Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante dos relatos de viagem.
AVENTURA E ROTINA: GILBERTO FREYRE E A LÍNGUA
PORTUGUESA EM CABO-VERDE
1
GRECCO, Fabiana Miraz de Freitas
RESUMO
Publicado na década de 50 do século XX, o livro de viagem intitulado Aventura e
Rotina: Sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e
ação, do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900 – 1987), contém relatos que
procuraram identificar nas colônias do ultramar português aspectos comuns que as
poderiam representar como “Portugais espalhados pelo mundo” (FREYRE, 1953).
Partindo de sua teoria sobre o “luso-tropicalismo”, Freyre realizava suas pesquisas em
terras portuguesas com a finalidade de enquadrá-las em seus estudos sobre o português
nos trópicos, destacando suas constantes e diversidades. Desses relatos de viagem,
talvez o mais esperado tenha sido o que descreveu Cabo-Verde, pois os intelectuais do
arquipélago, na época motivados e influenciados pelo regionalismo brasileiro, ansiavam
receber do sociólogo, tido por eles como “o messias”, uma avaliação das ilhas que as
configurasse como semelhante ao Brasil: situadas no posto mais alto do processo de
caldeamento das culturas africana e portuguesa. Duas das mais importantes observações
de Freyre sobre Cabo-Verde apontavam a língua portuguesa e a arte popular como
decisivos no processo de mestiçagem. Propomos, portanto, neste artigo, debater e
analisar as afirmações de Freyre feitas a respeito da língua portuguesa falada no
arquipélago, a importância de sua posição diante da relação entre o dialeto e a língua
oficial e a conseqüência dessa relação observada na literatura cabo-verdiana.
PALAVRAS- CHAVE
Viagem; Língua Portuguesa; Cabo-Verde.
Aventura e Rotina: Gilberto Freyre e a Língua Portuguesa em Cabo-Verde
1
Orientanda do Professor Doutor Rubens Pereira dos Santos. Bolsista CAPES. Programa de Pósgraduação em Literatura e Vida Social da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho –
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Departamento de Literatura. Rua Platina, 1315 – CEP 19807190. Assis – São Paulo/ Brasil. [email protected].
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Semelhante a um diário, Aventura e Rotina – Sugestões de uma viagem à
procura das constantes portuguesas de caráter e ação descreve os povos colonizados
pelos portugueses durante o período de quase um ano: 1951. A primeira edição sairia
somente em 1953, seguida de outras publicações, resultantes da mesma experiência,
como Um brasileiro em terras portuguesas e Em torno de insurgências e ressurgências.
Seu autor, um dos mais importantes sociólogos brasileiros do século XX, foi o
responsável por desenvolver um novo conceito, denominado lusotropicalismo, tendo
sido apoiado pelo mestre da Sorborne Roger Bastide, como também, sugerido uma nova
expressão para Tropicologia: Lusotropicologia ou Hispanotropicologia.
A proposta do Governo Português, elaborada pelo Ministro do Ultramar
Sarmento Rodrigues, seria a de que Freyre permanecesse algum tempo em Portugal e
que de Portugal partisse ao Ultramar Português
... numa viagem que ele deseja que dure um ano. Seu empenho é que
eu percorra o Ultramar Português com os olhos de homem de estudo.
Com olhos livremente críticos. Que veja da África, do Oriente, das
ilhas, os defeitos e não apenas as virtudes. (FREYRE, 2001, p. 35).
A resposta ao convite teria sido positiva, à medida que pudesse o sociólogo
brasileiro restringir-se a somente explorar os limites de Portugal, pois acabado de
regressar de uma cansativa viagem aos Andes, reclamava da idade: “para um homem de
cinqüenta anos (...) o Ultramar seria para mim evitado” (2001, p. 35). Todavia, a
decisão parcial ao aceite, tornou logo a abranger todo ultramar português, devido ao
poder de persuasão do Ministro, que lhe pareceu como
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... uma sereia das que no Brasil chamam barbadas. Fala-me de tal
modo que me deixo persuadir. Resolvo ir de Portugal ao Ultramar
Português, vencido pelo homem-sereia em todas as minhas
resistências e argumentos. (2001, p. 36).
Deixando para trás a intolerância a certos excessos que a idade impõe, as pestes
ou “riscos de doenças exóticas”, Freyre declara estar decidido a ver “como olhos ainda
sem óculos” o mundo que o português estava criando com “seu sangue, seu suor e suas
lágrimas” (2001, p. 36). Parte então, para a aventura que pretendia identificar as
“constantes portuguesas de caráter e ação”, sedução inegável a quem nunca esteve nos
territórios portugueses da África e da Ásia, verificar aquilo que ele próprio chamava de
adaptação dos portugueses aos trópicos ou o lusotropicalismo.
