O ciclo de vida de desenvolvimento de software na indústria farmacêutica Um relato prático com base na experiência de garantia de qualidade de sistemas computorizados utilizados nesta indústria Paulo Marques Gestor de Qualidade de Sistemas de Informação Departamento de Sistemas de Informação, BIAL S. Mamede do Coronado, Trofa, Portugal [email protected] Resumo — A utilização de qualquer software numa organização que faça parte do ciclo de vida de um medicamento pressupõe a preocupação constante com a garantia de qualidade desse mesmo software. Essa garantia só é possível quando se considera o software como parte de um sistema computorizado, do qual também fazem parte hardware e outros equipamentos, outros softwares, pessoas e processos. Palavras-chave — sistema computorizado; validação; farmacêutica; medicamento. I. regras normalmente denominam-se de boas práticas e têm força de lei. As mais importantes são as boas práticas laboratoriais, as clínicas, de fabrico e de distribuição. Em Inglês, o termo GXP (Good X Practices) surge então, naturalmente, para designar o conjunto de todas as boas práticas (ou seja, GXP = GLP + GCP + GMP + GDP, em que, por exemplo, GMP = Good Manufacturing Practices). verificação; INTRODUÇÃO Toda a indústria farmacêutica vive perante uma grande exigência de qualidade em todos os seus processos e produtos. A vida de um medicamento começa quando uma nova molécula é sintetizada e só termina quando essa molécula efetivamente deixe de ser utilizada. Pelo meio, a nova molécula deve ser patenteada, após a qual normalmente se seguem várias fases de ensaios laboratoriais e outras de ensaios clínicos. Se tudo correr bem até aí, o medicamento poderá ser comercializado, desde que seja aprovado nos mercados a que seja submetido. Para cada mercado pretendido, a entidade proponente tem que preparar um dossier de autorização de introdução no mercado, submetê-lo a aprovação e aguardar que essa mesma aprovação chegue, o mais rapidamente possível. Claro que, dito desta forma, tudo isto parece simples, mas não é, tal a quantidade de burocracias necessárias. Como se isso não bastasse, o desenvolvimento de um novo medicamento é uma corrida contra o tempo, porque desde que uma nova molécula é patenteada, inicia-se um período de proteção e exclusividade para a entidade dona da patente, para que esta possa recuperar o esforço no investimento de investigação e desenvolvimento. Após aprovação da autorização de introdução num mercado, começa a produção, controlo de qualidade e distribuição do medicamento nesse mercado. Hoje em dia, as autoridades que regulamentam a indústria farmacêutica encarregam-se de criar e manter um conjunto de regras para garantir a qualidade de todos os processos subjacentes a todo este ciclo de vida dos medicamentos. Essas Figura 1. O ciclo de vida típico de um medicamento Hoje em dia, todos os processos de âmbito GXP, regulamentados por boas práticas, são apoiados por vários tipos de software, os quais estão obviamente sujeitos aos mesmos padrões de qualidade que se aplicam aos processos e produtos. É aqui que entra a necessidade de garantir a qualidade do software utilizado na indústria farmacêutica. Nesse sentido, muitos autores conceituados na indústria, nomeadamente o GAMP [1], preconizam a adoção de um modelo específico de ciclo de vida de desenvolvimento de software — o modelo em V. Nos primórdios da utilização do software na indústria farmacêutica, parecia suficiente falar-se em validação de software, para garantir a sua qualidade. No entanto, há muito que o software deixou de ser olhado isoladamente, passando assim, apenas a ser apenas uma parte de um sistema computorizado (embora seja certamente a parte principal). II. • Software: Convém não esquecer que existe uma pequena parte de software (por exemplo, sistemas operativos, bases de dados, monitorização de performance ou gestão de segurança) que deve ser considerada na já referida infraestrutura, por isso sujeita ao mesmo nível de qualificação; • Equipamentos: Aqui há a considerar alguns componentes (por exemplo, equipamento de laboratório, de produção ou de distribuição) que colocam um sistema computorizado longe do típico sistema cliente/servidor; • Pessoas: