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“A INFÂNCIA VIVIDA EM SOBRADOS E MUCAMBOS: UM OLHAR ATRAVÉS DE
GILBERTO FREYRE”
Nelly Monteiro Santos Silva1
Universidade Federal de Sergipe
RESUMO
Dedicar esforços a fazer história da educação é aceitar a realidade de ter que lidar com inúmeras
dificuldades e desafios existentes nesse campo que investiga não apenas o ensino e a escola, mas
também outros sujeitos e objetos – o livro, a leitura, a mulher, o jovem, a criança, entre outros – que
contribuem para uma compreensão apurada dos processos educativos do passado. Dentre as principais
adversidades enfrentadas pelos pesquisadores dessa área, a dificuldade de manuseio das fontes – quase
sempre em péssimo estado de conservação – merecem um destaque especial, pois estas corroboram
para que o historiador se depare sempre com consideráveis lacunas, ou melhor, vazios que prejudicam
o desenvolvimento de sua pesquisa. Esta é com certeza uma das razões pelas quais podemos perceber
a preferência dos historiadores por estudar fatos ocorridos a partir de 1930. Dentro desse contexto,
podemos constatar que a criança vem sendo alvo de recorrentes debates nas ciências de um modo
geral, destacando-se as recentes produções em História da Educação onde também podem ser
percebidas uma preferência por temas referentes ao século XX, sendo ainda muito poucas as
produções referentes a períodos anteriores. Nesse sentido, na tentativa de incentivar mais pesquisas
neste campo que priorizem a produção de uma historiografia sobre a educação da infância no século
XIX, é que optei por identificar na edição atualizada da obra de Gilberto Freyre (1900-1987),
Sobrados & Mucambos – publicada pela primeira vez em 1936 – informações que digam respeito à
criança e a sua educação que possam servir, posteriormente, não apenas como ponto de partida ou
mesmo suporte para efetivação de pesquisas mais aprofundadas sobre o tema, mas, principalmente,
que possam contribuir com a construção da história da educação da criança nordestina. As obras de
Gilberto Freyre formam um conjunto que talvez constituam uma autobiografia coletiva de quase todo
brasileiro, pois analisa o aspecto constitutivo do Brasil do seu interior para o seu exterior e vice-versa.
Em Sobrados & Mucambos (1936) – obra que mantém um laço de continuidade temática e
metodológica com Casa-grande e Senzala (1933) – Gilberto Freyre faz citações importantes a respeito
da figura infantil, enfatizando, no entanto a condição do escravo negro, num período que compreende
meados do século XVIII e século XIX, período no qual a visão que se tinha da criança e da infância já
havia evoluído de forma mais positiva, não só em outras partes do mundo como também do Brasil. O
autor merece destaque nos estudos em história da educação, não somente pelas contribuições que este
traz aos estudos sobre a infância, mas pela forma como ele “redescobre” o Brasil. De posse de um
método ametódico, Freyre nos falou de um Brasil que existiu e, de certa forma, ainda existe.
1
Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, ob orientação do Professor Doutor André
Miguel Berger. Professora Substituta da Universidade Federal de Sergipe. Psicopedagoga pela Faculdade pio
Décimo / Aracaju / Sergipe.
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TRABALHO COMPLETO
No que se refere às pesquisas que tem como foco principal a infância, podemos constatar que
a criança vem sendo alvo de recorrentes debates nas ciências de um modo geral, destacando as
recentes produções em História da Educação, onde também podem ser percebidas uma preferência por
temas referentes ao século XX2, sendo ainda muito poucas as pesquisas que procuram debruçar-se
sobre este tema em períodos anteriores.
Nesse sentido, na tentativa de incentivar mais pesquisas em História da Educação que
priorizem a produção de uma historiografia sobre a educação da infância, é que optei por identificar na
edição atualizada da obra de Gilberto Freyre (1900-1987), Sobrados e Mucambos3, informações que
digam respeito à criança e a sua educação que possam servir, posteriormente, como ponto de partida
ou mesmo suporte para efetivação de pesquisas mais aprofundadas sobre o tema, mas, principalmente,
que possam contribuir com a história da educação da criança.