A viagem de Freyre a esses territórios desencadeou algumas ansiedades e
expectativas em determinados grupos de intelectuais que pertenciam a esses locais, pois
seu renome fazia de sua opinião ou considerações, dados imprescindíveis que somariam
ao estudo que esses grupos estavam iniciando a respeito da nova sociedade e cultura
resultante da colonização e da mestiçagem. Nesse caso, o arquipélago de Cabo-Verde
desencadeou um grande debate entre as opiniões de Freyre e as dos próprios intelectuais
caboverdianos a respeito das aproximações entre as ilhas, Portugal e Brasil.
Gilberto Freyre chega às ilhas de Cabo-Verde em outubro de 1951, após dois
meses de viagem por Portugal e pelo ultramar, tendo conhecido o Senegal e a Guiné
Portuguesa, e de início as compara ao estado brasileiro do Ceará, pela aridez da terra e o
sol constante:
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O Cabo-Verde é uma espécie de Ceará desgarrado no meio do
Atlântico. Um Ceará-arquipélago onde raramente chove ou deixa de
fazer sol. A mesma aridez do Ceará continental. E em luta contra a
terra árida e contra o sol cru um povo, em sua maioria, mestiço de
português com africano da Guiné, que se parece com o cearense na
coragem com que, magro e ágil, enfrenta “verdes mares bravios”; e
também na tendência de espalhar-se pelo mundo, embora sempre
voltando ou procurando voltar à terra ingrata. Ingrata mas amada.
(2001, p. 263).
Cabo-Verde seria, para o sociólogo, semelhante ao nordeste brasileiro quanto ao
seu aspecto climático e a adaptação do povo àquele, porém, as ilhas são para o estudioso
um “esboço” do que ocorreu no Brasil “em escala monumental” (2001, p. 264): cristãos
juntando-se a judeus, brancos juntando-se a negros. Embora houvesse um ensaio de
miscigenação que, excluindo o elemento indígena, aconteceu entre os mesmos sujeitos
no Brasil, Freyre constata a presença africana em maior grau no arquipélago, que é
responsável pela predominância da cor negra:
O primeiro caldeirão de ensaio dessa aventura étnica foi esta ilha de
São Tiago, hoje tão negróide: sinal de que, ao contrário do que vem
sucedendo, cada vez mais, no Brasil, o grosso da população vem-se
mantendo o elemento de origem africana.
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Desse modo, declara ser o arquipélago “afro-lusitano”, no qual as populações
são predominantemente “africanas na cor, no aspecto, nos costumes, com salpicos,
apenas, de influência européia, sobre a predominância étnica e social” (2001, p. 266).
Sobre essa predominância negra-africana é que Freyre discorre sobre a forte presença de
um dialeto que, segundo ele
... nenhum português ou brasileiro é capaz de compreender senão
depois de iniciado nos seus segredos. É a primeira impressão de
exótico que dá a Cabo-Verde a qualquer brasileiro. Nós estamos
habituados a um imenso Brasil no qual bem ou mal se fala só o
português, numas áreas influenciado pelo italiano ou pelo alemão,
noutras, pelo africano ou pelo ameríndio. Mas sempre o português.
(2001, p. 266).
Na arte popular regional das ilhas e no dialeto crioulo, Freyre encontra sua maior
decepção: Cabo-Verde não desenvolveu um artesanato do qual possa, como a arte do
bordado, da renda e do vime na ilha da Madeira, fazer uma fonte de renda. Já o dialeto,
para ele “repugnante”, marca a predominância do elemento africano, que “deforma” a
língua portuguesa em algo que “nenhum português ou brasileiro é capaz de
compreender” (2001, p. 266).
Entretanto, é sobre esses aspectos que Manuel Lopes, poeta, escritor e um dos
fundadores da Revista Claridade, considerada a mais importante revista literária das
ilhas, irá questionar nas considerações de Freyre a respeito do arquipélago. Lopes,
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assim, ressalta que é justamente na língua crioula que Cabo-Verde encontra a expressão
de sua alma e subsídios decisivos na criação de uma linguagem literária própria.
