UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
FACULDADE DE ECONOMIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA
MARCIO ALVARENGA JUNIOR
DECISÕES SOBRE O USO DA TERRA EM UMA ECONOMIA MONETÁRIA
DA PRODUÇÃO: UMA ABORDAGEM PÓS-KEYNESIANA DO EFEITO
INDIRETO SOBRE O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA LEGAL NO
PERÍODO 2002-2011
NITERÓI
2014
MARCIO ALVARENGA JUNIOR
DECISÕES SOBRE O USO DA TERRA EM UMA ECONOMIA MONETÁRIA
DA PRODUÇÃO: UMA ABORDAGEM PÓS-KEYNESIANA DO EFEITO
INDIRETO SOBRE O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA LEGAL NO
PERÍODO 2002-2011
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Economia da
Universidade Federal Fluminense
como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Economia.
ORIENTADORA: PROF. DR. CARMEM APARECIDA FEIJÓ
CO-ORIENTADOR: PROF. DR. CARLOS EDUARDO FRICKMANN YOUNG
Niterói
2014
MARCIO ALVARENGA JUNIOR
ii
DECISÕES SOBRE O USO DA TERRA EM UMA ECONOMIA MONETÁRIA
DA PRODUÇÃO: UMA ABORDAGEM PÓS-KEYNESIANA DO EFEITO
INDIRETO SOBRE O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA LEGAL NO
PERÍODO 2002-2011
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Economia da
Universidade Federal Fluminense
como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Economia.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Prof. Dra. Carmem Aparecida Feijó
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Frickmann Young
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________
Prof. Dr. Marcos Tostes Lamonica
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________
Prof. Dr. André de Melo Modenesi
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Niterói
2014
iii
As opiniões expressas neste trabalho são de exclusiva responsabilidade do autor.
iv
Agradecimentos:
“Happiness is only real when shared”
(Alexander Supertramp)
Curiosamente, é no cumprimento do meu último compromisso com o mestrado em
economia, aquele que precede minha titulação de mestre, que peço licença para
relativizar um pouco esse termo de modo a agradecer todos os mestres, titulados ou não,
por essa conquista coletiva. Todo o conhecimento aqui depositado e todo o processo de
aprendizado nesses últimos dois anos resultam das relações sociais que travei dentro e
fora da universidade.
Aos mais ávidos por resultados, aconselho que pulem essa parte, pois perderei algum
tempo tentando fazer justiça ao defender esse trabalho como fruto de inspiração e,
sobretudo, transpiração coletiva.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a minha família por me ensinar o valor da
educação; a minha mãe, Norma, pelo meu caráter e pelo amor e carinho que sempre
recebi, a minha irmã, Patrícia, por ser todos esses anos o meu exemplo acadêmico, a
minha irmã, Priscila, pelo exemplo de ternura e sensibilidade, sem o qual eu
provavelmente sucumbiria a fria numerologia que teoria econômica se tornou, ao meu
pai, Marcio, pelo meu amadurecimento, ao meu cunhado, Daniel, pela simplicidade
como explica suas ideias – algo que pretendo atingir na minha caminhada – e aos meus
sobrinhos, Miguel e Luísa, por me permitirem a infância mesmo aos 26 anos de idade.
Agradeço a minha orientadora e amiga, a Professora Carmem Feijó, pela paciência,
dedicação, ensinamentos e, acima de tudo, por abraçar um projeto novo em sua área,
acreditando às cegas na minha capacidade de realizá-lo. Aproveito para dizer que esses
dois anos de convivência foram fundamentais para reforçar algumas de minhas
convicções enquanto economista heterodoxo.
Ao meu co-orientador e amigo, o Professor Carlos Eduardo Young (ou, simplesmente,
Cadu), agradeço pelos ensinamentos, contestações, pela visão pragmática – que ainda
me falta –, por me apresentar o caminho da economia do meio ambiente e pela
satisfação de produzir conhecimento em sua companhia. Não posso me furtar em
agradecer, igualmente, pela paciência e tempo dedicados à realização deste trabalho.
Ao professor e amigo Fernando Mattos, por quem guardo uma profunda gratidão por
fincar meu pé na historiografia.
Aos meus colegas de mestrado, pelos debates, cervejas, lamentações, pela “altinha na
sala de aula”, pela união e cumplicidade, enfim, por fazerem desses últimos anos
memoráveis. De vocês, sentirei eternas saudades. Deixo um agradecimento especial
para meus colegas Rafinha, Joana, Débora, Lucas, Vanessa, Giba, Elisa, João, Graci,
com os quais dividi muitas mesas, de estudo e de bar. À Liana pelos papos
intermináveis sobre liberdade e “felicidade genuína”.
v
Aos meus bons amigos, Miguel, Castro, Amaral, Marcella, Cadi, Von Ana, Carol, Valu,
André, Guliver, Marreta, Mundo Verde, Herzog, Jaime, Jiva, Botelho, Fischer, Camila,
Marco, Alexandre, Daniel, Juliana, Izabela, Julia, Paulinho, Fernanda, Medeiros, Júlio,
Andrew e Melina, com os quais dividi aflições e felicidades, além de terem sido pra
mim uma fonte inesgotável de conhecimento, companheirismo e risadas.
À Stefanie Saadi, pela difícil tarefa de explicar direito agrário a um economista e, acima
de tudo, por dispor de tempo quase inexistente para ajudar no andamento desse trabalho.
Ao estimado Henrique Fonseca, pelo conselho mais simples e efetivo que recebi na
minha vida até hoje.
À Família Hung, sem a qual esse caminho teria sido bem mais estressante e muito
menos divertido e harmonioso. Um agradecimento especial aos irmãos de treino
Guilherme, Jerônimo, Melina, Bel, Felissa, Diana, Bia, Batista, Araão, Frodo, Yuri,
Mayam e, por fim, ao patriarca dessa família, o Mestre e amigo Alessandro Boto.
vi
RESUMO:
Este trabalho tem por objetivo analisar as mudanças indiretas no uso da terra como
indutoras do processo de desmatamento na Amazônia Legal no período 2002-2011.
Para tal, parte-se de um referencial teórico que entende a decisão sobre o uso da terra
como uma decisão de acumulação de riqueza em uma economia monetária da produção,
por meio da qual os agentes estabelecem uma ponte entre duas posições em moeda, a
corrente e a futura. Através da Teoria de Escolha de ativo de Keynes, sustenta-se que o
diferencial de rentabilidade entre a soja e a pecuária tem sido funcional para deslocar o
rebanho bovino para áreas novas de floresta. De fato, a partir da análise das taxas de
expansão anuais do efetivo bovino e da área plantada com soja na região amazônica, foi
possível encontrar uma série de municípios para os quais o crescimento acelerado da
área cultivada com o grão ocorreu concomitantemente à retração do rebanho bovino ou
ao crescimento deste abaixo da taxa média brasileira, ou das demais taxas de corte. Para
o caso específico do Mato Grosso, foi possível observar um decrescimento das áreas de
pastagem na região central e sul do estado, exatamente nas localidades onde as áreas de
lavouras temporárias, especialmente a soja, se expandiram em ritmo mais acelerado, e
onde o preço médio da terra é mais alto. Em contrapartida, no extremo norte do estado,
as áreas de pastagem cresceram substancialmente, impulsionadas pelos preços
relativamente mais baixos da terra e, possivelmente, pelas possibilidades de apropriação
deste ativo nas áreas de fronteira agrícola nova. Esse crescimento assimétrico do
rebanho e das áreas de pastagem no Mato Grosso terminou rebatendo nas taxas de
desmatamento, que se deslocaram na mesma direção que o gado, de modo que as
regiões de Aripuanã, Vila Rica e Alta Floresta, redutos do crescimento da pecuária
mato-grossense, concentraram cerca de 60% do incremento da área desmatada no
período analisado.
Palavras-Chave: Economia Monetária; Decisões sobre Uso da Terra; Acumulação de
Terras; Grilagem; Soja; Gado; Mudanças Indiretas no Uso da Terra; Desmatamento;
Amazônia Legal; Mato Grosso.
vii
ABSTRACT:
This dissertation aims to analyze the indirect land use changes as inducer of the
deforestation in the Brazilian Amazon between 2002 and 2011. To this end, it starts
from a theoretical background that treats the decision regarding land use as decision of
wealth accumulation in a monetary production economy, whereby it establishes a bridge
between two positions in money, current and future. Through this amplified view, it is
stated that the difference in monetary returns between soybean production and cattle
ranching has been playing a pivotal role to displace cattle herd northward, to new forest
areas. Indeed, taking into account the analysis of annual growth rates of cattle herd and
soybean planted area in the Amazon region, it was possible to find a set of
municipalities for which the accelerated growth of the latter variable occurred
concomitantly with the decline of cattle herd or, at least, with a smaller expansion rate
in comparison to the national average rate. For the specific case of Mato Grosso, it was
possible to observe a decrease of pasture areas in the central and south regions of the
state, exactly in the locations where the average price of land is higher and where
temporary croplands, especially soybeans, expanded in pace faster. On the other hand,
in the northern region of the state, pasture areas had grown substantially, driven by the
relatively lower land prices and by the possibility of land accumulation in areas of new
agricultural frontier. As a result, those localities with a higher expansion of pasture
areas concentrated approximately 60% of all additional deforestation that occurred at
Mato Grosso state during the analyzed period.
Key Words: Monetary Economy; Land Use Decisions; Land Accumulation; Land
Grabbing; Soybean; Cattle; Indirect Land Use Change; Deforestation; Brazilian
Amazon; Mato Grosso.
viii
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................................1
Capítulo I - Pós-Keynesianismo e decisões sobre o uso da terra em uma economia
monetária da produção.......................................................................................................8
I.1 - O programa de pesquisa Pós-Keynesiano...........................................................9
I.2 - Operacionalidades em uma economia monetária da produção.........................15
I.3 - Teoria de Escolha de Ativos em Keynes: entendendo as razões para a
aquisição de terras................................................................................................21
I.3.1 - O mecanismo de ajuste do equilíbrio da carteira de ativos.......................26
I.3.2 - A Teoria de Escolha de Ativos aplicada ao ativo terra.............................29
I.4 – Resumo conclusivo..........................................................................................35
Capítulo II - Custo de uso, efeito indireto e direito de propriedade: o que os PósKeynesianos têm a dizer sobre o desmatamento?...........................................................37
II.1 - O conceito de custo de uso e a renda do empresário.......................................38
II. 2 - A indefinição dos direitos de propriedade e as consequências da exclusão do
componente de capital da renda do empresário........................................................41
II.3 - Acesso quase-aberto à terra: um modelo de definição de direito de
propriedade ex-post-facto.........................................................................................46
II.4 - A dualidade na fronteira e a teorização do efeito indireto sobre
desmatamento...........................................................................................................48
II.5 A identificação do efeito indireto e sua importância para política de
desmatamento...........................................................................................................54
II.6 - Resumo conclusivo..........................................................................................55
Capítulo III - Apropriação territorial, grilagem e a escassez relativa da terra.................56
III.1 - A formação, consolidação e operacionalidade do mercado de terras no brasil:
construindo a escassez da terra.................................................................................58
III.2 - A grilagem de terras públicas: entendendo o problema.................................66
III.2.1 - Grilagem de terras públicas: motivações, práticas e métodos....71
III. 3 - A Economia da Grilagem..............................................................................75
III.3.1 – Dimensionando o estrago...........................................................82
ix
III.4 - Aspectos gerais sobre a acumulação na fronteira amazônica........................87
III.5 - Resumo conclusivo........................................................................................90
Anexo III.1 - Das Sesmarias à Lei de Terras............................................................92
Anexo III.2 - A Lei de Terras no Império................................................................98
Anexo III.3 - A imprecisão do termo devoluto......................................................104
Anexo III.4 - Lei de Terras na República Velha....................................................107
Capítulo IV: Evidências do efeito indireto sobre desmatamento na Amazônia brasileira:
uma análise para o decênio 2002-2011..........................................................................112
IV.1 - Metodologia de análise................................................................................114
IV.2 - A chegada da soja a região norte e a proliferação dos focos de mudança
indireta do uso da terra...........................................................................................115
IV.2.1 - Soja e gado na Amazônia.........................................................129
IV.2.2 Focos de propagação do efeito indireto sobre desmatamento....125
IV.3 Evidências do efeito indireto para o estado do Mato Grosso.........................130
IV.4. Resumo conclusivo.......................................................................................137
CONCLUSÃO...............................................................................................................139
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................142
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Rentabilidade corrente anual – (R$/Ha). .......................................................78
Gráfico 2: Rentabilidade anual – receita líquida da venda da atividade pecuária somada
ao crescimento natural do rebanho – (em R$/Ha)...........................................................79
Gráfico 3: Rentabilidade anual total da pecuária - (em R$/Ha)......................................79
Gráfico 4. Situação Fundiária na Amazônia Legal considerando dados do Sistema
Nacional de Cadastro Rural (2003) e áreas protegidas (2006)........................................87
Gráfico 5: Comportamento do câmbio e diferencial de preço da tonelada da soja em real
e em dólar – 1996-2011.................................................................................................116
Gráfico 6: Cenários da evolução da produção de soja na região Norte – em
toneladas........................................................................................................................117
Gráfico 7: Taxa de câmbio e desmatamento na Amazônia Legal – 1996-2011............118
x
Gráfico 8: Taxas de lotação estimadas – Brasil.............................................................121
Gráfico 9: Participação relativa por grupo de estados nas taxas de desmatamento da
Amazônia Legal.............................................................................................................123
Gráfico 10: Participação relativa das microrregiões no incremento da área desmatada no
Mato Grosso entre 2002-2011.......................................................................................133
LISTA DE FIGURAS:
Figura 1: Maximização do Retorno Esperado com Direito de Propriedade
Inexistente........................................................................................................................45
Figura 2. A Natureza crescente dos Custos por Área Adicional Desmatada..................51
Figura 3: A dualidade na Fronteira..................................................................................53
Figura 4: Efeito Indireto sobre o Desmatamento.............................................................54
Figura 5: Localidade dos Municípios Propaladores do Efeito Indireto.........................127
Figura 6: Microrregiões Mato-Grossenses....................................................................131
Figura 7: Mapa quantílico para a taxa anual de crescimento do rebanho (A) e para o
incremento da área desmatada (B) – 2002-2011...........................................................134
Figura 8: Mapa quantílico para a taxa anual de crescimento da área plantada com soja
(A) e para o incremento da área desmatada (B) – 2002-2011.......................................135
Figura 9: Mapa quantílico para a taxa anual de do efetivo bovino (A) e para o para a
taxa anual de crescimento da área plantada com soja (B) – 2002-2011........................136
Figura 10: Municípios propaladores do efeito indireto e frequência por região matogrossense........................................................................................................................136
Figura 11: Mapa quantílico do Preço Médio da Terra - 2002-2011 – (em R$/Ha).......137
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Brasil. Taxas Médias de Crescimento do Preço e Arrendamento da Terra de
lavouras, em valores constantes (Jun/1998 = 100)..........................................................65
Tabela 2: Preços médios de terras de mata e pastagens..................................................81
xi
Tabela 3: Imóveis rurais cadastrados e suspeitos de grilagem – Por região (%).............82
Tabela 4: Brasil, Regiões e Unidades da Federação – Imóveis suspeitos de grilagem por
localização dos estabelecimentos....................................................................................83
Tabela 5: Imóveis notificados e imóveis que não responderam – segundo estratos de
área...................................................................................................................................84
Tabela 6: Área dos registros de terra cancelados em relação à área total do
município.........................................................................................................................85
Tabela 7: Cyber Grilagem na Amazônia.........................................................................86
Tabela 8: Evolução da Área Plantada com Soja e do Efetivo Bovino..........................120
Tabela 9: Área demandada de pastagem e demanda adicional por terras – 20022011...............................................................................................................................122
Tabela 10: Área demandada de pastagem e demanda adicional por terras – 20022011...............................................................................................................................122
Tabela 11: Demanda acumulada por terras no período 2002-11 segundo cenários
estimados para a produtividade bovina – em hectares..................................................124
Tabela 12: Focos propaladores do Efeito Indireto sobre o Desmatamento...................128
Tabela 13: Demanda Adicional por Terras, segundo regiões Mato-Grossenses – em
hectares..........................................................................................................................131
Tabela 14: Taxa estimada média de expansão das áreas de pastagem por região do Mato
Grosso – 2002-2011.......................................................................................................133
xii
Introdução
Analisando a série histórica das taxas de desmatamento disponibilizadas pelo
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), nota-se que a recente trajetória desta
taxa se apresenta como verdadeira conquista em termos ambientais, digna de
comemoração e nota. De 1996 a 2004, a Amazônia Legal perdia uma área média de
19.693 Km2 de vegetação nativa. A partir de 2005 até o ano de 2011, essa média passou
a ser de 11.249 Km2, ou seja, uma redução de aproximadamente 42%. Se confrontadas a
taxa de desmatamento de 2004 com a de 2011, nota-se uma redução de 27.772 Km2
para 6.418 Km2, ou seja, uma queda de 77% na área desmatada anualmente.
