A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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AGRADECIMENTOS
Agradecimentos sinceros à orientadora desta dissertação, Professora Doutora
Maria da Conceição Carrilho, por aceitar e incentivar as minhas propostas, pela
prontidão e constante motivação dispensadas ao longo destes tempos. Foi sempre
com atenção, disponibilidade, com a sua enorme capacidade de intervenção e boa
disposição que acompanhou a concretização do trabalho, partilhando os seus
inúmeros conhecimentos, facultando bibliografia, apoiando-me, nomeadamente nos
momentos de maior desalento.
Aos meus pais pela solidariedade, compreensão e apoio em todas as
ocasiões.
Aos meus amigos, pelas palavras de incentivo e pela paciência. Saliento,
particularmente, o apoio incondicional das minhas amigas Teresa Alexandra e Ana
Soares (que colaborou gentilmente, fazendo o desenho da segunda capa que
acompanha este trabalho).
Às minhas colegas da terceira edição do Mestrado em Língua e Literatura
Francesas, que me aconselharam a nunca desistir.
Deixo, também, uma evocação aos meus gatos, animais que aprecio
particularmente, que foram os meus companheiros nos momentos mais solitários da
escrita da minha dissertação, ou enrolados aos meus pés ou deitados numa cadeira,
a meu lado, absortos no seu sono e nos seus sonhos.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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ÍNDICE
Pág.
Índice ......................................................................................................................
2
Introdução ............................................................................................................
4
Capítulo I
Daniel Pennac: um breve retrato.
1- O professor.....................................................................................................
10
2- O romancista moderno....................................................................................
15
Capítulo II
1- A Fábula – uma definição do género..............................................................
21
1.1 – O papel de La Fontaine .........................................................................
24
1.2 –“Le Loup et l’Agneau”- de Esopo e de La Fontaine – uma análise......
31
2- A Fábula em Daniel Pennac - L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche: romancefábula?..................................................................................................................
43
2.1- A presença da oralidade .........................................................................
45
2.2- Espaço e tempo
2.2.1- O presente e o passado – a aventura picaresca dos heróis.............
52
2.2.2- Espaço aberto=liberdade
Espaço fechado=clausura.....................
63
2.3- A dimensão utópica de L’Oeil du loup e Cabot-Caboche.......................
70
2.3.1- O Sonho............................................................................................
74
2.3.2- O riso................................................................................................
77
2.3.3- A comunicação ideal pelo silêncio e o olhar......................................
79
2.3.4- A conquista amorosa.........................................................................
86
2.4- Sátira e moralidade – a humanização dos animais e a animalização dos
homens.
2.4.1- A sátira..............................................................................................
92
2.4.2- A moralidade....................................................................................
100
Capítulo III
1- A fábula moderna e a paródia
1.1-
A fábula no Século XX .........................................................................
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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1.1.1- « Le Loup attendri», de Jean Anouilh – uma fábula moderna/uma
paródia..........................................................................................................
109
Conclusão...........................................................................................................
120
Bibliografia..........................................................................................................
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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INTRODUÇÃO
“L’homme construit des maisons parce qu’il est vivant,
mais il écrit de livres parce qu’il se sait mortel.
Il habite en bande parce qu’il est grégaire,
mais il lit parce qu’il se sait seul »
(Daniel Pennac, Comme un Roman, p. 175)
Daniel Pennac, o autor que nos propomos estudar, situa-se entre os
escritores contemporâneos mais lidos em França, mas também no estrangeiro, onde
as suas obras atingiram um êxito singular.
Críticos e leitores são unânimes em considerar que, embora herdeiro de uma
tradição clássica, Pennac tornou-se um autor moderno por excelência, pois aborda
temas actuais, com profundidade e ao mesmo tempo com um humor muito próprio,
chegando a ser desconcertante. O escritor recorre a uma linguagem marcadamente
oral e a técnicas narrativas que o levaram a grangear um sucesso estrondoso, com
maior incidência nos leitores mais jovens.
Apesar de ser um escritor audacioso, Daniel Pennac é, igualmente, marcado
pelas linhas da literatura clássica, denotando-se heranças do romance do século
XIX. Veja-se, a título de exemplo, a saga familiar - Saga Malaussène - que retoma
temas da tradição, presentes em Balzac e Zola; veja-se, ainda, a série de traços do
romance realista, com detalhes da vida quotidiana, ao jeito de Flaubert e, também,
características do romance popular, no qual os heróis vivem fatalidades passageiras.
O escritor abarca, na sua produção, vários géneros, o que o torna fascinante e
possibilita abordagens e estudos diversificados, acompanhando, assim, o debate
sobre a questionação dos géneros, a que se tem assistido ao longo do século XX,
debate esse iniciado já no século XIX.
O prefácio de Pierre et Jean (1888), de Guy de Maupassant1, é disto um claro
exemplo, dado que este escritor se interroga sobre o que une romances tão
diferentes como D. Quixote ou Le Rouge et le Noir; Le Conte de Monte Cristo ou
1
« (…) Si Don Quichote est un roman, Le Rouge et le Noir en est-il autre? Si Monte Cristo est un
roman, L’Assomoir en est-il autre ? Peut-on établir une comparaison entre les Affinités électives de
Goethe, Les Trois Mousquetaires de Dumas, Madame Bovary de Flaubert, M. de Camors de M.O.
Feuillet et Germinal de Zola ? Laquelle de ces œuvres est un roman ? Quelles sont ces fameuses
règles? D’où viennent-elles ? Qui les a établies ? En vertu de quel principe, de quelle autorité et de
quels raisonnements ? »
Excerto do Préface de Pierre et Jean (Ollendorf, 1888)
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L’Assomoir. A dificuldade de encontrar respostas claras às questões ”O que é um
romance?” ou ainda “Quais são as suas regras?” faz deste ensaio um documento
incontornável. No entanto, apesar desta dificuldade, Maupassant propõe que o
romance seja um domínio privilegiado de observação e transformação do real, isto
é, o “Espelho da Sociedade”: “Le réaliste, s’il est un artiste, cherchera, non pas à nous
montrer la photographie banale de la vie, mais à nous en donner la vision la plus complète,
plus saisissante, plus probante de la réalité même.”2
Com V. Hugo e Emile Zola, o romance passa a ser visto como uma descrição
enciclopédica do real. Por isso, dá-se importância ao encadeamento lógico e
cronológico dos acontecimentos. Os episódios têm sequência, o presente é
explicado a partir do passado, preparando o futuro. Este aspecto, abandonado por
alguns autores do século XX, nomeadamente os que abraçaram o “nouveau roman”,
manter-se-á com Pennac, como veremos ao longo do trabalho.
De Balzac a Zola, de Zola a Proust, de Proust a Sartre, de Sartre a Butor, o
romance vai-se transformando e é constantemente questionado. Muda de temas, de
procedimentos e de propósitos. As suas formas sucessivas relacionam-se
estreitamente com as transformações da sociedade mas, também, com as outras
formas de arte: a pintura, a escultura, o cinema, a música, entre outros.
No século XX, e embora se esteja sempre a profetizar o seu fim, o romance é
despertado por um novo espírito poético e absorve muitos outros géneros, que se
entrelaçam de tal forma que, por vezes, é difícil estabelecer uma fronteira entre eles.
O romance converte-se no género desejoso de abarcar todas as experiências
humanas e desenvolve-se em várias direcções: ora vive uma extrema atenção ao
mundo exterior, ora faz uma análise ao pormenor do íntimo do ser humano (explora
ideias, sentimentos...).
Para a evolução e questionação do romance do século XX contribuíram, de
forma particular, James Joyce (1882-1941) e Franz Kafka (1883-1924), não só pelas
temáticas abordadas mas, sobretudo, pela forma como se serviram dos seus
romances para mostrar aos leitores e ao mundo aquilo que os “atormentava”.
2
O prefácio referido romance foi retirado do site:
www.ac-orleans-tours.fr/lettres/coin_prof/realisme/preface_de_pierre_et_jean.htm,
Aqui Maupassant enuncia algumas das balizas por que se pauta a sua produção e, ainda que no
quadro do realismo, deixa antever as suas propostas.
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Em Ulisses, à grandeza totalizadora e à concepção épica da existência
presentes em Homero, Joyce contrapõe, pela paródia, a banalidade e a monotonia
do quotidiano. Bloom, o herói (Ulisses), é um homem ordinário, traído por uma
Penélope infiel (a sua esposa Molly). Este romance aponta a falta de sentido para a
vulgaridade do nosso tempo. Segundo os críticos, James Joyce serve-se de uma
multiplicidade de estilos e procedimentos retóricos (usa várias línguas, mistura
linguagem culta e gíria, recupera arcaísmos, cria neologismos, inventa trocadilhos) e
inova nas técnicas de escrita (narração convencional, paródias de linguagem e
sobretudo a inserção do monólogo interior), trazendo para o género romance novas
formas.
Franz Kafka, apontado por muitos como um escritor angustiado, cuja vida foi
orientada e iluminada pela escrita, deixou registada, na sua obra, uma incomparável
e inquietante cristalização dos sofrimentos do homem contemporâneo. A
Metamorfose (1913), O Processo (1914) e O Castelo (1921) podem ser concebidas
“fábulas” com um significado simbólico, onde sobressai igualmente o fantástico e
onde se tratam temas como o sentimento de angústia do indivíduo, que se encontra
perdido num mundo sem explicação, desumano, regido por não se sabe quem, um
mundo que submete, condena ou destrói o homem. Kafka inaugura uma forma
moderna e mesmo radical de escrita: a literatura pura, denotando-se a justaposição
de registos (ironia e paródia, piedade e horror, lucidez e confusão progressiva). Em
A Metamorfose mostra-se a dualidade homem-animal vivida pelo protagonista, que
se vê transformado em insecto, mas que continua com a lucidez e a consciência
humanas.
Nas mudanças operadas, sobretudo ao nível da prosa3, os escritores
preferiram revolucionar as formas do romance de modo individualizado. Assim, na
literatura francesa, André Gide (1869-1951) renova o romance psicológico, pelas
análises profundas, fazendo coincidir a sua experiência pessoal com as situações
que cria para as personagens das suas ficções. Gide deixou às gerações futuras
uma obra moderna e única, complexa e intencionalmente inesgotável. De Paludes a
3
Verificaram-se igualmente transformações no género lírico, que esteve muito mais ligado a
movimentos de vanguarda. A título de exemplo, refiramos o “dadaísmo”, movimento que, ainda que
efémero (1916 a 1921), se afirmou como um protesto contra a civilização que provocara os conflitos,
ou seja a guerra. Este movimento rejeita as formas culturais padronizadas, propõe a destruição da
linguagem literária, porque se descrê nas possibilidades de comunicação da literatura. O “dadaísmo”
é uma espécie de “grito romântico” contra a sordidez do mundo.
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Ainsi soit-il, a sua obra é marcada pela desordem, irónica e salubre. Focando
apenas alguns casos: em Paludes (1895), e tal como Pennac fará em muitos dos
seus romances, Gide revela o seu interesse pelo processo de fabricação da obra;
Caves du Vatican (1914) é uma obra paródica e lúdica, onde se cruzam romance e
teatro, encontrando-se traços de farsa, de moralidade medieval e de comédia
barroca. Ao mesmo tempo, Gide subverte o romance balzaquiano, o romancefolhetim e o romance negro, misturando realismo e fantasia, lógica e “nonsense”.
Les Faux-Monnayeurs (1926) inclui um romance dentro do romance, denotando-se
características do romance-folhetim, do policial e do romance de ideias, em que
existem tantos narradores quantas personagens, sendo que Gide recorre à
focalização desmultiplicada e à apresentação indirecta dos factos.
Estamos perante um dos escritores de vanguarda da literatura francesa, tal
como Céline, Malraux, Camus e Sartre que, para além de se questionarem sobre o
romance e os outros géneros, também se tornam “militantes”/homens de acção e,
através do romance, demonstram a sua inquietação, angústia, pessimismo social e
metafísico, desejando a transformação das estruturas da sociedade em que o
homem é obrigado a viver, onde predomina o absurdo que se tenta combater. JeanPaul Sartre, escritor e filósofo, aborda nos seus romances conceitos como a
consciência, a existência, a angústia e a liberdade; as obras de Albert Camus –
jornalista, ensaísta, dramaturgo, novelista e romancista – distribuem-se por três
principais temas, inerentes ao lado negativista da vida: o absurdo4, a revolta5 e a
solidão6.
Os romances mencionados, que são apenas alguns exemplos, reflectem
orientações estéticas determinadas, marcantes em todos os escritores dos finais do
século XX. Daniel Pennac não é uma excepção e, entre toda uma série de
influências na literatura Francesa, Céline é o nome que mais se destaca. A
linguagem oral, as temáticas realistas, o grotesco, a cidade de Paris, eis alguns dos
temas herdados de Louis F. Céline. Todavia, para lá de todas estas influências, o
policial é um dos que mais influenciou este escritor. No romance policial, Daniel
Pennac encontra os arquétipos do romance popular que o orientarão, de uma forma
decisiva, para a reescrita da fábula.
4
L’étranger, Caligula, Le Mal Entendu.
La Peste, L’Etat de Siège, L’Homme Révolté.
6
La Chute, L’Exil et le Royaume, Le Premier Homme.
5
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Com efeito, é da confluência de vários géneros que nasce a obra de Pennac:
o ensaio, a literatura infanto-juvenil, a banda desenhada, o teatro, o policial, o
romance, todos estes géneros têm pontuado sua carreira literária. Desta diversidade
e inter-relação de géneros, o policial é o eixo central de toda a sua obra romanesca,
que alimentou a saga Malaussène.
Face a esta diversidade, como classificar os romances de Pennac?
Entre o policial e o popular, o fantástico, a fábula, a sátira, o maravilhoso,
podemos atribuir a Daniel Pennac um “hibridismo literário”, que é talvez a marca
mais moderna e específica do seu estilo.
No entanto, de forma a não nos deixarmos cair nesta tentação do “hibridismo
literário”, vamos, neste nosso trabalho, tentar clarificar alguns dos eixos que nos
parecem mais interessantes na obra de Pennac. Partiremos de um estudo de CabotCaboche (1982) e L’Oeil du Loup (1984), livros classificados como literatura infantojuvenil, de forma a estudarmos uma linha concreta – a fábula.
Em Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup - mas também nos contos da série Kamo
e mesmo nos seus outros romances, aos quais nos referiremos sempre que
julgarmos oportuno - pareceu-nos encontrar traços bastante marcantes do género
fábula. A nossa escolha recai precisamente nos dois romances para crianças e
jovens, anteriormente referidos, porquanto consideramos haver uma aproximação
muito grande da escrita pennaquiana a este género.
A leitura e releitura destas obras de Pennac colocaram-nos perante algumas
interrogações: Fábula, no século XX? Que tipo de fábula? De onde decorrerá a
proximidade da escrita de Pennac ao género fábula? Esta aproximação decorrerá do
facto de se destinarem a um público infantil? Da forte presença da oralidade, uma
das características da fábula? Da presença de um universo maniqueísta, de
carrascos e vítimas, fortes e fracos, perseguidores e perseguidos, devoradores e
devorados? Do eixo satírico que, como acontece também nas fábulas, é muitas
vezes indissociável de uma dimensão utópica? Ou esta aproximação terá sido
também desencadeada pela forte dimensão moral e pedagógica, sempre presente
no universo fabulístico?
O presente trabalho pretende responder a estas questões. Num primeiro
momento, daremos uma visão geral da vida e obra de Daniel Pennac. De seguida,
definiremos o género fábula e evidenciaremos as suas características mais
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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importantes. Verificaremos de que modo algumas dessas características estão
presentes em Pennac, que nos parece retomá-las e reescrevê-las de forma curiosa
e original, divertida e imaginativa, integrando-lhe novos elementos, inserindo-a no
romance. Por fim, relacionaremos as características da fábula tradicional com as da
fábula moderna, demonstrando a sua evolução, nomeadamente no século XX, que
passa inevitavelmente pela paródia.
É na forma como retrabalha e reescreve o género fábula que a obra de
Pennac se demarca, pois este género parece contaminar, como veremos, toda a
obra deste escritor, não se limitando, exclusivamente, aos livros destinados a um
público infantil.
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Capítulo I
Daniel Pennac: um breve retrato.
1- O professor.
«Romancier, professeur de français et lecteur passionné, auteur à succès d’une saga
policière aux personnages aussi fantasques qu’attachants – la désormais famille Malaussène
7
– Daniel Pennac est l’un des auteurs les plus traduits et les plus lus dans le monde. »
Nascido em Marrocos em 1944, Pennac passou a infância entre a África
(Etiópia e Djibuti), o sudeste da Ásia (Indochina) e o sul de França, o que lhe permitiu
viver experiências várias e adquirir um conhecimento mais alargado do mundo e que,
por conseguinte, figuram no seu universo romanesco.
Estudou durante alguns anos em colégios internos. A leitura funcionava,
então, como passatempo e, ao mesmo tempo, como forma de evasão para os
momentos mais solitários. Pennac afirma que as leituras da sua infância foram
marcantes e que os romances lidos na época: “...m’ont permis de faire une vie en marge
de ma vie de pensionnaire.” A leitura tornou-se um hábito pois, frequentemente e
segundo o próprio Pennac, lia mesmo depois de se terem apagado as luzes. Quando
regressava a casa, o jovem podia ler, junto do pai, num ambiente de tranquilidade e
silêncio (“J’ai toujours aimé le silence”, refere várias vezes8), sentado num cadeirão,
tendo por fundo o fumo do cachimbo, o que convertia este acto numa espécie de
ritual, que aliás fará frequentemente aparição nos seus romances, ou com
personagens a ler livros ou a contar histórias a outras personagens. Deste modo, a
leitura terá uma função primordial no universo romanesco de Pennac.
Através das suas leituras, Pennac descobriu autores que, mais tarde,
influenciaram de forma bastante visível a sua escrita, como os russos Tolstoï,
Tchekhov, Dostoïevski, Bulgakov e ainda Vassili Grossman. Por isso afirma :
“L’écriture a été très tôt la continuité de la lecture. Je suis un écrivain qui s’est mis à l’écriture
9
pour continuer la lecture, un peu comme si j’écrivais les romans que j’ai envie de lire.”
7
« Le pouvoir des livres», entretien avec Daniel Pennac, Label France, avril 2000, nº 39.
Refira-se ainda que o vocábulo silêncio é frequentemente empregue por Pennac na sua escrita.
Como exemplo, porque é bastante evidente no capítulo 18 de Monsieur Malaussène, das páginas 134
a 137, o substantivo “silence” aparece referido 5 vezes, o adjectivo “silencieuse” 1 vez e o advérbio
“silencieusement” 1 vez.
9
http://www.delirium.lejournal.free.fr/interview_daniel_pennac.htm
8
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Posteriormente, voltou-se para a literatura do continente americano, tomando
contacto com escritores como o norte americano Henry Miller, o canadiano Réjean
Ducharne e o sul americano Horácio Quiroga10. Não esconde a sua predilecção pela
escritora sueca Selma Lagerlöf, pelos italianos Italo Calvino e Emílio Grada11, bem
como o seu fascínio pelos autores que trabalharam de forma extraordinária a língua
francesa – Proust e Céline. No que concerne aos dois últimos, Pennac refere «...
autant Proust me donne envie d’écrire, autant Céline me coupe la plume au ras de l’encrier,
12
son écriture m’enthousiasme mais me pétrifie.»
O seu autor absoluto é W.
Shakespeare, cujas peças afirma “se sentir capable de les relire cinquante fois.” Quanto
à poesia destaca Louise Labé, século XVI, asseverando que “elle a écrit les plus beaux
sonnets en langue française.”13 Se fosse obrigado a ler um único livro, Pennac optaria
por Le Dictionnaire Historique de la Langue Française, de Alan Rey14 onde, como
refere : «On y voit l’histoire des mots, de leur émergence jusqu’à aujourd’hui (…) présentée
dans le désordre (qui fait beaucoup rêver) qu’est l’ordre alphabétique. »
Para Daniel Pennac - professor - é importante que os jovens sejam motivados
a ler. Por isso, os seus livros são atravessados por nomes de escritores e das suas
obras, quer clássicos, quer contemporâneos. Montaigne, Mallarmé, Shakespeare,
Flaubert, Kafka, I. Svevo, G. G Marquez, Stevenson, Dostoïevski, Saki, Gary, Fante,
Dahal, J. Amado, Klaus Mann, Calvino são citados em Comme un Roman,
considerado “un cri du coeur pour la défense de la lecture”15 ou ainda “un hymne aux
plaisirs de la lecture”, segundo Jean-Claude Lebrun16. Em l’Evasion de Kamo
encontramos a menção a L’Amour de la vie, de Jack London e Souvenirs de la
maison des morts, de Dostoïevski. Em Messieurs les Enfants, mais uma vez, as
referências a autores clássicos e contemporâneos são usuais, destacando-se
Charles Dickens, Dostoïevski, Rousseau, Nabokov, Italo Svevo, Vargas Llosa e
G nter Grass. Mas, não é só de nomes de escritores que a obra de Pennac está
recheada. Há ainda referências a artistas plásticos e, em Monsieur Malaussène,
10
Este autor desenvolve uma literatura muito especial, onde a vida animal se mostra com toda a sua
força.
11
Várias vezes referido em Au Bonheur des Ogres.
12
Lire, février 1999
13
Por isso, em Monsieur Malaussène, encontramos uma das personagens a recitar os versos da
poetisa.
14
Sabe-se que este é um dos instrumentos de trabalho de Pennac e que nunca abandona a sua
mesa de trabalho.
15
citação retirada da contracapa de L’œil du loup, Ed. Pocket Junior, 1994
16
in www.humanité.presse.fr/journal (25/06/2003)
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surgem inúmeras alusões a nomes de realizadores de cinema (Bergman, Cocteau,
Fellini...) bem como aos seus filmes, evidenciando, não só o interesse que o autor
manifesta pelas outras formas de arte, como também o propósito pedagógico que
predomina na sua obra.
Antes de se ter tornado romancista, Daniel Pennac fez uma licenciatura em
letras, tornou-se professor, profissão que exerceu durante vários anos, num liceu de
Soissons, depois em Paris, até 1995. A profissão de professor está presente em
muitos dos seus livros, como se fosse um prolongamento da sua própria vida. São
exemplos Messieurs les Enfants e os livros da série juvenil Kamo.
Os quatro contos que compõem a série Kamo: Kamo et moi; L’Evasion de
Kamo; Kamo, l’idée du Siècle; Kamo et l’Agence Babel são livros cujas histórias
têm por protagonista o jovem Kamo e seus companheiros, onde se relatam as
diversas aventuras por eles protagonizadas, os problemas da adolescência, na
escola e na vida. Podemos referir que existe uma certa semelhança com as histórias
relatadas em Le Petit Nicolas, embora nestas os heróis sejam crianças. Em alguns
dos episódios da série Kamo relatam-se aventuras ligadas à escola, aos trabalhos
de casa, à escrita, às relações com os professores, nomeadamente o exigente e
temerário Crastaing. Este professor aparecerá de novo em Messieurs les Enfants,
um romance mais complexo, onde o universo da escola continua presente e o tema
da composição proposto é exactamente o mesmo que em Kamo et Moi17, desta vez
aos alunos/personagens Joseph Pritsky, Nourdine e Igor. Pennac explica, numa das
suas entrevistas, que a proposta de trabalho que o professor Crastaing apresenta
aos estudantes é exactamente a mesma que o próprio autor havia proposto anos
antes aos seus alunos, em tom de desafio. Estes deveriam fazer um texto em três
páginas e ele em trinta e, deste modo, nasceu Kamo et Moi.
Crastaing é o eterno mal-amado e incompreendido professor que solicita aos
jovens as mais insólitas composições, causando-lhes náuseas e horrores. Sob o
pretexto de desenvolverem a imaginação, estimulando-os para a escrita, o professor
17
«Vous vous réveillez un matin, et vous constatez que vous vous êtes transformé en adulte. Affolé,
vous vous précipitez dans la chambre de vos parents : ils sont redevenus des enfants. Racontez la
suite.»
«Je dis bien : racontez la suite !» avait précisé Crastaing. Puis il avait lâché une de ces phrases dont
il avait le secret : «Et n’oubliez pas, l’imagination, ce n’est pas le n’importe quoi !» (pág. 24, Edição da
Gallimard Jeunesse)
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usa, com frequência, a expressão: “L’imagination, ce n’est pas le mensonge!”
Todavia, esta frase obceca os jovens e incomoda-os profundamente sempre que a
escutam ou quando se cruzam com este professor, ser estranho e misterioso.
Talvez este fosse, de igual modo, o objectivo de Pennac em relação aos seus
alunos, aos potenciais leitores, mas também um desafio colocado a si próprio, já que
valoriza bastante o imaginário, quer na vida, quer na produção artística. A propósito
do imaginário, o escritor refere na passagem seguinte:
“La place de l’imaginaire dans la vie humaine est vitale. Selon moi, le domaine de la
création artistique quelle qu’elle soit joue, pour la société entière, le rôle que le rêve
joue chez nous, individuellement. Tout se passe comme si la création artistique était
une sorte de production de l’inconscient collectif, projetée sur les écrans, le papier,
les toiles, les formes, la scène. (…).18
Em Messieurs les Enfants, em virtude do tema da composição19, difícil de
desenvolver, as crianças vêem-se, na manhã seguinte, transformadas em adultos;
adquirindo as responsabilidades inerentes ao ser adulto, tendo que se vestir e agir
como adultos. Por força das circunstâncias, vivem experiências mirabolantes que
conduzem uns à prisão, outros às prostitutas. Por seu turno, os adultos convertemse em crianças e procedem como tal. Até o professor se torna criança outra vez.
Neste romance, predomina um universo onírico, povoado de personagens
que parecem decalcadas de um conto de fadas: um pai que já morreu a falar em
cima de uma sepultura, uma prostituta que dá lições de psicologia, um polícia ladrão e um professor “inoxidável” que propõe aos alunos uma composição quase
impossível... Trata-se de uma fábula moderna, cuja moral se encontra diluída ao
longo do texto e consiste no sonho de uma humanidade generosa e poética. Vive-se
um real, maravilhoso e improvável, que recusa preceitos morais, sem contudo deixar
de afirmar:
“La vérité n’est pas dans les journaux! La vérité n’est pas dans votre poste de
télévision ! La vérité n’est même pas dans ce qui se dit autour de vous ! (…) La vérité
ne vient de nulle part, la vérité ne sera jamais distribuée dans votre boîte aux
lettres… (…) La vérité n’est pas un dû ! La vérité est une conquête, toujours ! » (pp. 15-16)
18
19
Idem
O mesmo proposto em Kamo et Moi, como se referiu.
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O facto de ser professor conduziu Pennac a um contacto diferente com a
realidade, com a escola e sobretudo com os seus jovens alunos, reconhecendo
neles necessidades específicas, nomeadamente no que respeita à leitura e à escrita.
O professor/escritor compreendeu a importância e a urgência de reconciliar as
crianças e os jovens com a leitura, assumindo um importante papel de pedagogo.
Para isso, lia romances em voz alta aos seus alunos, falava-lhes da literatura e
“contava-lhes histórias”.
Comme un Roman decorreu da necessidade que sentiu em tornar o acto de
ler para os jovens estudantes numa acção voluntária e não forçada, tentando aclarar
o mistério que escapa muitas vezes quer aos pais, quer aos professores, sobre a
falta de estímulo dos jovens para a leitura. Não se trata de uma quimera mas da
concretização de uma espécie de pedagogia própria que Pennac colocou em prática
enquanto professor. Por isso, faz um apelo para que não se transforme o livro em
instrumento de tortura pedagógica, formulando os conhecidos “dez mandamentos do
leitor” que são, ao mesmo tempo, a sua própria interpretação do acto de ler. Neste
ensaio, o autor penetra no estranho fenómeno da leitura, fala-nos das experiências
de ler, em voz alta, aos seus alunos, método que os leva, posteriormente, a
conhecer os livros e a ler voluntariamente. As páginas 120 a 135 de Comme un
Roman apresentam uma espécie de relato dessa experiência, levada a cabo com os
alunos. Para Pennac «la lecture est une école de liberté ». O seu escritório está repleto
de livros que não são obrigatoriamente os eleitos: “Une bonne bibliothèque n’a que de
mauvais livres, puisque les bons ont été prêtés aux amis ou à des élèves qui ne les ont pas
20
rendus.”
Pennac vive em Paris há mais de trinta anos. Morou durante muito tempo no
carismático bairro de Belleville, numas águas furtadas com vista sobre a cidade.
Recentemente, mudou-se para perto do Père-Lachaise, não muito longe do seu
querido bairro. Refira-se que este espaço é tão marcante para o escritor, que acaba
por ser também aquele em que passa a acção de vários romances, nomeadamente
os da saga Malaussène.
Actualmente, Daniel Pennac dedica-se inteiramente à escrita, que considera
uma maneira de estar na vida: ”Si je n’écrivais pas, je serais complètement cinglé,
inviable. L’écriture a été un moyen de finir avec les éléments encombrants qui
20
Lire, février, 1999
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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m’exaspéraient, dont la morosité et la mélancolie. » Todavia, o escritor ainda mantém
contacto com as escolas e com os alunos, onde se desloca para falar dos seus livros
e contar as suas histórias. Assim, Pennac assume-se como um contador de
histórias, que se preocupa com o seu público, pretendendo sobretudo agradar-lhe:
«Quand on veut être romancier, il faut raconter des histoires. (…) Qu’ensuite ces
histoires génèrent du sens ou pas, c’est l’affaire du lecteur et éventuellement celle de
l’auteur de distiller le sens qu’il veut. Mais ce qui me plaît, c’est de faire plaisir en
racontant des histoires. »21
Em suma, o autor reconhece-se não como um intelectual mas como um
romancista e, para si, um romance não se resume à ideia que o fez nascer. É um
ensaio dissimulado em romance. Em suma, Daniel Pennac define-se “comme un
22
raconteur d’histoires métaphorant”.
E acrescenta « ...dans un beau roman, même quand
c’est faux c’est vrai. »
2- O escritor moderno.
« La vie n’est pas un roman, je sais... je sais.
Mais il n’y a que le romanesque pour rendre la vie vivable. »
Daniel Pennac, Post-scriptum de
La Petite Marchande de Prose (p. 405)
A obra de Pennac, como referimos na introdução, é extensa e variada: passa
pelo ensaio23, pelo teatro24, pela Banda Desenhada25, pelo conto e o romance, para
adultos e também para jovens e crianças. De início, escreveu dois romances que
não conseguiram alcançar o êxito esperado. Talvez por isso afirme : «J’ai longtemps
écrit sans aucun succès. J’ai commencé ma saga Malaussène en 1984 et j’écris depuis
1973. Succès ou pas, je suis heureux quand j’écris.»
26
No entanto, não desistiu do seu
propósito e a escrita tonou-se a sua principal ocupação.
21
Les Inrockuptibles, janvier-février, 1992, nº 33, (pp. 128-139)
Le pouvoir des livres, entretien avec Daniel Pennac, Label France, avril 2000, nº 39
23
Le service militaire au service de qui?
24
Monsieur Malaussène au Théâtre
25
La Débauche, ilustrada por Tardi, Maio de 2000
26
in Lire, mai 1995
22
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Depois de algumas hesitações, o escritor inclinou-se principalmente para o
romance. Pennac é, acima de tudo, um romancista, que introduz nas suas ficções
aspectos de outros géneros, de que salientamos a fábula (na sua relação com o
fantástico) bastante visíveis em Cabot-Caboche, L’Oeil du Loup e em toda a saga
Malaussène.
Reconhecemos que o facto de ter começado a escrever para crianças e jovens
tem a ver com a sua ligação aos mais novos, enquanto professor, e ainda porque
sempre afirmou gostar de contar histórias. Segundo o próprio Pennac, as crianças
são leitores bastante exigentes. Se a história lhes interessa, lêem até ao fim; se não
lhes interessa, fecham o livro e optam por outras actividades. Desta maneira, decidiu
escrever para os mais pequenos, no ensejo de :
«... enfin de rompre avec le diktat du sens, très encré chez les gens de ma
génération, d’après 1968. J’ai cherché à écrire des histoires qui s’imposent par ellesmêmes, sans chercher à attirer le lecteur par autre chose que ce qui a un rapport
direct avec la narration. »27
Daniel Pennac valoriza a história/a narração, rejeitadas por alguns escritores da
sua geração. Talvez este tenha sido o ponto de partida para a revalorização do
romance. Por isso, o escritor privilegia o acto de ler/contar histórias, em toda a sua
produção, o que funciona como uma espécie de terapia. Esta parece ser uma das
suas preocupações, a que constantemente alude. Nos romances da saga
Malaussène, Benjamin, Van Thian ou Risson contam histórias, que fazem delirar
toda a gente. O enredo de La Petite Marchande de Prose desenrola-se em redor do
mundo dos livros, da leitura, da família que se reúne em prol da leitura e que conta
histórias. As passagens do romance de JLB, inseridas na intriga principal servem de
sátira à literatura popular que se vende muito bem. Em La Fée Carabine, Risson ou
Thian contam histórias (a da própria Fée Carabine) às crianças e aos velhos,
fazendo-os entrar noutras dimensões, “partindo em viagem” através do olhar, ao
ponto de preterirem a televisão. As crianças estão sempre a pedir que se lhes conte
uma história : «Benjamin, raconte-nous une histoire.»
Em Comme un Roman Pennac refere a propósito da história lida/ouvida: “Oui,
l’histoire lue chaque soir remplissait la plus belle fonction de la prière la plus désintéressée,
27
Au Bonheur des enfants, entretien dirigé par Aliette Armel (p. 98)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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la moins spectaculaire, et qui ne concerne que les hommes: le pardon des offenses ». (p.
33)
Daniel Pennac intrinca histórias dentro de outras, fazendo o leitor viajar no
interior dos livros. E são vários os exemplos que aí encontramos, como o que
acabámos de transcrever, ou a história que a mãe loba conta aos lobinhos
(« L’histoire du louveteau maladroit et de sa grand-mère trop vieille»), em L’Oeil du
Loup.
Afirma-se que Pennac descobriu tardiamente, apenas aos 35 anos, o género
policial, aquele que o lançou como “auteur à succès”. Foi numa viagem ao Brasil
que, em crise de leitura, viu junto de um alfarrabista (“bouquiniste”) francês um velho
romance da “Série noire” de Louis Béretti. Neste autor, encontrou tudo o que
buscava: imagens fortes, densas de sentido e eficazes. Em seguida, um amigo deulhe a conhecer Chester Himes e o efeito foi idêntico. Daniel Pennac tinha,
finalmente, descoberto uma orientação para a sua escrita: romances povoados de
intriga, drama, humor, “suspense” e “loucura”, explorados ao pormenor, com
universos fantásticos, onde o inesperado acontece à passagem de cada capítulo.
São romances situados entre os géneros policial e popular que, no entanto, fogem
às regras convencionais. Nessas ficções, depreende-se o humanismo moderno de
Daniel Pennac, de onde sobressaem o amor e o respeito. Ao mesmo tempo, o
escritor faz uma formidável e optimista descrição do mundo sombrio, numa
linguagem que foge, frequentemente, ao “politicamente correcto”, que se aproxima
do real/do quotidiano do leitor, evidenciando que Pennac acompanhou a evolução
dos géneros. O autor recorre várias vezes a vocábulos do nível familiar/calão, como
por exemplo, “merde”, “emmerdements”, “flics”, “dingue”, “déconne”; a estrangeirismos
“undergroud”, “overdose”, “modern style”, “drugstore”, “dealers”, pipe-line”; algumas das
personagens intervenientes nos romances falam chinês28 ou árabe.
Os romances da saga Malaussène inserem-se no esquema narrativo do
policial, pela sua estrutura, pela intriga recheada de situações inesperadas: o tráfico
de droga, os assassínios misteriosos, a presença da figura do criminoso, do “serial
Killer”, procurado por agentes policiais/detectives e, finalmente, a descoberta do
crime. Os crimes sucedem-se e uns vão, consequentemente, desencadear a
28
Por exemplo em La Petite Marchande de Prose, as crianças querem aprender a falar chinês (p.
401) e podemos ler inúmeras frases ditas pelas personagens, o que causa alguma estranheza mas
que confere ao texto um interessante colorido.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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descoberta de outros crimes. Desaparece o segredo que domina, normalmente, este
tipo de romances. A presença dos crimes em série e a sua repetição, na saga
Malaussène, colocam a hipérbole como a figura central do romance. Por outro lado,
a figura do detective foge um pouco à imagem do detective tradicional. Coudrier é
um detective semelhante ao detective Dupin, inventado por Edgar Allan Poe e que
entra nos seus contos fantásticos. Tanto Dupin como Coudrier são figuras humanas,
dominadas pelo bom senso. São intelectuais, inteligentes e fogem à imagem do
polícia tradicional. Coudrier preocupa-se com Malaussène, o eterno “bode
expiatório”. Trata-se de um romance policial que tem como pano de fundo o mundo
social (também presente na literatura popular e no romance realista). Por isso, este
romance policial não respeita as regras/normas, como por exemplo os de Agatha
Christie, em que se propõe um enigma criminal, que o detective – herói, juntamente
com o leitor, vai desvendar. Nesses romances não há espaço para análises
psicológicas, nem intrigas amorosas, susceptíveis de desviar a atenção do leitor.
