Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015
UM ESTUDO SOBRE IDENTIDADE VISUAL E PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO
EM GILBERTO FREYRE
A study on visual identity and Brazilian cultural heritage based on Gilberto Freyre’s work
Elisa Fauth da Motta (Mestranda em História - Unisinos)
[email protected]
Resumo: Este artigo apresenta algumas possibilidades de análise da obra “Modos de homem e modas de
mulher”, escrita pelo sociólogo Gilberto Freyre. Conhecido por suas obras em que analisa a sociedade e
cultura brasileiras, como “Casa-Grande & Senzala” e “Sobrados e Mocambos”, pouco se conhece sobre
seus escritos acerca da indumentária de homens e mulheres do Brasil. A análise da obra de Freyre faz
parte de meu projeto de mestrado e busca identificar uma possível identidade visual da população
brasileira, seus modos de vestir e portar-se, bem como sua identificação como patrimônio intangível.
Palavras-chave: História do vestuário – Gilberto Freyre – Patrimônio cultural
Abstract: This article presents some possibilities of the analysis of the book “Modos de homem e modas
de mulher”, written by the sociologist Gilberto Freyre. Known by his work in which he analyses Brazilian’s
society and culture, like “Casa-Grande & Senzala” and “Sobrados e Mocambos”, little is known about his
writings on men’s and women’s dressing in Brazil. The analysis of Freyre’s work is part of my master’s
project and tries to identify a possible visual identity of Brazilian society, its ways of dressing and behaving,
as well as its identity as an intangible estate.
Keywords: clothing history – Gilberto Freyre – Cultural heritage
Modos de homem e modas de mulher
Conhecido por seus estudos sobre a cultura brasileira, o sociólogo e historiador, Gilberto
Freyre foi um dos pioneiros a utilizar diversas fontes1 para compor suas pesquisas. Conforme
Diehl,
Freire acreditava ter encontrado a chave para a explicação da história social
brasileira na ascensão e queda da sociedade patriarcal, trazendo, na sua
análise, o elemento anticonvencional, tanto nas formas de apresentação do
conteúdo como na metodologia, na pesquisa inovadora de fontes (DIEHL,
1992, p. 182).
Pesavento destaca que “Freyre recorria a uma variedade enorme de fontes para construção de uma obra de
reinterpretação do Brasil: anúncios de jornal, roupas, chapéus, brinquedos, receitas de doces, pátios e cozinhas,
objetos de decoração, cemitérios, jardins, [...]. O resultado é a apresentação de textos quase plásticos e mesmo
olfativos, onde o autor construía, para o leitor, as imagens da vida cotidiana e da cultura material do passado brasileiro”
(PESAVENTO, 2004, p. 188).
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Com essa postura, desenvolveu pesquisas sobre os mais diversos aspectos da cultura
brasileira, influenciadas pela sua formação antropológica com Franz Boas, que percebia a
concepção de cultura como uma vinculação entre nacionalidade, raça e cultura. Exaltando as
diferenças entre as culturas presentes no país, percebia na mestiçagem a individualidade do povo
brasileiro e sua característica mais interessante.
Em “Modos de homem e modas de mulher”, Gilberto Freyre inicia seu texto com uma
pequena advertência ao leitor: está analisando os modos e modas brasileiros sob a perspectiva
sociológica, “[...] admitindo-se, de modas, que sejam condicionadas por modos e de modos que
não sejam, atualmente, só de homens, mas que venham crescentemente incluindo atuações de
mulheres competidoras com homens” (FREYRE, 2009, p. 17). Uma das ideias que irá discutir no
texto é a de que as mulheres são mais ligadas à moda e os homens aos modos, apesar de as
mulheres estarem conquistando espaços considerados por ele masculinos. Logo nas primeiras
páginas de sua obra ele afirma: “Modo e moda tendem a confluir a serviço do ser humano. Mas
sem perderem essenciais de característicos que fazem, de um, expressão de masculinidade e de
moda; da outra, expressão mais de feminilidade do que de masculinidade” (FREYRE, 2009, p. 20).
