Volume 5, Número 5, Ano 5, Março 2012
Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia
ISSN 1983-3946
PLATÃO COMO ORIGEM DO TOTALITARISMO
Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto 1
RESUMO: Este trabalho pretende encontrar em A República e O Político de Platão alguns
antecedentes do Totalitarismo: modificar a natureza humana e controlar totalmente a
população.
Palavras-chave: Totalitarismo, Platão, Filosofia política.
ABSTRACT: This work intends to find in The Republic and The Statesman of Plato some
antecedents of the Totalitarianism: to modify the nature human and total control of the
population.
Keywords: Totalitarianism, Plato, Political philosophy.
1 INTRODUÇÃO
Refletir o pensamento político contemporâneo sob a visão dos antigos gregos
parece, a primeira impressão, um anacronismo. Mas não é assim. Aristóteles, apesar das
limitações de sua época, contribuiu a desenvolver os conceitos da democracia e cidadania.
Neste trabalho pretende-se encontrar em A República e O Político de Platão
alguns antecedentes do Totalitarismo. No primeiro momento apresentamos a especificidade e
características do totalitarismo seguindo Hannah Arendt e, no segundo momento, alguns dos
argumentos para consolidar o governo do rei-filósofo em A República ou do pastor em O
político de Platão.
2 CARACTERÍSTICAS DO TOTALITARISMO
O totalitarismo é o governo que cria instituições políticas inteiramente novas
destruindo todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Este domínio pretende
eliminar todo fundamento da individualidade humana ao destruir as relações entre os
cidadãos. Por isso Hannah Arendt (1906-1975) afirma em Origens do Totalitarismo que a
finalidade deste domínio é transformar a natureza humana.
1
Doutor em Filosofia. Professor de Ética e Filosofia Política da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste)
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O Totalitarismo surgiu no século XX e é representado por dois governos: o
governo alemão de Adolf Hitler (1889-1945), líder do Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães (NSDAP), Partido Nazista ou Fascista e o governo de Josef Stalin
(1878-1953), Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética de 1924 até 1953.
a) Condições que originaram o Totalitarismo
O Totalitarismo como forma de domínio do século XX surge em uma sociedade
industrial de massa, um mundo internacional dividido e um avançado desenvolvimento da
tecnologia moderna:
- A industrialização contemporânea produz o ingresso das massas na política,
impondo um incremento decisivo da mobilização política. Ademais, este
desenvolvimento tende a produzir a desvalorização das instituições atomizando os
indivíduos. O Totalitarismo como forma extrema do despotismo moderno criou
coerções para toda a sociedade
- Com presença do imperialismo o s. XX o cenário internacional se mostrava
inseguro e ameaçador. A primeira guerra mundial e o armamentismo
transformaram países inteiros em enormes máquinas de guerra. A anarquia
internacional favorece um crescimento explosivo da penetração-mobilização,
especialmente nos países mais expostos aos perigos externos.
- A tecnologia moderna promoveu os instrumentos da violência, os meios de
comunicação de massa, os meios de transporte, as técnicas de organização, de
registro e de cálculo, as técnicas de vigilância e de controle das policias secretas.
b) Diferenças entre Totalitarismo Fascista e Totalitarismo Comunista
A ideologia comunista é um conjunto de princípios, coerente e elaborado, que
descreve e orienta para uma transformação total da estrutura econômico-social
da sociedade. A ideologia fascista ou nazista é um conjunto de idéias ou de
mitos, bem menos coerente e elaborado, que não prevê nem orienta para uma
transformação total da estrutura econômico-social da comunidade.
A ideologia comunista é humanística, racionalista e universalista: seu ponto de
partida é o homem e sua razão. A ideologia fascista é organicista,
irracionalista e anti-universalista: seu ponto de partida é a raça, concebida
como uma entidade superior ao indivíduo. Esta ideologia apresenta-se com um
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credo racista que trata com desprezo a idéia ética da unidade do gênero
humano.
A ideologia comunista afirma a bondade e a perfectibilidade humana, visa
instaurar uma sociedade de plena igualdade e liberdade. A “Ditadura do
proletariado” e a violência são instrumentos necessários, mas temporários,
para alcançar o comunismo. A ideologia nazista pressupõe a corrupção do
homem, visa instaurar o domínio absoluto de uma raça acima de todas as
outras. A ditadura, o Führerprinzip, e a violência são princípios permanentes
do governo, indispensáveis para dominar e liquidar as raças inferiores.