Normalmente, a intriga é fechada, termina de forma inesperada mas lógica, com a
descoberta do autor do crime.
Os seis romances desta saga têm por principal protagonista uma família (onde
não falta um cão epiléptico e especial – Julius, le chien, que também tem direito às
suas “opiniões”) que funciona como uma tribo: “la tribu Malaussène”, segundo
Pennac, ou como “Sagrada Família”, como a designa Malaussène, em La Fée
Carabine. O herói que atravessa todos os romances é Benjamim Malaussène, o
irmão mais velho e chefe desta numerosa e original família, representando
igualmente a figura do pai, ausente. Benjamin é um homem banal, escolhido pelo
destino para ser uma espécie de azarado perpétuo. Advogado por vocação,
convertido em “bode expiatório” de profissão, carisma mantido ao longo da saga.
Tendo a seu cargo os irmãos mais novos, de quem é uma espécie de “Anjo da
Guarda”; diverte-os, contando histórias antropomórficas de papões de Natal e de
polícias, sobretudo em Au Bonheur des Ogres, mas também em outros romances.
As histórias são mirabolantes aventuras de detectives, polícias-fachos ou
polícias-poetas e crimes, onde dominam o mistério, a intriga e mortes por desvendar,
mas onde subsistem também paixões. Benjamin Malaussène apaixona-se pela
jornalista Julie, a mãe passa o tempo apaixonada, Clara apaixona-se e casa com um
inspector de polícia (La Petite Marchande de Prose), citando apenas alguns
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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exemplos. Ao longo das tramas há desvios intencionais da atenção do leitor, não só
para as mortes misteriosas, mas também para a vivência bizarra da família, que se
intrinca na narrativa. Presenciamos ainda a existência de personagens que
normalmente não fazem parte do universo do romance policial – as crianças, em
grande número, e ainda as fadas e os ogres, especialmente em Au Bonheur des
Ogres.
Em Pennac, descobrimos um universo um pouco diferente e é precisamente
por isso que consideramos o seu estilo e a sua escrita próximos da fábula, já que
contêm os seus elementos, trabalhados de uma forma bastante curiosa: por
exemplo, a presença do universo fantástico, um mundo maravilhoso e imaginário,
com heróis que não morrem, ou que regressam ao mundo dos vivos, mesmo depois
de mortos. Em La Petite Marchande de Prose, Benjamin Malaussène resiste à morte
devido à intervenção miraculosa do médico, uma espécie de anjo ou de génio, ao
amor dos seus familiares e de Julie. Também o pai de Le Petit, um homem
encontrado moribundo na rua, volta ao “reino dos vivos”, depois de tratado pela mãe
e irmãs de Benjamin, em Des Chrétiens et des Maures – 1997. O universo infantil,
povoado de magia, onde intervêm fadas, ogres e papões é central: Jérémy e Le Petit
são miúdos traquinas, capazes de crucificar ou de fazer explodir o colégio. Os seus
nomes têm tanto de curioso como de invulgar - Fruit de la Passion ou Verdun. Refirase ainda as crianças-anjo, como C’est un Anje, que incarna toda a inocência e a
pureza da infância. Estas crianças divertem-se a ouvir ler/contar as mais
maravilhosas histórias de ogres e papões.
Predomina, ainda, um universo feérico, com a presença de fadas que
transformam seres em crocodilos (Au Bonheur des Ogres) ou homens em flor,
segundo Le Petit (La Fée Carabine), que protegem as crianças ou os adultos. A fada,
do latim fatum (= destino, fatalidade, oráculo) personifica o maravilhoso, corrige os
destinos humanos, dispõe de poderes sobrenaturais. É um ser que pode ter uma
aparência fantástica, mas de grande beleza, normalmente representada por uma
figura feminina, dotada de virtudes e poderes sobrenaturais, intervindo na vida dos
homens para os auxiliar em situações-limite. Yasmina, por exemplo, protege e
recompensa, é a grande deusa. Também a progenitora se caracteriza por possuir um
enorme coração, apaixona-se facilmente, sendo o fruto de cada paixão um novo
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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filho. Esta funciona como a mãe telúrica e protectora. É a grande fada que se
assemelha a Deus, pois está presente e ausente ao mesmo tempo.
O local onde decorre a acção destes romances é Belleville (Paris), espaço real
e ao mesmo tempo mágico, com uma personalidade distinta, frequentemente
transfigurado. É mesmo um lugar multiracial e multicolor, onde coexistem raças,
profissões e línguas. Os seus habitantes são polifacetados e multicoloridos, na
forma de vestir e de falar. Este bairro torna-se num espaço utópico, de
solidadriedade, de transparência, onde as portas estão sempre abertas. Está
despolitizado, tudo pode acontecer. Não existem fronteiras, tratando-se um espaço
universal, por isso semelhante ao espaço das fábulas. Ao mesmo tempo, é um local
de protecção, por se tratar de um bairro. Ali vive a família Malaussène, apresentada
ao leitor em 1985 com Au Bonheur des Ogres, acompanhando-o até 1999 com Aux
Fruits de la Passion, e é ali que se pretende sempre regressar, mesmo que esteja
em constante mutação/transformação.
Esta dimensão fabulística não impede uma presença muito forte de temas
actuais, abordados de forma peculiar: o consumo de drogas pelos velhos,
abandonados à sua sorte e acolhidos em casa por Benjamin (ponto de partida para
uma reflexão sobre o papel velhice e o abandono dos idosos, do envelhecimento
dos homens e das instituições - La Fée Carabine,1987); o mundo dos livros e da
escrita (La Petite Marchande de Prose – 1989); a especulação imobiliária, retratada
na Belleville em vias de extinção de Monsieur Malaussène; a venda dissimulada de
armas ou o mundo das minorias: os sem-abrigo, os imigrantes, os refugiados de
guerra, os filhos de prostitutas (Aux Fruits de la Passion –1999), temas que
consideramos um interessante objecto de estudo.
Todavia, a nossa reflexão prender-se-á sobretudo com os elementos centrais
da fábula, verdadeiros pilares de toda a obra romanesca de Pennac, que
passaremos a abordar seguidamente.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Capítulo II
1- A fábula – uma definição do género.
Como definir este género?
O género fábula é quase tão antigo como o próprio homem. Os textos deste
género têm, como principais protagonistas, os animais “a falar como pessoas”, com
o propósito de transmitir um ensinamento, sendo acompanhados de uma
moralidade. Crê-se que muitos dos textos primitivos, chegados até nós, tenham
conhecido, inicialmente, a forma fabulística, embora os estudiosos do género
considerem que seja um tanto difícil determinar com precisão a sua origem.
Existem inúmeras definições para fábula, provenientes de fontes diversas. De
entre elas, seleccionámos apenas três exemplos (dois retirados de dicionários da
língua francesa e um de um dicionário da língua portuguesa), evidenciando os seus
aspectos mais importantes, uma vez que não é nosso propósito fazer uma
enumeração de definições.
A- Le Robert, Dictionnaire Historique de la Langue Française29 propõe a
seguinte definição:
« Fable vient du latin (1155) fabula « récit, propos » ; « récit mythologique,
allégorique, conte, apologue » ; du verbe fari – parler, issu d’une racine indoeuropéenne ºbh –« énoncer ». Fable apparaît au milieu du XIIe siècle au sens de
« récit imaginaire, histoire » et « d’allégation mensongère »(1160). Le sens de « petit
récit moralisant qui met en scène des animaux » est lui aussi ancien (1180).
Ce n’est qu’au début du XIIe siècle que le mot désigne la mythologie de l’antiquité
paiënne. »
B- Le Petit Larousse Illustré30 define fábula de forma diferente, apontando
para várias acepções:
« Fable, n. f.(du latin fabula) 1- court récit allégorique, en vers ou en prose, contenant
une moralité (Les Fables, de La Fontaine) ; 2- récit, propos mensonger; histoire
inventée de toutes pièces ; 3- personne qui est objet de propos railleurs ».
C- Num dicionário da Língua Portuguesa31, podemos encontrar para fábula os
seguintes significados:
29
De Alain Rey, Paris, 1992
Paris, Larousse, 1999
31
Grande Dicionário Enciclopédico, Clube Internacional do Livro, 1999
30
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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“Fábula (do latim fab la) s.f., 1-narrativa de acontecimentos inventados, para ilustrar,
moralizar ou divertir, em que geralmente entram animais a falar como pessoas;
ficção; 2- pessoa de quem se fala para zombar ou criticar; 3- falsidade, mentira; 4mito, lenda; 5- alegoria, apólogo; 6- enredo, entrecho.”
Neste dicionário, para além das seis definições anteriormente mencionadas,
referem-se,
ainda
relativamente
ao
género,
alguns
aspectos
históricos,
apresentando exemplos da evolução ao longo dos tempos:
“O género fábula é quase tão antigo como as primeiras manifestações literárias do
homem e os seus temas, quase sempre moralizantes, têm sempre a mesma fonte: o
Oriente, com as colecções Panchatantra e do J taka, entre outros, chegados ao
Ocidente através dos persas e dos árabes.
Não é estranho, pois que haja sobreposição entre as fábulas de Planudes (s. XIV), de
Babrius (s. I a.C.) ou de Fedro (15 a.C. a 69 d. C. ). O fabulista mais antigo de que
há notícia é o Indiano Pilpay, mas o mestre do género é o grego Esopo (s. VII e VI
a.C.).
Durante a Idade Média, a colecção latina Romulus foi aumentando o seu acervo com
fábulas de distinta índole. Pelo século XII começaram a intercalar-se nos sermões os
chamados exempla, narrações que muitas vezes eram edificantes em si mesmas,
possuindo outras vezes o carácter de parábolas, que encerravam uma lição moral.
Nos tempos modernos, mantiveram o prestígio da fábula os franceses: La Fontaine e
Florian; os alemães: Gleim, Gellert e Lessing; os ingleses Gay, Prior e Dryden; o
espanhol Iriarte e o italiano Roberti. Também em Portugal muitos foram os autores
que nos seus escritos introduziram fábulas, tendo outros traduzido o fabulário
estrangeiro.”
Destaquemos, então, alguns dos pontos mais relevantes das definições
apresentadas:
1- A primeira definição apresenta uma espécie de evolução do vocábulo
fábula na língua francesa. Alude-se também, nos três casos, à origem latina do
termo Fab la, que quer dizer “contar”. Indicam-se quatro das características do
género propriamente dito: que se trata de uma narrativa alegórica, breve, que tem
uma moral e que põe em cena animais. Na segunda, citam-se três das
características: a fábula é uma narrativa alegórica, breve, com moral,
acrescentando que pode ser em verso ou em prosa. A terceira definição vai um
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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pouco mais longe: para além de se salientar que entram animais que falam como
as pessoas, acresce que os acontecimentos são inventados para ilustrar,
moralizar ou divertir. Em suma, nas três definições mencionam-se algumas das
características fundamentais do género, com pequenas variações, mas que apontam
para o que normalmente se considera importante sobre a fábula.
2- As definições acima transcritas esboçam, no entanto, outras designações
para o termo fábula: na primeira e terceira fala-se de “récit mythologique”/ mito ou
lenda. Ora, esta definição pode apresentar alguma ambiguidade pois, actualmente,
ou se fala em fábula ou em mito. Em tempos recuados, não se fazia claramente a
diferenciação entre o mito e os outros géneros. Fábula e mito andariam muito
próximos, uma vez que a primeira se situa algures entre o concreto e o abstracto,
por isso estava também associada ao mito. Por outro lado, os animais interagiam
com figuras da mitologia, daí colocarem-se ambos ao mesmo nível.
3- Finalmente, observamos que se apresentam ainda outros significados para
fábula, tais como conto: “propos mensonger”, alegoria ou apólogo, termo empregue
por La Fontaine, no Prefácio das Fables, e que o Grand Robert (ed. de 1981) define
como «court récit, exposé sur une forme allégorique, et qui renferme un renseignement, une
leçon de morale pratique ». Se atentarmos bem, trata-se de uma definição semelhante
à dada pelo Larousse, para fábula. Ao longo dos séculos, fábula esteve também
ligada a parábola, exempla, emblema.
Quanto às fontes do género, no Dictionnaire des Littératures de la Langue
Française32 aborda-se essa questão, apontando-se para duas fontes antigas: a
greco-latina e a oriental. Na primeira integram-se Esopo e Fedro. Crê-se que o frígio
Esopo terá vivido na Grécia no século VI a.C. e atribui-se-lhe uma série de cerca de
trezentas breves histórias, em prosa, por vezes acompanhadas de uma curta
moralidade. Nestes textos, bastante curtos, precisa-se a característica essencial do
género: mentir para dizer a verdade. Frequentemente, em virtude da conjectura
política, social e mesmo económica, o artista tendia a fingir ou “a dizer sem dizer”,
para não ser punido. A melhor forma de o fazer, sem ferir susceptibilidades, era pôr
os animais a falar. Estas fábulas foram fixadas à escrita por Abstémius, no século
XVI. No que concerne a Fedro (s. I d. C.), de origem Társica, posteriormente tornado
romano, este autor reestruturou o género. A sua produção distribui-se por cinco
32
de Alain Rey (1994)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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livros, cuja brevidade e pureza estilística serviriam de modelo, durante muito tempo.
Assim, a fábula continuou concisa mas tornou-se, pela sua construção, uma
comédia ou um pequeno drama, com efeitos cuidadosamente preparados. Em
ambos os casos, a finalidade essencial dos textos era a Pedagogia.
A segunda fonte citada é a oriental. Trata-se de uma recolha do início da
nossa era, que circulava na Índia e denominada Pa chat ntra - “Les Cinq Livres”,
composta em sânscrito e mais tarde em língua árabe, com o título de Fábulas de
Pilpay. Os protagonistas são animais da fauna indiana, desde os príncipes da
floresta e da savana aos animais domésticos, como a pulga e o piolho. O chacal tem
o papel desempenhado pela raposa no ocidente.
As duas fontes serviram de inspiração e de base de trabalho aos fabulistas
que, desde esses tempos até La Fontaine, e mesmo ulteriormente, foram criando os
seus textos, passaram outros à escrita ou traduziram para as suas línguas os já
existentes.
Embora o género fábula seja de origem bastante recuada, escolhemos como
ponto de partida La Fontaine (século XVII) por ser um marco importante na
definição, actualização e transformação do género. Salientamos, igualmente, que
não é nosso objectivo fazer uma exposição acerca dos fabulistas, apenas
desejamos fundamentar as nossas constatações, contextualizando-as.
1.1- O papel de La Fontaine na evolução do género fábula.
Jean de La Fontaine (1621-1695), autor de Les Fables33, recuperou assuntos
e temas poéticos de Esopo, que considera o pai da fábula34, de Fedro, de outros
fabulistas35 ou ainda os contidos nas colecções árabes - transmitidos ao Ocidente
pelos jograis franceses, nos fabliaux ou pelos moralistas católicos, nos exemplarios,
com os quais tomou contacto quando estudava num colégio de Jesuítas. Por outro
33
Les Fables de La Fontaine, distribuem-se por doze livros, num total de 242 textos. Aquando da sua
publicação, o fabulista descreveu-as, como uma adaptação enriquecida das de Esopo, dedicadas a M.
Le Dauphin, de sete anos. No prefácio salientava tratar-se de literatura para as crianças.
34
Je chante les Héros dont Esope est le Père,
Troupe de qui l’Histoire, encor que mensongère,
Contient des vérités qui servent de leçons.
(…)
Je me sers des Animaux pour instruire les Hommes.
La Fontaine, « À Monseigneur le Dauphin », in Les Fables, p, 73 (Ed. GF-Flammarion, 1995)
35
Avianus, Aphtonius (s. II), Babrius (s. III) Abtémius (s. XV/XVI), Faerno e Haudent (s. XVI).
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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lado, o fabulista utilizou as recolhas muitas vezes reeditadas de Baudoin e de
Verdizotti e, como alude no Préface de Les Fables: «J’ai choisi les meilleures, c’est à
dire celles qui m’ont semblé telles...» (1995: 47)
Recuemos no tempo até Esopo, uma vez que é uma das fontes de La
Fontaine. Os estudiosos reconhecem que os seus textos, breves e em prosa, onde
se emprega um vocabulário mais simples, são de cariz essencialmente oral. Embora
se julgue que as fábulas de Esopo não tenham sido por si inventadas, atribui-se-lhe
uma verve mordaz e bastante curiosa, sendo o humor e a humanidade as suas
principais características. Considera-se o fabulista, antigo escravo, um homem
inteligente que, após ter conquistado a liberdade, viajou bastante, tornando-se um
observador do que o rodeava, dando conselhos através das fábulas. Esopo confere
aos textos um cunho pessoal, pretendendo distrair e instruir sem irritar as pessoas.
Como o texto da fábula consistia num ensinamento, quase todas terminavam com
uma moralidade, popular, cuja função seria reforçar a lição inicialmente apresentada.
Muito mais que uma moral, as fábulas de Esopo procuravam transmitir um
ensinamento cínico sobre a mediocridade e a maldade humanas. As que têm o lobo
como protagonista pretendem evidenciar a vileza deste animal, que personifica
aqueles que, pela força física, se destacam dos mais frágeis e que não respeitam os
seus pontos de vista. Em Esopo podemos constatar as seguintes características do
género: a apresentação directa das virtudes e defeitos do carácter humano,
ilustrados pelo comportamento antropomórfico, o propósito pedagógico e,
sobretudo, a brevidade associada à oralidade.
No século XVII, La Fontaine vai trabalhar a fábula de uma forma singular. De
resto, foi ao poeta Francês que se atribuiu o aperfeiçoamento do género fábula,
transformando-se o que até então fora tomado como um género inferior (por ser
bastante simples, quase rústico e sem dignidade literária) numa forma de praticar
uma poesia natural, espontânea, cheia de elegante simplicidade. La Fontaine vai dar
mais importância ao “récit”, tornando a fábula num veículo subtil do pensamento.
Ao apresentar o texto em verso, La Fontaine converteu a fábula num género
literário clássico. Introduziu-lhe a medida, a variedade de tom, mas ainda a comédia e
a sátira, bem como elementos do conto maravilhoso e, entre outros, uma espantosa
acção com personagens. Os recursos estilísticos são mais frequentes, destacando-se
a ironia, a adjectivação expressiva, as anástrofes e os jogos de palavras. Segundo
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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alguns estudiosos de La Fontaine, o facto de as fábulas serem postas em verso
permite-lhe abrir um espaço de liberdade de pensamento e de expressão que outros
géneros não admitiriam. Considera-se, igualmente que, por ser herdeiro de tradições
múltiplas, La Fontaine transformou a fábula em rapsódia de contos de animais, em
ensaio filosófico, como “Discours à Madame de La Sablière” (IX, XX), ou em cenário
cheio de imprevistos e de vagabundagem lírica “Les deux Pigeons” (IX, II). O fabulista
torna-se um espectador da existência, retratando-a através da fábulas, textos
espirituosos, irónicos e em que os homens aparecem já animalizados.
Contextualizemos um pouco a época de La Fontaine. No século XVII viveu-se
essencialmente sob dois signos. Por um lado, o da grandiosidade de Louis XIV e da
sua corte, por outro, e em oposição, o da miséria do povo. A grandiosidade
manifestou-se sobretudo no campo das artes e das letras, florescendo o classicismo.
Portanto, é natural que se tenham reabilitado as formas clássicas como a fábula, que
se tornou um género muito admirado, não só pela corte, como também pelo público
dos salões. A literatura imita a ordem, a disciplina e a regularidade clássicas,
tornando-se social, através do teatro clássico, também recuperado, mas ainda da
eloquência dos discursos inflamados, proclamados na corte ou fora desta. Ora, a
fábula congrega um pouco dos dois. Em algumas circunstâncias, as fábulas parecem
pequenas comédias, noutras tragédias, porque mais densas e com situações mais
complexas. Estima-se que a fábula corresponde aos propósitos da época, utilizando a
exposição clara dos argumentos, uma vez que se pretendia o triunfo da razão. Neste
caso, admite-se que a fábula serve como “prise de parole” e, segundo o velho
esquema da retórica clássica, ela procura ser o exemplo (exemplum) à demonstração
de um propósito (propositio), assim apresentada por Aristóteles n’ A Retórica.
O século XVII, herdeiro do humanismo do século XVI e do barroco, por um lado,
é marcado pelo entusiasmo e pela razão, por outro, pela dura análise e pintura do
homem da época, o que foi feito por Racine, Molière, e mesmo por Bossuet, La
Fontaine, La Bruyère e Fénelon. Preocupados com o que os envolvia, manifestaramse ao observar a “misère des paysans”, num tempo em que o poder do rei era
absoluto, em que o povo se mantinha submisso aos arbítrios dos grandes senhores
ou das autoridades. Daí que La Fontaine, nas suas fábulas, que constituem um
retrato do seu tempo, mostre bem a diferença entre dominadores/fortes (na figura do
lobo) e dominados/frágeis (na do cordeiro), para darmos apenas um exemplo.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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No Préface e em diversas fábulas, La Fontaine apresenta os objectivos que
estiveram na origem da composição dos seus textos. O fabulista desejava agradar,
instruir e, ao mesmo tempo, denunciar a ordem institucionalizada. Em «Le bûcheron
et Mercure» (V, I) refere que a sua obra pretende ser uma comédia universal, ou
seja, através do imaginário desvenda-se o real, dando-nos a contemplar a comédia
do mundo: «En faisant de cet ouvrage/une ample comédie à cent actes divers/Et dont la
scène est l’univers »; que a verdade está por trás daquilo que parece ser mentira, um
dos tópicos já preconizados por Esopo, como demonstra em “Le dépositaire Infidèle”
(IX, I) ”Et même qui mentait/ Comme Esope et Homère/Un vrai menteur ne serait./Le doux
charme de maint songe/Par le bel art inventé/Sous les habits du mensonge/Nous offre la
vérité. »
Para La Fontaine, fábula ou apólogo36 (termo também empregue pelo autor
quando se refere à fábula) «est un genre d’origine populaire, consistant en un récit court,
souvent agrémenté d’un dialogue et servant à illustrer une morale ». Deste modo, a fábula
é um género que se baseia no processo alegórico que, por sua vez, personifica os
vícios humanos em animais, satirizando os defeitos com o objectivo de os corrigir.
Em « Le Lion et le Chasseur»(VI, II), La Fontaine escreve: “Les Fables ne sont pas ce
qu’elles semblent être./Le plus simple animal nous y tient le lieu de Maître”, isto é,
apresenta a razão pela qual se serve dos animais, ao mesmo tempo que reitera o
processo alegórico dos seus textos. «Se servir des animaux »37 compreende, assim,
uma intenção política (os animais de La Fontaine são políticos), mas supõe também
uma filosofia implícita – o homem é um animal, entre os outros, privilegiado pela sua
36
Existe uma cetra diferença, pelo menos em Portugal, entre estes dois termos como podemos ver
pelas definições:
“Fábula é uma narrativa breve vivida por animais, que alude a uma situação humana e tem por objecto
transmitir uma certa moralidade. As suas personagens são, quase sempre símbolos, isto é, representam
algo num contexto universal, por exemplo, o leão é símbolo do poder, a raposa da astúcia”. Quanto ao
apólogo, trata-se de “uma narrativa breve de uma situação vivida por seres inanimados (sem vida animal
e humana) que ali adquirem vida e aludem a uma situação exemplar para os homens. Exemplo “O
carvalho e a cana”. (Glória Bastos, 1999: 83).
37
“Grâce aux Filles de Mémoire
J’ai chanté des animaux.
Peut-être d’autres héros
M’auraient acquis moins de gloire
Le Loup en langue des Dieux
Parle au Chien dans mes ouvrages.
Les bêtes à qui mieux mieux
Y font divers personnages. »
« Le dépositaire infidèle » (IX ; I)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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inteligência. Todavia, deve respeitar as outras espécies. Logo, o mundo animal
pretende representar a sociedade/os homens, com a sua psicologia complexa, as
suas paixões e os seus vícios. Estes animais simbolizam ainda o substracto de uma
comédia que não é a sua, isto é, são uma espécie de marionetes agitadas, que nos
levam a observar o espectáculo daquilo que realmente somos.
Os animais são, por isso, figuras importantes nas fábulas de La Fontaine,
interagindo entre si, mas também com personagens naturais, elementos da natureza,
personagens humanas, mitológicas, históricas, literárias e filosóficas. De referir que
os animais não são simples estereótipos, reduzidos a um papel constante. Por
exemplo, o leão, tanto é brutal, injusto e tirânico, como bom e generoso. O facto de o
animal aparecer travestido é, entre outros, um meio de manter à distância os
comportamentos humanos e, ao mesmo tempo, fazer o leitor tomar consciência dos
seus mecanismos. Representa, ainda, uma forma de falar dos poderosos, sem os
atingir directamente, ou um instrumento para chamar a atenção dos homens sobre a
sensibilidade e inteligência dos animais, contra a tese cartesiana dos animaismáquina.
Quanto aos métodos, considera-se que o fabulista imita os mestres clássicos,
Esopo e Fedro, sem, no entanto, ser escravo dos seus modelos. Não se coíbe em
enriquecê-los, com o seu próprio conhecimento, mas sobretudo com o génio, como
aponta em «L’Epître à Huet»: “Mon imitation n’est point esclavage/Je ne prends que
l’idée et les tours et les lois,/ Que nos maîtres suivaient autrefois/Si d’ailleurs quelque
endroit plein chez eux d’excellence/Peut entrer dans mes vers sans nulle violence/Je l’y
transporte, et veux qu’il n’aurait rien d’affecté/Tâchant de rendre mien cet air d’antiquité. »
Além disso, mostra que agirá pela sátira e pelo contraste, como refere em «Le
bûcheron et Mercure» (V, 1): “Je tâche d’y tourner le vice en ridicule/ne pouvant
l’attaquer avec les bras d’Hercule” (...) « J’oppose quelquefois par une double image/ Le
vice à la vertu, la sottise au bon sens ». Desvenda a sua intenção moral, de instruir e
divertir, em « Le Lion et le chasseur » (VI, II): «Une Morale nue apporte de l’ennui ;/Le
conte fait passer le précepte avec lui/ En ces sortes de feintes il faut instruire et plaire,/Et
conter pour conter me semble peu l’affaire. »
Antes de La Fontaine, a moral era a coluna vertebral da fábula e o “récit” tinha
apenas uma função secundária, de ilustração, o que acontecia com Esopo ou Fedro.
Com o fabulista francês, pelo contrário, o “récit” desenvolve-se consideravelmente em
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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relação à moral, que é o pretexto. O fabulista interessa-se mais pela narrativa do
que pela moralidade, que por vezes está diluída no texto ou mesmo ausente. Porém,
devemos referir que La Fontaine não se consegue desligar totalmente da moralidade,
como acontece com alguns fabulistas modernos. A presença da moral nunca
desaparecerá por completo da fábula e está impregnada de uma forte função satírica:
mostrar aos homens os seus erros, convidando-os a observar-se a si mesmos,
encorajando-os a valorizar os sentimentos como a entreajuda, o amor pelo trabalho,
a amizade, a concórdia, entre outros.
No Préface das Fables, La Fontaine evidencia «L’Apologue est composé de deux
parties, dont on peut appeler l’une le Corps, l’autre l’Ame. Le Corps est la Fable; l’Ame la
Moralité.» (1995 : 50) Assim, no texto = corpo (parte mais visível) desenvolve-se o
conteúdo daquilo que seria mais invisível = moralidade, mas sem deixar de ser
importante38. Para não aborrecer os seus leitores, La Fontaine varia a formulação,
bem como a posição da moral e não hesita mesmo em suprimi-la, quando o seu
conteúdo é suficientemente explícito. A este propósito citemos Patrick Dandrey
(1992:49) :
“ Le déchiffrement de l’allégorie morale devient sous l’effet de la gaieté envahissant
tout le poème, l’occasion d’un badinage, de quelque saillie supplémentaire, ajoutant
son éclat à ceux qui font briller le récit. Au lieu d’être la clef unique et indispensable du
récit, la moralité en constitue le tremplin ou la chute subtils, imprévisibles même,
ouvrant des perspectives inattendues, jouant avec le lecteur, mais aussi avec le
modèle imité qu’elle détourne, évidente – banale… »
A moralidade, segundo PatricK Dandrey, não constitui a chave única do texto,
mas pode ser o ponto de partida, um desafio que se coloca ao leitor, fornecendo-lhe
pistas, abrindo outras perspectivas para a interpretação do mundo em que vive e que
o texto pode não mostrar logo de início.
Abundante em diálogos, o “récit” é composto por uma polifonia de vozes
narrativas que lhe conferem uma dimensão teatral. O fabulista posiciona-se, também
ele em cena, no “teatro das fábulas”, colocando o leitor à parte e serve de mediador
em relação à sociedade civilizada dos seus leitores. A estes endereça, em imagens e
em discursos, a figura de um mundo imaginário, mesmo utópico, reflexo velado e
38
Daí considerar-se a moralidade como a alma, mantendo-se a concepção/divisão corpo/alma, ainda
em voga na época, bem como da visibilidade do corpo e da invisibilidade da alma.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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cheio de graça do mundo duro, feroz e cruel da sociedade do seu tempo. Como o
leitor é convidado a ler a fábula como um jogo, frequentemente a moralidade
encontra-se na voz de uma personagem. Esta, pode funcionar como “o coro” das
tragédias clássicas, personagem colectiva cuja função era a de prever o desenrolar
dos acontecimentos, constatar, confirmar, ou aconselhar, sendo porta-voz do bomsenso. Por isso, o porta-voz da moral intervém, com frequência, na primeira pessoa
para: constatar («À l’oeuvre on connaît l’Artisan.” I, XXI); aconselhar («Patience et
longueur de temps/font plus que force ni que rage. » II, XI ou « Jamais auprès des fous ne te
mets pas à portée.»IX, VIII); instruir (« La raison du plus fort est toujours la meilleure» I, X);
mas também se dirige directamente ao leitor («Ceci s’adresse à vous, esprits du dernier
ordre,/Qui n’étant bons à rien cherchez sur tout à mordre.» V, XVI) Mais uma vez,
reiteramos o aspecto retórico das fábulas pois, como referíamos anteriormente, dá-se
um exemplo (exemplum), através do texto, para demonstrar um propósito (propositio)
pela moralidade, que pretende ser uma “lição”, onde se mostra aos homens como
agir pelo bem, pela justiça. Muitas vezes, a moralidade é o ponto de partida para a
apresentação de um discurso argumentativo (expondo-se os argumentos e os contraargumentos), em que participam duas personagens com pontos de vista opostos,
como o empregue nos tribunais ou na praça pública, na vida política, nos debates
acesos sobre temas controversos.
Os esboços das fábulas de Esopo transformaram-se, com La Fontaine, em
pequenas cenas de género pitoresco, frequentemente coloridas de humor, com um
novo tom, familiar mas sem baixezas, cheio de charme e de nobreza, ou como lhe
chama Patrick Dandrey “la gaieté”, sobre a qual disserta num capítulo do seu ensaio
acerca de La Fontaine39. O próprio fabulista afirmava que a “gaieté” era, tal como a
novidade, o que o público do seu tempo pretendia, como se pode ler no Préface:
« Ce qu’on demande aujourd’hui c’est de la nouveauté et de la gaieté. Je n’appelle
pas gaieté ce qui excite le rire; mais un certain charme, un air agréable qu’on peut
donner à toutes sortes de sujets, même les plus sérieux.» (1995 : 47)
Nas Fábulas, o sorriso, o riso estão presentes um pouco por toda a parte e,
mesmo em assuntos considerados graves, o cómico é multiforme. O humor,
39
La fabrique des Fables, Essai poétique sur la poétique da La Fontaine (1992)2e édition, revue
corrigée et augmentée, Paris, Klinksieck, 1992
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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característico de La Fontaine, comparado com o de Esopo, provém da mistura de
tons e das intervenções maliciosas do autor sobre a base de uma estrutura
dramática. E, embora La Fontaine afirmasse que se tratava de literatura para
crianças, Les Fables eram, no século XVIII, lidas nos salões, portanto também
dirigidas aos adultos porque, segundo o fabulista em « Le pouvoir des Fables » (VIII,
IV) : «Le monde est vieux, dit-on; je le crois, cependant/Il le faut amuser encor comme un
enfant. »
As fábulas de La Fontaine foram e são conhecidas um pouco por toda a
parte40.” No século XVIII e depois no XIX, muitos fabulistas evitaram imitar La
Fontaine, procurando dar um outro tom às suas produções nacionais. A título de
exemplo, refiramos as fábulas de Florian (1755-1794), por vezes hábeis e graciosas,
mas que são inevitavelmente comparadas com as de La Fontaine; as dos alemães
Gleim (1719-1803) e Lessing (1729-1781); dos ingleses Gay (1685-1732), Prior
(1664-1721) e Dryden (1631-1700) e do espanhol Iriarte (1750-1791).
Quanto ao século XX, embora determinados autores considerem que a fábula
como género decaiu neste século, outros afirmam que a fábula encontrou um novo
sopro, não só com os desenhos animados, mas também com as paródias das fábulas
clássicas, dando-lhes novos e curiosos contornos, encontrando, assim, novas formas
de análise dos homens e dos seus comportamentos.
1.2-
«Le Loup et L’Agneau » de Esopo e de La Fontaine – uma análise.
Para percebermos melhor o que temos vindo a enunciar sobre a fábula,
seleccionámos uma de La Fontaine e a correspondente de Esopo - “Le Loup et
l’Agneau”41, das quais apresentaremos uma proposta de análise, feita em paralelo,
delimitando as principais características do género.
40
Em Portugal foram traduzidas por Bocage, Filinto Elísio, Curvo Semedo, Malhão, entre outros.
Referindo-se às Fábulas de La Fontaine, Pinheiro Chagas escreveu:
”O que constitui o seu encanto supremo é a vida potente que ele sabe dar a todos esses animais que
se movem no imenso tablado da natureza, que falam a linguagem que ele lhe presta, obedecendo a
paixões que ele lhes atribui.”
(in “Estudos Críticos”), introdução livro Fábulas de La Fontaine, Moderna Editorial Lavores, 2001, p. 5.
Esta é uma edição recente com ilustrações de Gustave Doré.
41
Para redigir a fábula « Le Loup et l’Agneau», La Fontaine teve como fontes as de Fedro (I, 1) e de
Esopo (II) com o mesmo título.
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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A escolha desta fábula advém ainda do facto de o herói animal de um dos
romances de Pennac ser o lobo.
Esopo
Le loup et l’agneau
Un loup ayant vu un agneau buvant à une rivière
voulut (le dévorer) avec un bon prétexte. C’est
pourquoi, se trouvant en amont, il l’accusa de
troubler l’eau et de ne pas lui permettre de boire.
L’autre répondant qu’il ne buvait que du bout des
lèvres et que d’ailleurs il ne pouvait pas se
tenant à l’aval, troubler en amont. Le loup ayant
manqué cet argument, dit : «Mais l’an passé, tu
as insulté mon père !» Celui-ci répondant n’être
pas encore né alors, le loup lui dit : «Même si tu
fournis facilement des excuses moi, je ne t’en
mangerai pas moins.»
La fable montre que (les gens) pour qui le
projet est de faire le mal auprès d’eux, une
juste excuse ne vaut rien.
Esope, II
La Fontaine
Le Loup et l’Agneau
La raison du plus fort est toujours la meilleure:
Nous l’allons montrer toute à l’heure.
Un agneau se désaltérait
Dans le courant d’une onde pure.
Un loup survient à jeun qui cherchait aventure,
Et que la faim en ces lieux attirait.
« Qui te rend si hardi de troubler mon breuvage ?»
Dit cet animal plein de rage :
Tu seras châtié de ta témérité.
- Sire, répond l’agneau, que Votre Majesté
Ne se mette pas en colère ;
Mais plutôt qu’elle considère
Que je me vas désaltérant
Dans le courant
Plus de vingt pas au-dessous d’Elle,
et que par conséquent en aucune façon,
je ne puis troubler sa boisson.
- Tu la troubles, reprit cette bête cruelle,
Et je sais que de moi tu médis l’an passé.
- Comment l’aurais-je fais si je n’étais pas né ?
Reprit l’agneau, je tette encor ma mère.
