O MOVIMENTO GERAIZEIRO PELA RETOMADA DOS TERRITÓRIOS TRADICIONAIS E SEUS ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS E JURÍDICOS Aldinei Sebastião Dias Leão Jonielson Ribeiro de Souza Palavras chaves: geraizeiros, território, identidade, luta, novos direitos O presente resumo tem como base os estudos bibliográficos e a pesquisa empírica,com acompanhamento de ações das Comunidade s geraizeiras pela retomada dos seus territórios na microrregião do alto rio pa rdo, por meio da pesquisa-ação. Tal metodologia pressupõe a investigação científica com o instrumento de transformação da realidade social vivida pelos sujeitos pesquisados, mas na construção de um conhecimento de forma conjunta entre pesquisadores e as comunidades. Trata-se de trabalhos, em curso, realizados pelos autores como requisito para obtenção de título de pós-graduação/residência agrá ria, pela Universidade Federal de Goiás. Ressalta-se que, embora distintas, as pesquisas são interdisciplinares e tratam do mesmo objeto, o que possibilita o diálogo entre elas. Os autores pretendem, todavia, estabelecer um diálogo com outros campos e espaços de pesquisa, na busca por respostas nos diversos campos da ciência no que tange à luta dos geraizeiros.A partir dos estudos até agora realizados, são apontadas duas perspectivas de análises desse processo de luta: por um lado, as comunidades buscam por uma firmação jurídica de reapropriação de seu território, tendo como base su a identidade. Por outro, percebe-se que está sendo no próprio processo de luta, que as comunidades estão assimilando de forma mais “consciente” ou pelo menos, mais “conseq uente”, a própriaautoidentificação enquanto população tradicional geraizeira. 1. Breve histórico da formação da população tradiciona l “geraizeira” As Minas e os Gerais: Com o declínio do ciclo do ouro,pelos fins do sec. XVIII, os empregados, escravos, agregados, dentre outros, que até então se ocupavam com a atividade minerária passaram a ocupar os campos gerais, em busca de um pedaço de chão para viver e trabalhar. Esse processo de ocupa ção,no entanto, não se deu pela aquisição jurídica das propriedadesjá que o princípio que vigorava era o da ocupação, pelo trabalho, das terras livres (NOGUEIRA, 2009: 60).A esses que se dispersaram nos gerais, Nogueira (2009: 58)denomina de desclassificados do ouro.Os campos gerais são as terras que se estendem pelo Alto e Médio São Francisco, na região Norte de Minas Gerais, que foi também denominada Currais da Bahia, durante o Império.Pozzoas denominou de “terras de solta”, de uso comunal, que não foram apropriadas privadamente, são os campos gerais, gerais, e chapa das (POZO, 2002: 84, apud BRITO, 2006: 77). Dessa forma, foram se formando os povos geraizeiros: uma mistura de índios (que já habitavam o cerrado norte-mineiro), brancos(desempregados) e negros (exescravos).Sua principal característica consistia no uso comunal das chapadas (gerais), enquanto nas glebas (veredas) se instalavam as moradas e o cultivo agrícola.Sua cultura, tendo como base a religiosidade e a fé cristã – viv enciada através de reuniões em comunidade para festejar suas colheitas e agradecer aos seus padroeiros, “cantar reis”, dançar catira, fazer fogueiras de São João, dentre outros costumes e tradições. Este modus vivendi dos geraizeiros se perpetuou no tempo, até que, nadécada de 1970, o governo militar, por meio das chamadas políticas desenvolvimentistas, expropriou e arrendou grande parte do seu territóri o – as chapadas,consideradas terras devolutas – para empresas monocultoras, ignorando a existência das famílias que ali viviam. Foram instaladas diversas e extensas áreas de eucalipto, forçando muitas famílias a migrarem para as cidades e povoados vizinhos. As que ousaram permanecer em suas terras, ainda que encurralados nas glebas/veredas, passaram a conviver com problemas como a falta de água, a violência no campo (trazida pelos “peões forasteiros”), a migração sazonal (para o sul de Mi nas, São Paulo, Goiás, etc.) e, sobretudo, a perda de sua liberdade. 2. A retomada dos territórios:a luta por (novos) direi tos Chega-se, por fim, ao objeto propriamente dito do presente resumo, qual seja a reação dos povos geraizeiros na microrregião do alt o rio pardo e as diversas estratégias para retomarem seus territórios.Nas últimas décadas, diversas comunidades se organizaram e buscarammeios de lutar por sua sobrevivência física e étnica. E uma das bases motivadoras e estratégicas nesses processos de luta tem sido o reconhecimento de sua identidade. Atualmente há um número crescente de conflitos socioambientais na microrregião, causados pela reação das comunidades face à expropriação de suas chapadas. Isso se deu tanto devido à notícia dos ve ncimentos dos contratos de arrendamentodas terras (início dos anos 2000) entre o Estado e Empresas, tanto pela própria percepção/vitimização diante das consequênc ias ambientais da intensa investida da monocultura, dentre elas, e principal, a falta