Essa diferença da noção de moda entre os sexos foi discutida em “O Espírito das Roupas”, por
Gilda de Mello e Souza, texto em que explica que houve uma mudança2 no século XIX com relação
às modas. Segundo ela, a expressão do masculino e feminino mudaram consideravelmente neste
período, enquanto as roupas femininas passavam por um momento de retomada das rendas e
babados, o masculino era representado pelo aumento de símbolos fálicos da indumentária: as
bengalas, charutos e as longas bigodeiras3. Freyre parece ter observado a complexidade das
roupas femininas e, dessa maneira, chegado à conclusão de que por esse motivo, as mulheres
eram mais inclinadas a gostar de moda, em relação aos homens.
Conforme Pesavento, já em suas primeiras obras, ao aplicar a metáfora da antropofagia,
Freyre entendia que “a cultura brasileira deglutia as outras, transformando-as em uma nova
composição, mais rica e mais peculiar. O homem nacional não se definia pelo logos, mas sim pela
“O século XIX, porém, será um divisor de águas e o princípio da sedução ou atração, que é o princípio diretor da
roupa feminina, estará nestes últimos cem ou cinquenta anos, quase inteiramente ausente da vestimenta dos homens.
Enquanto o traje feminino se lançou novamente numa complicação de rendas, bordados e fitas, a indumentária
masculina partiu, num crescente despojamento, do costume de caça do gentil-homem inglês para o ascetismo da
roupa moderna” (SOUZA, 1987, p.59-60).
3 Conforme Gilda de Mello e Souza (1987).
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fagia, pela capacidade de incorporar o que era bom e desprezar o que não lhe interessava”
(PESAVENTO, 2004, p. 181). Esta concepção parece ter se mantido até a década de 1980,
quando publicou seu estudo sobre a história do vestuário brasileiro e das modas4 que o
influenciaram, pois ao longo de “Modos de homem e modas de mulher” Gilberto Freyre discutirá
a maneira como os brasileiros se apropriaram de algumas vertentes da moda, como a francesa e
a inglesa, adaptando-as à sua realidade compreendendo que no século XX o país deixava de ser
um receptor passivo de modas, para, pela primeira vez, transformá-las em uma característica
especificamente brasileira. Freyre finaliza a advertência inicial da obra afirmando que é possível
identificar, a partir da década de 1970, uma mudança considerável em relação aos modelos
importados do exterior para o Brasil.
Esse é o ponto chave que pretendo discutir em minha pesquisa: quais as mudanças
percebidas por Gilberto Freyre na indumentária brasileira ao longo dos séculos XIX e XX? Existe
uma identidade visual característica dos brasileiros? Quais as diferenças entre as relações dos
sexos com o vestir e a moda? É possível considerar o vestuário brasileiro um patrimônio cultural?
Para responder a essas questões é preciso levar em consideração que, em comparação
com outras temáticas, a história do vestuário não teve grande aceitação nas pesquisas realizadas
pela historiografia no Brasil. A grande maioria das publicações sobre a temática esta atrelada à
pesquisas de leigos e/ou a traduções de obras de autores franceses e italianos. Poucos são os
estudos realizados por historiadores, sociólogos ou antropólogos que discutem questões
relacionadas ao vestuário e ao vestir, e apesar dos esforços, os cursos de design e moda não
recebem aceitação em suas pesquisas na temática. Os estudos sobre o vestuário vão além das
mudanças constatadas nos trajes ao longo dos últimos séculos. Eles possibilitam uma
compreensão das relações sociais, através de códigos de condutas e manuais de convivência, os
processos de produção e distribuição de produtos têxteis, assim como as formas de expressão
utilizadas por determinadas sociedades para se caracterizar e identificar. Como é o caso da obra
de Freyre, que busca observar as particularidades que podem ser consideradas como
representativas de uma identidade visual brasileira.
“Ainda que estejam envolvidos diversos âmbitos da vida coletiva, historicamente, o modo de proceder da moda
exprimiu-se mais claramente na esfera das roupas e do modo de vestir” (CALANCA, 2011, p. 16).