- Si ce n’est toi, c’est donc ton frère.
- Je n’en ai point. – C’est donc quelqu’un des tiens ;
Car vous ne m’épargnez guère,
Vous, vos Bergers et vos Chiens.
On me l’a dit: il faut que je me venge »
Là-dessus au fond des forêts
Le loup l’emporte, et puis le mange,
Sans autre forme de procès.
La Fontaine - I, X
Colocar as duas fábulas em paralelo permite, desde logo, distingui-las,
começando pela moralidade que “opera conceitos ou noções gerais, que pretende ser a
verdade “falando aos homens.” Deste modo, verificamos que, no primeiro texto, esta é
posicionada no final e no segundo no início, sob a forma de aforismo. A moralidade
do texto de Esopo “La fable montre que (les gens) pour qui le projet est de faire le mal
auprès d’eux, une juste excuse ne vaut rien” tem como objectivo fazer uma espécie de
crítica sarcástica à sociedade, como se depreende da expressão entre parêntesis
(“les gens”), colocando a tónica nas pessoas como agentes do mal e que não
aceitam desculpas, mesmo que estas sejam justas. Quanto à moralidade, em La
Fontaine, esta resume-se a um único verso, em tom proverbial/instrutivo: “La raison
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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du plus fort est toujours la meilleure” e introduz a ideia-chave que se desenvolve no
corpo do texto - a de que os fortes vencem sempre. Refira-se, ainda, que se
evidencia, desde logo, um dos paradoxos sobre o qual se desenrola o conteúdo da
fábula: a oposição entre a razão, colocada do lado do mais fraco - o cordeiro e a
força, do lado do lobo. Mostra-se a imposição do poder, do direito e das leis pelos
que se consideram os mais fortes. Pretende-se, de igual modo, denunciar a
violência, escondida, daqueles que procuram justificar, por uma razão pervertida, os
seus abusos, sobre os mais frágeis e sem poder, aspecto igualmente desenvolvido
por Esopo.
Ainda no aspecto formal, verifica-se que a fábula de Esopo, em prosa, é
bastante breve, recorrendo-se a um vocabulário simples. Por seu turno, a de La
Fontaine, em verso, é mais longa, mais complexa e mais rica, denotando-se uma
maior preocupação na escolha dos vocábulos para obedecer ao esquema rimático,
embora não demasiado rigoroso.
No que respeita ao conteúdo, a situação exposta nas duas fábulas é
exactamente a mesma: o lobo e o cordeiro, os dois protagonistas, encontram-se na
margem do ribeiro, um espaço universal, comum a muitas fábulas. Ambos vão-se
querelar, apresentando, respectivamente, os argumentos que julgam mais válidos
para a sua própria defesa. A primeira alegação do lobo é comum aos dois textos,
sendo o verbo “troubler” a palavra empregue em ambos como pretexto para a sua
atitude. Na fábula de Esopo, há um jogo de palavras, relacionado com as posições
dos dois animais, posto na boca do cordeiro - “aval/amont” - que lhe serve de meio
para explicar a sua colocação espacial em relação ao seu acusador e para se
defender da “calúnia” de que está a ser alvo. Assim, presenciamos uma discussão,
baseada na argumentação e na contra-argumentação, cuja finalidade é expor a vida
e a natureza, nas suas vertentes humana e animal.
Após o início do diálogo, acentua-se o efeito de dramatização crescente. “Le
Loup et l’Agneau” apresenta pontos comuns ao teatro clássico, sobretudo pela sua
estrutura: quer da tragédia, pela dimensão mais séria/densa, em que se defrontam
as duas forças opostas (perseguidores e perseguidos), movidas pelas paixões
(teatro das paixões), quer ainda da farsa, pela presença do patético nos argumentos
e actuação do lobo, acusador, dando ainda a ilusão de se estar num tribunal.
Vejamos como se desenrola a acção:
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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1- A exposição: apresentam-se os factos de forma breve; introduzem-se as
personagens (lobo e cordeiro) e dá-se conta dos seus principais traços, o que nos
permite conhecer desde logo o seu carácter. O lobo afigura-se como um errante
que, para além de ter fome, procura aventura, dois fortes motivos para iniciar a
quezília com o seu interlocutor; o cordeiro tem sede e vem junto do rio para a saciar.
Ficamos igualmente a saber o lugar e as circunstâncias em que se dá o encontro.
2- A sequência dos episódios. Estes são encadeados e, gradualmente, as
personagens ganham vida. Imaginamos os seus gestos, atitudes e jogos de
fisionomia42. Por detrás dos seus actos, o lobo, que se posiciona acima do cordeiro,
mostra um aspecto feroz, apresenta-se como uma besta cruel. Adivinhamos,
portanto, os seus pensamentos, sentimentos, pois está colérico e desejoso de
vingança. O cordeiro, por seu turno, parece bem mais calmo, aparentando uma
postura de submissão e humildade. Além disso, as personagens falam quase
sempre em discurso directo, sucedendo-se as intervenções ora de uma, ora de
outra, dando-nos a ilusão teatral. A acção é rápida e clara, excluindo-se detalhes
secundários. Os animais têm uma personalidade que funciona em redor de um traço
dominante. A sua psicologia revela-se nos actos e nas palavras. Lobo e cordeiro
agem segundo a principal característica, atribuída desde o início – o lobo pela força,
o cordeiro pela razão. É também o jogo das personalidades que dita as decisões, o
desfecho, tal como na lógica interna das peças clássicas43.
3- O desenlace. Tal como a introdução, este é breve e rápido. De certo
modo, é previsível e aguardado desde o início. Em alguns casos, os factos são
inesperados mas não deixam de ser verosímeis. A partir do desfecho, surge a
eficácia moral e, no caso desta fábula, a confirmação daquilo que se dissera na
moralidade, posicionada no início ou no final do texto.
42
A propósito das fisionomias dos animais intervenientes e consultando algumas ilustrações que
normalmente acompanham as fábulas, encontrámos alguns exemplos curiosos que mostram um lobo
magro, de pêlo hirsuto, orelhas erguidas, aparentando a sua altivez e cólera, provocando o terror no
cordeiro, com aspecto submisso, posicionado abaixo do seu interlocutor, de orelhas caídas.
43
Esta fábula sugere-nos a presença dos elementos da tragédia clássica. Vejamos: há desde o início
um conflito (Ágon) em que as personagens se interrogam sobre o destino (Ananké) – o lobo anuncia
ao cordeiro que o vai castigar. Lança-se um desafio (Hybris) sobretudo à ordem – o lobo ameaça
constantemente o cordeiro. Há um adensar dos conflitos (Climax) que leva ao desenlace
(Catástrofe) – que é a morte do cordeiro, já esperada desde o início. Perante os factos, o leitor, tal
como o espectador, participa dos sentimentos e apreensões das personagens (Catarse) - geradora
de compaixão e temor. Daí falar-se em tragédia como teatro das paixões, pois provoca uma
aproximação/adesão do espectador/leitor.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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A situação vivida, bem como as falas das personagens evocam certos
diálogos, extremamente densos, das tragédias e, nesta medida, evidenciam marcas
do discurso retórico44/da oratória (estilo próprio do classicismo), em que cada
interveniente pretende fazer vencer a sua posição pelo poder da palavra, uma das
regras do género. A tragédia clássica é considerada um precioso manual de retórica,
uma vez que se inspira nestes para a “construção” dos diálogos estabelecidos entre
os seus intervenientes. Relembramos as tiradas “inflamadas” de Phèdre quando,
movida pelo ciúme e pela cólera, acusa Aricide e Hippolyte, manifestando o desejo
de vingança: (Acto IV de Phèdre, de Racine - 1677)45. Podemos, igualmente, aludir
as falas de Hermione, que incarna a fúria e o ciúme, quando incrimina Pyrrhus,
manifestando também ela um forte desígnio de vingança (Acto IV de Andromaque,
de Racine - 1667). Tal como nas tragédias, onde tudo é denso, rápido, previsível
desde o início, embora os heróis se debatam para buscar uma saída, sabendo que
isso não é possível pois o futuro é inviável, também nesta fábula há uma constante
“luta”, uma desenfreada busca de saída de parte a parte, acompanhada do forte
desejo de vingança manifestado pelo lobo, e isso passa pelo recurso à palavra para
justificar a acção.
Em “Le Loup et L’Agneau” encontramos marcas da retórica judicial46; o
discurso é pautado pelo fervor da argumentação, com estratégias de persuasão,
associadas à acusação e defesa, empregues por cada um dos intervenientes.
Vocábulos como “accusa”, “argument”, “insulté”, “excuses", “juste” e “excuse” da
fábula de Esopo, e ainda os termos “châtié” e “procès”, do texto de La Fontaine,
enviam para o campo da retórica judicial. Patrick Goupon47 considera que o
desenvolvimento desta fábula se pode apresentar como uma espécie de julgamento,
em que o lobo aparece no papel de acusador, por se sentir vítima. O cordeiro,
embora seja o agredido e esteja no papel de defensor/réu, é considerado, pelo lobo,
como o causador da agressão. Não há juiz, uma vez que o narrador parece
44
Por exemplo em “Les Animaux Malades de la Peste”, o rei (o leão) faz um discurso em que,
inicialmente adopta uma atitude nobre. Os cortesãos (os outros animais) encontram argumentos
jurídicos em favor do rei acabando por culpar um pobre sem defesa (o burro). É dos homens que se
trata, dando-lhes conselhos políticos, chamando-os à realidade.
45
Referimo-nos aos textos de Racine, um dos grandes dramaturgos do século XVII, que revitaliza os
textos clássicos de Séneca e Eurípides, apresentando ainda como outras fontes Virgílio e Homero.
Phèdre e Andromaque de Racine estão construídas segundo as regras do teatro clássico.
46
Salientamos sobretudo a parte 10 do livro I, sobre a “Retórica Judicial”, pp. 80- 103, de A Retórica,
de Aristóteles (1998)
47
In Le Fablier, n.º 3
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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imparcial. É ao leitor que cabe esse papel, a quem são fornecidos os instrumentos
para reflexão. De salientar, ainda, que se a intenção do fabulista é satirizar a
sociedade dos homens, dos poderosos, que se servem do seu estatuto para atingir
os fins, então o leitor está no papel de observador e, ao mesmo tempo de “juiz”.
Que
sentimentos
manifestam?
De
que
forma?
O
lobo,
enquanto
vítima/acusador, demonstra a sua cólera, onde vai buscar a força para agir, à
medida que prossegue a argumentação. O cordeiro, como vitimador/defensor, vai
argumentando, com a sua serenidade e, através do apelo à razão, tenta defenderse. Desta forma, constata-se que o cordeiro é um “grande orador”. Este utiliza, quer
o registo enfático, quer os procedimentos da argumentação: elogia, argumenta,
persuade e defende-se. As suas tiradas são mais longas, tentando ganhar tempo
para construir a sua defesa e impedir o outro de protestar. O esquema que se segue
apresenta a progressão dos factos e o jogo dos argumentos nas duas fábulas:
Fábula de Esopo
Lobo
Cordeiro
(Acusação – r. Judicial)
...se
trouvant
en
Fábula de La Fontaine
amont
Defesa
il (reprodução da resposta)
Lobo
Cordeiro
Defesa
(tom acusador)
« Qui te rend si hardi de troubler
l’accusa de troubler l’eau de ne …qu’il ne buvait que du bout des mon breuvage ?»
pas permettre de la boire.
lèvres (…) il ne pouvait pas se Tu seras châtié de ta témérité
tenant à l’aval, troubler en amont.
(ameaça
e
dita
logo
(responde demoradamente o
a
sentença)
cordeiro, respeitosamente)
Sire, (…)que Votre Majesté
Ne se mette pas en colère ;
Mais plutôt qu’elle considère
Que je me vas désaltérant
(continua o lobo «ayant manqué
Dans le courant
cet argument»)
Plus de vingt pas au-dessous
“Mais l’an passé tu as insulté
d’Elle,
mon père »
et que par conséquent en
(reprodução da resposta)
diz o lobo)
... n’être pas encore né alors
Retoma a besta cruel)
- Tu la troubles, (…)
«Même si tu fournis facilement
des excuses moi, je ne t’en
mangerai pas moins.»
Et je sais que de moi tu médis
(argumento
(Demonstra ter certezas)
de
l’an passé
autoridade
aucune façon,
je ne puis troubler sa boisson.
pede-lhe calma e explica os
factos cuidadosamente)
implícito: como é o mais forte,
tem que agir dessa maneira, é
este quem comanda)
- Si ce n’est toi, c’est donc ton
frère.
sem argumento – MORTE
(retoma o cordeiro de forma
sagaz
- Comment l’aurais-je fais si je
n’étais pas né ?
– C’est donc quelqu’un des
(…), je tette encor ma mère.
tiens ;
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Tudo
se
resolve
rapidamente
muito tiens ;
Car vous ne m’épargnez guère,
Vous, vos bergers et vos chiens.
(profere invectivas agressivas,
- Je n’en ai point.
tem dificuldades em encontrar
(negação)
justificações para culpar o
cordeiro e ataca os seus
“familiares”)
(sem resposta)
On me l’a dit : il faut que je me
venge » - desejo de vingança
sem resposta) – MORTE
(expõe a autoridade, sem
Também aqui se nota a
deixar que o interlocutor se
precipitação dos
defenda)
acontecimentos
A fábula atinge uma dimensão universal e a moralidade/intenção pedagógica
é comprovada. “Le Loup et l’Agneau” parece, deste modo, desenvolver-se no
espaço de um tribunal – palco, como a tragédia, onde se desenrolam cenas com
uma forte densidade.
O lobo é acusador e torna-se carrasco, mas também é vítima da
irracionalidade do destino, da loucura, do caos e do absurdo do mundo dos homens.
Por isso, fala sempre na primeira pessoa, do alto da sua autoridade e quase
majestade, mais visível no texto de La Fontaine. Desde a primeira fala, dirige-se ao
cordeiro num registo predominantemente acusativo, usando frases curtas e num
ritmo rápido, em tom de ataque, afirmando que este será castigado. Prevê-se, desde
logo, o desfecho trágico, uma vez que o lobo acusa não só o cordeiro, mas todos os
da sua raça, os pastores e inclusive os seus cães. Segundo a “retórica das paixões”,
como a concebe Aristóteles48, esta é uma das formas de que o injustiçado se serve,
indo buscar antecedentes que julga favoráveis à sua defesa.
O lobo é movido, principalmente, pela ira: “A ira é um desejo acompanhado de
dor que nos incita a exercer vingança explícita por causa de um desdém manifestado contra
nós.” (Aristóteles: 1998, 107) e pelo desejo de apaziguar a sua consciência de
justiceiro/devorador/perseguidor.
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n’ A Retórica.
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Quanto ao cordeiro, este representa a fraqueza física, o perseguido, por um
lado, mas também a grandeza de espírito e a inteligência superior. As suas
respostas são semelhantes nos dois textos. Os seus argumentos são mais fortes
que os do lobo, porque pretende persuadir o seu interlocutor, construindo a sua
defesa. Assim, e uma vez acusado, o cordeiro salienta que se encontra posicionado,
no espaço inferior ao do lobo; alega que no ano anterior ainda não era nascido e que
não tem irmãos, o que não deixa de ser um jogo curioso, dado que estas respostas
surgem imediatamente justapostas aos ataques do lobo. As suas intervenções são
construídas na base da rejeição das invectivas do oponente, reforçadas pelas
partículas de negação ne... pas e pela restritiva ne... que. O animal parece aparentar
uma calma, oposta à cólera do lobo, talvez para apaziguar essa ira e aproximar-se
dele. A primeira fala do cordeiro pode expressar a sua inocência e humildade, ao
tratá-lo por «Votre Magesté», utilizando quase sempre o mesmo tom venerador,
dirigindo-se-lhe em terceira pessoa: “...elle...” e ainda “...sa boisson”. Contudo,
também podemos considerar que, em certas intervenções do cordeiro, a ironia e o
sarcasmo são evidentes, por exemplo, quando trata o lobo como um ser superior,
ridiculariza-o/rebaixa-o. De notar que o cordeiro, sendo ainda muito jovem, é
detentor de conhecimentos matemáticos “Plus de vingt pas au-dessous d’Elle”,
confirmando-se, uma vez mais, a sua superioridade intelectual.
N’A Retórica, quando Aristóteles se refere às paixões, como sentimentos que
nos fazem agir, salienta que os argumentos são empregues para afastar ou
aproximar os interlocutores. O lobo age em tom acusador pois é movido pela ira e
pelo desejo de vingança, provocando distância/afastamento. Porque não tem
resposta/argumentos plausíveis para as interposições do cordeiro, o lobo aniquila-o,
pondo em prática o resultado de toda a sua exaltação. Por seu turno, o cordeiro,
procurando a sua defesa, age com calma, tenta minimizar a distância e o fosso que
se criou entre ambos. A força do lobo está acima de tudo, logo a morte é o resultado
do afastamento total entre lobo e cordeiro. É o fim, como se vê nos dois últimos
versos da fábula de La Fontaine: “Là-dessus au fond des forêts/ Le loup l’emporte, et puis
le mange/ Sans autre forme de procès ». Podemos considerar que predomina o
discurso performativo, sendo o do lobo o eficaz, porque o leva à acção e o do
cordeiro o impotente, dado que o conduz à morte. Não importa que o cordeiro seja o
mais persuasivo, porque “La raison du plus fort est toujours la meilleure ».
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Normalmente, o agressor considera-se vítima e, como já referimos, esta
fábula demonstra que o lobo é, também ele, uma vítima, embora leve até ao fim a
sua intenção. O desejo de vingança acaba por torná-lo uma vítima. Pelo seu excesso
de vingança, os vingadores passam a vítimas e, neste caso, o lobo acaba por ser
uma vítima dos homens. Consideramos que a riqueza desta fábula está,
precisamente, neste aspecto trágico que se desenvolve em torno dos dois
intervenientes. Não podemos deixar de referir, de igual modo que, por ser um eterno
perseguido e constantemente ameaçado, o lobo é sempre representado como um
animal de aspecto famélico e esquelético.
Nesta fábula, podemos ainda confrontar-nos com as dualidades comer/devorar
(lobo) /ser comido/devorado (cordeiro), em toda a sua dimensão trágica, visível de
forma marcante. La Fontaine encara o destino humano na perspectiva da morte, pois
o cordeiro é desde logo condenado pelo lobo a ter esse fim trágico, ao contrário de
muitas fábulas em que o destino é encarado na perspectiva da vida. Em suma, está
patente uma ideia de destino, comum à tragédia, onde se desenvolve um ciclo, uma
espécie de roldana, cujos os elementos são: Homem-lobo-cordeiro-morte.
A fábula “Le Loup et l’Agneau” desenrola-se, assim, em torno de
dicotomias: forte
frágil; devorador
devorado ou carrasco
várias
vítima; vencedor
vencido. Não deixa de estar presente um universo maniqueísta: de um lado, o mau
ou o carrasco - o lobo, do outro, o bom ou a vítima – o cordeiro. Neste caso, vence o
mal, mostrando-se o lado menos bom da vida. Daí que se refira, logo à partida, que
triunfará o mais forte, alertando os homens, para que corrijam os seus defeitos, ou
seja para que se reponha a ordem do Bem sobre o Mal. “Le Loup et l’Agneau”
permite um estudo psicológico do carácter dos poderosos (lobo) e dos oprimidos
(cordeiro) e pode simbolizar a incomunicabilidade. Os animais são as máscaras do
próprio homem, como refere Luda Schnitzer (1995: 65) «Tous ces animaux-masques,
l’homme les a créés à son image et à sa ressemblence. Il ne leur a épargné nulle faiblesse
humaine. »
Na maioria dos casos, porém, verifica-se que o bem vence o mal, ou a astúcia;
a inteligência vence a força; os presunçosos e os sabichões são derrotados. Se na
fábula “Le Loup et l’Agneau” o lobo é o vencedor, noutras será posto em cheque,
derrotado por uma simples cabra ou ridicularizado pela raposa manhosa.
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Vejamos, por exemplo, em Le Cheval et le Loup (V, VIII) o lobo leva dois coices
do cavalo, quando tem de se aproximar deste para ler o que estava escrito na sua
pata e aprende uma lição, para não se considerar o mais esperto. Em Le Loup et le
Renard (XI, VI) o lobo é enganado por uma raposa ainda mais manhosa do que ele.
Tendo caído ao poço e ao ver passar por ali perto o lobo, pede-lhe ajuda, salvandose e deixando em “maus lençóis” o seu companheiro de manhas. Em Le Loup
devenant Berger (III, III) o lobo, querendo disfarçar-se de pastor para devorar o
rebanho, cai na sua própria armadilha, pois o disfarce impede-o de fugir, causandolhe a morte. Nestas fábulas, o lobo é sempre exposto ao ridículo, torna-se um animal
risível, entrando em jogo uma espécie de comédia moral, despertando o triunfo do
júbilo sobre a angústia que muitas vezes era causada pelas injustiças narradas.
Assim, nas diversas fábulas dedicadas ao lobo, podemos constatar a versatilidade
do animal, que tanto é o protagonista como a vítima do mal, o que o torna risível,
dadas as façanhas que vive. Deste modo, e como refere PatricK Dandrey, a fábula é
um motivo de riso e pode tornar-se numa pequena comédia: “L’apologue ainsi fait rire
l’enfant et sourire l’adulte – et peut-être sourire l’adulte d’entendre en lui rire l’enfant qu’il
permet encore d’être, à distance de nostalgie» (1992 : 272)
Em guisa de conclusão, apresentamos, em seguida, algumas das mais
importantes características do género fábula, tendo em conta a análise dos textos
proposta:
-
A maior parte dos textos põe em cena animais, que falam como as
pessoas, fazendo a exposição directa das virtudes e defeitos do
carácter humano, ilustrados pelo comportamento antropomórfico;
-
Pela antropomorfização há um rebaixamento de certas atitudes
humanas: como as disputas entre fortes e fracos ou ainda a
esperteza, a ganância, a avareza. Todavia, também se exaltam
outras como a gratidão, a bondade;
-
É retratada uma temática variada, essencialmente ligada à
demonstração da força dos poderosos sobre os mais frágeis, ou à
vitória da bondade sobre a astúcia, da inteligência sobre a força; à
derrota dos presunçosos e dos sabichões. Por isso, fala-se no
carácter dramático das fábulas, na medida em que há sempre uma
“luta” entre forças opostas;
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-
A presença de um espírito realista e irónico;
-
A presença da sátira - reacção de censura do autor perante o mundo
exterior;
-
A presença clara de um universo maniqueísta, sendo o mal
representado pelos poderosos, que deve ser “evitado” e o bem pelos
fracos ou pobres, que deve ser “imitado”;
-
Uma situação de crise, que aproxima a fábula da tragédia: uma acção
curta, sem episódios secundários, e bastante tensa.
-
Na fábula as personagens são, habitualmente, pouco complexas,
diríamos mesmo que são, na sua maioria, planas pois não evoluem ;
-
Não há muitos detalhes, nem descrições pormenorizadas das
personagens. O que interessa mais são as suas qualidades e
defeitos;
-
O texto pode ser em verso ou prosa, mas é breve e com diálogos, o
que deixa antever a presença da oralidade. Esta característica
prende-se com o facto dos textos terem sido, durante muito tempo,
de cariz oral;
-
O tempo é indeterminado, por isso se diz que as fábulas são
atemporais e universais;
-
O texto comporta duas partes – a narrativa, que trabalha as imagens
que constituem a forma sensível, o corpo dinâmico e figurativo da
acção e a moralidade, que é fechada, opera conceitos ou noções
gerais, e pretende ser a verdade “falando” aos homens;
-
A conclusão procura abarcar uma dimensão ético-moral, com
intenção fortemente pedagógica, pois esclarece e permite tomar
consciência sobre os problemas e conflitos de diferentes tipos entre
os seres humanos e ainda oferece estratégias para os solucionar (daí
que se integre nos compêndios retóricos, na categoria de género
didáctico);
-
As fábulas têm ainda duas finalidades: uma lúdica, pois distraem quem
as
lê/ouve
e
outra
pedagógico-didáctica,
fazendo
passar
um
ensinamento/lição.
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Em suma, a fábula, nascida da cultura popular, camponesa, transforma-se num
género onde se propõe um estudo sério sobre o comportamento humano, a ética e a
cidadania.
Mas serão estes os vectores que predominam nas fábulas de hoje? Mantêm-se
todos ou privilegiam-se uns em detrimento de outros?
É este aspecto que será abordado no próximo capítulo.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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2- A fábula em Daniel Pennac
L’Oeil Du Loup e Cabot-Caboche: romance-fábula?
Podem os textos seleccionados - L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche - ser
considerados fábulas, depois do que dissemos anteriormente?
Comecemos por uma breve sinopse das histórias.
L’Oeil du Loup conta a história de um lobo (Loup Bleu), cego de um olho,
enclausurado numa jaula de jardim zoológico de uma cidade do Ocidente, que se
cruza com um menino solitário (Afrique), também ele um ser novo naquela cidade.
Ambos estão afastados das suas origens: o lobo do Alasca; o menino da sua terra, o
continente africano. Por isso, sentem o desenraízamento, bem como a clausura: do
zoo e da cidade (L’Autre Monde).
De início, e apesar da constante insistência do menino em estabelecer uma
comunicação com o lobo, o animal parece imperturbável, na sua deambulação
permanente pela jaula. Todavia, depois da confiança alcançada, ambos vão partilhar
as histórias das suas vidas, numa enorme cumplicidade, que começa no olho aberto
de cada um, uma vez que ambos têm um dos olhos fechados. Assim começa o
desfilar de imagens, numa retrospectiva que tem início na infância de Loup Bleu,
com a sua família, no Grand Nord (Alasca), dominada pelo temor dos homens,
constantemente relembrado como o princípio da sobrevivência. Já no que diz
respeito ao menino, mostra-se, dentro do seu olho, uma vida de errância/viagem
pelas várias regiões de África (Afrique Jaune, A. Verte e A. Grise), onde ganha
novos amigos, que depois perde estranhamente. Uma vez retornados ao presente, o
lobo mostra como foi importante deixar-se seduzir e o seu olho, fechado pela
maldade dos homens e pela sua recusa de o abrir para a realidade, desperta para
um mundo de generosidade e fraternidade reencontradas, junto de Afrique, deixando
perplexos todos os que os rodeiam.
Cabot-Caboche relata o longo e penoso percurso de um cão (Le Chien),
abandonado à nascença, que efectua uma caminhada de errância e aprendizagens
sucessivas, até encontrar e cativar uma dona. Pomme, a menina caprichosa que o
adopta, cedo esquecerá as responsabilidades inerentes ao facto de ter um animal e
ignora-o. Os pais de Pomme contribuem de forma “violenta” para que, uma vez mais,
o cão seja abandonado. Este, pela sua perseverança e com a ajuda de outros
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animais, de quem se torna amigo, prepara a vingança, que culmina com a sua
adopção definitiva por parte da menina e dos adultos. Le Chien é o portador de uma
mensagem para as crianças e os adultos, que consideramos uma lição de coragem
e persistência, concluída pelo texto de Pennac, colocado no final da ficção e cujo
título é Ni dresseur ni dressé.
As histórias são protagonizadas por heróis-animais, que lhes dão o título – o
lobo e o cão – dotados de capacidades que os aproximam dos humanos e que
partilham o protagonismo com heróis humanos/crianças, cujos nomes são bastante
sugestivos (Afrique e Pomme). As aventuras animal-criança, no seu contacto com os
homens, servem-lhes, muitas vezes, de reflexão, deixando no ar as suas “opiniões
pessoais”. Pennac dá frequentemente a palavra aos animais, facto bastante mais
visível em Cabot-Caboche, em que as intervenções de Le Chien são constantes49.
Este torna-se o herói de diversas aventuras e também comentador, pois “critica” o
mundo que o rodeia, denunciando as atrocidades de que é vítima. A visão que este
animal (e também os outros que se cruzam na sua vida) tem do Homem é
extremamente satírica: os homens animalizam-se e os animais humanizam-se. Daí
que o narrador, cuja presença não podemos ignorar, privilegie sobretudo o ponto de
vista do cão, que pensa e “fala” como os homens.
Em L’Oeil du Loup nota-se menos “a tomada de palavra” por parte dos
animais, embora também se privilegie o ponto de vista, nomeadamente dos lobos e
do dromedário, já que se lhes atribui o papel de “observadores” do mundo em que
se movem. De igual modo, a personagem humana - o menino Afrique - vai relatar as
suas aventuras, com os homens e com os animais, deixando antever a sua visão
crítica.
Detectam-se, nestes romances, elementos da fábula clássica retrabalhados os animais que falam, a dimensão moral e pedagógica, embora possamos, desde já,
afirmar que se encontram, também, elementos da fábula moderna, uma vez que os
animais deixam de ser antropomorfizados e os homens tornam-se cruéis,
49
Julius, Le chien, o cão da saga Malaussène também intervém frequentemente, ou escutando e
acompanhando os raciocínios de Benjamim, ou mostrando as suas reacções perante o que escuta ou
presencia, como que marcando a sua importância enquanto personagem.
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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predominando a dimensão satírica, acompanhada da visão utópica do autor, na sua
vontade de contribuir para a mudança do “mundo às avessas” que descreve.
Em L’Oeil du Loup reconhecemos a abordagem de vários temas actuais: o
abandono, a exploração de crianças e o trabalho infantil; a emigração e a imigração;
o desenraízamento; a perseguição, a fuga e a extinção dos lobos; a destruição da
floresta e o avanço do deserto, enfim, a crueldade do Homem e o contraste entre a
civilização ocidental e os amplos espaços naturais de África e do Grande Norte. Em
Cabot-Caboche, destacam-se a adopção e o abandono dos animais, particularmente
Le Chien; os caprichos de uma criança e o esquecimento desta face aos deveres
para com o seu animal adoptado; a união entre os animais, que se opõe à desunião
cada vez mais visível entre os homens.
Para além disso, no final, ao inverso da brutalidade com que culminavam
certas fábulas, presenciamos o nascimento de uma sólida e cúmplice amizade entre
um lobo e um menino, ou um cão e uma menina, o que leva ao final feliz.
Após a breve referência feita a algumas características género fábula que
detectámos nos dois romances, apresentaremos, de seguida, as mais visíveis,
justificando as nossas opções.
2.1- A presença da Oralidade.
De entre as características da fábula salienta-se a brevidade, bem como a
predominância das marcas da oralidade, exactamente por serem textos de cariz
essencialmente oral. Assim, estes textos, normalmente “contados”, eram de
extensão breve, permitido uma melhor fixação da mensagem. Para isso, recorria-se
a uma linguagem simples e coloquial, dado que a maioria dos seus ouvintes possuía
um baixo grau de instrução ou não sabia ler nem escrever.
Talvez seja pertinente, neste momento, estabelecer uma breve distinção
entre textos de cariz oral e textos escritos com características da oralidade, sendo
de referir que o género fábula passou por estas duas esferas. Os textos antigos, em
prosa, pertenceram durante muito tempo ao domínio oral e à tradição popular.
Depois foram fixados à escrita, sendo reescritos ou recriados, quer em verso, quer
em prosa, mantendo-se, no entanto, a brevidade.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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As fábulas eram transmitidas oralmente50, ou seja “contadas”, o que poderia
estar a cargo do próprio fabulista, mas também de outra pessoa. Deste modo,
predominava uma linguagem despojada de ornamentos, com vocábulos simples, de
fácil compreensão e memorização, sendo o texto frequentemente constituído por
diálogos e uma estrutura narrativa muito básica. A retransmissão desses textos,
permitia uma espécie de diálogo entre o contador e o receptor e, assim, passaram,
durante muito tempo, de boca em boca, de terra em terra. O fabulista/ “contador”
recorria à entoação, às redundâncias, mas ainda aos gestos, para melhor se
exprimir.
Com a fixação dos textos orais à escrita, verificou-se a sua reorganização e
adaptação, embora se mantivessem algumas das marcas da oralidade, introduzindose os elementos que a reproduzem: os sinais de pontuação, os marcadores de
pausas, as frases curtas e sem complexidade sintáctica e ainda o recurso a uma
linguagem coloquial.
Daniel Pennac reconstrói a oralidade na sua escrita, usando as marcas do
prosaísmo, que a aproximam muito da linguagem do dia a dia e que conferem à
escrita um estatuto diferente. Tanto em L’Oeil du Loup e em Cabot-Caboche, como
de resto em todos os romances, nomeadamente os da saga Malaussène, a
linguagem empregue “foge”, com frequência, da “norma” escrita. Poderíamos
apresentar vários exemplos, dado que o recurso a esta estratégia é constante.
Optámos por uma citação retirada de Messieurs les Enfants, em que se reproduz o
pensamento de uma das personagens (jovem) que recorre a uma linguagem
predominantemente marcada por vocábulos do nível familiar e mesmo calão:
“L’enculé, pensa Nourdine, oh! Putain de sa mère. Je crois qu’il est en train de m’aider à
faire ma rédac et il m’interroge. (…) Le keuf des keufs ! Putain de lui ! Et je lui ai dit mon
nom ! Niqué, je suis ! Niqué, la putain de sa race ! » (p. 88)
Há quem afirme que Pennac escapa ao “politicamente correcto” porque
emprega uma linguagem com termos vulgares e familiares, frases de estrutura
simples e que nem sempre respeitam a ordem habitual. No que se refere às obras
em estudo, este aspecto é bastante visível em Cabot-caboche, embora também
50
Referimos no ponto anterior deste capítulo que as fábulas de Esopo eram de cariz essencialmente
oral, tendo sido fixadas à escrita mais tarde. Também, os contos, as lendas e muitas das narrativas
existentes hoje em recolhas escritas, foram durante muito tempo de cariz oral e pertenciam ao
folclore, à tradição popular.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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encontremos alguns exemplos em L’Oeil du Loup. Assim, a sequência de oito
interrogações retóricas que o lobo se coloca, quando olhado pelo o menino,
reproduz o seu pensamento, ao ritmo dos seus movimentos rápidos. As
interrogativas finais resumem-se a verbo + partícula negativa ou partícula negativa +
nome, como se a personagem fosse perdendo “o fôlego” e já não conseguisse
“dizer” mais do que isso, tendo em conta que representam a expressão da sua
revolta:
“Mais qui est-ce?»
«Qu’est-ce qu’il me veut?»
«Ne fait donc rien de la journée?»
«Travaille pas?»
«Pas d’école ?»
«Pas d’amis ?»
«Pas de parents ?»
51
«Ou quoi?» (p. 11)
De Cabot-Caboche seleccionámos uma citação onde predomina a linguagem
familiar e o tom coloquial usado pelo homem do talho, em diálogo com o cão. Este
recorre a interrogações que denunciam o seu “ar zangado”, como se expressasse
uma certa “raiva” contra os outros homens. Denota-se ainda uso de repetições e de
interjeições, típicas do discurso oral. Certos vocábulos remetem-nos para a maneira
de falar da personagem, que parece ser uma sátira à pronúncia da região da
Provença, o que não deixa de conferir um tom leve e humorístico ao texto:
« - Et alors, qu’est-ce que ça veut dire? On vient nous écraser nos chiengs ? Quoi ? Pas
content ? Hé ? Faut que je me fâche ? Va donc, eh, Parisieng ! (...)
“- Et toi, qui tu es, toi? D’où tu viengs ? Comment tu t’appelles? T’es pas joli, dis donc! Tu as
faimg? (p. 29)
Um outro exemplo evidencia o recurso a termos vulgares ou a reprodução da
linguagem falada, com a abreviação de palavras ou as repetições:
“- C’est pas tout ça, mais faudrait voir à le baptiser, ce corniaud
-
52
!(…)
D’accord! d’accord! Qu’on lui trouve un nom, braillèrent les invités.. (...)
- Qu’est-ce que t’en penses, ma p’tite reine? » (p. 72)
Considerando-se que a reprodução da oralidade na escrita torna possível
uma comunicação entre o autor e o leitor, há uma maior adesão, sobretudo do leitor
51
As páginas indicadas são as das edições de 1994, da Pocket Junior
Em Cabot-Caboche há vários termos empregues para “dizer” chien, como explica o narrador:
“«Clebs» c’est un autre mot pour dire chien. Il y en a d’autres, et pas beaucoup élogieux : «bâtard»,
«corniaud», «clébard», «cabot», etc. Le Chien les connaît tous ; il y a belle lurette qu’il ne se
formalise plus. » (p. 7)
52
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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mais jovem, que se identifica com este tipo de linguagem. Certos autores defendem
que, ao retratar a oralidade na escrita, a narrativa se desenvolve como forma de
comunicação do pensamento em andamento contínuo, tentando dar conta do
movimento da realidade.
