EDUCAÇÃO NO CAMPO E INFÂNCIA: práticas educativas nas escolas do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Erton Kleiton Cabral dos Santos1
UFPE/CAA
[email protected]
Adma Soares Bezerra2
UFPE/CAA
[email protected]
Resumo
O presente artigo busca apresentar resultados de um exercício de pesquisa no âmbito da
disciplina Pesquisa e Prática Pedagógica III 3, que tem a ênfase em Movimentos Sociais. O
objetivo geral deste exercício de pesquisa foi estudar a dimensão educativa dos Movimentos
Sociais, enquanto organizações que formam/constroem novos sujeitos, a partir da educação
infantil. Como objetivo específico, buscamos compreender as práticas educativas utilizadas
pelos Movimentos Sociais na Educação Infantil. A metodologia de coleta de dados no
campo teve por base a observação participante com uma estadia de 40 (quarenta) horas de
cada estudante envolvido, na perspectiva de conhecer e se aproximar da questão da
educação dentro dos movimentos sociais do campo. O método de pesquisa utilizado foi o
Método do caso Alargado de Boaventura de Sousa Santos. As nossas conclusões apontam
para a escola itinerante, as cirandas e as místicas como práticas e pedagogias fundamentais
da educação neste contexto de formação política e emancipação social como processo
educativo.
1
Graduando em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Centro Acadêmico do
Agreste – CAA. Estudante pesquisador, atuante nos seguintes projetos de pesquisa: Pq - enxoval 2009
UFPE/NFD/CAA, “Educação Municipal, Clientelismo e Democracia nas Escolas do Nordeste Brasileiro: Um
Estudo no Agreste Pernambucano”; CNPQ “Gênero e Educação: A Formação de Professores nas Séries
Iniciais do Ensino Fundamental do Campo e da Cidade: Refletindo Sobre as Implicações Práticas da
Ausência do Debate de Gênero na Escola.
2
Graduando em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Centro Acadêmico do
Agreste – CAA. Bolsista de Iniciação Científica Pibic /UFPE/NFD/CAA, atuando, portanto, na pesquisa
“Mapeando os Enunciados e os Significados Atribuídos a Educação Infantil entre Professores que Atuam
com a Criança Pequena nos Centros Educacionais municipais de Caruaru”.
3
Esta pesquisa que dá origem ao artigo em questão é parte dos requisitos avaliativos referente à disciplina em
pauta lecionada e orientada pela professora Dr. Allene Carvalho Lage.
Palavras-chave: Infância. Práticas Educativas. Educação no Campo.
Introdução
Ao falar em educação infantil, somos remetidos a pensar acerca da infância, seja
numa dimensão filosófica, sociológica e mesmo educativa. Observando o nosso cenário
educativo contemporâneo, parece-nos imprescindível considerar que a infância das
crianças do campo em muito se diferencia da infância nas áreas urbanas. Agregando à
infância do campo, a luta pela terra, a defesa de suas idéias e a busca de seus direitos como
direitos de todos, desdobram-se aos nossos olhos, as particularidades da formação política
e pedagógica que as crianças pertencentes aos Movimentos Sociais recebem. Uma
formação singular, que devido o seu valor político e ideológico provoca inúmeros
questionamentos por sujeitos não-integrantes de Movimentos Sociais e, sobretudo,
indiferentes às suas causas de luta.
Trata-se de uma educação que reconhece na infância seres autônomos, capazes de
torná-los agentes responsáveis pelas mudanças que a sociedade necessita para atingir a
justiça social, que desde muito cedo insere nas crianças, estas educandos, princípios
esclarecedores da necessidade da luta e conquista de uma educação situada dentro dos seus
espaços de luta. Onde os educadores sejam militantes, preocupados com a transformação e
promoção da cidadania de seus alunos. Uma escola que vise fugir aos currículos e
programas educacionais tradicionais que os expulsam do sistema educativo público por
não contextualizar-se com as realidades e trajetórias políticas de seus sujeitos. Uma
formação que almeje formar indivíduos conscientes da perturbadora desigualdade social
que assola impiedosamente o nosso país.