A ideologia comunista é revolucionária. É herdeira dos ideais do iluminismo e
da Revolução Francesa pretendendo dar um efetivo conteúdo sócio-econômico
revolucionando a estrutura da sociedade. A ideologia fascista é reacionária. É
herdeira das tendências mais extremas do pensamento contra-revolucionário
do século XIX: é irracionalista, racista e radicalmente antidemocrática. A
ideologia nazista com seus mitos teutônicos, o juramento pessoal perante o
chefe, a ênfase dada à honra, o sangue e a terra, voltam-se para o passado da
antiguidade.
c) O domínio total
O totalitarismo procura reduzir a infinita pluralidade e diversidade dos seres
humanos como se toda a humanidade fosse apenas um indivíduo. Isto é possível quando toda
e qualquer pessoa seja reduzida à mesma identidade de reações. Com este fim, criam-se os
campos de concentração e os campos de extermínio como laboratórios que comprovam a
crença fundamental de que “tudo é possível”, isto é, os campos de concentração procuram
fabricar uma espécie humana cuja única liberdade consista em preservar a espécie. Daqui, por
exemplo, as horrorosas experiências médicas dos campos de concentração relatadas nos
julgamentos contra os médicos do Terceiro Reich.
O domínio totalitário atinge seu objetivo pela doutrinação ideológica da elite
social e pelo terror absoluto nos campos de concentração.
O fanatismo dos altos escalões da elite, através da doutrinação ideológica, é
absolutamente essencial para o funcionamento do movimento nazi: nas pessoas exaltadas se
eliminam os interesses particulares produzindo uma mentalidade coletiva que confunde a
realidade. A propaganda ideológica e o controle da mídia são indispensáveis nesta
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doutrinação. A atitude da elite gradualmente toma conta de toda a população, cuja vida ou
morte depende, em seus menores detalhes, de decisões políticas.
d) Os campos de concentração
Não são somente centros para exterminar pessoas e degradar os seres humanos,
eles servem para eliminar a espontaneidade e a personalidade como expressões humanas.
Ainda que o isolamento do campo com o mundo exterior não proporcione a completa
compreensão do domínio totalitário, pode-se afirmar que o campo de concentração é a
instituição do poder organizacional totalitário.
- Na União Soviética, os campos de concentração eram para os cidadãos que se
enfrentavam ao regime de Stalin, para “os dissidentes”. O Gulag (Administração
Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias) era um sistema de
campos de trabalhos forçados na Sibéria e Ucrânia. Se distinguem três tipos de
campos no Gulag:
Campos de concentração dos condenados ao autêntico trabalho forçado, onde
se vive em relativa liberdade e as sentenças são limitadas.
Campos de concentração nos quais o material humano é impiedosamente
explorado e o índice de mortalidade é extremamente alto, mas que ainda assim
são organizados fundamentalmente para fins de trabalho.
Campos de aniquilação, onde os internos são sistematicamente exterminados
pela fome ou pelo abandono.
O verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no fato
de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, estão mais isolados do
mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao
esquecimento. No mundo concentracionário mata-se um homem tão
impessoalmente como se mata um mosquito.(ARENDT, 1989, p. 492).
- Na Alemanha de Hitler, os judeus e os “indesejados”: Testemunhas de Jeová,
eslavos, polacos, ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos e mentais,
foram perseguidos e exterminados originando o holocausto.
O plano de Hitler sobre “A solução final” da questão judaica foi: de imediato,
reduzi-los como uma minoria não-reconhecida na Alemanha; depois, expulsá-los como
apátridas; finalmente, reagrupá-los em todos os lugares em que passassem a residir para
enviá-los aos campos de extermínio.
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Segundo Arendt, os campos de concentração podem ser classificados em três tipos
correspondentes às três concepções ocidentais básicas de uma vida após a morte: o Limbo, o
Purgatório e o Inferno.
Ao Limbo correspondem aquelas formas relativamente benignas, que já foram
populares mesmo em países não-totalitários, destinadas a afastar da sociedade
todo tipo de elementos indesejáveis: os refugiados, os apátridas, os marginais e
os desempregados.
O Purgatório representado pelos campos de trabalho da União Soviética, onde
o abandono alia-se ao trabalho forçado e desordenado.
O Inferno representado pelos campos que os nazistas aperfeiçoaram e onde
toda a vida era organizada, completa e sistematicamente, de modo a causar o
maior tormento possível. (ARENDT, 1989, p. 495).