A oralidade, fortemente presente no romance moderno, é uma das marcas da
revitalização do romance que se opera no século XX. Há autores que consideram
que o século XX se transforma no novo século da retórica. Foi sobretudo com Céline
(1841-1961), influenciado pelo estilo de Rabelais (1494-1553), que a língua
francesa, durante algum tempo abafada pelo preciosismo, evoluiu. Não podemos
esquecer que este século vai privilegiar a variedade, não só na literatura, como
também na arte (impressionismo, expressionismo, cubismo, fauvismo...). Céline
valoriza a língua, a oralidade popular, adaptando a língua aos temas actuais que
aborda. Em Voyage au Bout de la Nuit (1932), o autor apresenta uma língua
renovada, onde introduz a oralidade, termos de « argot », imagens que retira da
língua popular, falada nos subúrbios de Paris. O escritor enriquece a língua,
inventando novos termos, confrontando-os com expressões arcaicas; as frases são
marcadas pela cadência, cortadas por uma pontuação extrema e pela musicalidade
das palavras. Diz-se que Céline ao oralizar o estilo literário, estiliza a língua oral.
Esta é uma das marcas da modernidade da sua escrita, da sua obra e do romance
em geral.
Pennac é, notoriamente, um herdeiro das técnicas célinianas, que considera
um dos seus mestres. Por isso, também encontramos em Pennac a oralidade e o
recurso a uma linguagem do domínio do quotidiano.
Uma outra marca do romance moderno, que reproduz a oralidade, é o recurso
ao monólogo interior. Este permite reproduzir o fio dos pensamentos das
personagens, à medida que vão aflorando à sua mente, em divagações que deixam
antever tudo. Por isso, na escrita, reproduzindo-se esse discorrer de ideias, parecenos presenciar um discurso pronunciado em voz alta, por alguém que dialoga
connosco.
Refira-se ainda que a oralidade torna possível, segundo Calvino53 (1990: 51)
“... a dilatação do tempo pela proliferação duma história noutra, que é uma característica na
53
In, Seis propostas para o novo milénio, São Paulo, Companhia das Letras.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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novelística oriental. Sherazade, conta uma história, na qual se conta uma história, na qual se
conta uma história e assim por diante.”
Em Daniel Pennac54 verificamos, igualmente, que uma das marcas da
oralidade passa pela existência da história, lida ou contada, não só nos romances
que estamos a analisar, como em vários outros, técnica narrativa que aproxima o
leitor do livro. Talvez fosse esse o seu principal propósito em Comme un Roman,
onde Pennac relata a sua história, aquela que fez com que os seus alunos
passassem a gostar das histórias que lhes contava, dos romances que lhes lia por
puro prazer, “abrindo-lhes o apetite”, tentando reconciliá-los com a leitura: “Le temps
de lire, comme le temps d’aimer, dilatent de temps de vivre.» (p. 125) Na sua produção
romanesca, o autor intrinca histórias dentro da história. As personagens contam
histórias ou lêem em voz alta, tornando-se veículos de uma cultura “popular” que
tende a ser retomada na literatura actual. Reproduzindo-se a oralidade nos
romances modernos, recupera-se a tradição oral e, deste modo, pode-se
estabelecer um diálogo reflexivo sobre a condição humana e o “sentido da vida”.
A quem era antes e é hoje atribuído o papel de contador de histórias?
Para Walter Benjamin (1936)55 exitem dois grupos na arte de narrar: os
camponeses sedentários, conhecedores da tradição e os marinheiros comerciantes.
Contudo, apontam-se mais dois grupos de narradores – as mulheres e os velhos.
Assim, a missão de contar histórias era, frequentemente, deixada a cargo da
mulher, que narrava enquanto trabalhava (“mãos cheias, pensamento livre”),
adquirindo um estatuto privilegiado junto das crianças. Para além da educação,
estava-lhes destinada a tarefa de as “entreter”: recitavam fábulas, lengalengas,
provérbios ou cantavam. Ainda hoje constatamos que é quase sempre a mãe que
conta/lê uma história à criança para a adormecer. Quanto ao homem, este só o fazia
se fosse um viajante, um artesão ou um velho (desocupado que tenta resgatar a
memória através do acto de contar), o que ainda é comum entre os povos africanos,
54
Daniel Pennac, já o referimos no capítulo I, afirma que o seu grande prazer é contar histórias e que
o romancista é um contador de histórias. Por isso, lia romances em voz alta aos seus alunos ou
contava-lhes histórias, como nos dá conta em Comme un Roman.
55
BENJAMIN, Walter (1994) “ O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, in Obras
Escolhidas: magia, Técnica, Arte e Política, São Paulo, Brasiliense
________________________________________________________________________ 49
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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que normalmente se reúnem em redor da fogueira, à noite56, para ouvir o “grande
chefe”.
Em L’Oeil du Loup, Pennac insere personagens a contar histórias. Na história
do “Louveteau maladroit”, uma subversão da história de Le Petit Chaperon Rouge,
quer no conteúdo, quer no papel do contador e dos ouvintes, a loba-mãe (Flamme
Noire) conta histórias de “homens maus” aos lobinhos, para os adormecer. A sua
intenção era divertir mas também alertar os lobos para a “maldade” dos homens.
Porém, nunca lhes revela o final57. Esta opção do autor, acrescida do facto de não
ter moralidade, permite-nos reconhecer a presença da fábula moderna. O texto
apresenta-se como uma espécie de relato irónico e um pouco trágico, sobre a
perseguição e extinção dos lobos. Não necessita de moralidade porque está
subjacente a todo texto a intenção de fazer o leitor reflectir.
As duas histórias (Le Chaperon Rouge e « Le louveteau maladroit ») começam
com “Il était une fois...” (a fórmula inicial dos contos) e terminam da mesma forma,
abrupta, invertendo-se os papéis – a menina é devorada pelo lobo e a avó do lobo é
morta pelos homens, como podemos ver pelo quadro seguinte:
« Le Petit Chaperon Rouge» - Contes de « L’histoire du louveteau maladroit et de sa grand-mère trop
C. Perrault
vieille» - L’Oeil du Loup - D. Pennac
« Il était une fois une petite fille de Village, « Il était une fois un louveteau si maladroit qu’il n’avait jamais rien
la plus jolie qu’on eût su voir… » (p. 258)
attrapé de sa vie. » (p. 24)
(…)
(…)
«Et, en disant ces mots, le méchant loup se «- Alors l’Homme tua Grand Mère, lui vola sa fourrure pour se faire un
jeta sur le Petit Chaperon Rouge, et le manteau, lui vola ses oreilles pour se faire un chapeau, et se fit un
mangea.» (p. 260)
masque de son museau. » (p. 26)
Segue-se a moralidade (como conclusão)
sem moralidade e sem conclusão
Em Cabot-Caboche, Pomme lê uma história enquanto Le Chien dorme, na sua
cama, como se lha estivesse a contar baixinho para não perturbar o sono.
Porém, Pennac não atribui só às mulheres o papel de contadoras de histórias.
Nos seus romances, também os homens, velhos e novos, crianças e inclusive
56
Nos contos africanos, há quase sempre o relato de histórias por velhos homens, normalmente os
chefes das tribos, viajantes ou habitantes do deserto, em redor das fogueiras, como forma de iniciar
os jovens e as crianças nas experiências da vida.
57
Podemos levantar duas hipóteses: ou se pretende mostrar que cabe aos ouvintes, neste caso os
lobos, tirar as suas conclusões ou se deseja oferecer ao leitor um motivo de reflexão, dado que
podemos considerar este texto é uma sátira à actuação do homem, cujo racionalismo e valores
parecem ter-se perdido.
________________________________________________________________________ 50
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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animais (loba e cão) contam/recitam, o que é mais uma das suas marcas
romanescas.
Na saga Malaussène, os velhos Van Thian ou Risson (retirados do mundo da
droga ou da mendicidade das ruas, estrangeiros que habitam bairro de Belleville e
que são acolhidos na casa de Malaussène) contam histórias/lêem livros, à noite, num
espaço de partilha e de confraternização, o que leva quem escuta a sonhar. Muitas
vezes, ao escutar as conversas, as crianças solicitam que lhes relatem os
acontecimentos vividos, tal é a sua avidez pelas histórias. Benjamin Malaussène,
que não é nem velho, nem viajante ou artesão e Yasmina (a mulher-fada) contam
histórias que deliciam e entretêm, não só as crianças, mas também os adultos. São
histórias de ogres e papões de Natal, de crimes e perseguições, de polícias e
ladrões mas que não atemorizam as crianças. De salientar que, com Daniel Pennac,
defende-se uma revalorização da leitura e as histórias ganham novo fôlego junto dos
leitores/ouvintes. Estas já não são consideradas perigosas; os heróis não morrem; os
criminosos continuam a ser castigados; os ogres não são monstruosos e há fadas
boas que intervêm quase sempre. Enfim, continua a prevalecer a lei dos bons contra
os maus, à semelhança dos contos e fábulas clássicos, a moralidade ainda existe,
com a mesma finalidade pedagógica, embora com contornos diferentes.
Em L’Oeil du Loup, Afrique, uma criança-órfã-viajante, dotada de uma enorme
capacidade de contar histórias, deleita todos quantos o escutam (os habitantes do
deserto, da savana ou da floresta e ainda os animais) com as suas narrativas
inventadas ou vividas: « Alors le garçon racontait pour eux les histoires qui naissaient dans
sa tête, là-haut, sur la bosse de Casseroles. Ou bien il leur racontait les rêves du dromadaire….»
(p. 55) (…) “Toutes ses histoires parlaient de l’Afrique Jaune, le Sahara, l’Afrique du soleil, de la
solitude, des scorpions, et du silence. » (p. 55)
Esses seres escutam-no, atentamente,
criando laços afectivos, entrando no mundo maravilhoso e onírico: “Ce n’étaient pas des
voleurs. Ce n’étaient pas des animaux affamés. C’était la foule de tous ceux – hommes et bêtes –
qui venaient écouter les histoires d’Afrique. »
(pp. 66- 67). As histórias de Afrique são de
tal modo apreciadas que os comentários são os mesmos nos três locais onde as
conta:
“- Il raconte bien, non ?
- N’est-ce pas qu’il raconte bien ?
- Pour ça oui, il raconte bien!” (p. 54, 67 e 78)
________________________________________________________________________ 51
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Assim, as histórias, lidas ou contadas, podem funcionar como espaço de união,
confraternização, comunicação - troca de saberes e experiências - mas também
como propulsoras do sonho.
Afrique, uma criança, um nómada com uma vida atribulada, representante das
minorias, incarna, de certo modo, as características dos velhos contadores de
histórias, caracterizados pelas suas experiências e sabedoria, aliadas a uma longa
vida, cheia de aventuras. Este menino, que nunca deixa de o ser, revela uma
maturidade fora do comum e uma enorme imaginação criativa, oposta à imaturidade
dos adultos. Com as suas histórias, Afrique ganha adeptos/amigos (os que o
escutam, estão sempre do seu lado, partilham os momentos presentes e futuros), o
que mostra que «a união faz a força» e mesmo “... quand chacun repartait de son côté,
c’était comme s’ils restaient ensemble.” (p.
67).
Em conclusão, a oralidade e o contar histórias, dentro do romance, são
características que Pennac privilegia, possivelmente desejando recuperar a tradição
oral, inserindo-a na escrita, porque um pouco desvalorizada pela sociedade
moderna, mais preocupada com outros aspectos.58 Portanto, em L’Oeil du Loup,
Afrique, sendo um comunicador nato, representa o perpetuador da cultura popular,
vinda da fábula, retratada de uma forma interessante, que procura manter o leitor
“preso” ao texto, ao mesmo tempo que faz passar mensagens onde procura
relembrar valores que parecem esquecidos/invertidos.
2.2- O espaço e o tempo.
2.2.1 – O passado e o presente – a aventura picaresca dos heróis.
Na fábula, espaço e tempo são universais. A sua importância é praticamente
anulada pela mensagem principal que o texto pretende veicular e que não passa
propriamente pela importância dada ao local ou ao momento em que decorrem os
acontecimentos.
58
Consideramos interessante referir Peer Gynt (1867), de Henrik Ibsen, que é o exemplo de uma
história em que se critica a falta de capacidade dos homens de ouvir ou de contar, que se iniciou com
o advento da sociedade burguesa e a difusão da imprensa. O herói (o jovem Peer) é um anti-herói
que tenta resgatar a oralidade para a escrita, dotado de uma imaginação livre, contando histórias
inventadas mas em que ele próprio acredita, apesar de ser considerado um louco, mentiroso e
bêbado, que sonha tornar-se imperador.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Em Pennac, a relevância concedida ao espaço e ao tempo é evidente, dado
que ambos fornecem elementos essenciais para se entender o decurso dos
acontecimentos. Por outro lado, L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche são textos onde se
relatam factos diversos, passados em tempos e em lugares diferentes, não tão
lineares como nos contos e fábulas.
No decurso das intrigas, há uma clara oscilação entre presente-passadopresente que permite ao leitor entrever todos os factos importantes para a
construção das histórias dos quatro heróis. Neste aspecto, os dois romances
apresentam pontos comuns.
Em L’Oeil du Loup, as personagens, humana e animal, encontram-se no
presente, no mesmo local - o jardim zoológico, da cidade do ocidente - onde se
cruzam por acaso. Esse tempo presente, no início da história, representa
adversidade e infelicidade .
Entretanto, o leitor é “convidado”, juntamente com cada um dos heróis, a
viajar até ao passado. Esse retrocesso é efectuado através do “mergulho” no olho
aberto. Cada um pode constatar o início de uma vida “feliz”, porque se passa no
território onde o outro nasceu e viveu em liberdade. Loup Bleu e Afrique “relatam”
também as aventuras por que passaram, os constantes encontros com os homens e
as respectivas manobras para lhes escapar. Por isso, a sua liberdade é
constantemente ameaçada até ao momento em que o lobo é capturado ou o espaço
em que o menino vive é destruído, obrigando-os a abandonar definitivamente os
seus territórios, perdendo a independência.
No final, o retorno ao presente revela as mudanças, operadas nos dois
protagonistas, deixando de simbolizar a contrariedade, para representar a liberdade
recuperada, a felicidade, bem como a projecção num futuro melhor.
A estrutura temporal, proposta no esquema seguinte, mostra a circularidade
da história, que começa e termina no momento presente, havendo de permeio um
retorno ao passado:
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
LEUR RENCONTRE
L’OEIL DU LOUP
L’OEIL DE L’HOMME
L’AUTRE MONDE
Face a face entre lobo e Através do olho do lobo
Através do olho do
Face a face entre lobo
menino.
em que o menino
menino em que o lobo
e menino.
mergulha.
mergulha.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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No zoo da cidade do
No Grand Nord
Nas três Afriques
No zoo da cidade do
Ocidente
Ocidente
Presente
Passado
Presente
Em Cabot-Caboche as aventuras e desventuras de Le Chien, no passado e no
presente, dão-nos a conhecer um herói cuja vida é pautada pela errância,
instabilidade e fuga. As agruras que fazem parte do seu passado são evocadas
através dos seus sonhos/pesadelos, que nos reenviam até à sua infância, ficando a
conhecer as circunstâncias que o levam a aprender a sobreviver no mundo hostil em
que nasce e cresce.
O esquema que se segue resume a estrutura temporal e espacial desta história
que é ligeiramente mais complexa, estendendo-se por 39 capítulos. No entanto, há
uma sequência cronológica que não sofre grandes desvios. Deste modo, o capítulo I
passa-se no presente, tempo de ansiedade e contrastes. Do II ao XXVIII há uma
analepse que permite ao leitor conhecer as várias aventuras e aprendizagens de Le
Chien (os momentos bons e maus). A partir do capítulo XXIX, até ao fim, regressase ao presente, onde ainda persistem proezas árduas, às quais se sobrepõem as
agradáveis, verificando-se, no final, também uma projecção para um futuro melhor:
O retorno ao passado - sonhos/pesadelos
2
3
Infância, os
tempos na lixeira,
a vinda para a
cidade em busca
de uma dona, o
canil.
Cap. III a XI
Le Chien é
levado pela
menina
(Pomme) e
seus pais (
La Poivrée e
Le Grand
Musc).
Cap. XII a XVI
Início no Presente
4
O regresso a Paris, a
desolação por causa do
desinteresse de Pomme,
a fuga, o encontro com
Le Hyeneux e as
aprendizagens. O
reencontro com Pomme.
Cap. XVII a XXVIII
1
Início da
história, em
Paris, com
discussões
acerca de Le
Chien,
Os
pesadelos.
Cap. I e II
Presente e futuro em perspectiva
6
5
O regresso do cão a
casa.
Partida para férias, o
abandono e o retorno a
Paris; o acolhimento
por Le Hyeneux e Le
Sanglier; o desejo de
vingança.
Cap.
XXIX
XXXIII
a
A união dos
amigos, a
destruição do
apartamento. O
regresso de
Pomme e a
aceitação por
parte dos donos.
Cap. XXXIV
XXXIX
Tendo em conta os acontecimentos narrados e a forma como se vão
desenrolando, nomeadamente para os protagonistas, ou seja, todo um percurso de
aventuras e desventuras, que começa no passado, consideramos que Loup Bleu,
________________________________________________________________________ 54
a
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Afrique e Le Chien apresentam algumas das características dos pícaros,
domindados por uma certa tragicidade.
Quem é o pícaro?
O pícaro59 é um herói que, normalmente, se distingue pelo seu carácter de
vagabundo, de marginal, proveniente de famílias humildes (de condição social
baixa), mal vestido, um andarilho, que se movimenta em vários espaços, numa
sociedade em decomposição e onde prolifera a miséria, ou seja, um “mundo às
avessas”. Ao longo da sua vida, vai passar por incansáveis peripécias, vive com
dificuldades, pode inclusive matar ou roubar, com a finalidade de alcançar os seus
objectivos. Está condenado a levar os seus dias de mestre em mestre. Pelas
circunstâncias da vida e porque busca melhores condições para a sua miséria,
transforma-se num espertalhão, mas sem maldade. É um ser ingénuo, risonho e até
amável que, com o passar do tempo, faz aprendizagens, o que contribui para o seu
amadurecimento. Para sobreviver, vê-se obrigado a servir um amo que, muitas
vezes, é também um marginal (um cego, uma alcoviteira, um cavaleiro
empobrecido). Tal como o seu amo, este “trapaceiro” busca fortuna e ascensão
social. Todavia, a sorte é efémera e o pícaro tem de se servir de outros
estratagemas para garantir a sua sobrevivência60. Muitos consideram-no um anti59
Por pícaro designa-se o herói das novelas ou romances picarescos que surgiram em Espanha, em
meados do século XVI, sendo Lazarillo de Tormes, que se diz ser de autor anónimo, uma das suas
primeiras manifestações. Parte-se da realidade social do país onde, a seguir a um período de
expansão, se observou uma forte crise. A sociedade, empobrecida, desprezava o esforço produtivo.
Ricos e pobres davam-se o parasitismo.
O romance picaresco surge como sátira aos romances de cavalaria. Esta literatura é ainda
caracterizada por integrar narrativas (novelas e romances) de cariz autobiográfico, cujas peripécias
começam na infância e constituem, além de tudo, uma sátira impiedosa às diversas classes e
condições sociais. Fonte: http://fr.encyclopedia.yahoo.com
60
- Não podemos deixar de referir a personagem do Sancho Pança, de Don Quixote de la Mancha
(Miguel de Cervantes, 1547-1616), um bufão, homem cuja figura, as aventuras e a própria vida fazem
rir, porque se sujeita sempre às vontades de seu amo, suportando-lhe todas as esquisitices, ao
mesmo tempo que nos faz reflectir sobre a existência humana...
- E porque não referir também a personagem Bardamu, de Voyage au Bout de la Nuit de Céline, o
herói/anti-herói, um pícaro, miserável, que vive tribulações aventureiras pelos quatro cantos do
mundo, desde a França, aos continentes africano e americano, com o regresso a França e a vivência
de novas aventuras.
- Por entre os inúmeros exemplos que poderíamos mencionar, há um texto curioso de Miguel Torga,
publicado em 1943 e depois em 1985 (edição modificada), intitulado O Senhor Ventura em que o
protagonista é um pícaro que, segundo o próprio autor “representa cada um de nós, dado que somos
andarilhos do mundo, capazes em todo o lado do melhor e do pior.” (pág 4, Prefácio da 2ª Edição).
Este homem, simples, começa a sua vida no Alentejo como guardador de rebanhos, vem para
Lisboa, depois parte para Macau. Passa pela China e, desejoso de conhecer novos mundos, deserta
do exército. Trabalha como marinheiro, faz contrabando, assassina um fiel de alfândega, torna-se
empregado da Ford, sócio de restaurante, viaja até à Mongólia para entregar camiões, vende armas.
________________________________________________________________________ 55
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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herói, por ter características de bufão. No entanto, não é tratado como uma pessoa
de índole má, apenas é amoral, com traços de humor e autopiedade. Segundo
Oldrich Belic (1963), as principais características do pícaro passam pela viagem,
pela servidão e pelo carácter autobiográfico das suas aventuras.
Quem são os pícaros em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche? Porque é que
podemos considerá-los pícaros? Qual a importância da existência de pícaros nestes
romances? Será que as características atrás mencionadas estão presentes nestes
pícaros?
Afrique, Loup Bleu e Le Chien são os heróis destes dois romances que
funcionam como uma espécie de “conto de aprendizagem” ou “romance de
formação”61 que, segundo a definição proposta por Aguiar e Silva: “narra e analisa o
desenvolvimento espiritual, o desabrochamento sentimental, a aprendizagem humana e
social de um herói” (p. 730). Nas narrativas de formação, a personagem “confrontandose com o seu meio, vai aprendendo a conhecer-se a si mesma e aos outros, vai
gradualmente penetrando nos segredos e problemas da existência, haurindo nas suas
experiências vitais a conformação do seu espírito e do seu carácter.» (p. 731) Estes
romances dirigem-se a um público jovem, em formação, daí que as aventuras dos
heróis sejam marcadas pela existência de provas que estes têm que superar para
alcançar os seus objectivos. Em quase todas as histórias infanto-juvenis, os heróis
são uma espécie de pícaros (viajantes do mundo), uns com maldade, outros vítimas
dela. No final, vencem-se os perigos, os heróis são verdadeiros heróis, resistem a
tudo e a todos, conseguem resolver completamente os problemas, restaurando-se o
equilíbrio quebrado inicialmente, para “satisfação” dos leitores, mostrando-lhes que é
necessário, muitas vezes, ultrapassar os perigos para sobreviver.
Os três heróis, dos romances em estudo, passam parte das suas vidas em
viagem. Esta não é um fim, apenas um meio que a personagem encontra para
conseguir uma nova situação, viver novas aventuras e escapar às vicissitudes.
Casa com uma russa, tem um filho e, para conseguir meios para o educar, tem um negócio de
máquinas de jogo, uma garagem de taxis, uma fábrica de heroína. Como este negócio corre mal, o
Senhor Ventura vê-se obrigado a regressar a Portugal, viajando pelo mundo. Mesmo assim, no
Alentejo os negócios nem sempre correm bem. Quando consegue algum dinheiro, volta a partir para
a China, percorre de novo vários locais, faminto e esfarrapado, acabando por morrer longe da sua
terra. No fundo, este herói pícaro é, como todos os outros, marcado pela vida de aventuras
constantes, de viagem, de servidão e tentativas constantes de sobrevivência.
61
Silva, V, M. Aguiar e (1988), Teoria da Literatura,7ª Edição, Coimbra, Almedina (pp. 730-731)
________________________________________________________________________ 56
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Em virtude da guerra e da violência, o menino Afrique perde a família e vê-se,
constantemente, obrigado a viajar. A sua infância é passada entre o deserto, a
savana e a floresta africanos que, entretanto, vão sofrendo alterações, fruto da
intervenção humana (destruição da floresta e avanço do deserto). O seu destino vai
sendo traçado em cada local por onde passa. Tem vários encontros e outros tantos
desencontros com seres – humanos e animais - que contribuem para a sua
aprendizagem e experiências no mundo dos homens. Vive a um ritmo muito célere,
pois tem que crescer e amadurecer rapidamente. Serve vários amos, que são seus
mestres, passa por diversas privacidades.
Loup Bleu e a sua alcateia estão em permanente viagem/fuga, perante a
presença ameaçadora dos homens. Percorrem o Grand Nord, em busca de um
abrigo, de um refúgio, onde possam continuar a sua vida, sempre junto da alcateia.
Pelo caminho, vão perdendo familiares (Grand Loup, que morre, ou Loup Bleu,
capturado pelos homens) mas persistem em encontrar uma solução.
Le Chien palmilha caminhos (por vezes são mesmo longas distâncias) cheios
de perigos, desde a infância – a lixeira, a cidade de Nice, Paris (por onde vagueia
sozinho), o caminho de regresso a Paris (depois do abandono), sempre em busca
de uma saída. A viagem solitária (quer da lixeira para Nice, quer de regresso a
Paris) fá-lo aprender e, ao mesmo tempo, leva-o a reflectir sobre a vingança que vai
urdindo.
Estes heróis, nomeadamente Afrique e Le Chien, para sobreviverem, servem
vários mestres. Para Afrique, a servidão é um modo de vida e, acima de tudo, um
meio de subsistência. Os mestres que encontra e serve, representam os maus de
carácter, mas acabam por contribuir para a sua aprendizagem e amadurecimento,
ao mesmo tempo que garantem a sua protecção e sobrevivência. Toa le Marchand,
o primeiro mestre, é um homem de má índole, interesseiro e perverso, que se serve
do menino em seu proveito pessoal (fá-lo trabalhar duramente e cobra dinheiro pelas
suas histórias62). Segue-se Le Roi des Chèvres, o velho pastor que lhe ensina a arte
do pastoreio. Todavia, é um homem duro que não permite o mais simples deslize.
62
“Toa, le Marchand n’aurait pu trouver un garçon capable de charger et de décharger le dromadaire
plus vite que lui. Ni de présenter si joliment les marchandises devant les tentes des Bédouins, ni de
mieux comprendre les chameaux, ni surtout, de raconter de plus jolies histoires, le soir, autour des
feux… » (p. 54)
________________________________________________________________________ 57
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Finalmente, o condutor do camião, também dominado pelo seu mau carácter,
explora a criança, cobrando dinheiro pelas histórias que esta conta. Todos estes
mestres podem ser, igualmente, considerados pícaros, “trapaceiros” porque
exploram a criança, o que se torna dramático.
Le Chien tem vários mestres e com eles vai fazer um percurso de
aprendizagem contínua. Os seus mestres são os animais: Geule Noire, na lixeira; Le
Laineux e Le Nasillard, no canil e essencialmente Le Hyéneux, em Paris, os gatos e
ainda Le Sanglier (um humano que o trata bem) que contribuem, com os seus
conselhos e as suas experiências, para que conclua a sua “formação” enquanto cão.
Contudo, estes mestres são-no verdadeiramente, não representam os trapaceiros,
não o obrigam a nada, antes o submetem a provas63. Vejamos o que ensinam a Le
Chien os seus principais mestres e amigos:
“La force, ce n’est rien, dans la vie. C’est l’esquive qui
- ensina-o a fugir aos perigos -
Gueule Noire –
a velha cadela da
a palavra-chave é a “esquive” –
compte! (...) L’esquive! C’est l’art d’éviter les mauvais
4 referências em duas frases)
coups ! »(p. 20)
“Si tu vas en ville, dit-elle, fais attention aux voitures,
lixeira
l’esquive, mon petit, l’esquive.» (p. 22)
- a olhar bem em seu redor para “Eh bien !- puisque tu as les yeux ouverts profites-en pour
regarder autour de toi et apprendre vite. ”(p. 16)
que aprenda depressa;
-
a
não
hesitar,
porque
a « Quand tu as pris une décision, ne reviens jamais en
hesitação é uma grande inimiga;
arrière (...) L’hésitation c’est l’ennemie mortelle du
chien.” (p. 25)
- a desconfiar dos homens “- Méfie-toi des hommes, ils sont imprévisibles!” (p. 28)
porque estes são imprevisíveis;
(esta frase vai ser várias vezes repetida ao longo do texto)
- a descobrir e identificar os « Petit à petit, il apprit à démêler l’écheveau des odeurs,
diferentes cheiros, o que é et devint même assez fort dans cette spécialité. (…)» (p.
muito importante para o cão, na 17)
medida em que são estes que o
auxiliam na sua caminhada em
direcção ao sucesso;
- transmitem-lhe as suas normas
de
vida,
pois
foram
também
vítimas de abandono;
63
Por exemplo quando Le Hyéneux leva Le Chien a visitar o cemitério dos cães, onde este é
arranhado por um gato, ou quando o cão é colocado perante as crianças “confusas” à porta das
escolas.
________________________________________________________________________ 58
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
___________________________________________________________________________
Le Laineux e Le vítimas de abandono;
-
Nasillard,
independência,
liberdade
e “Voyez-vous, moi, ce que j’aime, c’est la liberté, la
dignité… » (p 56)
dignidade (Le Nasillard);
- no canil
- a nunca perder a coragem (Le “C’est le moment de se montrer courageux...” (p. 57)
Laineux) ;
-
Le Hyéneux
o
cão
que
conclui
os
ensinamentos “Il lui apprit tout. Tout ce que Gueule Noire n’avait pas eu
le temps de lui apprendre.”(p.114)
iniciados por Gueule Noire;
- fala-lhe dos homens, dos cães e “Tu t’assieds, tu prends l’air le plus crétin possible, et
o das suas relações; ensina-o a tu le regardes en penchant la tête à droite ou à gauche,
acolhe em Paris e reagir quando algum homem lhe une oreille pendante et l’autre dressée. (…) » (p. 115)
que termina a sua quiser bater;
« educação»
- o que significa a sedução e « - Eh bien ! Voilà… Quand on est si moche que nous le
sommes toi et moi, il n’y a qu’une seule solution : C’est la
como se processa
séduction.» (p. 115)
- porque é que as crianças são
confusas e têm comportamentos « - Il faut savoir se faire désirer.» (p. 116)
“Ce n’est pas du caprice. C’est du mélange, elle ne sait
estranhos
- a compreender as relações cães pas encore ce qu’elle veut.” (p. 118)
–gatos
e
a
possibilidade
de
coabitação
Estes cães-mestres, que também passaram por aventuras e provas duras,
quais pícaros, mas sem picarice, representam a experiência e o conhecimento,
transmitido a Le Chien. Por isso, em momentos de maior tensão, este escuta as
suas “vozes interiores”, impulsionando-o à acção. No fundo, são eles que dirigem o
“piscar de olhos” ao leitor64. Talvez por isso, a “vingança” final represente uma
espécie de lição, mostrando que a união dos animais é fortíssima, ao contrário da
cada vez maior desunião dos humanos.
As aventuras do herói/pícaro são habitualmente contadas na primeira pessoa
(daí o carácter autobiográfico, aqui um pouco diluído, porque a intervenção do
narrador faz-se notar); os episódios são estruturados de forma linear, tendo início na
64
- “Il va être trop tard, murmura une voix en lui, n’oublie pas l’hésitation est l’ennemie mortelle du
chien. » (Gueule Noire)
- « Et la dignité, fit une autre voix, qu’est-ce que tu fais de ta dignité ?» (Le Laineux)
- «Qu’est-ce que tu préfères, eh ! Patate ? Rester au chaud et recevoir des coups de balai, ou courir
librement dans le froid ? Le chien est un animal indépendant mon pote ! In-dé-pen-dant ! (Le
Nasillard) (pp. 94-95)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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sua infância. Vejamos, então, de que modo se desenvolvem as histórias destes três
heróis:
Em L’Oeil du Loup, quer a história de Loup Bleu, quer a de Afique são
narradas, no passado, por cada um, através do olho. O que o menino vê, logo de
início, na pupila do lobo: “C’est une louve noire, couchée en boule au milieu de ses petits
(...) Le pelage du sixième est bleu, bleu comme l’eau gelée sous un ciel pur. Loup Bleu ! »
(pp. 16-17), exactamente os primeiros momentos da vida da alcateia, no Grand
Nord. Seguem-se as constantes fugas dos homens, até à captura e à errância pelos
zoos. Por seu turno, o começo da vida de Afrique parece menos pacífico, porque se
passa num ambiente de guerra e hostilidade, visível na selecção de vocábulos
pertencentes ao campo lexical da violência/guerra: “Une nuit terrible. Une nuit d’Afrique
sans lune. (…) Des cris de panique, des galopades, brefs éclairs qui jaillissent de tous les
côtés, suivis de détonations. (…) La guerre ou quelque chose comme ça. (pp. 48/49), em
que a criança perde a família e se vê entregue ao destino.
Em Cabot-Caboche, tomamos contacto com a infância e com a vida de Le
Chien que, através dos seus sonhos/pesadelos, nos transporta até ao passado e à
sua vida de errância constante. Apesar de ser um animal, este cão é um pícaro, que
viaja e vagabundeia, sempre em busca de um destino melhor.
Como sobrevivem estes pícaros?
A vida destes heróis é marcada, quer pelo instinto, quer pelo espírito de
sobrevivência. O assegurar da sobrevivência passa, muitas vezes, pelos desafios
com que se deparam. Afrique nasceu no meio da guerra e da violência, podia ter
morrido. É um ser frágil que ficou sozinho no mundo. Representa os inocentes, os
perseguidos65 (tónica que foi desde sempre colocada na literatura), que está exposto
aos desígnios dos homens que o exploram, embora tenha estratégias de evasão.
Apesar das privações, aprende a sobreviver, trabalhando para garantir a sua
subsistência de forma honesta, não necessita de roubar ou matar, o que o distancia
do tradicional pícaro (por exemplo Lazarillo de Tormes), até ao momento em que
encontra os pais adoptivos (P’pa e M’ma Bia), dois humanos diferentes e sensíveis
que o aceitam, devolvendo-lhe a infância perdida, bem como a serenidade. Este
65
Normalmente as crianças eram alvos de perseguições por uma bruxa má, um ogre, um animal, um
ser de má índole (Hansel e Gretel, O Capuchinho Vermelho, A Gata Borralheira...)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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menino não apresenta características de bufão, não se torna ridículo ou risível,
talvez porque seja uma criança de boa índole.
Le Chien está várias vezes no limiar da morte à qual escapa sempre, nas
deambulações da sua vida. Logo à nascença, o animal é alvo de um afogamento66,
por ser feio, torna-se um quase miserável, um mendigo da vida; quase é morto por
uma automobilista, em Nice, e escapa da morte ao ser atirado pela janela do
camião. Contudo, o seu instinto de sobrevivência, a sua persistência, a enorme
vontade de vencer e o seu faro levam-no no encalço dos seus objectivos:
- « Ainsi pense Le Chien en cherchant son odeur sous la couche de toutes les
autres. Il cherche patiemment. Il sait qu’il la trouvera. (…) Ces millions d’odeurs qui
font un manteau de dentelle à la terre, c’est la géographie des chiens… » (pp.
164-165)
Loup Bleu, os membros da sua alcateia, mas também os outros animais
(Casseroles, le Guépard e l’Hyène, le Gorille...) vivem em permanente desafio com a
vida e, a todo o momento, podem encontrar perigos pela frente, sobretudo os
homens/perseguidores. Por isso, estão em constante fuga. Para salvar a irmã
Paillete (a desafiadora do destino, símbolo da liberdade, mas também do
inconsciente, pela maneira como se comporta e o seu constante riso; do pisar do
risco e da desobediência), Loup Bleu é capturado pelos homens e ferido num dos
olhos.
Estes heróis não desafiam o destino, são simplesmente apanhados por ele,
desde o início. Todavia, acreditam numa saída, porque encontram formas de
evasão/escape. Afrique serve-se da sedução (através do olhar e das suas histórias);
Le Chien também se serve da sedução, bem como da sua “inteligência” e
perspicácia para ir escapando aos acontecimentos negativos da sua vida.
Pelo contrário, é aos homens que cabe o papel de carrascos, ou seja os
perseguidores/os poderosos que condenam pela perseguição, ao cativeiro e ao
abandono, a criança e os animais. Por isso, o mundo está retratado às avessas.
Estes homens encaram a vida no sentido da exploração dos mais fracos, acabando
por se animalizar. São os pícaros maldosos, marcados pela brutalidade: exploram
Afrique, prendem Loup Bleu, maltratam e abandonam Le Chien.
66
Por ser feio e não servir para obtenção de lucros.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Podemos considerar que a existência destes heróis está em consonância com
a do pícaro, embora associada a uma certa tragicidade, já que há momentos
extremamente densos e com um grau considerável de dificuldades para ultrapassar.
Porém, a existência trágica destes heróis é compensada, no final, pelas conquistas
que conseguem fazer e pelo “volte-face” operado nas suas vidas.
