34º Encontro Anual da Anpocs
Seminário Temático 15: Imagem e suas leituras nas ciências sociais
Coordenadores: Ana Paula C. Simioni (USP); Marco Antonio Gonçalves (UFRJ)
Pintura e Identidade: formas de pintar Pernambuco por artistas
locais e seus diálogos com o Sudeste
Eduardo Dimitrov
Doutorando em Antropologia Social PPGAS/USP
Bolsista FAPESP
Setembro 2010
A arte produzida em Pernambuco, ao menos do século XIX até meados do XX,
teve que se haver com o fato de, muitas vezes, carregar o adjetivo “pernambucana”.
Poucos foram os pintores locais que simplesmente produziram pintura, sem adjetivos.
Telles Júnior, por exemplo, é tido como um expoente local da pintura acadêmica.
Contudo, suas telas não são apenas paisagens, mas paisagens pernambucanas e, como
afirma Gilberto Freyre, paisagens especificamente da zona da mata.
A questão de como representar a “realidade local” foi debatida por muitos
pintores e críticos pernambucanos. Essa era a preocupação, por exemplo, de Gilberto
Freyre em seu artigo A Pintura no Nordeste (1925), no qual o sociólogo lamenta a falta
de artistas dedicados a retratar a “realidade nordestina”.
Mesmo as paisagens pernambucanas de Telles Júnior – que gozava de relativo
reconhecimento nacional – estavam, segundo Freyre, longe de retratar a “realidade
nordestina”. Nelas, a ausência de seres animados – de homens, de negros nos engenhos –,
reduziria o poder das representações. O homem e a sociedade pernambucana apareciam
apenas como vestígios.
Mas o elemento humano local, animador dessa paisagem de
“mata”, sempre o desprezou Telles na sua pintura descritiva. Nos seus
quadros – à exceção de um ou outro, como “Usina Cuyambuca” – a
vida de engenho apenas se advinha de longe, pelos sulcos das rodas dos
carros de boi no vermelho mole das ladeiras. Dir-se-iam suas pinturas,
ilustrações para um compêndio de geografia física. (FREYRE, 1925, p.
127)
A partir dessa ausência notada na obra de Telles Júnior, Freyre postula o quê
deveria ser o conteúdo das telas de artistas pernambucanos. Segundo o sociólogo, a
produção do açúcar, a exemplo da mineração na pintura do muralista mexicano Rivera
(1886-1957), poderia instigar o artista a olhar o ambiente que o cerca. Afirma ainda que a
técnica da produção do açúcar ofereceria elementos para uma pintura “nossa”, isto é:
pernambucana. Frisa a “elegância dos movimentos” dos escravos ao deitarem canas na
boca das moendas e arrebata: “O Nordeste da escravidão... Era um luxo de matéria
plástica” (FREYRE, 1925, p. 127). Teria sido Tollenare, um pintor francês, o primeiro a
observar, em visita a Pernambuco em 1816, essa plasticidade do trabalho escravo nos
engenhos.
A técnica da produção do açúcar oferece elementos para uma
pintura tão nossa que é verdadeiramente espantoso o sempre-lhe terem
1
sido indiferentes os pintores da terra. […] Já o francês Tollenare,
visitando em 1816 um engenho pernambucano de roda d'água,
observava nos escravos que deitavam canas na boca das moendas a
elegância de movimentos. E nós que conhecemos o processo de fabrico
de açúcar nos “banguês”, sabemos como se sucede em verdadeiro ritmo
a elegância de efeitos plásticos. Não é só a entrega da cana à boca da
moenda: há ainda as figuras de homens que se debruçam sobre os
tachos de cobre onde se coze o mel para o agitar com as enormes
colheres para o baldear com as “gingas”; e ante as fornalhas onde arde a
lenha para avivar o fogo cor de sangue. E esses corpos meio nus em
movimento, dorsos pardos e roxos, oleosos de suor, todos se doiram ou
se avermelhem à luz das fornalhas; e assumem na tensão dalgumas
atitudes relevos estatuescos. (FREYRE, 1925, p. 127)
Além da plasticidade dos movimentos, Freyre explicita ainda seu desejo de
construção de painéis em prédios públicos com a temática da beleza do trabalho escravo
ou negro liberto nas bocas de caldeiras fumegantes:
Há em tudo isso, sugestões fortes para a pintura. Imagino às
vezes os flagrantes mais característicos do trabalho de engenho fixados
em largas pinturas murais, num palácio, num edifício público. […]
Nossa civilização nordestina de senhores de engenho, de produtores de
açúcar, de trabalhadores de engenho, já devia ter encontrado sua
expressão plástica; e a decoração mural dos edifícios públicos deveria
ser a primeira a fazer sentir ao estrangeiro a plástica da economia da
terra. (FREYRE, 1925, p. 127)
Para além dos desejos de Freyre de como deveria configurar-se a pintura
nordestina, ele também anuncia alguns dos princípios do Manifesto Regionalista que
seria divulgado um ano após a esse artigo, em 1926. Diz que ao invés dos pintores
nordestinos, regionais, tentarem executar uma arte nos padrões “cosmopolitas”, como o
fez o paraibano Pedro Américo ao retratar temas bíblicos, os pintores locais deveriam
focar naquilo que os cerca, naquilo que seria característico de sua região, como, para o
sociólogo, o trabalho nos engenhos. O artista atingiria o grau mais universal da expressão
artística a partir dessa imersão no que seria “regional”.
Em seus escritos posteriores sobre sociologia da arte, Freyre argumenta que todos
os artistas, de alguma forma, portam insígnias adquiridas nas regiões e províncias onde
passaram suas infâncias ou juventudes. A região marcaria todos os indivíduos e, no caso
dos artistas, expressar-se-ia em seus trabalhos mesmo que o artista verbalizasse a
ausência de conexões entre região de origem e resultado plástico. Diz Freyre:
Raro é, aliás, o artista ou o escritor para quem não exista a
sugestão de uma região ou de uma província, em particular – de
ordinário a do seu tempo de menino – presente de modo nem sempre
2
ostensivo, às vezes até sutil, nas formas ou nas cores mais
características da sua expressão. [...] Picasso poderia ter dito: "A
Espanha não existe", querendo dizer que para ele ou para a sua arte não
existiam influências ou resíduos especificamente espanhóis que os
condicionassem nem sentido antes regional, de vida, que nacional, de
convenção. Mas seriam palavras que exprimiriam a pura convicção de
um indivíduo; e não a realidade da formação de um artista e da sua
personalidade de criador. Joyce pode ter chegado a exprimir-se num
inglês quase de todo recriado por ele. Mas sem que nesse inglês
deixasse de haver Dublin, a Irlanda, o catolicismo latino do irlandês.
Todo um mundo de formas e de cores – de sugestões de formas e de
cores – ao mesmo tempo particulares e gerais. Regionais e universais.
(FREYRE, 2010a, pp. 19-20)
Freyre ressignifica um postulado da sociologia, o de que as constrições sociais
conformam o indivíduo, para argumentar a favor da universalidade do regionalismo.
Afinal, segundo o sociólogo de Apipucos, se o social conforma os indivíduos, todos os
indivíduos, e nesse caso os artistas, expressam, ou nas formas empregadas ou nos
conteúdos abordados em seus trabalhos, as regiões e províncias as quais se vinculam,
mesmo que isso se dê de maneira indireta e inconsciente.
Não importa o quão universal o pintor julgue sua arte, para Freyre, nas telas,
haveria sempre uma manifestação da região que formou o artista. Ou seja, o regionalismo
seria uma condição inescapável de qualquer produção artística. Com esse raciocínio,
Freyre cria um bom argumento para classificar o Movimento Regionalista como um
movimento de “arte moderna” ao mesmo tempo em que se vê obrigado a definir o que
considera uma “boa arte moderna” e o faz em contraposição a uma “arte modernista”.
Na palestra proferida em 22 de junho de 1946, no Teatro Municipal de São Paulo
– palco da Semana de Arte Moderna de 1922 que marcou a cidade como capital
modernista –, Freyre anuncia São Paulo e Recife como sendo os dois polos modernos e
modernistas brasileiros.1 Em terras paulistas, Freyre propagandeia, logo nos primeiros
parágrafos de sua fala, a vocação moderna e modernista que Recife possui desde os
tempos do Brasil Holandês.
Nos dias de Nassau, o Recife foi um centro tão escandaloso não
só de modernidade como de modernismo que os burgueses da Holanda
não conseguiram acomodar-se a tanta inovação perigosa. Um dia
Nassau quase surrealista anunciou aos recifenses que ia fazer um boi
voar. (FREYRE, 2010b, p. 107)
1
Posteriormente publicada como o artigo “Modernidade e Modernismo nas Artes” in: Gilberto
Freyre, Vida, Forma e Cor. Recife: É Realizações Editora, 2010.