Têm de estar devidamente habilitadas e serem formadas para que lhes seja concedida autorização de utilização do sistema, autorização essa que deverá estar aprovada pela organização; • Processos: O objetivo último da utilização de qualquer sistema é a melhoria do(s) processo(s) subjacentes. No entanto, isso só acontece desde que haja uma sintonia entre todos os componentes do sistema, não esquecendo toda a documentação que permite manter o sistema sobre controlo e também informar os utilizadores sobre a melhor forma de conseguirem os seus objetivos. A VALIDAÇÃO DE UM SISTEMA COMPUTORIZADO A. Definição de sistema computorizado Obviamente, nenhum software funciona sozinho. Normalmente, é da conjugação de várias camadas de software e hardware (que fazem parte de uma infraestrutura informática), aos quais eventualmente se associam equipamentos (de laboratório, de produção ou distribuição), que nasce o conceito de sistema computorizado. Este, no entanto, não faz sentido sem as pessoas que o utilizam e, ainda, todo o conjunto tem que estar coerente com a documentação do sistema de gestão da qualidade da organização, do qual devem fazer parte todos os documentos que descrevem o sistema e a sua utilização. De acordo com Teri Stokes [2], um sistema computorizado é um conjunto de equipamentos, software, pessoas e procedimentos, que em conjunto viabilizam a execução de um determinado processo de negócio. Hardware Equipamentos Pessoas Software Processos Figura 2. Esquema de um sistema computorizado O conceito de sistema computorizado nasce precisamente para ser a âncora da garantia de qualidade da utilização do software na indústria farmacêutica. Claro que, sendo o software o componente que diferencia a identificação de um sistema computorizado, as principais atividades da sua validação centram-se na especificação, construção e verificação do software. No entanto, antes de passar a analisar o software específico de um determinado sistema, convém não esquecer as atividades de validação normalmente executadas sobre os restantes componentes: • Hardware: A maioria do hardware (por exemplo, servidores, discos, equipamento ativo de rede, computadores, impressoras e outros periféricos) que faz parte de qualquer sistema computorizado é partilhada numa infraestrutura, o que a torna suscetível de qualificação, ou seja, de garantia de controlo permanente de especificações, configuração e testes; B. Adaptação do modelo em V para validação de um sistema computorizado Existindo, na indústria farmacêutica, uma tradição muito forte de qualificação de equipamentos, desde há algumas décadas, ainda antes dos mesmos incorporarem a grande quantidade de hardware e software a que hoje em dia assistimos, essa tradição foi estendida para a validação de sistemas computorizados. Assim, um sistema computorizado é considerado quase como um equipamento especial, embora mais complexo, mas cuja qualidade continua a poder ser garantida pelo modelo tradicional de especificação, construção e verificação, que assume a conhecida forma em V, ligeiramente modificado. A extensão desse modelo tradicional em V, consiste sobretudo na adição de um conjunto de atividades que saem fora do âmbito concreto de especificação, construção e verificação do software. Essas atividades dependem de cada sistema e consistem (embora não estejam limitadas à lista que se segue) em: • Análise do risco que a utilização do sistema computorizado pode implicar, sobretudo tendo em conta a criticidade dos processos subjacentes e comparando esses mesmos processos, antes e depois da utilização do sistema, da qual resulta a maior ou menor extensão de validação do sistema (ou seja, maior ou menor detalhe na execução de todas as atividades de validação); • Avaliação do impacto que o sistema tem na infraestrutura e no resto dos sistemas utilizados na mesma organização; • Elaboração de um acordo de nível de serviço entre todas as partes envolvidas na conceção, desenvolvimento, verificação, utilização e manutenção do sistema; • Se aplicável (em sistemas adquiridos, totalmente ou em parte), definição de critérios de seleção de fornecedores e sua avaliação, normalmente através de auditorias, para garantir que o fornecedor escolhido