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Outra questão importante é a revisão das noções de patrimônio nas últimas décadas. A
contribuição da antropologia para a concepção de cultura na atualidade procura dar ênfase nas
“relações sociais ou mesmo nas relações simbólicas, mas não nos objetos e nas técnicas. A
categoria ‘intangibilidade’ talvez esteja relacionada a esse caráter desmaterializado que assumiu
a referida moderna noção de cultura” (GONÇALVES, p. 30). A noção de patrimônio cultural mudou,
deixando de estar associada apenas às propriedades ou ao chamado “patrimônio de pedra e cal”,
vinculando-se também às diferentes formas de manifestação da cultura. A perspectiva de proteção
deste patrimônio vai além do tombamento, realizando sua identificação e documentação, como
destaca Fonseca5, que acredita que seja possível realizar uma reapropriação simbólica desses
bens preservados, mantendo suas formas de produção e sua importância para a sociedade.
Referencial teórico-metodológico
Este trabalho se insere na produção historiográfica mais recente que tem se dedicado a
estudos de história cultural, dialogando com a antropologia, gênero e patrimônio cultural. Para a
definição do referencial teórico e metodológico do trabalho em desenvolvimento, entrei em contato
com obras que enfocam a história do vestuário, história cultural, patrimônio histórico e cultural e
estudos antropológicos sobre cultura e moda.
A opção por analisar a obra “Modos de homem e modas de mulher” nesta perspectiva
exigiu que eu buscasse, inicialmente, autores que se dedicam ao estudo da história do vestuário
e suas metodologias de pesquisa. De acordo com Daniela Calanca, a relação de homens e
mulheres com o vestuário mudou muito ao longo dos séculos, passando de mero objeto de
proteção contra adversidades climáticas, para símbolo de diferenciação social e expressão da
personalidade. Conforme Calanca,
As roupas, os objetos com os quais cobrimos o corpo, são as formas pelas
quais os corpos entram em relação entre si e com o mundo externo. O corpo
revestido pode ser considerado, substancialmente, uma ‘figura’ que exprime
os modos pelos quais o sujeito entra em relação com o mundo (CALANCA,
2011, p.17).
No texto intitulado “Para além da pedra e cal: Por uma concepção ampla de patrimônio cultural”, Maria Cecília
Fonseca menciona as práticas que podem ser realizadas para a preservação do patrimônio imaterial.
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Essa expressão dos sujeitos através dos ornamentos surge na sociedade da corte6, em
que a nobreza se vale das roupas para se distinguir do restante da população, bem como
demonstrar status na própria aristocracia. Apesar de ser no período moderno que a moda se
dissemina como reprodutora de bens e objetos de consumo, para Lipovestky esse não é o único
motivo para tamanha aceitação, de acordo com sua teoria,
A moda não nasceu da exclusiva dinâmica social, nem mesmo do impulso dos
valores profanos; mas exigiu profundamente um esquema religioso único, o da
Encarnação, que conduziu, diferentemente das outras religiões, ao
investimento neste mundo, à dignificação da esfera terrestre, das aparências
e das formas singulares (LIPOVETSKY, 2009, p. 78).
Para que o sistema de diferenciação social se mantivesse através da mudança constante
nas práticas de vestir e de se ornamentar, foi necessária, segundo Lipovetsky, a religião cristã e
sua crença em encarnação. Com o objetivo de aproveitar ao máximo sua vida terrena, a sociedade
criou o mecanismo de distinção que é a moda. Por esse motivo, o advento da moda só passou a
atingir as sociedades orientais séculos depois de seu início no Ocidente. A socióloga Gilda de
Mello e Souza concorda com a perspectiva de que as mudanças cíclicas em torno do vestir se
deve à necessidade de alguns grupos se distinguirem7 de outros, dentro de uma mesma
comunidade. Contudo, acredita que isso acontece mesmo em sociedades primitivas.
