A PRESENÇA DA DISCIPLINA ESCOLAR LÍNGUA FRANCESA NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL SECUNDÁRIA BRASILEIRA: 1931-1942 Stella Sanches de Oliveira PPGEdu/UFMS A hipótese central deste texto é a de que o currículo do ensino secundário brasileiro é influenciado pelas humanidades, o que é evidenciado nas definições das reformas educacionais aprovadas ao longo das décadas de 1930 e 1940, e a obrigatoriedade da disciplina Língua Francesa exemplifica tal influência. Dessa forma, tenho como objetivo situar historicamente a presença da disciplina escolar Língua Francesa nas legislações educacionais brasileiras do ensino secundário, particularmente nas reformas educacionais Francisco Campos (1931) e Capanema (1942). Este trabalho tem como referencial teórico os aportes histórico-sociais da História das Disciplinas Escolares, identificados na constituição do currículo. A Disciplina escolar é entendida aqui como uma organização dos conteúdos da escola, na tentativa de estabelecer um método e implantar regras próprias para a realidade escolar, com o surgimento na escola e a criação específica para a realidade escolar. O estudo de Disciplinas se dá pela observação histórica de maneira que remeta o pesquisador ao interior da escola, permitindo aproximar-se mais e extrapolar as questões meramente administrativas e regulamentares da educação. (CHERVEL, 1990). Essa abordagem teórica articula as disciplinas escolares no terreno do currículo, influenciado pelo jogo das forças sociais, porque ele é um artefato social, portanto construído socialmente. Segundo Goodson (1997), o currículo escrito é a institucionalização do que será ensinado, isto é, sua organização, a padronização, e se encontra cristalizado nas legislações - a fonte para as análises, neste estudo. Ele legitima as práticas escolares e padroniza os elementos que compõem tais práticas, embora exista uma distância entre o que ocorre efetivamente em sala de aula e o que é determinado pelo currículo escrito. Como caminho metodológico, utilizo a revisão de literatura para análise dos trabalhos de: Xavier (1990) e Nagle (2001), na área de história da educação; no campo específico de História das Disciplinas Escolares, Chervel (1990) como principal interlocutor e para Língua Francesa, Leão (1935) e Chagas (1957). Somado a esta instância, estabeleço como fonte a legislação, a saber: Decretos, Decretos-Lei, Portaria e Exposição de Motivos. Estas fontes documentais serão tratadas aqui como um mapa variável do terreno, um roteiro que desvendará a estrutura institucionalizada da educação. (GOODSON, 1997). A partir deste referencial buscarei responder ao longo do texto duas questões: Como foram abordadas as línguas estrangeiras nas legislações do ensino secundário da Educação Brasileira entre 1931 e 1961? De que maneira as legislações demonstram as nuances de importância da disciplina Língua Francesa para o currículo do ensino secundário brasileiro? A década de 1930 no Brasil foi um período propício para os debates educacionais e a apresentação de reformas, tendo como cenário a consolidação das bases capitalistas brasileiras, pela diversificação de setores produtivos, até então essencialmente agrário, para as vias de um desenvolvimento nacional industrial. O debate agregava as diversas camadas sociais que disputavam a implementação de suas idéias e interesses, tanto econômicos e políticos quanto cultural-educacionais, estes últimos expressados principalmente pela Reforma Francisco Campos, de 1931, pelo documento Manifesto dos Pioneiros, de 1932, e pela Reforma Capanema, de 1942. A inserção do Brasil no contexto mundial capitalista no século XX, se deu a partir do desenvolvimento do capitalismo interno engajado ao imperialismo, numa posição periférica, enquanto fornecedor do setor primário. Este processo, juntamente com a formação e consolidação da burguesia nacional, era bem distinto do que se podia acompanhar em relação aos outros processos europeus, processos estes de luta contra um regime em decadência e de busca por uma nova forma de organização de sociedade e classes sociais. No Brasil, observava-se sim a luta contra o espectro colonial, mas também a nítida manutenção de particularidades de sua estrutura social que podiam ser descritas pela forma aristocrática e conservadora, de modo a reproduzir a concentração de riquezas e garantir privilégios a um pequeno grupo. O fato é que mesmo com a República e seus ideais, havia um impedimento das outras camadas sociais de ter acesso à participação política e econômica, o que permitia um isolamento da burguesia e o encaminhamento de projetos de acordo com seu estrito interesse. É fundamental compreender que esta exclusividade no poder por parte de alguns grupos sociais se dava juntamente pela sua associação com as elites internacionais. Segundo Xavier (1990), pode-se considerar esta atitude uma privatização do poder público, pelo qual o interesse da classe dirigente se sobrepôs ao interesse público e foi em nome deste que os privilégios de um pequeno grupo social acabaram sendo legitimados como generalizante para a nação. A associação da economia brasileira com o capital estrangeiro impediu a autonomia no processo de industrialização e definiu a posição do país enquanto importador de produtos industrializados e exportador agrícola. Os acordos econômicos entre grupos sociais internos e os externos eram orientados sempre em direção à garantia de ganhos próprios. Por fim, a realidade brasileira foi envolvida, em parte, por estas influências, contribuindo para que o Brasil desenvolvesse um processo industrial dependente, distante de uma possível independência e uma distribuição de renda mais justa. O progresso representado pelas grandes indústrias não acompanhou a grande parte da população brasileira, que foi excluída da vida política e econômica. Para Xavier (1990), o processo brasileiro de industrialização não foi forjado por um desenvolvimento científico e tecnológico, construído historicamente por mudanças de suas próprias bases. O findar de uma realidade econômico-social e o nascer de outra, no Brasil, não foi resultado de um processo de desenvolvimento a partir de suas estruturas internas, mas foi um acompanhamento paralelo do capitalismo mundial, um ajustamento e inserção por pilares tomados de outro desenvolvimento de processo produtivo que não o seu. O Brasil passou, então, a