Diante do exposto, este artigo resultado de um exercício de pesquisa realizado no
âmbito da graduação, proposto pelo componente curricular “Pesquisa e prática pedagógica
III – ênfase em Movimentos Sociais” pretende oferecer reflexões para a seguinte pergunta:
“Quais as principais práticas orientadoras da Educação Infantil dentro dos Movimentos
Sociais do campo de luta pela reforma agrária”?
1. A escola e as práticas educativas nos movimentos sociais – reflexões teóricas
A educação nos Movimentos Sociais necessita ser pensada como uma educação
diferenciada e específica. Uma educação que forneça, sobretudo, amplo sentido no
processo de formação humana, construindo “referências culturais e políticas para a
intervenção das pessoas e dos sujeitos sociais na realidade, visando a uma humanidade
mais plena e feliz” (KOLLING et all, 1996, p. 24).
A escola sob a ótica dos Movimentos Sociais necessita ser uma instituição
educativa preocupada tanto com a formação humana, acordando com MAKARENKO
(2002)
Os objetivos do nosso trabalho devem ser expressos através das qualidades reais
das pessoas educadas sob nossa orientação pedagógica. Cada pessoa por nós
educada constitui o resultado da nossa produção pedagógica (p. 271).
Certos processos educativos jamais poderão realizar-se dentro de uma escola, pois
ultrapassam os limites do espaço físico destinado as salas de aula:
Educação não é sinônimo de escola. Ela é muito mais ampla porque diz respeito
à complexidade do processo de formação humana, que tem nas práticas sociais o
principal ambiente dos aprendizados de ser humano (MST, Boletim da
Educação, 2004, p. 26).
A escola que comporta a educação dos Movimentos Sociais é aquela em que “o
conteúdo básico da aprendizagem é a compreensão, interpretação, explicação e projeção da
transformação da existência no sentido de torná-la cada vez mais humana” (FREIRE apud
SOUZA, 2004, p. 17), que não finda em si mesma, por assumir o vínculo com o
movimento educativo da vida, em movimento. Não estamos querendo dizer com isso, que
existe um modelo próprio, pronto e imutável de escola dentro dos Movimentos Sociais.
Nos referimos bem mais a um
Jeito de ser escola, uma postura diante da tarefa de educar, um processo
pedagógico onde todos realmente têm o que aprender e o eu ensinar, sempre e o
tempo todo... Uma escola em movimento, movimento próprio da formação
humana, e próprio dos sujeitos sociais e humanos que a fazem (MST, Boletim da
Educação, 2001, p. 06).
A escola proposta pelos Movimentos Sociais pensa a escola como lugar de formação
e transformação humana, os valores, que são princípios e convicções de vida, movedores
de nossas práticas, nossas vidas, nosso ser humano e reprodutores nas pessoas, da
necessidade de viver pela causa da liberdade e da justiça, nas escolas dos Movimentos
Sociais, passam a ter lugar central, em consenso com SOUZA (2004) quando este afirma
que:
Toda a finalidade acadêmica de quaisquer processos educativos é a interpretação,
compreensão, explicação e expressão (artística, matemática e verbal) da realidade
pessoal, social e da natureza de que o ser humano necessita no seu processo de
humanização (p. 17).
Nestas, valores e educação são indissociáveis, os sentimentos cultivam os valores.
A sensibilidade diante das causas do ser humano já é em si, um valor e um aprendizado
que humaniza, bem como a formação de relações afetivas saudáveis entre as pessoas. Os
Movimentos Sociais esperam que as práticas educativas desenvolvidas em suas escolas
Ajudem na educação da sensibilidade de seus educandos, que trabalhe as
relações sociais e afetivas entre as pessoas nesta perspectiva que em seu dia a
dia, educandos e educadores recuperem e cultivem valores humanos como
solidariedade, a lealdade, o companheirismo, o espírito do sacrifício pelo bem
coletivo, a liberdade, a sobriedade, a beleza, a disciplina, a indignação diante das
injustiças sociais e das discriminações e preconceitos de todos os tipos e o
compromisso com a vida. Espera também um combate explícito aos
contravalores capitalistas desumanizadores, em especial contra o individualismo,
o egoísmo, o consumismo e a apatia social (MST, Boletim da Educação, 2001, p.
11).