Sob a noção de história cultural, Daniel Roche destaca que o vestuário carrega diversos
valores do imaginário social e seu estudo pode ser realizado de diversas perspectivas. Segundo
ele, através do vestuário é possível observar as topografias sociais e a circulação8, troca e cosumo
de produtos. Também para Fernand Braudel, a história do vestuário permite inúmeras abordagens,
pois “ela coloca todos os problemas: o das matérias-primas, dos procedimentos de produção, dos
custos, das imobilidades culturais, das modas, das hierarquias sociais” (BRAUDEL, 1995, p. 282).
Para compreender o que se considera a capacidade de expressão individual através da moda 9 foi
necessária a leitura de “A sociedade dos indivíduos”, de Norbert Elias, pois para ele
Conforme Norbert Elias, em A Sociedade da Corte.
“Já entre os povos primitivos observamos uma preocupação especial com o ornamento, a tatuagem, o penteado, o
saiote cerimonial, naqueles momentos em que ao se reunirem todos os membros do clã ou da fratria, cada qual
deseja, na competição que imediatamente se estabelece, oferecer aos outros a melhor imagem de si” (SOUZA, 1987,
p. 155).
8 “A reutilização [da roupa] inscreve-se num conjunto de gestos e valores, que se faz pela dádiva, a herança e os
mercados de segunda mão, que passam de pais para filhos nos autos sucessórios, de ricos para pobres nas esmolas
e nas obras de caridade, nos contratos de casamento, de patrões para assalariados (ROCHE, 2000, p. 227).
9 Conforme Sorcinelli e Lipovetsky.
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Justamente o que caracteriza o lugar do indivíduo em uma sociedade é que a
natureza e a extensão da margem de decisão que lhe é acessível dependem
da estrutura e da constelação histórica da sociedade em que ele vive e age.
De nenhum tipo de sociedade essa margem está completamente ausente. Até
a função social do escravo deixa algum espaço, por estreito que seja, para as
decisões individuais (ELIAS, 1994, p. 49)
Ou seja, apesar de haver uma moda vigente na sociedade, existem mecanismos de tornar
a individualidade expressiva através de pequenas mudanças no vestuário, acrescentando ou
diminuindo o comprimento de uma manga, babados, cores, etc. As mudanças na percepção do
corpo e do vestir, por sua vez, são ressaltadas por Paolo Sorcinelli, em “Cullturas e modas de
corpo”, ao longo dos séculos XVI e XVII. Para o historiador, homens e mulheres começaram a
prestar mais atenção na roupa neste período, especialmente a íntima, devido ao interesse pela
limpeza do corpo10. A relação das modas com o corpo também é destacada por Sorcinelli devido
ao surgimento do costume de pegar sol, no início do século XX, e da prática de esportes para
mulheres, influenciando sua saúde e também alterando estereótipos de beleza. Sobre essa
mudança do século XIX para o XX, Tânia Quintaneiro 11 irá ressaltar que a mulher brasileira
possuía um ar apático devido ao costume de ficarem muito trancadas em casa e que esse perfil
mudou apenas ao longo do século XX com a prática de esportes e com a contribuição no trabalho
fora do lar. O estereótipo masculino, por sua vez, vinha se alterando ao longo do século XIX,
conforme Gilda de Mello e Souza e se associando aos sinais de virilidade nos trajes.
Para realizar a análise da fonte sob a perspectiva de gênero, foi necessário entrar em contato
com o capítulo “História das mulheres12”, Rachel Soihet explica como a palavra gênero tem sido
utilizada, desde a década de 1970, para designar as diferenças entre os sexos, termo que rejeita o
determinismo biológico dos papéis sociais dos sexos e “sublinha também o aspecto relacional entre
Para Sorcinelli, mesmo que o medo de contaminação e transmissão de doenças através da água se mantivesse, a
limpeza da roupa passou a se tornar mais frequente e o asseio pessoal também.
11 Elas estavam distantes do perfil da mulher enérgica, dinâmica, ativa, que só veio a instalar-se entre as classes
médias urbanas e tornar-se padrão de beleza quando já estava bastante avançado o século XX, época em que esses
contingentes femininos começaram, efetivamente, a contribuir para a força de trabalho (QUINTANEIRO, 1995, p. 196).