ocupar uma posição periférica no âmbito do capitalismo mundial. Num contexto mundial de interdependência, a possibilidade de superação diminuía tanto pelos interesses internos quanto externos, já que as camadas privilegiadas nacionais abriam espaço para os grupos externos interessados nos ganhos desta associação. As próprias bases culturais eram influenciadas por esta dependência, de modo que uma modernização cultural estaria ligada à realidade dependente. A visão de Xavier (1990) é de que a conquista por uma modernização, a superação do atraso enquanto economia periférica e o desenvolvimento interno de bases industriais originais só seriam possíveis a partir de estruturas político-culturais e econômico-sociais essencialmente nacionais, sem os tentáculos internacionais interferindo na autonomia do país. A desestruturação do modelo tipicamente agrário exportador implementado pelo Brasil, até o final da década de 20, foi gradativamente substituído pela industrialização. A Revolução de 1930 rompeu com este formato, mas não instaurou algo inovador. O governo provisório de Getúlio Vargas se deteve em fazer arranjos com diversas e conflitantes camadas, pois este momento não era de calmaria, mas de intensos embates conduzidos pelos diferentes interesses de setores sociais – elite cafeeira, reivindicações de operários e investimentos no desenvolvimento da indústria nacional de base. (ZOTTI, 2004). É importante ressaltar que mesmo às voltas com uma mudança “revolucionária”, as bases de produção não foram substituídas por outra, mas o que ocorre, segundo Zotti (2004, p. 86), é a “substituição de um modelo capitalista dependente (agrário-exportador) por outro igualmente capitalista e dependente (urbano-industrial)”. A partir de 1930, foi observado no processo de industrialização brasileiro, o investimento na produção de bens de produção, mas na análise de Celso Furtado, os anos imediatamente seguintes à Revolução de 30 seriam caracterizados pelo desenvolvimento industrial, graças aos efeitos reflexos da ação do Estado, tendente a evitar o colapso da economia cafeeira (compra e queima de café), combinada com uma situação favorável à substituição de importações, resultante da queda da capacidade de importar. (FAUSTO, 1994, p. 48). Fausto (1994) chama a atenção para o fato de que mesmo a oligarquia cafeeira tendo perdido o poder nas movimentações do cenário político brasileiro, não significou que ela foi substituída por uma burguesia industrial nacional formada e concisa. A situação política e social no Brasil, após a revolução, era de intensos embates entre diversos grupos sociais. O Tenentismo, que havia ganhado espaço e vinha se estruturando ideologicamente, expressava, em parte, os interesses das camadas médias, que não podiam ser representadas apenas neste movimento, devido à sua heterogeneidade; o mesmo acontecia com o proletariado, ainda nascente, influenciado por idéias dos imigrantes europeus e a massa rural abandonada num contexto de intensa urbanização. Assim, mesmo com um governo provisório, o que aconteceu foi uma verdadeira lacuna. A política brasileira não acolheu nenhuma classe efetivamente hegemônica com um projeto próprio político ou econômico. Fausto (1994, p. 113) chama o momento de “vazio de poder”, afirmando que este “governo representa mais uma transação no interior das classes dominantes”. Foi preciso esperar a instituição do Estado Novo, mais efetivamente depois de 1942, para que se implantasse de forma planejada uma política de substituição das importações paralela ao incentivo às indústrias de base. No momento ditatorial, o governo centralizado não se afastou da sociedade. Fausto (2002) sintetiza o Estado Novo, pelo aspecto social, numa aliança entre a burocracia civil e militar e a burguesia industrial, todos ligados a interesses nitidamente industriais; salienta-se que a burguesia industrial se aproximou do governo pela organização da Fiesp e nas suas reivindicações não havia nenhum repúdio ao capital estrangeiro, mas apenas medidas protecionistas de câmbio e tarifas sobre importações. A importância dada por Getúlio Vargas à industrialização se manifestou na Lei Orgânica do Ensino Industrial aprovada em janeiro de 1942, pelo ministro Capanema, na qual se incentivava a qualificação do operariado. A movimentação relacionada à modernização já havia começado um pouco antes com a criação do Senai, nascido para atender a formação secundária do operário. Com base nas análises de Xavier (1990) e Zotti (2004), pretendo relacionar o sistema educacional brasileiro ao processo de industrialização nacional, sem perder de vista a importância de outros âmbitos igualmente relacionados, como a questão cultural, representada por projetos educacionais e o âmbito social, ainda, explicitamente marcado pelas diferenças de classes. Chamando a atenção para a questão de que, o sistema educacional brasileiro constituiu-se no agente exclusivo de formação das camadas superiores para o exercício das atividades político-burocráticas e das profissões liberais, consolidando um padrão de ensino humanístico e elitista. (XAVIER, 1990, p. 59). O início do século XX, foi marcado pelo fortalecimento das indústrias brasileiras e um crescente e definitivo processo de urbanização, ocupação dos espaços urbanos tanto para o trabalho quanto para moradia e um crescimento das cidades. Juntamente com a cidade, a escola representou o espaço de modernidade. Nunca aprender foi tão importante como naquele momento, a industrialização demandava conhecimento, instrução, e começava, assim, a procura por profissionais que sabiam ler, contar, escrever. A estrutura agrária brasileira nunca exigiu instrução de sua força de trabalho, mas, naquele momento, com o novo processo de produção aliado às fábricas, a procura pela educação aumentou nitidamente. Uma espécie de “ilusão liberal de ascensão social pela escolarização” se fortaleceu, o que para Xavier (1990), surgiu com a crescente imigração formando a força de trabalho para as fábricas. A autora sustenta que apesar dessa corrida pela educação, por parte destes imigrantes, o atendimento foi muito mais para as elites e classes em ascensão do que trabalhadores, representados no contexto urbano pelos imigrantes. A atitude das elites dirigentes que se deparavam com o alto índice de analfabetismo brasileiro, ficava num discurso liberal de reconhecimento do atraso e