Tratando-se da continuação de Casa-Grande e Senzala, obra esta que se configura num
riquíssimo estudo sobre a formação da sociedade brasileira no período colonial, a obra Sobrados e
Mucambos foi publicada pela primeira vez em 1936, em São Paulo, pela Companhia Editora Nacional,
com o seguinte subtítulo: Decadência do patriarcado rural no Brasil. Tem 450 páginas e ilustrações
fora do texto: desenhos de M. Bandeira e do autor e planta de Carlos Leão, sendo o volume 64 da
Coleção Brasiliana. A partir da segunda edição publicada em 1951 no Rio de Janeiro, desta vez sob
responsabilidade da Livraria José Olympio Editora, como número 66 da Coleção Documentos
Brasileiros, a obra foi refundida pelo autor e acrescida de longa introdução, numerosas notas e dos
seguintes capítulos: VIII – Raça, Classe e Região; IX – O Oriente e o Ocidente; X – Escravo, Animal
e Máquina; XII – Em torno de uma sistemática da miscigenação no Brasil patriarcal e semipatriarcal.
Foi a partir da segunda edição que a obra passou a ser considerada tomo II da Introdução à História
da Sociedade Patriarcal no Brasil, sendo que da terceira à sétima edições – ainda sob
responsabilidade da Livraria José Olympio Editora – a obra passa a constar de dois volumes. Somente
a partir da oitava edição, publicada em 1990 pela Editora Record, a obra passa a estar compactada em
um único volume4.
Sendo considerada parte da tetralogia, complementado que foi por Ordem e Progresso – obra
publicada pela primeira vez em 1959, pela Livraria José Olympio Editora - Sobrados e Mucambos
possui também publicações em outros países – como Portugal, Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha
– contando com uma documentação impressa e escrita vastíssima, além do riquíssimo referencial
teórico empregado pelo seu autor, no qual podemos perceber claramente a influência de grandes
personalidades de seu tempo como Sigmund Freud5 e Dilthey, e daqueles que colaboraram na sua
formação como Franz Boas6, dentre outros representantes de uma posição que defendiam a tese de que
“o humano só pode ser compreendido pelo humano – até onde pode ser compreendido; e compreensão
2
Nesse sentido, podemos citar os estudos efetuados em Sergipe, onde já podem ser encontradas algumas
pesquisas sobre o surgimento e a organização dos primeiros jardins de infância nesta localidade.
3
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do
urbano. – 15ª ed. São Paulo: Global.
4
FONSECA, Edson Nery da. 2002. Gilberto Freyre de A a Z : Referências essenciais à sua vida e obra. Rio de
Janeiro / RJ. Fundação Biblioteca Nacional. Zé Mario Editor. (p. 159).
5
Podemos perceber tanto no decorrer da leitura de Casa-Grande & Senzala, quanto em Sobrados & Mucambos,
explicações para determinados comportamentos da sociedade brasileira daquele período que se baseiam em
estudos freudianos, ou seja, na psicanálise. Na bibliografia de sua obra Casa-Grande & Senzala, é possível
comprovar essa afirmação quando verificamos que Gilberto Freyre menciona a obra de Freud, Psicologia
Coletiva e Análise do Eu. Entretanto, isto não significa dizer que Gilberto Freyre tenha feito uma correta leitura
de Freud, fato que não pretendemos nos deter neste trabalho.
6
Antropólogo germano-americano (1858-1942) que foi professor de Antropologia de Gilberto Freyre quando
este era aluno na Universidade de Colúmbia, seguindo o curso de mestrado em ciências sociais. Das aulas de
Franz Boas, G.F. aferiu a distinção entre raça e cultura.
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importa em maior ou menor sacrifício da objetividade à subjetividade. Pois tratando-se de passado
humano, há que deixar-se espaço para a dúvida e até para o mistério7”.
Assim como ocorre em Casa-Grande e Senzala, em Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre
trabalha com o conceito de “cultura8” para explicar a sociedade brasileira como sendo a confirmação
de um paradoxo na qual uma camada social complementa a outra, existindo, dessa forma, uma relação
de interdependência necessária para que exista a hierarquia social que o autor trabalha com riqueza de
detalhes no decorrer da obra, enfatizando sempre que a relação senhores x escravos no Brasil deu-se
de forma adversa do que ocorreu nos Estados Unidos.
