Gilberto Freyre em exposição No aniversário de vinte anos da morte do sociólogo, o Museu da Língua Portuguesa apresenta exposição em que o que conta são as marcas de estilo do autor de Casa-grande & Senzala Fátima Quintas Depois de ampliar a temporada da exposição em homenagem a Clarice Lispector, o Museu da Língua Portuguesa lança este novembro uma exposição inteiramente dedicada ao sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987). A curadoria é de Julia Peregrino, a mesma do tributo a Clarice feito pelo museu até o mês passado. A cenografia é de André Cortez e a consultoria, do antropólogo Gilberto Velho, do presidente da ABL Marcos Villaça e dos pesquisadores Pedro Vasquez e Elide Rucai. Passados vinte anos de sua morte, uma dezena de lançamentos e reedições de obras de Freyre vieram à tona, como Casa-grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Nordeste, Ordem e Progresso, Açúcar e Olinda (Global Editora). Acaba de ser lançada também Gilberto Freyre: uma Biografia Cultural (Civilização Brasileira, R$ 80), de Enrique Rodríguez Larreta e Guillermo Gucci. As edições põem em debate o papel do pernambucano nos estudos da cultura brasileira. Mais: mostram a exuberância e a consciência de estilo de um dos grandes intelectuais brasileiros do século passado. Para lembrar esta faceta de sua linguagem, Língua pediu a Fátima Quintas e a Edson Nery da Fonseca, especialistas em Freyre, que traçassem a relação do sociólogo com a linguagem. Serviço Gilberto Freyre - O Intérprete do Brasil Museu da Língua Portuguesa (www.museudalinguaportuguesa.org.br) Estação da Luz, s/nº, São Paulo. (11) 3326-0775 De 27 de novembro a maio de 2008. Terça a domingo, das 10h às 17h Ingresso: R$ 4. Gratuita até 10 anos, e professores do ensino público. Sábados, grátis A senzala fez o idioma A Linguagem usada por sociólogo morto há vinte anos virou pretexto para crítica a sua obra Por Fátima Quintas Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, representa uma autobiografia coletiva, linguagem romanesca com semelhanças ao "roman vrai" dos irmãos Goncourt, autores de Histoire de la Société Française pendant la Révolution (1854), que defendiam a histoire sociale, no tempo em que esta não era levada a sério, na França e em outros lugares. A Edouard e Jules de Goncourt devese a expressão histoire intime. Em Casa-grande & senzala, Freyre se coloca como espelho de si e da gente que vê entre rostos projetados. Sua metodologia rejeita os convencionalismos de uma era em que o positivismo de Comte referendava a ideologia de um Brasil republicano (1889). Início de século 20: os eflúvios franceses persistiam e se solidificavam na legenda cívica da bandeira - Ordem e Progresso. Mais uma vez Freyre se deparou com a incompreensão de um Brasil estampado em preto e branco, avesso a reformulações na ciência social, menos ainda na literatura científica. O livro chocou. Os ataques expandiram-se. Da linguagem coloquial e sensual, instigante, à ousadia da "técnica inovadora". O texto era indecente, bradavam uns. O método era questionável, reforçavam os adeptos do quantitativismo. A linguagem era superlativamente literária, reclamavam os cientificistas. Trabalho inconcluso, sem arremates, finalizações. Os ecos soavam de toda parte. E a intolerância sugeriu queimar a obra, em repúdio às idéias, ao estilo, lírico em algumas passagens e aguerrido em outras; um estilo que se respaldava em vivas metáforas, de ordem poética e de crueza ostensiva - traçado não-linear de estrutura narrativa. Se Gilberto Freyre se definiu como escritor, a ele não faltaram preocupações com a linguagem no Brasil. Remonta ao passado para entender a gênese da nossa expressão verbal. O falar abrasileirado carrega uma mistura do popular com o erudito: "Sucedeu, porém, que a língua portuguesa nem se entregou de todo à corrupção das senzalas, no sentido de maior espontaneidade de expressão, nem se conservou acalafetada nas salas de aula das casas-grandes sob o olhar duro dos padres-mestres. A nossa língua nacional resulta da interpenetração das duas tendências. Devemo-la tanto às mães Bentas e às tias Rosas como aos padres Gamas e aos padres Pereiras (Freyre, Casagrande & Senzala, 2000, p. 389). Na casa-grande, a linguagem eclodiu ditatorial, forte, autoritária, manifestação de hegemonia. O uso seco dos imperativos; a ordem; a imposição; a firmeza do mando. Na senzala - e sobremaneira entre negros do doméstico -, predominou a docilidade do falar, a dolente súplica, a delicadeza do pedido, tentativa de proteger-se, por trás de uma "muralha" lingüística, dos freqüentes autoritarismos. O Brasil se favoreceu com a simbiose de códigos. O verbo se amoleceu na palavra invocativa da negra. O "me dê" no lugar do "dê-me". A antecipação do pronome converteu a ordem em súplica social e desmontou as confrarias lingüísticas em vigência. Um peso que permeou o cotidiano, enriquecendo as combinações da casa-grande. Duas tendências andaram, às