Mas não se faz muita distinção entre o Gulags (rede de campos de concentração
na URSS,) da Auschwitz-Birkenau (Polônia ocupada pela Alemanha nazi):
Não importava que a Rússia de Stálin fosse diferente da Alemanha de Hitler. A
embriaguez e a incompetência, tão comuns em qualquer descrição da Rússia dos
anos 20 e 30 e tão comuns ainda hoje, não representaram qualquer papel
importante na Alemanha nazista, enquanto a indescritível crueldade gratuita dos
campos de concentração e de extermínio alemães parece ter estado geralmente
ausente dos campos russos, onde os prisioneiros morriam de abandono e não de
tortura (ARENDT, 1989, p. 327).
e) Uma nova forma de dominação política
Não se pode confundir Totalitarismo com “Estado Autoritário de Ditadura
Monopartidária”. No regime totalitário, o governo procura controlar a vida privada de seus
cidadãos a ponto de torná-los, compulsoriamente, “reeducados” para passar o resto de suas
vidas sob o regime. Para conseguir este fim se cria o “terror totalitário”, no lugar das leis
positivas o terror do:
- Movimento da história, a história tem uma finalidade: o comunismo, que é a
extinção do Estado e da luta de classes (ideologia marxista-leninista-stalinista).
- Movimento da natureza, a natureza tem uma finalidade: o domínio da raça pura,
dos mais aptos para sobreviver, dos poderosos (ideologia nazista)
Nas ideologias totalitaristas, seguir o movimento da história ou da natureza livra de
obrigações morais com os outros, os militantes desta ideologia justificam assim seus atos:
Culpa e inocência viram conceitos vazios; “culpado” é quem estorva o caminho
do processo natural ou histórico que já emitiu julgamento quanto às “raças
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inferiores”, quanto a quem é “indigno de viver”, quanto a “classes agonizantes e
povos decadentes”. O terror manda cumprir esses julgamentos, mas no seu
tribunal todos os interessados são subjetivamente inocentes: os assassinados
porque nada fizeram contra o regime, e os assassinos porque realmente não
assassinaram, mas executaram uma sentença de morte pronunciada por um
tribunal superior (ARENDT, 1989, p. 514).
É um ambiente de terror ideológico e policialesco. As polícias secretas da
GESTAPO na Alemanha, a NKVD e a KGB na União Soviética agiam com eficiência e em
segredo produzindo terror entre os cidadãos. O terror totalitário procura “estabilizar” os
homens a fim de liberar as forças da natureza ou da história. O próprio movimento (a natureza
ou a história) seleciona os inimigos da humanidade, é contra estes que se desencadeia o terror.
Não se pode permitir que nenhum princípio ético interfira para com o “inimigo objetivo” da
História ou da Natureza, da classe ou da raça.
f) A propaganda é um instrumento fundamental
Hitler afirmava que era preferível ter um programa antiquado de que permitir uma
discussão de programa. Ele não gostava dos debates e declarou publicamente: “Quando
tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo. [...] O primeiro passo deverá ser uma
inconcebível onda de propaganda. Isto é, uma ação política que pouco teria a ver com os
outros problemas do momento” (Cf. ARENDT, 1989, p. 358).
A mentira é muito útil na propaganda ideológica: “Mentir ao mundo inteiro de modo
sistemático e seguro só é possível sob um regime totalitário, no qual a qualidade fictícia da
realidade de cada dia quase dispensa a propaganda” (ARENDT, 1989, p. 462).
g) Monopartidismo
No totalitarismo existe uma completa identificação do Estado com o Partido.
Após a tomada do poder, o Partido se torna uma espécie de organização de propaganda do
governo. O monopartidismo totalitarista apresenta uma rígida hierarquia exaltando o líder
com um “Culto à personalidade”, que engrandece suas virtudes e difunde positivamente sua
figura.
Afirma-se que o feitiço, fascínio ou estranho magnetismo que Hitler irradiava era
devido a que padecia de megalomania: uma doença patológica de superestima fanática sobre
si mesmo. O fascínio que Hitler deve ser definido em termos daqueles que o rodeavam:
A sociedade tende a aceitar uma pessoa pelo que ela pretende ser, de sorte que
um louco que finja ser um gênio sempre tem certa possibilidade de merecer
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crédito, pelo menos no início. Na sociedade moderna, com a sua falta de
discernimento, essa tendência é ainda maior, de modo que uma pessoa que não
apenas tem certas opiniões, mas as apresenta num tom de inabalável convicção,
não perde facilmente o prestígio, não importa quantas vezes tenha sido
demonstrado o seu erro. Hitler descobriu que o inútil jogo entre as várias
opiniões e a convicção de que tudo é conversa fiada podia ser evitado se se
aderisse a uma das muitas opiniões correntes com “inflexível consistência”
(ARENDT, 1989, p. 339).