Fundada por um grupo de intelectuais (funcionários médios e profissionais
liberais), fortemente influenciados pelo modernismo, a revista Claridade teve dois
números publicados em 1936, o terceiro em 1937 e somente dez anos mais tarde retorna
(1947), com mais dois números. A proposta de seus organizadores era a de divulgar
uma literatura preocupada com os aspectos sociais, além de “analisar sociológica e
antropologicamente a personalidade cultural” das ilhas (ANJOS, 2004, p. 74). A revista
instaurou os princípios de identidade cabo-verdiana até hoje dominantes, por isso é tida
como a publicação mais importante da história literária do arquipélago. Claridade não
teve concorrentes no plano literário, sendo a única que perdurou entre as décadas de 30
a 60 do século XX.
Em artigo dividido em duas partes sob o título Uma experiência românica nos
trópicos, publicado na Revista Claridade em janeiro do ano de 1947 (parte I) e em
setembro do mesmo ano (parte II), Manuel Lopes questiona as afirmações de Freyre
sobre o dialeto crioulo, a fim de demonstrar o quanto de língua portuguesa, e, portanto,
também de “românica”, há no novo idioma formado no arquipélago.
Logo ao iniciar a primeira parte do artigo, Manuel Lopes afirma que
... basta que se diga que das próprias vicissitudes das relações entre
os lusitanos e as populações ultramarinas resultou o aparecimento de
dialectos, portugueses nas estruturas essenciais. (1986, p. 15).
Sendo assim, começa a explicar a estrutura do dialeto crioulo a partir da língua
portuguesa, dela originária, e que teria sido “simplificada”, portanto afastada da língua
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mãe, por questões de necessidades urgentes: “de expressão e de relação do núcleo
populacional” (1986, p. 16). Decorrente disso, surgem os “alotropismos (formas que a
aproximação consciente do português, coexistindo com outras que representam uma
situação fonética tradicional)”, os “neologismos”, as “metáforas ousadas e engenhosas”,
as “imagens pitorescas”, “extraordinária mobilidade semântica”, “flexões portuguesas”,
“tipos sintáticos novos vindos do português” (1986, p. 17).
Manuel Lopes propõe, também, e assim se justifica o título de seu artigo, uma
aproximação do surgimento da língua crioula com o surgimento da língua portuguesa.
Isto é, da mesma forma que o português recebeu diversas influências, mas mantendo a
estrutura da língua latina, o crioulo da mesma forma se estrutura através da língua
portuguesa. Dessa forma, afirma Lopes que
Apesar de serem falares muitas vezes sujeitos a todas as bolandas da
sorte, não será difícil ao dialectólogo romanista rastrear o caminho
direto (com falsas aparências de torno) que conduzem da forma ou
expressão ultramarina neo-românica até o venerável tetravô latino.
(1986, p. 5).
Ainda, o intelectual caboverdiano acrescenta comparações mais profundas e
minuciosas entre o dialeto crioulo e o latim, quanto à supressão do artigo definido, por
exemplo:
O latim também não tinha artigo definido, mas quando se impunha a
necessidade recorria-se, como em crioulo, ao demonstrativo, fonte,
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aliás, do artigo românico, pela aglutinação proclítica em toda a
Romania. (1986, p. 5)
Assim, Lopes demonstra que o conceito comumente aplicado aos povos e às
culturas que se formavam nas colônias ultramarinas, conhecido como “povo inferior”, é
simplista e não resolve a questão de ser o latim o “tronco valentemente românico”
desses dialetos. Todavia, no que cabe à influência africana na formação do crioulo,
Lopes afirma que o léxico é o aspecto que ganha maior importância, na “exigüidade da
contribuição possivelmente de origem africana” (1986, p. 6).
A respeito do português falado no Brasil, quanto ao aspecto da presença de
léxico marcadamente africano, Lopes ironiza a partir das palavras de Gilberto Freyre
quando o sociólogo diz que mesmo os louros brasileiros têm, pelo menos, uma pinta do
negro, para, assim ressaltar a pobreza de contribuição africana no léxico do português
brasileiro:
... pobreza quando se atenda à extraordinária importância do
elemento afro-negro na vida social e econômica e na formação da
sociedade brasileira, a ponto de o documentadíssimo e arguto
Gilberto Freyre sustentar que todo o brasileiro, mesmo o alvo, de
cabelos louros, traz na alma, se não também no sangue, a marca ou a
pinta do negro”.
