Índia
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OPERAÇÃO VIJAY
O OUTRO GENERAL SEM MEDO
A
comitiva seguia a toda a velocidade pelas estradas de
terra batida de Goa. Vassalo
e Silva dirigia-se para a Basílica de Bom Jesus, onde ia
receber o bastão de S. Francisco Xavier, uma cerimónia simbólica
que lembrava aos governadores o dever
de protegerem a cidade. Os batedores,
de mota, seguiam à frente, mas o ataque
inesperado de um cão provocou a queda
do respetivo comandante. O governador (na altura brigadeiro, pois só seria
promovido a general em 1960) mandou
parar de imediato a caravana, saiu do
automóvel e aproximou-se do jovem caído na estrada. João Aranha, habituado
às acrobacias em duas rodas, tentou esconder as dores e mostrou-se pronto a
seguir viagem, mas o recém-empossado
governador-geral insistiu para que fosse
levado a um médico.
«Nos dias seguintes, ia sempre alguém
ao hospital saber do meu estado de saúde
para informar o governador», recorda
João Aranha, hoje com 88 anos. Nunca se
tinha cruzado com Vassalo e Silva, mas a
primeira impressão jamais seria desfeita.
«Percebi logo que era um homem humano e honesto», conta à VISÃO.
O incidente aconteceu em janeiro de
1959, um mês depois da chegada de
Vassalo e Silva à Índia Portuguesa, em
dezembro de 1958. Era a primeira vez
que o então brigadeiro pisava o território,
e logo na condição de governador-geral.
A paixão foi imediata. Durante os três
anos em que ocupou o cargo nunca visitou
a metrópole. Um comportamento que,
apesar de mal visto pelo regime, mostrava
o seu empenho na região. Principalmente nas obras públicas, fazendo justiça à
sua formação em Engenharia. Participou em inúmeras inaugurações, quase
sempre vestido à civil. Não era do estilo
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«militarão» e, em vez de passar revista
às tropas, preferia visitar os estaleiros.
A obra foi conquistando os goeses. O general fazia gala de se deslocar num jipe
com para-brisas rebaixado, sem medo
de um ataque.
O derradeiro teste ao seu mandato de
governador-geral aconteceu a 18 de dezembro de 1961. Nessa data, os territórios
portugueses de Goa, Damão e Diu foram
invadidos pelas tropas da União Indiana,
que superavam quase 20 vezes o número
de soldados nacionais. As ordens dadas
por Salazar a partir de Lisboa eram claras:
«Não prevejo possibilidade de tréguas
nem prisioneiros portugueses, como não
haverá navios rendidos, pois sinto que
apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos.» A vitória nem
chegava a ser uma miragem, pelo que a
única solução seria o sacrifício da própria
vida em nome da pátria.
OS DIAS DO FIM
Vassalo e Silva via-se perante um dilema
que o colocava face à sua lealdade ao regime, ou à vida dos seus homens. Uma
decisão difícil, que nunca tinha estado
nos seus planos. Conta a única filha viva
do general (tinha uma irmã e um irmão),
Maria Fernanda, 84 anos, que quando o
pai, ainda em solteiro, ia dar explicações
ao irmão da futura mulher, Fernanda
Pereira Monteiro, a ouvia muitas vezes elogiar a farda dos militares. Numa
impressionante manobra de conquista,
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Vassalo e Silva apareceu-lhe fardado,
depois de se alistar no Exército. Seria o
primeiro passo da carreira que o levaria
a governador-geral do Estado Português
da Índia.
O clima de tensão vivido nos dias que
antecederam a invasão dos territórios
portugueses da Índia deu origem a três
contendas entre o general e o Ministério
do Ultramar.
Para começar, recusou-se a enviar para
Lisboa as relíquias de S. Francisco Xavier,
o «apóstolo» do Oriente, alegando tratarse de «património moral dos portugueses
do Estado Português da Índia».
O Governo de Salazar também exigia
que os aviões dos Transportes Aéreos da
Índia Portuguesa (TAIP) fossem para
Portugal, mas Vassalo e Silva decidiu usálos para evacuar mulheres e crianças.
A última imposição da metrópole era
uma política de «terra queimada», que incluía a destruição do Palácio do Hidalcão,
do Porto de Mormugão, e de objetivos
militares. O governador apenas acatou a
ordem de destruir instalações marciais.