vezes, em trilhos paralelos, às vezes, em estradas unificadas: a do lusitano e a da africana. Uma e outra indicando posições extremadas, que se congratulavam na musicalidade do português abrasileirado. O amálgama de duas correntes opostas, uma coloquial, a outra, cerimoniosa, favoreceu a fusão de núcleos em contradição. Da senzala advieram os ruídos da opressão, os gestos de humildade e de persuasão, tão irmanados à lógica da subalternidade. Não houve, como diria Paulo Freire, "inserção crítica". Não se detectou tomada de consciência por parte do oprimido. Ocorreu uma "inserção doméstica" possibilitadora da infiltração de valores no campo privado. Não há melhor situs de atuação que o da privacidade. Nesse átrio receptivo, tudo se dilui em mensagens invisíveis, absorvidas involuntariamente, sem reações ou decodificações mais apuradas. A negra, ao transitar nos corredores da família patriarcal, sedimentou uma simbologia de todo especial para o sistema de trocas. O estado de "imersão" evoluiu para o estado de "emersão". Os trâmites não foram abandonados; ao contrário, foram usados na dialética objetividade-subjetividade. Abrandamentos A negra amaciou a linguagem, deu-lhe singeleza, tempero. Tratou-a com preciosismo, retirando-lhe a fereza das palavras e o ranço antipático das expressões: "faça-me isso"; "dê-me aquilo", "diga-me o que fez". Amassou-a para acomodar sílabas refratárias à boca da criança, facilitando tons e semitons de complicada degustação. As mudanças se iniciaram pela linguagem infantil. Em tese, a criança dá melhor acolhida às rupturas de uma sociedade cristalizada em normas antigas. A meninada bebeu o que lhe brindaram como novo arranjo léxico. Conjugação de sílabas com recursos facilitadores. Nada de severidade. Assim, as palavras chegavam aos meninos já liquefeitas. Sem espinhos, com candura e desvelo para que nhonhôs e sinhazinhas não tivessem dificuldade de pronunciar os agrestes fonemas. Quase como uma cantiga de ninar. Veio o abrandamento: "dói" passou a "dodói", dengoso vocábulo que roga por carinho. "A ama negra fez com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. (...) As Antônias ficaram Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinho, Mandus, Manés; os Franciscos, Chico, Chiquinho, Chico" (Casa-grande & Senzala, 1966, p. 356). No Brasil colônia, o lusitano portou-se, no discurso, a referendar a herança aristocrática. A gramática foi usada como escudo de uma categoria de classes, exibindo vetores de uma fala culta, a seu modo coativa, com o intuito de ratificar os ângulos da estratificação. No mundo da bagaceira, a língua escrita foi uma; a falada, outra. Essa dicotomia teve apoio dos jesuítas, que tentaram instituir a elite não só social, mas cultural. O fosso aumentava entre negros e brancos e entre homens e mulheres. Eram analfabetas, mesmo as arianas. A escrita denunciava diferenças da oralidade. Estabelecia-se a divisão entre os que escreviam o português europeu e o brasileiro, com vocábulos africanos e tupis. Escrita e fala Se a escrita proliferou na casa-grande só entre patriarcas, padres-mestres, mestres-escolas, capelães, ocupando lugar à parte, a língua falada se dividiu em fatias desiguais: a dos senhores e a dos nativos ou escravizados. A primeira, oficial; a outra, abaixo dos critérios de aceitação, embora fluente e influente na ciranda diária. As mães negras, as mucamas e o clima - um aliado - fizeram com a língua um trabalho de artesão. O clima enlanguesceu o homem, amoleceu a linguagem e espichou o tempo em apreciável lerdeza. A lassidão do agir associou-se à linguagem, fê-la vagarosa, farta de langor. As negras, filhas do Sol, albergaram como ninguém o sentido saudável da indolência. E os ss e os rr sintetizaram o alvo mais atingido na conversão de um português autêntico para um português vívido e mutante, sem adornos e estilismos fora dos eixos socioecológicos, culturais e geográficos. O vernáculo de estufa não vingou. O hibridismo venceu o português de origem. Nem padres nem gramáticos obtiveram sucesso na imposição de indeclináveis conceitos. Cederam às pressões. Se não cederam, aceitaram-nas de mau grado, mas aceitaram-nas. A vitória recaiu na boca do povo. Fátima Quintas é antropóloga, autora de Segredos da Velha Arca e organizadora de O Cotidiano em Gilberto Freyre O estilo de Gilberto Freyre O Sociólogo gostava de escrever como se exibisse uma pintura ou um filme, e não dispensava a enumeração caótica de elementos para melhor caracterizar um tema Edson Nery da Fonseca A Universidade Baylor (Waco, Texas), onde Gilberto Freyre fez graduação, não é tão conhecida e importante como Harvard, Yale, Columbia, Princeton ou Berkeley. Baylor teve, entretanto, um professor do mais alto nível. Joseph Armstrong era especializado em literatura vitoriana e apaixonado pelo casal de poetas Robert e Elizabeth Browning. Armstrong construiu em Baylor uma verdadeira catedral do livro: a Browning Library, objeto de verbete na