Com efeito, as explicações de Lopes sobre a formação da língua crioula
pretendem desmitificar aquilo que Gilberto Freyre declarou a respeito do idioma quando
da sua aventura pelas ilhas. O caráter exótico ressaltado pelo brasileiro, reforçando a
diferença e inferioridade em relação à língua portuguesa, é questionado pelo
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caboverdiano, como também as considerações sobre o povo e a cultura. Desse modo, o
excerto acima problematiza as afirmações do sociólogo, quando esse diz que todo
brasileiro tem uma fração de sangue negro e quando encontra na predominância negra
sobre a européia uma designação simplista como é o “excótico”:
São quase tão exóticos aos olhos de um brasileiro – por estarem ainda
à margem da cultura sociologicamente predominante no Brasil e à
margem da própria língua portuguesa falada no Brasil – quanto aos
olhos de um inglês ou de um francês (...) a impressão de uma
população sociológica e até etnicamente aparentada com a portuguesa
ou a brasileira; mas demasiadamente dominante pela herança da
cultura e da raça africanas para que seu parentesco com portugueses e
brasileiros seja maior que o exotismo de sua aparência e de seus
costumes. Costumes, muitos deles, ainda solidamente africanos.
(2001, p. 267).
Assim, Freyre assinala a sua impressão de que quando ouve um caboverdiano
falar o português, parece-lhe “com açúcar”, pois o falam “à maneira tropical”. Todavia é
contrastando o dialeto crioulo tido por ele como “repugnante”, com a língua portuguesa
falada no arquipélago e considerada por ele como “agradável”, pode-se perceber o
esforço de aproximação que realiza o sociólogo em relação a Portugal – Cabo-Verde,
que se verifica na entonação coimbrã daqueles que, nas ilhas, falam a língua portuguesa.
Todavia, Freyre esqueceu-se que muitos daqueles pertencentes às camadas mais
baixas, falavam o português somente em situações oficiais, e que o idioma dividido por
eles nas situações cotidianas era o crioulo. Impõe-se, portanto, um caráter elitista nas
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opiniões de Freyre sobre o português e o dialeto crioulo, verificado no contato com
aristocratas e homens cultos de Cabo-Verde:
... é uma flor de aristocracia crioula: Júlio Monteiro. Um caboverdiano formado em Portugal; e que fala o português com um acento
coimbrão tão elegante que me faz recordar certos filhos de rajás do
Oriente e de príncipes da África (...) tal a pureza constante e um tanto
lenta de sua pronúncia (...) Dá gosto ouvir falar português ao
advogado Júlio Monteiro: um português que a pronúncia coimbrã é
discretamente adoçada pelo trópico (...) Noto que mais de um caboverdiano culto que, no português que fala, junta à correção coimbrã
graças de entonação tropical. (2001, p. 274).
Nota-se, portanto, que Freyre aplica uma teoria praticamente “purista” em
relação ao idioma falado no ultramar português, desvalorizando, assim, o surgimento de
uma nova língua a partir da língua portuguesa. O prevalecimento do idioma português
sobre o crioulo, de acordo com o testemunho de Freyre, relaciona-se à própria
hierarquização da sociedade, visto que, Freyre encantava-se com os cabo-verdianos
cultos que falam a língua portuguesa com acento próprio de Coimbra e muito pouco de
“sabor tropical”, ao passo que repugnava o dialeto falado pelo povo, o qual era
impossível de ser entendido.
Em resposta, Lopes considera que, apesar de não ter sido formado um dialeto no
Brasil, como o que se desenvolveu em Cabo-Verde, há no falar brasileiro
“descomposturas”, que se verificam, por exemplo, no emprego do pronome pessoal
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anteposto, e que essa é uma “tendência” própria do brasileiro, sendo que, quando a
forma portuguesa é utilizada por um brasileiro, parece haver um “esforço
aristocratizante”, aproximando-se do português falado em Coimbra. Para tanto, ilustra o
dito com um poema do brasileiro Manuel Bandeira, intitulado Evocação do Recife, no
qual retrata a “língua certa do povo”, que “fala gostoso o português do Brasil”, ao passo
que os intelectuais brasileiros o que fazem é “macaquear a sintaxe lusíada”
(BANDEIRA, 1966, p. 114).
Explica ainda, o intelectual caboverdiano, que
... no Brasil, com um elemento europeu mais denso e de acção
socialmente mais importante, a linguagem não teve de sofrer a
violenta simplificação dos crioulos. Em Cabo-Verde, ao contrário,
com um elemento branco mais fraco, mais disperso nas próprias ilhas
de estrutura econômica latifundiária, foi o homem crioulo que teve
acção predominante na vida histórica do dialeto. Isto explica a
influência maior em Cabo-Verde do étnico não-europeu na
simplificação primitiva do português. (1986, 20).