Afrique é a personagem com mais traços de pícaro, nestes dois romances. Em
virtude de todas as aventuras em que se vê envolvida, esta criança é uma espécie
de pícaro, um errante, um vagabundo. Para Ortega y Gasset (1963) “O vagabundo
não vagueia pelo mundo por motivos externos, é um Don Juan dos povos, dos ofícios e dos
lugares. Atravessa todos os meios sem se fixar em nenhum deles. Tem a alma dinâmica de
uma flecha que se esqueceu do alvo.” Afrique, de certa maneira, é uma espécie de Don
Juan - um pequenino sedutor, sempre com boas intenções. Não é um vagabundo
no sentido pejorativo. Talvez possamos chamar-lhe simplesmente um errante,
porque é “vítima” das circunstâncias da vida (guerra, maus tratos, trabalho forçado,
exploração).
Órfão, desprotegido, um tanto solitário, com poucos amigos entre os humanos,
Afrique vê-se constantemente perante o drama de ser Homem entre os homens. As
suas reflexões e comportamentos mostram um ser experiente, observador, mas
também sonhador, que deseja reconquistar a sua liberdade, reencontrar os seus
amigos perdidos e, acima de tudo, conhecer o lobo (o único que desconhecia),
ganhar a sua confiança, fazendo com que se torne seu cúmplice. A sua perspicácia
e persistência levam-no a encontrar estratagemas para escapar ao mundo adverso,
sem ser trapaceiro. Podemos considerá-lo uma espécie de Candide67. Por um lado,
reage com alguma frieza e racionalismo às adversidades, por outro demonstra ser
um idealista/utópico, seduzindo e fazendo pactos com os animais mais ferozes. Esta
amizade criança-animais/animais-criança constitui, uma forma de utopia, de evasão,
de subsistência na sua vida de “peregrinação”. É a utopia que impulsiona o homem
à acção e o pícaro é portador dessa acção. Torna-se, por isso, símbolo de liberdade.
Afrique experimenta essa liberdade no seu “território” e junto dos animais.
67
Candide, (1759) conto de Voltaire, onde a figura de Candide representa um ser tímido, optimista
mas um pouco revoltado, sobretudo quando obrigado a matar pessoas. De certo modo, torna-se
também um pícaro porque anda em constante viagem (Holanda, Lisboa, América, Veneza,
Constantinopla), escapando sempre das desventuras por que passa.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Mais do que um simples pícaro, este menino é talvez, um “neo-pícaro” do
século XX, pois continua fruto dos antagonismos, de classes e não só. Afrique vive
sob condições de opressão, frente ao poder e à prepotência dos mestres, ou ainda
ao mundo em constante mutação, devastado pelo avanço do deserto ou pela
destruição da floresta. Presencia a perseguição e a extinção de várias espécies animais e vegetais - experimenta o abandono, a solidão e a inadaptação ao mundo
civilizado dos homens. Talvez por ser uma criança e inocente, Afrique torna-se um
pícaro sem “picarice”, é uma espécie de “bom selvagem”, para quem a natureza
inexplorada representa o “seu” espaço, apenas violado pelo destino ou pela
intervenção do homem. Não é amoral, nem traiçoeiro, vigarista ou malandro, mas
apenas uma vítima.
Podemos encarar a situação vivida por Afrique, Loup Bleu e Le Chien, no seu
contacto com os homens, semelhante à vivida pelo cordeiro e pelo lobo na fábula de
La Fontaine (“Le Loup et l’Agneau”). O lobo é também um errante, que
consideramos um pícaro, que age, por força das circunstâncias, sobre um cordeiro
indefeso e inocente.
Há, nestes romances, uma inversão intencional dos papéis: os homens,
passam a ser o lobo/o carrasco. Por seu turno, o lobo, o cão e a criança
representam o cordeiro, ou seja, as eternas vítimas. Os mais frágeis são
“espezinhados” pelos “poderosos”, estando em permanente busca de um destino
melhor. Pennac retrata este aspecto ao escolher para “vítimas” um lobo
perseguido/ferido, um cão maltratado e abandonado e uma criança constantemente
explorada, que são “pícaros” - sonhadores.
2.2.2- Espaço aberto = liberdade versus espaço fechado = clausura.
Nas fábulas, o espaço onde decorre a acção/se dá o encontro entre as
personagens intervenientes, embora mencionado é, como aludimos anteriormente,
universal, isto é, não específico de um país ou região. Normalmente, trata-se da
floresta, da margem do rio ou ribeiro, da fonte, da aldeia e das suas casas.
Em “Le Loup et L’Agneau”, os dois animais encontram-se na margem do
ribeiro, local onde se passa grande parte da “acção” (o confronto verbal/duelo). Esse
espaço é, inicialmente, partilhado por ambos, que gozam a mesma liberdade e
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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independência. Contudo, no fim, o lobo leva o cordeiro para a floresta, devorando-o.
Deste modo, a floresta torna-se local de aprisionamento e de morte para o cordeiro,
por ser mais frágil, embora represente a continuidade de liberdade para o lobo,
porque é poderoso e independente.
Em quase todas as fábulas em que o lobo intervém este, pelas suas
características, manifesta o desejo de manter a liberdade a qualquer custo e a sua
total recusa de viver em cativeiro, pois isso significaria a “morte” ou a perda do poder
conquistado68.
Observemos de que forma o espaço é representado em L’Oeil du Loup e
Cabot-Caboche, a dimensão que assume para cada um dos heróis que nele se move
e a sua importância para o desenrolar dos acontecimentos. Ao contrário da fábula,
vamo-nos deparar com uma grande variedade de espaços, que coincidem com as
diferentes etapas da vida de Loup Bleu e Afrique, Le Chien e Pomme, inclusive todos
os que gravitam em seu redor.
No
entanto,
constantemente
como
nas
marcada
fábulas,
pela
vida destas
dualidade
liberdade
quatro personagens
/clausura,
é
associada
precisamente a cada espaço.
Em L’Oeil du Loup, os diferentes espaços podem ser representados da
seguinte forma:
CIDADE = PRISÃO = Espaço adverso
Jardim zoológico - L’Autre Monde
Jaula do lobo – espaço fechado (lobo)
Espaço circundante - espaço aberto (menino)
68
Em «Le Loup et le Chien» (I, V). O cão convida o lobo, bem como os seus, a abandonar o bosque
por forma a não passarem mais fome e a terem melhores condições de vida.
«Quittez les bois, vous ferez bien:
Vos pareils y sont misérables
Cancres, haires, et pauvres diables,
Dont la condition est de mourir de faim »
De início, o lobo manifesta predisposição para mudar, porém, quando vê a marca da coleira no
pescoço do cão, logo do aprisionamento, fica indignado e precipita-se a correr, evitando ser preso,
continuando a sua vida em liberdade:
«Attaché? Dit le loup: vous ne courrez donc pas ?
où vous voulez ?
Cela dit, maître loup s’enfuit et court encor.»
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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“cages”/”barreaux”/“enclos”/ “barrages”/”grillages”
Do ponto mais fechado para o mais
aberto. Amplia-se a perspectiva.
(desconhecido e adverso)
O Olho do lobo
o Alasca - Le Grand Nord (espaço aberto e símbolo de liberdade)
JARDIM ZOOLÓGICO
Do ponto mais aberto para o mais fechado.
Inverte-se a perspectiva, ou seja, depois de
tudo visto volta-se ao zoo.
O Olho do homem
África - Afrique Jaune – Afrique Grise - Afrique Verte (espaços abertos = movimento)
JARDIM ZOOLÓGICO
(lobo e menino em plena sintonia)
O espaço físico transforma-se em espaço de partilha, de uma vivência inesquecível, deixa de ser
importante para os protagonistas, assim como a passagem do tempo. Passa a ser espaço utópico.
A forma como o autor nos faz penetrar nos espaços é salientada pela sua
visão sensorial do mundo, explorando-se os sentidos das personagens que os
observam e descrevem. Em L’Oeil du Loup é através do olho e do olhar que se
transita de espaço para espaço. Ao longo da intriga, o espaço físico caracteriza-se
essencialmente pelos contrastes de cor, os elementos mais importantes e as
sensações que transmitem, remetendo-nos para as vivências, passadas e presentes,
de cada herói. Em Cabot-Caboche é sobretudo através do faro e da visão que Le
Chien tem de cada local que se conhece cada espaço físico.
Os dois heróis são provenientes de dois amplos espaços associados a
abertura e liberdade, contrastando fortemente com o jardim zoológico e mesmo com
a cidade do ocidente = fechamento e prisão. O espaço-cidade pode ser considerado
um espaço antagónico e algo trágico. A cidade, que deveria ser um espaço aberto,
torna-se um espaço fechado (cidade=prisão), um “locus horrendus”, para Afrique e
para o lobo, fechado na jaula.
Como está fechado na jaula zoo, onde se sente prisioneiro e solitário, o lobo
vê, com apenas um dos olhos, “cages” e “grillage”, no exterior; no interior do seu
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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“enclos” há vazio, tristeza e revolta69. Por ter consciência que a sua prisão foi
perpetrada pelos homens, as suas invectivas contra eles são bastante duras.
Consideramos que o lobo é o porta-voz do autor, ganhando contornos de
“panfletário”, mostrando a sua perturbação e indignação, pela forma como se move
no exímio espaço da jaula e como reage, quer aos tratadores, quer aos visitantes. Por
seu turno, o menino, embora em liberdade, considera-se também só e privado do seu
território. Enfim, é um prisioneiro sem prisão, como nos dá conta o narrador: «Il se
sentait comme en prison, entre les murs de notre ville. Et si seul! Si seul...» (p. 85).
Zoo e cidade contrastam fortemente quer com Le Grand Nord, quer por exemplo
com a Afrique Jaune:
Le Grand Nord (ponto de vista do menino)
Tout autour c’est la neige. Jusqu’à l’horizon que
ferment les collines. La neige silencieuse de
l’Alaska, là-bas, dans le Grand Nord canadien. » (p.
18). (…)«Tout autour d’eux, la neige vole en éclats
d’argent. (p. 19)
(…)
Toujours plus loin dans le Nord. Il faisait de plus en
plus froid. La neige se changeait en glace. Les
rochers devenaient coupants.»
Nos
dois
excertos
anteriores,
Afrique Jaune (ponto de vista do lobo)
“Le jour se lève sur un tout autre paysage. (…) Pas un
arbre, pas un rocher, pas un brin d’herbe. D’immenses
collines de neige, à perte de vue. Une neige étrange,
jaune, mais qui craque et crisse, et qui glisse en
planques, comme la neige de l’Alaska. Et bien au milieu
du ciel, un soleil blanc … » (p. 51
descrevem-se
espaços
amplos
que
representam liberdade e imensidão, sendo comuns as colinas e a neve, captados
pela visão e pelo ponto de vista de quem o observa70. Refira-se, ainda, que nas
outras duas Afriques, cujos nomes derivam dos elementos cromáticos, predominam
também os elementos que caracterizam estas regiões: a Grise71 - a Savana, com
os silvados, as rochas cinzentas, as pastagens baixas e os animais que aqui têm o
69
«À l’aller (si on peut appeler ça l’aller) le loup voit le zoo tout entier, ses cages, les enfants qui font
les fous et, au milieu d’eux, ce garçon-là, tout à fait immobile. Au retour (si on peut appeler ça le
retour) c’est l’intérieur de son enclos que voit le loup. Son enclos vide…, son enclos triste, avec son
unique rocher gris et son arbre mort.» (pp. 6 e 7)
70
Apenas existe uma distinção, sendo que no primeiro excerto é a neve branca do Alasca que
predomina; no segundo a areia do deserto é metaforicamente transformada em “neige étrange,
jaune”.
71
« Cela se passa dans une autre ville du Sud, là où le désert cesse d’être de sable. Cailloux
brûlants, buissons d’épineux, et plus au sud encore, grandes plaines d’herbes sèches » (p. 56)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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seu habitat e a Verte72 - a Floresta, o denso e alto arvoredo, o verde e as clareiras,
os rios e os seus habitantes animais e humanos.
Quatro diferentes espaços, quatro cores dominantes - branco, amarelo,
cinzento e verde – quase todas cores vivas/fortes/luminosas que apelam aos
sentidos, captam a atenção, transmitem serenidade e onde há vida, apesar de
algumas adversidades. Inseridas na ficção, estas descrições incluem os elementos
caracterizadores, como a vegetação dominante, os seus habitantes, ao mesmo
tempo que fornecem informações indispensáveis, para um melhor conhecimento das
personagens e dos seus comportamentos, nos lugares em que se movimentam.
Em Cabot-Caboche são inúmeros os espaços mencionados, salientando-se
também sua importância em cada etapa da vida (passada e presente), sobretudo do
herói animal, a quem é dada uma relevância muito maior do que em L’Oeil du Loup
(em que as histórias dos dois heróis têm um tratamento equivalente).
É essencialmente a Le Chien que se concede a tarefa de descrever e analisar
cada espaço. O quadro seguinte é um resumo dos espaços (abertos/fechados), dos
acontecimentos que aí decorrem e a sua simbologia.
Acontecimentos
A infância,
em Nice
(passado)
(4 abertos/3
fechados)
A vida em Paris
(presente)
(4 abertos/5
Espaços
- A Lixeira - aberto não muito agradável, com perigos, mas espaço de aprendizagem para
Le Chien (aprende a identificar os diferentes cheiros e ainda o que significa a
sobrevivência).
- A Cidade de Nice/as ruas (aberto - por onde deambula em busca de uma dona)
- O Talho (fechado, para onde os odores o atraem, onde existe alimento)
- Uma casa desconhecida (fechado e ligado ao insucesso, não encontra uma dona)
- O Canil (fechado - onde experimenta o medo e o desespero. Mas é também aqui que
encontra a dona - Pomme)
A praia (aberto – de onde guarda a recordação de correr atrás das gaivotas e os
primeiros contactos agradáveis com Pomme e desagradáveis com os pais da menina)
- O parque de campismo (aberto - há ocorrências que marcam a vida do cão como o
baptismo. (O animal, através da observação, faz o retrato das atitudes dos humanos,
satirizando-as.)
- dentro de um apartamento (fechado e pequeno, há uma atmosfera pesada de mau
entendimento adultos-cão) – (Primeiros momentos/pesadelos)
- O apartamento (fechado: a descrição é uma crítica à forma como se vive nas grandes
cidades. Este é um lugar de discussões e discórdias: Le Chien não pode permanecer em
todas as divisões, sente o desprezo da sua dona)
- A rua (depois da fuga – aberto - mas implica solidão e abandono.)
- O metro (fechado – desorientação e fuga)
- A estação de comboios (aberto – desconhecido, observado de noite)
- O apartamento do Sanglier (fechado mas agradável, onde Le Chien se sente feliz,
onde adquire mais ensinamentos, com o seu novo amigo e mestre le Hyéneux.)
- A saída das escolas (aberto onde procura Pomme, observa as crianças e os seus
comportamentos)
72
« -Dis donc, Berger, tu sais qu’il existe une autre Afrique, une Afrique Verte, des arbres partout,
hauts et touffus comme des nuages ? » (p. 67), Tout autour, c’était la muraille végétale de la forêt, si
haute qu’on se serait cru au fond d’un puits de verdure.» (p. 77)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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fechados)
comportamentos)
- O cemitério dos cães (aberto e propício a mais aprendizagens. Aqui encontra os gatos
que guardam este local, que têm uma hierarquia organizada e bastante curiosa)
- O regresso a casa/apartamento (fechado) na companhia de Pomme, depois de uma
demorada “caminhada” para a sedução. Há agitação e desconforto pela chegada do cão.
Partida
para - A Casota (fechado mas confortável, porque preparada por Pomme)
- A caravana (fechado, onde o cão faz parte da viagem, dentro da casota, sentindo a falta
férias –
de Pomme)
- A estação de Serviço (aberto – espaço para descomprimir da clausura da viajem. Le
destino Nice
Chien observa os camiões estacionados e surpreende o diálogo de Grand Musc com os
condutores, pressagiando que algo de estranho lhe poderá acontecer.)
(Presente)
- O Camião (fechado e misterioso, para onde o cão é levado à força. Aí experimenta, uma
(2 abertos/3
vez mais, o medo)
- A ravina (abandono total - aberto – onde desmaia, depois de atirado pela janela do
fechados)
camião.
- A estrada de regresso (aberto mas de sofrimento, pois tem que percorrer um longo
caminho, que reconhece pelos odores. Tem tempo para cogitar numa forma de se vingar
O
regresso do abandono.
solitário a Paris - O apartamento do Sanglier (fechado – aí reencontra o conforto e o retempera forças
depois de longos onze dias de viagem)
- O apartamento de Pomme (fechado preparado para a vingança. No final, este fica
(Presente)
destruído à excepção do quarto da menina.)
(1 aberto/3
- O apartamento (fechado mas transformado - local de mutação de comportamentos.
A família chega com a menina doente e nem dá pela devastação de que a habitação foi
fechados)
alvo. Pomme recupera e a vida continua...
Cada espaço corresponde a uma experiência agradável ou desagradável.
Também há, como em L’Oeil du Loup, espaços abertos que representam
clausura/tragicidade/contrariedade. Outros espaços são antagónicos. Por exemplo, a
lixeira que é, para os humanos, um local incómodo e desconfortável, com cheiros
desagradáveis, serve de acolhimento aos cães, fornece alimento, permite fazer
aprendizagens: “La décharge ... c’était une bonne école” (p. 16); a rua, tanto pode
simbolizar a caminhada errante e adversa na busca do seu objectivo, como o local
de liberdade e união.
Em suma, a oscilação entre espaços abertos e fechados, associados à
liberdade e à clausura, é uma maneira de chamar a atenção do leitor sobre a
ambiguidade da vida, animal e humana, onde os homens - carrascos continuam a
perseguir as vítimas - animais e criança.
A dimensão fábula, ligada aos espaços, em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche
está relacionada com a maleabilidade com que estes mudam e alteram as suas
simbologias. O espaço, que na fábula tradicional é o lugar de lutas/duelos de forças
opostas/perdas, morte ou perda de liberdade, aqui mais não é do que a
representação de vivências marcantes das personagens, suas atitudes e
sentimentos. No fundo, para Loup Bleu, Afrique e Le Chien os espaços em que se
________________________________________________________________________ 68
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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movem representam a instabilidade do ser humano, retratada na fábula, sobretudo
na moderna, pelo “mundo às avessas”, que o próprio homem foi construindo, que
acaba por criar vítimas.
Porém, no final de cada um dos romances, os espaços, antes adversos e de
clausura,
transformam-se/metamorfoseiam-se,
como
por
magia73,
em
local
utópico/maravilhoso/onírico, de transparência total para os heróis, deixando-os
extasiados (ainda que se mantenha o mesmo aos olhos dos que são exteriores ao
seu universo). Os que estão de fora não partilham os mesmos ideais, não estão no
mesmo patamar, que é bastante elevado e apenas atingido pelos heróis, dado que
estão em igualdade de circunstâncias.
Assim, os dois romances terminam, um pouco à semelhança do conto de
fadas, embora sem a fórmula ”E foram felizes para sempre!” mas com fantasia e
magia, ligadas ao espaço, como se pode ver no quadro seguinte:
L’Oeil du Loup
Cabot-Caboche
« … il voit Paillette et Le Guépard faire les fous
au milieu du zoo, dans la poudre d’or du
Sahara… »
« P’pa Bia ouvre les portes de la serre, les
beaux arbres de l’Afrique Verte envahissent les
allées. Sur la plus haute branche – sentinelles
– Cousin Gris et le Gorille des Forêts sont
assis l’un à côté de l’autre.
Et les visiteurs ne remarquent rien…
Et le directeur du zoo qui continue sa ronde…
« (pp. 92-93)
“Le voilà seul dans l’appartement dévasté. Ça
sent le brûlé, la suie, la confiture, et plein
d’autres odeurs sympathiques. » (…)
« On dirait que la chambre de Pomme s’est
endormie. Une odeur de fleurs plane au-dessous
des autres. Le Chien attend. (p. 187)
« Il a attendu trois jours. (…) Et rien ne s’est
passé comme Le Chien avait prévu. » (p. 188)
« - Elle est chouette, ma chambre, dis, donc.
Et la neige qui tombe sur tout cela (en plein Jamais été aussi chouette. On y dormira bien,
printemps !), la belle neige muette de l’Alaska, et toi et moi.” (p. 191)
garde des secrets…
No final, estes textos distanciam-se da fábula clássica, em que o espaço
permanece igual, aproximando-se mais do conto maravilhoso, na medida em que há
metamorfoses que incluem a transformação quase total do espaço (os elementos
reais transformam-se em elementos mágicos – a neve mistura-se com a areia do
deserto/o apartamento devastado é local de acolhimento, alegria e recuperação dos
sentidos), onde predomina o onírico, a magia. As personagens parecem
transportadas, em sonho, para uma outra dimensão, sem se moverem. Em
73
Que marca o final dos contos de fadas e dos contos maravilhosos.
________________________________________________________________________ 69
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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conclusão, o espaço, antes adverso, cujos elementos estavam carregados de
negativismo e pessimismo, transforma-se em espaço utópico, ideal, onde tudo pode
acontecer. Do mesmo modo, os heróis que partilham este espaço também se
transformam. Parece haver uma metamorfose, seguida de simbiose total. Podemos
considerar isto utopia.
2.3- A dimensão utópica de L’Oeil du loup e Cabot-Caboche.
O que é a utopia? De que forma está presente nos dois romances de
Pennac? Porque estará ligada ao espaço?
O nome comum utopia74 é designado nos dicionários como proveniente do
Latim Utop a- «utopia, lugar que não existe», construído do Grego o
- «não» +
topos - «lugar».
Na linguagem corrente “utópico” quer dizer impossível, uma quimera, uma
construção puramente imaginária, cuja realização está, à priori, fora do nosso
alcance.
O nome próprio Utopia é o nome de uma ilha (país) imaginária, situada “em
lugar nenhum”75, idealizada por Thomas More, humanista inglês (1478-1535), onde
tudo está superiormente organizado, ou seja, trata-se de um local com um governo
ideal, para um povo feliz e onde existem duas ideias base: a inexistência de
propriedade privada e a satisfação dos interesses individuais ao serviço de uma
lógica colectiva. Embora sejam retirados ao homem os vícios e os males, este
continua a agir como homem, não havendo a intervenção de poderes divinos.
74
Uma outra definição de utopia é a seguinte:
O sonho, a imaginação e a inconformidade revelaram-se na utopia como o desejo de conseguir uma
sociedade ideal e perfeita. Fruto de épocas de crise, em que a imaginação do Homem se evade,
fugindo duma realidade difícil, buscando a felicidade num mundo que é apenas imaginário, mas que
seria o ideal, caso existisse.
No mundo ocidental, este assunto foi abordado tanto por Platão, na Grécia, como por Virgílio, em
Roma. Contudo, foi no Renascimento, com Thomas More, na sua obra Utopia, que este vocábulo se
tornou mais utilizado.
Elemento fundamental para percebermos este vocábulo é a vontade de ruptura com o presente e o
desejo de transformação, por vezes radical, das estruturas e valores sociais em vigor.
A utopia pode distinguir-se em várias tipologias: absolutas, relativas, negativas. Absolutas, quando
entra em total contradição com a vivência humana. Aqui incluem-se, sobretudo, as utopias
mitológicas. Relativas, quando nunca existiram projectos semelhantes, mas seria possível a sua
realização. Utopias negativas ou distopias, quando a perfeição tecnológica na sociedade escraviza a
condição humana, ou há a proposta de uma sociedade fechada e totalitária, apesar de utópica.
In, Diciopédia 2004
75
De notar, no entanto, que este “nenhum lugar” é indicado por More como sendo o Novo Mundo.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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A utopia como a preconizada por Thomas More, na Utopia (1516), deu origem
à literatura utópica, uma literatura de viagem, em que se faz o relato de um périplo,
associado à descoberta imprevista de um além ideal. Com More inicia-se um dos
motivos principais da modernidade, a que o século das luzes chamará de “la
perfectibilité humaine”. Depois de More, o género expande-se, surgindo tratados
políticos, viagens fantásticas, romances satíricos ou a exploração de mundos
extraordinários. Cidade do Sol, de Campanella (1623) ou Nova Atlântida, de Francis
Bacon (1627), são apenas dois exemplos.
Muitos autores associam a utopia a algo impossível de realizar. As utopias que
sobressaem na literatura dos séculos XVI e XVII participam numa crítica da ordem
existente e numa vontade de a reformar em profundidade. Então, podemos
considerar que as fábulas contêm o elemento utopia, em que se criticam os
poderosos, de modo a suavizá-los e convencê-los a mudar.
No século XX, e em virtude dos progressos, a literatura utópica é atravessada
pela dialéctica entre a utopia e a contra-utopia, o sonho e o pesadelo, porque muitas
vezes se abre uma porta para o melhor, outra para o pior, aparecendo, assim, a
utopia como objecto duplo, contendo uma face radiosa e outra sombria. Alguns
escritores desse século, mas também artistas plásticos mostraram, nas suas obras,
essas duas faces: por um lado, o ódio do passado que era necessário abolir, por
outro, a exaltação da máquina, da velocidade, o apelo à violência salvadora, contra
o “passivismo”, de onde surgiu a utopia técnica. Na pintura, destaca-se Fernand
Léger (1801-1955) que, fascinado pela estética da máquina, introduz o elemento
mecânico na sua obra como “arma ofensiva que permite brutalizar a tradição”. No
cinema, destaca-se o realizador austríaco Fritz Lang (1890-1976), com o filme
Metropolis76, de 1926, onde se vêem máquinas devoradoras de homens e um robot
que transforma a bela mediadora em potência maléfica. As utopias do século XX
estão voltadas para o constante desejo de mudança.
Em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche e, de certo modo, em toda a sua
produção romanesca, Daniel Pennac talvez procure um equilíbrio entre todas as as
vertentes da utopia, transmitindo às gerações futuras a necessidade/o desejo de
recuperar ideais e valores perdidos. Entendemos que o autor não preconiza uma
76
Este é considerado um dos primeiros filmes de ficção científica, cuja acção decorre em 2026 e
onde se mostra uma visão expressionista do futuro, numa época marcada pelo pessimismo.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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força totalizadora mas, ao estabelecer um entendimento animais-homens/homenshomens, num mundo real que é aquele em que vive, deixa transparecer o desejo
utópico de um mundo melhor, que retome o seu curso natural e não esteja às
avessas. Neste mundo, podem coexistir fortes e fracos, iguais e diferentes, desde
que se respeite a cadeia da vida, bem como os direitos e deveres de todos.
Como professor/pedagogo e ainda enquanto escritor, numa época que também
passou por diversas crises, a todos os níveis, ao conceber L’Oeil du Loup e CabotCaboche, para crianças e jovens, Pennac idealiza um universo totalmente
transparente e visível, onde é possível haver comunicação entre animais (em
particular um lobo) e uma criança, bem como uma amizade, sem limites, entre um
cão e uma menina que acabam seduzidos um pelo outro, depois de terem passado
por diversas provas.
Os dois romances em análise, bem como outros de Pennac77 parecem ir um
pouco no sentido das utopias do século XX. A Literatura torna-se veículo de um
pensamento utópico, em que se oferecem alternativas à sociedade, desorganizada
e desenraizada, acreditando-se num mundo melhor. Deste modo, a utopia está
associada ao sonho, que pode ou não realizar-se, mas que faculta um lado positivo
e mais optimista da vida.
Afirmávamos, no ponto anterior, que os espaços estão ligados à utopia porque,
no final, estes se transformam, deixando-nos vislumbrar um ambiente festivo, alegre,
belo, organizado, perfeito; espaço de partilha de sonhos e ideais; espaço de
comunhão e de transparência totais, de fortalecimento de laços. Espaço que deixa
de ser de contrariedade, de clausura, que deixa em aberto a possibilidade de novas
vivências, novas aventuras.
Em L’Oeil du Loup, inicialmente, o Grand Nord e as Afriques são descritos
como territórios ecologicamente quase perfeitos, onde a intervenção do homem
ainda não se nota. A vida é organizada, a alcateia dos lobos tem uma hierarquia que
é respeitada, P’pa e M’ma Bia vivem dos frutos do seu trabalho e em harmonia com
a natureza. No entanto, a intervenção do homem, que destrói e abandona, vem
perturbar a ordem existente, fazendo-os partir. Por isso, a cidade do ocidente e o
77
Reafirmamos por exemplo que Belleville, como já se referiu no capítulo I, é um lugar utópico, de
transparência, onde é possível coexistirem raças, profissões e línguas, espaço de comunhão, de
partilha e de protecção.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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zoo representam, inicialmente, espaços “impossíveis” de habitar, para o lobo e para
o menino.
Em Cabot-Caboche há locais que, para nós humanos, são o resultado da
desordem e do caos mas que, para os animais, são lugares onde se organizam e
onde mantêm uma hierarquia extremamente rígida. Trata-se da lixeira, em que
convivem restos dos homens e uma “sociedade organizada” de animais que se
entendem e vivem da partilha. Consideremos, também, o cemitério dos cães,
guardado pelos gatos, o que é curioso pois trata-se de uma inversão (normalmente
são os cães que “guardam”). Este espaço mostra uma sociedade animal,
hierarquicamente instituída, onde cada um tem as suas funções: continuam a
guardar os animais já mortos e até embelezam as sepulturas, fazendo-lhes
homenagens. Demonstra-se como os animais são capazes de partilhar espaços, de
agir em colectivo (a possibilidade de gatos e cães se entenderem e se entre-ajudar),
ao passo que os homens actuam individualmente, característica da fábula
indiscutivelmente presente.
Ao contrário, o canil é um espaço adverso, pois trata-se de uma espécie de
prisão para os cães, privados de liberdade por ordem dos homens, em nome da
segurança e do embelezamento da cidade, em época estival. Também a cidade de
Nice (que Le Chien considera igual à lixeira, só que organizada, satirizando o que
observa) e o apartamento de Paris representam ambientes um tanto adversos aos
olhos do animal, dado que a organização destes espaços não corresponde à sua
perspectiva. A organização não é natural, mas imposta; os homens não convivem,
sobrevivem, cada um para seu lado.
Nestes romances, talvez não se pretenda criar um país ou uma sociedade
utópicos, na medida em que não surgem idealizados mas descritos tal como são,
com os aspectos positivos e negativos inerentes. Porém, as personagens (criança e
animais) são detentores do desejo de viver num mundo melhor, onde reinem o
respeito pelos valores e pelo Outro; uma sociedade mais humanizada, onde animais
e humanos possam coabitar pacificamente, onde se poderia eliminar a opressão
homem-animal como forma de acabar com a violência em geral, onde se possa
revelar um mundo sem vencedores nem vencidos. Estamos perante um desejo
utópico de mudança. O romance e a arte em geral são meios de colocar o homem
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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em estado de equilíbrio com o mundo que o rodeia, de torná-lo seu, portanto mais
agradável.
Na verdade, essa utopia passa sobretudo pela existência de novos
sentimentos: pelos sonhos e desejos de conquistar o Outro e ser aceite por ele, de
se sentir desejado e não rejeitado. Cada um dos heróis guarda um sonho, uma
esperança, que pode também ser a do próprio autor. Trata-se de uma utopia
“positiva”, que encerra o sonho e o ideal de um mundo melhor, onde se abulam os
conflitos e persista a liberdade; um mundo mais feliz, transformado, pela fuga à
realidade quotidiana onde, como se pode ver pela citação seguinte: “Quand la réalité
ne le contente plus, l’homme, par le rêve, lui échappe....»78 Talvez porque, como refere o
próprio Pennac, « Rêver c’est la santé du monde. Lorsque nous rêvons nous évacuons
nos toxines mentales. Le rêve permet d’avoir des fantasmes sans passer à l’acte, cela vaut
pour toutes les sociétés. »79
Em suma, consideramos que dos diferentes vectores utópicos veiculados por
estes dois romances o sonho tem um papel preponderante, já que permite
transportar para outras dimensões, tanto so heróis, como os leitores, o que
abordaremos de seguida. Além disso, faremos também alusão ao riso, à
comunicação amorosa pelo olhar e pelo silêncio, como dois outros vectores da
utopia.
2.3.1- O Sonho
“O sonho é a centelha que salta do desejo e é através dela que vou acender as fogueiras
através das quais o rosto do mundo se ilumina. O sonho, levado aos ombros da realidade, que
o simboliza, é o projecto profundo do homem e a teologia da história. O sonho vivido, enraizado
no real que suporta, vai ser a matriz da utopia, o eixo das grandes transformações que fazem a
grandeza do processo civilizatório.”
Hélio Pellegrino, Os Sentidos da paixão (1987)
Em L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche podemos encontrar o sonho em duas
vertentes. Uma, é o facto de nos cruzarmos com personagens que têm, durante o
78
79
Encyclopédie Nouvelle de Pierre Leroux et J. Reynaud (1842)
http://www.delirium.lejournal.free.fr/inerview_daniel_pennac.htm
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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sono, sonhos80 e/ou pesadelos (Casseroles e Le Chien); a outra é o sonho como
ideal, como objectivo a alcançar, manifestado pelas personagens, mas também pelo
próprio autor.
Casseroles é um dromedário sonhador. É assim que o leitor toma contacto com
este animal: “Le chameau ne l’écoute pas. Il avance en rêvant.” (p. 51)/”... les rêves du
dromadaire qui rêve toutes les nuits et même parfois en avançant sous le soleil » (p. 55)
que cativa pela relação que estabelece com a criança. Por isso, Afrique é o único
com quem o dromedário partilha os sonhos, talvez porque seja aquele em quem
confia plenamente:
«- Salut, puceron, bien dormi?
- Comme l’Afrique ! Et toi Casseroles, bonne nuit ? («Casseroles» c’est le surnom
affectueux que le garçon donne au dromadaire.)
- Oui, beau sommeil, j’ai fait un rêve intéressant.» (p. 53)
Ambos formam um grupo restrito81, notando-se pela forma como se “tratam”:
“puceron” e “Casseroles”, ao qual os estranhos não têm acesso, porque não
conseguem ver a transparência e a confiança que existe entre ambos. Desta forma,
o diálogo que estabelecem parte do sonho, mas também do silêncio, da imobilidade
e do riso, porque só a eles é permitido ter estas capacidades.
Em Cabot-Caboche, os sonhos, que afloram ao herói Le Chien, são o meio de
evocar o seu passado. São sonhos bons e maus que, de certo modo, lembram a
desordem da sua vida: “Comme tous les rêves de chien, les siens lui font revivre les
meilleurs moments de sa vie. Les meilleurs et les autres. Toute sa vie quoi. En désordre. »
(p.11) É através do sonho que o animal “relata” os momentos importantes da vida,
dos quais destacamos os bons82 como evocação do passado, deixando ver,
claramente, o seu percurso:
80
Sonho = “uma actividade mental não dirigida, que se manifesta durante o sono” (Grande Dicionário
Enciclopédico, Clube Internacional do Livro, Vol. XIV)
81
O dromedário não aceita mais ninguém no seu dorso que não seja o menino e recusa-se sempre a
partir sem ele.
82
Quanto aos sonhos maus/pesadelos, estes relembram ao animal os momentos menos agradáveis,
mas que não fazem parte da utopia
- o seu primeiro abandono/o acordar do afogamento
- a morte de Gueule Noire;
- as diversas desventuras da viagem que fez sozinho da lixeira até à cidade de Nice ;
- as constantes recusas das pessoas que foi encontrando;
- o encarceramento no canil;
- as discussões entre os adultos, contrários à sua presença;
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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- a lixeira e as aprendizagens junto de Gueule Noire;
- a descoberta e distinção entre os diferentes odores;
- as corridas na praia atrás das gaivotas;
- os momentos passados com Pomme, no campismo e no carro, de regresso a Paris
ou, ainda, no quarto da menina que o serenava, depois do pesadelo;
- os momentos e a experiência vivida no cemitério dos cães, fazem-no sentir dentro
de um sonho.
No final da história de Le Chien, existe um sonho que se concretiza: o da
vingança por ter sido abandonado. Este facto prende-se com o seu desejo de
transformar o rumo das coisas, já que havia conseguido ultrapassar uma das etapas
da sua vida – a sedução da menina – sua dona. O principal objectivo, impulsionado
pela mãe adoptiva (Gueule Noire), era encontrar uma dona verdadeira que o
protegesse, que o adoptasse. Esse desejo corresponde à outra dimensão do sonho:
à fantasia, à utopia.
Para além de Le Chien, um cão resistente e sonhador, porque acredita sempre
que vai conseguir, Afrique, é talvez a personagem mais marcada pelo desejo
utópico/pela
vontade
de
transformação.
É
ele
que
melhor
consegue
as
metamorfoses que se operam no final, nomeadamente junto do lobo. É que, mesmo
face às contrariedades ou às constantes investidas dos homens, esta criança nunca
se revolta, parece imperturbável. No zoo, um dos seus “sonhos” é fazer com que o
lobo, inflexível, se deixe observar e conhecer.