Enciclopédia Britânica. E atraía para a universidade alguns dos mais importantes escritores norte-americanos, como Amy Lowell, figura exponencial do imagismo nas literaturas de língua inglesa. O imagismo foi um movimento iniciado na Inglaterra por Thomas Ernest Hulme (1883-1917) em reação às representações vagas do simbolismo. Amy Lowell foi imagista em sua poesia e na difusão do movimento. Freyre ficou encantado com uma conferência de Lowell sobre Walt Whitman, tendo escrito sobre ela um artigo publicado por Armstrong num jornal de Waco: artigo ampliado em capítulo de Vida, Forma e Cor (1962). Estão aí as raízes do imagismo freyriano: influência de Lowell. A "enumeração caótica" - expressão criada por Leo Spitazer em ensaio sobre Whitman - ele herdou tanto do autor de Leaves of Grass como de outro poeta, Vachel Lindsay, que conheceu em Nova York, em 1922, quando fazia pós-graduação na Universidade Columbia. Há nos primeiros artigos de Gilberto Freyre (1918-1922) - reunidos nos dois volumes de Tempo de Aprendiz (1979) - exemplos de imagismo. No poema "Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados" há casos tanto de imagismo como de "enumeração caótica". Manuel Bandeira - que o considerava "um dos mais belos do ciclo das cidades brasileiras" - reproduziu-o em Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos (1946). No ensaio "Gilberto Freyre poeta" - da coletânea Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte (1962) - comentou as versões do poema: versões reproduzidas no póstumo de Freyre Bahia e Baianos (1990). Note-se que o poema é de 1926: antes, portanto, da exaltação de valores baianos por Ary Barroso e Dorival Caymmi. O hoje esquecido brasilianista norte-americano William Berrien salientou o imagismo no poema. Lembre-se a influência da "enumeração caótica" de Whitman e, sobretudo, a de Lindsay. Em alguns versos são evidentes as influências. Em conferência lida na Faculdade de Direito do Recife, em 24 de maio de 1934, e publicada no mesmo ano, há uma "enumeração caótica" na qual Freyre exemplifica seus variados contatos nos EUA fora da rotina pedagógica de leituras, aulas, seminários e laboratórios. É uma enumeração entre travessões que se estende por páginas, obrigando o leitor a voltar ao início da frase para melhor entendê-la. Lembre-se que Freyre usou muito travessões, em vez de parênteses, para acrescentar informações adicionais sem alterar a estrutura sintática das frases. Imagismo e enumeração No prefácio à primeira edição de Casa-grande & Senzala, Freyre definiu seu livro como "ensaio de sociologia genética". Mas logo nesse prefácio ele seduz o leitor com a linguagem e o estilo de um ensaísta literário. O imagismo desponta quando o autor se refere à escassez, no Brasil, de diários íntimos que, entretanto, abundam em países de formação protestante, como que substituindo o confessionário dos católicos. Escreve ele, numa frase ao mesmo tempo enumerativa e imagística: "Em compensação, a Inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da era colonial, sobre alcovas com camas que em geral parecem ter sido de couro, rangendo às pressões dos adultérios e dos coitos danados, sobre as camarinhas e os quartos de santos, sobre as relações de brancos com escravos - seu olho enorme, indagador". É impressionante a imagem de um "olho" que, além de "enorme, indagador", está "escancarado" sobre alcovas, camarinhas, quartos de santos e relações de brancos com escravos. O verbo "escancarar" - abrir de par em par, expor, mostrar, exibir, franquear - muito usado para indicar abertura de portas e janelas - exerce papel insólito na frase, pois o comum seria estar o olho aberto, arregalado e, no máximo, esbugalhado. Aqui ele está "escancarado", como o jato de luz de um holofote na escuridão acobertadora de adultérios, coitos danados e relações de brancos com escravos. Ao longo do livro há imagens como essa, de grande poder expressivo, não havendo capítulo em que não apareçam, dando-nos a impressão de ver o que estamos lendo. Luis Jardim, no prefácio a Artigos de jornal (1935) - que parece ter sido escrito pelo próprio Freyre - assinala que é "neste uso de imagens para exprimir idéias, quase sensualmente, como se a palavra não bastasse" que consiste a forma da expressão freyriana. As cartas de Freyre a Amy Lowell conservadas na Houghton Library, de Harvard - e as da poetisa a ele - hoje na Fundação Gilberto Freyre - mostram como um brasileiro absorveu o imagismo. Para mostrar, no segundo capítulo de Casa-grande & Senzala, como "o ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual", Freyre escreve como se estivesse pintando, fotografando ou filmando colonizadores e evangelizadores descendo das caravelas: "O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia [de Jesus] precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne". Note-se a força dos verbos "saltar" - muito mais expressivo do que "desembarcar" -, "escorregar" e "atolar", os