Apesar de apresentar as diferenças impostas pelo tipo de colonização e o como o
elemento europeu agia em ambas as colônias, Lopes retoma a comparação entre as
semelhanças dos dois países em contradição à colonização portuguesa realizada no
Oriente:
Colonização sedentária nos trópicos, de base agrária, com formação
de uma população nova e de uma civilização antes inexistente, só no
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Brasil e em Cabo-Verde (...) De qualquer modo, o caboverdiano é um
tipo lingüista e culturalmente definido, irmão do brasileiro. (1986, p.
22).
Mesmo que, Gilberto Freyre tenha repugnado o dialeto crioulo, uma de suas
observações que pretendem demonstrar alguma aproximação entre Brasil e Cabo-Verde,
além do clima e da coragem e doçura do povo mestiço, verifica-se quando diz estar o
arquipélago “literariamente mais preso ao Brasil do que a Portugal” (2001, p. 272),
estendendo essa influência sobre as manifestações populares como a música e as
danças. Essa semelhança e influência a respeito das manifestações artísticas populares
concentra-se especificamente na morna e, será, alguns anos mais tarde, pesquisada por
Manuel Ferreira (1973) e Vasco Martins (1988) a respeito da relação entre a canção
popular caboverdiana morna, como tendo sido originada a partir da modinha brasileira.
A aproximação literária entre os dois países é ainda mais enfatizada quando
Freyre declara que “é talvez hoje em Cabo-Verde que se encontra a mais viva literatura
lusotropical, depois da do Brasil. A mais cheia de promessas” (2001, p. 280). Essa
afirmação, porém, é justificada pela importação de modelos do modernismo regionalista
pelos intelectuais representantes da revista Claridade.
Segundo José Carlos Gomes dos Anjos (2004), houve durante a formação da
revista Claridade uma “sociologia de importação”, isto é, empréstimos de bens
simbólicos que ajudaram a construir a identidade nacional mestiça no arquipélago.
Podem ser destacados dois principais empréstimos: num primeiro momento do
modernismo português e em seguida do regionalismo brasileiro da segunda fase
modernista.
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O empréstimo realizado pelos representantes da revista Claridade foi a
importação de modelos estéticos e de identificação do modernismo brasileiro,
especificamente do regionalismo de 1930, que lhes forneceram uma nova leitura de
mundo. Nesse caso, o regionalismo pareceu mais adequado ao que exigiam os
claridosos pela identificação com a nação brasileira, seus aspectos físicos e,
principalmente, seu povo: em sua maioria uma mistura de negros e brancos.
Entretanto, o diagnóstico feito por Freire em Aventura e Rotina não agradou os
intelectuais cabo-verdianos desejosos da afirmação de semelhança com o brasileiro,
pois ele os taxou de essencialmente negros não somente no aspecto físico como também
na fala adotada pelo povo, no caso o dialeto crioulo, o que os aproximava da África e
que contrariava o modelo de oposição adotado pelos claridosos: demonstrar que CaboVerde não é África e também não é Portugal, é como o Brasil, um país mestiço.
A complexidade cabo-verdiana, referente à atividade intelectual, está presente na
importação de perspectivas para definição da identidade nacional mestiça em CaboVerde. A importância da revista Claridade é incontestável, pois não se importava em
romper somente com a geração de escritores e poetas românticos anteriores, mas com a
metrópole enquanto referência literária, chegando a ganhar certa autonomia ao
encontrar no “irmão brasileiro” um modelo não só literário, mas de uma “sociologia de
importação” (2004, p. 115).
O regionalismo brasileiro, portanto, serviu como modelo na elaboração de uma
linguagem diferente para a literatura caboverdiana: a invenção de um idioma à parte,
que pretendia justificar um regionalismo nas ilhas. Entretanto, esse idioma, do mesmo
modo como acontece com o acento de Coimbra na língua portuguesa falada pelos
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caboverdianos cultos, torna-se um esforço, uma “fala forçada que a um só tempo revela,
consente e reconhece a distância colonizador-colonizado” (2004, p. 115).