É intuitivo supor que o tom do debate tenha mudado, que alguns setores tenham
suavizado as cobranças por uma gestão sustentável da Amazônia, e que outros tenham
simplesmente se escondido por detrás do alvoroço das comemorações.
Seguramente, o setor sojicultor foi um dos que mais se beneficiou desse
contexto, pois, em paralelo a queda nas taxas de desmatamento veio o Programa
Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). Pelo PNPB, o Governo foi o
responsável por lançar a retórica da sustentabilidade do biodiesel, e se manteve firme no
discurso mesmo após a constatação da ampla hegemonia da soja na matriz de aquisição
de insumos1. Foi assim que o setor sojicultor, exaustivamente apontado por parte da
literatura como um dos principais vetores de desmatamento, foi oficialmente convidado
a participar dos festejos. Ao afirmar que a demanda por terras necessária para atender a
institucionalização do mercado de biodiesel no Brasil se assentaria exclusivamente em
áreas já convertidas, o Governo Federal buscou garantir uma espécie de “neutralidade
do cultivo de soja sobre as taxas de desmatamento”.
Após uma década do lançamento do PNPB, esta ideia segue sendo sustentada,
repassada e reproduzida por diversos setores da sociedade, da academia ao setor
produtivo. Hoje, não são poucos os estudos que responsabilizam quase que
exclusivamente a pecuária pelo grosso das taxas de desmatamento na Amazônia Legal,
isentando a expansão das lavouras temporárias da parcela de culpa que lhes é cabível.
No setor produtivo, a Moratória da Soja, que firmou o compromisso de não
comercialização do grão produzido em áreas desmatadas do bioma Amazônia, fornece
um exemplo emblemático do raciocínio da responsabilização pelo critério da conversão
1
Desde a criação do mercado de biodiesel (2005), a soja tem servido de insumo para aproximadamente
80% do total de diesel de biomassa comercializado no país.
1
direta. Sob esse prisma, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais
(ABIOVE) e a Associação Brasileira dos Exportadores de Cereais (ANEC) desde 2006
defendem veementemente que o setor sojicultor é neutro em relação ao desmatamento
ocorrido no bioma Amazônia. 2
Comumente, aqueles que defendem que o cultivo da soja não possui efeitos
consideráveis sobre a supressão das matas e florestas nativas se agarram como podem
aos dados sobre o uso da terra baseados em imagens de satélite. Segundo os dados do
Terraclass 2010, publicação conjunta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), apenas 5,4%
das áreas desmatadas encontravam-se ocupadas por lavouras temporárias, contra 62%
da pecuária.
Na contramão do que esses números poderiam sugerir, foi justamente em um
contexto de vertiginosa expansão da soja que as taxas de desmatamento iniciaram sua
escalada a patamares históricos, entre 1997 e 2004. No ano de 1999, o cultivo da soja
rompe de forma definitiva as fronteiras do Mato Grosso, avançando a taxas
estratosféricas sobre as terras do Pará, Rondônia e Tocantins. Coincidências a parte, é
justamente a partir desse ano que as taxas de desmatamento da Amazônia Legal
começam a se deslocar cada vez mais para região Norte, em detrimento dos estados do
Mato Grosso e Maranhão.
Posto em números, entre 1999 a 2004 a área plantada com soja cresceu 640% na
região Norte. O comportamento do rebanho bovino também apontou na direção de um
aumento na demanda por terras, tendo crescido em quase 80% no período. Trata-se de
um contexto de profunda elevação na competição por terras, cuja implicação mais
imediata é a valorização da terra agrícola e a consequente elevação do custo de
oportunidade de conservação das matas e florestas, ou, simplesmente o custo de
oportunidade da terra.
Todos esses fatores são fundamentais para explicar a explosão das taxas de
desmatamento e a mudança gradativa de sua concentração em termos geográficos. As
imagens de satélites apesar de fornecerem informações essenciais não conseguem
capturar o jogo de forças econômicas responsáveis por alterar o uso do solo ao longo do
tempo, e com isso perde-se clareza sobre a dinâmica do processo do desmatamento. Não
é intenção do presente trabalho analisar nem o PNPB, nem a Moratória da soja, embora
2
Estas duas entidades são signatárias da Moratória da Soja. Vale dizer que em conjunto, a ANEC e a
ABIOVE controlam mais de 90% da soja comercializada no país.
2
se reconheça a relevância de estudos voltados a destrinchar os efeitos dessas ações sobre
o desmatamento. De forma bem geral, o que se propõe, a priori, é a retomada do foco no
processo de tomada de decisões sobre o uso da terra em trabalhos que visam lançar
olhares sobre o fenômeno do desmatamento.
Das inúmeras contribuições que a economia pode oferecer à compreensão do
desmatamento, talvez a mais proeminente seja explicar como os agentes decidem sobre
a aquisição e uso da terra.
É importante ressaltar, de antemão, duas características históricas do processo de
apropriação territorial brasileiro que tem alterado os cálculos à respeito do uso deste
ativo. Em primeiro lugar, desde os tempos de colônia, a regulação da matéria agrária se
revela ineficaz para estancar a possibilidade do avanço de agentes sobre terras públicas
(devolutas ou não) e privadas. 3 Posteriormente, o processo de apropriação territorial
brasileiro se caracterizou por uma profunda concentração fundiária, tendo na grilagem
um dos principais meios de dominação dos acessos à propriedade da terra. 4 Pelo
primeiro aspecto, diz-se que o desmatamento possui como uma de suas motivações a
própria acumulação de terras, em que a limpeza da terra e a introdução da atividade
agrícola servem de instrumento para o reclame dos direitos de propriedade sobre esse
ativo. (YOUNG 1997; 2013). Pelo segundo aspecto, a concentração fundiária, na
medida em que concentra a oferta de terras na mão de um número menor de agentes,
possibilita a prática de preços mais elevados pela terra, facilitando seu uso como reserva
de valor. (PLATA & REYDON, 2006)
É praticamente inegável que a história impõe desafios práticos sobre o objeto de
análise desse trabalho. Ao analisar a tomada de decisões sobre o uso da terra, torna-se
essencial operar com um modelo capaz de tratar do processo de acumulação de terras
como indutor do próprio fenômeno do desmatamento. Ademais, é preciso que este
modelo possa operar com uma multiplicidade de condições institucionais no que tange
aos direitos de propriedade, pois esta é a característica jurídica mais marcante quando se
opera com terras nas áreas de fronteira agrícola.
Deste modo, o regresso à história não é um devaneio, mesmo para análises de
questões recentes. Trata-se, em última instância, da tentativa de harmonizar a
historiografia com a teoria econômica, em um exercício contínuo que busca reduzir as
3
4
Para mais ver Silva (1996; 1997), Secreto (2007) e Motta (2008).
Vide Asselin (1982), Holston (1993), Silva (1996) e MMA (2006).
3
distorções entre modelo e realidade, fugindo do uso das chamadas “hipóteses
simplificadoras”.
Em relação à discussão apresentada anteriormente sobre a responsabilização
ambiental do cultivo da soja – e de forma mais geral de outras lavouras temporárias –, é
notável que o processo de acumulação de terras abre espaço para uma visão mais
profunda da relação travada entre soja e desmatamento. Nesse sentido mais amplo, o
processo de expansão da área plantada com soja, tal qual o ocorrido na região norte,
efetiva uma demanda adicional por terras, e a questão chave é entender o que isso
significa em termos de ocupação do solo.
O padrão histórico de expansão da fronteira agrícola – em que o agente se
apropria de terras privadas ou públicas (devolutas ou não), realiza o corte seletivo da
madeira para posteriormente introduzir a pecuária – aponta para um desmatamento
claramente motivado pela acumulação de terras, onde a lógica é, em essência, a
exploração da terra como reserva de valor. O grande negócio nas áreas de nova
fronteira, dada a distância dos mercados consumidores e a infraestrutura precária
(notadamente a de transporte), não é a produção de gêneros agrícolas, mas a “produção
de direitos de propriedade” e a especulação com o preço da terra. É intuitivo pensar que
o avanço de uma cultura altamente mecanizada, como a soja, sobre novas áreas,
aumente o custo de oportunidade dos usos concorrentes para o solo, tal qual a pecuária e
a preservação de matas e florestas nativas.
Diversos estudos têm mostrado que há décadas a soja avança em ritmo acelerado
sobre as áreas de pecuária, sobretudo a extensiva. Levantamentos realizados pela
Agroconsult revelam que nos últimos dez anos o avanço das lavouras temporárias (com
participação destacada da soja) tomou cerca de 7,65 milhões de hectares das áreas de
pastagem. Se os números revelam a realidade do problema, apenas um crescimento
consistente da taxa de lotação (cabeça/hectare) das pastagens anularia as eventuais
pressões sobre as áreas florestadas, sobretudo diante do vertiginoso crescimento do
rebanho bovino nas últimas décadas na região norte.
Visando agregar esse debate, essa dissertação objetiva analisar a relação travada
entre a soja e a pecuária bovina na Amazônia
legal entre 2002-2011.
Fundamentalmente, a análise buscará esclarecer se o avanço da sojicultura e dos demais
cultivos anuais sobre as pastagens tem provocado a redução de sua área ou
simplesmente o seu deslocamento para outras localidades. A hipótese que se sustenta é
que o avanço da área plantada com soja (e demais lavouras temporárias) sobre as áreas
4
de pastagem tem ocorrido em ritmo muito mais acelerado do que o crescimento da taxa
de lotação (cabeça de gado por hectare), o que tem provocado o deslocamento do gado
de antigas áreas de pastagem para novas áreas de floresta, onde a terra tende a ser mais
barata.
Esse processo de desmatamento indireto associado ao deslocamento do gado
pela soja será explicado por um referencial teórico alternativo. A escolha por um
“novo” referencial teórico reside nas inadequações dos modelos de equilíbrio geral
walrasiano que buscam explicar a tomada de decisões sobre o uso da terra – também
conhecidos como modelos de controle ótimo de desmatamento. As inadequações vão
desde uma insistência em se trabalhar com direitos de propriedade bem definidos sobre
a terra, até a defesa de uma regra decisória que muito pouco diz a respeito sobre a real
operacionalidade das economias modernas.
Sobre os direitos de propriedade bem definidos, estes são comumente assumidos
pelos modelos de controle ótimo de modo a se assegurar que a “ação do leiloeiro
walrasiano” possa garantir um vetor de preços de equilíbrio que resulte no nível de
desmatamento ótimo, ou em outros termos, no uso eficiente da terra. Ao assumir tal
característica como dada, esses modelos não conseguem incorporar as expectativas dos
agentes como componente fundamental do desmatamento, atuando por meio das
decisões de acumulação de terras na fronteira agrícola.