cumpre os critérios definidos e se preocupa em embeber a qualidade de forma intrínseca, nos seus processos de desenvolvimento de software; • Especial cuidado na especificação e verificação dos interfaces com outros sistemas; • Definição e verificação dos processos de cópias de segurança periódica (backups) de toda a informação gerida no sistema, para que o mesmo possa ser recuperado, sempre que tal seja necessário, quer seja na sequência de um pedido ou de um desastre; • Elaboração de instruções ou manuais dedicados exclusivamente à descrição da utilização do sistema, tendo em conta a realidade da organização onde o mesmo opera; • Se aplicável (se houver descontinuação de um sistema antigo), pode ser necessário planear a migração de informação e/ou o arquivo de informação antiga, garantindo que é cumprido o período de retenção definido para a informação mais crítica; • Definir e aprovar os perfis de acesso ao sistema; • Formar os futuros utilizadores do sistema; • Elaborar e manter uma descrição técnica do sistema, que descreva todas as componentes necessárias ao funcionamento do sistema (por exemplo, bases de dados, utilizadores e permissões especiais, serviços) e que, no caso de sistemas configuráveis, deve incluir a documentação da configuração do sistema. planeadas, tanto quanto possível. Esse planeamento deve resultar num documento formal, aprovado pelas partes interessadas, normalmente designado por plano de validação do sistema. Esse documento deve justificar a estratégia de validação do sistema, definir os critérios para que o sistema se possa considerar validado e prever a estratégia de manutenção do estado de validação do sistema, ao longo do seu ciclo de vida. Uma vez executadas todas as atividades planeadas, deve ser emitido o respetivo relatório de validação, documento que identifica os desvios da execução face ao que estava planeado e resume as anomalias ocorridas durante a validação, sobretudo na fase de verificação. C. Atividades principais de validação de sistemas computorizados 1) Especificação Esta fase destina-se a definir todos os requisitos que o sistema deve ser capaz de cumprir. De um ponto de vista processual, pode dizer-se que a especificação identifica como são transformados os dados de partida (inputs), para obtenção dos resultados pretendidos (outputs). O resultado da fase de especificação servirá como base de trabalho para a fase de verificação. É sempre dada atenção especial a determinados requisitos regulamentares que todos os sistemas devem cumprir, sobretudo os que se relacionam com registos eletrónicos e assinaturas eletrónicas [3], para que estas se possam considerar legalmente equivalentes às assinaturas manuais, em papel. Dada a obsessão da indústria farmacêutica por processos estáveis, que se encontram em utilização há anos, suportados por recursos humanos experientes, citando uma das referências mais importantes no âmbito GXP [4], sempre que um sistema substitui uma operação manual, não deve haver qualquer decréscimo na qualidade do produto, controlo do processo ou garantia de qualidade, bem como não deve haver qualquer acréscimo do risco global do processo. 2) Construção Na fase de construção do sistema, sobretudo na construção do software específico do mesmo, deve garantir-se o mais possível que as especificações são cumpridas e se mantêm atualizadas e ainda que são efetuados testes unitários aos componentes desenvolvidos especificamente para o sistema em causa. 3) Verificação A verificação de um sistema encarrega-se de garantir formalmente que o mesmo cumpre integralmente os requisitos especificados. A extensão da verificação de um sistema depende de muitas variáveis (como sejam o resultado da análise de risco ou o grau de estandardização/customização), embora a indústria aprecie que essa verificação seja dividida nas seguintes qualificações: Figura 3. O modelo em V para validação de um sistema computorizado Todas as atividades de validação, tanto as referidas nos pontos anteriores, como as subjacentes à especificação, construção e verificação do sistema, devem ser devidamente • Qualificação de instalação: Destina-se a garantir que o software é instalado de acordo com as suas especificações de desenho, em