nomes de peixes e
frutas regionais: tambaqui, pescada, jatuarana, tucunaré, pacu, curimatã, pupunha, tucumã,
banana, açaí, cacau, mandioca... Falam sobre aspectos econômicos do estado como agricultura,
pecuária e extração mineral. E retratam o próprio sentimento do migrante nordestino residente em
Rondônia: “o nordestino morar na Amazônia/ é uma coisa que eu acho legal/ me acostumei com
136
o lugar e o pessoal/ com os bairros, as ruas e os canais”. Matias que chegou no estado de
Rondônia ainda novo, cantando afirma: “Eu que sou um poeta potiguar/ e cheguei pela década
de oitenta/ até hoje esse Graúna inventa/ muitas coisas aqui nesse lugar/ foi aqui que construí o
meu lar/ pois cheguei ainda jovem bem rapaz...”
Através de suas narrativas, os Poetas afirmam que se acostumaram com o lugar e o
pessoal. Matias cantando fala que foi aqui, em Rondônia, no espaço rondoniense, que construiu o
seu lar. Mas o que é esse lugar, o que é esse lar que esses Repentistas, Poetas Cantadores, tanto
falam em suas narrativas improvisadas? Esse lugar, é um lugar vivenciado, e justamente por isso
dotado de significância; e justamente por isso, lugar. Se “acostumar com o pessoal” está
intimamente ligado com se acostumar com as ruas, as casas, os bairros, os lugares... Eric Dardel
afirma que “A cidade não é um panorama numa simples vista. A cidade como realidade
geográfica é a rua: a rua como o centro e cenário para a vida de todos os dias, onde o homem é
um transeunte, um residente, um artesão” (DARDEL apud RELPH, 1979: 11-12). O espaço
vivido da Cantoria Nordestina sanciona simultaneamente dimensões simbólicas e empíricas,
experiência e imaginação, sonhos e memória.
Viajar mentalmente através das narrativas improvisadas no espaço vivido da Cantoria
Nordestina é agradavelmente permitido. É como disse John K. Wrighy, em seu discurso
presidencial perante a Associação de Geógrafos Americanos, em 1946 “A mais fascinante terrae
incognitae, entre todas, é aquela que se encontra no interior da alma e do coração dos homens”
(WRIGHT apud LOWENTHAL, 1961: 103). A ideia de espaço vivido sanciona a
inseparabilidade do ser que sente, pensa, está inserido em um universo simbólico e,
simultaneamente experiencia empiricamente o espaço concreto. Neste sentido, o conceito de
espaço vivido se torna complexo, complexo porque não dicotômico. Ninguém vivencia o abstrato
puro, o neutro. Mas pra se existir a experiência do vivenciar é preciso existir o “eu”, o “sujeito”,
o “quem” vivencia; e simultaneamente essa vivência não é jamais exclusivamente individual. Até
os nossos raciocínios são desenvolvidos por palavras, palavras essas que nos foram ensinadas; os
significados dessas palavras também nos foram ensinados. A pluralidade do mundo, a
individualidade do ser... não são coisas tão excludentes dependendo da perspectiva de análise.
Os Cantadores, enaltecendo as belezas dos espaços rondonienses, convidam “venha ver
onde nasce o igarapé/ suas fontes lindíssimas, seus canais/ e no Cainágua venha ver os seus
cais/ e do Teotônio a linda cachoeira...”. Os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina,
137
envolvidos em sua dinâmica de inter-relações sociais pautadas na cordialidade e na cooperação,
se sentem agradavelmente capacitados para desbravar esses espaços discursivamente simbólicos.
Segundo Edward Relph, o “Espaço é também estruturado pela projeção da imaginação” (1979:
9). Contudo, convém esclarecer que além desses espaços não serem “exclusivamente”
simbólicos, eles possuem uma função sócio-cultural. Espaços como: fontes, igarapés, e a própria
cachoeira do Teotônio existem concretamente em Rondônia. Mas ao serem decantados em
versos, eles estimulam os atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina a se sentirem mais
rondonienses; e esse sentimento é compartilhado socialmente entre os atores do espaço vivido da
Cantoria Nordestina. A ideia do que é “ser” rondoniense, simbolicamente é associada ao
indivíduo que vive em uma terra grandiosa, agradável, uma terra de rios, de florestas, de
maravilhosas plantas e animais. Topofilicamente é nesse sentido que “A imaginação pode até
transcender o espaço físico” (RELPH, 1979: 9).