a necessidade de romper com esta lógica para a busca do progresso da nação. O discurso liberal defendia que a escola era o meio de acesso ao trabalho e, conseqüentemente, para a ascensão social, mas não buscava, como já foi tratado, nenhum projeto original para romper com a perpetuação das desigualdades sociais que impediam grande parte do povo brasileiro de ascender ao ensino público. Segundo Xavier (1990), a divulgação de idéias liberais – democracia, progresso, educação, trabalho – evidentemente não vinha somente das elites dirigentes, mas vinha também das camadas médias que absorviam tais ideais e aspiravam viver um rompimento do tradicionalismo e ascender a outros degraus sociais. A década de 1930 foi, então, palco do debate entre vários campos de interesses. De um lado, existiu uma frente católica que defendia um ensino tradicionalista expressado na educação religiosa e elitista, sobretudo porque era privado e concedido pelas próprias instituições confessionais. De outro lado, estavam intelectuais-educadores encabeçando um projeto liberal, no qual representavam a pedagogia da Escola Nova. A solicitação do governo Vargas por um programa pedagógico nacional inspirado na revolução foi concretizada na elaboração pelo ministro da Educação e Saúde, Francisco Campos. Esta solicitação estendida aos intelectuais da área de educação e ao representante oficial da área da educação, demonstra o caráter relacional de Vargas com os vários setores sociais, inclusive intelectuais. O Decreto-Lei n° 19.980, de 18 de abril de 1931, voltou-se para o ensino secundário, profissionalizante e superior, ficando conhecido como Reforma Francisco Campos. A novidade foi o interesse do poder central por uma renovação, organização do ensino secundário e estabelecimento do currículo seriado. A referida reforma expressou o ideal liberal, com crítica ao o ensino secundário brasileiro da época, por ter se reduzido a um sistema preparatório para a entrada em universidades, pela aprovação de alunos em exames e provas, além de rejeitar o caráter propedêutico tradicional, alegando que retirava do ensino a “[...] função propriamente educativa, moral e intelectual”. (XAVIER, 1990, p. 85). Para Xavier (1990), este questionamento pela falta de qualidade do ensino secundário representou o embate do renovador contra o tradicional, mas um embate muito mais representativo do que efetivamente renovador em suas mudanças. Por exemplo, a idéia renovadora em questionar a qualidade e a preocupação por melhores professores e métodos acabou se dando num discurso que defendia a “seleção natural”, a hierarquia das capacidades implantadas pelo ideal liberal-burguês que legitimava a desigualdade social justa, partindo da premissa que o cidadão era livre e tinha condições de ascender socialmente. Segundo a autora, as Reformas e Conferências, a partir de 1930, vieram acentuaram a seletividade e discriminação no sistema educacional do país, impedindo até que alunos de curso técnico conseguissem chegar ao curso superior. Nesse momento, o ensino secundário seriado passou para sete anos e foi dividido em dois ciclos – o fundamental e o complementar (dividido em humanidades, biológicas e técnicas). A busca por novas metodologias e técnicas, a inclusão de novos conteúdos e mesmo o aumento do tempo do curso marcaram a tendência inovadora. De acordo com Xavier (1990), ocorreu uma conciliação entre a função formativa e a especialização, com a permanência do caráter propedêutico no ciclo fundamental e a iniciação a novas disciplinas no ciclo complementar. A autora considera que, mesmo após a Reforma Francisco Campos, o ensino secundário continuou humanístico, tradicional e formador de uma cultura geral. (XAVIER, 1990). Sabe-se que o ensino de humanidades está ligado ao “espírito literário”, às línguas clássicas grega e latina (e, portanto, já nesse momento histórico, mortas) e às línguas modernas, tendo como característica [...] cultivar principalmente as faculdades imaginativas e sentimentais, desenvolver o gosto do belo, e apurar as operações intelectuais que mais serviam aos retóricos, aos dialéticos, aos poetas e aos filósofos metafísicos ou teológicos. (Anais da III Conferência Nacional de Educação, p.396 e 425 apud NAGLE, 2001, p. 157). A escola secundária que, por toda a década de 1920, passou incólume, começou a receber atenção especial por parte de educadores em inquéritos e conferências a respeito de seu caráter “ultrapassado”. A observação de Nagle (2001) relaciona este formato do ensino brasileiro com a realidade de crescente industrialização e ajustes da economia do país aos países mais desenvolvidos e ideologicamente maduros em termos capitalistas. Até porque as influências do capital já tinham se estendido à estrutura educacional dos países europeus e dos Estados Unidos. Os grupos que influenciavam o sistema educativo brasileiro questionavam, naquele momento, a validade do tipo de ensino secundário, voltado para “[...] vaudellistas, romancistas, poetas, críticos ou jornalistas [...]”, segundo Gustavo Lanson, anotado por Nagle (2001, p. 157, grifo do autor). O mais novo embate era o das humanidades literárias contra as humanidades científicas. O processo de industrialização demandava uma força de trabalho diferenciada e o ensino técnico-profissionalizante era necessário, portanto, neste contexto, sendo que este tipo de ensino se diferenciava de uma escolarização formadora, que era o das humanidades clássicas. A elitização do ensino humanístico brasileiro observada acima, pelas considerações de Xavier (1990) e Nagle (2001), é analisada da seguinte forma: Nesse sentido, os efeitos do entusiasmo pela educação e do otimismo pedagógico estavam limitados pela conservação dos padrões tradicionais de ensino e cultura da escola secundária, bem como pela posição desta última no sistema escolar em vigor; era através dessa instituição que se mantinha a separação entre “elite” e “povo”. Quaisquer traços que as outras instituições escolares, de nível primário ou médio, pudessem apresentar de novo, o julgamento dos resultados estava sempre limitado às possibilidades de articulação e acesso ao secundário. (NAGLE, 2001, p. 155). Questionar esta tradição adotada pelo Brasil, desde o século XIX, remete à questão da influência francesa na educação brasileira, particularmente no secundário. O sistema educacional da França vivia as mesmas