O conceito de cultura é discutido por Gilberto Freyre na conferência Apologia progeneratione
sua – lida e publicada na Paraíba em 1924 – no sentido de refinamento individual ou nacional,
distinguindo-a de erudição: “Não é cultura como não é religião o que somente é aquisição ou
acumulação. Pode ser formidável ciência ou erudição, como entre nós a erudição de Rui e mesmo a de
Tobias. A cultura, no sentido em que Nietszche a elevou, tem de ser um esforço criador e – peçamos
ao grego a palavra exata – heurético. Repele soluções de simples poder aquisitivo. Ninguém provê de
semelhante cultura: cada nação, cada geração, cada indivíduo – pode-se dizer em comentário a
Randolph Bourne – tem, não direi de criar – porque no mundo da cultura não se cria de modo
absoluto, os próprios gênios, como Shakespeare, sendo grandes plagiários, quando não de outros
poetas, do povo ou do folclore em geral – mas como de recriar sua própria cultura, reformando, ou
mesmo deformando os valores recebidos de outros povos, de outras gerações, de outros indivíduos;
adaptando-os às suas necessidades; enquadrando-os a novas condições de espaço, de tempo e de
personalidade9”. Em outras palavras, cultura não se configura enquanto uma lista de itens, mas
enquanto conjunto de significados e sentidos utilizados pelos homens. A cultura seria um atributo
étnico e não racial.
Dessa forma, partindo principalmente do conceito de cultura e dos seus correlatos, na
tentativa de reconstituir e de interpretar certos aspectos da história social da família brasileira, o autor
procura estudar em Sobrados e Mucambos, principalmente, “os processos de subordinação, ao mesmo
tempo em que trabalha os de acomodação, de uma raça a outra, de uma classe a outra, de várias
religiões e tradições de cultura a uma só, que caracterizaram a formação do nosso patriarcado rural e, a
partir dos fins do século XVIII, o seu declínio ou o seu prolongamento no patriarcado menos severo
dos senhores dos sobrados urbanos e semi-urbanos; o desenvolvimento das cidades; a formação do
Império; íamos quase dizendo, a formação do povo brasileiro10”.
Para fundamentação da obra, o autor conta com farto apoio documental e teórico – como já
mencionado anteriormente – fazendo uso do que ele denomina “material quase esquecido” quais
sejam: arquivos de família, livros de assento, atas de câmaras, livros de ordens régias e de
correspondência da corte, teses médicas, relatórios, coleções de jornais, de figurinos, de revistas,
estatutos de colégios e recolhimentos, almanaques, álbuns de retratos, daguerreótipos, gravuras,
diários e livros de viajantes estrangeiros; tendo o cuidado de indicá-las com o máximo de precisão
possível, principalmente, a medida em que eram utilizadas pela primeira vez. “Verá facilmente o leitor
que esse ensaio repousa em grande parte em manuscritos de arquivos públicos e particulares e em
anúncios de jornais. Em material virgem ou quase virgem11”.
7
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento
do urbano. – 15ª ed. São Paulo: Global. (pp.40-41)
8
A partir de Casa-Grande & Senzala, obra em que G.Freyre irá trabalhar pela primeira vez com o conceito de
“cultura”, o autor utilizou-se pioneiramente no Brasil de conceitos correlatos, como os de aculturação, área
cultural, formas ou acessórios de cultura, antagonismo de cultura, traço e complexo cultural, etc. Por trabalhar
com o conceito de “cultura”, muita teóricos consideram Gilberto Freyre enquanto seguidor da École des
Annales, da qual eram integrantes Marc Bloch, Lucien Febvre , Fernand Braudel, dentre outros notáveis.
9
FONSECA, Edson Nery da. 2002. Gilberto Freyre de A a Z : Referências essenciais à sua vida e obra. Rio de
Janeiro / RJ. Fundação Biblioteca Nacional. Zé Mario Editor. (p. 54).
10
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento
do urbano. – 15ª ed. São Paulo: Global. (p.27)
11
Ibid., p.37.