E tais aspectos, dentre tantos outros, não se restringem nem poderiam restringir-se a
exercícios propostos em sala de aula. É através do cotidiano, em meio às discussões,
mobilizações e reivindicações oriundas dos Movimentos Sociais, que as crianças a partir
de brincadeiras, dinâmicas, músicas, estórias e histórias, teatro e cirandas que se valem de
metodologias direcionadas para a ação coletiva e solidária, aprendem a importância do
cumprimento do dever ontológico de intervir no mundo, em consonância com FREIRE
(1996), quando este diz que:
O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros, me põe numa
posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal,
minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas, a de quem nele
se insere. E a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito
também da historia (p.54)
Aprende também a respeitar as diferenças raciais, as crenças religiosas, o gênero
masculino ou feminino. Aprende o valor do trabalho, o amor à natureza e a terra. De
acordo com GARCIA (2000), é
A partir de situações concretas vividas em seu cotidiano, que as crianças vão
aprendendo a história de seu país, arrancando os véus que historicamente
escondem o processo de exploração e dominação... História quase sempre
ausente dos manuais escolares, e que resgata as lutas contra o colonizador, contra
a escravidão, contra a discriminação racial e étnica, contra a exploração da classe
trabalhadora, contra a dominação masculina e a opressão das mulheres. Tantas
lutas que a história oficial tenta minimizar ou esquecer (p. 11)
Nesta pedagogia emancipatória, envolvendo escola e cotidiano, as crianças são
estimuladas a se ajudarem, socializando o que sabem e compartilhando o que não sabem.
“O não saber é entendido como ainda não saber, e, no coletivo solidário, vai produzindo
novos saberes” (GARCIA, 2000, p. 12).
É por meio destas práticas educativas, que os educadores ou os mais velhos vão
ensinando, sem necessariamente dar aulas ou fazer discursos, as formas de ser e conviver,
transferindo as crianças o valor do coletivo, da cooperação, da solidariedade, da
necessidade de luta e voz ativa, da importância da participação e do comprometimento a
dar seqüência aos compromissos assumidos, bem como a pertinência do ponderamento,
enquanto sujeitos-crianças capazes de mudar o mundo.
2. Questões metodológicas
Diante da riqueza e mesmo das inúmeras possibilidades que tínhamos
metodologicamente, a fim de fundamentar nossa experiência, enquanto exercício de
pesquisa no campo empírico elegemos a observação participante para o trabalho de coleta
de dados. Nossa escolha se deu pelo fato de estarmos abertos a vivenciar uma experiência
neste campo.
A possibilidade de convivermos intensamente com os militantes desta organização
por longos dias e horas, no intuito de nos sentirmos participantes de suas lutas e de seus
cotidianos, nos direcionou, portanto, a esta escolha metodológica. A observação
participante „„está diretamente relacionado com a participação real do/a investigador/a com
a comunidade ou grupo‟‟ (LAKATOS e MARCONI apud LAGE, 2005, p: 195).
Este exercício de pesquisa é caracterizado como do tipo exploratória que segundo
Gil (2002, p.41) „„proporciona maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo
mais explícito ou a constituir hipóteses‟‟. Por se tratar de um estudo voltado a compreender
e descrever as inúmeras práticas educativas contidas em um movimento social. Dentre
outros instrumentos de coleta de dados utilizados neste exercício de pesquisa foram: o
diário de campo, questionários, entrevistas semi-estruturadas, conversas informais.
Considerando este recorte metodológico, este estudo teve ainda um cunho
explicativo. Reunindo-a as técnicas da observação participante objetivando explicar os
fenômenos nela contido. Sendo assim, Gil (2002), nos fala que as pesquisas explicativas
têm como preocupação central identificar os fatores que determinam ou que contribuem de
forma positiva ou negativamente nos processos de lutas, dos quais os movimentos sociais
se inserem diante de seus processos educativos.
A análise do caso tem por base o método do caso alargado que segundo Santos “a
riqueza do caso não está no que nele é generalizável, mas na amplitude das incidências
estruturais que nele se denunciam pela multiplicidade e profundidade das interações que o
constituem” (SANTOS, 1983, p. 11). O método caso alargado é um método utilizado pela
Sociologia na representação de estudos comparados, que surge dentro do estudo de caso
convencional.