Já em relação ao segundo aspecto, preciso reconhecer que a “regra de ouro”
neoclássica de determinação do nível de emprego dos fatores parece descrever uma
economia de trocas; a equivalência entre a produtividade marginal do fator e seu preço
só faz sentido como regra de decisão em um sistema onde os próprios fatores de
produção são remunerados por produtos, ou pelo menos, por algum tipo de moeda que
esteja sempre condenada a retornar ao circuito industrial na forma de demanda pela
produção corrente. Quando se opera dentro dos limites dessa economia, uma
produtividade maior resulta, inexoravelmente, na decisão de aumentar a produção, haja
não haver riscos de vazamento da riqueza para o circuito financeiro – pois, esse
simplesmente não existe -, eliminando a possibilidade de insuficiências persistentes de
demanda no mercado de bens. Assim sendo, aumentos de produtividade serão sempre
acompanhados pela elevação das taxas de desmatamento, pois nenhuma consideração
sobre a demanda pelos produtos agrícolas se faz necessária, e o mecanismo de preços é
perfeitamente funcional para eliminar eventuais desequilíbrios nos mercados.
5
Ante o exposto, torna-se evidente a clara necessidade de se analisar a tomada de
decisão sobre o uso da terra por meio de um referencial teórico que afaste este objeto do
equilibrismo walrasiano. É preciso entender como as decisões de aquisição e uso da
terra se enquadram em uma economia onde a moeda, mais do que um mero meio de
troca, surge como um meio de representação geral da riqueza, em sua forma pura de
poder de compra.
Essa mudança na percepção sobre a moeda faz com que sua retenção ganhe
sentido próprio, por sua aceitação geral e pela capacidade de transportar valor do
período corrente para um ponto indeterminado no futuro. Em outras palavras, torna-se
possível reter moeda por tempo indeterminado à espera de preços de ativos mais
convidativos; o que individualmente se apresenta como um comportamento defensivo
padrão em relação à incerteza sobre o curso dos eventos futuros da economia, no
agregado termina por impactar o preço relativo dos ativos e, consequentemente, as
estratégias de acumulação de riqueza escolhida pelos agentes. Em outras palavras, os
agentes decidem sobre o uso da terra em uma economia onde retenções de posições em
moeda afetam o preço relativo da generalidade dos ativos, afetando suas taxas próprias
de juros.
Em vista dos desafios teóricos e práticos aqui expostos, essa dissertação se
divide em quatro capítulos: dois de natureza essencialmente teórica, um capítulo
histórico e um capítulo com evidências estatísticas.
O primeiro deles, intitulado Pós-Keynesianismo e decisões sobre o uso da terra
em uma economia monetária da produção, tem por finalidade apresentar o referencial
teórico alternativo, e fazer a primeira aproximação entre o objeto de análise e a escola
Pós-Keynesiana. Nele, são apresentados os princípios delimitadores dessa escola, além
da “Teoria de Escolha de Ativo de Keynes” aplicada ao caso da terra. Via de regra, o
capítulo inicial explica as decisões de aquisição e uso da terra em uma economia
monetária da produção.
O segundo capítulo – Custo de Uso, efeito indireto e direito de propriedade: O
que os Pós-Keynesianos têm a dizer sobre o desmatamento? – dá sequencia a tentativa
de aproximação estabelecida no primeiro capítulo, embora com um foco um pouco
distinto: busca entender como as decisões sobre o uso da terra são impactadas pelos
diversos arranjos institucionais no que tange ao direito de propriedade sobre esse ativo.
Uma excepcional conveniência no modelo apresentado nesse capítulo é permitir a
compreensão de forma clara e direta da inter-relação entre as fronteiras agrícolas nova e
6
antiga, permitindo o entendimento de como os agentes em uma fronteira reagem (por
meio de suas estratégias de acumulação) às alterações nas condições econômica
ocorridas na outra fronteira.
O terceiro capítulo – Apropriação territorial, grilagem e a escassez relativa da
terra – traz para a análise a questão da “produção” dos direitos de propriedade sobre a
terra, com o enfoque voltado para a questão da construção histórica da escassez relativa
desse ativo. Não obstante, o capítulo trata do processo de acumulação de terras na
fronteira agrícola, extremamente importante para a compreensão do efeito indireto sobre
o desmatamento, pois o ganho patrimonial derivado da titulação da propriedade é, em
diversos casos, a principal fonte de fluxos monetários da pecuária extensiva nas áreas de
fronteira nova.
Por fim, o quarto capítulo, intitulado Evidências do efeito indireto sobre
desmatamento na Amazônia brasileira: uma análise para o decênio 2002-2011, tem por
objetivo apresentar dados que ajudem a comprovar que a recente expansão das áreas de
lavoura temporária – lideradas pelo avanço da soja – tem provocado o deslocamento da
pecuária para as áreas de floresta.
7
CAPÍTULO I: PÓS-KEYNESIANISMO E DECISÕES SOBRE O
USO DA TERRA EM UMA ECONOMIA MONETÁRIA DA
PRODUÇÃO
I.
Introdução
O presente capítulo e o próximo têm por finalidade apresentar o referencial
teórico que será utilizado no decorrer desta dissertação, através do qual será analisado o
problema do desmatamento no período 2002-2011 ocorrido na Amazônia brasileira. De
maneira sintética, os dois capítulos iniciais visam fornecer elementos que possibilitem a
obtenção de respostas as seguintes perguntas fundamentais: 1) Por que os agentes
econômicos adquirem terras? 2) Como se explica economicamente a decisão de
desmatar determinado lote de terra? 3) O que é o Efeito Indireto e qual é a sua
relevância para explicar economicamente as causas do desmatamento?
Assumindo que o desmatamento vai além de uma dimensão meramente
produtiva, ou seja, de que a expansão da fronteira agrícola possui determinantes outros
que não apenas o aumento da produção de bens primários, o referencial teórico aqui
apresentado terá que fornecer uma ferramenta analítica que autorize o entendimento de
maneira simples e direta do processo de tomada de decisão em relação à aquisição e ao
uso da terra. Para tal, será apresentado um referencial teórico pós-keynesiano, que,
apesar de pouco utilizado pela economia do meio ambiente, surge como alternativa
muito mais completa e realista, seja por permitir a inclusão do comportamento
especulativo dos agentes, seja por introduzir conceitos como o de incerteza verdadeira,
reduzindo as distorções na relação entre modelo e realidade.
Para responder ao conjunto de perguntas listadas acima, esse capítulo fará uso da
teoria de escolha de ativos formulada por Keynes em sua Teoria Geral do Emprego, do
Juro e da Moeda. Adianta-se que as razões para a manutenção de terra agrícola em
carteira são muitas, tendo desde motivações produtivas até a simples necessidade de se
representar a riqueza sob uma forma capaz de reservar seu valor ou de multiplicá-lo ao
longo do tempo. O entendimento dessas razões torna-se bastante intuitivo através da
análise das taxas próprias de juros, que tendem a embasar as decisões de acumulação de
riqueza de acordo com alguns atributos fundamentais compartilhados pela generalidade
dos ativos da economia – tal qual exposto no capítulo 17 da “Teoria Geral”.
Como a aquisição de terras e as decisões acerca de seu uso fazem parte do
processo de composição de portfólio, e na medida em que a incerteza verdadeira
imprime marcas profundas no processo de acumulação em uma economia monetária da
8
produção, é natural supor que as decisões sobre o uso-da-terra sejam igualmente
afetadas pela incapacidade dos agentes econômicos em prever com exatidão o estado de
negócios futuro da economia. Desse modo, desconsiderar a incerteza como uma
característica
incontornável do
ambiente
implica
em prescindir
do
caráter
fundamentalmente especulativo em que as decisões sobre composição de carteira são
tomadas, incluindo as decisões sobre o uso da terra.
Mais do que simplesmente apresentar um novo referencial teórico para a análise
do desmatamento brasileiro, pretende-se com esta dissertação encorajar uma atuação
mais veemente da teoria Pós-Keynesiana na economia do meio ambiente. Nesse sentido,
ganha a economia do meio ambiente, por partir de uma análise mais verossímil sobre o
modus operandi do sistema capitalista, bem como a teoria pós-keynesiana, por expandir
sua área de influência sobre as demais temáticas da economia.
Buscando percorrer tal caminho, esse capítulo se dividirá em mais 3 seções além
da introdução. A primeira seção – O Programa de Pesquisa Pós-Keynesiano –
apresentará os fundamentos da escola de pensamento a qual o presente trabalho buscará
integrar. A segunda seção – Operacionalidades em uma Economia Monetária – visa
descrever como as economias modernas realmente operam, ratificando o papel
fundamental da moeda nos processos econômicos. Por fim, a terceira seção – Teoria de
Escolha de Ativos em Keynes: entendendo as razões para a aquisição de terras – que
objetiva apresentar os fundamentos da tomada de decisão dos agentes econômicos no
quando da composição de seus portfólios. Esta seção será particularmente importante
por permitir o link entre a acumulação em uma teoria monetária da produção e as
decisões sobre o uso-da-terra, notadamente as decisões de desmatar, diretamente
abordadas no capítulo seguinte.
I.1) O programa de Pesquisa Pós-Keynesiano
É preciso definir a priori o que se pretende dizer quando este trabalho se
apropria do rótulo keynesiano. A mera utilização do termo keynesiano pouco diz sobre
a natureza teórica aqui expressa. Não foram poucos aqueles que se denominaram
keynesianos sem manter qualquer coerência com os escritos originais de Keynes,
fundamentando suas alcunhas na simples apropriação de resultados e em conceitos
destituídos de sua dimensão teórica. Velhos e Novos Keynesianos, a exemplo,
referenciam Keynes sem qualquer menção a teoria monetária da produção, ao princípio
9
da demanda efetiva ou a incerteza verdadeira. 5 Por esta razão, Davidson (1984) assim se
referiu aos teóricos da síntese neoclássica: “From a logical standpoint the neoclassical
synthesis Keynesians had created a Keynesian Cheshire Cat – a grin without a body.”
(Ibid, p.24).
A referência que o presente trabalho faz ao keynesianismo integra-se
diretamente com a escola de pensamento Pós-Keynesiana americana, tendo com
principais expoentes Davidson (1972), Minsky (1982; 1986) e Carvalho (1989; 1992).
De acordo com essa escola, a grande revolução representada pela obra de Keynes reside
na compreensão dos efeitos da incerteza não probabilística sobre as decisões dos
agentes econômicos, notadamente as que se referem à forma e ao ritmo da acumulação
de riqueza em uma economia monetária da produção. (OREIRO, 2011).
Davidson (1972; 1984) sumarizou as fundações sobre as quais a teoria póskeynesiana se apoiaria, apresentando uma série de princípios delimitadores do conceito
de economia monetária, em oposição a alguns axiomas sustentados pela teoria
Neoclássica.
Do ponto de vista lógico, não existe qualquer possibilidade de compatibilização
entre os axiomas neoclássicos e a teoria pós-keynesiana. Enquanto a teoria neoclássica
descreve um mundo em que a moeda é neutra, a incerteza é probabilizável – pois o
processo econômico é estacionário – e a demanda agregada se ajusta via variação nos
preços relativos, conferindo estabilidade ao equilíbrio de pleno emprego, a teoria póskeynesiana entende que a moeda afeta as estratégias de acumulação, que a incerteza é
um fenômeno incontornável e incalculável do ponto de vista estatístico e que o princípio
da demanda efetiva é o elemento que descreve a verdadeira relação entre as funções de
oferta e demanda agregadas. Desse modo, aceitar os princípios delimitadores do
programa de pesquisa pós-keynesianos implica invariavelmente em rejeitar os três
axiomas neoclássicos, abaixo:
i. O axioma da substituição bruta: “um bem qualquer pode ser substituído por
outro” (DAVIDSON, 1984, p.14), de modo que elevações no preço de um bem
resultam no deslocamento da demanda para o seu similar.
ii. Axioma dos reais: somente bens e serviços geram utilidade aos agentes
econômicos.
iii. Axioma da Ergodicidade: o processo econômico é estacionário
5
Para mais, ver Alvarenga Jr. (2013) e Ferrari Filho (2003).
10
Em termos práticos, se os preços são perfeitamente flexíveis e a função de
demanda pelos bens é bem comportada, o axioma da substituição bruta garante que
excessos ou insuficiência de demanda em mercados específicos serão automaticamente
eliminados pelas consequentes alterações na estrutura de preços relativos. (SERRANO,
2001). Supondo a elevação exógena no preço de um fator de produção, é possível
identificar duas ondas substitutivas; primeiramente, as firmas passam a se utilizar de
técnicas – supostas infinitas pelo conceito de isoquantas – menos intensivas no fator que
teve seu preço exogenamente elevado, por fim, os próprios consumidores tendem a
deslocar sua demanda para produtos análogos, mais baratos. Estes dois fenômenos são
conhecidos na literatura como substituição direta e indireta, respectivamente, e se
aplicam a todo e qualquer bem, inclusive a moeda.
De acordo com o segundo axioma, os indivíduos estão somente interessados no
valor real das variáveis econômicas no quando da tomada de decisões. Quaisquer
desvios em relação a esse comportamento violam a hipótese da racionalidade, como no
caso da ilusão monetária. (CARVALHO, 1992). A implicação do axioma dos reais é a
própria aceitação de que a moeda não afeta “motivos e decisões”, ou em termos mais
comuns: a moeda é neutra. De forma equivalente, dizer que a moeda é neutra implica
rejeitá-la como um ativo, reduzindo-a a uma mera intermediadora de trocas.
É evidente que a neutralidade da moeda ratifica a lei de Say, em que a demanda
agregada se iguala ao produto potencial – derivada do equilíbrio no mercado de
trabalho. O mecanismo que garante essa igualdade é, mais uma vez, a perfeita
flexibilidade de preços, especificamente, a perfeita flexibilidade da taxa de juros. Nesse
caso, todo o excesso de renda sobre as necessidades de consumo (poupança) encontrará
destinação no circuito real (investimento). Se o desejo por novas inversões encontra-se
aquém da quantidade de recursos a serem emprestados, a queda na taxa de juros
incidente sobre tais empréstimos fornecerá o estímulo necessário à igualação do
investimento à poupança. A partir desse ponto, a teoria neoclássica assegura que toda a
renda não consumida será necessariamente investida.