12 Em “Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia” de Ronaldo Vainfas e Ciro Flamarion Cardoso.
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as mulheres e os homens, ou seja, que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode
existir através de um estudo que os considere totalmente em separado” (SOIHET, 1997, p. 404).
Considerando que as questões abordadas na pesquisa não podem ser unilaterais, mas estudadas
através da relação de homens e mulheres entre si, com a sociedade e seus corpos. Por sua vez,
Magali Engel, no texto intitulado História da Sexualidade, aborda como Foucault influenciou os
primeiros estudos sobre a temática. Entretanto, nas últimas décadas, a maioria dos trabalhos
nessa área têm se dedicado a trabalhar com a sexualidade da mulher e ao homossexualismo.
Segundo esta historiadora, a maior dificuldade metodológica em trabalhos sobre esta temática
está relacionada às fontes que, em sua maioria, “são indiretas, na medida em que constituem
discursos formulados pelos segmentos dominantes e/ou dirigentes” (ENGEL, 1997, p. 443).
Para a análise da produção da obra, os textos de Michel de Certeau e Roger Chartier foram
de grande importância. Ao discutir a função do historiador, Certeau13 aponta para o lugar social da
escrita da história, local em que está inserido o pesquisador no momento de sua escrita e que será
um reflexo direto no seu texto. Nesse sentido, é preciso considerar o momento em que Gilberto Freyre
escreveu sua obra, inserindo-a em seu contexto social/temporal. Da mesma maneira, Chartier14
discorre do fato de que a autoria das obras precisa ser relativizada, pois às ideias do autor são
acrescentadas suas vivências, aprendizados, citações e a influência de editores. Por esse motivo, as
leituras de estudos sobre a produção de Gilberto Freyre foram imprescindíveis.
Ao revisar as contribuições do sociólogo para a produção historiográfica brasileira, Astor
Diehl15, no texto “Gilberto Freire,um herói civilizador da cultura dependente”, faz uma análise elogiosa
de sua obra e atenta para a abordagem inédita realizada por Freyre em Casa-Grande e Senzala,
vinculando noções de nacionalidade, raça e cultura como base de sua concepção de cultura, além
do que ele considera metodologia de análise e fontes inovadoras. Juremir Machado da Silva
concorda, afirmando que Freyre é o maior interprete da cultura brasileira em todos os tempos.
Sandra Pesavento, por sua vez, acredita que sua contribuição foi de grande valia, apesar de ter
sofrido descrédito durante várias décadas do século XX. Segundo a historiadora, “a visão sexuada,
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982, p. 65-119.
14 CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins
Fontes, 1992, p. 211-238. CHARTIER, Roger. A Aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean
Lebrun. São Paulo: Editora UNESP, 1998
15 DIEHL, Astor Antônio. Gilberto Freire: um herói civilizador da cultura dependente. In: DIEHL, Astor Antônio. A Cultura
Historiográfica Brasileira. Do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf, 1998.
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sensual e fraterna da realidade nacional, que Gilberto Freyre construiu, lhe valeu muitas críticas,
sobretudo pela intelectualidade da esquerda, por minimizar a violência nas relações entre brancos
e negros, mestres e escravos” (PESAVENTO, p.190). Apesar destes pontos, para Pesavento, sua
obra é rica em informações sobre a cultura brasileira. Mas é Peter Burke quem faz a análise mais
interessante com que me deparei. Para ele, Gilberto Freyre já praticava a “Nova História dos
Annalles”, antes mesmo de seu surgimento, ao se dedicar a temáticas, fontes e abordagens ainda
pouco ou nada utilizada por historiadores.
Poder-se-ia descrever seu trabalho como uma forma de ecletismo
multidisciplinar, não propriamente síntese, mas sincretismo. Ele não apenas
pregou a ‘hibridização’, mas a praticou por toda sua vida intelectual. Ele foi
uma espécie de esponja intelectual que podia sugar com grande facilidade
tanto as ideias como a informação a partir de uma multiplicidade de fontes
(BURKE, 1997, p. 8).