3
Um pouco mais à frente, Freyre aproxima paulistas e pernambucanos pelo espírito
“mais constantemente moderno e às vezes mais exageradamente modernista”. Diz ainda:
“nosso pendor é [...] para as aventuras de inovação, de experimentação, de renovação e
até de revolução, sem as quais não se compreende modernismo nem mesmo
modernidade”. (FREYRE, 2010b, pp. 108-109)
Por um lado, o sociólogo aproxima os pernambucanos dos paulistas no pendor ao
moderno e ao modernismo. Busca igualar a importância de ambas as capitais para o
desenvolvimento das artes2 brasileiras, tendo em vista que a Semana de Arte Moderna de
1922 teria criado a imagem de São Paulo como uma ilha de modernismo3. Um dos
intuitos de Freyre nesse artigo é o de equalizar os pesos de São Paulo e Recife. Portanto,
a referência à modernidade do período holandês aparece como um argumento importante
para comprovar um modernismo avant la lettre dos pernambucanos.
Por outro lado, nessa mesma palestra, ele também cria distinções claras entre o
que entende por moderno e modernismo. O modernismo é violento em suas formulações.
Busca romper com todas as tradições e criar formas novas de arte e de política. Tanto o
cubismo, nas artes plásticas, como o marxismo, na arte política, segundo Freyre, foram
importantes para evidenciar novas maneiras de solucionar problemas estéticos e políticos.
Para Freyre, no entanto, a continuação desenfreada das mudanças violentas
trazidas pelo modernismo não levaria ao avanço da arte moderna. Ser moderno não é ser
apenas um inovador, mas ser também capaz de contemporizar as diferentes inovações
modernistas com aquilo que há de mais “indestrutível na tradição clássica”.
Nas artes plásticas [...] – aquelas revolucionadas pelo cubismo
[...] – às violências renovadoras sucederam-se acordos, transigências,
acomodações, concessões, entendimento entre o violentamente novo e
o imperecível, o permanente, o eterno em todas as artes.
[...] a modernidade nas artes plásticas [...] se mantém ou se
desenvolve, através de transigências, contemporizações, acordos,
concessões, entendimentos entre vários ou sucessivos modernismos e o
que é indestrutível na tradição clássica. (FREYRE, 2010b, p. 120)
2
Freyre pensa a “arte” não apenas como belas-artes, mas como a capacidade de contemporizar
entre a tradição e a inovação. Para ele, existiria uma arte política, jurídica, arte na engenharia social etc.
3
Freyre atribui a Roger Bastide a ideia “de vir sendo o Sul do Brasil uma região de ‘vanguarda’
em arte e noutras atividades; e o Norte, uma região apenas “conservadora”. (FREYRE, 2010a, p. 172)
4
Ser modernista é ser revolucionário, propor uma mudança brusca das formas de
se fazer arte; mudanças sempre novas e intransigentes. Ser moderno, no entanto, é saber
contemporizar, ou seja, saber usar as provocações modernistas para moldar a tradição e
fazer algo permanentemente moderno. Por essa razão Freyre, em seu Movimento
Regionalista, pretende unir região, tradição e modernidade (Cf. FREYRE, 2010c, p.
172). Como diz o sociólogo: “em todas as artes os modernistas passam e os modernos
ficam”. (FREYRE, 2010b, p. 112)
Nesse ponto, as formulações de Pierre Bourdieu sobre movimentos regionalistas
podem ajudar a elucidar os mecanismos de positivação simbólica de áreas periféricas tais
como os agenciados por Freyre. Em seu artigo, o sociólogo francês desenvolve a tese de
que a reivindicação regionalista é uma resposta à estigmatização que produz a “região”
enquanto “província”. Ou seja, se o “centro” atribui valor de “província” a uma região
afastada simbólica e socialmente dele, o movimento regionalista responde a esta
estigmatização tentando positivá-la. O “centro” detém capital material e simbólico que a
“província” não possui e, portanto, é capaz de estigmatizá-la como região menor. É dessa
existência estigmatizada que surgem as reivindicações regionalistas na busca da inversão
dos sinais negativos do estigma imputado pelo “centro”. 4
Gilberto Freyre propõe, em seus artigos, algo muito semelhante com o que
Bourdieu indica ser uma estratégia recorrente das “regiões periféricas” estigmatizadas
como “província”. Freyre incentiva pintores pernambucanos a fazer figurar a “realidade
local” em seus quadros. A provincialidade deixaria de ser um obstáculo para tornar-se a
solução. Ao mesmo tempo, assumindo que São Paulo era um centro “modernista” – por
ter proposto mudanças violentas nas artes –, atribui aos pintores pernambucanos a
capacidade de fazer uma arte “moderna”. A pintura pernambucana deveria, e estaria apta
para fazer uma pintura contemporizadora das tradições regionais e das inovações
“modernistas”. Sendo assim, seria tão ou mais “moderna” que a pintura feita em São
Paulo.
4
Diz Bourdieu em seu ensaio: “é porque existe como unidade negativamente definida pela
dominação simbólica e econômica que alguns dos que nela participam podem ser levados a lutar [...] para
alterarem a sua definição, para inverterem o sentido e o valor das características estigmatizadas [...]”.
(BOURDIEU, 1989, pp. 126-127)
5
Lula Cardoso Ayres: entre figurações e esquematismos Lula Cardoso Ayres (1910 - 1987), ao lado de Cícero Dias e Manoel Bandeira,
homônimo do poeta, foi um dos pintores mais próximos de Freyre. Essa proximidade se
deu tanto pela origem social semelhante, ambos de famílias ligadas à produção do açúcar,
como pela amizade e cumplicidade estabelecida entre eles. Freyre escreveu diversos
artigos e apresentações sobre o pintor que, tendo iniciado seus estudos com o alemão
radicado no Recife, Heinrich Moser (1886- 1947), frequentou o atelier de Maurice Denis
(1870 - 1943), em Paris entre 1925 e 1926. De volta ao Brasil, Ayres tomou aula de
modelo vivo com Rodolfo Amoedo (1857 - 1941), na Escola Nacional de Belas Artes, e
estudou desenho e pintura no atelier de Carlos Chambelland (1884 - 1950.
As dificuldades financeiras obrigaram Lula Cardoso Ayres a interromper seus
estudos no Rio de Janeiro, em 1932, para auxiliar o pai na administração da usina de
açúcar da família em Cacaú, onde residiu até 1944. O que poderia ser visto como ameaça
à formação do pintor foi interpretado como sendo sua salvação. No catálogo da
exposição ocorrida no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1960, Freyre afirma:
Sua fase de residência no interior de Pernambuco foi para ele
decisiva no sentido de aproximá-lo de fontes telúricas, populares e
folclóricas de inspiração, até torná-lo um íntimo dessas fontes, por
outros conhecidas apenas turisticamente. (FREYRE, 1960)5
Gilberto Freyre vê na combinação entre a formação avançada em artes, tanto no
Rio de Janeiro como em Paris, e a experiência de ter vivido no interior de Pernambuco,
próximo às tradições populares, algo que diferenciava Lula dos outros artistas
modernistas que conheciam apenas os “ismos” europeus e as tradições populares por
viagens turísticas6. Dessa forma, Freyre reforçou a origem de Lula e associou a sua visão
das tradições como algo verdadeiramente vivido.
Essa capacidade de amalgamar fontes populares com formas modernas também
foi percebida por outros críticos entre eles Alberto da Costa e Silva, que diz:
5
O texto que compõe o catálogo da exposição de 1960 no MASP, em São Paulo, foi
posteriormente publicado com algumas modificações, sobretudo inclusões de novos parágrafos, no livro de
Gilberto Freyre, Vida, Forma e Cor. Recife: É Realizações Editora, 2010, sob o título “Lula Cardoso
Ayres: uma interpretação integrativa de homens e coisas brasileiras”.
6
Não estaria Freyre se referindo a Mário de Andrade, autor de O Turista Aprendiz e promotor de
viagens e missões folclóricas pelo interior do país? Freyre, em alguns momentos, mostra-se ríspido com
Mário de Andrade e entusiasta do movimento antropofágico de Oswald. (Cf. FREYRE, 2010b, p. 111)
6
O que é permanente, nesta obra que se modifica, moderniza e
aprofunda no decorrer de cinquenta anos, é a fidelidade de Lula à
aliança entre o conhecimento mágico e a captação da beleza de sua
província natal, de um Pernambuco que em seus quadros assume uma
verdade própria. (SILVA, 2009, p. 72)
As referências à arte popular nas telas de Ayres são de fato inegáveis. Basta ver a
série baseada em bonecos de barro, na qual Lula usa como modelo as esculturas
“populares” criadas por artesãos das cidades de Caruaru, Garanhuns e Canhotinho como
as telas Passeio a Cavalo (1944, Figura 1) e como Trabalhadores no Eito (1943, Figura
2).