Por fim, o axioma da ergodicidade. De acordo com este axioma, eventuais erros
cometidos pelos agentes podem ser corrigidos basicamente pelo tateamento do mercado.
Se existe a possibilidade não apenas de se aprender com os equívocos, mas eliminá-los
em rodadas sucessivas de tentativa e erro, torna-se evidente que o processo econômico é
fundamentalmente estacionário no mundo descrito pelos teóricos neoclássicos. A
replicabilidade que permite com que os agentes coletem todos os dados necessários e
11
descubram a distribuição de probabilidades dos eventos relevantes claramente assume
que as decisões tomadas no período corrente não afetam o valor das variáveis no futuro.
Isto equivale a dizer que o processo econômico independe do tempo, no sentido que o
valor de longo prazo das variáveis se mantem estável de um período para o outro,
independente dos rumos que a economia possa tomar no curto período.
A simples rejeição dos axiomas acima é suficiente para afastar esta análise da
economia neoclássica, muito embora seja excessivamente vaga para colocá-la dentro de
dos limites específicos da escola Pós-Keynesiana. Mais do que a mera rejeição dos
axiomas, o programa de pesquisa pós-keynesiano está ancorado no conceito de
economia monetária da produção e nos princípios descritivos de como tal economia
opera, como revela o trecho abaixo:
[...] Post Keynesians have as their programme precisely to develop the new vision,
that of a monetary economy. This is the unifying concept that organizes the Post
Keynesian paradigm and that makes it possible to overcome the very common
impression (even among Post Keynesians themselves) that this school is united by the
arguments they refute than by positive tenets of theory reconstruction.(CARVALHO,
1992,. p.37)
O amadurecimento do conceito de economia monetária da produção demarca um
período na história bibliográfica de Keynes entre o lançamento do Tratado Sobre a
Moeda e o lançamento de sua Teoria Geral. Após a primeira obra, Keynes passa a
reconheer um papel distinto desempenhado pela moeda no sistema econômico. Mais do
que um mero meio de trocas, para o autor, a moeda se apresenta como um dos meios
possíveis de representação da riqueza, na sua forma mais generalizada. O
reconhecimento desse fato abre a possibilidade dos agentes demandarem moeda por
outras razões que não somente para intercambiar bens e serviços.
A conceituação precisa do que vem a ser uma economia monetária da produção
encontra-se espalhada em uma série de trabalhos de Keynes ao longo de sua vida
acadêmica, tendo sido, por fim, codificada em sua obra mais famosa: a Teoria Geral.
Esta conceituação será aqui apresentada sob a forma de seis princípios delimitadores,
frutos do esforço de compilação realizado por Davidson (1984) e Carvalho (1992);
sendo eles: o princípio da produção, o princípio da estratégia dominante, o princípio da
temporariedade dos processos econômicos, o princípio da não-ergodicidade, o princípio
da coordenação e o princípio das propriedades da moeda. Estes seis princípios em
conjunto formam o núcleo duro do programa de pesquisa pós-keynesiano, definindo
com exatidão o que se pretende dizer por economia monetária.
12
O primeiro princípio estabelece que produção é organizada e conduzida por
firmas, cujo objetivo principal é a valorização de sua riqueza, notadamente, sob a forma
monetária. O objetivo central da firma ao decidir produzir não é aumentar a quantidade
de bens sob seu controle, mas sim terminar com uma quantidade maior de dinheiro do
que aquela que se possuía no início do processo produtivo. (KEYNES, 1973). A firma
keynesiana não é o agente amorfo neoclássico, cujos objetivos e características se
confundem em diversos momentos aos das famílias. A firma não existe para gerar
utilidade para seus donos, mas para gerar lucros na forma monetária, partindo do
dinheiro para mercadoria, com o intuito claro de gerar mais dinheiro. Esta é, segundo
Carvalho (1992), a única referência amigável que Keynes fez a Karl Marx em toda sua
obra.
O segundo princípio formador do conceito de economia monetária de produção é
o princípio da estratégia dominante. De acordo com o mesmo, são as firmas que tomam
as decisões relevantes em uma economia empresarial. Nesse sentido, nunca é demais
recordar que os níveis de emprego e renda da economia derivam das decisões de
produzir e investir das firmas6. A assimetria de poder decisório sobre a dinâmica da
economia reside na ideia de que os meios de produção encontram-se concentrados sob o
poder das firmas, enquanto a capacidade de trabalho é uma característica que permeia
quase que a totalidade dos agentes.
Outro elemento descritivo de uma economia empresarial é o princípio da
temporalidade. De acordo com este, os processos econômicos se desenvolvem no
tempo, de modo que as decisões das firmas e o resultado monetário decorrentes dessas
decisões estão separados por um intervalo de tempo não desprezível. Como a demanda
pelos produtos de uma firma é desconhecida ex-ante, esta não tem escolha que não
decidir sua escala de produção e contratar os fatores produtivos condizentes baseada em
expectativas.
É do princípio da não-ergodicidade adicionado ao da temporalidade que se pode
derivar em uma dimensão microeconômica a incerteza verdadeira ou incerteza nãoprobabilística. O tempo sobre o qual os processos econômicos se desenvolvem é
unidirecional, ou seja, uma vez tomada uma determinada decisão, é impossível
reestabelecer as condições preexistentes do ambiente. Assim sendo, os erros de
expectativa e decisões em um período não geram conhecimento utilizável para a
6
Ver Keynes (1936), capítulo 3.
13
eliminação ou redução dos erros nos períodos subsequentes. Deste ponto, subentende-se
que a incerteza que cerca as decisões capitalistas é incalculável probabilisticamente,
pois os dados gerados pelas decisões tomadas nada revelam de concreto sobre o futuro.
O princípio da coordenação, por sua vez, parte da descrição da economia
capitalista como um sistema caracterizado pela divisão do trabalho, em que o processo
produtivo encontra-se normalmente fragmentado em várias etapas coordenadas por
produtores distintos. Um grande problema associado à complexa rede de relações entre
produtores é que a economia capitalista não produz endogenamente mecanismos de
coordenação geral capazes de determinar, a priori, a quantidade de bens a ser produzida
ou o período do tempo em que estes produtos – notadamente os bens intermediários –
devem se encontrar disponíveis no mercado para o avanço do processo produtivo. Esta
coordenação, tal qual afirma Carvalho (1992), é obtida ex-post-facto, através da
revelação do mercado de quais estratégias e decisões foram acertadas e quais foram
equivocadas. As decisões equivocadas terminam por gerar perdas monetárias àqueles
que as tomaram. Na tentativa de reduzir os efeitos da incerteza sobre os resultados
monetários, é comum que os agentes desenvolvam algumas instituições para repartir
riscos e eventuais perdas, à exemplo dos contratos futuros denominados em moeda.
O último princípio a ancorar o conceito de economia monetária da produção diz
respeito às propriedades fundamentais da moeda. De acordo com o mesmo, a
capacidade da moeda em liquidar obrigações de imediato – ou seja, a sua liquidez
máxima – depende de que esta possua elasticidades de produção e substituição se não
nulas, pelo menos desprezíveis. Em outros termos, é preciso que a moeda não possa ser
criada ou substituída facilmente pelos agentes privados em virtude de eventuais
alterações nos preços relativos da economia. No caso da teoria pós-keynesiana, o
desemprego involuntário emerge em função da insuficiência de demanda efetiva. Esta,
por sua vez, resulta das decisões dos empresários em manterem parte de seus recursos
sob a forma de ativos não reproduzíveis por trabalho (como no caso da moeda), ao invés
de imobilizá-los na forma de novas inversões. Se as duas propriedades não fossem
válidas, toda vez que a demanda por moeda se elevasse, seria possível ou deslocar parte
dos fatores produtivos para a sua produção, ou pelo menos substituir esse ativo por
algum outro mais barato. No primeiro cenário, o desemprego provocado pela fuga dos
recursos para ativos financeiros se reduziria pela alocação da mão-de-obra desocupada
na produção privada de moeda. Por fim, caso a substituição da moeda ocorresse de
forma fácil, toda vez em que uma situação de forte preferência pela liquidez
14
pressionasse os preços dos ativos financeiros, tal qual a moeda, estes seriam
naturalmente substituídos por ativos reais, reduzindo o desemprego de fatores e
reestabelecendo a estrutura de preços relativos. Existiria, pois, uma tendência inegável
ao pleno emprego. Em relação a esse aspecto, Keynes (1936) escreveu:
Quer isso dizer que o desemprego aumenta porque as pessoas querem a Lua; os
homens não podem conseguir emprego quando o objeto de seus desejos (isto é, o
dinheiro) é uma coisa que não se produz e cuja demanda não pode ser facilmente
contida. O único remédio consiste em persuadir o público de que a Lua e o queijo
verde são praticamente a mesma coisa, e a fazer funcionar uma fábrica de queijo
verde (isto é, um banco central) sob o controle do poder público. (Ibid., p. 181-184).
De forma resumida, estes são os princípios formadores do conceito de economia
monetária da produção teorizados por Keynes e sumarizados por Davidson (1984) e
Carvalho (1992). Em nenhum momento da análise que se seguirá a partir desse ponto,
essa dissertação prescindirá de qualquer um desses princípios. Toda a análise aqui
exposta será conduzida levando em consideração os efeitos fundamentais da incerteza –
no sentido estrito de improbabilidade – sobre o processo de acumulação de riqueza.
Partindo desse ponto, esta dissertação apresentará nas próximas seções as implicações
da incerteza sobre as decisões de aquisição e uso da terra.
I.2) Operacionalidades em uma Economia Monetária da Produção
Um dos aspectos mais inovadores da teoria de Keynes foi a introdução do
conceito de incerteza verdadeira (ou knigthiana) em sua análise sobre a tomada de
decisões dos agentes. Em seu trabalho, a incerteza verdadeira assume uma clara
conotação de improbabilidade, não podendo, portanto, ser reduzida a um mero exercício
de cálculo dos riscos associados a uma escolha que tem uma probabilidade menor que a
unidade de ocorrer. É, pois, impossível prever com exatidão, sem uma considerável
dose de acaso e sorte, o estado de negócios futuro da economia. Porém, como a inércia
não é uma opção economicamente válida em economias competitivas, os agentes não
têm alternativa que não a formulação de expectativas quanto ao curso das variáveis que
se julgam importantes no momento da tomada de decisões, dada as informações
disponíveis.
A frustração de expectativas é algo comum na economia descrita por Keynes. A
cada frustração os agentes econômicos buscam corrigir suas expectativas numa
sucessão de tentativas e erros. A complexidade do ajuste das expectativas reside no fato
de que não existe possibilidade de aprendizado dada a não-estacionariedade dos
15
processos econômicos. Uma determinada decisão levada a cabo no período corrente,
seja ela acertada ou não, carrega consigo a semente desestabilizadora dos valores de
longo período de diversas variáveis para as quais foram formuladas expetativas
anteriormente. Tal qual ressalta Robinson (1969): “Uma dada situação de curto
período contém dentro de si a tendência para a mudança de longo período” (Ibid,
p.180). Portanto, existe uma irreversibilidade do tempo dada a tomada de decisões, de
modo que uma vez levadas a cabo, torna-se impossível reestabelecer as condições
preexistentes7. Deste modo, tatear o mercado não garante a aproximação das
expectativas dos agentes em relação aos valores reais das variáveis econômicas, apenas
evidência a cegueira dos mesmos em relação ao curso futuro dos eventos quando se
trata de uma economia monetária.
É justamente neste cenário de improbabilidades que a retenção de moeda no
processo de acumulação de riqueza ganha sentido próprio. Dado um ambiente
contaminado pela incerteza, as características da moeda aliadas às funções
desempenhadas pela mesma - como unidade de conta, reserva de valor e meio de
pagamento – tornam-na um ativo desejável na decisão de composição de portfólio dos
agentes. As razões para desejá-la não se restringem apenas ao seu papel na
intermediação de trocas, tal qual ao mundo descrito pela Lei de Say. Seguramente, o
fato de todos os contratos entre as partes serem denominados em moeda, torna sua
aceitação geral, conferindo-lhe liquidez máxima. Outro aspecto vital para entender a
desejo pela retenção deste ativo reside em sua capacidade de transportar no tempo o
poder de compra. Em suma, na elaboração de Keynes, a moeda representa a liberdade
das ações econômicas para aqueles que a detém, na medida em que permite alterações
bruscas e imediatas das estratégias de acumulação de riqueza em qualquer ponto do
tempo.
O fato dos agentes considerarem a moeda como ativo desejável no quando da
composição de seus portfólios implica na rejeição de sua neutralidade, tanto no curto
quanto no longo período, dando início ao que Keynes (1973) chamou de Economia
Monetária, termo precisamente definido no trecho que segue:
A teoria que eu desejo deve lidar [...] com uma economia na qual a moeda tem papel
próprio e afeta motivos e decisões e é, obviamente, um dos fatores operativos na
situação, de maneira que o rumo dos eventos não pode ser previsto, tanto no longo
período quanto no curto, sem o conhecimento do comportamento da moeda entre o
7
Vide Princípio da Não-Ergodicidade no tópico anterior.
16
primeiro estado e o último. E é isso que nós devemos querer dizer quando falamos de
uma economia monetária. (ibid. pp. 408-9)
A relação entre incerteza verdadeira e acumulação de riqueza é a chave para
entender as oscilações do emprego e da renda em uma economia empresarial. Nesse
tipo de economia, os bens reproduzíveis por trabalho competem com a moeda e demais
ativos financeiros, cuja produção prescinde do fator trabalho. Em um sistema onde a
moeda é o “fim”, e não o meio, os agentes só aceitam abrir mão da extrema
conveniência da posse da moeda quando compensados por mais moeda ao final do
período. Na competição frenética entre ativos, quanto mais ilíquido um ativo for, maior
deverá ser seu retorno em moeda no futuro para induzir os agentes a abrirem mão de
moeda no presente.