contradições em relação às diferenças sociais e o tipo de ensino oferecido a cada uma dessas clientelas. Segundo Chervel (1999), a tradição humanística se justifica porque, por ela se estuda as línguas para uma boa comunicação, para a capacidade de persuasão e para o desenvolvimento do pensamento e para o contato com uma literatura histórica, pois a língua permite a integração, a formação da identidade de uma nação e uma aculturação, de modo a permitir repassá-la de geração a geração. Além disso, o ensino secundário tinha como missão a formação moral cristã de “[...] fazer homens e não somente bacharéis [...]”, não tendo o compromisso de formação profissional. (CHERVEL, 1999, p.152). Daí, uma literatura constituída de lições de moral e civismo. Embora tenha sido concebido para a formação dos filhos das elites francesas, o ensino humanístico acabou se generalizando e adquirindo um caráter hegemônico neste sistema de ensino. O surgimento do Colégio Pedro II, em 1837, marca fortemente a influência francesa sobre a educação brasileira, pois adotou padrões europeus vindos do Collège Henri IV, de Paris. De acordo com Chervel (1999, p.166-7), a partir do início do século XX, ocorreu uma ‘modernização’ das humanidades, sendo que o caráter clássico dessas humanidades foi substituído pelo ensino das línguas vivas, encabeçado pela língua francesa. Seria este o caminho para a resposta às perguntas a respeito da importância da Língua Francesa para o currículo brasileiro? Dessa forma, as humanidades estavam presentes no currículo brasileiro desde o século XIX e continuaram com a Reforma Francisco Campos, pois o primeiro artigo determinava como referência nacional o ensino secundário do Colégio Pedro II. O decreto N° 133, do Liceu Cuiabano, determinava, no artigo 4°, que “[...] o ensino e os programas do Liceu Cuiabano deverão ser os adotados no Collégio Pedro II”. (CUIABÁ, 1938, p.154). Com o intuito de relacionar o caráter humanístico da Reforma à presença da Língua Francesa no novo currículo secundário brasileiro, complemento algumas questões anteriormente apresentadas, com outros pontos para a reflexão: De que maneira a Língua Francesa aparece nas determinações da Reforma Francisco Campos? Como foi delineado o programa de Língua Francesa, uma vez que foi expoente das línguas estrangeiras modernas (ou vivas)? Estas questões remetem o estudo para o currículo prescrito e, baseado em Goodson (2003), entendo que o currículo deve ser estudado a partir de sua concepção e produção, e que a Língua Francesa é tratada aqui como uma disciplina escolar, a qual reflete na história do currículo o entendimento de conhecimento escolar. Embora as disciplinas escolares não tenham tanto poder para conduzir as mudanças curriculares, elas aportam informações importantes a respeito do currículo. O estudo do currículo permite relacionar a história da educação com a história do conhecimento e perceber as forças político-sociais que determinam a construção do conhecimento, as disciplinas, os conteúdos, os exercícios, os procedimentos prédeterminados. Ao situar a presença da disciplina escolar de Língua Francesa nas legislações educacionais, penetro na forma e no conteúdo do currículo, imersos em uma situação histórica, em movimentos sociais e políticos específicos que incidem sobre a sociedade estudada, pois dessa forma é possível entrever “[...] entendimentos em relação a aspectos de controle e operação da escola e sala de aula”. (GOODSON, 1995, p.27). Se observada a definição das disciplinas por séries, no artigo 3° da Reforma Francisco Campos, o Francês passou a constar nas 1a, 2a, 3a e 4a séries do curso fundamental, e não estava presente, portanto, apenas na 5ª série. Os dois ginásios públicos de Mato Grosso, o Liceu Cuiabano e o Liceu Campograndense, confirmam essa orientação. Segundo constam no Decreto N° 133, de 21/01/1938 do Liceu Cuiabano e no Decreto N° 229, de 28/12/1938 da criação do Liceu Campograndense, os números de aulas de francês em cada uma das séries foi assim determinado: 1a série, 3 aulas semanais; 2a série, 3 aulas semanais; 3a série, 2 aulas semanais e 4a série, 1 aula semanal; na 5a série, a língua estrangeira passava a ser o latim. (CUIABÁ, 1938, p.154; CAMPO GRANDE, 1938, p.12). Pelo artigo 10º da Reforma Francisco Campos, definiu-se que os programas de ensino secundário e as instruções sobre os métodos de ensino seriam expedidos pelo Ministério da Educação e Saúde Pública e as propostas submetidas pela Congregação do Colégio Pedro II. A importância concedida às línguas estrangeiras pela Reforma Francisco Campos é ressaltada por Casemiro (2005, p.62), por ter a referida Reforma “[...] reformulado, repensado e devidamente valorizado [...]” o ensino de línguas, no que tange a qualidade do ensino com um método científico específico para as línguas estrangeiras, além de preocupar-se com a atualização e apropriação do método para a realidade educacional do país. O Programa de Ensino de Francês ficou assim designado em séries, horas de trabalho e conteúdo: PRIMEIRA SERIE - 3 horas - Exercícios para habituar o aluno ao sistema fonético estrangeiro. Exercícios de leitura de textos, fonética e ortograficamente escritos. Observância cuidadosa da acentuação tônica. Canções e recitações de trechos decorados, em prosa ou em verso. Exercícios para a formação do vocabulário, relativos ao ambiente próprio do aluno (a família, a casa, a escola, a cidade, etc.). Conhecimento da morfologia por meio do emprêgo sintático. Substantivo. Verbos regulares nas diversas vozes e nas formas afirmativa, negativa e interrogativa. Adjetivo e advérbio. SEGUNDA SERIE - 3 horas - Continuação dos exercícios fonéticos e dos destinados à aquisição do vocabulário, dando-se-lhes já certo cunho literário. Estudo complementar da morfologia e da sintaxe. TERCEIRA SERIE - 2 horas - Leitura e interpretação pelo método direto de autores do século XX. Análise literária elementar. Apreciação gramatical das leituras feitas. Uso moderado da tradução, como meio de estudo comparativo entre as duas línguas. Composição oral e escrita para comentar os trechos estudados. Cartas e narrações. Emprêgo excepcional da língua materna para aperfeiçoar os conhecimentos adquiridos neste período e pôr em relêvo as semelhanças e dessemelhanças entre as duas línguas. QUARTA SERIE - 1 hora - Leitura e interpretação de autores dos séculos XVIII e XIX. Uso