O universo deste exercício de pesquisa refere-se ao Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), mas precisamente às crianças Sem Terrinha alocada em dois
espaços desta organização: o Centro de Formação Paulo Freire, localizado em Caruaru e o
Assentamento Várzea Grande, localizado em Gravatá. Ambas as cidades estão localizadas
na Mesorregião do Agreste Pernambucano.
3. Práticas educativas no MST: a infância como protagonista da história
Entendemos como práticas educativas, todo e qualquer processo que tenha como
produto final, o conhecimento, a aprendizagem por parte dos sujeitos envolvidos, em
sintonia com o pensamento de MAKARENKO (2002), quando este explana que “cada
pessoa por nós educada constitui o resultado da nossa produção pedagógica” (p. 271).
Dentre as práticas educativas pesquisadas e utilizadas pelo MST, o trabalho em questão
trata especificamente das Escolas Itinerantes, as Cirandas e a Mística.
3.1. Escolas Itinerantes
As professoras em sua maioria eram acampadas que reuniam as crianças embaixo
de árvores para assistirem as aulas, embora estas não valessem como ano letivo. A
importância desta iniciativa era não deixar as crianças completamente paradas, ocupá-las
de modo que através das aulas recheadas com cirandas, pudessem dar continuidade a seus
conhecimentos, agregando a estes, valores como organização e coletividade, constituindose assim, as primeiras escolas itinerantes do MST. “Escola Itinerante” foi o nome
escolhido, por significar que esta escola acompanha o itinerário do acampamento até o
momento em que as famílias acampadas chegam à conquista da terra do assentamento.
Começamos a pensar nessa escola, uma escola dentro da nossa própria área...
Então é algo assim... Escolas, algumas de lona, bem assim, sem estrutura de
paredes ainda, com essa divisão normal que a gente conhece de escola formal,
mas é onde tem mais assim, mais viva essa pedagogia do movimento
acontecendo com a criança (COORDENADORA ESTADUAL DOS SEM
TERRINHA - PE, Diário de Campo, 21/04/2009)
É a escola do acampamento, pensada e organizada em seguida a cada nova
ocupação, que objetiva a garantia do direito a educação de qualidade a crianças,
adolescentes, jovens e adultos das comunidades acampadas através de uma metodologia
que desenvolve ações pedagógicas diversificadas e prazerosas a partir dos interesses,
necessidades e níveis de conhecimento desses educandos. É um espaço para formar
sujeitos capazes de compreender e interpretar o processo histórico vivenciado, buscando a
transformação da realidade. Despertando a consciência organizativa e o espírito de
liderança das crianças, adolescentes, educadores e comunidades acampadas, com clareza
política para o exercício da cidadania. Nela cultivam-se os valores do campo, participando
da dinâmica do acampamento, adaptando-se a vida em movimento do MST.
Atualmente as escolas itinerantes já são reconhecidas. Seu currículo possibilita a
apreensão de conteúdos conforme o tempo de aprendizado de cada educando. Trata-se de
uma escola presente na vida dos alunos o ano inteiro, tendo seu período letivo estipulado a
partir de compromissos assumidos por educadores, alunos, comunidade do acampamento,
Secretaria de Educação e Setor de Educação do MST, concretizando-se como um espaço
de afirmação das identidades do sujeito do campo.
E aí lá tem os alunos, a professora ensina coisas da primeira série, depois passa o
assunto da segunda e tarefa e depois da terceira e aí vai... É grande assim, o
parque é enorme, lá a gente tem um roçado, tem milho... A roça é atrás da escola.
A gente está estudando sobre o solo, aração, adubação, irrigação. Eu estou
estudando, como minha professora diz, para ficar craque. Ela já trabalhou com
oxítona, paroxítona, já aprendi a numeração de monossílabo, dissílabo, trissílabo,
polissílabo são quatro silabas cinco ou mais, o nome helicóptero é polissílabo...
Tem multiplicação, adição, multiplicação e tem a divisão também... A gente
também estuda lá o dobro, o triplo... O dobro de 10 é 20 e o triplo é 30... Eu leio
todos os textos, tem o cantinho da leitura... Cantamos todo dia o hino do
movimento... Estudamos sobre a história do movimento também. Todas as lutas
e as vitórias que já conseguimos alcançar (SEM TERRINHA, Diário de Campo,
28/04/2009).