Com L’Oeil du Loup, o autor coloca-nos perante o facto de ser exactamente
uma criança a enfraquecer a teoria de que o lobo é um animal inacessível, pois
aborda-o, sem medos, ao contrário das outras crianças e até dos adultos. Mas,
Afrique não se entende somente com o lobo. Esta criança faz sonhar animais e
humanos com as suas histórias. Torna-se propulsor do sonho, ele que é também um
sonhador. Esse espaço de confraternização talvez represente o momento em que
esquecem as agruras da realidade em que vivem83, transformando as vivências de
todos, pelo sonho, fazendo-os acreditar num mundo melhor. Há, no texto, uma
passagem que deixa antever que todos partilham dos mesmos ideais e que o sonho
ultrapassa muitos limites: “Aux animaux d’Afrique, il a raconté le Grand Nord. À Loup Bleu,
- os diversos medos, a solidão e o desespero que experimentou no seu percurso de errância, no
regresso a Paris
83
“(…)Ou bien il leur racontait les rêves du dromadaire, qui rêvait toutes les nuits,”
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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il a raconté les trois Afriques. Et tous se sont mis à rêver même quand ils ne dorment
pas !» (p. 92) O sonho conduz à união. O sonho que permite sonhar mesmo
acordado, ou seja, não acaba com o despertar, persiste, perpetuando o desejo de
continuar a acreditar, o que representa utopia.
Deste modo, podemos inferir que o sonho está ligado à transparência e à
visibilidade com que os heróis se dão a conhecer e com que agem, ao contrário dos
humanos que actuam de forma velada.
Afrique e Le Chien são seres completamente transparentes, que se deixam
conhecer e que sabem esperar pacientemente pela cedência de Loup Bleu e de
Pomme. Essa transparência passa, também, pelos sonhos, relatados, sem nada
ocultar, para que a compreensão e entendimento sejam totais. Por outro lado, o
sonho-utopia está ligado à comunhão e igualdade que se estabelece entre animais e
crianças, como forma de alertar o Homem para a possibilidade de existência pacífica
entre ambos. Todos partilham as aventuras e desventuras, o que os torna ainda
mais unidos e, colocando-se em situação de igualdade, chegam mais depressa à
comunicação e ao entendimento. Esse entendimento não necessita de palavras.
Então, estamos perante a comunicação silenciosa e total. Esta também passa pelo
riso e pela partilha de segredos.
2.3.2- O riso
Tal como os sonhos, o riso é um meio de comunicação e de partilha que os
heróis (animal – criança/ animais) encontram para escapar às maldades do mundo e
dos homens e de ultrapassar as dificuldades com que se deparam.
Deste modo, o riso pode ser encarado como uma forma de utopia,
desenvolvido em duas vertentes: uma maneira graciosa de transpor os maus
momentos e, ainda, um modo de expressar a satisfação ou de escarnecer do que os
rodeia.
Em L’Oeil du Loup, o riso, partilhado entre o dromedário Casseroles e
Afrique, parece corresponder ao ditado popular “Rir é o melhor remédio”, permitindolhes, assim, encarar os constantes sofrimentos que a vida lhes traz. Trata-se de um
riso interior, a que H. Bergson chama de “reacção defensiva”, mas que podemos
também designar de acto de resistência: «Le dromadaire et le garçon rigolent. Il y a
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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longtemps qu’ils ont appris à rire en dedans. Vus de dehors, l’un et l’autre sont lisses et
sérieux comme les dunes.» (p. 54) Para ambos, comunicar através do riso funciona
como a forma de salvar a dignidade que lhes está sempre a ser roubada. É como se,
diante da violência a que estão expostos, nomeadamente por parte de Toa,
manifestem a vontade de repor a ordem das coisas, buscando o que de melhor
existe, ultrapassando os problemas. Por outro lado, para Casseroles e Afrique, é um
modo de comunicarem sem que ninguém tenha a percepção do teor daquilo que
partilham, por entre risos. Estes risos permitem a troca de segredos, que apenas
ambos conhecem e que guardam só para si.
Estamos, uma vez mais, perante a existência de uma clareza total entre
ambos, já que este riso, “para dentro”, sinal de afastamento em relação aos outros,
os une completamente. Este riso pode ser sarcástico, já que provém da sua
observação do mundo exterior, deixando antever a ridicularização do homem (as
atitudes e gestos de Toa le Marchand, que fazem dele um pícaro maldoso, diferente
de Afrique ou de Le Chien). Estamos perante uma forma de rebaixamento, de
caricatura, pelo riso escarnecedor. Tal como afirma Henri Bergson (1900: 10): « Il n’y
a pas de comique en dehors de ce qui est proprement humain. Un paysage pourra être
beau, gracieux, sublime, insignifiant ou laid ; il ne sera jamais risible. On rira d’un animal,
mais parce qu’on aura surpris chez lui une attitude d’homme ou une expression humaine. »,
são as atitudes/os gestos e as palavras das personagens que as tornam risíveis.
Cabe ao «ethos » (locutor) a denúncia do mundo em que está inserido, uma vez que
este é detentos da verdade, justo e inocente. Assim, o invisível torna-se visível, pelo
riso, deixando cair a máscara, desmistificando aquilo que se desconhecia. O que é
isto senão uma forma de utopia?
Do mesmo modo, quando os lobos riem, com um riso escarnecedor, ao ver
Paillette enganar os homens, isso é revelador de uma espécie de satisfação,
vingança ou mesmo desprezo, porque os homens falharam o seu alvo: “Et les loups
assis tout autour, sur la rive, à rire, à rire, une rigolade, tu ne peux pas imaginer!” (p. 41)
Deste modo, o riso é um meio de comunicação entre os membros da alcateia, que
se conhecem demasiado bem e estão habituados a ser acometidos pela intervenção
do homem. Inverte-se a situação, pois agora não é o homem que ri e salta,
manifestando o contentamento pela captura dos lobos, mas os lobos que se
“vingam” pelo fracasso dos homens.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Em Cabot-Caboche esta função do riso, como forma de comunicação, é
menos visível. Le Chien é uma personagem de poucos sorrisos e manifestações
exteriores de alegria, mais marcada pelo sofrimento e pelo medo. No entanto,
parece “rir para dentro”, quando observa o mundo e os homens, de que resulta um
retrato pouco “simpático”. Esse riso é transmitindo, ao leitor, pelas constantes
invectivas e pensamentos sarcásticos, como que num piscar de olhos ”maroto”.
Porém, o riso também pode ser utilizado para expressar a satisfação, a alegria
do reencontro, talvez uma procura da perfeição, pelo que o consideramos também
uma forma de utopia. É a outra vertente do riso que focávamos atrás. Assim, em
L’Oeil du Loup, quando o menino reencontra os animais, no zoo, o riso funciona
como uma explosão de júbilo, que passa de uns para outros, como se se
contagiasse, mostrando a concretização do sonho que mantinha de se encontrarem
um dia: “De cage en cage, le fou rire se propagea à tous les animaux...” (p. 87). Destacase o riso de L’Hyène: “À dix mètres ... L’Hyène de l’Afrique Grise riait plus fort que tout le
monde » (p. 87)
Diz-se que rir é próprio do homem e que os animais não riem. Todavia, Daniel
Pennac atribui aos animais esta característica, como que humanizando-os, o que
não deixa de ser interessante. O riso que exprimem, ou de sarcasmo ou de
satisfação, e que partilham ou entre eles, ou com os humanos, pode ser entendido
como meio de comunicação, de transparência e igualdade, de entendimento total, tal
como o silêncio e o olhar, como veremos em seguida.
2.3.3- A comunicação ideal pelo silêncio e o olhar.
«On ne voit bien qu’avec le cœur. L’essentiel est invisible pour les yeux »
Saint-Exupéry, Le Petit Prince, XXI, p. 72
Perante esta temática, colocam-se-nos duas questões pertinentes nos dias de
hoje: Não será o silêncio a verdadeira utopia da comunicação entre os homens? Não
teremos necessidade de silêncio para comunicar, no mundo que nos cerca, cheio de
ruídos?
Muitos autores do século XX têm valorizado o silêncio. Por exemplo, na obra de
Céline, o silêncio é uma exigência estética. O recurso à linguagem, como meio de
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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comunicação, é considerada a pior das mentiras. Por isso, Céline escreve contra a
literatura. Bardamu, a personagem central de Voyage au Bout de la Nuit, é o homem do
silêncio, porque este é a arma dos inocentes. Assim, o silêncio contrasta, muitas vezes,
com os ruídos (da guerra, da cidade, da selva, da fábrica).
Saint-Exupéry valoriza de tal modo o silêncio que este é a “personagem” central
da sua obra. O silêncio marcou profundamente o autor, sobretudo nos momentos de
solidão, passados no deserto, aquando das suas viagens entre África ou a América e a
Europa. Em Le Petit Prince (1943), encontramos o Principezinho a dialogar com o
piloto, no profundo silêncio que domina o deserto e é aí que partilham as suas histórias.
Em Lettre à un Otage (1944)84 encontramos uma reflexão interessante sobre o silêncio,
inspirado pelo deserto do Saara: ”Un silence même n’y ressemble pas à l’autre silence. Il y a
un silence de la paix… il est le silence de midi… il est un faux silence quand le vent du nord a
fléchi… il est un silence de complot… il est un silence de mystère… il est un silence tendu… un
silence aigu… un silence mélancolique, si l’on se souvient de qui l’on aime. »
Evocamos, ainda, Vercors e Le Silence de la Mer (1942), obra profundamente
marcada pela existência de um silêncio, “aterrador”, nomeadamente da parte de duas
das personagens (tio-narrador e sobrinha) face ao oficial alemão, que ocupou a sua
casa, e que tenta manter com estes um diálogo sem nunca obter uma resposta. Fala
sempre em monólogo e, embora proclame o Amor e a Paz, é rejeitado. O silêncio pode,
deste modo, significar a impossibilidade de comunicação, porque o oficial é um
oponente (invasor/inimigo); tio e sobrinha (os ocupados) resistem pelo silêncio. As
mensagens que os dois lados conhecem não são iguais, por isso não pode haver
diálogo. Em seu lugar, persiste o silêncio e os gestos rotineiros que também são meios
de comunicação. As três personagens conhecem o valor do silêncio que se instaurou a
partir do momento em que o oficial ocupou a casa. O silêncio é a palavra-chave deste
romance. Pode simbolizar a resistência dos ocupados, a impossibilidade de
comunicação, a morte dos que foram calados pela guerra, por um lado; por outro, a
comunicação ideal, a desejada pelo narrador e pela sobrinha, para que consigam
coabitar com o invasor, durante a sua permanência.
Também em Daniel Pennac o silêncio é uma constante das suas obras.
Relativamente às obras em estudo, o silêncio pode ser interpretado como a
84
retirado de Vallières, Nathalie des (2000) Saint-Exupéry, l’archange et l’écrivain, Paris, Gallimard (p.
109)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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metáfora da comunicação ideal e, por isso, um elemento utópico. É uma forma de
comunicação interessante, frequentemente explorada85, detectada sobretudo em
L’Oeil du Loup. Ao contrário da fábula, é ao silêncio que se recorre para estabelecer
o diálogo, que vai desencadear a acção.
Deste modo, destacamos a longa conversa silenciosa, estabelecida entre lobo e
menino, através do olho que mostra tudo, ainda que em seu redor persistam ruídos e
movimentos, mas também entre o menino e os outros animais, não sendo
necessárias palavras. Neste diálogo, tudo faz sentido, ao contrário da discussão
acesa, símbolo da incomunicabilidade, a que assistimos entre o lobo e o cordeiro em
“Le Loup et l’Agneau”, que leva à morte, por não haver entendimento.
Em L’Oeil du Loup explora-se a incomunicabilidade entre os humanos, sem
tempo para dialogar, podendo considerar-se este romance uma reflexão sobre a
comunicação e a falta dela. Evocamos igualmente as reflexões que o Principezinho
(Le Petit Prince) faz quando, ao passar nos diferentes asteróides, encontra seres
solitários que não dialogam com ninguém, vivendo no seu mundo de solidão e
egocentrismo. Para além de já não dialogarem, como constatam a raposa e o
Principezinho, mas também Afrique e Loup Bleu, os homens não têm tempo nem
paciência para se escutarem uns aos outros, ou para parar e usufruir de momentos
de silêncio e reflexão, tal é a velocidade a que decorre a sua vida. Por isso, muitos
diálogos são absurdos, mantidos no meio da confusão, das correrias do quotidiano.
Ao contrário, o lobo e a criança conseguem comunicar perfeitamente, tendo inclusive
tempo para o fazer, sem que ninguém os interrompa: “Et voilà maintenant qui se
regardent, œil dans l’œil, dans le jardin zoologique désert et silencieux, avec tout le temps
devant eux. » (p. 13).
Para comunicarem de forma ideal, ambos necessitam de silêncio e calma, que
os leva a olhar-se olho no olho, num duelo cuja principal “arma” é o olhar, e onde
apenas se dá conta dos movimentos que se operam dentro do olho de cada um. O
menino permanece imóvel, em frente do lobo, e este deixa de andar agitadamente
na jaula. Verificamos que dois seres, à partida antagónicos, conseguem comunicar
perfeitamente. Tal pode mesmo levar-nos a reflectir sobre o acto de comunicarmos
com os nossos semelhantes, o que é demonstrado neste romance pelas relações
85
O autor diz-se amador do silêncio e, por isso, este aparece tantas vezes referido nos seus
romances.
________________________________________________________________________ 81
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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entre certos homens: Toa-Afrique; Toa-habitantes do deserto; condutor do camiãoAfrique e mesmo Afrique/La Roi des Chèvres. Muitas vezes, essa comunicação é
unilateral, ou não chega a concretizar-se porque efectuada em circunstâncias
adversas.
Refira-se ainda que, por vezes, o silêncio está associado a uma forma de
“resistência” encontrada pelas personagens para fazer face às atrocidades: “- Je ne
pars pas sans le garçon. Voilà ce que dit le silence du dromadaire, et son immobilité et
son regard tranquille.” (p. 53) como se demonstra na atitude do dromedário, descrita,
que prefere o silêncio como forma de reacção e que demonstra ao menino, o único
que o entende.
Para além do silêncio, a comunicação efectua-se através do olhar. O olho
aberto de Afrique e de Loup Bleu pode ser entendido como a metáfora da
comunicação amorosa, pela qual se chega ao conhecimento do mais profundo de
cada ser, mas também ao entendimento e à aceitação do Outro. Esta forma de
comunicar é identicamente uma importante reflexão, dado que hoje os homens têm
dificuldades em olharem “olho no olho” ou, o que é ainda mais difícil, de se colocarem
ao lado do outro e olhar na mesma direcção.
No entanto, também podemos considerar o olho a metáfora da aprendizagem:
enquanto o olho do lobo mostra, o do menino observa e vice versa, quando se
efectua o processo inverso. Verificamos, pois, que o olho aberto ensina e também
aprende, pois lobo e menino vão fazer uma troca de experiências. O olho passa,
deste modo, a ser o “espelho da alma” de cada um dos interlocutores, revelando o
que de mais íntimo tem para mostrar, porque é totalmente transparente, apesar do
processo de entrada no olho se revelar estranho: “Et c’est quand tout est devenu noir,
absolument noir, qu’il découvre ce que personne n’a jamais vu avant lui dans l’œil du
loup…”(p. 16). Mostra-se que, para haver conversação, são necessárias confiança,
persistência e atenção. O esquema seguinte mostra como se consegue chegar à
comunicação:
Lobo - movimento
Menino - Imobilidade
PARAGEM – igualdade de circunstâncias – Conquista de CONFIANÇA
MENINO - observador
O OLHAR
Como meio de
comunicação
LOBO - observador
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Entra no olho do lobo e a pouco e pouco toma
Entra no olho do menino, e depara-se também com
contacto com uma realidade que não conhecia e
uma realidade que desconhecia, tomando contacto
não esperava, o mundo da sua infância.
com as experiências vivida por este na sua infância.
Existem condições, proporcionadas pelo exterior, mas também criadas pelas
duas
personagens,
para que o olhar não se desvie, até que penetre
verdadeiramente no olho do outro. A partir daí, nada pode perturbar a comunicação,
nem mesmo a passagem do tempo.
Vejamos como é explorada, neste romance, a metáfora do olho que se torna o
meio de comunicação entre os dois interlocutores, permitindo-lhes partilhar as suas
vidas, sem que pronunciem uma única palavra:
A Metáfora do Olho – início da história do lobo e do menino
Olho aberto
L’Oeil du Loup (pp. 15- 44)
Olho fechado
L’Oeil de l’Homme (pp. 45- 82)
Através de um estreitamento e da cor que a
O olho do menino também se transforma:
pupila do olho vai tomando, o menino chega ao
A luz apaga-se, como se se tratasse de um túnel
mais profundo do olho do lobo, ultrapassando a
muito escuro que lobo tivesse de percorrer.
realidade, entrando de repente noutro espaço.
- «Oeil jaune, pupille noire, petites taches de
couleurs différentes »
Cada vez vê-se menos – até chegar a um local
onde:
- «tache bleue»
- «éclair d’or»
É de noite – cor escura
- “Tout est devenu noir – c’est une louve noire”
(como se a posição em que a loba se encontra
Curiosamente predomina também o negro dentro
impedisse o menino de ver para além dela)
do olho do menino, por um lado porque é de noite,
por outro porque é um momento muito dramático –
Depois de alguma oscilação de cores é a cor
a guerra.
NEGRA que predomina, para depois se
transformar em branco absoluto. Uma
No entanto há fogos (várias cores) e detonações
transformação interessante
(vários ruídos), ao mesmo tempo
(do negro ao branco = da escuridão ao
conhecimento)
Predomina um silêncio também absoluto.
Predominam ruídos, da guerra.
O silêncio surge mais tarde, quando se penetra no
deserto.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Entretanto surge o azul (cor do pêlo de Loup
Bleu) e finalmente o BRANCO da neve = frio
que predominará na paisagem como elemento
fundamental.
Quando o dia surge, é o AMARELO que vai
dominar a paisagem (= areia do deserto); depois o
CINZENTO (= rochas da savana) e o VERDE (=
floresta).
Para que o fenómeno da entrada no olho e a forma como ocorre seja totalmente
conseguido é necessário ver e mostrar bem; que ambos se coloquem em igualdade.
Afrique soube esperar pelo momento certo. Por isso, o lobo cede e anui a ser
observado: “Tu veux me regarder? D’accord! Moi aussi, je vais te regarder! On verra
bien...” (p. 12), «… il s’arrête de marcher. Il s’assied bien droit, juste en face du garçon. Et lui
aussi se met à le regarder. (…). Le vrai regard, le regard planté !»(p.12)86 O verbo
“regarder” ou o substantivo “regard” domina o discurso, sinal de que olhar/ver é o
acto mais importante, desencadeando a acção, permitindo a continuidade da
comunicação: “Pour rien au monde, il ne détournerait la tête. Pas question de se remettre
à marcher” (p. 13) A disposição com que o lobo “dialoga” com este homem é diferente
da atitude que mantinha perante os outros homens, porque Afrique olhou-o no seu
olho, mas sobretudo «avec le cœur », fazendo uso da expressão da raposa, em Le
Petit Prince.
Para além da metáfora da comunicação, o olho pode funcionar como metáfora
de vida – o olho que está aberto/está vivo permite mostrar cenas da vida de cada um;
há movimento e vida dentro deste. Porém, também pode ser a metáfora da morte ou
de resistência e referimo-nos ao olho fechado, sobretudo o do lobo. Porque foi
capturado, perdeu o olho na luta com os homens, foi enclausurado, sinal da violência
extrema, o lobo recusa-se a olhar para eles: “Et, depuis dix ans , il tient le coup: pas une
pensée pour les hommes, pas un regard, rien.» (p. 9) Portanto, o olho que mantém
fechado está, de certo modo, morto, havendo uma referência a essa morte
“simbólica”: “Et bientôt, à travers la cicatrice de son oeil mort, apparaît une larme.” (p. 13).
O lobo recusa-se a abrir o olho, mesmo que saiba que pode fazê-lo, pois não está
disposto a pactuar com o mundo em que está inserido, sobretudo com os homens:
“La vérité c’est que derrière as paupière close, l’œil du loup est guéri depuis longtemps. Mais
ce zoo, ces animaux si tristes, ces visiteurs…«Bof, s’était dit le loup, un seul œil suffit
largement pour voir ça. »” (p. 92)
86
Não é só a sua postura que se altera, também o seu discurso vai-se suavizando. No final já não lhe
denotamos as azedas referências ao Homem, que marcavam as suas intervenções iniciais
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Esta rejeição do lobo em abrir o seu olho evoca o conto de Voltaire – Le
Crocheteur Borgne87, cujo início nos reporta para uma reflexão acerca do nosso acto
de ver, e também o de observar o que nos rodeia: “Nos deux yeux ne rendent pas notre
condition meilleure; l’un nous sert à voir les biens et l’autre les maux de la vie; bien des gens
ont la mauvaise habitude de fermer le premier et bien peu ferment le second. ». Nesta
espécie de introdução filosófico-moralista, mostra-se que nem sempre é benéfico ver
o mundo com os dois olhos. A personagem principal - Mesrour – um carregador,
pobre e zarolho, que levava uma vida dura mas feliz, via o mundo com um só olho
sem se incomodar: “Il montrait qu’un oeil de plus et de la peine de moins contribuent bien
peu au bonheur.” Apesar de passar por aventuras que o levam a ver com os dois olhos
e levar uma vida faustosa, Mesrour volta à sua condição de zarolho, contentando-se
em continuar, feliz, a sua vida de “carregador”, porque “Mesrour n’avait point l’œil qui
voit le mauvais côté des choses. »
Neste conto, talvez Voltaire pretendesse mostrar aos homens como estes são
duros com a sua própria condição. É trabalhada a visão na sua dimensão simbólica.
Este homem, simples, não se revoltou e até preferiu só ter um olho porque assim via
sempre o lado bom das coisas. Ao contrário, a humanidade vê com mais frequência
o lado mau, tal é a dimensão negativa da vida e tão pouca parece ser a capacidade
de ver o outro lado, demonstrando-se o pessimismo que marca a existência humana.
O lobo, depois de se assegurar que alguém confiava em si, apercebeu-se de
que poderia ver melhor com os dois olhos, dado que mantivera aberto apenas o olho
que via o lado negativo.
Deste modo, Pennac parece responder às questões que levantámos atrás,
mostrando que a verdadeira comunicação entre os homens muitas vezes decorre não
só das palavras, mas da forma como as usamos e sobretudo do silêncio, numa época
em que cada vez existem mais meios de comunicação, mas em que se torna cada
vez mais difícil comunicar verdadeiramente. Não é esta também uma utopia?
E, para comunicar, não necessitamos de estar em sintonia? Usar o mesmo
canal? A mesma onda? Muitas vezes temos que conquistar primeiro o nosso
interlocutor, como aconteceu com os heróis Afrique e Le Chien...
87
www.voltaire-intégral.com/html/21/CROCHETE/htm
No conto narra-se as aventuras deste homem que, ao longo da vida, passa por experiências distintas,
talvez para mostrar a ambivalência da natureza humana e os dois lados dessa existência – o bom e o
mau.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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2.3.4- A conquista amorosa.
Le Petit Prince, L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche
A sedução operada entre os heróis animal e criança (Afrique e Loup Bleu/Le
Chien e Pomme) é uma estratégia de comunicação mas, essencialmente, uma forma
de conquista amorosa.
Esta conquista amorosa, verificada em L’Oeil du Loup e em Cabot-Caboche,
evoca a passagem relatada no capítulo XXI de Le Petit Prince - diálogo entre o
Principezinho e a raposa sobre a sedução.
No quadro que se segue, apresentamos a transcrição dos excertos dos três
textos, onde se nota a intertextualidade (bastante mais visível em Cabot-Caboche),
pela proximidade dos diálogos:
Le Petit Prince (pp. 67-68)
Je n“ «- Je ne peux pas jouer avec toi, dit le
renard. Je ne suis pas apprivoisé. »
(raposa)
(...)
«Qu’est-ce
«apprivoiser » ?
que
Cabot-Caboche (pp. 115-116)
L’Oeil du Loup (p. 62)
« - Eh bien ! Voilà… Quand on est
si moche que nous le sommes toi et
moi, il n’y a qu’une seule solution :
C’est la séduction.
signifie - C’est quoi, la séduction ?
- Non, dit le Petit prince. Je cherche (…)
des amis. Qu’est-ce que signifie
«apprivoiser» ?
- C’est une chose très oubliée, dit le
renard. Ça signifie «créer des - Il faut savoir se faire désirer.
liens… »
- Et comment on fait ?
Silence. Long regard. Soupir.
- Créer des liens ?
- Je t’apprendrai. »
- … mais si tu m’apprivoises, nous
aurons besoin l’in de l’autre. Tu seras
pour moi unique au monde. Je serai
pour toi unique au monde...”
« - Guépard, si tu faisais le
berger avec moi ? » (…)
“- Tu as besoin d’un ami,
Guépard, et moi aussi.
diálogo raposa/principezinho
Diáolgo Afrique/Le Guépard
Diálogo Le Hyéneux/Le Chien
Voilà c’est ainsi que cela c’était
passé avec le Guépard: Afrique
et lui étaient inséparables.» (p.
62)
Verificamos que os diálogos estabelecidos entre raposa/Principezinho, dois
cães ou ainda menino/fera têm pontos comuns. Para a raposa, é importante a
palavra “apprivoiser”, para Le Hyéneux “séduction”, para o menino “besoin” e “ami”.
Nos três diálogos, deparamo-nos com a constatação da importância da sedução, da
criação de laços/de pactos de amizade para se chegar à comunhão perfeita, e até
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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muito além, ao verdadeiro amor. Só depois de estarem em sintonia, de terem
chegado a um acordo, é que raposa e Principezinho dialogam, Afrique e Le Chien
chegam ao entendimento com os seus interlocutores – Loup Bleu e Pomme –
também após uma espécie de “contrato”. Depois do acordo, vêm os fortes laços que
os unem, no final de cada história, e que projectam para o futuro uma relação
duradoura.
Le Petit Prince, de Saint Exupéry é um texto poético e simbólico, de referência,
que se tornou intemporal e lido por pessoas de todas as idades. Por isso, este livro
está entre os mais traduzidos e vendidos no mundo inteiro, sendo considerado uma
fábula moderna, sobre o valor da vida, do amor, da amizade e da necessidade de
valorizar aquilo que realmente é importante.
Porquê a sua comparação com L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche?
Pelas semelhanças dos diálogos, que detectámos aquando da colocação dos
excertos em paralelo, mas também porque consideramos as preocupações do autor
semelhantes às de Daniel Pennac, que segue, de certo modo, temáticas muito
semelhantes, embora em épocas diferentes.
O narrador de Le Petit Prince é um piloto que experimentou uma solidão total,
em pleno deserto, em virtude de uma avaria no seu avião. É acordado pela voz,
doce e serena, de um menino que lhe relata a sua longa viagem, por diferentes
asteróides, e lhe revela as suas fantasias de criança. Este menino, espontâneo e
ingénuo (assemelha-se bastante a Afrique), também é um errante, que percorre
inúmeros locais em busca de amigos88, sente a angústia pelas dificuldades em
atingir os seus objectivos e desabafa com o único ser que o consegue ouvir.
Compreende os adultos mas não é compreendido por eles: o rei (poderoso mas que
não governa ninguém), o homem de negócios (demasiado ocupado e sério para dar
importância a uma criança), o bêbado (que bebe para esquecer que é bêbado), o
geógrafo (que não conhece a geografia do seu próprio país). Reflecte-se sobre a
incomunicabilidade e a incompreensão muitas vezes existentes entre os homens.
Em Le Petit Prince, o narrador mostra-se incompreendido desde criança
(ninguém entendia os seus desenhos, as suas intervenções, os seus desejos) e
desapontado com a falta de capacidade dos adultos para entender as crianças, eles
88
De certo modo o Principezinho é também um ser errante, um pícaro, até encontrar o piloto e a
raposa.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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que também tinham sido crianças. Com o Pricipezinho, as suas histórias e as
revelações inesperadas, sobretudo com a grande lição de que é portador, o piloto
aprende novamente a ser criança e relembra as suas angústias de criança.
O Principezinho: visão ou sonho? Quimera ou delírio? Admitimos que é um ser
estranho, mas que nos deixa uma mensagem sobre o sentido da vida, que aprende
e ensina a valorizar aquilo que realmente é importante, bem como a necessidade de
cativar os outros, precisamente com uma raposa. Normalmente considerada um
animal manhoso e traiçoeiro89, esta raposa vai ensinar o valor de criar e manter
laços (“apprivoiser” = “Créer des liens”). Só assim, para a raposa, se reconhecerá a
verdadeira importância do que se consegue conquistar90. Além disso, a raposa
relembra que os homens já não têm tempo para nada (os homens que até se
alimentam de comprimidos, para não perderem tempo a comer): “Les hommes n’ont
plus le temps de rien connaître. Ils achètent des choses toutes faites chez les marchands »,
contrapondo-se a atitude dos homens à das crianças “- Les enfants seuls savent ce
qu’ils cherchent, fit le petit prince. Ils perdent du temps pour une poupée de chiffons et
elle devient très importante, et si on la leur enlève, ils pleurent…» (cap. XXII)
Em suma, o que a raposa afirma resume-se às constatações que servem de
ensinamentos, quer para o Principezinho, quer para os homens/leitores, a quem se
pretende chamar à atenção:
-
Que só se conhecem as coisas que se cativam/que são conquistadas;
-
Que os homens não têm tempo para nada;
-
Que os homens compram tudo;
89
Na novela O Romance da Raposa,1924, de Aquilino Ribeiro, temos oportunidade de conhecer uma
raposa Salta Pocinhas, manhosa e esperta, que procura todos os meios para atingir os seus fins e,
por isso, acompanhamos a sua aventura de aprendizagem na luta constante do dia a dia pela busca
das suas pesas – as galinhas. Primeiro, é acompanhada pela progenitora, depois actua sozinha, já
com a lição bem estudada.
90
A raposa, mostra-se cansada da vida monótona que levava, em poucas palavras transmite uma
mensagem que consideramos ousada, pois coloca-se na boca do animal a sátira ao mundo e aos
homens. No fundo, a vida desta raposa era um pouco semelhante à do rei, do homem de negócios,
do acendedor de candeeiros, do bêbado, do vaidoso, do geógrafo, mesmo do “aiguilleur” ou da
serpente, encontrados pelo Principezinho em cada planeta, pois todos viviam sozinhos e em busca
de algo.
Contudo, a raposa consegue dar a volta e transformar a sua vida insípida, fazendo o relato de uma
experiência excepcional, acabando por criar laços com um ser fantástico como o Principezinho. Face
à desculpa de falta de tempo, manifestada pelo menino, e ainda a dois outros aspectos focados por
ele (a procura de amigos e as coisas que quer conhecer), a raposa contrapõe-lhe argumentos muito
fortes, num tom mordaz, alertando-o a ele mas também aos homens para algo que fora esquecido,
palavra que a raposa emprega para se referir a alguns valores que parecem perdidos na sociedade
actual.
________________________________________________________________________ 88
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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-
Contudo, não podem comprar a amizade;
-
Por consequência, não têm amigos;
-
Que para se conseguir um amigo é necessário cativá-lo;
-
Para cativá-lo, deve ser-se paciente.
Esta mensagem da raposa pode ser, de certo modo, igualada às que Pennac
coloca nas personagens de Afrique e de Le Chien, no seu contacto com aqueles com
quem se relacionam, sejam eles adjuvantes ou oponentes .
Em L’Oeil du Loup, o sedutor é o menino Afrique e os alvos da sua sedução são
os animais e os homens. A mensagem que Pennac faz passar pela personagem de
Afrique, nas suas relações com os animais e com os homens, é semelhante à da
raposa e, no fundo, a todo o texto de Saint Exupéry. Afrique é paciente, espera para
seduzir o seu interlocutor, sabe como lidar com ele, nada é comprado, tudo é
conquistado (até os animais mais ferozes), tem amigos em todos os locais por onde
passa. Ele sabe cativar.
Em Cabot-Caboche, Le Chien também cativa os animais (cães e gatos), mas é
sobretudo com a menina Pomme que se vai desenvolver um jogo de sedução
extremamente interessante, até à conquista final. Le Chien é um pouco raposa, um
pouco Petit Prince.
O processo de aproximação começa na menina, ainda que de forma pouco
pacífica, como se dá conta no esquema que se segue91: (cap. XXVIII):
Le Chien
Pomme
- LE CHIEN! LE CHIEN!
Escuta uma voz e fica imóvel e confuso:
LE CIEN ! VIENS ICI TOUT DE SUITE ! (grita)
“Il restait cloué sur place, incapable de savoir ce
qu’il ressentait. Une joie immense ? Une trouille
intense ? Le désir de sauter dans les bras de
Pomme ? L’envie de filler le plus vite possible ? Il ne
« Pomme non plus. Elle serrait les poings et hurlait de
bougeait pas. »
plus en plus fort. »
J’AI DIT ICI TOUT DE SUITE !
Le Chien considera a menina mudada, sobretudo FAUT QUE J’AILLE TE CHERCHER ?
mais crescida, mantendo a mesma voz, fala alto, (prepotência, autoridade)
como se tivesse autoridade (frases em maiúsculas).
91
Optámos por apresentar esta parte em esquema por considerar que é relevante e onde se dá conta
de todos os passos efectuados.
________________________________________________________________________ 89
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Depois, segue-se um espécie de jogo, que passa de um para outro, em que
presenciamos a aproximação e o afastamento, que culmina na comunicação pelo
olhar:
Le Chien
2- O cão detestava a mochila – sua rival
4- o cão salta e afasta-se
6- “Le chien attendait sans bouger”
Pomme
1- Abandona a mochila que era pesada.
3- Corre em direcção ao cão e quase o toca.
5- Pomme abre a boca, para gritar, mas acaba por
fechá-la de seguida: ”elle se remit en marche. Elle
avançait lentement.”
7- « Pomme saisit une pierre et la brandit au- dessus de
sa tête. Elle visait le chien. » (violência)
8- «Le Chien hésita… il s’assit brusquement, prit l’air
le plus crétin possible et pencha sa tête sur le côté,
9- « La main de Pomme s’ouvrit toute seule, la pierre
une oreille dressée, l’autre pendante.»
O cão age precisamente como Le Hyéneux lhe tomba mollement à ses pieds. Et la voix de la petite fille
se fit toute douce. »
ensinara quando alguém lhe tentasse bater
Primeira cedência, sem violência
10- « Il faillit céder. (…) Mais au lieu de faire un bond
en avant, il fit encore une fois un saut en arrière. »
afastamento
11- uma vez mais frente a frente
«Pomme piquait une colère brève, hurlait, menaçait,
12 – « Le chien aussi attendait »
trépignait (…) attendait avec une patience de pêcheur.»
13- « Tu te fatigueras avant moi» (pensa Pomme,
como pensava o lobo em L’œil du Loup)
Mas é ela quem cede primeiro “c’étaient ses jambes à
14- O cão « balança »
elle qui commençaient à peser. Elle se mit à pleurer. »
« Le Chien n’avait jamais vu tant de larmes d’un seul
coup… il était sur le point de se jeter dans les bras
de Pomme » tentativa de aproximação
15 – Momento de quase cedência, isolamento do resto
do mundo, insulta um transeunte
“Elle se fichait de tout. Elle ne voyait que le Chien»
16- «Le Chien qui se tenait à quelques pas d’elle,
Recomeça o jogo/ é de noite
l’œil frais et toujours inaccessible »
Não quer dar o braço a torcer
17 – A menina tenta afastar-se
18- o cão vê-a afastar-se e espera
“Le Chien la regarda disparaître… il resta assis, il
laissa passer trois secondes, dix, quinze, les yeux 19 – « ... la petite rousse réapparut. Mais ce n’était pas
fixés sur l’angle de l’immeuble »
du tout le soleil de toute à l’heure… un soleil
complètement éteint. Une petite tête lamentable qui se
demandait avec angoisse si le Chien l’attendait.»
20 - « Et lui là-bas , assis au milieu du trottoir, la tête O desespero, a tristeza
bien droite attendait, justement qu’elle la trouve »
O cão é paciente.
« Ils restèrent très longtemps à se regarder ainsi. »
A situação do olhar vivida por Le Chien e por Pomme evoca a passada por
Afrique e Loup Bleu em L’Oeil du Loup: “Depuis combien de temps se regardent-ils ainsi,
ce garçon et ce loup? Le garçon a vu plusieurs fois le soleil se coucher dans l’œil du loup.”
