ESTUDO CONTRASTIVO DOS ARQUIFONEMAS CONSONANTAIS EM FRANCÊS E INGLÊS (Publicado nos Anais da 49ª Reunião Anual da SBPC, 1997) Resumo: Este artigo busca tipificar os arquifonemas consonantais /N/ em francês e /R/ em inglês e realizar um estudo comparativo sumário do seu comportamento, tentando mostrar que eles apresentam natureza análoga e distribuição. Os arquifonemas franceses e ingleses são o resultado da neutralização entre uma consoante (/n/ no caso do francês; /r/ no caso do inglês) e um fonema “zero” (representado por ∅) antes de consoantes ou em posição final absoluta. Ambos os arquifonemas apresentam comportamento notavelmente semelhante, afetam a distribuição das vogais precedentes de modo bastante análogo e seu uso segue padrões análogos em termos da distribuição geográfica desses idiomas (isto é, variedades européia x não-européia do francês/inglês). Palavras-chave: Neutralização; arquifonema; francês; inglês. Preliminares Segundo diversos autores da fonologia estrutural, dentre os quais Pais (1981, p. 127) e Akamatsu (1988, p. 111), dá-se o nome de neutralização ao fenômeno da anulação da oposição entre dois fonemas em determinado contexto fonológico. A unidade fonológica que subsume ambos os fonemas neutralizados chama-se arquifonema, e representa-se graficamente por uma letra maiúscula entre barras. Dessas definições, decorre que, para que haja neutralização, é necessário que os dois fonemas em jogo possam efetivamente ocorrer no mesmo contexto fonológico. Assim, temos em português brasileiro a neutralização dos fonemas /{/ e /R/ em posição final de sílaba (por exemplo, carta, pronunciado indiferentemente como /»kaRta/ ou como /»ka{ta/). Resulta dessa neutralização o arquifonema /R/ (/»kaRta/). Entretanto, tais fonemas não se neutralizam após consoante, por exemplo. Assim, guelra só admite a pronúncia /»gEl{a/ e não */»gElRa/, ao passo que prata só admite a pronúncia /»pRata/ e não */»p{ata/. Nesses casos, evidentemente, não se pode falar de neutralização nem de arquifonema. Em certas línguas, observa-se que a comutação de um fonema com um vazio (isto é, com a ausência de fonema) em determinados contextos não altera o significado da palavra. Nesse caso, por um motivo de simplicidade formal, pode-se postular a neutralização do fonema “cheio” com um fonema “vazio”, ou fonema zero (representado por ∅). Assim, por exemplo, sabemos que em inglês todo /r/ seguido de consoante ou em posição final absoluta pode ser pronunciado ou não. Como essa possibilidade de comutação entre /r/ e ∅ é sistemática nesses contextos (já que não há nenhuma exceção), podemos perfeitamente falar na neutralização de /r/ e ∅ e, conseqüentemente, considerar a existência de um arquifonema subsumindo ambos os fonemas neutralizados. No entanto, com base nas definições que demos acima, é mister distinguir entre a neutralização e a alomorfia. Se tomarmos as expressões francesas vous êtes (transcrita /vuz »Et/) e vous faites (transcrita /vu »fEt/), poderíamos, à primeira vista pensar na neutralização de /z/ com o fonema zero, de que resultaria um arquifonema /Z/, donde transcreveríamos fonologicamente vous como /vuZ/. Entretanto, cumpre lembrar que a forma /vuz/ só ocorre diante de vogal, enquanto /vu/ só se dá diante de consoante. Assim, /z/ e ∅ não comutam no mesmo contexto, razão pela qual não há neutralização nesse caso. O que temos aí na verdade são dois alomorfes combinatórios, /vu/ e /vuz/. Devemos ter em mente, portanto, que a neutralização se deve a fatores exclusivamente fonéticofonológicos e, assim, se verifica sempre que tais fatores estejam presentes e apenas nessa condição. Assim, por exemplo, a neutralização de /R/ e /{/ em português brasileiro se dá sem exceção sempre que tais fonemas ocorram em posição final de sílaba. Já, partindo do par de palavras loiro x louro (transcritas respectivamente como /»lojru/ e /»lowru/), não se pode falar aí de neutralização entre /j/ e /w/, uma vez que tais fonemas não se neutralizam necessariamente toda vez que venham precedidos de /o/ e seguidos de /R/ (cfr. moura = “feminino de mouro” e moira = “personagem mitológica”). Nesse caso, trata-se