3 PLATÃO COMO ANTECEDENTE DO TOTALITARISMO
Karl Popper (1902-1994), em A sociedade aberta e seus inimigos, focalizou que a
“sociedade fechada”, estática e hierárquica, tinha antecedentes na filosofia política de Platão:
A afirmação de que o programa político de Platão é puramente totalitário e as
objeções a essa afirmação [...] levaram-nos a examinar o papel desempenhado,
nesse programa, por idéias morais tais como as de Justiça, Sabedoria, Verdade e
Beleza, O resultado de tal exame foi sempre o mesmo. Verificamos que o papel
dessas idéias é importante, mas que elas não levam Platão além do totalitarismo
e do racismo. (POPPER, 1987, p. 100)
3.1. O Político: O pastor e o rebanho
O diálogo O político de Platão define a atividade política, utiliza-se o método
dialético com recursos do mito e da analogia. Esta obra é uma continuação do diálogo O
sofista, por isso estas obras apresentam os mesmos personagens principais: o Estrangeiro de
Eléia e o Jovem Sócrates.
ESTRANGEIRO — Assim se tu não te recusas, muito menos posso eu recusarme. Depois do Sofista, penso que devemos agora estudar o Político. Dize-me,
pois: devemos ou não colocar o Político entre os sábios?
JOVEM SÓCRATES — Sim. (PLATÃO, 1972, p. 208, 258b).
Platão recorre a duas imagens para definir o político: “o pastor político” e o
“tecelão real”. Vejamos brevemente como Platão apresenta estas analogias.
a) O pastor político.
A política desde seu início se fundamentou em mitos, fábulas, lendas etc. e fez
uso de termos extraídos das ciências naturais e práticas como medicina, engenharia, biologia e
atividades de comando como a navegação, pastoreio etc.:
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ESTRANGEIRO — “[...] Mas, voltando ao que se refere aos homens que, então,
não tinham preocupação alguma para viver, esta é a explicação: era o próprio
Deus que pastoreava os homens e os dirigia tal como hoje, os homens (a raça
mais divina) pastoreiam as outras raças animais que lhes são inferiores.
(PLATÃO, 1972, p. 226, 271e).
A atividade do político é parecida à atividade do pastor:
ESTRANGEIRO — Entre as muitas formas da arte de pastorear encontra-se
uma: a política, e vemos qual é o seu rebanho.
JOVEM SÓCRATES — Sim.
ESTRANGEIRO — A discussão não a conceituou como criação de cavalos ou
quaisquer outros animais, e sim como ciência que cuida de homens que vivem
em comunidade.
JOVEM SÓCRATES — Sim. (PLATÃO, 1972, p. 220, 267d).
As funções do pastor são análogas do rei:
ESTRANGEIRO — Uma coisa, porém, sabemos, e que ninguém negará, é que
isso também se estende ao criador de bois. É ele que alimenta o seu rebanho, é
ele o médico e só ele escolhe os coitos: tanto na procriação como no nascimento,
é o único parteiro competente. Na medida em que seus animais participam da
sedução da música, nenhum outro é mais capaz de acalmá-los e de consolá-los
por meio de sons. Sabe executar excelentemente a música de que seu rebanho
gosta, seja por intermédio de instrumentos, seja apenas pela voz. O mesmo
poder-se-ia dizer dos demais pastores, ou não?
JOVEM SÓCRATES — Claro.
ESTRANGEIRO — Mas, então, será tão certa e inatacável a nossa teoria sobre o
rei? Nós o consideramos como pastor e alimentador do rebanho humano,
dizendo que é ele mais importante do que 10 000 outros que pretendam sê-lo.
JOVEM SÓCRATES — De nenhum modo. (PLATÃO, 1972, p. 221, 268a-b).
Podemos perceber nestas analogias entre o pastor e o rei que:
a) Esta imagem “pastor-rebanho”, rei-povo, representa o poder do pastor perante
seu rebanho que é o povo considerado como gado, grei que se cuida e protege. A
imagem representa duas espécies naturais:
- “um” pastor (um homem, o regime monárquico) e;
- “o rebanho” (o povo apresentado como conjunto de animais), que precisa do
cuidado e atenção do pastor para viverem bem.