615
Assim, a utilização de fontes primárias por Gilberto Freyre e o poder que o mesmo possui de
evocar o passado enquanto imagens – poderíamos afirmar que ele gosta de “pintar” as situações “com
palavras” – ajuda-nos, através de sua escrita fluente e sedutora, ligada a uma sintaxe clara e direta, a
compreender a sociedade patriarcal em decadência que caracteriza o Brasil em Sobrados e Mucambos,
e todos os seus personagens sejam, homens, mulheres, crianças, a figura do escravo e de tantos outros
protagonistas que ajudaram na construção do Brasil que conhecemos hoje.
Partindo desse pressuposto, não é difícil visualizar Sobrados e Mucambos enquanto janela que
nos convida a compreender melhor a situação da infância brasileira no período colonial , corroborando
para estudos futuros, quando não apenas nesta, mas em todas as suas obras, Freyre procura analisar o
aspecto constitutivo do Brasil do seu interior para o seu exterior e vice-versa.
Oriunda do latim, infância significa a incapacidade de falar. Essa incapacidade atribuída em
geral ao período que se chama de primeira infância, às vezes era vista como se estendendo até os sete
anos, que representaria a passagem para a idade da razão. Corsini analisa que a idade cronológica,
como fato biológico, permite inúmeras delimitações para os períodos da vida, sem ser elemento
determinante suficiente para sua definição. Infância tem o significado genérico e, como qualquer outra
fase da vida, esse significado é resultado das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas
de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de estados e de papel12.
Precisando sobre a contribuição do autor ao estudo da história da infância e na compreensão
do papel desta no período em questão, o próprio Gilberto Freyre adianta crer “ter sido o primeiro a
procurar atribuir sistematicamente à presença da mulher e do menino – e não apenas a do escravo e a
do africano – em nossa história, a importância merecida do ponto de vista sociológico ou
psicossociológico 13”. Dessa forma, torna-se fácil apreendermos que estudar a história da infância
trata-se, indiscutivelmente, de estudar a história da família, da população, da urbanização, do trabalho,
das relações de produção, etc.
É necessário ir além da descrição das origens sociais das crianças que freqüentam a instituição
e das repercussões disso sobre seu funcionamento. Trata-se de empreender a construção das relações
entre o fenômeno – histórico – da escolarização das crianças pequenas e a estrutura social. O fato
social da escolarização se explicaria em relação aos outros fatos sociais, envolvendo a demografia
infantil, o trabalho feminino, as transformações familiares, novas representações sociais da infância,
etc. 14.
No decorrer da leitura de Sobrados e Mucambos, o empreendimento dessas relações é
magnificamente construído a medida em que Gilberto Freyre não dedica única e exclusivamente um
ou dois momentos da obra para tratar da figura da criança naquele período, mas menciona a mesma no
decorrer de toda a leitura – por certo em alguns momentos enfatizando-a mais do que em outros –
mostrando a influência desta sobre o ambiente em todos os seus aspectos (culturais, sociais, político,
econômico) e vive-versa.
Já nos prefácios à 1ª e 2ª edições, nos é permitido fazer algumas inferências a respeito da
educação da infância, em especial da criança escrava, quando o autor, ao fazer um “rápido apanhado”
da obra, seus objetivos, as fontes empregadas, sua metodologia, procura explicitar como se
configuravam as relações hierárquicas e o reflexo dessas no ambiente. “A subordinação da gente de
cor, baseando-se na diferença de raça, era também uma subordinação de classe. E a ascensão de uma
classe a outra, embora muito menos áspera que em velhos países europeus ou asiáticos, não se fazia
tão facilmente, nem era possível que se fizesse, num Império escravocrático e agrário como o Brasil
(...) Essas distâncias sociais, se por um lado diminuíram com o declínio do patriarcado rural no
Brasil,através do século XIX, e com o desenvolvimento das cidades e das indústrias, por outro lado se
acentuaram – entre certos subgrupos, pelo menos – com as condições de vida industrial desenvolvidas
12
KUHLMANN JR., KUHLMANN Jr., Moysés. 1998. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. –
Porto Alegre: Mediação. (p. 16)
13
Ibid., p.101.