Consoante a criação de um idioma que legitimasse o regionalismo em CaboVerde, para dessa maneira, justificar a proximidade com o Brasil, os intelectuais
claridosos acabam por reforçar a diferença colonizador-colonizado, revelando a
distância entre esses dois grupos sociais por meio da língua que dominam, ou seja,
O desvio em relação ao português standard, expressão de um esforço
(malsucedido) de adequação aos meios oficiais, revela o quanto os
analfabetos (a maioria da população) estão excluídos, até pelo uso
inadequado da língua oficial, o que impõe o reconhecimento da
necessidade da mediação, que só pode ser feita por aqueles que
dominam todo o espaço de hierarquização dos diversos usos
possíveis das línguas faladas em Cabo-Verde. (2004, p. 116).
Os intelectuais cabo-verdianos que tinham o conhecimento da língua portuguesa,
portanto, aqueles pelos quais Freyre demonstra admiração por falarem o idioma mais
próximo do acento metropolitano do que do tropical, conseguiram utilizá-la como
instrumento de domínio das estruturas mentais e simbólicas do colonizador, pois ao ter
conhecimento de uma língua é possível conhecer também sua cultura e entender seus
ideais e, ao mesmo tempo, conheciam o dialeto falado pela maior parte da população
das ilhas, o crioulo, dessa forma, conseguiam transitar entre os dois espaços formados
pela sociedade mestiça.
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Se, de um lado Freyre preferia o purismo da língua portuguesa de acento
“coimbrão”, por outro, Lopes discorria a predominância esmagadora do português a
qualquer outro idioma africano sobre o crioulo. A língua portuguesa, dessa maneira,
foco central da discussão entre os dois artigos, é o elemento que determina a relação do
intelectual nativo e sua ação no plano literário para a construção de características
próprias ou de identidade caboverdiana.
Pela ação estilística do novo idioma, criado a partir da mescla entre o português
e o crioulo, que somente ocorreu no plano literário, os intelectuais caboverdianos da
Revista Claridade, conseguiram legitimar o regionalismo das ilhas que, apesar de
forjado, rendeu ao arquipélago o título de segundo maior produtor de literatura
lusotropical do ultramar português, proferido pelo responsável do desenvolvimento do
conceito, o sociólogo considerado pelos caboverdianos como “o messias” (1973),
Gilberto Freyre.
Apesar de o artigo de Gilberto Freyre conter elementos considerados
“depreciativos” pelos caboverdianos cultos, verificados principalmente no repúdio pelo
idioma crioulo, a literatura lusotropical caboverdiana foi legitimada. Sendo assim,
Cabo-Verde não possuía, aos olhos do viajante brasileiro, um artesanato que pudesse
fazer sobreviver o seu povo, não possuía elemento europeu em quantidade suficiente
para alcançar o Brasil em grau de “caldeamento racial”, o seu povo fazia uso de um
dialeto repugnante e a única expressão de arte popular vista em todas as ilhas era apenas
a “mesma morna” (2001, p. 278) já sua conhecida. A literatura caboverdiana formada a
partir de uma importação de modelo, que é o regionalismo brasileiro, e da invenção de
uma linguagem não confirmada na realidade social é, assim, o elemento que
determinou, para Freyre, o caráter lusotropical no arquipélago.
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante dos relatos de viagem.
A discussão em torno do artigo de Gilberto Freyre, resultado de uma viagem
encomendada pelo regime colonialista do Estado Novo português, abordou, no campo
literário de um país que, até então, não tinha uma literatura própria, questões
imprescindíveis a respeito da língua e do bilingüismo em Cabo-Verde. É possível, com
a leitura de Aventura e Rotina e sua respectiva “resposta” elaborada por Manuel Lopes
intitulada Uma aventura românica nos trópicos, observar a importância da língua
portuguesa como veículo de expressão não só no espaço social determinado (como as
citadas situações oficiais, impostas pelo colonialismo), mas na formação de dialetos e
idiomas que mantém o “tronco” latino, advindo do português que é grande parte de toda
a sua estrutura e que a ele emenda léxico de diferentes etnias da África.
Referências Bibliográficas
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identidade nacional. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006.
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nação. Brasília, UNB – Departamento de Antropologia – Programa de Pós-graduação
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FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina – Sugestões de uma viagem à procura das
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MARTINS, Vasco. A música tradicional Cabo-Verdiana I (A Morna). Praia/ CaboVerde: Instituto Cabo-Verdiano do Livro e do Disco, 1988.
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SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante dos relatos de viagem.
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Cabo Verde, Luanda, 1969.
VENÂNCIO, José Carlos. Colonialismo, antropología e lusofonias- Repensando a
presença portuguesa nos trópicos. Lisboa, Vega, 1996.
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