Esta analogia do pastor e seu rebanho encontram-se ainda hoje nas religiões
ocidentais. Por exemplo, nas igrejas o “pastor” conduz o “rebanho de fieis”; o cajado dos
pastores apresenta-se como o báculo nos bispos etc.
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b) “O pastor é o médico do rebanho”. O rei dá “receitas” ao povo, “amputa
membros” do corpo social, “os doentes são isolados” para não contaminar outros
etc., estas medidas são atribuições do governante, pois só “ele sabe” restaurar a
“saúde” e vigor do povo.
c) “Só ele (o pastor) escolhe os coitos”. Assim como o pastor seleciona os
melhores da espécie para acasalar e aprimorar o rebanho, analogamente o
governante deve intervir até nos casamentos, promovendo uma seleção genética
do povo, para aprimorar os membros da pólis.
d) “Seus animais participam da sedução da música, nenhum outro é mais capaz de
acalmá-los e de consolá-los por meio de sons”. A retórica do governante
apresenta-se como a “música” do pastor. O governante deve saber usar a retórica
para seduzir e acalmar os indivíduos da pólis. O controle dos meios de
propaganda e “o culto da personalidade” apresentam-se como elementos
imprescindíveis de qualquer tirania e do totalitarismo.
e) “Nós o consideramos como pastor e alimentador do rebanho humano, dizendo
que é ele mais importante do que 10 000 outros que pretendam sê-lo”. Justificamse os privilégios dos reis ou príncipes por exercer as tarefas mais nobres entre os
humanos: a atividade política. Ainda na democracia pretendem-se justificar os
privilégios de seus representantes políticos, estas regalias devem ser denunciadas
constantemente pela liberdade de imprensa, pois contribui com a transparência
dos gastos e funções dos políticos.
b) O paradigma da tecedura
Outra analogia que utiliza Platão para definir o político é com o artesão que
elabora os tecidos:
ESTRANGEIRO — Não gostaríamos de utilizar nosso paradigma de tecedura
para explicar, por sua vez, a política, agora que possuímos uma visão clara de
todos os gêneros contidos na cidade?
JOVEM SÓCRATES — Certamente.
ESTRANGEIRO — Nesse caso, é a função real de entrelaçamento que é
necessário descrever, ao que parece: sua natureza, sua maneira de entrelaçar, e a
qualidade do tecido que ela assim nos oferece. (PLATÃO, 1972, p. 234, 279a-b).
Com efeito, a arte da tecedura, da construção de cobertas, mantas e vestimenta nos
preserva do frio do inverno, fabricando defesas de lã. O tecedor de lã:
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ESTRANGEIRO — Eis, pois, a parte da tecedura que nos interessava,
perfeitamente compreensível daqui por diante. Quando a operação de reunião,
que é a parte do trabalho da lã, entrelaçou a urdidura e a trama, de maneira a
formar um tecido, damos, ao conjunto do tecido, o nome de vestimenta de lã, e, à
arte que o produz, o nome de tecedura.
JOVEM SÓCRATES — Muito bem.
ESTRANGEIRO — Bem, mas então por que não dizer logo: „A tecedura é a arte
de entrelaçar a urdidura e a trama‟ em lugar de fazer tantos rodeios e um acervo
de distinções inúteis? (PLATÃO, 1972, p. 238, 283a-b).
O político como tecedor sabe unir o povo utilizando a trama e a urdidura,
estratégias e planos para unir as diversas classes sociais protegendo-os de invasores. O
político conhece a natureza humana e sabe fazer, através de retórica, uma sociedade estável e
homogênea, como o tecelão que produz produtos.
Também, neste diálogo aparece novamente a comparação do político com o
médico, um médico serve para curar muitos doentes, a melhor forma de governo é de um ou
de poucos governantes:
ESTRANGEIRO — Tens razão em lembrar-me. A conclusão, pois, ao que me
parece é de que a forma correta de governo é a de apenas um, de dois, ou de
quando muito alguns, se é que esta forma correta possa realizar-se.