Eric Plaisance: 1990, p. 15 , in: KUHLMANN JR., KUHLMANN Jr., Moysés. 1998. Infância e educação
infantil: uma abordagem histórica. – Porto Alegre: Mediação.
14
616
no país, outrora quase exclusivamente agrícola; com os maiores e mais freqüentes atritos entre os
homens que a Revolução Industrial excitou em nosso meio.15”.
Tomando a casa - ponto de partida para visualização de choques entre raças, culturas, idades,
cores, e entre o sexo feminino e o masculino – como centro de interesse para o dito estudo, à medida
que o autor vai tecendo no livro as relações que se construíram no seu interior e no seu exterior – nas
ruas – vai surgindo a figura do moleque , “expressão mais viva da rua brasileira – foi se exagerando
no desrespeito pela casa. Emporcalhando os muros e as paredes com seus calungas às vezes obscenos.
Mijando e defecando ao pé dos portões ilustres e até pelos corredores dos sobrados, no patamar das
escadas16”. Reluz a figura das matriarcas – “matronas que na ausência ou fraqueza do pai ou do
marido, e dando expansão a predisposições ou característicos masculinóides de personalidade, foram
às vezes os homens das suas casas17” – e do maternalismo, verificado muitas vezes na figura das
mães-sinhás que costuravam e ensinavam órfãs a costurar, a fazer renda, doces, flores de cera e papel,
cestos, chapéus, esteiras.
Entre as figuras materna e paterna parece que, no Brasil, se desenrolou o drama de muito
menino de formação patriarcal ou tutelar, a figura materna servindo de refúgio ao temor e às vezes
terror à figura do patriarca. Esse terror ao pai patriarcal e aquele refúgio à sombra da figura da mãe e
quase sempre companheira de sofrimento ou experiências de opressão às vezes se prolongou em traços
característicos de personalidade em alguns dos homens mais representativos da antiga ordem
brasileira18.
Outras inferências sobre a educação destinada à criança podem ser visualizadas ainda na
rápida explanação que Gilberto Freyre faz nos prefácios sobre as famílias patriarcais ou tutelares que
pretenderam firmar seu domínio não só no espaço como no tempo; além de podermos precisar também
sobre informações a respeito das casas de caridade – com destaque para a casa-grande de caridade de
Ibiapina, em Olinda – escolas domésticas, reformatórios, escolas de arte e ofício entre outras
instituições criadas com o objetivo de prestar assistência à infância desvalida, aos desajustados.
Às observações feitas anteriormente, somam-se outras nos doze capítulos que perfazem
Sobrados e Mucambos e que Gilberto Freyre permite que o leitor observe com uma incrível riqueza de
detalhes no momento em que narra, as transformações que ocorriam na sociedade que aos poucos
começava a enxergar de forma diferenciada – acrescentemos, mais humana – mulheres, crianças,
negros e os estrangeiros que para cá vieram e ajudaram a construir o Brasil que temos hoje.
Mudanças sócio-culturais que se concretizavam, por exemplo, nas transformações ocorridas na
estrutura arquitetônica dos vários tipos de sobrados e mucambos que foram surgindo no decorrer do
período; no papel de destaque que a rua aos poucos foi adquirindo com suas casas comerciais,
aristocratizando-se, passando a não ser freqüentada apenas por moleques, negros , mascates; nos
cuidados e estudos sobre higiene e doenças venéreas como a sífilis; no surgimento dos cortiços; no
aparecimento de outras figuras, como o padre e posteriormente médico, que aos poucos findaram com
a figura do patriarca. Mudanças que lentamente foram permitindo que classes antes subjugadas,
ascendessem socialmente.
Gilberto Freyre procura deixar nítido em toda sua obra, a forma como ele percebe o Brasil,
país formado de um misto de culturas e raças, com destaque para influência do homem negro africano
que aqui chegou ao na condição de escravo. A este personagem o autor dedica considerável parte da
obra, na qual, assim como em Casa-grande e Senzala, “a escravidão é estudada em seus aspectos
sociológicos, históricos, antropológicos, psicológicos e lingüísticos; aparecendo pela primeira vez
15
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento
do urbano. – 15ª ed. São Paulo: Global. (pp.29-30).
16
Ibid., p.35.
17
Ibid., p.82.
18
Ibid., p.79.