3.2. As Cirandas
Embaixo das árvores, em meio a folhagens e a terra, crianças começam a perceber
seu mundo e a interagir com ele. Sentadas ou dançando em roda, as crianças da “Ciranda
Infantil” aprendem a amar a terra, respeitar a natureza e a viverem felizes no campo e/ou
acampamento/assentamento. É pensando a infância como um período de vivências
importantíssimas e determinantes na formação do sujeito, que a educação a ela atribuída,
deve ser adequada.
Assim, a prática de realizações de cirandas, proporciona às crianças, a percepção de
que ele é um sujeito de sua educação e de sua história. Um sujeito não do vir a ser, pois já
é parte do movimento.
Nos assentamentos e acampamentos, o trabalho com as crianças sempre existiu
desde o início do movimento. Inicialmente era feito pelas mães que organizadas em
rodízios, cuidavam do grupo de crianças. Porém,
Surgiu no movimento uma necessidade da mulher participar da luta, porque
havia as reuniões e quem estava sempre participando era os homens, nas
formações, nos encontros, nas decisões. Então começou o diálogo, porque a
mulher não participa? Porque a mulher não vem? É porque não quer? É porque
não tem tempo? Então se foi percebendo que era por conta das “crias”, das
crianças que tava nessa família e tinha que ter uma divisão. Então se foi
pensando na ciranda, que era um espaço inicialmente da mulher vir participar, e
a criança também já esta num ambiente de formação. As cirandas, elas
acontecem em todo o estado que o movimento Sem Terra está. Nas marchas, esta
a ciranda, nos encontros nacionais, estaduais, nos cursos que a gente tem
parcerias com as universidades, aonde os pais vem estudar por média de dois
meses, está lá, a criança (COORDENADORA ESTADUAL DOS SEM
TERRINHA - PE, Diário de Campo, 21/04/2009).
A partir deste momento, a cada novo encontro organizado os círculos que já
serviam de cenário a uma prática de ação educativa diferenciada foram acrescidos à idéia
de círculo com elementos da cultura brasileira, surgindo a partir desta mistura, a ciranda.
Nestas, tornou-se imprescindível trabalhar a dimensão artística com as crianças dos
acampamentos/assentamentos, por ela trabalhar dentre outros aspectos, os sentidos.
As crianças ficam tudo junto, a gente canta, dança, diz palavra de ordem, às
vezes faz uma roda no chão e a gente fica lá, às vezes a gente brinca de roda... A
gente sai da escola e fica lá fora porque lá fora tem mato, tem terra, tem pedra e a
gente precisa estar perto dessas coisas, aí a ciranda é lá fora mesmo e eu gosto
muito das cirandas. (SEM TERRINHA, Diário de Campo, 28/04/2009).
A prática das cirandas, a preocupação com os conteúdos que nelas são trabalhados
visando desenvolver nas crianças organicidade, coletividade, criatividade dentre outros,
deve-se ao fato da educação trabalhada nos acampamentos/assentamentos não ser qualquer
uma, mais uma educação do campo, que enfatiza os elementos da natureza, preparando a
criança a viver com ela.
As cirandas são as coisas mais lindas do mundo... Um monte de criança
brincando, a gente grita a gente pula. Escolhe uma árvore para sentar debaixo e a
gente aprende lá sobre o meio ambiente, preservar as matas e o ar, aprende sobre
a luta da gente, o que já conseguiu e o que falta conseguir (SEM TERRINHA,
Diário de Campo, 28/04/2009).
Educação em movimento, que respeita os ciclos da comunidade, que por influenciar
a vida da família e por ser influenciada pela vida da comunidade, entende a criança como
um protagonista e não apenas personagem de sua história tendo, portanto, seu espaço
assegurado, tornando-se responsabilidade de todo o Movimento.
3.3. Mística
Podemos definir a Mística como uma prática desenvolvida pelo MST. De certa
forma, o seu alimento ideológico, de solidariedade e esperança, uma forma de vivenciar os
ideais. Um ritual, de caráter histórico e de permanente celebração, que deve ser praticada
em todos os eventos que reúnem pessoas, tendo em vista que se trata de uma manifestação
coletiva de sentimentos.