No quadro Trabalhadores no Eito (1943), percebe-se, no primeiro plano à
esquerda, uma mulher de costas com uma criança, de perfil, em seus braços, olhando
para o rosto dela. Em um segundo plano, sete personagens com enxadas nas mãos
revolvendo a terra em uma fileira enviesada, do canto direito inferior ao esquerdo
superior. A posição sequenciada das figuras respeita os traços também diagonais da terra,
colaborando para acentuar a perspectiva da tela. No fundo, vê-se o deserto, duas árvores
aparentadas a coqueiros ou palmeiras e três colinas.
Todos os lavradores têm o mesmo formato de corpo: volumoso e arredondado.
Não possuem características próprias, não constituem individualidades. Assemelham-se a
bonecos pintados, não pessoas. Os homens estão de chapéus, as mulheres usam lenços ou
apenas têm os cabelos presos. Diferença mais sutil são as saias e as calças, quase
imperceptível em função do movimento das figuras. Só por essa diferença que se pode
distinguir homens de mulheres.
Seus corpos mantêm um profundo sincronismo de movimento, todos com o
mesmo ritmo nos golpes de enxada. As cores azul, verde, vermelho e roxo se alternam
nas roupas, intensificando ainda mais a ideia de conjunto e harmonia entre os
personagens. Até mesmo os ferros das enxadas são coloridos. Em um ambiente tão
inóspito − o sertão desértico −, figuram personagens limpos, coloridos, harmoniosos.
São desse mesmo período algumas telas mais “surrealistas”, que lembrariam um
ambiente onírico, povoadas por vultos fantasmagóricos como é o caso de Vestindo a
noiva (1945, Figura 3), Cabriolé mal-assombrado (1945) ou Sofá Mal-assombrado
(1945).
7
Mesmo essa investida chamada de “surrealista” traz uma ligação com o referente.
É possível, na grande maioria das vezes, reconhecer portões, sofás, janelas figuras
humanas, fantasmas etc. Gilberto Freyre ainda associa essas telas “surrealistas” a
elementos da região na qual Lula estava imerso. Diz o sociólogo, no mesmo catálogo,
citando depoimentos do próprio Lula:
Mais tarde, em 1943, faria Lula uma série de quadros do
bumba-meu-boi com pretensões surrealistas [...]. E ele próprio salienta,
nessa nota autobiográfica, que viria a pintar tudo isto, depois de passar
por “várias etapas desde o desenho realista à inteira libertação do
realismo visual, utilizando as formas reais como ponto de partida para a
estilização das formas aparentemente abstratas das minhas composições
mais recentes”. O mesmo aconteceria com as figuras do carnaval
recifense; com os maracatus, os caboclinhos, as damas dos blocos.
Enfim, a sua pintura aparentemente abstrata seria o resultado de uma
longa série de observações sistemáticas da realidade regional. Seus
próprios mal-assombrados teriam, como forma, base regional. (Freyre
1960 Grifos do Autor)
Um pouco mais a diante, Freyre recupera uma fala de Picasso para comprovar a
“modernidade” das telas de Ayres e, ao mesmo tempo, seu vínculo com a tradição e com
a região.
O que nos faz pensar em palavras de Picasso: “Não há arte
abstrata. Deve-se sempre partir de alguma coisa. Depois, pode-se
remover tudo que seja traço de realidade. Já então não há perigo algum
(para a realidade) porque a idéia do objeto terá deixado uma marca
indelével”. (FREYRE, 1960)
Nessas duas passagens, Freyre está preocupado em guiar o olhar dos visitantes da
exposição de 1960 para o fato de Lula ser capaz de fazer arte abstrata sem perder os
elementos brasileiros que a vivência em sua região lhe fornecera. Nos termos de Freyre,
Lula seria um artista moderno sem ser modernista: suas telas seriam capazes de conciliar
as inovações formais e a tradições regionais, uma vez que ele viveu em sua região, não
fora um mero turista, e as tradições realmente teriam sido introjetadas em sua
personalidade.
O crítico Clarival do Prado Valladares, em texto posterior aos de Freyre, recusa a
aproximação dessas telas ao surrealismo justamente por nelas ser fundamental o
enraizamento “à vertente telúrica de seu universo”. Diz o crítico:
Não há surrealismo em nenhuma de suas assombrações de
1944-1946, ou dos sobrados de 1964-1966, e nem mesmo na série de
8
transfigurações do Bumba-meu-boi de 1945. Não há porque todos esses
trabalhos se situem (sic) no plano narrativo, e não no plano onírico. Do
mesmo modo que não é bastante ser ilusão de ótica para se reconhecer,
sob critério crítico, uma proposta cinética (optical art), do mesmo modo
que não basta negar a figura para se naturalizar abstração, pode-se dizer
que para se validar uma concepção surrealista exige-se mais que
anamorfose. (VALLADARES, 1978, p. 105)
Essa apreciação expressa no texto de Valladares permite matizar a fala de Freyre
na qual aproxima Lula ao surrealismo. Freyre estava apresentando o pintor
pernambucano ao público paulista que, aos olhos de Freyre, era a capital modernista, ou
seja, adepta às mais recentes inovações estéticas importadas da Europa. Aproximar Lula
do surrealismo poderia ser uma chave para maior aceitação das obras pelo público. Ao
mesmo tempo, tanto Freyre quanto Valladares valorizam o fato de Lula estar ligado à
“vertente telúrica de seu universo”.
A pintura de Lula, Freyre ainda reforça, teria sido desconsiderada pelos críticos
do Sudeste, afirmando que se realiza “agora a exposição de um pintor pernambucano,
personalíssimo na sua arte criadora; e por isto mesmo desprezado pelos estetas
sectariamente abstracionistas tanto de São Paulo como do Rio”. (FREYRE, 1960)
Freyre tentava combinar, de acordo com a sua própria definição de arte moderna,
o vínculo regional que o artista possuía com as mais avançadas descobertas no campo das
artes plásticas. Apresenta ao público paulista, portanto, um artista moderníssimo, capaz
de dialogar com o “surrealismo” e com tradições da cerâmica figurativa; com a
vanguarda e com o primitivo.
De qualquer maneira, o conjunto das telas que Lula Cardoso Ayres levou para
São Paulo destoa daquelas mais figurativas executadas nos anos 1940. Nos vinte
quadros7, Lula explora esquematismos − por vezes mais, por vezes menos – relacionados
a formas e figuras pintadas anteriormente. É o caso, por exemplo, da forte semelhança
7
Até o atual momento da pesquisa iconográfica, localizei apenas, com uma única exceção, as
reproduções em preto e branco de vinte telas que constam no catálogo. Como o catálogo é fartamente
ilustrado, é possível supor que estas sejam a totalidade das telas que compuseram a exposição. Muitos dos
quadros, propriamente, ainda não foram localizados, o que impossibilitou uma análise mais cuidadosa e
que levasse em conta as cores empregadas.
9
entre as formas presentes em Coruja do Bumba-meu-boi (Figura 5) e o quadro de Título
desconhecido 1 (Figura 4) 8.
A Coruja do Bumba-meu-boi (Figura 5) trata-se de um homem fantasiado em um
enquadramento que lembra um retrato. O fundo neutro não o ancora em uma situação.
Sua vinculação com o bumba-meu-boi se dá, aos olhos de um leigo, apenas pelo título. O
quadro, como se fosse um desenho técnico de biólogo a descrever um animal, elenca as
características daquele personagem: túnica preta, máscara de coruja, bengala na mão. O
corpo está levemente espiralado. As costas e o seu o ombros direito estão postos em 45
graus; seus olhos miram o espectador; o quadril e as pernas estão praticamente de perfil.
A ponta do pé esquerdo, seguindo o movimento da cabeça, sugere uma futura rotação de
todo o corpo em um eixo paralelo ao da bengala apoiada.
O volume da máscara e do que parece ser uma corcunda, acentuada pela posição
do ombro, são elementos fundamentais para a relação com quadro de Título
desconhecido 1 (Figura 4), onde há formas mais esquemáticas. Com o mesmo
enquadramento e fundo também neutro, uma figura geométrica lembra um polígono
torcido sob um eixo vertical, uma coluna vertebral representada pela linha branca
longitudinal.