moderado da língua materna, a título de comparação. Estudos gramaticais e literárias. Correspondência. Descrições de cenas e tipos. Problemas de sintaxe comparada entre a língua materna e a língua estrangeira. Alguns exercícios graduados de versão, a título de comparação entre as duas línguas, permitindo-se o uso moderado do dicionário. (VÉCHIA; LORENZ, 1998). Nota-se nas duas primeiras séries a preocupação com a pronúncia da Língua Francesa, o objetivo de capacitar à expressão oral, construir uma rede lexical a partir do ambiente familiar do aluno e a introduzir elementos gramaticais simples, como os verbos regulares. A metodologia dos exercícios utilizou-se da memorização, leitura, recitação e a familiarização com a música. Nas terceira e quarta séries, o objetivo voltou-se para a leitura específica da literatura, primeiro de uma literatura atual do século XX e, no ano seguinte, a literatura dos séculos XVIII e XIX. Na terceira série, estavam presentes exercícios de composição, demonstrando uma evolução por parte do aluno da expressão oral para a expressão escrita. Nos dois últimos anos, apareceu claramente o nome do Método Direto, comprometido em evitar a tradução e a utilização da língua materna, embora, na quarta série, se permitisse a língua materna a título de comparação. No que tange às resoluções referentes ao ensino da Língua Francesa propostas a partir da Reforma Francisco Campos, o professor dirigente do ensino de Francês no Colégio Pedro II, em 1935, Antônio Carneiro Leão, relatou em sua obra O Ensino das Línguas Vivas, a importância que a Reforma Francisco Campos deu às línguas estrangeiras principalmente em relação ao método de ensino. Em março de 1932, foi definida uma comissão formada por professores do Colégio Pedro II, para escrever o que ficou conhecido por Instruções de 1932. Em linhas gerais, as Instruções de 1932 modernizaram o ensino de línguas estrangeiras porque, ainda naquele momento, no Brasil, elas eram ensinadas como se ensinavam o Latim e o Grego, na época da Renascença. No artigo 1º das Instruções, pode ser observada a tônica desta atualização e preocupação com o método: O ensino das línguas vivas estrangeiras (francês, inglês e alemão) no Colégio Pedro II e estabelecimentos de ensino secundario a que este serve de padrão, terá caráter nimiamente prático e será ministrado na própria língua que deseja ensinar, adotando-se o método direto desde a primeira aula. (LEÃO, 1935, p. 262). Segundo Pietraróia (1997, p.22), método é entendido tanto por um conjunto de procedimentos estabelecidos, segundo princípios ou hipóteses lingüísticas, pedagógicas, psicológicas num objetivo específico, quanto um manual ou livro pedagógico. Assim, o método de ensino de línguas estrangeiras implantado pela Reforma Francisco Campos e consolidado nas Instruções de 1932, devia ser colocado em prática na sala de aula, mas também foi reproduzido nos livros e manuais para os alunos e os professores. O Método Direto Intuitivo não devia ser realizado na língua materna e sim na língua estudada. Para a explicação do vocabulário, o professor devia se utilizar de gestos, desenhos e simulação, mas em hipótese nenhuma traduzir o conteúdo, pois o objetivo era fazer o aluno pensar na língua estrangeira e, para isso, as aulas eram compostas de exercício oral com perguntas e respostas fechadas, pela escuta e repetição. (CESTARO, 1997). Ainda no artigo 1º, está exposta a finalidade do ensino de línguas estrangeiras modernas: [...] Assim compreendido, o ensino tem por fim dotar os jovens brasileiros de três instrumentos praticos e eficientes, destinados não somente a extender o campo de sua cultura literaria e de seus conhecimentos científicos, como tambem a colocalos em situação de usar, para fins utilitarios, da expressão falada e escrita dessas línguas. (LEÃO, 1935, p. 262). Nota-se que o próprio ensino de línguas estrangeiras se comprometia, a partir de então, a formar um jovem ligado à vida prática, absorvendo uma língua que lhe desse instrumentalização para a vida moderna, não somente envolvida com a literatura, mas também com os conhecimentos científicos. Na edição da Revista Educação, de março de 1932, foi publicado um documento, encabeçado por Fernando de Azevedo, com o título “A Reconstrução Educacional no Brasil: ao povo e ao governo”, que ficou conhecido por Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Em solicitação do governo revolucionário, de 1931, à IV Conferência Nacional de Educação, evento organizado pela Associação Brasileira de Educação, com o intuito de expressar a tomada de posição desse grupo de educadores liberais naquele momento político. A característica mais marcante do Manifesto dos Pioneiros, relacionada à análise deste texto, é seu caráter liberal e seu pensamento escolanovista, influenciado por intelectuais internacionais. O discurso difundido pelo documento se pautou pela renovação, otimismo, entusiasmo. O texto difundia a idéia de que seria um novo tempo de acordo com a realidade de progresso na qual estava inserido o país e, nele, se percebia um país em processo de industrialização, tentando articular-se com outros países mais desenvolvidos, “[...] expressando a preocupação com a ‘mecanização’ do homem, típica das sociedades industriais avançadas”. (XAVIER, 1990, p.70, grifo da autora). É importante salientar que os pioneiros admitiam que a escolarização fosse elitista, e que até o momento, a igreja católica havia coordenado a educação brasileira, privatizandoa, o que fez com que somente uma pequena camada da população tivesse o acesso ao ensino. Aliás, o embate situava-se justamente na questão do tradicionalismo expressado pela Igreja, com o ensino religioso e privado. Para os pioneiros, a escola moderna tinha que ser laica, gratuita, obrigatória e única, de modo que todos pudessem estudar, como é demonstrado abaixo: [...] mas antes como a escola oficial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15, todas ao menos que nessa idade, sejam confiadas pelos Paes á escola pública, tenham uma educação comum, igual para todos. [...] A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação são outros tantos princípios em que assenta a escola unificada. (GUIRALDELLI JUNIOR, 1990, p.68). Constata-se o discurso de igualdade social, mas, por outro lado, a defesa das aptidões vitais, hierarquia democrática e hierarquia das capacidades. Ao