Mística é feito um teatro que a gente apresenta para ensinar e aprender junto com os
outros. Para mostrar aquilo e provar que aquilo não é o certo como eles pensam. A
gente também faz Mística para dizer o significado de uma Mística. Uma Mística é
feito um teatro que também se usa objetos, para se fazer ela, se construir. A gente faz
Mística para derrubar o que está errado e levantar o que é certo e direito para todo o
mundo (SEM TERRINHA, Diário de Campo, 28/04/2009).
Traz consigo um vasto conjunto de significados, que perpassam as perspectivas
religiosas, geralmente atribuídas a este termo. A Mística é o elo que une as pessoas em prol
de uma causa comum e o desejo de se construir um caminho embasado na coletividade,
visando melhores condições de vida a todos os Sem Terra. Como vertente de
possibilidades de um caminho rumo ao futuro viável, a Mística aponta em direção a um
ideal, que não seja apenas uma obrigação, pois ninguém se comove se recebe ordens para
comover-se, comovem-se porque foram motivados em função de alguma coisa.
Mística é uma forma de mostrar para as outras pessoas o que precisa mudar para
melhor, aí a gente faz a Mística ensinando a eles o que está bom e o que está
ruim. Todo mundo fica prestando bem muita atenção quando tem Mística (SEM
TERRINHA, Diário de Campo, 28/04/2009).
Trata-se de uma prática educativa tida como princípio nas escolas e organizações
do MST. Uma prática social, que faz com que as pessoas se sintam bem em participar da
luta, trazendo consigo elementos que agregam mobilização e paixão a todos aqueles que
percorrem o caminho de luta pela terra, contribuindo para o estabelecimento do vínculo
reflexivo e ideológico, entre as pessoas envolvidas no ato.
4. A educação no e pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
O MST visa três grandes objetivos: a terra, a reforma agrária e uma sociedade mais
justa, esta ultima se concebe numa concepção de educação, como fundamental a este
processo.
La lucha por la tierra se transforma em lucha por la reforma agraria y, em
consecuencia, em um proyecto político de los trabajadores si estos ,em su lucha,
adquieren consciência social de que és necessário transformar la sociedad, y
cambiar la sociedad tienem que cambiar al estado. (STEDILE y MANÇANO
FERNANDES, 2002 apud MIRZA, 2006, p.105)
Durante toda a trajetória de luta e organização do MST, desde o seu surgimento,
foram aos poucos, tecendo-se uma concepção de educação, não se tratando apenas de uma
reinvenção da linha educacional tradicional, como também, de uma recuperação de
algumas matrizes pedagógicas desvalorizadas: Pedagogia do Trabalho, Pedagogia da
Terra, Pedagogia da História, Pedagogia da Organização Coletiva, Pedagogia da Luta
Social, Pedagogia da Práxis dentre outras.
Ao fazer uso de tais matrizes, o processo de formação humana vivenciado pela
coletividade Sem Terra em luta, torna-se uma grande matriz para se pensar lições de
pedagogia, que possibilitem qualificar esta intencionalidade educativa junto a um número
cada vez maior de pessoas. Pois com estes elementos, o desenvolvimento da formação
política, militante e ideológica torna-se mais fácil, uma vez que esta formação terá a
capacidade de buscar por conta própria, os elementos almejados para fortalecer sua prática.
Ou seja, construir o Projeto Político Pedagógico das escolas de Assentamento e
Acampamento do MST, significa trilhar uma opção coletiva do caminho político e
pedagógico que ela irá percorrer. Político, no sentido de saber que posição a instituição
educativa assume em relação às lutas sociais e ao tipo de humanidade que pretende ajudar
a formar e desenvolver, e pedagógico, no sentido da concepção de educação e de escola
que passa a orientar em seu cotidiano.
O projeto político pedagógico do MST mostra que a gente pode transpassar esses
conteúdos contidos em PPP para a Educação Infantil e trabalhar também, a
realidade no próprio assentamento, pegando uma visão mais ampla, uma visão de
mundo com a realidade do assentamento. A proposta do MST é modificá-lo e
aplicá-lo a realidade do campo. (Educadora Sem Terrinha, Diário de Campo,
04/05/2009)
Projeto este que orienta o educando, a partir de sua realidade social.
Começo mostrando a realidade do assentamento. O social, a família, a moradia.
Como foi que a criança, no caso o Sem Terrinha chegou aqui, como foi o
trabalho inicial. Começo da base para falar do mundo e a base é o assentamento.