Na parte superior, o lado direito levemente mais baixo que o esquerdo remete à
mesma relação entre as posições da cabeça e da corcunda. A silhueta do homem, com o
abdômen aparentemente afinado pelo movimento de giro, repete-se nos polígonos.
Mesmo o pé esquerdo, com apenas a ponta do pé apoiada, indicando o movimento,
possui um rebatimento no desequilíbrio causado pela relação entre a base horizontal da
metade esquerda do polígono e a aparente suspensão do plano à direita. O braço e a
bengala surgem como as referências mais diretas entre as duas imagens.
Algumas telas da exposição do MASP trazem referências mais evidentes ao
universo pictórico de Lula. Em muitas delas é possível vislumbrar bois, pássaros,
telhados9. Em outras, essas referências podem ser sutis, como no caso do Título
8
O catálogo desta exposição não contém os títulos, datas, dimensões e material empregado em
cada uma das telas. Como elas ainda não foram propriamente localizadas, foram chamadas provisoriamente
por Título desconhecido sequenciadas por ordem da aparição neste artigo.
9
Dentre os pintores pernambucanos é recorrente ter como mote os telhados do Recife. Manoel
Bandeira, Wilton de Souza, Lula Cardoso Ayres são alguns artistas que retrataram esse tema.
10
desconhecido 1 e da Coruja do Bumba-meu-boi, como foi visto, e do Título
desconhecido 2 (Figura 7). Neste último, aparentemente, as formas beiram a abstração,
no entanto, tomando a produção de Lula como um todo, percebe-se que as formas
presentes remetem a outros quadros, como o caso de Jaraguá do Bumba-meu-boi, de
1941 (Figura 6). O crânio de cavalo ou boi, a incidência da luz sobre o peito do homem
fantasiado, a formação triangular da composição são alguns dos elementos que permitem
associar uma tela à outra. Há telas, porém, que exploram mais a fundo o rompimento
com um referente, como é o caso do quadro Titulo desconhecido 3 (Figura 8).
Ao mesmo tempo em que Freyre denunciava o descaso dos “estetas sectariamente
abstracionistas” de São Paulo e do Rio de Janeiro com a obra de Ayres, ele tece elogios a
P.M. Bardi.
Trata-se de iniciativa do Professor P.M. Bardi, sob a impressão
do extraordinário valor estético da obra do artista pernambucano: tanto
que está empenhado em promover outras exposições dos seus trabalhos.
Nos Estados Unidos, a exposição de Lula Cardoso Ayres deverá
realizar-se logo após a de São Paulo. (FREYRE, 1960)
Dando a entender que a iniciativa da exposição era fruto, exclusivamente, do
reconhecimento que Bardi conferiu aos trabalhos de Lula, o sociólogo alavanca a
imagem do pintor como um artista moderno que logo teria projeções internacionais. No
entanto, observando as cartas trocadas entre Bardi e Lula Cardoso Ayres fica mais claro o
quanto Ayres investiu nessa exposição e em sua relação com o casal ítalo-brasileiro.
No dia 13 de janeiro de 1960, morre a mãe de Lula Cardoso Ayres. É com esta
informação que inicia sua carta escrita no dia 15 ao diretor do MASP para, logo em
seguida, dizer que “com este triste fato já consumado retomo o ritmo da vida tão cheia de
sofrimentos e desilusões, e volto a tratar da minha exposição que é no momento o
estimulo que tenho para atenuar o grande sofrimento por que passei”. (AYRES, 1960a)
Mais adiante, na mesma carta, Lula discorre sobre suas expectativas para a
exposição:
Estou organizando o catálogo como combinamos e resolvi
deixar a lista com o número e os títulos dos quadros recentes, cerca de
70, para escolhermos os mais significativos para a exposição no Museu
de Arte e outros ficarão na reserva para possíveis vendas e outras
exposições em outros lugares.
11
Ainda não recebi noticias do Museu de Arte Moderna do Rio,
certamente D. Niomar10 não se interessou mas estou certo que depois da
exposição em São Paulo vai haver interesse.
Vou retomar agora a organização da parte documental com
fotografias e velhos estudos dos assuntos pintados hoje.
[...] Soube que você esteve na Bahia para a inauguração do
Museu11 e gostaria também de fazer uma exposição lá, talvez em julho
época das férias da Escola12.
Lula acreditava que a exposição no MASP abrir-lhe-ia muitas portas: já planejava
levar mais quadros do que aqueles a serem expostos na expectativa de venda ou de
exposições futuras, no Rio de Janeiro, na Bahia ou, seguindo as indicações de Freyre, nos
Estados Unidos13. Essas expectativas justificavam o forte investimento que o artista fazia
elaborando um catálogo fartamente ilustrado e com ótima impressão. Seus contatos e
experiência na indústria gráfica certamente colaboraram para a execução deste material.14
Além de montar o catálogo (selecionar as imagens, executar a diagramação etc.), Lula
financiou a sua impressão e a de 1.000 convites em papel cartão – Bardi apenas
transmitiu-lhe os dizeres que estes deveriam conter. Pelo que se subentende das cartas,
arcou também com o transporte dos quadros e suas despesas de viagem. Diz ele:
Estou numa virada louca de trabalho, pois como você pode
prever, estou gastando um dinheirão enorme nos preparos da exposição
e para agüentar o repuxo, estou fazendo ainda um painel, felizmente
muito bem pago, para a filial daqui da OLIVETTI. (AYRES, 1960b)
Nas curtas respostas de Bardi, em relação às do pintor, há sempre uma
ponderação, uma tentativa do curador em diminuir as expectativas do artista ansioso.
Como na carta de 22 de janeiro de 1960, na qual diz: “Aconselho a não trazer muitos
quadros, faça a sua escolha. Não se iluda quanto à vendagem, pois São Paulo é uma
cidade onde não se adquirem obras de arte”. (BARDI, 1960a); ou ainda, na de 14 de
março de 1960: “Sempre lhe disse de não esperar muito de São Paulo, mas tentaremos
fazer de todo o possível para um bom êxito da exposição”. (BARDI, 1960b).
10
Niomar Moniz Sodré (1916-2003) era a então diretora executiva do MAM/RJ.
Aberto ao público em janeiro de 1960, o Museu de Arte Moderna da Bahia MAM/BA foi criado
pelo casal Bardi com apoio do governo local. Para mais detalhes ver:(INSTITUTO ITAÚ CULTURAL,
2010).
12
Ayres refere-se à Escola de Belas Artes de Pernambuco onde lecionava.
13
Não foi encontrada nenhuma referência a exposições de Lula Cardoso Ayres nos Estados
Unidos neste período. Em 1961 faz uma exposição no MAM/BA e, em 1962, na galeria Bonino, no Rio de
Janeiro. Não foi encontrado, no entanto, referências a uma exposição de Lula no MAM/RJ, como ele
desejava.
14
Lula trabalhou por longo período como programador visual. Nas cartas faz menção à sua
relação com a tipografia e à como isso lhe ajudara a desenvolver o catálogo.
11
12
Uma das expectativas mais reveladoras para a guinada “abstracionista” ou
“esquemática” que Ayres imprimiu aos seus quadros foi a de tentar desvencilhar-se da
imagem de um pintor voltado a documentar o folclore. Talvez buscasse um
reconhecimento para além do adjetivo de “pernambucano”.
Gilberto tem grande admiração e respeito a você [P.M.Bardi] e
por ser meu amigo, como é, está orgulhoso de você ter se interessado
por minha pintura, pois como você sabe os entendidos da chamada
"pintura pura" vinham olhando para minhas tentativas como simples
registro documental do "folclore" e dos motivos da região. (AYRES,
1960b)
É possível pensar Ayres vivendo um dilema: ser reconhecido por Gilberto Freyre
e seus colegas pernambucanos15 como um pintor moderno, por estar ligado a tradições
locais ou, por estar ligado a tradições locais, um mero folclorista aos olhos dos
“entendidos da chamada ‘pintura pura’” do Sudeste. Na exposição do MASP,
comparando os quadros que compõe o catálogo com aqueles de produção anterior, notase uma forte preocupação em se distanciar, cada vez mais, da referência direta e
descritiva das figuras tradicionais sem, ao mesmo tempo, abandoná-las completamente.