Para os autores pos-keynesianos, a impossibilidade de prever cenários, seja por
conta da capacidade cognitiva dos agentes econômicos, seja pela indisponibilidade de
informações no quando da tomada de decisões, faz com que estes procurem na moeda
um refúgio para suas inquietudes em relação ao estado de negócios futuro da economia.
A preferência por ativos líquidos é, pois, um comportamento defensivo padrão em
situações onde o nível de incerteza extravasa limites considerados aceitáveis, a partir
dos quais os agentes têm pouca ou nenhuma propensão a imobilizar sua riqueza sob a
forma de bens de capital. Portanto, em uma economia monetária da produção, o nível, o
ritmo e a forma de acumulação dependem fortemente da percepção dos agentes sobre
estado de incerteza, da formulação de expectativas em resposta à este último e do estado
de confiança que os mesmos depositam sobre seus prognósticos.
Como existe a possibilidade de que a acumulação de riqueza encontre refúgio
em ativos não reproduzíeis por trabalho, não há razão para crer que a economia opere
em pleno emprego, uma vez que o que não foi consumido não necessariamente será
investido. Cria-se, a partir desse ponto, a necessidade de determinar como a renda e o
nível de emprego da comunidade são gerados. Nesse sentido, o Princípio da Demanda
Efetiva é a peça que faltava no quebra-cabeça lógico do modelo de explanação de
Keynes.
De forma simplificada, este princípio pode ser exposto como segue: em qualquer
transação econômica, só existe uma única decisão autônoma; a de gastar. (POSSAS,
1987). De forma análoga, seja Z o preço de oferta agregada da produção decorrente do
emprego de N trabalhadores e D o produto que os empresários esperam receber ao
empregar um número N de homens. A relação entre Z e N é chamada de função de
17
oferta agregada e a relação entre D e N é denominada de função de demanda agregada.
O preço de oferta agregada da produção resultante do emprego de N trabalhadores é
exatamente igual ao valor para o qual os empresários julgam vantajoso oferecer o nível
de emprego em questão. Assim sendo, toda vez que para um determinado valor de N o
produto esperado exceder o preço de oferta, haverá um incentivo para que os
empresários elevem o nível da produção e, consequentemente, o de emprego. As
decisões de quanto produzir e quanto de mão-de-obra empregar a serem trazidas a cabo
por cada empresário devem se apoiar em suas expectativas acerca do tamanho da
demanda agregada (D), mais precisamente sobre o nível de consumo (D1) e
investimento (D2). Assumindo que D1 + D2 = D(N) = Z(N), onde D1 também é uma
função de N, a saber, C(N), então Z(N) – C(N) = D2. Ou seja, elevações no nível de
emprego resultam em elevações na renda agregada e, dada a “psicologia da
comunidade”, em elevações de menor grau no consumo agregado. “Dessa maneira,
para justificar o volume de emprego, deve existir um volume de investimento suficiente
para absorver o excesso de produção total sobre o que a comunidade deseja consumir
quando o emprego se acha a determinado nível.” (KEYNES, 1936, p.40). Ainda
segundo o autor, “esta é a essência da Teoria Geral do Emprego”. (Ibid., p.41).
De acordo com esta exposição, torna-se claro o fato de que qualquer que seja o
nível de salário – independentemente de se exposto em termos monetários ou de poder
de compra – o volume de mão-de-obra empregada em um dado período de tempo
depende das expectativas de vendas de cada empresário. Assim sendo, o nível de
emprego na economia passa a ser determinado no mercado de bens – de acordo com as
expectativas dos empresários – e não mais no mercado de trabalho, tal qual propunha a
teoria neoclássica. Fica igualmente evidente que o nível renda no modelo keynesiano –
e no mundo real - resulta diretamente das decisões de investir e produzir das firmas, em
resposta às expectativas dos empresários quanto à realização futura da demanda (gasto
esperado) no período de mercado.
Tal qual fez Keynes em sua teoria, admitindo-se que o consumo seja
relativamente estável e, que este cresça na medida em que a renda cresce, contudo numa
proporção inferior a unidade, o investimento torna-se a variável chave para explicar as
oscilações nos níveis de renda e de emprego na economia. Ocorre, assim, que a
fragilidade na qual se fundamentam as expectativas de longo prazo, necessárias para a
decisão de investir, está no cerne da instabilidade do sistema capitalista, vide trecho
abaixo:
18
Consequentemente, no caso dos bens duráveis, é natural e razoável supor que as
expectativas do futuro desempenhem um papel preponderante na determinação da
escala em que se julguem recomendáveis novos investimentos. Como vimos, porém, as
bases para tais expectativas são muito precárias. Fundadas em indícios variáveis e
incertos, estão sujeitas a variações repentinas e violentas.” (KEYNES, 1936, pp.244)
Se as decisões de quanto produzir podem ser revistas, período após período, a
custo relativamente baixo, as decisões de investir dificilmente se encaixam nessa
realidade. A necessidade de formulação de expectativas de longo prazo para o
investimento, dado o período essencialmente mais longo de realização dos ativos de
capital, com agravante destes possuírem liquidez se não nula, pelo menos muito
reduzida, faz com que seja praticamente impossível reverter tais decisões ou mesmo
revisá-las no curto prazo a baixo custo (POSSAS, 2003).
Ante as dificuldades no ajuste referente às decisões de investir torna-se
imprescindível que os empresários tomem decisões de forma “segura”. Se por um lado a
incerteza, tal qual Keynes a expôs, não pode ser eliminada do modelo, por outro, os
agentes podem buscar padrões de comportamento que visem minimizar seus efeitos.
Para tal, Keynes chamou a atenção para a importância do “comportamento
convencional”, onde agentes tomam como base para suas decisões o comportamento
praticado pela média dos demais. É convencional supor que o estado de negócios
corrente permanecerá razoavelmente o mesmo por tempo indefinido, desde que não haja
razões concretas para se pensar o contrário, sendo importante, neste caso, não apenas o
prognóstico da continuidade, como também o grau de confiança que se deposita neste.
No dado contexto, o comportamento convencional e o estado de confiança nas
expectativas podem ser entendidos como instrumentos responsáveis por abrandar parte
da instabilidade provocada pela incerteza sobre o investimento em uma economia
monetária da produção, atenuando suas oscilações (KEYNES, 1936; POSSAS 2003).
No tocante a instabilidade sistêmica do capitalismo, alguns mecanismos
estabilizadores são apontados por Keynes no capítulo 18 da Teoria Geral do Emprego,
do Juro e da Moeda, dos quais merecem destaque a propensão marginal a consumir
menor que a unidade e a eficiência marginal decrescente do capital8.
Quanto ao primeiro mecanismo, este exclui a possibilidade de trajetória
explosiva da renda. Ou seja, dado uma variação no nível do emprego, a propensão
marginal a consumir (PMgC) menor que um garante que o consumo agregado variará
8
Keynes ainda lista a variação comedida dos salários frente a alterações no nível de emprego como sendo
um mecanismo estabilizador, muito embora este fator esteja muito mais associado a estabilidade de
preços.
19
em proporção menor que a renda agregada. Caso a PMgC fosse igual a unidade, uma
variação positiva no investimento agregado geraria um efeito cumulativo sobre a
demanda efetiva até o ponto em que fosse alcançado o pleno emprego, enquanto uma
variação negativa responderia pela retração cujo limite seria dado pela situação em que
nenhum trabalhador estaria empregado.
O segundo mecanismo garante que uma variação moderada no rendimento
esperado dos investimentos não gere uma expansão indeterminada sobre o nível de
investimentos da economia. Para argumentar tal efeito, Keynes parte da ideia de
rendimentos esperados decrescentes, de modo que quanto maior for o estoque de
capital, menor tende a ser a eficiência marginal do mesmo – que depende dentre outros
fatores da própria expectativa de rendimento do volume de investimento a ser realizado.
Logo, na medida em que o estoque de capital cresce o investimento tende a se tornar
menos elástico a variações no rendimento esperado. Esta condição, segundo Keynes
(1936) “marca um limite à instabilidade resultante das rápidas variações do
rendimento provável dos bens de capital, como acontece no caso de bruscas flutuações
da psicologia nos meios de negócios [...].” (Ibid., p.196).
Mesmo diante de todos esses mecanismos estabilizadores e convenções, é
impossível escapar do fato de que o nível de renda da comunidade depende das decisões
de gastos dos empresários. O horizonte temporal mais extenso envolvido no processo de
investir e a natureza menos líquida dos bens de capital inviabilizam correções a baixo
custo, dada variações repentinas no estado de negócio futuro da economia. Mais do que
isso, o horizonte mais longo de tempo implica uma maior precariedade das informações
sobre as quais o processo de formulação de expectativas se apoia. Por assim dizer,
grande parte das oscilações no nível de renda da comunidade se explica pelo peso da
incerteza sobre as decisões econômicas, em especial aquelas de horizonte mais longo,
como no caso das decisões de investimento.
A instabilidade no comportamento do investimento é, pois, a principal causa das
oscilações nos níveis de emprego e renda da economia. Deste modo, explicar como as
decisões de investimento são tomadas é essencial dentro da teoria de Keynes. A
conveniência nesse caso reside no fato de que a mesma teoria que explica as decisões de
investir fornece elementos para se entender a moeda como ativo, e para explicar a
retenção de terra em carteira.
20
I.3. Teoria de Escolha de Ativos em Keynes: entendendo as razões para a aquisição
de terras
A teoria de escolha de ativos é uma peça chave para a compreensão da teoria da
determinação da renda de Keynes. É através dessa que se torna possível entender o
papel distinto da moeda no sistema econômico e, por conseguinte, entender a
operacionalidade de uma economia monetária da produção. Em outras palavras, a teoria
de escolha de ativo de Keynes permite o entendimento de como a moeda compete com
as demais formas de acumulação de riqueza, afetando seus preços e, consequentemente,
sua disponibilidade no mercado. Ao afirmar que a moeda compete com os demais ativos
da economia equivale a aceitar que alguma conveniência em sua posse é capaz de
induzir os detentores da riqueza a optarem por este meio de acumulação, em detrimento
dos demais, em que pese o fato da moeda não oferecer retornos monetários àqueles que
a possuem em carteira.
A compreensão desse aspecto não é imediata. Para melhor entende-lo é preciso
estar atento para o papel fundamental do tempo por de trás das estratégias de
acumulação de riqueza, isso porque, ao definir a composição de sua carteira, o agente
define a forma em que ele transportará a sua riqueza no tempo, comprometendo
recursos correntes em razão da expectativa de ganhos futuros. Ao decidir sua carteira
de ativos, o agente gera um padrão específico de imobilização de sua riqueza e,
consequentemente, de suas ações econômicas para um dado período de tempo. Uma vez
adquirido um bem de capital, por exemplo, torna-se praticamente impossível retomar de
imediato a importância monetária gasta. Em geral, para reaver o montante dispendido o
agente terá de esperar até o período em que o fluxo de renda obtido pela venda dos bens
produzidos pelo novo equipamento se iguale ao montante pago pelo mesmo. O mesmo
ocorre com ações, para ter acesso ao rendimento monetário, é preciso que se espere o
período necessário para que os dividendos superem a quantia paga em dinheiro por
esses ativos, embora nesse caso seja maior a possibilidade de revenda sem perdas
monetárias, dado a existência de um mercado secundário bem estruturado.
Em suma, é intrínseco a cada ativo uma data de pagamento e um período de
retenção próprio. Nesse sentido, mais do que oferecer rendimentos a serem executados
em datas distintas, cada ativo possui um período mínimo de retenção em carteira a ser
respeitado antes que possa ser intercambiado por moeda – e consequentemente, em
21
todas as demais coisas que a moeda possa comprar – sem a imposição de perdas
significativas.
A moeda, por razões óbvias, constitui um caso excepcional. O fato das modernas
economias estarem fundamentadas em uma ampla base contratual, em cujos termos são
denominados em moeda, confere a este ativo a aceitação geral por parte dos agentes
econômicos. Mais do que isso, se garantida a estabilidade do valor da moeda sua
aceitação independerá do tempo. Desse modo, o retorno que a moeda oferece a seu
detentor não é medida em termos de renda monetária, mais sim em termos de sua
própria conveniência e flexibilidade frente a eventuais mudanças no estado de negócios
futuro da economia que gerem a necessidade de revisão de expectativas e das estratégias
de acumulação. Dada a capacidade atemporal da moeda em se intercambiar pela
generalidade de bens e serviços da economia, tais mudanças de estratégia podem ser
alcançadas de maneira imediata quando se possui a quantidade de moeda suficiente para
tal. Tal qual expõe Macedo e Silva (1990):
[...] é evidente que a posse de dinheiro não origina qualquer fluxo monetário de
receita. Ao optar por conservar dinheiro em carteira, o agente está perfeitamente
ciente de que com esta aplicação não terá, ao fim do período, mais do que a mesma
quantidade inicial de dinheiro. Desfrutará, porém, de uma flexibilidade que teria
perdido na hipótese de que houvesse trocado o dinheiro por outro ativo – sendo que
esta flexibilidade poderá permitir a ele realizar, ao longo do período, aplicações
vantajosas que, de início, não eram conhecidas ou disponíveis.” (Ibid, p.5).
A capacidade de um ativo em se intercambiar por moeda é, pois, a medida da
conveniência de sua posse, ou de forma equivalente, seu prêmio de liquidez.
(CARVALHO,1992). Tal conceito referencia a possibilidade de um determinado ativo
“de se realizar no mercado “spot”, com maior certeza, no prazo mais curto, sem que o
ato de vende-lo acarrete perdas” (REYDON, 1992; p.75). Nesse sentido, tal qual
resume Carvalho (1992):
Liquidity is a bi-dimensional concept. It refers simultaneously to the duration of time
required (or expected to be required) to dispose of an asset and to the capacity this
asset may have for conserving its value over time. Of course, anything can be
disposed of very quickly if its possessor accepts a price low enough to find immediate
buyers. One the other hand, the likelihood of finding another wealth owner who
evaluates an asset in the same way as its present possessor increases if the latter does
not care to have to wait an indefinitely long period of time. Therefore we may say that
an asset is as liquid as the time required for its convertibility is short and the expected
change in its value is small. (Ibid, p.85-86).