Estado, caberia a responsabilidade da educação a todos os cidadãos, e ao cidadão, o esforço e a capacidade individual. Na visão de Xavier (1990), esta forma de ver a realidade social é reducionista, porque as questões estruturais econômicas de desigualdade social não seriam suplantadas essencialmente pela educação. Quanto ao ensino secundário brasileiro, tipicamente humanístico e científico, foi extremamente criticado pelos pioneiros, que o consideravam um ensino elitista, sem condições de acesso às camadas populares, além de não conduzir e nem formar o aluno para o campo de trabalho. A proposta ora apresentada era inovadora e democrática porque, segundo o próprio Manifesto, a educação brasileira deveria sofrer mudanças. A escola secundaria deixará de ser assim a velha escola de ‘um grupo social’, destinada a adaptar todas as intelligencias a uma forma rijida de educação, para ser um apparelho flexível e vivo, organizado para ministrar a cultura geral e satisfazer ás necessidades práticas de adaptação á variedade dos ‘grupos sociais’ [...] se devem introduzir, no systema, as escolas de cultura especializada, para as profissões industriais e mercantis, propulsoras de nossa riqueza econômica e industrial. (GUIRALDELLI JUNIOR, 1990, p.68). Como se pode observar, o Manifesto dos Pioneiros defendia também a investigação científica e, principalmente, tinha como objetivo preparar o aluno para o campo profissional já desde o 1° ciclo deste ensino. A característica inovadora do Manifesto para o ensino secundário foi a profissionalização do ensino. O Manifesto dos Pioneiros significou a cristalização do ideário burguês e, embora tenha sido um projeto aceito por várias parcelas da população brasileira, devido ao discurso inovador de educação para o progresso, teve iniciativa de representantes principalmente das camadas médias, não permitindo profundas mudanças nas estruturas educacionais; o que de fato ocorreu foi uma adaptação do quadro educacional ao posicionamento do país no sistema capitalista, neste momento hegemônico. (XAVIER, 1990). Uma das mudanças de legislação, nesse período, foi a Constituição de 1937, que vinha legalizar a ditadura do Estado Novo. Sua instalação substituiu a Constituição de 1934, a qual havia sido um marco para a educação, pois, pela primeira vez, uma Constituição brasileira tinha um capítulo sobre educação. Esta também havia contemplado duas grandes forças do cenário educacional: o projeto dos liberais e a permanência do ensino religioso, agradando, assim, aos católicos. Quanto à Nova Carta de 1937, esta tinha um estilo autoritário e a prova disso foi a dissolução do Congresso. (FAUSTO, 2002), Para a área educacional, a Constituição de 1937 significou a centralização do poder, de modo a aumentar as funções do Estado quanto à sua regulamentação e fiscalização (ROCHA, 2001). Além de absorver as idéias liberais renovadoras registradas no Manifesto dos Pioneiros, contraditoriamente retirou do Estado uma conquista de cidadania garantida na Constituição anterior. A partir de então, o Estado dividia com os pais a responsabilidade da educação. De fato, a Nova Carta passava esta obrigação, em primeiro lugar, para os pais, como se pode acompanhar: “A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais”. (BRASIL, 1937). Além disso, definiu a dualidade educacional, que pela qual colocava de um lado aquele que poderia optar pelo tipo de educação, privada ou pública, de caráter propedêutico e, de outro, a maioria, ficando com a escola pública profissionalizante, comprometida em formar força de trabalho para o mercado. (ZOTTI, 2004). Como parte do processo de mudança constitucional, o ensino também passou por ajustes traduzidos em reformas. A Lei Orgânica, de 9 de abril de 1942, parte integrante da Reforma Capanema, instituída pelo então ministro da educação Gustavo Capanema, carregou em si traços do contexto institucional do país caracterizado pela centralização de poder, além de ser afetada pelo processo, que vinha se desenrolando desde a Revolução de 30, no Brasil, de consolidação do capitalismo e do ideal liberal-burguês, além do contexto internacional de intenso nacionalismo e crise que a Europa viveu antecedente à Segunda Guerra. (XAVIER, 1990). A Reforma Capanema, assim como as outras leis instituídas, não vinham com profundas mudanças, mas carregava um discurso preocupado com a elitização tradicional da educação brasileira, impedindo que os trabalhadores ascendessem a uma educação completa até o ensino superior; e contraditoriamente confirmava a idéia de modernidade e progresso advindo com a industrialização, adequando o ensino profissionalizante ao cenário nacional. (XAVIER, 1990). No que tange ao currículo, considera-se algumas mudanças. A inserção de duas disciplinas – História e Geografia do Brasil – pelo caráter nacional que elas aportavam. O ensino moral e cívico, que não havia sido contemplado na Reforma Francisco Campos, nesse momento se justificava pelos motivos de cumprir com os deveres humanos e o fervor patriótico. A educação moral e cívica não devia ficar somente na sala de aula, precisava estar presente em todas as atividades do escolar, implantando um sentimento de brasilidade nos alunos. (Decreto-lei n° 4.244, de 09/04/1942, art. 24). O espanhol foi introduzido pelo vínculo com os países latino-americanos. E quanto às línguas modernas – Francês e Inglês – deveriam estar ao lado dos estudos científicos e técnicos para os quais elas constituem elemento auxiliar de primeira necessidade, [...] dada a importância desses dois últimos na cultura universal e pelos vínculos de toda sorte que eles nos prendem. (Exposição de Motivos do decreto-lei n° 4.244, de 09/04/1942). Além disso, afirmava-se que, Por mais que esteja o nosso país voltado para a modernidade e para o futuro, não lhe é possível desconhecer a irremovível vinculação de sua cultura com as origens helênicas e latinas. [...] Os Estudos antigos não revestem apenas de um valor de erudição. Eles constituem uma base e um título das culturas do Ocidente. [...] O ensino secundário das nações cultas dá em regra o conhecimento de uma ou duas (no caso, as línguas vivas estrangeiras). (Exposição de Motivos do decreto-lei n° 4.244, de 09/04/1942 - comentário meu). Percebe-se, daí, a importância que a Reforma Capanema concedia ao ensino humanístico por meio das línguas estrangeiras. Assim, [...] no