FOTO 08 – D. LÚCIA E SEUS PAIS, FRANCISCO SANTOS (76 anos)
E JÚLIA SANTOS (66 anos), TODOS CEARENSES.
Fonte: foto feita pelo autor em 29/02/08, em Porto Velho-RO.
138
Mas este “ser” rondoniense, esse relance de uma possível identidade cultural, também é
simultaneamente um “ser” nordestino. É o nordestino que veio desbravar as terras rondonianas,
somar esforços em prol da construção de um mundo melhor, de um espaço melhor: “Nesta terra
se vê pernambucanos/ cearenses e também piauienses/ que vieram ajudar os rondonienses/
trabalhar e viver melhores anos/ paraibanos, também alagoanos/ e os soldados da borracha lá
atrás/ que enfrentaram malária e matagais/ e ajudaram a povoar esta fronteira...” O espaço
vivido da Cantoria Nordestina em sua simplicidade e pluralidade também é agregador: “seja
velho, adulto ou seja moço/ quando vem se chegando por aqui/ come um peixe por nome
tambaqui/ e também bebe os sucos naturais...”
O espaço vivido da Cantoria Nordestina não é um conceito estático, congelado, e sim um
conceito fluido, dinâmico. Ser um ator do espaço vivido da Cantoria Nordestina implica em
experienciar um espaço metamorfoseante, flexível. Metamorfoseante em primeiro lugar pela
imprevisibilidade dos versos, das narrativas cantadas; e flexível, porque as inter-relações sociais
também não são fixas... as intersubjetividades são plurais. Considerando a belíssima geografia de
Lowenthal “Todos os tipos de experiências, desde os mais estreitamente ligados com o nosso
mundo diário até aqueles que parecem remotamente distanciados, vêm juntos compor o nosso
quadro individual da realidade” (1961: 141).
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ter a Cantoria Nordestina como tema de uma pesquisa geográfica foi simultaneamente
desafiador e instigante. A cada encontro com os Cantadores, a cada nova participação em pés-deparede, novas ideias surgiam, novos elementos eram observados. O espaço vivido da Cantoria
Nordestina sanciona inter-relações sociais, sanciona diálogo, comunicação. Essa comunicação é
pautada por traços em comum, eixos, representações que possibilitam o entendimento mútuo.
É próprio do geógrafo que se interessa pela perspectiva cultural estar atento as sutilezas
dos diferentes “olhares”. Não conseguiríamos ter desenvolvido um trabalho geográfico sobre a
Cantoria Nordestina se não considerássemos a Cantoria Nordestina enquanto fenômeno sóciocultural ou, em outras palavras, fenômeno espaço-sócio-cultural. Para compreendermos esse
dimensionamento da Cantoria Nordestina foi necessário a considerarmos sob o ponto de vista de
seus próprios participantes. É essencialmente sob esse “ponto de vista” que a Cantoria Nordestina
realmente apresenta a sua dimensão espacial. É nesse sentido que as metodologias de pesquisa
foram adotadas, era preciso mergulhar profundamente na Cantoria Nordestina enquanto
experiência vivida para descortinar os seus aspectos espaciais.
Neste sentido, tanto a História Oral quanto a Pesquisa Participante possibilitaram esse
“encontro” despretensioso e aberto. A História Oral possibilitou um diálogo íntimo e franco com
o narrador, através dela tivemos o tempo e o espaço necessários para que a narrativa se
desenvolvesse aberta e espontaneamente. Já a Pesquisa Participante nos possibilitou conhecer o
grupo social estudado de uma forma mais aprofundada e humana. Justamente, porque nos
fundamentos da Pesquisa Participante, a pesquisa não é feita exclusivamente sobre o grupo, mas
com o grupo. É nesse sentido que muitos detalhes, muitas sutilezas (que não apareceriam através
de metodologias quantitativas, em uma entrevista fechada por exemplo) puderam ser percebidas e
consideradas.