Essa era uma posição perigosa, capaz de desagradar ambos os lados. Em artigo
publicado em 1961 – praticamente um ano após a exposição do MASP – José Cláudio,
lembrando-se do tempo de “arte engajada” que predominou dentre os integrantes do
Atelier Coletivo16, diz:
[as referências de] pintores brasileiros eram: Portinari, Di
Cavalcanti, algum Guinard, e por uma questão de carinho para com o
popular, Djanira, Heitor dos Prazeres e Cícero Dias da época do
primitivismo, lamentando que ele se tivesse deturpado e caído no
abstracionismo, abstracionismo igual a sarjeta. Lula era um finório,
procurando sempre um ponto estratégico que desse saída para muitos
lados, para poder virar casaca sem ser notado, água morda (isso eu
ainda hoje penso). (CLÁUDIO, 1961)
15
Wilton de Souza, pintor pernambucano contemporâneo e amigo de Lula Cardoso Ayres,
afirmou, em depoimento ao autor em junho de 2010, que sempre debatia com Lula a respeito de as
manifestações culturais locais deverem ser a base da arte pernambucana e que estilizações poderiam ser
feitas desde que não “descambassem para a caricatura”. Segundo Wilton de Souza, o limite entre
estilização e caricatura era um ponto chave do debate entre os artistas pernambucanos.
16
Liderado pelo escultor comunista Abelardo da Hora, o grupo Atelier Coletivo, que reuniu
diferentes artistas entre as décadas de 1950-1960, será tratado mais detidamente no próximo item. José
Cláudio, um dos integrantes deste grupo, empenhou-se em escreve artigos e livros sobre a experiência
pernambucana no campo artístico.
13
Curioso é que na mesma página de jornal onde foi publicado este artigo de José
Cláudio, anunciava-se o novo convite que Lina Bo Bardi teria feito a Lula Cardoso Ayres
para expor, em julho de 1961, no Museu da Bahia, de onde era a atual diretora. Na foto,
vê-se Lula ao lado de um trabalho seu de grandes dimensões representando, de maneira
estilizada, um caboclo de maracatu. Das expectativas explicitadas nas cartas à P.M.
Bardi, a exposição na Bahia concretizava-se um ano depois e era anunciada como um
convite e um reconhecimento de Lina Bo Bardi à obra moderna do conterrâneo. Nessa
página de jornal, as tensões entre os significados de ser moderno estavam materializadas
nas diferentes posições que Lula Cardoso Ayres cristalizava, pela forma como a “tradição
popular” era utilizada na fatura das obras, frente à crítica de José Claudio e frente ao
reconhecimento dos Bardi.
Abelardo da Hora e a “arte engajada” Abelardo da Hora (1924) tem uma trajetória um pouco diferente da de Lula
Cardoso Ayres. Apesar de ter nascido na usina Tiúma, em São Lourenço da Mata (PE), a
ligação de sua família com a produção do açúcar se dava na categoria de empregada e
não na de usineira. Estudando Artes decorativas, na Escola Industrial, empregou-se em
uma empresa de estuques de seu professor de escultura, Cassimiro Correia.
A partir de seus relacionamentos na Escola Industrial, conseguiu uma bolsa para
cursar a Escola de Belas Artes de Pernambuco. Alguns anos depois conheceu o
“coronel”17 Ricardo Brennand e, em janeiro de 1943, começou a trabalhar na fábrica de
cerâmica no Engenho São João da Várzea, onde desenvolveu parte de sua cerâmica
artística18.
Em 1945, Abelardo da Hora hospedou-se na casa de Abelardo Rodrigues,19 no
Rio de Janeiro, onde trabalhou numa fábrica de manequins de lojas enquanto preparava
uma escultura para ser apresentada no Salão Anual do Museu Nacional de 1946, que
tinha como prêmio uma bolsa de estudos artísticos na Europa. No entanto, o Salão
17
Assim Abelardo chamou o industrial Ricardo Monteiro Brennand, em entrevista (HORA;
MAGALHÃES, 2009).
18
O pai de Abelardo fora empregado no mesmo engenho e isso teria estreitado ainda mais os laços
entre Ricardo Brennand e Abelardo da Hora. Durante sua estadia no engenho, Abelardo iniciou o filho do
industrial, Francisco, na cerâmica artística.
19
Abelardo Rodrigues foi uma figura importante no mecenato pernambucano. Além de ter
trabalhado na divulgação das esculturas de Vitalino, incentivou a Sociedade de Arte Moderna do Recife e o
Atelier Coletivo.
14
naquele ano foi cancelado. Não sendo originário da aristocracia açucareira nem
conseguindo mobilizar incentivos governamentais, Abelardo não teve chance de ir à
Europa continuar sua formação assim como outros artistas brasileiros e mesmo
pernambucanos como Ayres, Cícero Dias, os irmãos Fédora, Joaquim e Vicente do Rego
Monteiro.
Durante a estadia de Abelardo no Rio de Janeiro, entrou em contato com Portinari
e outros artistas engajados politicamente20 os quais foram fundamentais para sua
politização e filiação ao Partido Comunista. Ao retornar ao Recife, decidiu fundar uma
entidade que defendesse a classe artística. É nesse contexto que ele ajuda a criar a
Sociedade de Arte Moderna do Recife.
Segundo Abelardo da Hora, a Sociedade de Arte Moderna preocupava-se também
com a formação de uma arte “eminentemente brasileira”. Para tanto, seria preciso formar
jovens artistas sensíveis à “realidade” do “povo” e às manifestações populares.
Uma gama enorme de nomes fez, formalmente, parte desse novo colegiado em
prol da arte moderna. No entanto, segundo José Cláudio (CLÁUDIO, 1979, p. 11), essa
sociedade existiu de maneira frágil e a principal atividade por ela desenvolvida foi o
Atelier Coletivo organizado em torno da figura de Abelardo. Tratou-se de um atelier no
qual alguns artistas dividiam as despesas de material, pintavam juntos e trocavam
experiências. Abelardo, por sua formação e experiência, era considerado professor dos
demais integrantes: guiava os trabalhos e promovia seções de desenho de pose rápida,
onde cada um deveria, em poucos minutos, extrair as linhas essenciais do modelo.
Também direcionava os temas que mereceriam ser trabalhados em sua busca por uma
arte em diálogo com a “realidade do povo”. Dessa forma, natureza morta, paisagem e
abstrações eram motivos interditados aos integrantes. A imagem deveria conter uma
mensagem explícita e direta. Em depoimento a Aracy Amaral, Abelardo diz:
Minha posição é em defesa de uma forma de expressão
brasileira. No Atelier Coletivo eu era contra até os que queriam fazer
'natureza morta'. Se alguém quiser fazer uma pesquisa, é válido que
faça. Mas deve haver uma preocupação em dar uma expressão
brasileira em nossa criação artística, para preservar a defesa do caráter
nacional da criação artística. (HORA apud Amaral 2003, 189)21
20
Apesar de Abelardo assumir tal feito em entrevista (HORA; MAGALHÃES, 2009), com as
fontes disponíveis até o momento não fica claro quais eram os artistas com os quais ele manteve contato.
21
Depoimento de Abelardo da Hora à Aracy Amaral em Recife, 24 de Janeiro de 1979
15
Em outro depoimento, comentando suas obras, Abelardo afirma:
meus trabalhos eram de uma linguagem nova e de um
expressionismo muito forte − falavam do sofrimento e dos dramas da
gente brasileira − apesar de ser universal, eram esculturas bem
brasileiras e quase regionais. Era um grande gesto de solidariedade
humana numa escultura em nada "bonitinha" ou "agradável". (HORA
apud CLÁUDIO, 1979, p. 33)
No Atelier Coletivo os temas regionais entram na cena não como resposta ao
apelo freyreano, mas como engajamento político. O tom dos quadros, esculturas e
gravuras do grupo carregam o ar de denúncia da má condição de vida do “povo”
nordestino. Principalmente Abelardo da Hora, cria esculturas com temas como a miséria,
a fome, os retirantes. Esculturas angulosas e ásperas. Suas gravuras seguem a mesma
linha. Dialogando com a produção de Portinari, retratam cenas trágicas do cotidiano de
um “povo” miserável.
Esse é o caso da escultura em bronze A Fome e o Brado (Figura 10). É possível
perceber um movimento que oscila entre o interior e o exterior da cena retratada. A fome,
causada por questões sociais, manifesta-se nos rostos esquálidos dos personagens.22 Pai,
mãe, bebê e filhos estão postos de maneira tão agrupada que parecem assumir uma
postura de defesa frente ao ambiente que os circunda e que se revela apenas por
referências indiretas e imagens que o observador, conhecedor da realidade de seca do
sertão nordestino, associa. A modelagem em sulcos angulosos, principalmente nos
supercílios, maçãs do rosto e costelas, colaboram para criar uma atmosfera agressiva, de
um ambiente que imprimiu demasiadas marcas naquelas pessoas.
A mão tensionada que brota por detrás das pessoas − desproporcionalmente maior
que todas elas − sugere uma força de reação, de revolta contra a situação em que se
encontram. Ao mesmo tempo, as feições de vítima e o acuamento das personagens não se
coadunam com o apelo á uma intervenção, a uma luta, sugerida pela mão tensionada.