(Educadora Sem Terrinha, Diário de Campo, 04/05/2009)
Visando formar a criança consciente dos seus direitos e da necessidade de luta e do
trabalho.
Tudo é muito importante. O encontro dos Sem Terrinha vai a trabalho e não para
brincar. Vai discutir uma questão política. Onde o Sem Terrinha vai crescendo e
vendo o direito que tem como cidadão. O professor tem que preparar a criança
para o que ela vai enfrentar. A gente mostra para criança o sentido do trabalho,
da luta. O papel da militância é a base da formação do Sem Terrinha. Eles têm
orgulho. Como cidadão deve valorizar a identidade do ser Sem Terra. A criança
se espelha muito na família e se ela tem espírito de luta, isso vem da família.
Existe uma obrigação na luta por parte da família e do professor. (Educadora
Sem Terrinha, Diário de Campo, 04/05/2009)
Trata-se da concretização de uma escola diferenciada das demais, que prima pela
autonomia de seus educandos, bem como o desenvolvimento da criticidade e opinião.
A principal diferença entre a escola do MST e as demais, é a gente ter liberdade
e o poder de dizer qual a nossa opinião, entendimento. Poder criticar, falar,
sugerir, propor. Esta é a principal diferença. Ter espaço para falar, para pensar,
ter esta autonomia dentro do Movimento. (Sem Terrinha, Diário de Campo,
28/04/2009).
Uma educação que desenvolva não apenas em seus educandos como também em
seus educadores, o valor da apropriação e produção séria de conhecimentos, onde através
destes, outros diversos tipos de conhecimentos sejam desenvolvidos, fazendo das questões
da realidade, a sua principal base de construção.
4. A construção das identidades campesinas – breve reflexões
Identidade em uma primeira aproximação parece ser alvo fácil de uma definição,
como aquilo que simplesmente se é. Sendo concebida desta forma, a identidade apresentase como uma característica independente, uma positividade (sou isto). Na mesma linha de
raciocínio e acordando com Silva (2008), a diferença também é concebida como uma
entidade independente. Neste caso, contrapõem-se a identidade, a diferença é aquilo que o
outro é e seguindo nesta perspectiva, auto-referenciada, remetendo-se a si própria. A
diferença e a identidade, inegavelmente existem.
Portanto, identidade e diferença são indissociáveis:
Quando digo “sou brasileiro” parece que estou fazendo referencia a uma
identidade que se esgota em si mesma. “Sou Brasileiro” – ponto. Entretanto, eu
só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não
são brasileiros. Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas
as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não
fariam sentido (SILVA, 2008, p. 75).
Igualmente, as afirmações sobre diferença só adquirem sentido se compreendidas
em sua relação com as afirmações sobre a identidade:
Dizer que “ela não é argentina”, “ela não é japonesa” etc., incluindo a afirmação
de que “ela não é brasileira”, isto é, que ela não é o que eu sou (...). Assim como
a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade
e diferença são, pois, inseparáveis (SILVA, 2008, p. 75).
Além de interdependentes, identidade e diferença é o resultado de atos de criação, o
que implica dizer que não são elementos da natureza, essências, que não são coisas que
simplesmente vaguem por aí esperando serem reveladas, descobertas, respeitadas ou
toleradas.
A identidade e a diferença tem que ser ativamente produzidas. Elas não são
criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo
cultural e social. Somos nós que a fabricamos, no contexto de relações culturais e
sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais (SILVA, 2008,
p. 76).
Trazendo a questão de identidade para os Movimentos Sociais, entendemos que ela
compreende o sujeito na sua permanente busca por reconhecimento no outro sujeito social.
Este sujeito que constrói sua identidade, afirma-se diante das múltiplas relações sociais. Ou
seja, como indicadora da perspectiva do movimento na sua relação com a sociedade, a
identidade lhe atribui significado. Portanto, o movimento procura-se firmar-se, como
sujeito socialmente existente.
Assim sendo, a identidade dos movimentos sociais não pode ser compreendida
de modo essencialista, mas relacional, onde a multiplicidade de significados das
várias esferas interage, fazendo o movimento. Em outras palavras, a identidade
não se encontra a partir de dentro dos movimentos, mas na trama que as relações
sociais de poder engendram nas representações derivadas das ações dos próprios
movimentos (LIMA, 1999, p. 62).