________________________________________________________________________ 90
A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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(p. 42), o que indica que estiveram bastante tempo a olhar-se olho no olho. O
processo de sedução está cada vez mais forte, embora ainda não consolidado:
Pomme
Pomme s’approcha.
Le Chien
Il ne recula pas.
Quand elle fut à sa hauteur, elle ne chercha pas
à le prendre.
Il ne chercha pas à s’enfuir.
Elle tomba assise sur le bord du trottoir.
Il baissa la tête et la regarda par en
Elle parla. Elle dit…
dessous.
(arrependimento)
(cedência)
O reconhecimento da sua falta de humanidade, da “brutalidade”, do
esquecimento do seu dever. Depois, a promessa de não deixar que volte a
acontecer.
“C’est vrai, Le Chien, t’as raison. J’ai été méchante, égoïste, idiote. Je t’ai fait souffrir, je t’ai
abandonné, c’est vrai. Mais qu’est-ce que tu veux que je te dise ? Je veux que tu reviennes,
tu m’ manques. J’ai trop pleuré, voilà, je regrette. Bien sûr j’ peux pas t’obliger à revenir, ça
servirait à rien de te dire que je ne le ferai plus, t’es pas forcé de me croire, et pourtant je le
ferai plus…, enfin, je crois… non, j’en suis sûre, je le ferai plus ! Je t’aime trop, Tu m’as trop
manqué, je l’ ferai plus, je le jure. » (pp. 146-147)
A sedução completa-se, estabelecendo-se uma relação de AMOR, nascida entre
cão e menina: “Je t’aime trop” é a consolidação deste demorado processo. No
entanto, menina e cão ainda terão provas a superar, nomeadamente o abandono
pensado e levado a cabo pelo Grand Musc e la Poivrée. Estes não previam a reacção
da menina, desconhecendo a relação de cumplicidade e amor estabelecida e, a greve
de fome que a faz ficar doente, o que faz com que os pais regressem e se rendam às
evidências: Le Chien e a menina eram amigos inseparáveis. Pennac cria “suspense”
antes de acabar a história, dando-nos a entender a dificuldade em concretizar certos
objectivos. Por isso, a criança é de certo modo “perdoada”, poupada à crítica e, no
final, até é recompensada.
No final, o Amor é consumado e consolidado, num tempo e num espaço
perfeitos, ainda que em construção e onde tudo é possível: o entendimento entre um
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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lobo e um menino e a aceitação do cão por parte da família completa, ou seja há
acontecimentos positivos e as personagens usufruem desse positivismo.
Para concluir, gostaríamos de referir que a utopia presente nestes romances é
a concretização de sonhos e desejos, podendo resumir-se ao conteúdo de um
poema de Zeca Afonso92 que transcrevemos. À semelhança do desejo que
transparece de alguns versos, entendemos que Pennac, na sua mensagem, aspira a
um mundo onde exista: “Gente igual por dentro/Gente igual por fora”, e pretenda ainda
que o homem se olhe nos olhos, de modo a poder comunicar sem barreiras, como
fizeram Loup Bleu e Afrique; Pomme e Le Chien.
Utopia
Cidade
É teu a ti o deves
Lança o teu desafio
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Homem que olhas nos olhos
Gente igual por fora
Que não negas
Onde a folha da palma
O sorriso, a palavra forte e justa
Afaga a cantaria
Homem para quem
Cidade do homem
o nada disto custa
Não do lobo, mas irmão
Será que existe
Capital da alegria
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Braço que dormes
Que outro fumo deverei seguir
Nos braços do rio
Na minha rota?
Toma o fruto da terra
Zeca Afonso
2.4- A sátira e a moralidade – a humanização do animal e a animalização do
homem.
2.4.1- A Sátira
Em L’Oeil du Loup, mas sobretudo em Cabot-Caboche existe uma vertente
satírica bastante demarcada, nomeadamente quando os animais “caracterizam” e
“descrevem” os homens e os seus comportamentos.
Segundo Linda Hutcheon: “A sátira é uma representação crítica, sempre cómica
e muitas vezes caricatural de “uma realidade não modelada”, isto é dos objectos reais A
92
Utopia, letra e música de Zeca Afonso, in: “Como se fora seu filho”, 1983
fonte: http://natura.di.uminho.pt/
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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“realidade original” satirizada pode incluir costumes, atitudes, tipos, estruturas sociais,
preconceitos.” (1989: 247-248) As suas normas são muito mais sociais ou morais,
pretende-se criticar para corrigir. Pela sátira, o autor mostra que compreende o
mundo como uma desordem, onde existem máscaras, em que predomina o absurdo.
Como não adere a esse mundo, ataca-o, muitas vezes pelo riso, engrandecendo os
defeitos e vícios.
Assim, perante o absurdo do mundo, as situações de injustiça cada vez mais
expostas, podemos encontrar a inversão dos papéis/das situações/do próprio
mundo. Jean Émelina (1991: 163) refere que esta inversão pode ser feita apenas por
prazer: “Il s’en faut de beaucoup que cette structure soit, même inconsciemment, toujours
chargée de morale ou d’idéologie. De même qu’il y a un esprit inoffensif et un esprit
tendancieux, il y a un monde inversé de pur plaisir. », embora não seja o caso destes
romances, pois a inversão é intencional, com intuito pedagógico.
A ironia e a hipérbole são recursos de que os autores se servem para dar
conta dos defeitos dos homens, exagerando-os, acabando por torná-los cómicos,
um pouco patéticos.
Em L’Oeil du Loup a tarefa de observadores e críticos está destinada aos
lobos, sobretudo Loup Bleu, embora este o faça com alguma amargura e
ressentimento, podendo ter-se uma visão mais trágica do que cómica. Por seu turno,
em Cabot-Caboche é pelo filtro do olho clínico e perspicaz de Le Chien que temos
uma imagem extremamente caricatural dos homens, muito mais humorística e
irónica. Assim, os homens animalizam-se e os animais humanizam-se, deixando
antever o mundo às avessas, que se pretende recompor. A animalização do homem
é um traço dominante do nosso tempo e como salienta Agamben (2002:118)
“L’humanisation de l’animal coïncide avec l’animalisation intégrale de l’homme”.
Muitas
vezes,
exageram-se
os
defeitos
do
Homem,
rebaixando-o,
descrevendo as suas atitudes animalescas. Nos dois romances de Pennac, Loup
Bleu e também Casseroles, dirigem os seus pensamentos e críticas ao homem, ser
com quem convivem de perto, ou que impõe a sua presença e de quem fazem um
retrato por vezes pouco abonatório, porque vai no sentido do seu rebaixamento. As
atitudes e os gestos, observados pelos animais do exterior, evocam a atitude de
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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l’Ingénu93, de Voltaire (1767). À semelhança de l’Ingénu, um selvagem que diz
sempre o que pensa (daí o seu nome), revelando-se um ser aparentemente ingénuo,
Afrique, Casseroles e mesmo Loup Bleu, também são ingénuos e inocentes, mas
dotados de uma grande capacidade de análise do que os cerca.
Toa, le Marchand, Le Roi des Chèvres, o condutor do camião e sobretudo os
caçadores, são personagens-tipo que não evoluem, ridicularizadas pelos seus traços
físicos ou pelas atitudes e simbolizam os tiranos das fábulas, sem estar escondidos
por trás da pele dos animais.
Logo desde o início, os lobos escutam uma frase proferida por Flamme Noire
«Le meilleur des hommes ne vaut rien !» (p. 9), constatação amarga, onde se evidencia
toda a carga negativa com que os homens são reconhecidos, uma vez que estão do
lado do mal.
Os homens representam a força destruidora, a perseguição, que se pretende
mostrar:
« …il fallait s’enfuir à nouveau. Les hommes ne se décourageaient jamais. Depuis deux
lunes c’était toujours la même bande qui traquait la famille. Ils avaient déjà eu Grand Loup, le
père. » (p. 22) (…)Et pourtant les hommes nous retrouvaient.
Toujours. Rien ne les arrêtait.
Les hommes…
L’Homme… » (p. 23)
Nestas duas últimas frases a referência aos homens é feita de duas formas: a
primeira, no plural, abarca os caçadores/os perseguidores; a segunda, no singular e
com maiúscula, é a generalização a toda a Humanidade. As reticências deixam no ar
a suspensão do pensamento, significando que algo mais haveria para dizer,
remetendo-se para o leitor a tarefa de tirar as suas próprias conclusões.
Mas, o retrato do homem vais mais além. Mostra-se como são vistos os
homens pelos lobos, exagerando-se nos traços mais animalescos. Normalmente,
93
VOLTAIRE, (1979), Romans et Contes, « L’Ingénu», édition établie par Fréderic Delefore et
Jacques Van Den Heuvel, Paris, Gallimard, (pp.285-347)
Apesar de estrangeiro (L’Ingénu é um Huron, nome de uma região dos Estados Unidos), este homem
que não conhecia nem pai nem mãe, tem princípios e experiências interessantes, falava bem algumas
línguas. Leu Rabelais e Shakespeare por iniciativa própria, e efectuou muitas outras leituras por
influência de um jesuíta com quem esteve preso. Ao longo da vida sua visão do mundo mudou: “Le
monde lui parut trop méchant et trop misérable. » (p. 315) Contudo, esta personagem vê sempre tudo
do lado de fora. Julgamos mesmo que se faz passar por ingénuo para poder observar melhor. Voltaire
serve-se desta personagem para criticar a sociedade e a religião.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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são comparados com os lobos ou outros animais e estão associados à guerra e ao
mal (pp. 28- 29/35/36) :
Les hommes ? Deux pattes…
Les hommes mangent tout : l’herbe des caribous, les caribous euxmêmes et, s’ils n‘ont rien à se mettre sous la dent, ils peuvent aussi
manger du loup !
Um animal irracional
Les hommes ont deux peaux : la première est toute nue, sans un poil,
la seconde, c’est la nôtre.
Les hommes hurlaient en dansant. Ils étaient vêtus de peaux de
loups.»
“Un des hommes, grand comme un ours, dressé devant lui,
brandissait à deux mains une bûche enflammée”
Um guerreiro/violento
Les hommes ? Deux pattes et un fusil.
L’Homme est un collectionneur !
Toa Le Marchand é um dos exemplos da violência: tenta abandonar o menino,
espanca o dromedário: “Certains matins, quand il est particulièrement en rogne.. (les
affaires étaient mauvaises, le point d’eau est asséché, la nuit trop froide, il y a toujours une
bonne raison…) » (pp. 51/52), « Toa le Marchand s’arc-boute sur la bride du
dromadaire… » (p. 52) “...Toa brandit un gros bâton noueux...” (p. 52). Ao observá-lo,
o dromedário “...qui le regarde en mastiquant un vieux chardon. (...) Non. Le dromadaire
reste couché sur ses genoux. » (p. 52) resiste pela imobilidade e o seu olhar é portador
de uma certa indiferença. Este homem é ainda caracterizado pela arrogância e
materialismo – uma caricatura dos homens - sobretudo quando se denuncia que este
homem seria capaz de se vender a si próprio - “Mais à la fin de chaque histoire... (...) –
Il fait même payer les histoires de l’enfant.” (p. 56) “-Toa le Marchand, tu te vendrais toimême, si quelqu’un voulait de toi.» (p. 56)
Le Roi des Chèvres, de quem se apresenta uma descrição bastante
pormenorizada, tem a fisionomia, os gestos e até os hábitos que o assemelham aos
animais com que lida diariamente como a cabra, o bode e a ovelha – uma imagem
que se aproxima da caricatura, porque os seus traços mais evidentes pertencem ao
campo semântico do animal:
« D’ailleurs, il avait des cheveux bouclés de mouton blanc, ne mangeait que du fromage de
chèvre, ne buvait que du lait de brebis et parlait d’une voix chevrotante qui faisait frétiller sa
longue et soyeuse barbiche de bouc. (p. 59-60)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Em Cabot-Caboche existe uma frase, constantemente evocada por Le Chien:
94
«Les hommes sont imprévisibles », citada cinco vezes ao longo da história . Tal
expressão demonstra a imagem que os animais têm dos humanos, particularmente
dos adultos, transferindo para os homens características que, habitualmente, são
atribuídas aos animais, dada a irracionalidade de muitas das suas actuações. Assim,
as reflexões e descrições dos humanos, nomeadamente dos adultos, serão feitas
pelo rebaixamento/caricatura. Sempre que se descreve os humanos e se refere os
comportamentos, exagerando-se os defeitos, predomina um registo humorístico, cuja
função é a de corrigir os vícios e os defeitos apontados. O autor revela a consciência
da inversão dos valores, numa sociedade que parece ter trocado os valores
colectivos pelo materialismo e o individualismo.
Os humanos/adultos mais expostos à análise de Le Chien, sempre sob o seu
ponto de vista, são La Poivrée e Le Grand Musc, embora também se destaquem
alguns dos veraneantes (do campismo em Nice), cujo retrato é apresentado num tom
depreciativo. Os quadros que se seguem resumem os primeiros contactos que Le
Chien teve com os humanos (pais de Pomme):
No Canil
O homem
A mulher
Une espèce de grand type en short, rouge comme Une dame toute maigre, un chapeau à fleurs sur la
une écrevisse. (p. 58)
L’air furieux
tête, blanche comme un navet. (p. 58)
L’air furieux
Na praia
Le Grand Musc (O homem)
La Poivrée (A mulher)
“... sur quoi Le Grand Musc se levait et se mettait à « C’est La Poivrée qui glapit. Elle a une voix
courir à son tour. Sauf qu’il ne courrait après rien, terriblement aiguë.» (p. 5) hipérbole
lui. Il courait, s’accroupissait, il écartait les bras,
courait de nouveau, il soufflait un bon coup, il se « La Poivrée quitte la pièce sur ses talons (aussi
relevait, courrait de nouveau, etc. Pendant des pointus que ses mots) » (p. 7) - ironia
heures. Et, quand il avait fini son manège, il revenait
94
- “Quelque chose l’a toujours chiffonné avec les hommes: ils sont imprévisibles.” (Le Chien) p. 10
- « Méfie-toi des hommes, ils sont imprévisibles » (p. 28)
- « Comme les hommes étaient imprévisibles ! » (p. 90)
- « Ils changent de jeux, de préoccupations, de visage, aussi vite que le vent change de direction. Et
d’une façon imprévisible. D’une seconde à l’autre ils ne sont plus les mêmes. » (p. 120)
- “Les hommes sont vraiment imprévisibles » Voilà se que se disait Le Chien. » (p. 133)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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s’étendre à côté de la Poivrée, l’air très fier de lui. « … pendant que Le Grand Musc courait, sautait,
(Inexplicable !) (p. 68) sarcasmo
transpirait, se faisait des muscles et une odeur, La
Poivrée passait son temps à sortir une petite
« C’était vrai : lui qui ne se baignait jamais, il était bouteille bizarre de son sac à main, et s’en
toujours trempé de la tête aux pieds. »
aspergeait du matin au soir. (…) Elle sort la
bouteille … quelques gouttes étaient tombées sur le
« Á force de courir après sa propre forme et de museau du Chien… tout à fait comme si on lui avait
transpirer comme une cascade, il s’était fait cette rempli les narines de poivre. » (p. 69)
odeur particulière de musc que Le Chien avait
reconnue tout de suite. (...) Du coup il ne s’approchait
jamais beaucoup du Grand Musc” (p. 68)
O contacto de Le Chien com os dois seres humanos, permite-lhe fazer uma
curiosa comparação entre estes e um animal (uma lagosta) ou um legume (um
nabo), o que torna as suas figuras ridículas (1º quadro). Estamos perante o cómico
de personagem/carácter, o rebaixamento – o ridículo, em que se deforma a imagem
humana. Os nomes escolhidos para as personagens, que são identificadas pelos
cheiros que emanam, manifestam traços das suas personalidades (2º quadro).
Um outro aspecto trabalhado neste romance, explorando a vertente satírica,
tem a ver com os comportamentos dos seres humanos em sociedade e podemos
deduzir uma clara análise sociológica da sociedade francesa actual. Deste modo, Le
Grand Musc, La Poivrée e a sua filha Pomme, representam uma família da classe
média francesa, que vive num apartamento na cidade de Paris, que procura um
animal doméstico (um cão) e que passa férias, em Agosto, no sul de França (em
Nice), ainda que seja no campismo. Por isso, as descrições da vida quotidiana ou em
férias são, por vezes, bastante hilariantes, uma vez que feitas sob o ponto de vista
do cão:
« Les appartements parisiens n’ont pas d’extérieur. Tout le monde vit dedans. Et
dedans, ce n’est pas drôle. D’abord c’est petit. (…) restent l’entrée (deux mètres
Apartamento em Paris
carrés), la minuscule cuisine (…) le couloir (où tout le monde vous marche dessus) et
la chambre de Pomme (sauf la nuit). » (p. 8)
De notar a ironia nos comentários entre parêntesis.
“(C’était là qu’ils passaient les vacances, chaque année, dans ce camping. Près de
O
parque
pismo
de
cam- Nice) » (p. 71)
Aqui reúnem-se a família e os amigos para conversar, comer e onde se faz a cerimónia
do baptismo do cão.
“Le Grand Musc avait tenu de passer par les montagnes du bord de la mer
(L’Esterel) parce que, disait-il, c’était plus «touristic». “Et aussi beaucoup plus
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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(L’Esterel) parce que, disait-il, c’était plus «touristic». “Et aussi beaucoup plus
O regresso a Paris de « économic»”, avait juré La Poivrée. » (p. 77)
carro ou a partida para
férias
a linguagem adoptada pela classe média, “importada do inglês”
De referir ainda os inúmeros comentários aos comportamentos dos homens,
quer na condução, quer nas estações de serviço.
« - JE VEUX UN CHIEN! » (3 vezes)
«- JE NE VEUX PAS UN CANICHE !»
«- NON, JE VEUX PAS UN FOX-TERRIER!»
A procura de um cão
«- JE VEUX CELUI-LÀ !» (pp. 58-61)
Estas frases são pronunciadas pela menina, em voz alta, daí serem transcritas
em letras maiúsculas, porque quer adoptar/encontrar um cão e a sua escolha
recai sobre Le Chien, por puro capricho, vencendo o seu desejo.
Muitos outros comentários são tecidos acerca dos comportamentos dos homens:
- a higiene da cidade, que obriga a fechar os cães no canil, uma crítica bem
amarga e cheia de ironia: “L’hygiène de la ville, qu’ils disent? Elle est bien bonne ! Comme si
c’était nous, la pollution de la ville. Avec tous ces gaz que leurs voitures nous envoient sur le
museau ! La rage qu’ils disent, mais c’est eux les enragés, pas nous. Ils se battent sans arrêt. »
(p. 48)
- o facto dos homens terem “invenções estranhas” como a das raças dos cães:
“Qu’est-ce que c’est, «un chien de race» demanda Le Chien. / - Un truc inventé par les
hommes, répondit Le Nasillard sur le ton du mépris. Un truc complètement artificiel.” (p. 49)
- o baptismo do cão, em que este observa os homens a reflectir, algo com que
nunca se deparara, para além de cantarem alto, comportamento que explica deverse : “Et c’est sans doute à cause des bouteilles qu’on chantait de plus en plus fort.» (p.
72)
- que os homens não têm muita imaginação: « Tu fais peut-être partie de ces crétins qui
poussent des cris d’admiration quand un chien abandonné a retrouvé ses maîtres à mille
kilomètres de distance. Imbécile ! Pas plus d’imagination qu’un homme… » (p. 164)
Quando Le Chien observa os humanos a reflectir, esta descrição é
acompanhada da comparação com os comportamentos dos animais:
« Très intéressant. Ils se regardaient d’abord les uns les autres, en haussant les
sourcils et les épaules, puis ils regardaient en l’air (…) Lorsqu’il réfléchissait, Le Grand
Musc devenait amusant. Son front se plissait comme celui d’un bouledogue, et sa
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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mâchoire inférieure avançait. On s’attendait à voir sortir ses canines et à entendre
bouillir sa cervelle. Il devenait encore plus rouge que d’habitude. » (pp. 72-73)
A viagem de regresso a Paris torna-se uma espécie de observatório dos
comportamentos humanos, a partir dos “confrontos” entre Le Grand Musc e os outros
homens, comparados às “disputas” entre cães. Recorre-se à hipérbole, como figura
de eleição, para fazer a caricatura. Estes humanos agem como animais, não chegam
a ser ogres, nem monstros, mas estão fortemente animalizados:
Homens
cães
“Le Grand Musc s’approchait de l’automobiliste en faisant « Deux chiens très costauds s’approchaient l’un de
rouler ses énormes muscles, l’air terriblement menaçant. Si l’autre en grondant, le poil hérissé sur leurs épaules
l’automobiliste était de la même taille, il faisait aussi rouler les musclés. »
siens de muscles. Et la conversation s’engageait.» (p. 78)
TOUT ÇA, C’EST POUR LA GALERIE.
(comentário irónico do cão)
«En effet, après avoir tourné deux ou trois fois l’un
autour de l’autre, les chiens filaient chacun de leur
côté, et levaient fièrement la patte sur le premier
«Avec les hommes c’était la même chose. Les poings serrés, ils pneu
venu,
comme
s’ils
avaient
remporté une
grondaient en se regardant de la tête aux pieds. Leurs immense victoire.»
ricanements découvraient des canines en or. De temps à
l’autre, ils jetaient un rapide coup d’œil vers les admirateurs (…)
Mais ils finissaient par se séparer sans se faire mal. Chacun
des deux s’enfermait alors dans une petite maison spéciale
où Le Chien supposait qu’ils levaient fièrement la patte.» (p.
79)
LA « GALERIE» PARRAISSAIT CONTENTE DU SPECTACLE
Pomme, a criança é, juntamente com Le Sanglier, um dos poucos humanos que
escapa à sátira do animal/narrador e que, apesar de também o ter feito sofrer,
ignorando-o95, acaba por se render à sedução. Por isso, a sua descrição é diferente
e a menina não será punida, talvez por ser ainda criança e representar a inocência e
não a maldade:
« La chose la plus extraordinaire que Le Chien eût jamais vue : une toute petite fille…
mais toute petite alors. Des cheveux roux, raides comme des baguettes qui lui faisait
comme un soleil autour de la tête.» (p. 58)
95
Deparamo-nos com um cão infeliz, desiludido. Exprime sentimentos como a tristeza profunda, o
sofrimento, a vergonha, a cólera...
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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« …Le Chien remarqua que la petite fille sentait la pomme. » (p. 63)
Nos dois romances, não só se rebaixa e animaliza o Homem, como também se
retrata a ambivalência humana. Esta é uma das particularidades da sátira: mostrar o
“mundo às avessas”, e tornar visível o invisível, pela inversão dos papéis. Podemos
mesmo acrescentar que esta vertente satírica é, igualmente, uma forma de
moralizar. Pela crítica, denuncia-se o que está mal para, a seguir, se apresentar uma
solução que pretende ser a forma de corrigir os erros, desvendando-os.
2.4.2- A moralidade.
Cabot-caboche
e
L’Oeil
du
Loup
encerram
uma
vertente
pedagógico/moralista, sob a forma de alguns aforismos, que o autor deixa
transparecer ao longo dos textos, uma das características mais marcantes da fábula,
retrabalhada por Pennac e que revela a sua vertente mais clássica.
Em L’Oeil du Loup, a moralidade está diluída ao longo do texto. Podemos dar
conta de alguns exemplos de temas que podem levar a uma reflexão mais profunda
da parte do leitor. O esquema abaixo pretende ser uma resenha dos aspectos mais
relevantes de que fizemos o levantamento:
L’Oeil du Loup
história
A história du «petitt louveteau maladroit»
objectivo
Devemos sempre desconfiar dos homens.
O orgulho da sua raça, mostrado por Loup
A história de Paillette
Bleu.
A história de Paillette, contada por Perdix
São as histórias sobre o passado que fazem
com que Perdix seja aceite.
As histórias passadas e presentes de Loup Bleu
Exorcisa-se o passado para comunicar com
o presente.
L’Oeil de l’homme
história
História da guerra/incêndios e do salvamento
objectivo
A tragédia e o desenraízamento que vitimam
a criança.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Primeira amizade (Casseroles)
A importância da solidariedade
A colaboração de Afrique com os seus mestres
«A união faz a força!»
O pacto com os animais e com Le Roi des Chèvres
Quando se assumem os compromissos da
vida, estes devem ser cumpridos.
A adopção de Afrique
A Confiança, a Amizade e o amor.
A moralidade deste romance está ainda na oposicão entre amizade e
bondade, pelo lado positivo e cativeiro e maldade pelo lado negativo, temas que
fomos abordando, ao longo do trabalho.
No que se refere a Cabot-Caboche, a presença da moralidade parece mais
evidente, considerando que Daniel Pennac, ao colocar o texto «Ni Dresseur ni
dressé» (pp. 195-201) no final da narrativa, demonstra a sua intenção sobretudo
instrutiva e, de certo modo, também moralista. Uma das frases-chave deste texto
resume-se à ideia que serve de título: ”Si vous avez un chien, ou quand vous en aurez
un, je vous en prie, ne soyez ni dresseurs ni dressés.” Pennac lembra-nos ainda que:
”Le bon dressage est celui qui impose le respect des dignités mutuelles. »(p. 199)
Afirmando não ser especialista em cães, Pennac revela, todavia, alguns
conhecimentos sobre a “personalidade” desses animais, pela forma como se
exprime acerca deles e como caracteriza Le Chien, Gueule Noire ou Le Hyéneux96.
Neste texto, o autor evoca os “amigos de quatro patas”, relembrando-os como se
ainda estivessem presentes. Aproveita, ainda, para alertar os leitores para as
responsabilidades que devem ser assumidas a partir do momento em que se adopta
um cão: ”Quand on choisit de vivre avec un chien, c’est pour la vie. On ne
l’abandonne pas. Jamais. Mettez-vous bien ça dans le cœur avant d’en adopter un.”
(p. 201), dirigindo-se a todos. Aqui reside a “moralidade” do texto, que pode
funcionar como lição, um alerta que resume a mensagem veiculada pela ficção.
“Ni dresseur ni dressé” contém, nas suas linhas gerais, os pontos tratados numa
novela de Manuel Alegre, intitulada Cão como Nós97, uma ficção cheia de metáforas
sobre a vida do cão do autor que, depois de morto, se transforma em personagem
principal, sobre a qual o narrador/autor reflecte e com quem “dialoga”, no silêncio do
96
Ao longo do romance depreende-se que Pennac juntou as características dos seus próprios
animais, dos amigos dos seus cães ou dos cães dos seus amigos para revelar cães com
personalidade, com sentimentos, capazes de experimentar emoções como os seres humanos. E sem
dúvida que estes cães são bastante humanizados.
97
Publicações Dom Quixote, 2002
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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seu escritório, evocando a sua presença, mesmo na sua ausência. A tristeza
causada pelo desaparecimento do animal, resmungão e desobediente, pretende
demonstrar a importância que se dá às coisas ou às pessoas, depois do seu
desaparecimento: “Os animais sabem coisas que nós não sabemos. Nada substitui a
companhia das pessoas, mas há momentos de desespero e de grande solidão interior, de
zanga com o desconcerto do mundo, em que um cão é sempre uma companhia, quando
não há outra e tem uma lealdade incomparável.”
O narrador dialoga em surdina com o seu cão (em capítulos intercalados na
narrativa, colocados entre parêntesis). Este cão podia permanecer em todas as
divisões da casa e o seu local de castigo era a cozinha onde uivava, pedindo
atenção. Era também um especialista em relações humanas: «Sempre partilhou as
nossas alegrias e tristezas.» (p. 69) porque assim lho permitiam, ao contrário de Le
Chien que não teve essa oportunidade muitas vezes. Era um cão capaz de
comunicar: “E aquele cão falava. Falava com os seus vários modos de silêncio, falava com
os olhos, falava até com o rabo, falava com o andar, com as inclinações de cabeça, com o
levantar ou baixar das orelhas.” (p. 89)
A morte do animal causou um sentimento de perda. Por isso, a parte final do livro
funciona como uma espécie de desejo do narrador/autor de evocar e perpetuar a
memória de um companheiro que deixou marcas: “Mas eu gostava que o espírito dele
permanecesse aqui connosco. Foi talvez por isso que escrevi este livro. (...) Tenho a
certeza de que estou a escrever com ele deitado ao meu lado esquerdo, como sempre
fazia quando eu me sentava no escritório.” (p. 113) Esta frase é muito semelhante à
de Pennac que transcrevemos: “Il me semble qu’ils sont tous là, autour de moi, à me
surveiller, pendant que j’écris ces lignes. » (p. 199)
Todavia, a moralidade de Cabot-Caboche não se confina apenas ao texto final
“Ni dresseur ni dressé”. Está subjacente a toda a narrativa uma crítica – sátira - feita
pelo narrador ou colocada na “boca” dos animais, acerca do comportamento dos
homens, denegrindo os seus defeitos, talvez porque se pretendem ver corrigidos,
como vimos anteriormente.
Em guisa de conclusão, da abordagem de L’Oeil du Loup e de Cabot-Caboche
sobressaem alguns aspectos que passamos a sintetizar.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Consideramos que em ambos predominam elementos fábula, já presentes na
fábula clássica, tais como:
-
a presença da oralidade, a clausura e a liberdade (associada aos
espaços),
-
a vivência picaresca e um pouco trágica dos heróis,
-
a presença de um universo dividido entre carrascos e vítimas, perseguidos
e perseguidores, a prepotência dos adultos face à inocência e fragilidade
dos animais e das crianças,
-
Finalmente, uma vertente moralista/pedagógica.
Acrescentam-se, ainda, outras características que consideramos presentes na
fábula moderna:
-
a sátira da sociedade, como forma de analisar e controlar os
comportamentos humanos;
-
a animalização dos homens e a humanização dos animais;
-
a predominância da ambivalência humana, dado que são bastante
visíveis as constantes mutações que o ser humano vai sofrendo, bastante
visível em Cabot-Caboche.
-
Ao contrário da fábula que terminava quase sempre de forma trágica, tanto
L’Oeil du Loup como Cabot-Caboche apresentam um final feliz.
Consideramos ainda que, com Cabot-Caboche, Daniel Pennac transmite uma
mensagem importante para que os cães sejam tratados com a merecida dignidade,
sobretudo que não sejam abandonados e que, à sua adopção, são inerentes
responsabilidades que não podem ser ignoradas.
Quanto ao lobo, após a leitura de L’Oeil du Loup, bem como de muitas outras
ficções que têm por protagonista este animal, o leitor apercebe-se que houve uma
mudança de olhar sobre o lobo e o seu papel, não só na literatura, mas também nas
outras formas de arte, ao longo do século XX. A esta mutação estão ligados novos
textos em que este animal assume um papel diferente, mas essencialmente as
inúmeras paródias dos textos clássicos, como veremos no capítulo seguinte, em que
abordaremos a evolução da fábula, bem como a eleição da paródia como o género
por excelência do século XX, já que permite dar conta dos sucessivos
“renversements” do mundo.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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CAPÍTULO III
A fábula moderna e a paródia.
1- A fábula no século XX.
“Es así desde el principio de los tiempos porque es don de los dioses y suelen ellos
fabular cuando conceden. Ese es oficio de los mortales, hijos del pánico y la
costumbre.”
98
Álvaro Mutis
Como serão as fábulas do século XX? Serão estas reescritas dos textos
clássicos? Podemos considerá-las como um novo género? Estará este género
inserido em outros géneros, fruto da evolução e das constantes questionações dos
géneros?
Um dos estudos recentes sobre a fábula século XX (anos 90), de Enrique Turpin
Avilés, inserido numa recolha de Castillo (2001), revela que este género se
transformou.
Segundo o referido autor, o género fábula foi um tanto menosprezado no século
XIX. Para Marc Soriano, a fábula parece ter encontrado, no século XX, um novo
sopro com os desenhos animados e sobretudo com Walt Disney. Poderemos também
encontrá-la junto de curtas metragens, do documentário, da novela, do conto, do
poema ou da canção. Alguns autores do século XX, ainda que tenham valorizado
géneros como o romance, a novela, o conto ou os género dramático e lírico, não
deixaram de reescrever fábulas clássicas, de as parodiar ou ainda de criar novos
textos.
A referida evolução passou, num primeiro momento, pela alteração da função
do moralista. Sobre esse papel, José Luis López Aranguren99 (Castillo, 2001: 729)
realça que o mais importante talvez seja a reflexão sobre o sentido da vida,
permitindo um novo olhar do homem sobre si mesmo:
«... oficio más positivo es, sin embargo, el presentar las nuevas o las viejas pero
renovadas virtudes que, en cada tiempo, tiendan a construirse como centrales de la
personalidad, de tal modo que sea en torno de ella como se organice esta. La
98
99
citado no livro de Castillo e Carbajo (2001: 729)
“El oficio del moralista en la sociedad actual” (1952)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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propuesta de un sugestivo proyecto fundamental de la existencia, el ofrecimiento de
un cabal modo de ser es lo que, creo yo, caracteriza, en su intención mas honda la
obra del moralista.»
Como sabemos, antes a função do moralista era o de denunciar, irónica e
mordazmente, os vícios dos humanos, com um propósito educativo. Segundo o
autor do artigo supracitado, hoje não interessa tanto moralizar e, por conseguinte, o
papel do moralista parece não ser tão necessário. Considera-se, ainda, que o
género fábula evoluiu, uma vez que, tratando-se de um género histórico-literário,
está sujeito a transformações:
«Los géneros son entidades histórico-literarias, son víctimas de una transformación
constante, un desarrollo, o lo que es lo mismo, una evolución, desde el momento en
que las obras añadidas a su nómina constituyen otras tantas variaciones sobre la
matriz genérica que mantienen sus vínculos con las ya existentes.» (Castillo: 2001:
731)
Na fábula tradicional dominavam aspectos como a brevidade, o propósito
pedagógico e a finalidade artística. Na actualidade, combinam-se arbitrariamente
estes motivos, inserindo-se algumas inovações ou abandonando-se aspectos como
a moralidade, até aqui considerados fundamentais para a caracterização do género.
Assim, introduz-se a ironia que assume um papel de destaque. No que concerne
este aspecto, consideremos as afirmações do autor do artigo, Enrique Turpin Avilés
(Castillo, 2001: 732-733)
«La ironía evita cualquier invitación al modo como han de comportarse los hombres
en su conducta y traslada el antiguo discurso inventado para formar las costumbres
por medio de instrucciones disfrazadas debajo de alegorías hacia el terreno de la
incredulidad, con el consecuente aumento de la validación estética por parte de lo
lector. La ironía tiende, por su propia naturaleza, a proporcionar las herramientas que
conducen a descubrir la realidad subyacente en las apariencias...»
A ironia que, de certo modo, estava implícita em muitas fábulas de La
Fontaine, aparece marcadamente mais explícita nos textos actuais. Para o autor do
artigo citado, o recurso à ironia não pretende ser uma forma de transmitir aos
homens normas de comportamento, ou seja, moralizar. Pela ironia, diz-se uma coisa
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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quando se pensa exactamente o contrário. Assim, o fabulista serve-se da antífrase
como forma de crítica. A realidade está camuflada pela aparência da ironia e caberá
ao leitor entrar nesse jogo de descoberta/descodificação. Ao mesmo tempo, será
uma forma de chamar à atenção dos homens para a realidade, sem recorrer à
alegorização do real, mas à sua contradição, sobretudo recorrendo ao “ethos
moqueur”. Consideramos, deste modo, como Linda Hutcheon100 que a ironia é, ao
mesmo tempo, uma estrutura antifrástica e uma estratégia avaliativa, implicando
uma atitude, por parte do autor (a de denúncia) e outra, por parte do leitor (a
compreensão dessa denúncia).
Os fabulistas modernos reorientam os mecanismos internos da própria fábula,
ao considerarem os animais como personagens da ficção, tal como as personagens
humanas e que podem pertencer ao mundo natural ou abstracto. A fórmula clássica
inverte-se. Passa-se da humanização à animalização do referente principal da
fábula. Na fábula tradicional, o animal humaniza-se; na contemporânea, ao contrário,
é o homem que se animaliza, processo enfatizado pela ironia que, por sua vez, serve
de recurso fundamental para actualizar as leis da fábula. Para além disso,
actualmente as fábulas servem para revelar valores e anti-valores, satirizam
aspectos sociais, políticos e económicos do mundo actual.
A presença de novos elementos, caracterizadores do género, implica uma
releitura deste. Por outro lado, em vez da presença de seres, objectos ou conceitos
antropomorfizados ou da consequente doutrina moral, carregada de exemplos
indispensáveis à fábula tradicional, empregam-se novas componentes. Um desses
exemplos é a paródia das formas tradicionais da fábula, género que acaba por se
evidenciar ao longo do século XX. Ancontramos fábulas modernas que são paródias
divertidas dos textos clássicos, de onde desaparece a moralidade, mas onde não
deixa de estar presente uma reflexão interessante sobre os homens e os seus
comportamentos.