Essas análises me possibilitaram inserir Freyre na produção de história cultural e
compreender a importância de suas obras. Mesmo sem dar destaque às violências ocorridas na
história do país, o sociólogo e historiador conseguiu trazer grandes inovações também para a
historiografia, como ressalta Burke.
Para construir o embasamento teórico em relação a cultura, me vali de Michel de Certeau,
em sua obra “A Cultura no Plural”, considerando que “Uma produção social é a condição de uma
produção cultural” (CERTEAU, 1986, p. 208), ou a forma de interagir com o vestuário e a moda
podem ser entendidos como uma expressão cultural, pois são reflexos diretos da sociedade. Da
mesma maneira, defende a ideia de que “obras que devem ser difundidas acrescentam-se a de
‘criações’ e de ‘criadores’ que devem ser promovidos, em vista de uma renovação do patrimônio”
(CERTEAU, 1986, p. 194), o vestuário criado ou adaptado por brasileiros de acordo com sua
realidade social é considerado patrimônio. Conforme José Reginaldo Gonçalves, a noção de
patrimônio intangível vai além de propriedade, ela está baseada no registro de “práticas e
representações e acompanhá-las para verificar sua permanência e suas transformações”
(GONÇALVES, 2009, 28), relacionada com a noção antropológica de cultura, a patrimonialização
deve perpassar pelas relações simbólicas a que estão submetidos os objetos – ou neste caso o
vestuário – mas na sua importância para a sociedade em que estão inseridos. Para Regina Abreu,
ao se aproximar de uma noção de patrimônio nacional, esses objetos seriam a referência para a
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construção de uma identidade comum da população do país. Assim como também destaca Márcia
Sant’Anna,
“Os instrumentos de reconhecimento e valorização dos bens culturais
imateriais criados pelo governo brasileiro consideram, então, a natureza
dinâmica e processual desses bens, promovendo ainda a interação dos
aspectos materiais e imateriais do patrimônio cultural que proporcionam uma
concepção mais rica e ampla” (SANT’ANNA, 2009, p. 57).
Contudo, apesar de considerarem a valorização de bens culturais como patrimônio cultural
brasileiro, os autores destacam que pouco se fez em relação a medidas efetivas de catalogação
e divulgação dessas produções no sentido de preservá-las. Como também argumenta Maria
Cecília Fonseca, ao debater os problemas da dificuldade em encontrar catalogadas e/ou
documentados no Brasil, produções que não sejam relacionadas à cultura portuguesa e à
arquitetura.
Considerações
A obra “Modos de homem e modas de mulher” está organizada em pequenos tópicos de
uma a três páginas cada um e discute inúmeros temas. Nesses mais de cinquenta tópicos são
abordados temas relativos à concepções de feminilidade e masculinidade, modificações sociais,
nacionalismo e mudanças corporais relacionadas aos estereótipos de beleza nacionais e
importados. Essas mudanças se refletem nos modos de vestir e portar-se de homens e mulheres,
possibilitando inúmeras abordagens de análise. Contudo, a obra escrita por Gilberto Freyre,
permite especialmente o estudo das percepções do autor sobre a relação dos brasileiros com a
roupa e o vestir-se, percebendo as influências de diversas culturas nas formas de expressão e da
aparência dos brasileiros e na produção das roupas e adereços. Inseridas no contexto atual de
conservação do patrimônio histórico e cultural, as criações brasileiras e seus processos de
produção podem vir a serem considerados patrimônios intangíveis da sociedade.
Por fim, é necessário destacar que o recorte temporal que pretendo analisar compreende o
final do século XIX e século XX, pois é esse o período abarcado na obra de Freyre. Como
menciona Calanca, em estudos relacionados a história da moda e do vestuário pode ser
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necessário “substituir o uso de uma dupla datação (inicial e final) por uma simples datação central,
já que o momento de início e do fim de uma moda vestimentária nem sempre é definido no tempo”
(CALANCA, 2011, p. 23).
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