Abelardo, ao que parece, está conclamando o espectador a uma reação, algo externo a
cena de desolação, a mão tencionada, deve agir para reverter a situação miserável que
aquelas pessoas se encontram.
22
Deve-se ter em mente que é do mesmo período as formulações de Josué de Castro a respeito das
causas sociais da fome nordestina. Josué, nos anos 1940-1950, era uma figura de destaque nos jornais
pernambucanos.
16
Outras esculturas reforçam, representando a população como vítima de uma
situação de miséria, esse tom de denúncia social. A escultura em concreto, Família
(Figura 9), é uma delas. Novamente uma família é retratada em sua miséria e esqualidez.
Na magreza, todos os rostos cadavéricos se parecem. Não há individualidade ente os
personagens, assim como não há esboço de reação.
O uso do concreto, no lugar do bronze, muitas vezes seguido de banhos de ácido,
torna a matéria plástica tão áspera e agressiva quanto a cena retratada. A textura do
concreto banhado em ácido não permite explorar detalhes delicados das expressões, o
que remete ainda mais a um ambiente de falta e de carência vivido pelo “povo sofrido”.
As “esculturas engajadas” de Abelardo da Hora possuem fortes ligações com sua
produção pictórica. A mesma fisionomia dos personagens, a mesma situação de
desespero ou desamparo de pessoas pobres, de “gente do povo”, são temas de gravuras
como Enterro de um Camponês (Figura 20), e Incêndio no Pátio Paraíso, ambas de
1953.
No entanto, não foram apenas “esculturas engajadas” que Abelardo produziu. Já
em 1949 produzia peças como Cópula (Figura 12) e O Beijo (Figura 13), com uma
linguagem esquematizada e temas menos ancorados em uma “realidade do povo”.
Buscou formas mais livres de um realismo e expressionismo tão marcante nas “esculturas
engajadas”. Muito diferente são também as esculturas feitas para as praças públicas do
Recife, também da década de 1950.
[...] fiz para a Prefeitura do Recife, a convite do prefeito José do
Rego Maciel, um plano para construção de umas esculturas para as praças
de Recife: o plano foi aprovado por uma comissão presidida por Gilberto
Freyre [...]. Eram esculturas de tipos populares inspiradas na cerâmica
popular e que estão no Parque 13 de Maio, "Os Cantadores" e o "Vendedor
de Caldo de Cana", "O Sertanejo" na Praça Euclides da Cunha – em frente
ao Clube Internacional e o "Vendedor de Pirulitos" em Dois Irmãos. Fiz
todas no Atelier Coletivo, com uma turma vendo e aprendendo.
(CLÁUDIO, 1979, p. 36)
Não deixa de ser curioso o fato de nessas esculturas Abelardo minimizar a
agressividade tão presente nas demais obras. Mesmo todas elas sendo em concreto e
cimento, a aspereza e agressividade do material não foram utilizadas expressivamente.
Não foi dado banho de ácido, os ângulos agudos foram suavizados e o cimento foi
polido.
17
Em esculturas públicas posteriores sobre o frevo, por exemplo, Abelardo usou
ângulos retos e movimentos acentuados que parecem retirar o ar de repouso e harmonia
presente em Os Cantadores (Figura 11). Esta é, ainda, muito próxima das pinturas de
Lula Cardoso Ayres quanto ao formato roliço dos corpos, o que levanta questões a
respeito das intervenções que Gilberto Freyre, presidente da comissão a qual os planos
das esculturas foram submetidos, poderia ter feito ao artista opinando e dirigindo os
trabalhos de Abelardo.
Os trabalhos de Abelardo da Hora mais conhecidos e comentados pela crítica são
as esculturas e gravuras “engajadas”, com elementos rapidamente identificáveis com uma
imagem de Nordeste acometido pela fome. As obras com formas menos agressivas e que
não retêm diretamente uma “realidade nordestina” são, ao que tudo indica, menos
lembradas pela crítica especializada.
Pretende-se ressaltar com a trajetória de Abelardo da Hora, assim como com a de
Lula Cardoso Ayres, o universo de representações possíveis para os artistas
pernambucanos. Nesses dois casos, a “realidade local” surge com muita força. Lula, por
um lado, quanto mais explorou as formas estilizadas, mais as referências à “realidade
local” se esvaneciam ou se codificavam para iniciados23. Tentou na exposição de 1960 no
MASP, conciliar abstracionismo com figurativismo. Já Abelardo, manteve duas linhas
paralelas de produção artística. Uma extremamente “engajada” e ancorada na “realidade
local”24, a outra com temas genéricos como Cópula (Figura 12), O Beijo (Figura 13) e
toda série de mulheres deitadas a partir dos anos 1970 (Figura 14). Nessas esculturas de
“temas genéricos”, predominam as formas arredondadas, o bronze, ou mesmo o cimento,
em suas versões polidas.
23
A codificação das imagens, em grande parte foi solucionada pelo uso dos títulos. Os títulos são
fundamentais para que um expectador leigo consiga associar as formas a uma tradição popular como
personagens de maracatu, bumba-meu-boi etc.
24
Importante destacar que a “realidade local” de Lula Cardoso Ayres é muito distinta da de
Abelardo da Hora. Enquanto para um significa a “cultura popular” em um ambiente harmonioso, para o
outro significa as condições precárias de vida da população pobre.
18
Wellington Virgolino: do engajamento ao decorativismo Wellington Virgolino (1929-1988) foi um dos integrantes do Atelier Coletivo,
sendo Abelardo seu principal professor de desenho e pintura. Suas orientações são
visíveis nas primeiras telas e gravuras de Virgolino.
É o caso da tela Gente de Mocambo, de 1950 (Figura 15). Apresentando
pinceladas não tão precisas de nanquim, figuras humanas dominam grande parte da
composição. Um homem, sentado no chão com as pernas cruzadas, mantém as costas
curvadas e a cabeça pendendo para baixo, como quem olha para o próprio tornozelo.
Seus braços apoiados nos joelhos reforçam a sensação de descanso ou de descontração.
Uma mulher, com as costas apoiadas nas costas do homem, está em uma posição
similar a dele, embora seu corpo penda para trás, aumentando a superfície de contato
entre eles. Em seus braços, acomodado no vão criado pela suas pernas cruzadas, está uma
criança já crescidinha, mas que ainda, com algum esforço, a mãe consegue manter em
seu colo. Fora essas três figuras humanas, há apenas uma cabaça, ou jarro de barro,
reconhecível dentre os traços rápidos que estabelecem o chão e o fundo.
A atmosfera de pobreza, criada pela postura do casal, pela criança nua e com cara
de adulto, pela ausência de objetos ou de qualquer outro elemento que localize melhor os
personagens, que os ancore em uma relação de tempo e espaço, é, com o título, Gente de
Mocambo, reforçada.
Wellington Virgolino optou por excluir qualquer ambientação pictórica. Apenas o
título indica a que o quadro se refere. A expressão das figuras, um tanto sonolentas ou
moribundas, acometidas por uma leseira, por um desânimo ou uma desesperança, só se
tornam factíveis quando associadas ao título.
Na tela Lavadeiras, de 1957 (Figura 16), não apenas a temática, mas a própria
fatura da pintura se aproximam da linguagem de Abelardo da Hora em Enterro de um
Camponês (Figura 20). É a imagem de duas mulheres sentadas em torno de uma poça
d'água lavando roupas. A primeira delas está de perfil, enquanto a segunda, um pouco
mais ao fundo, está apoiada em seus joelhos e de frente para o espectador. Ambas figuras
humanas ocupam praticamente toda a composição – assim como na gravura de Abelardo,
em que a cena domina a superfície do quadro. Resta espaço apenas para a água no canto
19
inferior direito e para um campo, lembrando plantações, visível por brechas de espaços
entre os corpos das mulheres, no fundo.
Poucas são as linhas curvas neste quadro. Ele é basicamente composto pela
concatenação de planos separados por tons e semitons de azuis, verdes, vermelhos e
marrons, todos de cor pastel. Até mesmo o pano torcido, na mão de uma das mulheres, é
representado por linhas retas e variações de vermelho.