Diante do exposto, compreendemos que a construção da identidade, vai sendo
constituída na medida em que os atores sociais vão construindo as suas experiências
sociais, alinhando a estas, valores com ênfase política, social e cultural, concordando com
MENDES apud LAGE (2005), ao dizer:
Se a identidade é um sentimento de pertença que assenta em experiências e em
crenças partilhadas e nos constrói como sujeitos sociais articulados, com
discursos e práticas, tal como afirma José Manuel Mendes, então, a identidade
tem uma concepção dinâmica por ser socialmente distribuída, construída e
reconstruída nas interações sociais (MENDES, 2001: 490). De fato, a construção
da identidade tem um forte componente relacional que vai sendo formada na
medida em que o sujeito social vai construindo as suas experiências sociais
alinhadas com seus valores e com as narrativas políticas, sociais e culturais (p.
70).
É em meio ao cenário de luta firmadas pelo cotidiano que acontecem os processos
de vivência e interação entre os indivíduos, esculpindo personalidades e condutas que ao se
fundirem, estabelecem traços identitários, norteadores à idéia de grupo, caracterizando-os,
pois como afirma HALL (2006)
A identidade... Preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o
mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios”
nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus
significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos
sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social
e cultural. A identidade, então costura... o sujeito a estrutura. Estabiliza tanto os
sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente mais unificados e predizíveis (p. 12).
É justamente neste espaço, “terreno onde deverão germinar e crescer experiências
capazes de consolidar uma nova cidadania” (SPOSATI apud ANGELO, 2007, p. 606) que
a paixão, dedicação a luta e sentimento de pertença ao Movimento, se fortalecem.
5. Considerações finais
Retomando a pergunta inicial que se propunha, a saber, quais as principais práticas
orientadoras da Educação Infantil dentro dos Movimentos Sociais, apontamos como
principais práticas educativas norteadoras da Educação Infantil no interior dos Movimentos
Sociais do Campo de luta pela Reforma Agrária as Escolas Itinerantes, as Cirandas e a
Mística.
Escolas Itinerantes são as escolas em movimento, que atendem as necessidades
específicas das crianças e adolescentes oriundas de acampamentos e/ou assentamentos dos
Movimentos Sociais do Campo de luta pela Reforma Agrária. São Itinerantes porque
acompanham os acampamentos/assentamentos nas ocupações, marchas e caminhadas. Suas
aulas acontecem em todos os momentos e lugares, pois os/as educadores(as) atuam em
conjunto, sendo desafiados(as) constantemente pelas mais variadas situações que
encontram na itinerância e provocados(as) diariamente, a fazerem uso da criatividade,
solidariedade e alteridade para com seus educandos.
As Cirandas são práticas pedagógicas pensadas para as crianças dentro dos
Movimentos Sociais do Campo de luta pela Reforma Agrária. Nelas, o aprendizado da
criatividade e da cooperação, por meio de diversas estratégias pedagógicas é estimulado.
Estratégias estas munidas de brincadeiras, pois o estar brincando junto também desenvolve
a cooperação, tornando-se um exercício para que as crianças convivam em coletivo,
ajudando-se umas as outras, dividindo percepções e olhares. Recheadas de histórias,
músicas e danças, uma vez que a prática de ouvir as histórias, cantar e dançar as cirandas
proporciona nas crianças, o desenvolvimento de habilidades para melhor convivência em
grupo, tornando-as mais desenvoltas e livres em suas expressões corporais e orais.
A Mística é uma prática de caráter histórico desenvolvida pelos integrantes dos
Movimentos Sociais do Campo de luta pela Reforma Agrária. Através de representações
que seguem a linha teatral, expõem seus ideais e objetivos a todos aqueles que possuem
uma causa comum: a conquista da terra. São convidados a participar crianças, jovens e
adultos, todos unidos pelo desejo de mudança, almejando a construção de caminhos
embasados na união e coletividade, possibilitando melhores condições de vida a todos
aqueles que lutam por melhores condições de vida, por um espaço onde possam plantar e
erguer suas casas. Não apenas casas, sobretudo, lares, símbolos de lutas e vitórias.
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