A sua rebeldia culminou no dia da invasão. Depois de terem sido hasteadas
as primeiras bandeiras brancas nas unidades, soube-se que o governador-geral
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O último governador do Estado Português da Índia, Manuel
Vassalo e Silva, cometeu a ousadia de desobedecer
a Salazar, não permitindo que as tropas portuguesas fossem
chacinadas. A decisão fez do ditador seu inimigo
por Vânia Fonseca da Maia
VASSALO E SILVA
O general e a esposa
de partida para Goa a
18 de dezembro de 1958
(em cima). Poucos dias
antes da invasão, a 9 de
dezembro de 1961,
o governador inaugurava
a escola de Chichini,
vestido à civil, como
era seu hábito (à esq.)
tinha negociado a cessação das hostilidades. O general Carlos Azeredo, 81 anos, na
altura capitão, nunca teve dúvidas: «foi
uma decisão corajosa e humana. Vassalo e
Silva fez o possível para salvar Goa com os
poucos meios que tinha», diz, perentório.
Além do reduzido número de efetivos, o
armamento também era um problema:
«Disparávamos um tiro e a bala caía a
dois metros de nós. As monções tinham
dado cabo de tudo.»
Carlos Azeredo, à época assessor do
governador-geral, confirma os rumores
de que o Governo central terá enviado
veneno ao general para este pôr fim à
vida. «Claro que ele os mandou à fava»,
conta, orgulhoso.
Se aos olhos de Vassalo e Silva a rendição era inevitável, o regime servia-se dele
como bode expiatório, e colava-lhe o perfil
de traidor. Uma piada posta a circular
apelidava-o de «Vacila e Salva-te».
PRISIONEIRO DO REGIME
Nuno Vassalo e Silva, 50 anos, neto do
governador, recorda o avô como «um
homem de coragem, que desafiou Salazar
sabendo o que lhe estava reservado».
O calvário começou logo na noite de
retorno a Portugal, a 16 de maio de 1962.
O general regressava à capital ao fim de
cinco meses de cativeiro às mãos do exército indiano, juntamente com mais de 3
mil militares portugueses.
A neta mais velha não se lembra de o
ouvir contar histórias do tempo em que
esteve detido, mas ainda guarda o presente que o avô lhe trouxe, comprado à pressa
no Aeroporto de Carachi. «A preocupação
dele foi trazer um presentinho para cada
um dos 14 netos», diz, sorridente, Maria
Fernanda, conhecida por Minan, que na
altura tinha 11 anos.
Quando o avião que trazia o ex-governador aterrou em Lisboa, apagaram-se as
luzes do aeroporto, e foi-lhe comunicado
que não havia escada disponível para acoplar ao aparelho. O general teria de descer
pelos degraus da fuselagem. Indignado,
Vassalo e Silva recusou- se a «entrar de
costas na capital».
Os golpes seguintes seriam a expulsão
do Exército e a proibição de desempenhar
cargos públicos.
As dificuldades não eram novidade
para o general. Nascido em Torres Novas,
Vassalo e Silva tinha três irmãs mais velhas, uma delas a escritora Maria Lamas.
No início da adolescência mudara-se para
Lisboa com a família, depois de o pai, um
industrial de sucesso, ter perdido a fortuna no jogo. O jovem estudante teria de
trabalhar para completar os estudos.
O 'SENHOR DOUTOR'
Banido dos serviços públicos, Vassalo e
Silva valeu-se da formação em Engenharia e foi trabalhar para a empresa de construção civil do sogro. Manuel Morais, 60
anos, cruzou-se com ele em várias obras:
«Não o tratávamos nem por general, nem
por engenheiro; ele era tão educado que
lhe chamávamos 'senhor doutor'».
A neta Minan gosta de lembrar a faceta divertida do avô: «Fazía-nos espadas
de madeira e ensinava-nos a marchar.»
A sua mãe, Maria Fernanda, recordase da exigência do pai nos estudos, mas
também do carinho com que tratava a família, particularmente a mulher, a quem
escrevia cartas de mais de dez páginas
quando ela visitava a metrópole.
A família sempre o ouviu dizer que se
voltasse atrás, tomaria a mesma decisão.
Manteria sempre uma ligação à Índia
através do jornal O Heraldo, de Goa, que
lia religiosamente logo que chegava à sua
caixa do correio.
Só com o 25 de Abril veria o seu nome
reabilitado. Um decreto de dezembro de
1974, assinado pelo então Presidente da
República, Costa Gomes, reintegrou-o
no Exército. Em 1982 viveu outra grande
emoção, quando as autoridades goesas
o convidaram a visitar a cidade das suas
doces e amargas memórias. Até à sua
morte, em 1985, aos 86 anos, nunca se
queixou das injustiças de que fora alvo.
Sempre que o tema era abordado, a
resposta não variava: «Deixem lá esses
assuntos.»
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O OUTRO GENERAL SEM MEDO