primeiro ciclo ginasial, incluíram-se, como disciplinas obrigatórias, o Latim e o Francês (estudados nas quatro séries), e o Inglês (presente apenas nas três últimas séries). Os horários foram razoavelmente ampliados, o Latim com oito aulas semanais, o Francês com treze e o Inglês com doze horas semanais. Em todas as séries havia exercícios de conversação, leitura, contextualização do conteúdo e uso da gramática. No curso clássico do segundo ciclo colegial, o Latim aparece nas três séries; o Grego, o Inglês e o Francês eram matérias optativas; e o Espanhol aparece apenas nas duas primeiras séries. No curso científico, o Francês e o Inglês aparecem nas duas primeiras séries; e o Espanhol, na primeira série, com aulas semanais. (CASEMIRO, 2005, p.72). Mas a justificativa por um ensino imbuído de mais cientificidade marcou tal Reforma. A discussão se pautava em relação à mudança do currículo, de modo a implantar uma “cultura científica”. Neste sentido, a mudança equiparou as modalidades de ensino secundário, criando o ginásio correspondente ao 1° ciclo, de 4 anos e o 2° ciclo, formado pelo clássico e científico de, 3 anos. Segundo Xavier (1990, p.110), a Reforma Capanema foi uma “compreensão equivocada do significado e do papel da ciência moderna no pensamento liberal-pragmático”. Pois, mesmo que o novo currículo se organizasse em um 2° ciclo contendo o Científico, a grade curricular não deixava de contemplar disciplinas humanísticas. Para a autora, a grande mudança que representaria a concepção moderna de ciência não foi compreendida num país de tradição educacional humanística, pois os estudos científicos foram esvaziados “do espírito novo que deveriam infundir a todo o currículo escolar”. (XAVIER, 1990, p.111). Chagas (1957) faz algumas anotações sobre o ensino da Língua Francesa e, quanto à qualidade dos professores da disciplina, o autor diz que a Reforma Capanema não conseguiu executar com adequação o Método Direto, porque não tinha um quadro de professores capacitados no conhecimento desta metodologia. Como se pode observar: Quantos dos nossos estabelecimentos de ensino secundário, dispõem de sala apropriada para estudo de línguas? Quantos, dentre eles, contam com bibliotecas de classe? Quantos, para o ensino de francês, possuem discos selecionados e gravados com canções populares, fábulas de La Fontaine e canções de contos de Perrault ? Quantos estão preparados com aparelhos cinematográficos e filmes que representem fábulas de La Fontaine ou aspectos da vida francesa? Na verdade, muito poucos – pouquíssimos mesmo. E no entanto, diga-se de passagem, estas e outras, que não vem pelo enumerar, são exigências expressas nas próprias Instruções, que a inspeção federal jamais pôde ver cumpridas pelo menos em parte. (CHAGAS, 1957, p.99) Se o Método Direto era colocado em prática ou não, Chagas (1957) não faz um estudo para confirmá-lo, mas este questionamento a respeito da exigência e das finalidades das disciplinas escolares expostas em Instruções, remete a um futuro passo para apontamentos sobre o ensino da Língua Francesa no cotidiano escolar. O estudo de currículo e da história das disciplinas permite a interseção entre o que é prescrito e o que é realizado. Aqui, não será abordada a etapa das práticas escolares vividas no cotidiano escolar, concentrando-me em reflexões acerca das legislações. Na portaria N° 114 de 29/01/1943, que expediu as instruções metodológicas para a execução do programa de francês do curso ginasial, estão expostas as finalidades do estudo da Língua Francesa, que buscava garantir ao estudante o acesso aos “bons escritores”, capacidade de escrever, falar e compreender esta língua, ter conhecimento da civilização e “[...] contribuir para a formação de sua mentalidade, desenvolvendo hábitos de observação e de reflexão, dando-lhe a capacidade de compreender tradições e ideais de outros povos”. (p. 176). Também apresentava a estrutura do curso de francês: “[...] buscar-se-á alcançar essas finalidades mediante um ensino pronunciadamente prático, isto é, método direto”. (p. 177). Constata-se, mais uma vez, o Método Direto aparecendo como metodologia científica para o ensino das línguas estrangeiras modernas. Somado ao ensino secundário, a Reforma Capanema instituiu o ensino técnicoprofissional, equiparando-os ao ensino secundário, garantindo que as três áreas da economia (primária, secundária e terciária) fossem oficialmente representadas, para a formação do trabalhador. Dessa forma, assim como a outra Reforma de 1931, esta veio ao encontro da estrutura capitalista, ajustando a estrutura educacional nesta realidade e permitindo um tipo de educação para diferentes classes da sociedade brasileira. No pós-guerra, a Constituição de 1946 abriu um período democrático no país, já consolidado no caráter liberal-burguês da ideologia dominante. Segundo Vieira (2003), o Estado retomou, em parte, a responsabilidade da educação, concedendo à iniciativa privada a possibilidade de financiá-la, além de oficializar o ensino pela oferta de escolas particulares, o que foi chamado de “ensino oficial”, caráter, a partir de então, não mais exclusivo do Estado. Nesta Constituição, o Estado se responsabilizaria pelo ensino primário gratuito, porém, para os níveis restantes, o cidadão deveria comprovar a falta de condições para pagar uma escola privada. Mas foi a discussão das diretrizes e bases da educação que marcou a novidade na Constituição a respeito da educação nacional. Segundo Zotti (2004), esse dispositivo constitucional foi o passo fundamental para a construção de uma lei única com o papel de regular para todo o território nacional a educação em todos os níveis e formas. Até então, a legislação educacional de nível federal era constituída de reformas parciais que tratavam cada um dos níveis da educação de forma isolada. (ZOTTI, 2004, p. 117). Em 20 de dezembro de 1961, foi implantada a Lei n° 4.024, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, resultado de 13 anos de discussões e debates, até sua aprovação. A estrutura de ensino não foi alterada, permanecendo o ginásio de 4 anos e o colegial de 3 anos, sendo que o secundário passou a chamar-se ensino médio. Outra mudança no currículo permitiu que o aluno de qualquer tipo de secundário, fosse científico, comercial, industrial ou clássico, chegasse a qualquer curso universitário, podendo também mudar de curso no