As mulheres mulatas – de cabeça baixa, olhos e bocas fechados – não estão
dispostas de maneira a sugerir muita interação entre elas. Seus gestos indicam a absorção
de todas as suas atenções no trabalho de lavar roupas, como se estivessem submetidas a
ele e não o controlando com cantorias ou conversas. A mesma atmosfera de pobreza, de
submissão, das gravuras de Abelardo ou mesmo do desenho a nanquim Gente de
Mocambo, está aqui presente. Há, sem dúvida, um ar de engajamento nessas imagens. A
única diferença em Lavadeiras, se comparada a esses outros dois trabalhos, é, no entanto,
o uso das cores – marrom, azul e verde –, o que parece quebrar a atmosfera pesada criada
pelos traços fortes de Gente de Mocambo (Figura 15) e pela cor cobre de Enterro de um
Camponês (Figura 20).
Esse engajamento irá se arrefecer nas telas de Virgolino a partir dos anos 1960.
Em 1961, dois quadros do artista são aceitos para integrar a VI Bienal de São Paulo:
Duas Meninas e Menino e Pássaro. Importante notar que a organização da Bienal
associou Virgolino aos primitivistas, fato que, apesar de ter irritado o pintor, pode ter se
tornado um condicionante importante em sua produção futura. 25
Se antes do reconhecimento no Sudeste, Virgolino respondia às expectativas dos
integrantes do Atelier Coletivo por uma “arte engajada”, após a VI Bienal de São Paulo,
ele irá investir em temas com menos apelo político, em uma fatura cada vez mais
colorida e floreada. A conquista de outros espaços de exposição e, consequentemente, a
alteração de sua clientela, nos termos de Ginzburg (1989), colaboraram para alterações
significativas em suas telas. A economia das linhas retas e dos traços rápidos, do período
25
Segundo Wilton de Souza, os quadros de Virgolino foram colocados em uma sala junto com
“grandes expressões de artistas primitivos, como Manezinho Araújo, Heitor dos Prazeres, entre outros. A
princípio, Wellington não concordava com o fato de figurar nessa categoria. E, de repente, exclamou: 'É,
esses merdas são burros, colocando-me entre os primitivistas!'. E passou todo o tempo discordando dos
'ilustres' organizadores da Bienal.” (SOUZA, 2009, p. 58) Pelo catálogo da VI Bienal, Manezinho de
Araújo não foi encontrado como expositor. Assim como não foi possível também reconstituir quais eram
os quadros que dividiam o mesmo espaço de exposição. (BIENAL DE SÃO PAULO ET AL., 1961)
20
do Atelier, dará espaço às formas arredondadas, extremamente coloridas e com
abundância de flores.
Assim como Abelardo da Hora, Wellington Virgolino também é originário de
uma classe média recifense. De 1949 até 1959, trabalhou na Mala Real Inglesa26, fazendo
pintura apenas nos tempos livres, muitas vezes durante a noite. Para investir na carreira
de pintor profissional, pediu demissão. Essa carreira começava a se mostrar promissora
em função dos diferentes prêmios e vendas que o pintor conseguiu emplacar na década
de 1950 (SOUZA, 2009, pp. 51-53). Em 1958, por exemplo, a Grande Loja Maçônica de
Pernambuco concedeu-lhe a Medalha de Honra ao Mérito Maçônico pela execução do
mural A Maçonaria Trabalha, realizado na recepção do Hospital São João da Escócia,
em Recife.
Sua primeira exposição individual foi patrocinada pelo Departamento de
Documentação e Cultura da Prefeitura do Recife que, na época, era dirigido pelo
dramaturgo Hermilo Borba Filho.27 Mas foi com a exposição dos quadros na VI Bienal
que sua vida profissional foi alavancada. A galeria paulista Astréia adquiriu as duas telas
expostas e encomendou outras para o artista. O irmão pintor e biógrafo de Virgolino
afirma:
[…] em comum acordo, com os proprietários da Galeria Astréia,
marcou uma individual. Virgolino passou a trabalhar, executando
suas telas com temas sobre crianças brincando com flores – iniciadas
nos quadros Rosalinda e Rosalina. Crianças e flores bem coloridas
seriam a marca da sua individual na Galeria Astréia. (SOUZA, 2009,
p. 58)
A tela Rosalina (Figura 17), 1963, traz uma menina ou mulher, que ocupa
praticamente toda a composição, sentada em meio a uma trepadeira. O vestido, o corpo
da menina e as plantas e flores ao fundo, são todos em tons de vermelho, verde e pontos
brancos nas flores. A padronagem floral do vestido, em fundo verde e flores vermelhas,
dialoga com o fundo vermelho e flores e folhas verdes do segundo plano. As flores da
26
Royal Mail Steam Packet Company, conhecida como Mala Real Inglesa, era uma companhia de
transporte marítimo com sede em diversos pontos da América e Caribe. No Brasil, operava em Recife,
Salvador e Rio de Janeiro.
27
Hermilo Borba Filho, importante dramaturgo, diretor e crítico de teatro na cena recifense, entre
outras atividades ligadas ao meio artístico, dirigiu o Departamento de Documentação e Cultura em 1959.
Este mesmo departamento, organizou também, mostras individuais de Corbianiano Lins, Genilson Soares,
Wilton de Souza, Montez Magno e Abelardo da Hora.
21
trepadeira, provavelmente um jasmim branco, passam do fundo para a figura
transformando-se em colares, coroa, pulseiras.
O efeito decorativo, por meio da padronagem de cores e motivos, foi a principal
mudança em relação às telas anteriormente analisadas. Os planos multifacetados, as cores
em tom pastel, os dramas sociais, deram lugar a personagens arredondados, versando
sobre temas amenos, explorando cada vez mais cores vivas, como é o caso de Menino
com Chapéu Florido (Figura 18), e a série Os Sete Pecados Capitais (Figura 19).
O pintor teve uma grande sensibilidade para os negócios em arte. Logo percebeu
que o decorativo movimentava as vendas de seus quadros e, explicando o seu processo de
criação, Virgolino afirma:
Acho muito importante a elaboração desse esquema [espécie de
rascunho de toda a série a ser pintada] porque, quando passo para as
telas, começo a recriar, às vezes corrigindo ou alterando o que
chamamos de composição. Depois é só jogar umas flores, como se
fosse uma espécie de tempero, para dar um gosto. Você sabe que às
vezes um prato feito com a comida ruim, mas enfeitado, parece tão
bom que a gente come sem sentir. Isto é o que realizo. Enfeito o
quadro. Há quadros que aumentam de preço de acordo com o
número de flores. (SOUZA, 2009, p. 78)
Essa sensibilidade o fez circular por galerias e marchands no Recife, no Rio de
Janeiro e em São Paulo. Em 1965, criou, no Recife, a galeria Onix, ao lado do empresário
Jaime Torban, onde desenvolveu sua terceira exposição individual; em 1967, na galeria
Astréia em São Paulo, realizou sua quarta individual; por meio de seu amigo residente no
Rio de Janeiro, João Condé, faz-se representar no mercado carioca. Porém, em 1969,
com a criação da Galeria de Carlos Ranulpho, no Recife, Virgolino passa a ser
representado exclusivamente por este marchand. Segundo Wilton de Souza, isso teria
permitido a Virgolino dedicar-se ainda mais à pintura, deixando todo o trabalho de
venda, contabilidade e compra de material com o galerista que também começou a
organizar exposições, catálogos e a divulgação da produção do artista. O fato de
Ranulpho operar a partir de Recife, também teria facilitado a comunicação entre artista e
galerista. Enfim, Wellington Virgolino tornou-se, praticamente, um funcionário da
galeria Ranulpho com obrigações de produção e venda.
22
Considerações finais Na nona exposição individual de Virgolino, realizada na Mini Gallery no Rio de
Janeiro, Gilberto Freyre faz a apresentação e associa esta fase decorativista do pintor à
“morenidade brasileira”. Diz Gilberto Freyre:
Somos uma população crescentemente morena, pela ação da
crescente mistura de brancos, pretos, pardos, amarelos e pela também
crescente ação do sol tropical sobre gentes que já não temem nem o ar
livre nem o ardor dos verões quentes. De onde são caracteristicamente
morenas as mais belas mulheres, as mais lindas crianças, os homens
mais eugênicos, que formam cada vez mais o conjunto nacional
brasileiro.
Esse conjunto encontrou, em Wellington Virgolino, o pintor
por excelência dessa sua morenidade. Enquanto Portinari evitava quase
sempre tal morenidade, para exaltar tipos, para ele, angelicamente
louros e escandinavamente alvos, Wellington Virgolino identifica o que
lhe parece mais belo e mais plasticamente nacional nos tipos
brasileiros, com essa, por ele sempre evidenciada, em vez de escondida,
morenidade. (FREYRE apud SOUZA 2009, 91-92)
Nas pinturas de Wellington Virgolino desse período não há, referências a uma
“realidade local” tal como Freyre elogiava em Lula Cardoso Ayres, ou tentou imprimir
nas esculturas públicas de Abelardo da Hora. A partir do sucesso na VI Bienal de São
Paulo e das exposições subsequentes, Virgolino abandonou a temática social, na qual
retratava trabalhadores da cana, lavadeiras, calceteiros, gente de mocambo, que possuíam
algum vínculo com Pernambuco, para versar sobre motes bíblicos (a série Os Sete
Pecados Capitais, retrato de santos), a série Os Signos do Zodíaco, personagens
genéricos como “o marinheiro”, “o soldado”, “o aviador”, entre outras. Não resta outro
elemento a não ser a tonalidade da pele dos personagens para que Freyre possa lastrear as
telas de Virgolino, que estavam fazendo sucesso no sudeste, em algo que julgue próximo
a uma “realidade local”.