Assim sendo, o prêmio de liquidez é o primeiro elemento explicativo para a
retenção de um ativo em carteira, e é o meio através do qual podemos entender a moeda
como um ativo. Torna-se claro, pelo conceito de prêmio de liquidez, que os retornos
22
esperados da posse de um ativo não estão restritos a resultados monetários. Os agentes
quando decidem sua carteira também avaliam a flexibilidade que essa ofertará frente a
mudanças de cenários e desapontamentos de expectativas.
Mais do que um atributo descritivo dos ativos, a liquidez é uma alternativa
teórica à necessidade de se trabalhar com uma multiplicidade de taxas de desconto
imposta pelos distintos cronogramas de pagamento e períodos de retenção referentes à
cada ativo da economia. Ao se trabalhar com o conceito de liquidez torna-se possível
assumir, por hipótese, que todos os ativos possuem o mesmo período de retenção e data
de pagamento. Ao fazê-lo, não se exclui o papel fundamental do tempo na tomada de
decisões, apenas consideram-se seus efeitos por meio de outra variável: o prêmio de
liquidez. Quanto maior for a conversibilidade de um ativo, menor é o seu período de
retenção, ou analogamente, maior é a sua liquidez.
O prêmio de liquidez é, sem dúvida, o menos intuitivo dos atributos
considerados. Por assim dizer, constitui o aspecto fundamental da teoria Keynesiana.
Por meio desse atributo, Keynes rejeita a interpretação neoclássica da taxa de juros
como prêmio de abstenção do consumo presente pelo consumo futuro – negando
qualquer tipo de automaticidade intertemporal de gastos – e propõe um no lugar a
interpretação da taxa de juros monetária como o prêmio pago aos agentes por abrirem
mão da extrema conveniência e segurança da posse da moeda.
Tal qual a posse de um ativo pode fornecer algum tipo de conveniência à seu
detentor, o simples fato de carregá-lo em carteira é – quase que na generalidade dos
casos – suficiente para impor algum tipo de sacrifício monetário aos agentes. Ou seja, a
posse do ativo, independentemente do seu uso, tende a impor ao seu dono algum tipo de
custo de manutenção (C). Custos de estocagem, de transação, seguros, depreciações são
exemplos possíveis na lista de obrigações que surgem da posse de determinados ativos.
Outro atributo a ser considerado no quando da tomada de decisão é a expectativa
de ganho patrimonial (a), derivada da posterior revenda do ativo. Tal ganho tem origem
na diferença entre o preço pago pelo ativo no momento de sua compra e o preço
observado ao final do período de retenção. Comumente, esse atributo é incorporado ao
conceito de quase-renda por diversos autores Pós-Keynesianos, porém, dada a
importância do ganho patrimonial para tratar da especulação de terras, esta dissertação
analisará tal atributo separadamente.
Por fim, a simples posse ou uso do ativo em questão tende a credenciar seu
detentor o acesso a fluxos de renda expressos em moeda (denotado por Q). Títulos, por
23
exemplo, dão origem à juros, ações à dividendos e bens de capital à lucros provenientes
da venda de mercadorias. Vale dizer que as variações nas expectativas acerca de
determinado mercado são capturadas pelo valor das quase-rendas. Se por ventura, as
vendas esperadas em um mercado específico se tornarem mais duvidosas, o retorno dos
bens de capital serão afetados por meio da queda da quase-renda esperada.
De forma geral, o mesmo elemento dessa teoria que permite a identificação da
moeda como um ativo fornece explicação satisfatória para as decisões de aquisição de
terras e para o posterior uso desse recurso. Tal elemento foi denominado por Keynes de
taxa própria de juros do ativo, que nada mais é do que a taxa que mede os rendimentos
obtidos pela posse ou uso de um ativo, não apenas em termos monetários, mas em
função da conveniência e flexibilidade que este confere ao seu detentor ante as
mudanças nas expectativas de longo prazo ou no cenário econômico. (CARVALHO,
1992). Tais rendimentos têm origem na soma dos quatro atributos fundamentais,
evidenciados pela equação (1):
ix= (qx-cx) + (ax+lx)
(1)
onde;
➢ ix ≡ taxa própria de juros do ativo “x”
➢ qx ≡ quase-renda do ativo x = Qx/Ps
➢ cx ≡ custo de manutenção do ativo x= Cx/Ps
➢ ax ≡ ganho patrimonial do ativo x=(Pe-Ps)/Ps
➢ lx ≡ prêmio de liquidez do ativo x
Antes de seguir com a análise, demonstrando a operacionalidade através da qual
é possível derivar o equilíbrio no mercado de ativos, faz-se necessária uma pequena
manipulação no modelo de escolha de ativo de Keynes. O atributo prêmio de liquidez,
tal qual exposto pelo autor, impõe um desafio à operação com o conceito de taxa
própria de juros, pois o valor de referência dessa variável, dado pela moeda, é abstrato.
A moeda possui liquidez máxima, uma vez que sua capacidade de se intercambiar em
qualquer outro ativo ou bem é, por definição, imediata. O problema é que partir de um
valor de referência abstrato (“máximo”) dificulta a construção de uma escala que
permita ordenar de forma clara os ativos segundo o atributo “prêmio de liquidez”.
Embora Keynes (1936) não tenha se atentado para as dificuldades de se operar com um
valor de referência abstrato, o autor reconhece que “não existe um padrão de liquidez
absoluto, mas simplesmente uma escala de liquidez – um prêmio variável que se tem de
24
levar em conta, além do rendimento do uso e dos custos de manutenção, ao calcular o
atrativo de se conservar diversas formas de riqueza”. (Ibid, p.187).
A solução proposta por Kaldor (1980) à essa questão foi transformar a escala de
liquidez decrescente de Keynes – em que a moeda respondia pelo valor “máximo” –
para uma escala ascendente – em que esse mesmo ativo apresentasse o valor nulo de
referência. Para tal, Kaldor propôs transformar o atributo prêmio de liquidez (máximo)
da moeda em “risco mínimo” (r) (com valor zero) associado a sua posse. Formalmente,
o que este autor fez foi assumir a seguinte equivalência:
(2) r = -l ;
de modo que:
(3) ix = qx-cx+ax-rx
À luz da teoria Pós-Keynesiana, como já mencionado, a tomada de decisões é
um processo fundamentalmente especulativo, haja vista que um ativo é, por definição,
uma promessa sobre os rendimentos futuros da economia. Como o nível de renda da
comunidade depende da demanda efetiva – e por isso, não se encontra determinado a
priori –, e as informações disponíveis fornecem uma base precária de conhecimento
sobre os eventos futuros, a tomada de decisões está condenada a se ancorar na
formulação de expectativas sobre as variáveis que se julgam relevantes ao cálculo
capitalista, sobretudo, àquelas que afetam o valor dos atributos fundamentais dos ativos
que se mantém em carteira.
Nesse sentido, não apenas cada ativo possui uma taxa própria de juros, como
essa última difere de agente para agente. Ao decidir como compor sua carteira, cada
agente irá escolher os ativos que julgam oferecer as maiores taxas de retorno. A
competição pelas maiores taxas no mercado de ativos determinará o preço dos ativos,
revelando quais se encontram escassos e quais se apresentam em excesso em um dado
período do tempo.
Por assim dizer, o modelo apresentado nesse tópico consiste em um modelo de
determinação de preços relativos dos ativos, isso porque, ao competirem por maiores
retornos, os agentes tendem a validar um processo de elevação do preço dos ativos
vistos como mais rentáveis, frente aos demais. Nos termos da equação (3), a maior
procura por um dado ativo irá resultar em uma elevação de seu preço corrente até que “a
+ q-c” se reduza ao ponto de não mais compensar os riscos assumidos pela perda de
liquidez decorrente de se abrir mão de posições em moeda para manter determinado
25
ativo em carteira. O contrário também vale! Para os ativos com menor retorno esperado,
existirá um incentivo incontrolável a sua venda, reduzindo seu preço até o que os efeitos
positivos sobre “a + q-c” passem a compensar o risco associado à posse do ativo. No
limite, as taxas próprias de juros da generalidade dos ativos se igualam, eliminando os
incentivos a recomposição de carteira. De maneira precisa, assim Robinson (1979)
resumiu o equilíbrio no mercado de ativos:
Estas qualidades dos vários tipos de ativos são avaliadas de maneira diferente por
diferentes indivíduos. [...] A estrutura geral de taxas de juros depende da distribuição
de riqueza entre os possuidores com gostos diferentes relativamente à oferta de vários
tipos de ativos. Cada tipo de ativo é uma alternativa potencial para cada outro; cada
um tem, por assim dizer, uma fronteira comum com todos os outros e com a moeda. O
equilíbrio de mercado é atingido quando as taxas de juros são tais que a riqueza não
se move através de nenhuma das fronteiras. Os preços são, então, tais que o mercado
está contente em reter exatamente aquela quantidade de cada tipo de ativo que está
disponível no momento. (Ibid. p.143).
Mais uma vez, a moeda foge a regra. Diferentemente dos demais ativos, sua taxa
de juros é significativamente refratária a queda, isto porque:
[...] não apenas é impossível empregar mais mão-de-obra na produção de moeda
quando seu preço em relação à mão-de-obra sobe, como também a moeda constitui
um poço sem fundo para o poder de compra quando a sua demanda cresce, visto não
haver – como no caso de outros fatores de renda – um valor acima do qual essa
demanda é desviada para outras coisas. (Keynes, 1936, p.181).
I.3.1) O mecanismo de ajuste do equilíbrio da carteira de ativos
O mecanismo de ajuste ao equilíbrio acima se aplica ao caso em que o estoque
de ativos da economia é tido como constante. Essa está longe de ser uma pré-condição
para operar com o modelo apresentado nesse tópico. Porém, quando se permite a
variação no estoque de ativos da economia, as mudanças nos preços relativos deixam de
ser o único mecanismo de condução ao equilíbrio no mercado de ativos, de modo que as
mudanças na escassez relativa dos ativos passam a operar no mesmo sentido. O
raciocínio é simples: os ativos de maior rendimento tendem a responder por preços
maiores no mercado spot. Quando os preços correntes desses ativos superam seu preço
esperado no futuro, torna-se evidente que o preço que os agentes estão dispostos a pagar
excede o preço que se espera pelo ativo no momento de sua revenda. Esse excedente do
preço corrente sobre o preço esperado nada mais é do que o prêmio que o agente está
disposto a pagar para contar com a posse imediata do ativo, ao invés de adiá-la para um
dado período no futuro, quando se espera um preço menor pelo ativo. Esse diferencial
26
entre os preços, marcado pela relação preço corrente (P c) > preço futuro (Pf) é o indício
de que o ativo em questão é escasso relativamente a sua demanda presente. Toda vez
que isso ocorrer, haverá um incentivo ao incremento da oferta futura desse ativo, desde
que o estado de expectativas de logo prazo permaneça o mesmo. Este processo
persistirá até que Pc se iguale ao Pf, ou, equivalentemente, até que os preços de demanda
e de oferta do ativo tenha assumido o mesmo valor, ponto em que cessam os incentivos
a novos fluxos de oferta do ativo. Da mesma forma, toda vez que a situação oposta
ocorrer, é de se esperar que uma contração da produção futura, reduzindo sua oferta
relativamente aos demais ativos disponíveis 9.
A escassez10. é, pois, um aspecto essencial para entender os retornos esperados
declinantes na teoria de Keynes. Não se trata aqui de uma situação na qual é impossível
fazer variar um dos fatores de produção no curto prazo a fim de conjugá-lo com os
demais na produção adicional de bens e serviços. Isso porque não há razões para crer
que a economia se encontre no pleno emprego de fatores, portanto a escassez não é
absoluta tal qual supõe a teoria neoclássica. A escassez nesse caso é fruto da competição
com as taxas próprias de juros no mercado de ativos, sendo, inclusive, o elemento
central para a determinação da rentabilidade dos ativos, como encontra-se expresso no
trecho abaixo:
Em vez de dizer do capital que ele é produtivo, é preferível dizer que ele fornece no
curso da sua existência um rendimento excedente sobre seu custo original. A única
razão, pois, pela qual um bem permite uma expectativa de render, durante sua
existência, serviços com um valor agregado superior ao seu preço de oferta inicial
deve-se ao fato de que é escasso; e continua sendo escasso pela concorrência da taxa
de juros do dinheiro. À medida que o capital se torna menos escasso o excedente de
rendimento diminuirá sem que ele se torne por isso menos produtivo – pelo menos no
sentido físico. (Keynes, 1936, p.169)
Quando se afirma que um ativo é escasso, diz-se que ele é escasso relativamente
a sua demanda naquele período do tempo. Macedo e Silva (1994) resume de forma
precisa a questão da escassez e da tendência declinante dos retornos aplicados aos bens
de capital:
[...] em muitos casos, o agente esperará de unidades sucessivas do ativo quase-rendas
decrescentes. As decisões de investir dificilmente geram efeitos significativos sobre a
demanda pelas mercadorias produzidas com o equipamento adquirido. É claro que a
decisão de investir efetiva uma demanda e, com isso, gera renda...mas para outros
agentes que não o investidor. Como qualquer outro tipo de gasto, o investimento
9
Ver Davidson (1972: Cap 4) e Carvalho (1992: Cap5).
O conceito de escassez utilizado por Keynes é de extrema importância para o posterior trato do caso
específico do ativo terra. Através deste conceito – que será melhor trabalhado no capítulo 3 – é possível
entender como a terra pode ser escassa em um país como o Brasil, cujas dimensões apontam para o
contrário, ou seja, para a abundância desse mesmo recurso.