decorrer do ensino médio, não permitido, até então, para os cursos técnicosprofissionalizantes. Quanto ao ensino médio, tiveram alterações as disciplinas obrigatórias e complementares, como mostra o artigo 35 da LDB, de 1961: Ao Conselho Federal de Educação compete indicar, para todos os sistemas de ensino médio, até cinco disciplinas obrigatórias, cabendo aos conselhos estaduais de educação completar o seu número e relacionar as de caráter optativo que podem ser adotadas pelos estabelecimentos de ensino. (apud ZOTTI, 2004, p.122). As disciplinas obrigatórias eram Português, Matemática, História, Geografia, Ciências; as complementares eram OSPB, Língua Estrangeira Moderna, Língua Estrangeira Clássica, Desenho. Os Conselhos Estaduais de Educação tornaram-se os responsáveis pela decisão da opção da Língua Estrangeira e, o que de fato acabou acontecendo, foi que o Latim saiu do currículo e o Francês teve o número de aulas diminuído, ficando, portanto, a Língua Inglesa a ser ensinada como língua estrangeira. Não pretendo discutir aqui os fatores que levaram a opção pela Língua Inglesa, mas cabe registrar que, após a 2a guerra mundial, a influência norte-americana aumentou muito em relação aos países europeus e, também, ao Brasil, sendo que, portanto, vejo nisto um fator importante que corrobora para tal determinação. Segundo Zotti (2004), a LDB, de 1961, significou um avanço, porque previu uma descentralização na composição curricular justamente quando definiu um grupo de disciplinas complementares e optativas – novo caráter recebido pelas Línguas Estrangeiras – a ser decidido pelo Conselho Estadual de Educação e pela escola local. Porém, na realidade, as escolas acabaram por seguir as sugestões do Conselho Federal de Educação, em parte, por falta de professores capacitados em disciplinas diferenciadas. Somado a isto, houve uma adaptação do ensino secundário ao quadro econômico brasileiro, coexistindo, de um lado, uma formação humanística propedêutica e, de outro, uma científica, mais ajustada para o tipo de realidade econômico-industrial do país, preocupada em “garantir uma formação cultural básica, independente da formação futura”. (ZOTTI, 2004, p. 135). CONCLUSÃO A partir desta breve contextualização histórica da presença da Disciplina Língua Francesa na legislação do ensino secundário brasileiro, observou-se, no período – 1931 à 1942 – que este ensino teve um contorno claramente humanístico e propedêutico, ainda que tenha passado por Reformas e debates ao longo desses 11 anos. As transformações econômicas e políticas vividas pelo país, tanto interna quanto externamente, influenciaram os debates e resoluções nas legislações educacionais, numa tentativa de adequar o quadro teórico educacional ao que se vinha apresentando mundialmente, no que tange aos aspectos da modernização tecnológica e transformações no mercado de trabalho. Tal fato permitiu no currículo a coexistência de disciplinas humanísticas e disciplinas científicas, aquelas comprometidas na formação de uma cultura geral e moral do jovem, com a finalidade de prepará-lo para a vida prática. O currículo adquiriu um caráter elitista, pois não preparou o jovem das classes menos abastadas para a formação do ensino superior, mas sim como força de trabalho para a crescente industrialização brasileira. Daí, uma reflexão a respeito da preponderância das humanidades no ensino secundário brasileiro desde o Império, de modo a admitir a idéia de ‘transplantação cultural’. No entendimento de Geraldo Silva (1969), a transplantação cultural perpassa pela importação de um padrão europeu que tornou-se universal no ocidente. O século XIX foi um momento de divulgação do ideal civilizatório das nações européias, pela expansão de uma matriz referencial de comportamento e estilo de vida cultural a ser imitado pelos recentes países da América, numa apropriação de uma cultura superior, como ressalta Gasparello (2004). A instrução pública brasileira, no império, foi constituída por uma elite formada na Europa, a qual dava importância a toda cultura vinda do velho continente – as Universidades, os livros, as editoras, a língua, entendida como instrumento de cultura e distinção das elites. De acordo com Gasparello (2004), um conjunto essencialmente europeu entrelaçava a cultura brasileira em formação, a saber, a tradição aristocrática na política, a unidade nacional e o contorno humanístico na formação do espírito dos jovens, concretizado no Colégio Pedro II. Foram elementos determinantes para a compreensão dessa trajetória da Disciplina Língua Francesa pela História da Educação Brasileira, no período de 1931 à 1942, as Reformas Francisco Campos e Capanema e a adoção do Método Direto, os debates a respeito do ensino secundário, a discussão liberal de um ensino profissionalizante científico ou o abandono do ensino humanístico cristão nos documentos Manifesto dos Pioneiros, para finalmente chegar ao seu “prévio” desaparecimento do currículo brasileiro na aprovação da LDB de 1961, tornando-se disciplina complementar. Para o aprofundamento destes elementos, se fez necessário, enquanto historiadora, selecionar novas fontes, renovar as problematizações, visitar os arquivos. O que pode ser traduzido pela busca de documentos no Arquivo Histórico de Mato Grosso, em Cuiabá, e no Acervo de Documentos do Colégio Maria Constança Barros Machado, em Campo Grande/MS. Esses procedimentos técnicos de separar, reunir e transformar, tornaram-se uma nova forma de trabalho, uma tentativa de dar voz a “[...] imensos setores adormecidos da documentação”. (apud CERTEAU, 2006, p.83). Houve um intenso esforço em inserir este estudo no campo da História da Educação, pela aproximação dos processos cognitivos do campo específico da História, como sustenta (WARDE, 2006). O objetivo, ao bom tempo, de um trabalho mais amplo, é embasar-me em fontes documentais oficiais - textos oficiais programáticos, discursos ministeriais, leis, ordens, decretos, acordos - e em outras fontes produzidas pela escola relatórios de inspeção, projetos de reforma, artigos ou manuais de didática, polêmicas diversas (CHERVEL, 1990) - que, por muito tempo, não foram reconhecidas como válidas, para, dessa forma, como chama a atenção Certeau (2006), transformar os dados em acontecimento histórico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. 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