617
como co-colonizador do Brasil, sendo, sob vários aspectos, superior ao indígena e ao próprio
português19”.
Em suas considerações sobre o escravo negro, o autor faz inúmeras menções à forma como
eram educadas as crianças negras que eram tidas como “pequenos bichinhos de estimação” pelos
senhores brancos, quando freqüentavam constantemente as suas casas, até atingirem a idade de seis,
sete anos quando já eram considerados aptos a desenvolver trabalhos mais pesados. Contudo, a
meninice não se fazia curta apenas para as crianças escravas, como podemos perceber no capítulo III,
O pai e o filho, que mostra a enorme distância social existente no sistema patriarcal entre estes dois
seres.
É verdade que a meninice nas sociedades patriarcais, é curta. Quebram-se logo as asas do anjo.
E deste modo se atenua o antagonismo entre o menino e o homem, entre o pai e o filho. Nos períodos
de decadência do patriarcalismo – tal como estudado nestas páginas – semelhante antagonismo não
desaparece: transforma-se, ou antes, prolonga-se, na rivalidade entre o homem moço e o homem
velho. Tamanho é o prestígio do homem feito, nas sociedades patriarcais, que o menino, com
vergonha da meninice, deixa-se amadurecer, morbidamente, antes do tempo. Sente gosto na
precocidade que o liberta da grande vergonha de ser menino. Da inferioridade de ser párvulo. O rapaz
imita o velho desde a adolescência20.
Segundo o autor, até seis ou sete anos, as crianças eram adoradas, sendo que quando morriam
nesta idade, era motivo de festa, pois se tornariam anjos “ao lado do senhor”. Desta idade até os dez
anos ele passava a menino-diabo, “criatura estranha que não comia na mesa nem participava de modo
nenhum da conversa da gente grande. Tratado de resto21”. A partir desta idade, ganhavam o status de
serem “homens”. Esse ideal era reforçado no colégio de padres, quase sempre localizado em sobrados
enormes. Ao padre, assim como a outros mestres, era dada a autorização pelos pais das crianças, para
que os mesmos exercerem o poder patriarcal a “castigá-los com vara de marmelo e palmatória22“.
Toda aquela cultura precoce e um tanto tristonha, era imposta aos mais inteligentes e conseguida,
sacrificando-se na criança sua meninice, por meio de castigos e privações que abafava na criança a sua
espontaneidade. Verifica-se aí, a existência de colégios internos, conventos e seminários, onde comiase mal,havia muito jejum e seus internos ficavam à mercê do sadismo de seus mestres.
O fato é que diferentes discursos produzidos pelo universo adulto enquadraram a criança e o
adolescente, determinando os espaços que eles poderiam freqüentar e estabelecendo os princípios e
conceitos norteadores de seu crescimento e educação. Paralelamente, era a rotina do mundo que
ordenava o cotidiano infantil e juvenil por meio de um conjunto de procedimentos e práticas aceitos
como socialmente válidos. 23
Em Sobrados e Mucambos, aprendemos que o domínio do pai sobre o filho menor – e mesmo
maior – fora no Brasil patriarcal aos domínios ortodoxos: ao direito de matar. O patriarca tornara-se
absoluto na administração da justiça de família, repetindo alguns pais, à sombra dos cajueiros de
engenho, os gestos mais duros do patriarcalismo clássico: matar e mandar matar, não só os negros –
alvos de pancadas desde a mais tenra idade – como os meninos e as moças brancas, seus filhos.24
No que se refere à educação feminina, o que podemos perceber na obra, principalmente no
capítulo IV – A Mulher e o Homem – é que, durante muito tempo ficou restringida ao aprendizado das
necessidades básicas para se tornarem boas esposas e mães. “De modo mais geral, o homem foi,
dentro do patriarcalismo brasileiro, o elemento móvel, militante e renovador; a mulher, o conservador,
o estável, o de ordem. O homem, o elemento de imaginação mais criadora e de contatos mais diversos
e, portanto, mais inventor,mais diferenciador, mais perturbador da rotina. A mulher, o elemento mais
19
FONSECA, Edson Nery da. 2002. Gilberto Freyre de A a Z : Referências essenciais à sua vida e obra. Rio de
Janeiro / RJ. Fundação Biblioteca Nacional. Zé Mario Editor. (p. 66).