de alomorfia. Feitas estas considerações preliminares, estamos aptos a discutir os arquifonemas consonantais em francês e inglês, línguas em que esse fenômeno é particularmente significativo, além de apresentarem os arquifonemas franceses e ingleses grande analogia em termos de comportamento. O arquifonema francês /N/ Sejam as palavras francesas once, bombe, onde e ongle. Note-se que once somente admite a pronúncia [»ç)s], enquanto bombe pode ser pronunciada como [»bç)b] ou como [»bç)mb], onde pode ser pronunciada como [»ç)d] ou como [»ç)nd], e ongle pode ser pronunciada como [»ç)gl´] ou como [»ç)Ngl´]. (Com efeito, as pronúncias [»bç)mb], [»ç)nd] e [»ç)Ngl´] são mais comuns em algumas regiões da França, bem como do Canadá francofone, não correspondendo à pronúncia padrão parisiense, por exemplo, que é [»bç)b], [»ç)d] e [»ç)gl´].) Depreende-se daí o arquifonema /M/, resultante da neutralização de /m/ e ∅ diante de /p/ e /b/, bem como o arquifonema /N/, resultante da neutralização de /n/ e ∅ diante de /t/, /d/, /k/ e /g/. Podemos, por simplicidade, fundir ambos os arquifonemas num único arquifonema /N/, que neutraliza /m/, /n/ e ∅, pois /m/ e /n/ apresentam distribuição complementar entre si, e ∅ comuta livremente com os outros dois fonemas. Assim, temos bombe, onde e ongle transcritas respectivamente como /»bõNb/, /»õNd/ e /»õNgl´/. Observa-se, desse modo, que tal arquifonema é sempre precedido de vogal nasal, e em posição medial é sempre seguido de consoante oclusiva. Entretanto, /N/ também pode ocorrer em posição final absoluta. Vejamos como isso acontece. Sejam as expressões: 1) mon ami 2) mon harnais 3) mon tableau 4) mon père 5) mon chapeau /mõn a»mi/ /mõ ar»nE/ /mõ ta»blo/ ou /mõn ta»blo/ /mõ »pEr/ ou /mõm »pEr/ /mõ Sa»po/ Com base nos exemplos acima, podemos postular a forma fonológica /mõN/. Note-se nos exemplos 1 e 2 que, diante de palavras iniciadas por som de vogal, /N/ pode manifestar-se como /n/ ou como ∅, sendo essa distribuição disciplinada pela norma lingüística. (Na verdade, /N/ final manifesta-se como ∅ diante de palavras que outrora se iniciavam por h aspirado. Tendo esse som aspirado desaparecido do francês, tais palavras iniciam-se hoje por som vocálico.) Diante de oclusivas, a ocorrência de /m/, /n/ ou ∅ é facultativa; diante de outras consoantes só ocorre ∅. Todavia, nem toda palavra francesa terminada por vogal nasal possui um arquifonema /N/ em posição final. Se tomarmos, por exemplo, as expressões: 6) maison azure 7) maison haute 8) maison blanche 9) maison décorée 10) maison verte /mE»zõ a»zyr/ /mE»zõ »ot/ /mE»zõ »blãS/ ou /mE»zõm »blãS/ /mE»zõ deko»re/ ou /mE»zõn deko»re/ /mE»zõ »vErt/ veremos que /m/ e /n/ somente podem ocorrer diante de oclusivas; nos demais contextos, temos sempre ∅. Nesse caso, é mais conveniente supor a inexistência de /N/ em posição final. A ocorrência de /m/ e /n/ nos exemplos 8 e 9, respectivamente, pode ser tratada neste caso como um fenômeno restrito ao plano fonético, que não repercute ao nível fonológico. Convém acrescentar também que é comum no francês, ao nível estritamente fonético, a aparição de um som [N] em final de palavra, após vogal nasal. Assim, não é incomum ouvirmos long pronunciado como [»lç)N]. Também neste caso, não existe o arquifonema /N/. O arquifonema inglês /R/ Sejam as palavras inglesas fast e part. Note-se que, à semelhança do francês, fast só pode ser pronunciada /»fa˘st/, enquanto part pode ser pronunciada como /»pa˘t/ ou como /»pa˘rt/. (A pronúncia /»pa˘rt/ é mais comum no norte da Inglaterra, na Irlanda, bem como nos Estados Unidos, não correspondendo à pronúncia padrão londrina, que é /»pa˘t/.) Depreende-se daí o arquifonema /R/, resultante da neutralização de /r/ e ∅. Assim, part transcreve-se fonologicamente como /»pa˘Rt/. O arquifonema em questão vem sempre precedido de vogal longa ou ditongo e também pode ocorrer em posição final absoluta. Em posição medial, é sempre seguido de consoante. Temos então: /»fa˘r √»wej/ /»fa˘ from/ ou /»fa˘r from/ 1) far away 2) far from Podemos então postular a forma fonológica /»fa˘R/. Observe-se no exemplo 2 que, diante de palavras iniciadas por consoante, /R/ pode manifestar-se como /r/ ou como ∅. Contudo, a exemplo do francês, nem toda palavra inglesa terminada por vogal longa possui um arquifonema /R/ em posição final. Sejam, por exemplo, as expressões: 3) I saw him 4) I saw it /aj »so˘ him/ /aj »so˘ it/ ou /aj »so˘r it/ Vemos nesses exemplos que /r/ não ocorre diante de consoante; diante de vogal, sua ocorrência é facultativa. Nesse caso, não temos o arquifonema /R/, sendo mais conveniente tratar a ocorrência de /r/ no exemplo 4 como um fenômeno estritamente fonético, que não atinge o nível fonológico. Sistematização dos arquifonemas /N/ e /R/ Apresentamos, a seguir, um quadro sistemático dos arquifonemas consonantais do francês e do inglês, exibindo as vogais simples (nasais, no caso do francês, longas, no caso do inglês), e essas mesmas vogais seguidas dos respectivos arquifonemas. Note-se que algumas vogais longas do inglês, assim como o ditongo /ej/, sofrem modificações fonéticas segundo se encontrem em posição isolada ou seguidos de /R/. É interessante ressaltar também que, no francês, nem todas as vogais orais possuem correspondentes nasais (com efeito, apenas /a/, /E/, /e/, /ç/ e /o/ apresentam contrapartidas nasais; o mesmo não acontece com /i/, /u/, /ø/ e /y/). Da mesma forma, nem todas as vogais breves do inglês apresentam correspondentes longas: é o caso de /e/. FONEMA FRANCÊS PRONÚNCIA EXEMPLO /ã/ /e)/ [A)] [æ)] danse linge /õ/ [ç)] songe /ãN/ /e)N/ [A)], [A)n] [æ)], [æ)n] ventre peindre /õN/ [ç)], [ç)/ç)n] onde FONEMA /a˘/ /ej/ /i˘/ /o˘/ /u˘/ /√˘/ /a˘R/ /ejR/ /i˘R/ /o˘R/ /u˘R/ /√˘R/ INGLÊS PRONÚNCIA EXEMPLO [A˘] [eI] [i˘] [ç˘] [u˘] [Œ˘] [A˘], [A˘®] [E´], [E´®] [I´], [I´®] [ç˘], [碮] [U´], [U´®] [Œ˘], [Œ˘®] father date beat law food hors-d’oeuvre park there beard store moor hurt Conclusão Observamos que o francês e o inglês possuem arquifonemas consonantais que apresentam comportamento sob todos os aspectos análogo, pois ambos ocorrem na sílaba exclusivamente na posição imediatamente pós-vocálica, ambos resultam da neutralização de uma consoante com o fonema zero, ambos exigem ser precedidos de um tipo específico de vogais (em francês, vogais nasais, à exclusão das orais; em inglês, vogais longas, à exclusão das breves). Além disso, notamos que, em posição préconsonantal, esses arquifonemas se realizam preferencialmente como ∅ na pronúncia européia dessas línguas. Nesse tipo de contexto, a realização de /N/ como /n/ e de /R/ como /r/ possui caráter dialetal na França e na Inglaterra, sendo, ao contrário, a realização normal desses arquifonemas nas variedades ultramarinas dessas línguas (francês canadense, africano, etc.; inglês norte-americano, canadense, africano, etc.). Bibliografia sumária AKAMATSU, T. (1988) The theory of neutralization and the archiphoneme in functional phonology. Current issues in linguistic theory, v. 43. Amsterdam, John Benjamins. BIZZOCCHI, A. L. (1993) O sistema fonológico do português: diferenças básicas entre Brasil e Portugal. Anais da 45ª Reunião Anual da SBPC. Recife, julho de 1993, p. 492. PAIS, C. T. (1981) Introdução à fonologia. São Paulo, Global. Notas 1. Com efeito, as pronúncias [»bç)mb], [»ç)nd] e [»ç)Ngl´] são mais comuns em algumas regiões da França, bem como do Canadá francofone, não correspondendo à pronúncia padrão parisiense, por exemplo, que é [»bç)b], [»ç)d] e [»ç)gl´]. 2. Na verdade, /N/ final manifesta-se como ∅ diante de palavras que outrora se iniciavam por h aspirado. Tendo esse som aspirado desaparecido do francês, tais palavras iniciam-se hoje por som vocálico. 3. Convém acrescentar também que é comum no francês, ao nível estritamente fonético, a aparição de um som [N] em final de palavra, após vogal nasal. Assim, não é incomum ouvirmos long pronunciado como [»lç)N]. Também neste caso, não existe o arquifonema /N/. 4. A pronúncia /»pa˘rt/ é mais comum no norte da Inglaterra, na Irlanda, bem como nos Estados Unidos, não correspondendo à pronúncia padrão londrina, que é /»pa˘t/. 5. De fato, o único caso em que o arquifonema /R/ pode ser precedido por uma vogal breve é quando é precedido por /√/ átono (compare forward /»fo˘Rw√Rd/ e foreword /»fo˘Rw√˘Rd/.