JOVEM SÓCRATES — Claro. PLATÃO, 1972, p. 249, 293a)
Ademais, os governantes estão isentos de obedecer às leis do Estado:
ESTRANGEIRO — E quer governem a favor ou contra a vontade do povo; quer
se inspirem ou não em leis escritas; quer sejam ricos ou pobres, é necessário
considerá-los chefes, de acordo com o nosso atual ponto de vista, desde que
governem competentemente por qualquer forma de autoridade que seja. Assim
como aos médicos, quer nos curem contra ou por nossa própria vontade, quer nos
operem, cauterizem ou nos inflijam qualquer outro tratamento doloroso, quer
sigam regras escritas ou as dispensem, quer sejam pobres ou ricos, não hesitamos
absolutamente em chamá-los médicos, bastando para isso que suas prescrições
sejam ditadas pela arte; que purificando-nos ou diminuindo nossa gordura por
qualquer modo, ou, ao contrário, aumentando-a, pouco importa, eles o façam
para o bem do corpo, melhorando seu estado, e que, como médicos, assegurem a
saúde dos seres que lhes são confiados. Essa é, a meu ver, a única maneira de
definir corretamente a medicina e qualquer outra arte. JOVEM SÓCRATES —
Certamente. (PLATÃO, 1972, p. 249, 293a-b)
A finalidade do médico é devolver a saúde, a finalidade do político é proteger o
povo. O político, como médico do povo, sabe devolver a vitalidade do povo e, evita
excessivos sofrimentos no povo com medidas e intervenções que ele considera apropriadas.
O político, como o médico, “quer siga regras escritas ou as dispense” é flexível
com respeito às leis. Em realidade, o político está por acima das leis, ele as elabora. Deste
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modo, o político, perante o povo doente, faz todos os esforços e utilizará qualquer ato para
salvar a vida do povo, ainda poderá mutilar ou sacrificar alguns de seus membros.
Nestas analogias do Político de Platão, podemos perceber que o político como
pastor, tecedor e médico (o povo como rebanho, material para trama e urdidura e, doente) é
um antecedente das formas de governo autoritárias, até totalitárias, sem nenhum traço
democrático.
3.2 A República: a política do rei-filósofo
A República ou da Justiça é considerada a obra-prima de Platão e no livro VII
encontra-se a celebérrima “alegoria da caverna”.
Neste diálogo se trata de conceber a pólis regida pela justiça, descreve-se a forma
de sociedade mais estável e feliz, onde o “rei-filósofo” deve governar.
Platão concebe uma heterogeneidade na natureza humana, entre os homens
existem diferentes naturezas ou aptidões.
SÓCRATES — Não somos iguais por natureza, mas nascemos com disposições
diferentes, cada um com mais jeito para determinado trabalho, não te parece?
ADIMANTO — É também o que eu penso.
SÓCRATES — E então? Como fará alguém trabalho mais perfeito: aplicando-se
ao mesmo tempo a muitas atividades ou dedicando-se apenas a uma?
ADIMANTO — Apenas a uma, respondeu. (PLATÃO, 2000, p. 111, 370b).
A origem da diferenças entre os homem é devido a que em cada um predomina
uma das partes da alma. A alma é constituída por três partes:
a) Parte concupiscível. As baixas paixões onde se localizam os sistemas digestivo,
urinário e reprodutor. Esta parte proporciona os prazeres do sexo, dos alimentos e
das bebidas. Os prazeres que proporciona são intensos, mas efêmeros.
b) Parte irascível. Onde está o coração; órgão que representa a ira, a cólera que
permite “não desistir” quando empreendemos uma tarefa ou luta. Os prazeres que
proporciona está parte da alma são a vitória e o triunfo nas lutas, combates e
guerra.
c) Parte racional. Localizada na cabeça, a parte do corpo humano mais distante da
terra e mais perto do céu, permite elaborar as teorias filosóficas e contemplar as
formas. São os prazeres mais duradouros e úteis para nossa vida.
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A diversidade de caracteres e atividades entre os homens é originada pela
predominância de uma parte de suas almas. Os camponeses e artesãos são
determinados pelo predomínio da parte concupiscível da alma. Os guerreiros e os
jogadores são determinados pelos prazeres da parte irascível de sua alma. Os
filósofos, os reis-filósofos possuem a predominância da parte racional da alma.
Pela justiça, as partes da alma devem ser comandadas pela parte racional que
determina os limites da parte irascível e concupiscível, assim a parte racional
origina a estabilidade e tranquilidade da alma. Instalada a hierarquia na alma, na
sociedade se determina a hierarquia social: o rei-filósofo deve governar os
guerreiros e os dominados pelas baixas paixões da alma. Os guerreiros ajudam o
rei-filósofo a controlar os apetites e desejos dos numerosos concupiscíveis (o
povo). A classe guerreira e de filósofos não estavam presentes na origem da
sociedade porque não eram indispensáveis, posto que, todos os homens eram
sadios, semelhantes e satisfaziam apenas suas necessidades básicas.