20
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento
do urbano. – 15ª ed. São Paulo: Global. (p.177).
21
Ibid., p.179
22
Ibid., p.180.
23
MAUAD, Ana Maria. “A vida das crianças de elite durante o Império”. In: PRIORE, Mary Del. (org.). 2004.
História das crianças no Brasil. 4ª ed. São Paulo.Contexto.(p.140).
24
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento
do urbano. – 15ª ed. São Paulo: Global. (p.179).
618
realista e integralizador. A própria perturbação das modas femininas, dominantes em nossa sociedade
patriarcal, pelas modas inglesas e, principalmente, pelas francesas foi, em parte, subproduto da
influência de rapazes brasileiros que iam estudar leis, medicina,filosofia, comércio, nos centros
europeus e vinham cheios de novidades, algumas das quais, comunicaram às mulheres.
Estas,lentamente, foram ganhando direito a estudar em instituições destinadas somente a elas ,que não
em suas habitações25”.
Da falta de feminilidade de processos – na política, na literatura, no ensino, na assistência
social, em outras zonas de atividade – ressentiu-se a vida brasileira, através do esplendor e
principalmente do declínio do poder patriarcal. Só muito aos poucos é que foi saindo da pura
intimidade doméstica, um tipo de mulher mais instruída, para substituir a mãe ignorante e quase sem
outra repercussão sobre os filhos que a sentimental, da época de patriarcalismo ortodoxo26. No
decorrer desse período e mesmo durante a decadência deste, “nunca os dois sexos se ajustaram numa
criação comum, de significado político ou literário. Nada que se aproximasse de inteligente ação
extradoméstica da mulher, através do marido, do filho, do irmão, com quem ela colaborasse ou a quem
estimulasse por meio de uma simpatia docemente criadora. Nunca em uma sociedade aparentemente
européia, os homens foram tão só no seu esforço, como os nossos no tempo do Império; nem
unilaterais na sua obra política, literária, científica. Unilaterais pela falta, não tanto de inspiração de
mulher – que esta houve, e das mais intensas, sobre os poetas e romancistas do Império – mas do que
se poderia chamar simpatia criadora27”.
Para os desvalidos e desafortunados da sorte, percebemos em Gilberto Freyre a existência de
instituições de caridade quase sempre dirigidas por padres que não pensavam duas vezes nas horas de
se fazer exigir a disciplina. E toda hora era hora. No caso do “belo sexo”, o autor menciona a
existência de estabelecimentos de correção ou conventos, onde ficavam reclusas mulheres e moças –
não necessariamente más de vida – que deram algum “grave motivo” aos pais e/ ou maridos, variando
os mesmos desde a simples suspeita de namoro, a maridos que se livravam das esposas sem nenhum
motivo aparente, simplesmente para pôr uma amante no lugar, para tanto, bastava ao seu “senhor”
pagar o custo de suas despesas. Dentre essas casas de caridade se enquadravam às santas casas ou
casas de misericórdia. “Porque a função destas boas casas tem sido antes de socorro aos doentes, aos
pobres e aos órfãos que a de aproveitamento dos desajustados ou renegados do sistema dominante. Ou
a de integração destes desajustados ou renegados num sistema novo de indústrias e atividades
independentes da organização patriarcal28”.
Meninos órfãos, bastardos, cablocos e mamelucos que a caridade dos religiosos recolhia ou a
sabedoria do Estado Português dos tempos coloniais, antecipando-se a idéias moderníssimas,
distribuíam os mesmos entre as famílias dos homens de bem. “Famílias, a quem as câmaras pagavam
um tanto de subvenção para criar os meninos29”. Alguns enjeitados foram depois se educar com os
padres, estes distribuídos em sadistas e aqueles portadores de bom gênio e modos de moça.