10
27
determina efeitos dinâmicos sobre a economia (por exemplo, via multiplicador), os
quais, no entanto deverão incidir sobre outros setores. As projeções do investidor
acerca do comportamento da demanda durante a vida econômica útil do equipamento
independem do volume investido. Assim, a partir de certo ponto, é inevitável que a
compra de unidades adicionais implique o crescimento da capacidade produtiva a
taxas superiores àquelas esperadas para a demanda; implique noutros termos, a
redução da escassez do equipamento.
Uma abordagem equivalente às taxas próprias de juros é fornecida pelo conceito
de eficiência marginal do capital. Esse conceito é, de fato, muito mais abrangente do
que seu nome sugere, pois seu uso é aplicável à generalidade dos ativos da economia, e
não apenas aos ativos de capital. Não é menos correto falar de eficiência marginal do
dinheiro do que falar da eficiência marginal do capital, pois ambas expressam as taxas
de retorno esperadas através da qual serão descontados os fluxos de anuidade de renda.
Definindo o preço de demanda de um ativo como o somatório do fluxo de renda
esperado pela posse deste ao longo de sua vida útil e o seu preço de oferta como o preço
mínimo através do qual é possível induzir o empresário a produzir uma unidade
adicional do ativo em questão, a eficiência marginal do ativo fornece a relação entre o
primeiro preço e o último.
Em termos formais, o preço de demanda pode ser definido tal qual na equação
(1) abaixo, onde o subscrito em representa a eficiência marginal do capital, supondo o
caso de um bem de capital. No equilíbrio valem as seguintes condições (a) a eficiência
marginal do capital se iguala a taxa monetária de juros; (b) a eficiência marginal do
capital equivale a taxa de desconto que iguala o preço de demanda a preço de oferta do
ativo:
Pd ≡ [F1/(1- em)] + [F2/(1-em)2] + ... + [Fn/(1-em)n] =∑k=1n Fk/(1-em)k
(1)
As duas condições de equilíbrio citadas acima são de fácil compreensão
econômica. Pela condição (a) diz-se que os agentes esperam receber pela aplicação da
última unidade de capital empregada ao menos a mesma quantidade de dinheiro ao final
do período do que receberiam caso optassem por títulos. Pela condição (b) busca-se
garantir que ao final do período de retenção do ativo a quantidade de dinheiro obtida,
quando trazida ao seu valor presente, seja equivalente ao montante de moeda da qual se
abriu mão para a aquisição de uma unidade adicional do bem de capital. Caso os
agentes esperassem obter uma quantidade maior de dinheiro do que aquilo que foi gasto
na aquisição da unidade adicional de capital, seria conveniente – submetendo-se a
lógica de maximização do lucro bruto – empregar uma quantidade maior de capital.
28
Esse raciocínio vale até o ponto em que a eficiência marginal do capital se reduza ao
patamar da taxa de juros do dinheiro.
O equilíbrio acima tende a ser obtido em razão da natureza declinante da
eficiência marginal do capital, cujas razões seguem abaixo:
Quando o investimento, em um dado tipo de capital, aumenta durante certo período, a
eficiência marginal desse capital diminui à medida que o investimento aumenta, em
parte, porque a renda prospectiva baixará conforme suba a oferta desse tipo de
capital e, em parte, porque a pressão sobre as fábricas produtoras daquele dado tipo
de capital causará, normalmente, uma elevação do seu preço de oferta; sendo que o
segundo desses fatores é, geralmente, o mais importante para estabelecer o equilíbrio
no curto prazo, embora quanto mais longo for o período que se considere, mais
importância adquire o primeiro fator. (KEYNES, 1936; p.115-116).
A existência de um fluxo de renda proveniente da posse ou do uso de um ativo
superior ao seu preço de reposição subjaz, também para conceito de eficiência marginal
do capital, na condição de escassez relativa desse mesmo ativo em relação ao seu
mercado. É de se esperar que, na medida em que a quantidade de um ativo específico de
capital aumente, se observe a redução de seus retornos, seja pela redução de sua
escassez, pela redução da escassez dos bens e serviços gerados por esse ativo, ou ainda
pela elevação de seu preço de oferta.
I.3.2) A Teoria de Escolha de Ativos Aplicada ao Ativo Terra:
Os atributos fundamentais descritos acima serão agora esmiuçados para o caso
da terra. Por meio desse tópico, espera-se fornecer elementos que permitam a
compreensão da terra enquanto ativo de dupla natureza11 – produtiva e financeira -, bem
como chegar a um conceito mais formal de especulação de terras.
Para o caso da terra, as quase-rendas constituem todo e qualquer fluxo de renda
que os agentes esperam obter pela utilização produtiva desse ativo. Trata-se do lucro
auferido pela venda dos produtos disponibilizados pelo uso da terra. Nesse sentido,
diversos fatores são passíveis de afetar o preço da terra por meio de sua quase renda,
tais quais: a proximidade com mercados, a fertilidade da terra – ou sua capacidade de
fertilização -, a disponibilidade de infraestrutura de escoamento (rodovias, ferrovias,
portos e etc) próxima a propriedade, arrendamentos, políticas de crédito agrícola
subsidiados, isenções fiscais, dentre outros.
No que tange aos custos de manutenção da terra em carteira, devem ser incluídos
todos os gastos não relacionados ao processo produtivo, como custos de transação, de
11
Ver Reydon (1992).
29
financiamento para a aquisição do ativo, de depreciação e de obtenção de informações
sobre o mercado de terras. Dentro desse conjunto, Reydon (1992) chama atenção aos
gastos associados ao imposto sobre a propriedade da terra (ITR) e à transformação de
formas de ocupação precária em posse legítima; incluindo neste último as “despesas
realizadas com subornos, demarcações, tocaias a posseiros intransigentes, pagamentos
a topógrafos e jagunços.” (MARTINS, 1979, p.69 apud REYDON, 1992, p.101).
Já o ganho patrimonial, este tem origem no diferencial entre o preço de
aquisição do ativo no mercado spot e o preço que o agente espera obter com a revenda
da terra no mercado secundário ao final do período de retenção. Desse modo, por assim
dizer, já se assume deste ponto que existe um mercado secundário de terra bem
organizado e estruturado. No caso da terra, principalmente para àquelas localizadas na
nova fronteira agrícola, é comum que a abertura (ou o simples anúncio) de novas
estradas, bem como o asfaltamento (ou a simples promessa de asfaltamento) das antigas
rodovias tendam a elevar o rendimento esperado das propriedades em seu entorno,
acarretando em possíveis ganhos patrimoniais. Nesse sentido, especular com esse
atributo fundamental passa por especular com a oferta de bens e serviços públicos
oferecidos pelo governo.
Por fim, o prêmio de liquidez atribuível a terra associa-se tanto “às
características próprias do ativo – por exemplo, o grau de estruturação de seu mercado
secundário–, quanto às condições gerais da incerteza e da preferência pela liquidez da
economia”. (REYDON, 1992). O grau de incerteza percebido pelos agentes
determinará, em última instância, a parcela da riqueza que cada indivíduo julga
necessária de se manter líquida, seja na forma de moeda ou de ativos pouco menos
líquidos que, porém, ofereçam algum tipo de retorno monetário. O raciocínio é simples,
se a posse de um ativo é mais arriscada do que a posse de outro em virtude dos
diferentes graus de liquidez, é de se esperar que o retorno monetário do ativo menos
líquido exceda o retorno monetário do ativo mais líquido no exato montante capaz de
compensar o diferencial de risco. Os três exemplos mostram como se dá a relação de
rentabilidade entre os diferentes tipos de ativo:
A. Moeda (m) x Títulos (b):
i.
(qb-cb+ab) – (qm-cm+am) = rb – rm ;
ii.
qm =cm= am= rm = 0;
iii.
qb-cb+ab=rb
onde:
Logo:
B. Moeda (m) x Terra (t):
30
i.
qt – ct + at = rt
C. Terra (t) x Título (b):
i.
(qb-cb+ab) – (qt- ct + at) = rb – rt
O atributo de liquidez da terra depende, como em qualquer ativo, da existência
de um mercado secundário organizado. Porém, outro fator que contribui para que a terra
possua liquidez não desprezível é dado pelo fato desse ativo não possuir uma vida
economicamente útil determinada. Enquanto a generalidade das máquinas e
equipamentos está sujeita a obsolescência e ao desgaste pelo tempo, a terra é capaz de
fornecer quase-rendas por um horizonte temporal indefinidamente maior, seja por seu
emprego em um novo projeto agrícola, pelo seu arrendamento, utilização para lazer, seu
loteamento, ou, ainda, em razão de sua incorporação no perímetro urbano, no que se
convenciona chamar de especulação privilegiada12. (REYDON, 1992; REYDON &
CORNÉLIO, 2006). Nesse sentido, destaca-se ainda a baixa especificidade do ativo
terra. Na medida em que a terra serve a diversas finalidades produtivas, as
possibilidades de destinação para esta no mercado secundário tendem a ser maiores,
aumentando a sua liquidez.
Considerados as especificidades fundamentais da terra, cabe agora fornecer uma
explicação do porque é possível entender a terra como um ativo especial!
É intuitivo o tratamento da terra como um ativo de capital, ou seja, um ativo que
tem como característica a geração de quase-rendas associados a um custo de
manutenção não desprezível. Esta visão sobre a terra não está errada, muito embora
esteja incompleta e mereça cuidado. A compreensão da terra apenas como um bem de
capital pode conduzir a análise à aceitação de que o fluxo de renda desta se comporte da
mesma forma que os fluxos de renda da grande maioria dos bens de capital, em que qc>0 com a=0 e l=0. Uma consequência grave desse fato é ignorar a especulação dos
agentes sobre os valores dos potenciais ganhos patrimoniais e de liquidez, que, por sua
vez, parecem ser, em diversos casos – notadamente na fronteira agrícola –, a principal
motivação à aquisição de terras. Desse modo, para escapar desta visão restritiva sobre a
terra, faz-se necessário apresentar algumas possibilidades de classificação dos ativos.
12
Se uma das dimensões do conceito de liquidez se refere à capacidade do ativo em preservar seu valor
ao longo do tempo, o fato da terra fornecer fluxos de renda por um período de tempo indeterminado
certamente contribui para a sustentação de seu preço de demanda.
31
Em uma tentativa de produzir uma taxionomia dos ativos, Davidson (2007)
propõe uma separação destes em duas categorias distintas:
1. Ativos Financeiros: podem ter sido recentemente emitidos, ou adquiridos no mercado
secundário, através da troca com antigos donos. A emissão destes ativos geralmente
aponta para a necessidade de liquidez do emissor frente o imperativo de
financiamento de investimentos em ativos de longo período de retenção.
2. Ativos Reais ou Bens de Capital: são ativos duráveis e reproduzíveis comumente
adquiridos em função da necessidade de se expandir a produção de bens e serviços.
Como geralmente os mercados secundários não existem ou não são suficientemente
organizados, bens de capital de segunda mão estão em grande medida associados a
falências e necessidades de se liquidar uma carteira de ativos.
Tendo sido feita a classificação primária dos ativos, o autor segue em seu
esforço taxionômico, buscando classificá-los, agora, de acordo com a liquidez atribuível
a cada ativo da economia:
1. Ativos Ilíquidos: são ativos duráveis cujo mercado de revenda (spot) é
desorganizado, impossibilitando a conversão desses em moeda ou em demais ativos
durante sua vida útil.
2. Ativos Líquidos: são ativos financeiros passíveis de serem transacionados no
mercado de revenda – ou spot – por possuírem um mercado secundário
suficientemente organizado. Como o ativo possui capacidade de se realizar no
mercado spot, é natural supor que este responda por algum grau de liquidez, bem
como possibilite algum tipo de ganho patrimonial proveniente do diferencial entre
preço spot e preço esperado.
3. Ativos Totalmente Líquidos: qualquer tipo de ativo que possa ser convertido
imediatamente em dinheiro sem a imposição de perdas monetárias.
Torna-se evidente pelas classificações apresentadas que a terra pode ser
considerada tanto um ativo de capital, como um ativo com algum grau de liquidez.
Enquanto ativo de capital, a terra pode ser mantida em carteira em função das
expectativas de quase-renda (lucros) provenientes da venda de produtos agrícolas. Em
sua dimensão de ativo líquido, a terra pode ser demandada em virtude de seu prêmio de
liquidez e das expectativas de valorização patrimonial. De acordo com esta última
32
classificação, Keynes (1936) parecia estar atento a possibilidade de retenção de terra em
razão de sua natureza líquida, tal qual revela o trecho abaixo:
Pode ser que em determinadas circunstâncias históricas os proprietários de riqueza
tenham pensado que a posse de terra se caracterizava por um alto prêmio de liquidez;
e, visto que a terra participava com a moeda da particularidade de ter, em princípio,
elasticidades de produção e de substituição muito baixa, é concebível que tenha
havido na história ocasiões em que o desejo de possuir terra haja desempenhado o
mesmo papel que a moeda em tempos recentes, no sentido de manter a taxa de juros
demasiado alto. (Ibid. p.188).
A natureza múltipla do ativo em questão permite formalizar com mais clareza o
que de fato pode ser entendido como especulação de terra. Como foi visto
anteriormente, a necessidade de formulação de expectativas torna a tomada de decisões
econômicas inevitavelmente especulativa em uma economia monetária da produção.
Mais do que isso, o modelo de escolha de ativos de Keynes permite entender como a
percepção de cada agente sobre os retornos esperados de cada ativo influenciam seus
preços e disponibilidade no mercado. Afirmar que todas as decisões são especulativas
não seria um erro, mas se utilizar desse fato para teorizar a especulação de terra
conduziria a uma delimitação extremamente vaga do termo, pois, por mais produtiva
que seja a terra, seu preço sempre será o reflexo do que os detentores da riqueza
esperam sobre seu retorno.
Seguindo a abordagem pós-keynesiana, a definição que este trabalho propõe
para a especulação com os atributos específicos da terra é de direta compreensão.