dois últimos usados tanto em sentido literal como no figurado, pois também se escorrega e se atola nos chamados pecados contra a castidade. Baralhos No terceiro capítulo de Casa-grande & Senzala, o autor mostra como foi decepcionante para a Coroa defrontar-se com terras de pau-de-tinta após as riquezas descobertas por Vasco da Gama na Índia. Surgem, a propósito, duas imagens surpreendentes, uma profana - a do baralho - e outra religiosa: a da humilde aldeia da Galiléia na qual viveu Jesus com seus pais. "O Brasil foi como uma carta de paus puxada num jogo de trunfo em ouros. [...] Só em nova fase de atividade portuguesa - a propriamente colonizadora, a do fim do século XVI e parte do século XVIII - o Brasil teria força de trunfo no jogo das competições imperialistas das nações européias". No bojo da imagem religiosa vem outra também forte: a de "estilhaços do bloco de gente nobre" aplicada ao rebotalho humano que sobrou da aventura da Índia: "Colônia fundada quase sem vontade, com um sobejo apenas de homens, estilhaços do bloco de gente nobre que só faltou ir inteira do reino para as Índias, o Brasil foi a Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nem prata. Somente pau-de-tinta e almas para Jesus Cristo". Redes e palmeiras Analisando uma página de Sobrados e Mucambos - obra por ele considerada como superior a Casa-grande & Senzala - Otto Maria Carpeaux falou da "grande metáfora das palmeiras": as que vicejam gloriosas sobre túmulos de jovens vítimas da febre amarela nos cemitérios ingleses do Brasil; as majestosas palmeiras representariam a vitória dos trópicos sobre o nórdico invasor. Outra metáfora de Gilberto Freyre é a da rede, símbolo da vida ociosa dos patriarcas. Está no último capítulo de Casa-grande & Senzala e, apesar dos verbos chulos que nela aparecem, trata-se de uma das mais belas páginas da prosa em língua portuguesa (ver página 42). Dessa página escreveu o poeta e ensaísta português David Mourão Ferreira, num capítulo de Sob o mesmo tecto: estudos sobre autores de língua portuguesa (1989): "Quadro implacável, quadro mesmo terrível. Mas quadro que não pode nem deve fazer-nos esquecer, para lá da repulsa que o modelo nos provoque, a genial mestria de seu pintor". Ciência e literatura Além do imagismo e da enumeração caótica, Casa-grande pode ser caracterizada como obra ao mesmo tempo científica e literária por sua saborosa prosa, seu estilo musical, sua pontuação original, pela sábia utilização de expressões eruditas e populares, científicas e coloquiais. A locução adverbial "de meia-tigela", por exemplo, aparece no prefácio à primeira edição quando o autor se refere aos arremedos de diários íntimos que são os cadernos com anotações de mexericos escritas por esquisitões, que define como "Pepys de meia-tigela", associando a uma expressão popular o nome do diarista inglês Samuel Pepys. Álvaro Lins dizia que mesmo eventualmente superada em suas sugestões por avanços nas ciências em que se baseia - antropologia, biologia, psicologia, sociologia - Casa-grande subsistiria como obra literária. Falei em "sugestões" porque Freyre não gostava de "conclusões", tendo escrito que "a verdadeira ciência é humilde, ficando a ênfase para a meia-ciência". Ele próprio o confessou no prefácio à 4ª edição da obra - definida pelo editor como "definitiva": "definitiva dentro da relatividade que condiciona e depende, em grande parte, de novos avanços nas várias ciências e estudos em que se baseia. Isto sem falar nos aspectos, porventura ainda mais flutuantes, de sua subjetividade. As idéias e atitudes do Autor. Seus pontos de vista. Os personalismos em que às vezes se alongam suas interpretações". Enumerações negativas As enumerações freyrianas podem ser classificadas em afirmativas - como as até aqui citadas - e negativas: as usadas para caracterizar personalidades pelo que não foram e fatos não ocorridos. Na conferência Atualidade de Euclydes da Cunha (1041) - reproduzida no livro Perfil de Euclydes e outros Perfis (1944) - ele adotou a enumeração negativa: "Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, assai, sopa de tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem canários do Império, nem caçadas de onça ou de anta nas matas das fazendas. Nem banhos nas quedas-d'água dos rios de engenho - em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente brasileiras Euclydes da Cunha se fixou. Nem mesmo no gosto de conversar e de cavaquear às esquinas ou à porta das lojas - tão dos brasileiros: desde a rua do Ouvidor à menor botica no centro de Goiás." São tantos e variados os problemas de medicina, em geral, e de alimentação, em particular, estudados por Freyre em Casa-grande & Senzala que ao ler sua primeira edição o professor Antonio da Silva Melo (1886-1973) pensou ser o autor, como ele, médico. É o que o fundador da Faculdade Nacional de Medicina escreveu em sua contribuição a Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte. Por isso, Freyre