Destarte, apesar dos quadros descritos acima sobre a infância parecer um tanto “assombroso”,
é importante ressaltar que neste período, a visão que se tinha da criança e da infância já havia evoluído
de forma mais positiva, não só em outras partes do mundo como também do Brasil. “As relações entre
adultos e crianças reorganizam-se em todas as instituições: na família, nas escolas e nas instâncias de
higiene pública. O papel das crianças na família traz novas regras para pais e filhos. Não é apenas uma
questão de sorrisos e brincadeiras. A família se ocupa como nunca antes em cuidar da saúde dos
filhos. As novas leis morais se concentram na higiene, na amamentação direta pelas mães, na
vestimenta cuidada e pulcra, em exercícios para o bom desenvolvimento do corpo, e toda uma série de
cuidados afetivos que estreitam os laços entre pais e filhos. Surge uma nova conjugalidade que se
25
Ibid., p.217.
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento
do urbano. – 15ª ed. São Paulo: Global. (p.225).
27
Ibid. P.229.
28
Ibid. P.85.
29
Ibid. P.187.
26
619
organiza não tanto para unir dois adultos, senão para servir de matriz a esse futuro adulto que os pais
cuidam como nunca30”.
Outros aspectos sobre a educação da infância no Brasil colonial podem ser visualizados direta
e indiretamente, nas narrativas que Gilberto Freyre realiza sobre a culinária; a arquitetura local; os
modismos vigentes no período; a vinda de imigrantes estrangeiros – incluindo a vinda do negro
escravo para o Brasil - as observações que eram feitas pelos médicos sanitaristas sobre higiene,
alimentação e saúde; os relatos sobre raptos de moças, bigamia, prostituição, homossexualismo, dentre
inúmeros outros acontecimentos que se encontram à espera de um pesquisador curioso por desvendar,
mais detalhadamente, os fatos que construíram o nosso passado.
O que houve de região para região, de área para área, de subárea para subárea, dentro do
complexo patriarcal no Brasil, repita que foi diferença antes de intensidade que de qualidade de
característicos comuns aos vários tipos de sociedades baseadas sobre a monocultura latifundiária e
patriarcal. Dentro desses característicos comuns é que se formou e se desenvolveu a sociedade
brasileira nas áreas mais antigas de colonização da América: a do açúcar, a do couro e a do cacau.
Depois, nas do café, do ouro, da borracha, houve zonas ou áreas de exceção: porém insignificantes do
ponto de vista sociológico ou histórico-social que não deve ser confundido nunca – acentue-se mais
uma vez – com o etnográfico31.
De posse de um método ametódico, Freyre nos falou de um Brasil que existiu e, de certa
forma, ainda existe. Se ele distribuiu os atores sociais com maior ou menor adequação, é outra coisa.
Até porque esses atores se movem o tempo todo, segundo pressões materiais e impressões subjetivas.
É chegada a hora de enfatizar os valores da obra de Gilberto Freyre, cujo forte é a correlação e não a
dicotomia, como muitos insistem em ver.
Ainda assim, apesar de, nas entrelinhas, podermos perceber o quanto a obra de Freyre é atual,
mesmo passados muitos anos de sua publicação, não podemos esquecer que todo discurso é fruto do
seu tempo e, as obras deste autor não escapam a essa máxima. Precisamos levar em consideração o
fato de que, “em diferentes épocas históricas, diferentes sujeitos formulam diferentes sentidos a partir
de urgências sóciopolíticas geradas por seu presente. Dessa perspectiva, verdades / realidades sobre os
acontecimentos históricos de uma determinada época podem ser buscadas tanto no que dela disseram
os sujeitos dessa época e os intérpretes posteriores tanto no que o investigador, hoje diz –
interpretando – desses intérpretes e daquela época32”.
Finalizo este artigo chamando atenção para a necessidade de reconstruir o objeto da infância,
em alguma medida, não apenas pela aquisição de novas respostas, mas pela necessidade de novas
indagações. Ainda sabemos muito pouco sobre a história da criança; sobre a frágil, poderosa
promissora condição de ser criança.
Referências Bibliográficas
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Rio de Janeiro / RJ. Fundação Biblioteca Nacional. Zé Mario Editor.
FREYRE, Gilberto (1900-1987). 2004. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado e
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2004. História das crianças no Brasil. 4ª ed. São Paulo.Contexto.
MONARCHA, Carlos. 1999. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp.
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A Infância Vivida em Sobrados e Mucambos: Um Olhar Através de