qualquer dos ambientes (desenvolvimento / testes / qualidade / produção) normalmente instalados, permitindo que os mesmos se possam considerar equivalentes, no âmbito da verificação; • • Qualificação operacional: Equivalente aos testes de aceitação em fábrica (ou FAT, Factory Acceptance Tests), destinam-se a garantir que o sistema opera de acordo com as suas especificações funcionais e que (se aplicável) a configuração do sistema lhe confere o comportamento pretendido; Qualificação de performance: Equivalente aos testes de aceitação pelos utilizadores (ou UAT, User Acceptance Tests), destinam-se a garantir que o sistema cumpre as suas especificações de requisitos dos utilizadores, em todos os ambientes operacionais e combinações possíveis de ser utilizado. D. Atividades complementares à validação dos sistemas essenciais para garantir a sua qualidade Dado que um sistema computorizado se incorpora numa organização e interage com outros sistemas, processos e pessoas, só é possível garantir a qualidade de qualquer sistema computorizado, desde que a execução dos seguintes processos (pelo menos) esteja assegurada na mesma organização: • Gestão de acessos • Gestão da infraestrutura • Gestão do suporte • Gestão de backups e disaster recovery • Gestão de alterações e da configuração • Formação contínua na utilização dos sistemas E. Relatividade de conceitos Claro que esta adaptação do modelo em V funciona bem enquanto se considera o desenvolvimento inicial de um sistema. No entanto, rapidamente se percebe que uma vez validado um sistema, tipicamente se inicia a fase mais complexa do seu ciclo de vida – a sua utilização e manutenção. Hoje em dia, sobretudo fruto da evolução tecnológica a que assistimos diariamente, mas também da constante volatilidade organizacional, a mudança assume as mais diversas formas e coloca permanentemente os mais diversos desafios. Por isso, a qualidade do sistema estará tão assegurada quanto maior for a capacidade de antever, planear e executar alterações ao sistema da forma mais controlada possível. Assim, na prática, assiste-se a uma adoção de outros modelos de desenvolvimento de software, como o iterativo ou o ágil, permitindo que esse desenvolvimento seja considerado como atividade mais contínua no tempo, apesar das boas práticas da indústria obrigarem a um constante mapeamento com o tradicional modelo em V. III. CONCLUSÕES Este artigo pretende destacar a visão de uma indústria muito regulamentada, sujeita a apertados critérios de qualidade, perante o ciclo de vida de desenvolvimento de software. A conclusão que se pretende extrair é a de que a indústria farmacêutica apresenta uma certa dificuldade em se adaptar aos permanentes desafios de mudança que hoje em dia se verificam. Na prática, estes desafios obrigam a um acréscimo de importância das áreas que gerem as infraestruturas informáticas nas organizações, passando estas áreas a assumir um papel preponderante na gestão dos sistemas computorizados utilizados na organização. Torna-se, pois, claro, que se tenta adaptar os modelos teóricos de desenvolvimento de software disponíveis à realidade evolutiva de conceção, verificação, utilização e manutenção do software, como parte integrante e fundamental de um sistema computorizado. E enquanto a tecnologia se pode posicionar como motor desta mudança permanente, só o pode fazer desde que seja assegurada, de forma sustentada, a qualidade dos processos subjacentes, porque em última análise, está em causa a vida de seres humanos. Oxalá a prestação de cuidados médicos e de saúde possa, algum dia, atingir os mesmos padrões de qualidade impostos às organizações que operam na indústria farmacêutica. REFERENCES [1] [2] [3] [4] ISPE – International Society for Pharmaceutical Engineering, "GAMP 5: A Risk-Based Approach to Compliant GxP Computerized Systems", fevereiro de 2008. Teri Stokes, "The Survive and Thrive Guide to Computer Validation", maio de 1998. US Food and Drug Administration, "21 CFR Part 11 – Electronic Records; Electronic Signatures; Final Rule", março de 1997. EudraLex – The Rules Governing Medicinal Products in the European Union, “Volume 4 – Good Manufacturing Practice – Annex 11: Computerised Systems", janeiro de 2011.