foi convidado a prefaciar seu Problemas de Ensino Médico e de Educação (1937): uma das centenas de seus prefácios para outros autores, alguns médicos (Prefácios Desgarrados, 1978). Caos na medicina Em 1967 a Fundação Calouste Gulbenkian editou em Lisboa Sociologia da Medicina, de Freyre, depois reeditado no Brasil pela editora Globo como Médicos, Doentes e Contextos Sociais (1983). É nesse livro - desconhecido no Brasil, mas traduzido em italiano em 1975 pela Rizzoli, de Milão, com o título original (Sociologia della medicina) - que se encontra um dos mais expressivos exemplos de enumeração caótica. Em "Civilização do Homem Sentado", notese o fim inesperado e dramático da enumeração. Porém, a mais longa enumeração caótica do ensaísmo freyriano está no capítulo "Tentativa de Síntese" de Ordem e Progresso (1959). O assunto do livro é uma interpretação do fim do século 19 e advento do 20. Em "O 1900 brasileiro", Freyre enumera um número considerável de traços de cultura material e moral (a palavra "cultura" entendida em seu sentido antropológico) que caracterizaram o 1900 brasileiro. A numeração caótica se estende por seis páginas da sexta edição (2004). O autor chega a mencionar - entre hábitos, devoções, tipos de habitação, veículos, leituras, perfumes, sabonetes, doenças, remédios, diversões, latrinas, bidés, escarradeiras, esportes, brinquedos, roupas, chapéus, anúncios, leituras, livros, revistas, jornais, roupas, sapatos, móveis, alimentos, prostitutas estrangeiras, engraxates etc. "a voga do ataque histérico entre senhoras burguesas, à saída de enterros e em face de outras situações dramáticas" (sexta edição, pp. 160-165). Volto ao curso seguido por Freyre na Universidade Baylor. O professor Armstrong ficou tão impressionado com o inglês de Freyre que o aconselhou a adotar a cidadania norte-americana, acenando com a promessa de cobiçada bolsa em Oxford: a Rhodes Scolarship. Chegou a citar a seu aluno o caso de Joseph Conrad, que, nascido na Polônia, tornou-se grande escritor em língua inglesa. Freyre recusou a sugestão, tendo anotado em seu diário: "Se tiver de ser escritor, meu dever é escrever em língua portuguesa" (cf. Tempo Morto e Outros Tempos. 2ª edição revista. São Paulo: Global, p. 65). E foi o que aconteceu: ele tornou-se um dos maiores ensaístas do nosso idioma. Edson Nery da Fonseca é pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco e professor emérito da UnB, autor de Em torno de Gilberto Freyre (Massangana) AUniversidade Baylor (Waco, Texas), onde Gilberto Freyre fez graduação, não é tão conhecida e importante como Harvard, Yale, Columbia, Princeton ou Berkeley. Baylor teve, entretanto, um professor do mais alto nível. Joseph Armstrong era especializado em literatura vitoriana e apaixonado pelo casal de poetas Robert e Elizabeth Browning. Armstrong construiu em Baylor uma verdadeira catedral do livro: a Browning Library, objeto de verbete na Enciclopédia Britânica. E atraía para a universidade alguns dos mais importantes escritores norte-americanos, como Amy Lowell, figura exponencial do imagismo nas literaturas de língua inglesa. O imagismo foi um movimento iniciado na Inglaterra por Thomas Ernest Hulme (1883-1917) em reação às representações vagas do simbolismo. Amy Lowell foi imagista em sua poesia e na difusão do movimento. Freyre ficou encantado com uma conferência de Lowell sobre Walt Whitman, tendo escrito sobre ela um artigo publicado por Armstrong num jornal de Waco: artigo ampliado em capítulo de Vida, Forma e Cor (1962). Estão aí as raízes do imagismo freyriano: influência de Lowell. A "enumeração caótica" - expressão criada por Leo Spitazer em ensaio sobre Whitman - ele herdou tanto do autor de Leaves of Grass como de outro poeta, Vachel Lindsay, que conheceu em Nova York, em 1922, quando fazia pós-graduação na Universidade Columbia. Há nos primeiros artigos de Gilberto Freyre (1918-1922) - reunidos nos dois volumes de Tempo de Aprendiz (1979) - exemplos de imagismo. No poema "Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados" há casos tanto de imagismo como de "enumeração caótica". Manuel Bandeira - que o considerava "um dos mais belos do ciclo das cidades brasileiras" - reproduziu-o em Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos (1946). No ensaio "Gilberto Freyre poeta" - da coletânea Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte (1962) - comentou as versões do poema: versões reproduzidas no póstumo de Freyre Bahia e Baianos (1990). Note-se que o poema é de 1926: antes, portanto, da exaltação de valores baianos por Ary Barroso e Dorival Caymmi. O hoje esquecido brasilianista norte-americano William Berrien salientou o imagismo no poema. Lembre-se a influência da "enumeração caótica" de Whitman e, sobretudo, a de Lindsay. Em alguns versos são evidentes as influências. Em conferência lida na Faculdade de Direito do Recife, em 24 de maio de 1934, e publicada no mesmo ano, há uma "enumeração caótica" na