Assim, a História Oral e a Pesquisa Participante foram articuladas simultaneamente, uma
complementando a outra. Acreditamos sinceramente que somente a História Oral não nos
possibilitaria a realização desse trabalho com a segurança desejada; e similarmente, se
dispuséssemos somente da Pesquisa Participante não teríamos a riqueza de dados e detalhes
necessários para as nossas contextualizações explicativas. Em outras palavras, enquanto o
trabalho de História Oral nos possibilitou uma maior familiaridade com o universo da Cantoria
140
Nordestina, a Pesquisa Participante nos capacitou para a decodificação dos dados obtidos através
da História Oral. Além disso, foi graças a Pesquisa Participante que a potencialidade de
socialização da Cantoria Nordestina pôde ser verificada empiricamente.
Vivenciar o espaço vivido da Cantoria Nordestina foi uma experiência única e, sob
determinados aspectos, “indescritível”. Existem momentos em que o olhar e a expressão facial
podem falar melhor do que palavras. Ver pessoas se emocionarem ao escutar improvisos falando
sobre suas terras natais... sorrisos, lágrimas, apertos de mãos e abraços, experiências que só a
convivência despretensiosa é capaz de proporcionar. Significados, valores, visões de mundo...
todos esses elementos perpassam pelo contexto do que chamamos de espaço vivido da Cantoria
Nordestina.
As experiências de Matias foram visualizadas nas experiências de outros atores do espaço
vivido da Cantoria Nordestina, e de certa forma (dentro do contexto desse trabalho) Matias se
tornou uma espécie de porta-voz desses atores. Mas objetivamente não foi somente a voz de
Matias que foi ouvida e considerada; e sim o casamento, a congruência, o inter-relacionamento
de diversas vozes que se complementavam, vozes de diferentes atores desse espaço.
As narrativas cantadas de improviso serviram para contextualizar a dinâmica própria da
Cantoria Nordestina. Através delas foi possível perceber os principais temas envolvidos no
contexto da Cantoria, esses “temas principais” revelaram os principais interesses e afinidades dos
atores do espaço vivido da Cantoria Nordestina. A dinâmica intersubjetiva da Cantoria
Nordestina está intrinsecamente ligada à comunicação, e nesse sentido as narrativas cantadas de
improviso, ou os repentes, foram eixos norteadores nas análises dessa pesquisa.
Buscamos através deste trabalho, demonstrar que a Cantoria Nordestina possui uma
dimensão espacial. Ao falarmos em espaço vivido da Cantoria Nordestina, não estamos falando
em nada mais do que a Cantoria Nordestina vivenciada pelos seus atores. Ou seja, o conceito de
espaço vivido da Cantoria Nordestina, é um conceito desenvolvido com o intuito de tornar a
Cantoria Nordestina espacialmente inteligível. A complexidade desse conceito, reside no fato de
que a experienciação desse espaço envolve, simultaneamente, aspectos objetivos e subjetivos. O
espaço concreto da realização da Cantoria Nordestina é empiricamente compartilhado, mas a sua
contextualização envolve uma dinâmica de relações intersubjetivas. Para explicarmos
teoricamente essa dinâmica, buscamos articular (sob a luz das abordagens da geografia cultural e
141
humanista) alguns conceitos que potencializassem a inteligibilidade do espaço vivido da Cantoria
Nordestina. Entre eles os de: representações, identidade, lugar e topofilia.
Procuramos demonstrar que, através da sociabilidade da Cantoria Nordestina, seus atores
se inter-relacionam produzindo toda uma dinâmica intercomunicativa geradora de significados,
valores e representações. Essas inter-relações processadas nos espaços de realização das
Cantorias não são dissociadas dos traços sócio-culturais, muito pelo contrário, a Cantoria
Nordestina nos moldes de apresentação dos pés-de-parede é intrinsecamente social, cultural e
espacial.
O espaço vivido da Cantoria Nordestina, através das inter-relações sociais permeadas
pelos códigos de comunicação, gera, constantemente, representações. Essas representações, que
são comumente compartilhadas entre os atores do grupo, possuem funções sociais. Suas funções
se caracterizam principalmente na ideia de uma identidade comum ao grupo. Comum no sentido
de comumente compartilhada, aceita e interiorizada. Através dessa identificação, os atores do
espaço vivido da Cantoria Nordestina compartilham ideias, valores e afetos. Ou seja, o espaço
vivido da Cantoria Nordestina comporta um alto grau de sociabilidade, o qual através de sua
dinâmica intercomunicativa possibilita a elaboração e re-elaboração de representações; e essas
por sua vez, auxiliam os atores do grupo a tornarem seus espaços e relações inteligíveis.