de água. Na medida em que essas comunidades se organizam, sua luta ganha visibilidade, levando à aquisição de diversos apoios de organizaç ões locais, regionais e internacionais. E por meio desses apoiadores, elas vão tomando conhecimento dos seus direitos e descobrindo as diversas irregularidades. Dai surgem manifestações, ocupações, série de denúncias e demandas judiciais – Ações de reintegração/manutenção de posse, ações populares e ações civis públicas– e processos de autoreconhecimento. Da união dessas comunidades do Alto Rio Pardo, em p rol dessa luta que tem causas e objetivos comuns, tem-se a formação do “Movimento geraizeiro”. Trata-se de um processo de afirmação e construção de direitos, e de (re) afirmação da cultura e identidade geraizeira, enquanto população tradicional do Cerrado, face à violência. Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural , social, religiosa, ancestral e econômica, sofrida pela ação desrespeitosa, tanto do Estado, q uanto das empresas e, mais recentemente pelas cooperativas de agropecuária e ilviculturas. O que se faz necessário aprofundar, todavia, é a relação entre o Movimento geraizeiro e o Direito, através de uma análise sobre os institutos jurídicos que tratam do uso de terras comunais, por essas comunidades.Isso porque, diferente das comunidades remanescentes de quilombos e de indígenas, tratados objetivamente na Constituição Federal de 1988 (vide art. 68 da ADCT, e art. 231 e 232 da Constituição), os demais povos tradicionais ainda padecem de institutos jurídicos mais eficazes, no tocante ao reconhecimento dos seus territórios. Os processos de luta que os autores têm acompanhado indicam que a reafirmação identitária tem sido essencial para garantir esse reconhecimento.Se o termo geraizeiro ainda não traz em seu bojo o respaldo jurídico apl icado a outras modalidades de população tradicional, necessário se torna fortalecer e difundir essa identificação, assumidamente para aquele mesmo fim. Percebe-se que para muitos, o termo não seria tão comum a ponto de se identificarem conscientemen te como tal, menos ainda numa associação a um espaço territorial que tradicionalm ente ocupavam.Parece então que foi a luta que tornou necessário esse saber ou o desabrochou. Uma fala recorrente em seus encontros: “Eu era geraizeiro e não sabia!” Há de reconhecer, contudo, que o texto constitucional não desamparou estas comunidades, visto que no seu art. 216diz que o patrimônio cultural brasileiro é constituído pelos “ bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Dentre eles se incluem: (III) “ as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver”. Esses bens, conforme assegura a referida Constituição, devem ser protegidos pelo Estado e os danos e ameaças a eles devem ser punidos na forma da lei. Todavia, embora tenha emergido ao mundo jurídico, por meio das lutas populares, algumas inovações legais – aexemplo do d ecreto presidencial 6.040/2007, ou mesmo da Convenção 169/OIT, cujo Brasil é signatário – ospovos tradicionais ainda enfrentam várias dificuldades no ordenamento jurídico pátrio, sobretudo no que concerne ao reconhecimento dos seus territórios. O que dizer, por exemplo, das terras utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (DECRETO Nº 6.040, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007, art. 3º, I). comunais, tendo em vista que o ordenamento jurídico pátrio apenas prevê duas modalidades de propriedade desses bens (terras), quais sejam particulares ou públicas? Na falta de uma resposta satisfatória no ordenament o jurídico, as diversas comunidades se socorrem de várias maneiras, na busca pela retomada de seus territórios. Na comunidade de Vereda Funda39, de Rio Pardo de Minas, por exemplo, a forma encontrada foi a criação de um Assentamento Extrati vista. A comunidade de Sobrado, do mesmo município, discute a criação de uma lei mu nicipal de iniciativa popular que (se aprovada) disporá sobre o reconhecimento das Comunidades Tradicionais Geraizeiras e a proteção dos seus Territórios. Na Á gua Boa e outras comunidades, inclusivede outros Municípios busca-se a criação de um RDS – Reserva de Desenvolvimento Sustentável. E outras comunidades, em diversos estágios de organização e luta, ainda buscam acharrespostas. O Movimento geraizeiro é, portanto, uma luta que perpassa pela efetivação de normas legais já existentes, ao passo que busca também forçar o surgimento de novos direitos, a partir da reafirmação de suas identidad es, ainda não satisfatoriamente reconhecidas. Num sentido mais de âmbito jurídico, vale trazer á baila os ensinamentos do Roberto Lyra Filho que, na tentativa de conceituar o Direito – que para o autor não se confunde com a lei – diz que aquele não é algo f ixo, ou “uma resposta pronta e acabada”, mas, um “vir a ser”. Segundo o autor, a v ertente jurídica é incompreensível e inexplicável fora do contexto das lutas de classes,o que ele denomina de “dialética social do direito”(LYRA FILHO, 1982: 12).