qual Freyre exemplifica seus variados contatos nos EUA fora da rotina pedagógica de leituras, aulas, seminários e laboratórios. É uma enumeração entre travessões que se estende por páginas, obrigando o leitor a voltar ao início da frase para melhor entendê-la. Lembre-se que Freyre usou muito travessões, em vez de parênteses, para acrescentar informações adicionais sem alterar a estrutura sintática das frases. Imagismo e enumeração No prefácio à primeira edição de Casa-grande & Senzala, Freyre definiu seu livro como "ensaio de sociologia genética". Mas logo nesse prefácio ele seduz o leitor com a linguagem e o estilo de um ensaísta literário. O imagismo desponta quando o autor se refere à escassez, no Brasil, de diários íntimos que, entretanto, abundam em países de formação protestante, como que substituindo o confessionário dos católicos. Escreve ele, numa frase ao mesmo tempo enumerativa e imagística: "Em compensação, a Inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da era colonial, sobre alcovas com camas que em geral parecem ter sido de couro, rangendo às pressões dos adultérios e dos coitos danados, sobre as camarinhas e os quartos de santos, sobre as relações de brancos com escravos - seu olho enorme, indagador". É impressionante a imagem de um "olho" que, além de "enorme, indagador", está "escancarado" sobre alcovas, camarinhas, quartos de santos e relações de brancos com escravos. O verbo "escancarar" - abrir de par em par, expor, mostrar, exibir, franquear - muito usado para indicar abertura de portas e janelas - exerce papel insólito na frase, pois o comum seria estar o olho aberto, arregalado e, no máximo, esbugalhado. Aqui ele está "escancarado", como o jato de luz de um holofote na escuridão acobertadora de adultérios, coitos danados e relações de brancos com escravos. Ao longo do livro há imagens como essa, de grande poder expressivo, não havendo capítulo em que não apareçam, dando-nos a impressão de ver o que estamos lendo. Luis Jardim, no prefácio a Artigos de jornal (1935) - que parece ter sido escrito pelo próprio Freyre - assinala que é "neste uso de imagens para exprimir idéias, quase sensualmente, como se a palavra não bastasse" que consiste a forma da expressão freyriana. As cartas de Freyre a Amy Lowell conservadas na Houghton Library, de Harvard - e as da poetisa a ele - hoje na Fundação Gilberto Freyre - mostram como um brasileiro absorveu o imagismo. Para mostrar, no segundo capítulo de Casa-grande & Senzala, como "o ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual", Freyre escreve como se estivesse pintando, fotografando ou filmando colonizadores e evangelizadores descendo das caravelas: "O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia [de Jesus] precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne". Note-se a força dos verbos "saltar" - muito mais expressivo do que "desembarcar" -, "escorregar" e "atolar", os dois últimos usados tanto em sentido literal como no figurado, pois também se escorrega e se atola nos chamados pecados contra a castidade. Baralhos No terceiro capítulo de Casa-grande & Senzala, o autor mostra como foi decepcionante para a Coroa defrontar-se com terras de pau-de-tinta após as riquezas descobertas por Vasco da Gama na Índia. Surgem, a propósito, duas imagens surpreendentes, uma profana - a do baralho - e outra religiosa: a da humilde aldeia da Galiléia na qual viveu Jesus com seus pais. "O Brasil foi como uma carta de paus puxada num jogo de trunfo em ouros. [...] Só em nova fase de atividade portuguesa - a propriamente colonizadora, a do fim do século XVI e parte do século XVIII - o Brasil teria força de trunfo no jogo das competições imperialistas das nações européias". No bojo da imagem religiosa vem outra também forte: a de "estilhaços do bloco de gente nobre" aplicada ao rebotalho humano que sobrou da aventura da Índia: "Colônia fundada quase sem vontade, com um sobejo apenas de homens, estilhaços do bloco de gente nobre que só faltou ir inteira do reino para as Índias, o Brasil foi a Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nem prata. Somente pau-de-tinta e almas para Jesus Cristo". Redes e palmeiras Analisando uma página de Sobrados e Mucambos - obra por ele considerada como superior a Casa-grande & Senzala - Otto Maria Carpeaux falou da "grande metáfora das palmeiras": as que vicejam gloriosas sobre túmulos de jovens vítimas da febre amarela nos cemitérios ingleses do Brasil; as majestosas palmeiras representariam a vitória dos trópicos sobre o nórdico invasor. Outra metáfora de Gilberto Freyre é a da rede, símbolo da vida ociosa dos patriarcas. Está no último capítulo de Casa-grande & Senzala e, apesar dos verbos chulos que nela aparecem, trata-se de uma das mais belas páginas da prosa em língua portuguesa (ver página 42). Dessa página escreveu o poeta e ensaísta português David Mourão Ferreira, num capítulo de Sob o mesmo tecto: estudos sobre autores de língua