Ao procurar a origem da justiça, Platão concebe que os indivíduos originam a
pólis porque “têm necessidade uns dos outros” (369b-c). Assim a pólis surge para
satisfazer necessidades básicas entre os homens.
Ao ampliar-se a cidade, surge a “pólis de prazer”, pela introdução de necessidades
“artificiais” que originam uma pólis luxuosa e doente (372e). Por exemplo, os
produtos dos padeiros e boleiros seduzem o gosto, o olfato e o visual da gente,
originando doenças pela má alimentação. Está pólis “artificial” necessitará de
guerreiros-guardiões, controladores, que não existiam na origem, “pois se baseava
na satisfação das necessidades essenciais dos homens” (373d).
“Os guardiões devem ser como os cães de raça”, ferozes com os desconhecidos e
obedientes e fiéis com os donos (os governantes) (374e). A formação dos
guardiões exige uma educação (376c). A educação apresenta-se não como
problema menor: o exame da questão educacional poderá determinar a causa da
justiça e da injustiça na pólis (376c-d)
Os guardas devem ser educados através da ginástica para o corpo e música para a
alma (376e). De tal modo que, desde crianças, esta classe deve ser educada: 1º na
música, depois, na ginástica.
As primeiras atividades, inspiradas pelas Musas: são fábulas e relatos. As crianças
devem escutá-las desde a mais tenra idade. Esses relatos são selecionados com
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muita diligência: contenham os valores que os governantes julguem convenientes
(377b-c).
O comunismo platônico apresenta-se na vida dos guardas, se elimina a
propriedade privada: todas as mulheres são para todos os homens e os filhos são
de todos os adultos. Toda a classe guerreira converte-se numa grande família,
unida por laços sanguíneos:
Todas as mulheres dos nossos guerreiros pertencerão a todos: nenhuma delas
habitará em particular com nenhum deles. Da mesma maneira, os filhos serão
comuns e os pais não conhecerão os seus filhos nem estes os seus pais.
(PLATÃO, 2000, p. 239, 457d).
Depois de estabelecida a pólis, conforme a cidade mais perfeita, estável e feliz,
Platão apela para a censura e controle absoluto dos membros da cidade, com o fim de manter
essa ordem.
a) Educação com censura
Para extirpar-se a injustiça da polis é necessário mudar os textos com os quais se
tem educado sempre na Grécia. Não se permitirá que as crianças escutem os relatos que
contêm mentiras, opiniões e valores contrários aos que se espera deles no futuro. A vida como
desenvolvimento, como fruto das sementes plantadas, A educação que se recebe na mais tenra
idade é “indelével e dificilmente erradicável” (378e), numa passagem da República se
comenta que Hesíodo e Homero contam mentiras:
SÓCRATES — Portanto, parece-me que precisamos começar por vigiar os
criadores de fábulas, separar as suas composições boas das más. Em seguida,
convenceremos as amas e as mães a contarem aos filhos as que tivermos
escolhido e a modelarem-lhes a alma com as suas fábulas muito mais do que o
corpo com as suas mãos. A maioria das que estão presentemente em voga deve
ser rejeitada.
ADIMANTO — Quais?
SÓCRATES — Julgaremos as pequenas pelas grandes, porquanto umas e outras
devem ser calcadas nos mesmos moldes e produzir o mesmo efeito; concordas?
ADIMANTO — Concordo. Porém não compreendo quais sejam essas histórias
grandes a que te referes.
SÓCRATES— As que Hesíodo e Homero nos deixaram e outros poetas, pois são
eles os autores das fábulas mentirosas que então contavam aos homens e ainda
contam. (PLATÃO, 2000, p. 123, 377d).
Na pólis científica, estável e feliz governada pelo rei-filósofo não se incentivam
leituras como a Teogonia de Hesíodo nem a Ilíada e Odisséia de Homero. A censura justificase porque estas obras narram mentiras sobre as divindades.
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b) Controle de natalidade e eugenia
Platão considera que o rei-filósofo deve controlar os casamentos visando melhores
descendentes para a pólis:
SÓCRATES — E então evidente que, depois disto, celebraremos casamentos tão
sagrados quanto pudermos. E os mais sagrados serão os mais vantajosos.
GLAUCO — Sem dúvida.
SÓCRATES — Mas como serão os mais vantajosos, Glauco?
Vejo na tua casa cães de caça e um grande número de nobres aves. Por Zeus!
Prestaste alguma atenção às suas uniões e à maneira como procriam?
GLAUCO — Que queres dizer?