O uso de Portinari no contraponto feito por Freyre também é revelador. Usando o
argumento de que Virgolino teria representado de maneira mais autêntica28 a
28
Em palestra proferida aos alunos da Escola de Belas Artes de Pernambuco, Freyre afirma:
“Apresento tal fato para sugerir as possibilidades de uma sociologia das belas-artes, através da qual se
pretenda não impor limites nacionais ou temporais a um artista, mas considerar a maior ou menor
autenticidade das criações de um pintor ou de um escultor ou de um arquiteto, em relação com o seu meio,
por um lado, e, por outro, com o seu tempo, conforme os fins a que se destinem suas criações. Um pintor
brasileiro que sistematicamente só pinte figuras de madonas e de anjos sob a forma e as cores de mulheres
e adolescentes nórdicos e ruivos e envolvidos em pelúcias e veludos europeus é semelhante a um arquiteto
23
“morenidade brasileira”, Freyre desvincula-o do engajamento de Portinari e ainda afirma
que Virgolino foi superior ao pintor de Brodósqui no sentido de ter conseguido introjetar
a “realidade local” na fatura das obras, sendo assim um pintor “moderno” e não
“modernista”.
Se Abelardo oscilou entre uma produção “engajada” e outra com temas amenos
de formas arredondadas, Virgolino passou de uma à outra. Seu sucesso como pintor
associado ao primitivismo na VI Bienal o incomodou de início, mas o “mal entendido”
logo foi invertido e tomado como virtude. Percebendo esse olhar e essa posição
atribuídos à sua obra, Virgolino soube, no entanto, explorar esse nicho de mercado. Ao
invés de revoltar-se contra a classificação, passou a produzir telas cada vez com mais
apelo decorativo, abandonando o tom engajado que, em muitos aspectos, lembrava as
telas de Portinari. Freyre, por sua vez, também colaborou para positivar o status de
“primitivista” ao definir Wellington como um “pintor da morenidade brasileira”.
Já Abelardo da Hora recusou tornar suas obras com temáticas sociais mais
decorativas ou alegres. Os retirantes nunca deixaram de serem retratados em formas
esquálidas. Concomitantemente, passa a investir em esculturas de figuras femininas nas
quais nem o apelo regional nem o engajamento que as suas outras esculturas e gravuras
possuíam estão presentes. Ou seja, se por um lado ele tentou amaneirar sua produção,
retirando o aspecto político, não optou por reforçar elementos que o ancorassem na
“região”. Retrata, assim, mulheres genéricas. A falta de vinculação dessas obras com
elementos “regionais” pode ajudar a compreender o pouco “sucesso” que o artista obteve
em meios paulistas e cariocas se comparado com Ayres e Virgolino.
Enquanto Rio e São Paulo experimentariam as expressões artísticas modernas −
ou melhor, “modernistas”, nos termos de Freyre −, Recife ficaria com a parcela vista
como “arcaica” e figurativa. Ao mesmo tempo, os pintores e críticos locais souberam
positivar essas características e transformá-las em algo “autêntico”. A pintura de caráter
“regional” e figurativo parece uma intrincada resposta negociada entre centro e periferia
na atribuição de diferentes universos, técnicos e temáticos, possíveis de serem pintados.
Tanto nas telas de Ayres como nas de Virgolino, ambos muito elogiados por Freyre, uma
brasileiro que traçasse planos de residências, para o Brasil tropical, em forma de chalés suíços ou de
cottages inglesas”. (Freyre, 2010d, p. 242, grifos nossos)
24
espécie de comunhão entre artista e realidade de um Brasil “original”, são evocadas para
legitimar suas telas e anunciar o espírito de um povo. Criaram um discurso legitimador
de suas obras como sendo baseadas na “cultura popular do nordeste” ou na “morenidade
brasileira”, algo que apenas eles teriam “legitimidade” para retratar. Abelardo, por sua
vez, utilizou-se do expressionismo para denunciar uma “realidade local” e, ao mesmo
tempo, tentou produzir, ao que parece sem muito sucesso no Sudeste, imagens mais
amenas e desvinculadas da “região”.
Dessa forma, esses artistas transformaram o adjetivo “pernambucana”, que antes
os limitava a um gênero supostamente “menor” de pintura, em um sinal positivo.
Construíram, assim, um conjunto de imagens que representariam o Nordeste, ou, ao
menos, um Nordeste que seria aceito pelo centro, no caso o Sudeste, como algo plausível
em sua posição de “província”.
25
Caderno de Imagens Figura 1)
LULA CARDOSO AYRES.
PASSEIO A CAVALO. GUACHE, 59 X 72
CM. 1944.
Figura 4)
LULA CARDOSO AYRES.
TÍTULO DESCONHECIDO 1. REPRODUÇÃO
CATÁLOGO MASP, 1960.
Figura 2)
LULA CARDOSO AYRES.
TRABALHADORES NO EITO. ÓLEO SOBRE
EUCATEX, 1943. ACERVO DA FUNDAÇÃO
JOAQUIM NABUCO.
Figura 5)
LULA CARDOSO AYRES.
CORUJA DO BUMBA MEU BOI. GUACHE,
42 X 28 CM, 1941. ACERVO DO ARTISTA.
REPRODUÇÃO VALADARES.
Figura 3)
LULA CARDOSO AYRES.
VESTINDO A NOIVA. ÓLEO SOBRE TELA,
92 X 73 CM. 1945. COLEÇÃO JOÃO
CARDOSO AYRES NETO.
26
Figura 6)
JARAGUÁ DO BUMBA-MEU-BOI,
GUACHE 50 X 31, 1941 ACERVO DO
ARTISTA, REPRODUÇÃO VALLADARES
Figura 8)
LULA CARDOSO AYRES,
TÍTULO DESCONHECIDO 3. REPRODUÇÃO
CATÁLOGO EXPOSIÇÃO MASP, 1960.
Figura 7)
LULA CARDOSO AYRES,
TÍTULO DESCONHECIDO 2. REPRODUÇÃO
CATÁLOGO EXPOSIÇÃO MASP, 1960.
Figura 9)
HORA, ABELARDO DA.
FAMÍLIA. CONCRETO, 55 X 57 X 31 CM
1949. COLEÇÃO MAC/USP.
27
Figura 12) HORA, ABELARDO DA.
CÓPULA. BRONZE, 1949.
Figura 10) HORA, ABELARDO DA. A FOME
E O BRADO. 1947
Figura 13) HORA, ABELARDO DA. O
BEIJO. BRONZE, 1949.
Figura 14) HORA, ABELARDO DA.
MULHER DE BRUÇOS, BRONZE, 1973
Figura 11) HORA, ABELARDO DA.
CANTADORES
Figura 15) WELLINGTON VIRGOLINO.
GENTE DE MOCAMBO. PINCEL/NANQUIM,
16 X 23 CM, 1950. COLEÇÃO WILTON DE
SOUZA.
28
Figura 16) WELLINGTON VIRGOLINO.
LAVADEIRAS. ÓLEO SOBRE TELA, 90 X 70
CM. , 1957. COLEÇÃO WALTERNICE DE
SOUZA MAFRA.
Figura 19) WELLINGTON VIRGOLINO.
AVAREZA (SÉRIE SETE PECADOS
CAPITAIS), 1977. ÓLEO SOBRE TELA.
COLEÇÃO MUSEU DO ESTADO DE
PERNAMBUCO.
Figura 20) HORA, ABELARDO DA.
ENTERRO DE UM CAMPONÊS, 1953,
GRAVURA EM GESSO.
Figura 17) WELLINGTON VIRGOLINO.
ROSALINA. ÓLEO SOBRE TELA, 122 X 79
CM. , 1963. COLEÇÃO MARINETE
VIRGOLINO.
Figura 18) WELLINGTON VIRGOLINO.
MENINO COM CHAPÉU FLORIDO. ÓLEO
SOBRE TELA, 61 X 50 CM. , 1964.
COLEÇÃO CARLOS RANULPHO.
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