portuguesa (1989): "Quadro implacável, quadro mesmo terrível. Mas quadro que não pode nem deve fazer-nos esquecer, para lá da repulsa que o modelo nos provoque, a genial mestria de seu pintor". Ciência e literatura Além do imagismo e da enumeração caótica, Casa-grande pode ser caracterizada como obra ao mesmo tempo científica e literária por sua saborosa prosa, seu estilo musical, sua pontuação original, pela sábia utilização de expressões eruditas e populares, científicas e coloquiais. A locução adverbial "de meia-tigela", por exemplo, aparece no prefácio à primeira edição quando o autor se refere aos arremedos de diários íntimos que são os cadernos com anotações de mexericos escritas por esquisitões, que define como "Pepys de meia-tigela", associando a uma expressão popular o nome do diarista inglês Samuel Pepys. Álvaro Lins dizia que mesmo eventualmente superada em suas sugestões por avanços nas ciências em que se baseia - antropologia, biologia, psicologia, sociologia - Casa-grande subsistiria como obra literária. Falei em "sugestões" porque Freyre não gostava de "conclusões", tendo escrito que "a verdadeira ciência é humilde, ficando a ênfase para a meia-ciência". Ele próprio o confessou no prefácio à 4ª edição da obra - definida pelo editor como "definitiva": "definitiva dentro da relatividade que condiciona e depende, em grande parte, de novos avanços nas várias ciências e estudos em que se baseia. Isto sem falar nos aspectos, porventura ainda mais flutuantes, de sua subjetividade. As idéias e atitudes do Autor. Seus pontos de vista. Os personalismos em que às vezes se alongam suas interpretações". Enumerações negativas As enumerações freyrianas podem ser classificadas em afirmativas - como as até aqui citadas - e negativas: as usadas para caracterizar personalidades pelo que não foram e fatos não ocorridos. Na conferência Atualidade de Euclydes da Cunha (1041) - reproduzida no livro Perfil de Euclydes e outros Perfis (1944) - ele adotou a enumeração negativa: "Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, assai, sopa de tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem canários do Império, nem caçadas de onça ou de anta nas matas das fazendas. Nem banhos nas quedas-d'água dos rios de engenho - em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente brasileiras Euclydes da Cunha se fixou. Nem mesmo no gosto de conversar e de cavaquear às esquinas ou à porta das lojas - tão dos brasileiros: desde a rua do Ouvidor à menor botica no centro de Goiás." São tantos e variados os problemas de medicina, em geral, e de alimentação, em particular, estudados por Freyre em Casa-grande & Senzala que ao ler sua primeira edição o professor Antonio da Silva Melo (1886-1973) pensou ser o autor, como ele, médico. É o que o fundador da Faculdade Nacional de Medicina escreveu em sua contribuição a Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte. Por isso, Freyre foi convidado a prefaciar seu Problemas de Ensino Médico e de Educação (1937): uma das centenas de seus prefácios para outros autores, alguns médicos (Prefácios Desgarrados, 1978). Caos na medicina Em 1967 a Fundação Calouste Gulbenkian editou em Lisboa Sociologia da Medicina, de Freyre, depois reeditado no Brasil pela editora Globo como Médicos, Doentes e Contextos Sociais (1983). É nesse livro - desconhecido no Brasil, mas traduzido em italiano em 1975 pela Rizzoli, de Milão, com o título original (Sociologia della medicina) - que se encontra um dos mais expressivos exemplos de enumeração caótica. Em "Civilização do Homem Sentado", notese o fim inesperado e dramático da enumeração. Porém, a mais longa enumeração caótica do ensaísmo freyriano está no capítulo "Tentativa de Síntese" de Ordem e Progresso (1959). O assunto do livro é uma interpretação do fim do século 19 e advento do 20. Em "O 1900 brasileiro", Freyre enumera um número considerável de traços de cultura material e moral (a palavra "cultura" entendida em seu sentido antropológico) que caracterizaram o 1900 brasileiro. A numeração caótica se estende por seis páginas da sexta edição (2004). O autor chega a mencionar - entre hábitos, devoções, tipos de habitação, veículos, leituras, perfumes, sabonetes, doenças, remédios, diversões, latrinas, bidés, escarradeiras, esportes, brinquedos, roupas, chapéus, anúncios, leituras, livros, revistas, jornais, roupas, sapatos, móveis, alimentos, prostitutas estrangeiras, engraxates etc. "a voga do ataque histérico entre senhoras burguesas, à saída de enterros e em face de outras situações dramáticas" (sexta edição, pp. 160-165). Volto ao curso seguido por Freyre na Universidade Baylor. O professor Armstrong ficou tão impressionado com o inglês de Freyre que o aconselhou a adotar a cidadania norte-americana, acenando com a promessa de cobiçada bolsa em Oxford: a Rhodes Scolarship. Chegou a citar a seu aluno o caso de Joseph Conrad, que, nascido na Polônia, tornou-se grande escritor em língua inglesa. Freyre recusou a sugestão, tendo anotado em seu diário: "Se tiver de ser escritor, meu dever é escrever em língua portuguesa" (cf. Tempo Morto e Outros Tempos. 