Contudo, devemos notar que o trabalho de renovação do género não pode
desvirtuá-lo de todo o seu sentido. Por esse motivo, continua a persistir um propósito
lúdico nas fábulas actuais, que tem caracterizado o género desde o seu início.
De entre as características gerais que definiam o género fábula até aos
últimos tempos, existem alguns indissolúveis para a sua delimitação, os chamados
100
De acordo com o exposto num artigo « Ironie, satire et parodie », in Poétique, nº 46, Abril 1978
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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motivos obrigatórios do género. Alguns foram suavizados, outros impuseram-se e
tornam-se indispensáveis para identificar a fábula contemporânea, como os que a
seguir se expõem:
-
A conexão do género com a sátira (a crítica dos costumes na fábula
permanece encoberta pela ficção alegórica, embora por vezes se
negue esse facto).
-
O objectivo pedagógico oscila nos mesmos parâmetros que a
finalidade artística, numa gradação que aumenta ou diminui conforme
se potencie um aspecto ou outro.
-
A fábula continua a ser um mecanismo de análise da realidade,
embora, actualmente, as suas formulações não apontem para um
objecto extra estético. O que acaba por definir o género, na
actualidade, é a ausência de intencionalidade parenética, ou seja, de
moralizar.
Embora a moralidade esteja quase sempre ausente na fábula moderna, por
vezes o autor/fabulista faz despontar uma intenção moral, diluída ao longo do texto,
obedecendo, essencialmente, a uma finalidade lúdica.
Um outro motivo, que vem desde as origens, é a presença de uma atmosfera
humorística com tendência à crítica, no permanente processo de alegorização da
realidade com recurso à metáfora. Definida por Aristóteles em La Poétique (1457 d,
6-9) “La métaphore est le transport à une chose d’un nom qui en déguise un autre. » A
metáfora serve, antes de mais, como forma de mostrar o mundo de outro modo,
através de um olhar diferente, transposto para uma linguagem distinta, podendo ser
portadora de um julgamento/de um juízo de valor. A este propósito, Italo Calvino
(1999: 121) salienta:
«As metáforas em vez de serem consideradas um ornamento que embeleza a
estrutura condutora das tramas e das funções narrativas, avançam para primeiro
plano como a verdadeira substância do texto, contornadas pelo filiforme arabesco
decorativo das peripécias efabulatórias.»
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Italo Calvino (1923-1985), que procedeu à recolha e compilação de fábulas e
contos Italianos – Fiabe Italiane101 – das diferentes regiões italianas, publicou, entre
outos, um livro de contos Marcovaldo ou Estações na Cidade102 (1963) que se podem
considerar fábulas modernas. O autor apresenta o seu olhar crítico sobre a sociedade
e o modo de vida das cidades, destrutivo e vazio, recorrendo frequentemente à
metáfora.
As fábulas modernas servem-se de uma linguagem que traz para a trama o
mundo real, sob um efeito linguístico que as torna um objecto essencial à crítica e,
especialmente, à denúncia daquilo que está mal. Por isso, a metáfora passa para o
plano dianteiro da narrativa. Na actualidade, determinadas metáforas entraram na
fábula para a tornar um género a que ousaríamos chamar de “intervenção”, tal como
outros géneros. Apontamos, como exemplo, a metáfora da noite que está associada
à morte, à guerra, às trevas ou à realidade obscura do mundo.
O emprego da metáfora está implicado na transmissão da mensagem aos
leitores, uma vez que constitui a substância fundamental do texto. A sua
interpretação obriga a um jogo de inteligência e de descoberta das verdades, que o
fabulista pretende ver expostas, e que se encontram escondidas pela linguagem
metafórica. Talvez esta linguagem seja a forma encontrada pelos escritores para
substituir a moralidade das fábulas ou contos clássicos, ou uma maneira de
subverter os papéis, fazendo o leitor participar numa espécie de jogo, descobrindo a
mensagem velada por trás da metáfora.
Não se pretende apenas criticar a sociedade actual, invertendo somente os
papéis anteriormente jogados pelos animais e pelos homens; trata-se de dar um
colorido diferente à realidade, observada e profundamente analisada. Para isso,
contribuirão obviamente a sátira, a ironia e a metáfora.
Também pela sátira, que já era característica da clássica, a fábula moderna
procura a crítica da sociedade do momento, em todos os seus domínios, o que
envolve uma constante actualização temática. O fabulista contemporâneo é
101
Estes textos, recolhidos durante os últimos cem anos, foram publicados em Portugal pela Editorial
Teorema, em 2000, em três volumes.
102
Marcovaldo, um homem de família, sonhador que vive na cidade com a mulher e os filhos e que
por se recusar a partir de férias durante o mês de Agosto como todos os habitantes da sua cidade, vê
o seu descanso ser interrompido por uma equipa de televisão que o quer entrevistar precisamente
por ser o único que não partiu de férias.
In Diciopédia 2004, Porto Editora
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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confrontado com uma espécie de sinistro pessimismo que nega qualquer ideia de
aspiração ao perfeccionismo humano. A literatura continua, assim, a desempenhar
um papel importante na análise do mundo exterior.
Em conclusão, o género fábula não morreu. Encontramo-lo inserido em
estruturas superiores como o romance (o que vimos com as obras estudadas de
Daniel Pennac) ou a novela, retrabalhando-se algumas das principais características
do género. Por outro lado, o género também se expressa pela utilização de unidades
mínimas que parecem ir ao encontro da preferência dos autores contemporâneos
pela fragmentação: como a brevidade, a concisão e o prosaísmo. Daí que possa
aparentar-se ao conto. Refira-se, ainda, que vários autores optaram por renovar o
género fábula pelo recurso à paródia dos textos clássicos, surgindo as mesmas
personagens com “rostos” e carácteres diferentes, mas que pretendem traçar um
retrato mais actual do homem e do mundo de hoje.
Vejamos, a título de exemplo, o texto de Jean Anouilh seleccinado e, ainda, a
referência a um conto que parodia “Le Petit Chaperon Rouge” (“Le Petit Chaperon
Bleu Marine”, de Dumas et Moissard). Estes dois exemplos ilustram o pensamento
anterior e comprovam que a paródia é um dos géneros bastante valorizado no século
XX.
1.1.1- “Le Loup Attendri” de Jean Anouilh
Uma fábula moderna/uma paródia.
A fábula supra citada, retirada de Fables103(1967), de Jean Anouilh104, é uma
paródia de “Le Loup et l’Agneau”, mas também de outros textos em que o lobo era o
herói, o grande carrasco, e o cordeiro a sua eterna vítima. A sátira e, de forma
marcante, a ironia são estratégias de que o autor se serve para construir o texto.
Logo no prólogo, extremamente breve (8 linhas), que Anouilh intitula de
Avertissement hypocrite, p. 7, parodiando o prólogo de La Fontaine, o autor
afirma, em tom humorístico, que “Ces fables ne sont que le plaisir d’un été” (...) «…les
103
Publicado em 1962, este livro de fábulas contém 47 textos que são fábulas modernas, com
referências muito actuais a situações vividas na sua época. Consideramos que são textos paródicos,
uma vez que se tomam textos e temos já tratados, dando-lhes um novo colorido e novos contornos.
104
Autor essencialmente dramático (1910-1987), cujas peças mais conhecidas – Antigone (1944) , Le
Voyageur sans bagage (1937), L’Alouette (1953) são dominadas por um certo pessimismo face ao
mundo em que se encontra posicionado.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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occasions d’être plus profond ne vous manqueront pas. »105. Anouilh demonstra o seu
desejo de que sejam lidas com o mesmo prazer que teve ao escrevê-las, talvez
porque entenda o seu trabalho como uma forma “divertida” de abordar os textos que
parodia. Ao mesmo tempo, refere-se à ambiguidade da fábula: por um lado, salienta
a sua “futilidade”, por outro, a “profundidade”, podendo propor várias leituras e
demonstrar que o seu efeito imediato pode esconder riquezas mais profundas.
Na referida fábula, o lobo é apresentado como dócil e terno, ou seja,
aparentemente humanizado, ao invés de ser descrito como o animal devorador e
perigoso, temerário e hediondo, como o de La Fontaine. Ao contemplar o cordeiro
fêmea, este lobo demonstra sentimentos contraditórios: ora é terno e emotivo ora,
despertado pelo objecto contemplado, torna-se agressivo/assassino. A situação
descrita torna-se cómica: o lobo, que aparenta um ar dócil e calmo, de repente,
parece acordar do “hipnotismo” causado pela contemplação e age bruscamente.
“Le Loup attendri” satiriza também os comportamentos da sociedade moderna,
neste caso do pós-guerra, em que se vivem momentos contraditórios. Abordam-se
temas da actualidade e parece gracejar-se sobre a conjuntura política e social, ou
seja, o absurdo e ambiguidade de um “mundo às avessas”, no fundo um mundo
dominado pelo pessimismo.
Nesta fábula, em verso, que podemos designar de uma espécie de poema
narrativo, colocando-se de parte a brevidade, apresenta-se uma situação diferente
da descrita nas fábulas de Esopo e de La Fontaine, embora um dos protagonistas
seja o mesmo. O texto não comporta moralidade pois esta não interessa para nada,
deixou de fazer sentido. O mais importante é mostrar, de forma divertida e muito
pessoal, a visão de um “mundo às avessas” que, no seu âmago, continua igual ao
que sempre foi.
105
Não podemos deixar de transcrever o texto que compõe o “Avertissement hypocrite”, que introduz
este livro de fábulas, e que apresenta o principal objectivo do autor, ainda que admita o contrário.
Este pequeno texto, cheio de ironia, deixa antever os textos que se lhe seguirão: “ Ces fables ne sont
que le plaisir d’un été. Je voudrais qu’on les lise aussi vite et aussi facilement que je les ai faites et, si on prend
un peu de plaisir - ajouté au mien – il justifiera amplement cette entreprise futile. Il y a tant de gens dont c’est un
gagne pain de penser, de nos jours, que ce petit livre refermé et oublié, les occasions d’être plus profond ne vous
manqueront pas. »
J.A. Septembre 1961 (p. 7, Ed. Folio, 1997)
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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“Le Loup attendri”
Un loup un jour regardait
Et il arrive qu’on se vexe…
Une jeune agnelle endormie.
Ce cri, tant attendu, réveille un vieux réflexe
Obscurément il regrettait
Un bond, un coup de dent, et notre loup, navré,
Que leur race fût ennemie :
La tue.
Quelle grâce et quelle douceur !
Après d’ailleurs, il la trouva fort tendre…
Ce loup rêvait d’une âme sœur,
D’une affectueuse présence,
Pourtant si elle l’avait vue
Qui lui permît de débonder son cœur…
Cette lueur d’amour au fond de sa prunelle !
Les loups sont plus sentimentaux qu’on pense,
Si elle avait fait confiance une fois,
Mais personne ne les comprend.
A la bonté universelle…
C’est une tradition en France
Ah ! si elle avait eu la sagesse d’attendre
D’ignorer l’envie de tendresse
L’éveil du sentiment chez ce loup aux abois;
Qui dort au cœur des assassins.
Légère, elle courrait encore dans les bois…
Hélas ! ce sont souvent
Les innocents,
Il faut dire que les agnelles
Se méprenant sur leurs desseins,
Ont l’esprit un peu étroit,
Qui, par l’idée qu’ils ont de scélératesse,
Ne lisant pas assez les journaux progressistes
Les obligent à les tuer.
Où l’on se penche sur l’âme des assassins.
Voilà ce qu’on gagne à être conformiste !
Ce loup-là était tout amour.
On doute qu’un tueur puisse être un peut saint,
Il était saint François d’Assise.
Qu’est-ce qu’on y récolte ? Un mauvais coup.
Il était au point de pleurer ;
D’un autre côté, je crois
Quand la sotte le voit et appelle au secours.
Qu’il faut avouer que les loups
Que voulez-vous que je vous dise ?
N’ont pas la tête de l’emploi.
Un malheur est vite arrivé.
Jean Anouih (pp. 108-110)
O texto não contém diálogos, nem se desenvolve com base na argumentação e
contra-argumentação, ao contrário do parodiado. Assim, entra-se logo na matéria,
sob a alçada do sujeito poético, que intervém constantemente, apresentando as
duas personagens intervenientes – o lobo “attendri” e o cordeiro fêmea
“endormie”– começando pelo verso “Un loup un jour regardait”, colocando a
importância no lobo e na sua acção “regardait”.
Estamos perante uma paródia, com referências culturais e literárias explícitas.
Apresenta-se o lobo e o cordeiro como sendo portadores de uma tradição que
jamais pode ser alterada. Tanto o lobo como o cordeiro têm as suas acções
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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condicionadas e não podem mudar os seus papéis: o lobo porque é um
predador/assassino e o cordeiro porque é a eterna vítima/inocente.
Segundo Linda Hutcheon, a paródia: “É uma alegada representação, geralmente
cómica, de um texto literário ou de outro objecto artístico e é uma representação de uma
“realidade modelada” que, já por si, é uma representação de uma “realidade original”. As
representações paródicas expõem as convenções de um modelo e põem a nu os seus
mecanismos, através da coexistência de dois códigos de uma mensagem.” (1989: 247)
Em “Le Loup attendri”, parodia-se, essencialmente, os comportamentos (os
papéis) das personagens. Estas transformam-se em seres cómicos, quase patéticos,
nomeadamente o cordeiro fêmea, pelas atitudes descritas. O papel sério e a
densidade que detinham em La Fontaine desaparece. Esta fábula torna-se
humorística, divertida e subtil, porque analisa vários aspectos, recorrendo à
subversão, à ironia.
Toda a fábula é construída na base de uma forte ironia, visível desde o primeiro
verso, sobretudo porque se joga com os papéis do lobo e do cordeiro fêmea, com a
alternância dos seus comportamentos, que parecem escondidos por trás de
máscaras. Essas máscaras podem dissimular o próprio homem, que se coloca quer
na pele do lobo/assassino, com vontade de ser santo; ou na pele do inocente
cordeiro que, subitamente, provoca o mal contra si próprio. Quando se compara o
lobo a São Francisco de Assis, a ironia é devastadora e joga com binómios opostos.
Como pode um devorador/assassino ser um santo? Como pode um assassino ter
sentimentos? Por outro lado, a fêmea do cordeiro é descrita como “sotte”, de espírito
pouco aberto, é pouco confiante, não acredita no progresso, enfim é conformista. A
sátira entra também em jogo, sobretudo quando se alude às atitudes do cordeiro
fêmea.
Como podem eles agir de outro modo? Não é assim que a tradição os obriga a
agir? Então, podemos afirmar que esta fábula apresenta uma constante
questionação/ reflexão sobre a tradição, bem como sobre a liberdade do indivíduo.
Não estarão as suas acções condicionadas pelo peso da tradição? Somos ou não
herdeiros da tradição e temos que nos manter fiéis a ela? Porque é que não nos
podemos libertar das amarras que nos prendem ao passado? Parecem ser estas
algumas das questões que Anouilh deixa transparecer nas entrelinhas do seu texto,
sempre em tom de brincadeira.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Ironia e paródia, características da fábula moderna, parecem, assim, estar
bastante ligadas, como refere Linda Hutcheon: “L’ironie et la parodie [...] opèrent toutes
deux sur deux niveaux, un niveau de surface primaire, en premier plan, un niveau secondaire
et implicite en second plan. (…) La signification ultime du texte ironique ou parodique réside
dans la superposition des deux niveaux, dans une sorte de double exposition textuelle. »
(Poétique, nº 36) Ora, pela ironia recorre-se a uma espécie de minúcia analítica que,
segundo Bergson, desce “de plus en plus bas à l’intérieur du mal qui est pour en noter les
particularités avec la plus froide indifférence. » (Le Rire)
O lobo carrega longos séculos de “clichés” e questiona-se, frequentemente,
sobre o seu papel: Como ser diferente se este é o comportamento que me espera
desde há séculos e séculos? Por isso, apesar de tentar mudar a sua postura,
tornando-se terno e lamentando-se acerca das rivalidades existentes entre ambos:
“Obscurément il regrettait/Que leur race fut ennemie” (estes dois versos podem ser uma
metáfora das guerras entre povos e raças), não consegue desligar-se da sua
imagem, matando a fêmea do cordeiro. Todavia, o cordeiro fêmea também carrega
consigo o pesado fardo de ser o eterno inocente, a eterna vítima, ele que está
igualmente dominado pela tradição.
Nesta fábula não se parodiam apenas os comportamentos das duas
personagens. Reflecte-se, também, sobre os mecanismos do texto, que é bastante
rico. Já que não se pode mudar a tradição, então opta-se pela sua subversão. O
género serve para tentar responder à vontade de mudança. Provavelmente, este
pode ser considerado uma espécie de texto teórico sobre a paródia. Anouilh parece
querer levantar questões como: Pode esta fábula ser reescrita, invertendo-se ou
reinventando-se os papéis das personagens? Pode-se transformar uma realidade
que existe há tantos séculos?
O que responderia Daniel Pennac? A resposta seria “Não!” Porque, como já
afirmámos, somos herdeiros de uma longa tradição que não nos deixa ir mais além.
Daniel Pennac mantém-se bastante ligado à tradição pois conserva os aforismos. A
moralidade, que é completamente inexistente na fábula de Anouilh, persiste em
Pennac, não só na literatura infantil, como nos romances policiais, embora o autor se
destaque pela tendência satírica, evidenciando os contrastes das relações Homemanimal, Homem-Homem.
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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A questão anteriormente levantada em relação à transformação total da
realidade existente há séculos, pela paródia, encontramo-la também no conto Le
Petit Chaperon Bleu Marine106, cuja leitura consideramos extremamente actual e
divertida.
Trata-se de uma paródia, ou recriação cómica do conto Le Petit Chaperon
Rouge (um dos contos mais parodiados)107, mantendo o carácter lúdico e até mesmo
a moralidade. Imita-se o texto original, invertendo, quer a situação vivida pelas
personagens, quer os seus objectivos, como podemos sintetizar no quadro seguinte :
Le Petit Chaperon Rouge (Grimm)
Fómula inicial
“Il était une fois...”
situação :
Le Petit Chaperon Bleu Marine
Sem fórmula inicial
“Personne n’ignore, bien sûr, l’histoire du Petit
Chaperon Rouge. Mais connaît-on celle du Petit
Chaperon Bleu Marine?” (p. 15)
situação :
A menina - Le Petit Chaperon Rouge - vai visitar a
avó, que mora do outro lado da floresta,
desobedece à mãe, encontra o lobo e deixa-se
seduzir por este. Chegada à casa da avó é
devorada pelo lobo. Mais tarde este é encontrado
pelo lenhador/caçador que liberta as vítimas e
castiga o lobo, enchendo-lhe a barriga de pedras.
A menina - le Petit Chaperon Bleu Marine – vai visitar
a avó que mora do outro lado da ciade de Paris. Não
vai a pé, pela floresta, mas de autocarro pelo meio da
cidade. No caminho, desobedecendo à mãe, sai no
Jardin des Plantes e liberta o lobo que está numa
jaula. Enquanto a menina se dirige para casa da avó,
o lobo põe-se em fuga e vai para junto dos seus. A
menina faz a avó rastejar até ao Jardin des Plantes e
fecha-a na jaula.
Personagens:
Personagens:
Menina – neta do Chaperon Rouge, pérfida, seduz o
lobo
Avó – visitada pela menina, seduzida e devorada Avó – é o próprio Chaperon Rouge, divide o seu
tempo com leituras e o “tricot”, é visitada pela menina,
pelo lobo
mas um tanto “mal tratada”, porque encerrada na jaula
do lobo, pela neta
Lobo – o terceiro sobrinho do lobo do conto de
Lobo – pérfido, espertalhão, devorador
Perrault e descendente do que devorou o cordeiro na
fábula de La Fontaine, que leu todas essas histórias (é
instruído). é o seduzido, mas não se deixa enganar e
escapa para a sua terra natal – a Sibéria
Mãe – alerta a menina e sonfia-lhe a tarefa de Mãe – filha do Chaperon Rouge, também dá
conselhos à filha, mas é desrespeitada.
visitar a avó
Não existe caçador, mas os repórteres da televisão
Caçador/lenhador – o libertador das vítimas
e jornais que dão conta das atitudes e perfídias da
criança
Menina – ingénua, enganada pelo lobo/devorada
106
Este é um dos cinco Contes à l’Envers, publicados em 1980, por Dumas et Moissard, na École des
Loisirs.
107
A título de exemplo citamos para a narrativa, Le Petit Cahperon Rouge, de Henri Pourrat (1948); Le
Petit Chaperon Bleu Marine, de Dumas et Moissard (1977) ; Le Petit Chaperon Rouge de Tony Ross
(1978) Le Petit Chaperon Vert, de Grégoire Solotareff (1989). No caso das adaptações em verso
citemos Le Petit Chaperon Rouge de Christian Poslaniec (1981).
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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Moralidade:
Moralidade:
Colocada na boca do lobo:
Colocada na boca da menina:
“Mais pour ce qui est du Petit Chaperon, elle se “...et tous ses frères sont donc maintenant prévenus
jura: «Jamais de ta vie tu ne quitteras le du danger qu’il y a à fréquenter les petites filles
chemein pour courir dans les bois, quand ta françaises (…) Sous réserve, il va de soi, de prendre
mère te l’a défendu »
garde aux hommes qui pourraient y rôder : car
certains hommes sont plus dangereux que les
loups. » (p. 26
Le Petit Chaperon Bleu Marine apresenta os aspectos do clássico Le Petit
Chaperon Rouge, sobretudo no que respeita às principais personagens. Porém, está
cheio de situações burlescas, opostas às mais dramáticas do conto parodiado. O
lobo passa a ser o seduzido, a menina é a perversa, que tenta enganá-lo. Esta
criança animaliza-se, fazendo a própria avó rastejar até à jaula do lobo. Por seu
turno, o lobo torna-se uma personagem atractiva, deixando de ser o vagabundo e,
ao mesmo tempo, divertida pela forma como reage às investidas da menina.
A acção passa-se na cidade de Paris e não no campo/floresta; a menina
veste um capuz Bleu Marine, comprado nas Galeries Lafayette. O lobo é instruído,
não se deixa enganar e, uma vez libertado, vai para a sua terra, onde se torna
cronista social. Para visitar a avó, a menina desloca-se de autocarro, tendo que
atravessar a cidade, que podemos considerar metaforicamente como a “floresta de
betão”.
Nesta paródia caricaturam-se personagens, vivências, situações do nosso
quotidiano e mesmo certas normas por que se pauta a sociedade actual, fazendo-se
juízos sobre os costumes da época, nomeadamente pela deformação de alguns
valores. Por isso, a moralidade é a subversão bastante divertida da do conto de
Perrault ou dos irmãos Grimm, sendo o próprio lobo que adverte os seus em relação
aos homens.
Uma vez mais, estamos perante uma situação em que se reflecte sobre a
subversão de valores, associada à inversão dos papéis das personagens que, no
entanto, continuam a ser carrascos e vítimas. Portanto, a tradição não se alterou, ou
seja, continua-se a representar o bem e o mal, colocados, agora, de lados
diferentes. Mostra-se que os homens passaram a vestir a pele do lobo e que o
animal, eterna vítima, foge para não continuar a ser castigado. Por outro lado,
representa-se a “maldade” que está por trás dos homens (neste caso das
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A Fábula em Daniel Pennac
Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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brincadeiras de determinadas crianças) que não medem os seus actos, um tanto
violentos, para os quais se parece chamar à atenção.
O papel do lobo mudou, como vimos neste conto e em L’Oeil du Loup, pois o
animal passou de perseguidor a perseguido/ de carrasco a vítima.
Porquê a paródia no século XX?
A paródia, embora seja um género bastante antigo108, apreciado em todos os
tempos, tendo feito um grande furor no teatro, é considerada o género por
excelência do século XX em virtude, não só da evolução dos géneros, mas também
dos acontecimentos vividos nesse século. Pela paródia, a literatura torna-se o centro
da literatura, o próprio texto interroga-se. Então, a autoreflexividade predomina neste
género.
Segundo Linda Hutcheon a paródia « ... é, no século XX, um dos modos maiores da
construção formal e temática dos textos. E, para além disto tem uma função hermenêutica
com implicações simultaneamente culturais e ideológicas.» (1989: 12) é ainda « uma forma
de imitação caracterizada pela inversão irónica.» (1989: 17) A mesma autora refere que
«La parodie, aujourd’hui, est à la fois, un «hommage» respectueux et un ironique «pied de
nez» à la tradition.”(in Poétique, nº 36)
A este género estão associados na Grã-Bretanha os nomes de Byron, Shelly
e Lewis Carrol. Em França, no século XVIII, realça-se Voltaire, com Zadig (1747) e
Candide (1758). Todavia, foi o irlandês James Joyce, como já afirmámos, que refez
ironicamente todos os estilos possíveis, desde os classicistas ingleses aos
romances sentimentais, parodiando não só o texto, como também a linguagem
literária.
Segundo o exposto por Sangsue (1994: 79), há géneros e textos que se
prestam mais a ser parodiados e o autor refere que “Les Fables de La Fontaine ont fait
l’objet d’une intense parodisation”. Foram vários os autores que, utilizando as fábulas
de La Fontaine as parodiaram, adaptando-as ao seu tempo, como por exemplo
Anouilh ou Italo Svevo. Sangsue refere ainda que o próprio La Fontaine foi um
108
Crê-se que venha desde o século V a. C. com a Batalha de ratos e batráquios, em que se
parodiava a guerra entre gregos e troianos da Ilíada de Homero.
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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pouco “l’arroseur arrosé, car il avait lui même transformé les «apologues» d’Esope et de
Phèdre en les «égayant». » (1994 : 79). Também Genette salienta que as fábulas são
um género paródico desde o seu início quando “attribue des conduites et des discours
humains à des animaux” (Palimpsestes, p. 79) Linda Hutcheon considera que parodiar
um texto/género não constitui a sua desvirtuação mas o seu “reforço”.
Num século em que se questionou tanta coisa, tal como referíamos na
introdução, o romance, a novela, o conto, mas também a fábula, vão servir-se da
paródia para revelar o absurdo do mundo e da vida, através da inversão. Segundo
Sangsue (1994: 78-79) “Les contes forment également un corpus souvent visité par la
parodie. L’aspect stéréotypé de l’intrigue, des personnages et des procédés de narration y
109
fonctionne comme une invite à la parodisation ».
Existem inúmeros textos actuais que
são paródias dos clássicos, nomeadamente contos e fábulas, como vimos com
Anouilh e Dumas e Moissard.
Todavia, não foi só na literatura que a paródia se manifestou como o género
de eleição. O cinema, como uma das novas formas de arte emergentes no século
XX, começou pela paródia, um dos géneros mais apreciados, primeiro pelos “gags”
cómicos muito curtos, depois em películas mais longas. Numa época em que o
cinema, ainda mudo, fazia as delícias dos espectadores, Charlie Chaplin trabalhou
este género de uma forma peculiar. A sua obra relaciona-se com os grandes
acontecimentos do século XX (as guerras, a Grande Depressão, o “New Deal”, o
advento das ditaduras e desenvolvimento económico dos anos 50/60).
A paródia afirmou-se ainda nas artes, como a pintura e a escultura. Nomes
como René Magritte (1898-1967) ou Marcel Duchamp (1887-1968) marcam, não só
a vontade de ruptura, como também uma nova visão do mundo, pela paródia. O
quadro de Duchamp “Joconde aux Mustaches” (1919), litografado com “grafitti” e
com a legenda LHOOQ110, apresentando apenas um dos exemplos dos mais
conhecidos, toma a obra original de Da Vinci e parodia-a de tal forma, que se
considera o quadro subversivo até à última ponta do bigode. Por isso, ao olharmos
este quadro, deparamo-nos com algo de novo, fora do habitual e inesperado que é
uma paródia, uma “brincadeira” engraçada. Muitos artistas do século XX aproveitam
109
Dá como exemplo Les Mille et une nuits, traduzidos por Galland que deram origem a um bom
número de paródias, como por exemplo Les mille et une fadaises, de Cazotte.
110
Soletrando em Francês estas letras obtemos a frase, um pouco chocante “Elle a chaud au cul”.
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a sua arte para mostrar o “mundo às avessas” ou, quem sabe, a verdadeira visão do
mundo tal como ele se apresenta.
Sendo o século XX marcado pela questionação dos géneros e dos valores,
muitos dos temas ancestrais da literatura vão-se alterar, como por exemplo os
ogres111 perseguidores de crianças ou o lobo mau, devorador de meninas e animais,
e introduzem-se novas temáticas, refectindo-se, por exemplo, sobre a perseguição e
extinção dos lobos. Assim, a imagem de animais como o lobo vai-se alterar e estes
tornam-se “simpáticos”. Para isso, contribuem escritores como Marcel Aymé e
Michel Tournier (Le coq de Bruyère, 1978), entre outros, onde se nota a inversão
dos valores veiculados pelas obras que parodiam.
Le Coq de Bruyère é um conjunto de novelas e contos, em que Michel
Tournier cria personagens que fogem à norma (ogres, gémeos ou seres
andróginos), havendo uma inversão intencional, mostrando, em alguns casos, a sua
visão muito pessoal da sexualidade ou da identidade sexual, temas tabu na
sociedade ocidental. Por exemplo, em La Fugue du Petit Pocet: 1980, Logre (joga-se
com o nome desta personagem e l’Ogre do texto parodiado) é descrito como sendo
« beau comme une femme », é ele que fica em casa a cuidar das filhas, enquanto a
sua mulher trabalha. Neste conto, Michel Tournier procura mostrar a diferença que
existe entre os indivíduos e a sociedade. Por isso, Pierre – o jovem herói – não
querendo submeter-se à autoridade/opressão do pai, o Commandant Poucet, e
renunciando viver na clausura da Tour Mercure, decide partir, encontrando junto de
Logre a liberdade e a possibilidade de sonhar. No mundo que encontra, percebe que
é possível viver de forma diferente da que a sociedade lhe impõe. A visão de
Tournier não é completamente optimista, uma vez que, muitas vezes, os indivíduos
são impotentes face à opressão com que se deparam, nem totalmente pessimista
pois, mesmo não se libertando totalmente, as pessoas conseguem criar um universo
muito próprio.
Em Les Contes du Chat Perché (1938) de Marcel Aymé112, o conto “Le loup” é
um texto que desvenda uma imagem “positiva” do lobo, animal sensível, com ar
111
Actualmente, o ogre Shrek, enormemente apreciado e nada temido pelas crianças, trouxe uma
nova visão e interpretação da personagem dos ogre e de outras dos contos infantis. Na versão dois
deste filme são incorporadas as personagens de contos vários e feitas inúmeras alusões aos irmãos
Grimm.
112
O referido conto “Le Loup” (p. 169-187) e, tal como nos outros contos deste livro, o autor (19021967) refere “Ces contes ont été écris pour les enfants âgés de quatre à soixante-quinze ans. (…)
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terno e brincalhão. Ao mesmo tempo, trata-se de uma paródia do lobo da fábula “Le
loup et l’Agneau” de La Fontaine e de Le Petit Chaperon Rouge. O autor parece ir
buscar o final ao conto dos Grimm, pois o lobo devora as crianças, despertado pelo
seu instinto animalesco, mas estas são libertadas e “perdoam-no”. A moralidade e o
sentido desta não passa por mostrar um lobo mau mas sim o desrespeito das
ordens paternas, às quais as crianças escaparam.
Num mundo em que há rupturas violentas e intempestivas, em que
praticamente desabaram todas as crenças iluministas, em que ruiu a dicotomia
racional-irracional ou razão-sentimento e, por conseguinte, a dicotomia homemanimal, a função do animal e a sua relação com o homem mudou completamente.
(Hoje os animais até são utilizados, pela medicina, como terapia para certas
doenças, como por exemplo os cavalos, os burros, os golfinhos ou os cães-guia).
Por outro lado, a frase “Depois de Auschwitz, o que dizer?” mudou completamente a
face do mundo. Por isso, não é de estranhar que a literatura, mas também as outras
formas de arte, reflictam estas novas relações. O homem já não é mais o centro do
equilíbrio do mundo, os animais tomaram o seu lugar.
J’avertis donc mon lecteur que ces contes sont de pures fables, ne visant pas sérieusement à donner
l’illusion de la réalité.” (Edition Gallimard, 2001 : 79)
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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CONCLUSÃO
« Auteur de La Petite Marchande de Prose, le père de Malaussène est
l’écrivain le plus aimée des français… »
Le Nouvel Observateur
Chegado o momento de concluir, colocamos ainda a seguinte questão: o
elemento fábulístico da obra de Pennac faz desta um caso à parte no panorama da
literatura francesa actual?
Sem dúvida, se tivermos em conta que a fábula está presente, como vimos,
não só na literatura para crianças e jovens, mas também em toda a sua obra
romanesca, que se articula com o elemento policial (saga Malaussène), na sua
estreita relação com o fantástico.
Grande admirador de Italo Calvino, não é, pois, de estranhar que existam
pontos de contacto entre Pennac e o escritor italiano. Calvino é, também ele, um
grande contador de histórias, lidas e admiradas por Pennac. Os seus primeiros livros
– Le sentier des nids d’araignée113 (1947) e Le corbeau vient le dernier114 (1949)
aproximam-se da fábula, quer pelo tom empregue, quer pela atmosfera retratada,
directamente inspirada na experiência de resistente do autor. Ao mesmo tempo,
estas obras abarcam o tema central que atravessa toda a produção de Calvino
(como acontece com Pennac) – a esperança de mudar a sociedade. Tal como
Pennac fará na sua obra, também Iatalo Calvino se considera no dever de
representar a sua época, investindo em duas frentes: na fábula (transformada muitas
vezes em alegoria fantástica) e no humor (baseado na ironia). Não podemos deixar
de referir a triologia de contos fantásticos Le baron perché (1957), Le viconte
pourfendu e Le chevalier inexistant (1959), onde predominam a alegoria e a fantasia
e onde, sob a forma humorística, Calvino coloca muitas interrogações sobre as
relações entre a consciência individual e o curso da História, a partir das quais se
reflecte sobre o bem e o mal. Não são estas temáticas também retratadas por Daniel
Pennac, como vimos ao longo deste trabalho?
113
A personagem central desta história, Pino, é uma criança que sente a mais profunda solidão, a
falta de afecto e chora o seu infortúnio. Só se entende bem com os adultos e, na sua existência, vêse irremediavelmente envolvido na Resistência (no momento em que a Itália se encontra impregnada
de Alemães). O leitor é colocado perante a questão “devient-on résistant par choix ou la vie décide-telle pour vous?”. Nesta fábula, evoca-se a complexidade dos seres mais simples e das situações
mais ambíguas.
114
Este livro decorre de uma recolha de novelas que retratam a infância/juventude, apresentando-se
cheias de gentileza, poesia e inocência.
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De facto, estas questões são prementes na obra de Pennac, nomeadamente
a questão do bem e do mal. Esta é, como constatámos, tratada de forma obsessiva
e repetitiva. A profunda dimensão moral do seu universo faz com que a presença da
fábula clássica saja muito mais evidente do que a da fábula moderna, paródica e de
cariz frequentemente céptico.
Se relembrarmos Anouilh, podemos concluir que os romances de Pennac
(L’Oeil du Loup e Cabot-Caboche) não são paródias, apesar de existirem neles
temas típicos da sátira, como o “mundo às avessas”. O excessivo moralismo de
Daniel Pennac afasta-o deste universo, tão surpreendentemente lúdico, que o leitor
precisa de ler e reler até poder usufruir do universo jocoso subjacente. Ora, a
transparência da leitura da obra de Pennac é de tal forma evidente que logo nos
situamos na “simplicidade” do universo de La Fontaine. De um lado os tiranos, do
outro as vítimas que, no entanto, se elevam e superam as provas a que estão,
constantemente, expostas. Como Pennac nos mostra, menino e lobo/menina e cão,
suplatam todas as barreiras e vencem os que estavam do lado do mal, terminando
ambas as histórias num “happy end”, ao estilo dos contos de fadas. O mesmo
podemos constatar nos romances da saga Malaussène, em que o poder dos “bons”
arrasa o dos “maus” e que, de uma forma fantástica, se operam transformações,
inesperadas e hilariantes, que provam o triunfo do Bem sobre o Mal.
Em conclusão, se concordarmos com Milan Kundera, quando defende que o
romance é o território em que o julgamento divino está suspenso, que o romance é o
mundo da relatividade de todas as coisas, então somos levados a concluir que a
obra de Pennac não é um romance mas sim, toda ela, uma enorme FÁBULA.
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Cabot-Caboche e L’Oeil du Loup – dois romances-fábula.
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A Fábula em Daniel Pennac Cabot-Caboche e L`Oeil du Loup – dois