SÓCRATES — Em primeiro lugar, entre esses animais, embora todos sejam de
boa raça, não existem aqueles que são ou se tomam superiores aos outros?
GLAUCO — Existem.
SÓCRATES s — Pretendes ter filhotes de todos ou só te interessa ter dos
melhores?
GLAUCO — Dos melhores. (PLATÃO, 2000, p. 241, 459a)
Como o criador de animais seleciona os melhores da espécie para a obtenção do
melhor rebanho, o rei-filósofo intervém no casamento dos jovens da pólis para possuir uma
cidade sadia e vantajosa:
SÓCRATES — De acordo com os nossos princípios, é necessário tornar as
relações muito freqüentes entre os homens e as mulheres de elite, e, ao contrário,
bastante raras entre os indivíduos inferiores de um e outro sexo; além do mais, é
necessário educar os filhos dos primeiros, e não os dos segundos, se quisermos
que o rebanho atinja a mais elevada perfeição: e todas estas medidas deverão
manter-se secretas, salvo para os magistrados, a fim de que, tanto quanto
possível (PLATÃO, 2000, p. 242, 459e)
O rei-filósofo faz uso de secretos, mentiras e enganos: “é possível que nossos
governantes se vejam obrigados a empregar largamente a mentira e o engano para o bem dos
governados; e já afirmamos que tais práticas eram úteis sob a forma de remédios” (PLATÃO,
2000, p. 242, 459d).
O rei-filósofo pode inventar sorteios, concursos com o fim de acasalar os
melhores da pólis:
SÓCRATES — Organizaremos uma engenhosa modalidade de sorteio, para que
os indivíduos medíocres que forem recusados acusem, a cada união, a sorte, e
não os magistrados.
GLAUCO — Perfeitamente (PLATÃO, 2000, p. 243, 460a).
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O rei-filósofo legislara sobre os casamentos:
SÓCRATES — A mulher parirá para a cidade dos vinte aos quarenta anos; o
homem gerará para a cidade até os cinquenta e cinco anos.
GLAUCO — Realmente, tanto para um como para outro, é o período de maior
vigor do corpo e do espírito. (PLATÃO, 2000, p. 244, 460e).
Com esta legislação sobre os casamentos se controla a população e a eugenia da
pólis. Aqueles filhos que nasçam sem conhecimento do rei-filósofo são rejeitados:
SÓCRATES — Assim, se um cidadão, mais velho ou mais novo, se imiscuir na
obra comum de procriação, nós o declararemos culpado de impiedade e injustiça,
pois fornece ao Estado um filho cujo nascimento secreto não foi colocado sob a
proteção das preces e sacrifícios que as sacerdotisas, os sacerdotes e toda a
cidade oferecerão para cada casamento, a fim de que de homens bons nasçam
filhos melhores, e de homens úteis, filhos ainda mais úteis; tal nascimento, ao
contrário será considerado fruto das trevas e da libertinagem.
Glauco — Está certo.
Sócrates — A mesma lei será aplicada àquele que, ainda na idade da formação,
tocar numa mulher também nessa idade, sem que o magistrado os tenha unido.
Declararemos que um homem assim introduz na cidade um bastardo cujo
nascimento não foi nem autorizado, nem santificado. (PLATÃO, 2000, p. 244,
461a).
Podemos perceber que na República de Platão se expõe uma sociedade que possui
como modelo a “forma de pólis”, uma sociedade “científica” a mais justa, estável e feliz.
Nessa pólis duradoura apresentam-se o traço característico do totalitarismo: a modificação da
espécie humana.
Na classe dos guerreiros: o comunismo elimina totalmente a propriedade
privada, criando laços familiares entre todos os guerreiros. O objetivo desta
classe marcial é a vigiar o rebanho e vencer nas guerras.
A educação da criança da classe guerreira, a única a ser educada na pólis,
possui uma censura: determinada música, leitura, fala apropriada na classe sem
propriedade privada etc.
As leis do casamento procuram a eugenia, o controle genético, visando a
melhor classe guerreira.
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REFERÊNCIAS
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BOBBIO, N. Dicionário de Política. Brasília: UNB, 1994.
__________ Teoria geral da política, a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de
Janeiro: Campus, 2000.
PLATÃO. Diálogos: O banquete - Fédon- Sofista - Político. São Paulo: Abril Cultural,
1972.
________ A república ou sobre a justiça. Belém, EDUFPA, 2000. 3ª edição, tradução
Benedito Nunes.
POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
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platão como origem do totalitarismo