2ª edição revista. São Paulo: Global, p. 65). E foi o que aconteceu: ele tornou-se um dos maiores ensaístas do nosso idioma. A metáfora da rede Gilberto Freyre Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros: mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo - palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas mulequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vício; outros por doença venérea ou da pele. Lindsay diz que na Bahia viu pessoas de ambos os sexos deixando-se catar piolhos; e os homens coçando-se sempre de "sarnas sifilíticas". Casa-grande & Senzala. Edição crítica. Paris: ALLCA XX, 2002 (Unesco. Coleção Archivos, 55), p. 433. Bahia de todos os santos (e de quase todos os pecados) Poema de Gilberto Freyre é rico exemplo do estilo enumerativo e imagístico do autor Bahia de todos os santos (e de quase todos os pecados) casas trepadas umas por cima das outras casas sobrados igrejas como gente se espremendo pra sair num retrato de revista ou jornal (vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes) Igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras) toda a Bahia é uma maternal cidade gorda como se dos ventres empinados dos seus montes dos quais saíram tantas cidades do Brasil inda outras estivessem pra sair ........................................................................................ automóveis a 30$ a hora e um ford todo osso sobe a ladeira sagrada saltando, pulando, tilintando pra depois escorrer sobre o asfalto novo que branqueja como dentadura postiça sobre a terra encarnada (a terra encarnada de 1500) gente da Bahia! preta, parda roxa morena cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil (madeira que cupim não rói) sem rostos cor de fiambre nem corpos cor de peru frio ........................................................................................... Bahia Salvador Todos os Santos um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro às tuas igrejas onde pregou Vieira mulato hoje cheias de frades [ruivos aos teus tabuleiros escancarados em "x" (esse "x" é o futuro do [Brasil) tuas casas sobrados cheirando a incenso comida alfazema cacau Civilização do homem sentado Gilberto Freyre Quando se define a civilização contemporânea como uma civilização de "homem sentado", toma-se em especial consideração o fato, na verdade social e higienicamente significativo, de ser, nas suas áreas tecnologicamente mais avançadas, uma civilização em que os seus agenes, os seus líderes e os seus participantes passam grande, talvez a maior parte, do seu tempo físico e do seu tempo socialmente mais valioso, sentados. Sentados em estudos, nas escolas primárias, secundárias, superiores. Sentados em funções de ensino, nas cátedras; em trabalhos de escritório, de oficina, de fábrica, de banco, de estabelecimentos comerciais e industriais. Sentados em tratores, nos campos. Sentados na direção de arados, de caterpillars, de outras máquinas agrárias e de várias, urbanas. Sentados na direção de automóveis, de aviões, de lanchas, de caminhões, bem como de locomotivas. Sentados como passageiros desses veículos, hoje numerosíssimos, e de bicicletas e motocicletas. Sentados em casa, repousando, descansando, cismando. Sentados na igreja, rezando. Sentados nas arquibancadas de campos de jogos de futebol e de outros jogos, nos concertos, nos teatros, e também para assistir a danças folclóricas ou outros espetáculos ao ar livre. Sentados nas assembléias, nos congressos, nos parlamentos, nos conselhos municipais. Sentados, quando moços, quando homens de meia-idade, quando velhos. (...) Sentados em movimento. Sentados em repouso. Sentados em estações, à espera de trens e nos aeroportos, à espera de aviões. Sentados nos bancos, em cadeiras, em poltronas, em espreguiçadeiras, em sofás, em marquesões. Sentados para ouvir rádio, para ver televisão ou cinema. Sentados na cadeira do dentista, na cadeira do barbeiro, na de cabeleireiro, na de engraxate, no banco dos réus e até - não é freqüente mas acontece - em cadeira elétrica, para cumprir sentença de morte. Sociologia da Medicina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967. 2ª edição. Médicos, Doentes e Contextos Sociais: uma Abordagem Sociológica. Rio: Globo, 1983, p. 166. Edson Nery da Fonseca é pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco e professor emérito da UnB, autor de Em torno de Gilberto Freyre (Massangana). A Universidade Baylor (Waco, Texas), onde Gilberto Freyre fez graduação, não é tão conhecida e importante como Harvard, Yale, Columbia, Princeton ou Berkeley. Baylor teve, entretanto, um professor do mais alto nível. Joseph Armstrong era especializado em literatura vitoriana e apaixonado pelo casal de poetas Robert e Elizabeth. Revista Língua Portuguesa (SP) edição 25 Novembro 2007