As contextualizações discursivas de lugares são vivamente experienciadas através do
espaço vivido da Cantoria Nordestina. A própria dinâmica da Cantoria Nordestina está
relacionada à recriação simbólica de “lugares nordestinos”. Esses lugares são reconstruídos
através de discursos, os quais são intimamente inter-relacionados com imagens mentais. A
recriação desses lugares é simultaneamente relacionada à memória dos: espaços materiais
referentes ao Nordeste; e às relações sócio-afetivas envolvendo, principalmente, familiares e
amigos.
As re-construções dos lugares, através do espaço vivido da Cantoria Nordestina, geram
em seus atores o surgimento e/ ou manutenção de sentimentos topofílicos. Na verdade, topofilia é
uma capacidade intrínseca do próprio ser humano intimamente ligada à vivência e à
experienciação. Topofilia tem haver simultaneamente com aspectos objetivos (pois tem relação,
mesmo que indiretamente, com espaços concretos) e subjetivos (pois tem haver com percepções,
sentimentos, significações e valores). O conceito de topofilia é interessante, justamente por
associar o que foi insistentemente dicotomiazado: o objetivo e o subjetivo, o espaço concreto
142
(mundo natural) e as diferentes maneiras de percepção desse espaço (dimensões cultural e
simbólica). Assim, o espaço geográfico não é exclusivamente natural, nem exclusivamente
simbólico. O que existe é uma constante e indissociável inter-relação entre espaços físicos e
relações sociais, essas permeadas constantemente por fatores tanto concretos, quanto psicológicos
e culturais.
Num mundo onde as culturas ditas “populares” cedem lugar às culturas de massa (as quais
são impulsionadas pelo poder midiático, e têm como eixo de sua temática a alusão a hábitos de
consumo e a adoração à estética), o espaço vivido da Cantoria Nordestina se apresenta como uma
espécie de contra-cultura. Ele corrobora em seus atores, através de toda sua dinâmica,
sentimentos de auto-estima; proporciona a valorização da matriz familiar e
estimula a
sociabilidade e a cooperação mútua entre seus atores.
Este trabalho não teve a pretensão de decodificar a Cantoria Nordestina em sua totalidade,
existem muitos pontos ainda a serem aprofundados. Mas acreditamos que através dessa
dissertação, já demos um primeiro passo no intuito de compreender de forma mais ampla uma
atividade artístico-social com raízes culturais tão profundas. O desafio continua, muitas perguntas
ainda precisam de respostas.
Neste trabalho demos ênfase aos formatos de apresentação “pés-de-parede”. Mas sabemos
que considerando a escala nacional existem outros formatos de apresentação que congregam
grandes quantitativos de participantes, principalmente os grandes torneios e festivais de Cantoria.
O recorte espacial de nossa pesquisa deu-se sobre Porto Velho-RO, contudo também sabemos
que a Cantoria Nordestina é uma atividade de abrangência nacional. Nesse sentido, surgem
muitas perguntas sobre a abrangência, formas, funções e significados da Cantoria Nordestina no
Brasil: Como é a Cantoria Nordestina enquanto profissão? Como se configura a espacialidade dos
festivais e torneios de Cantoria Nordestina nos grandes centros urbanos e cidades do Nordeste?
Como a Cantoria Nordestina se insere nos atuais meios de comunicação? Como a Cantoria
Nordestina sobreviverá aos avanços da pós-modernidade? Essas são apenas algumas das questões
que poderão ser trabalhadas sob perspectivas geográficas, tendo em vista a Cantoria Nordestina
enquanto fenômeno sócio-espacial. No momento nos damos por satisfeitos
pelo trabalho
realizado, mas estamos cônscios que este é apenas um começo. E aos geógrafos interessados na
perspectiva cultural em geografia, e que por ventura queiram pesquisar sobre a Cantoria
Nordestina; existe ainda um vasto campo e longos e belos caminhos a se percorrer.
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