Considera-se que a terra é utilizada para fins especulativos quando a utilização da terra
de forma produtiva não gera uma expectativa de renda monetária capaz de justificar a
sua posse. Ou seja, em termos formais, a parcela (q-c) é insuficiente para traduzir uma
taxa própria de juros para a terra capaz de motivar o agente na direção de sua aquisição.
Quando isso ocorre, valor presente do fluxo de renda esperado pela utilização produtiva
do ativo se mostra insuficiente à necessidade de se gerar mais dinheiro do que aquele
que foi pago no momento de sua compra.
Deste modo, se, mesmo assim, o agente opta por sua aquisição, o faz porque
suas expectativas de ganho patrimonial (o atributo representado por 'a' na equação 3)
são de tal grandeza que a posse da terra se torna economicamente lucrativa,
considerando um dado risco de liquidez (r) do ativo.
Mais além, a dupla função exercida pela terra, como bem de capital e ativo
líquido, pode explicar o incremento da demanda por esse ativo em contextos
econômicos distintos. Analisando por sua natureza produtiva, a demanda por esse bem
33
tende a se elevar, por exemplo, em resposta ao crescimento econômico, a elevação dos
preços das commodities agrícolas, a desvalorizações cambiais, ao aumento da massa
salarial, etc. Por outro lado, o aumento da incerteza e a baixa propensão dos agentes a
imobilizar parte considerável de seus recursos em bens de capital – notadamente os de
baixíssima liquidez – podem gerar uma fuga adicional da riqueza para a aquisição de
terra, um bem de capital que tem a especificidade de ter duração infinita e um mercado
secundário bem organizado.
Outro aspecto importante, tal qual lembra Reydon (1992), reside no fato de que a
razão para a retenção influenciará o tipo de terra demandada, a região em que esta
deverá ser adquirida, bem como, o tipo de uso a ser empregado ao ativo. Quando se
demanda uma terra pela sua característica de bem de capital, é de se esperar que a
proximidade com uma boa infraestrutura de produção e comercialização – como
estrada, portos, ferrovias e etc – seja um fator operativo na tomada de decisão. Nesse
sentido, é natural supor que os anseios por terras mais rentáveis do ponto de vista
produtivo sejam acomodados em áreas de fronteira agrícola velha. Entretanto, quando o
objetivo da aquisição se pautar na exploração de ganhos patrimoniais, serão preferidos
os lotes de terra na fronteira nova, onde os direitos de propriedade não se encontram
bem definidos, a priori, possibilitando retornos extraordinários no caso da conquista da
titulação sobre a terra13.
Obviamente, o raciocínio não é tão dicotômico. Agentes que se estabelecem na
fronteira antiga, também se interessam pelos possíveis ganhos patrimoniais. Da mesma
maneira, os agentes que adquirem terras na fronteira nova também imputam em seus
cálculos a quase-renda obtida pela venda dos bens e serviços produzidos em suas terras.
Porém é inegável a existência do padrão descrito acima, dada as maiores
potencialidades de geração de quase-rendas na fronteira velha e de ganhos patrimoniais
na fronteira nova.
Sejam quais forem as razões para se adquirir terras e mantê-la em carteira, estas
se encontram devidamente explicadas pelo modelo de escolha de ativos. Além disso,
quaisquer que sejam os fatores que afetem os preços desse ativo, assim o fazem por
meio das expectativas dos agentes. A construção de estradas, a disponibilidade de linhas
de crédito subsidiadas, a pesquisa e desenvolvimento em modificação genética de
sementes agrícolas, as melhorias nos métodos de correção do solo, enfim, todos os
13
Essa discussão será apresentada com maior profundidade no próximo capítulo.
34
fatores impactam os preços dos ativos apenas quando são validados pela expectativa dos
agentes e se transformam em gasto efetivo para a aquisição da terra.
Não apenas a aquisição de terras ganha explicação pela teoria escolha de ativos,
mas o próprio uso desse recurso é passível de ser entendido pelo mesmo modelo, a
exemplo das decisões de conservação e desmatamento. Essas decisões, assim como as
demais aqui expostas, são decisões de composição de portfólio, em cujo objetivo
primário é a valorização da riqueza representada em sua dimensão mais geral: a moeda.
Portanto, a escolha entre desmatar ou preservar uma determinada área florestada
dependerá das expectativas de ganho em função de cada um dos usos possíveis. Em
síntese, o agente possuidor de um lote de terra florestado optará por sua conversão em
terra agrícola toda vez que o valor presente do fluxo de renda esperado da terra agrícola
superar o valor presente do fluxo de renda esperado da terra florestada 14. (Young et. al.,
2007).
I.4. Resumo Conclusivo
Entender o processo de tomada de decisões sobre o uso da terra é de extrema
importância para entender as causas do desmatamento. Olhando por esse prisma, a
teoria Pós-Keynesiana fornece elementos fundamentais para explicar como os
indivíduos decidem a composição de suas carteiras, da qual a terra é um dos ativos
possíveis de posse e utilização. As decisões de aquisição de terra e sobre a sua posterior
utilização se submetem a lógica de valorização da riqueza monetária. Um agente ao
adquirir terras o faz porque suas expectativas acerca do retorno total desse ativo –
incluindo se prêmio de liquidez – superam os demais retornos esperados dos demais
ativos da economia. Uma vez em posse da terra, cabe ao agente decidir, de acordo com
as características da terra adquirida por ele, o uso através do qual ele espera obter a
maior quantidade de dinheiro ao final do período de retenção.
A teoria de ativo de Keynes também fornece elementos para explicar como as
expectativas dos agentes alteram os preços e a disponibilidade dos ativos na economia.
Não obstante, é possível explicar como as expectativas dos agentes determinam o preço
da terra e a quantidade desmatada. Mais do que isso, esta teoria fornece duas definições
possíveis sobre o conceito de especulação de terra. No primeiro, o ato de especular com
terra traduz o comportamento natural dos agentes, dado o caráter fundamentalmente
14
Para mais, vide Capítulo II.
35
expectacional das estratégias de acumulação de riqueza em uma economia monetária da
produção. O último, que será sustentado por esse trabalho, entende a especulação de
terras restrita as situações em que as expectativas dos ganhos produtivos descontadas
dos eventuais custos de manutenção e produção não são capazes de justificar
economicamente a retenção desse ativo em carteira. Nos termos das taxas próprias de
juros, trata-se da situação em que o retorno esperado pelo ganho patrimonial e pelo
prêmio de liquidez (mensurado em termos da conveniência e flexibilidade que a posse
deste ativo fornece ao seu detentor) constituem a razão primária para a retenção da terra.
A partir desse ponto, é possível rejeitar aquisições de terra fundamentadas no
conceito de produtividade, segundo o qual o fator de produção seria adquirido até o
ponto em que seu preço se igualasse a sua produtividade marginal (decrescente). Pela
teoria Keynesiana, a terra será adquirida até que a taxa de juros desse ativo (ou sua
eficiência marginal) se iguale (no cálculo subjetivo do agente) a taxa monetária de
juros, ou alternativamente, que seu preço de demanda se iguale ao preço de oferta da
terra. Estas, além de serem condições necessárias à maximização da riqueza monetária,
se afastam da noção problemática e atemporal de decisões fundamentadas no conceito
de produtividade; problemática por desconsiderar a possibilidade do preço da terra cair
sem que esta fique menos produtiva, e atemporal por basear as decisões em um conceito
que só se revela após a etapa produtiva ter sido encerrada.
36
CAPÍTULO II: CUSTO DE USO, EFEITO INDIRETO E DIREITO
DE PROPRIEDADE: O QUE OS PÓS-KEYNESIANOS TÊM A
DIZER SOBRE O DESMATAMENTO?
Neste capítulo será apresentado o modelo originalmente desenvolvido por
Young (1997; 2013), em que autor se utiliza do conceito de custo de uso – teorizado por
Keynes – para demonstrar como comportamento especulativo dos agentes afeta as
decisões sobre o uso da terra.
Além da inclusão da incerteza verdadeira e das expectativas, a grande distinção
deste modelo em relação aos demais é dada por sua capacidade de explicar como o
comportamento dos agentes (colonos e agricultores), bem como as condições das
diferentes fronteiras (nova e velha), estão inter-relacionados.
15
Em suma, por meio do
conceito de custo de uso, espera-se chegar a uma forma análoga de explicar as decisões
sobre a aquisição e uso da terra, com o conveniente de se poder trabalhar com um
modelo de duas fronteiras, que é essencial para a compreensão do efeito indireto sobre o
desmatamento.
Outro aspecto de grande valia exposto no modelo de Young (1997; 2013) se
refere a análise de como os direitos de propriedade sobre a terra influenciam as taxas de
desmatamento na fronteira agrícola. Ao fim do capítulo, tornar-se-á claro o fato de que
a própria indefinição dos direitos de propriedade tem uma responsabilidade não
negligenciável sobre as taxas de desmatamento, na medida em que altera o retorno
esperado de usos concorrentes para a terra.
Nunca é demais lembrar que o modelo que será apresentado aqui para tratar do
desmatamento é consistente com todo o trabalho até então apresentado, ou seja, é
15
No lado oposto do debate, outros modelos de orientação neoclássica também tentam fornecer elementos
para explicar a determinação do nível de desmatamento. Destaca-se aqui, a profusão dos modelos de controle
ótimo, como Harwick (1992). Além de uma série de hipóteses e axiomas irrealistas conservados pela teoria
neoclássica, os modelos de controle ótimo de desmatamento partem de direitos de propriedade bem
definidos. A partir dos direitos de propriedade bem definidos, é possível estabelecer um mercado em que os
agentes se encontrem livres para transacionar recursos ambientais, o que – dada a flexibilidade de preços –
resultaria em um vetor de preços ótimos, situação na qual o uso eficiente do recurso seria assegurado. Esse
raciocínio fica evidente em Hartwick (1992, p.513): “if property rights are perfect (and enforced) the
clearing of an hectare of forest for re-use in crop-growing must correspond to a net increase in land value.
Otherwise it would not be transformed.” O problema nesse caso é que direitos de propriedade bem definidos
não são observáveis em áreas de fronteira nova na Amazônia Legal, sendo, assim, impossível delegar ao
mecanismo de preços o papel de fornecer o nível ótimo de desmatamento. Mais do que isso, é comum na
Amazônia Legal a situação em que a legitimação da posse da terra ocorre somente após sua ocupação
econômica e ao desmatamento associado. Por esta razão, como será visto adiante, pode-se afirmar que a
indefinição dos direitos de propriedade constitui, por assim dizer, a causa causans do processo de
desmatamento nas áreas de nova fronteira.
37
possível operar com este modelo sem abstrair o fato de que os agentes encontram-se
irremediavelmente inseridos em uma economia onde a moeda importa.
Por fim, a estrutura desse capítulo se dividirá em cinco seções além da
introdução e do resumo final. A primeira seção - O Conceito de Custo de Uso e a Renda
do Empresário – se ocupará na derivação da renda do empresário partindo do conceito
de custo de uso. A segunda seção - A Indefinição dos Direitos de Propriedade e as
Consequências da Exclusão do Componente de Capital da Renda do Empresário –
buscará demonstrar como a ausência plena de direitos de propriedade impactam as taxas
de desmatamento. A terceira seção - Acesso Quase-Aberto à Terra: Um modelo de
Definição de Direito de Propriedade Ex-Post-Facto – seguirá motivações semelhantes
ao tópico anterior, porém para o caso em que os direitos de propriedade só são
conquistados após a ocupação econômica da terra. A quarta seção - A Dualidade na
Fronteira e a Teorização do Efeito Indireto sobre Desmatamento – formalizará o
raciocínio exposto no terceiro tópico, além de fornecer uma rica visualização gráfica
para o que se convencionou chamar na literatura de efeito indireto sobre o
desmatamento. E, finalmente, a quinta e última seção - A identificação do efeito indireto
e sua importância para política de desmatamento - buscará conceder justificativas para
se considerar o efeito indireto e o trato da questão do desmatamento como resultante de
estratégias de acumulação de riqueza em uma economia monetária.
II.1 O Conceito de Custo de Uso e a Renda do Empresário:
O princípio da demanda efetiva elaborado por Keynes (1936) questiona a
determinação da renda como função da disponibilidade de fatores reais. Diferentemente
dos modelos neoclássicos, as economias não mais se encontram condenadas a operar no
nível de plena utilização dos recursos, sejam os preços flexíveis ou rígidos. De fato, em
se tratando de uma economia monetária da produção, necessariamente os níveis de
renda serão indeterminados a priori.
O problema da indeterminação ex-ante da renda levou Keynes a dedicar um
capítulo inteiro de sua “Teoria Geral” na busca por um método capaz de mensurar
inequivocamente a renda da comunidade. Para tal, o autor se utilizou do conceito de
custo de uso para chegar a uma expressão adequada da renda do empresário.
Posteriormente, a renda da comunidade seria obtida através de um simples exercício de
agregação das rendas dos empresários e dos custos pagos por estes aos fatores de
38
produção. Não cabe aqui esmiuçar essa discussão. Para os objetivos propostos por este
capítulo, necessita-se apenas do conceito de renda do empresário e de custo de uso.
Tal qual definiu Keynes, a renda do empresário (E) no período t é dada pelo
valor de suas vendas (A) descontado do custo primário, que nada mais é do que a soma
de seu custo de fatores (F) e de seu custo de uso (U). Deste modo, a renda do
empresário pode ser formalizada como segue:
E=A–F–U
(1)
O custo de uso, por sua vez, é a medida do sacrifício que o empresário incorre ao
decidir produzir (A) utilizando seu estoque de ativos de capital ao invés de deixá-los
ociosos. Para chegar a essa medida, é conveniente traçar dois cenários distintos: o
primeiro onde o empresário opta pela produção de A, colocando em operação seu
estoque de capital; e, outro, em que o empresário decida pela não utilização do seu
conjunto de ativos.
No primeiro caso, assume-se que o valor do estoque de ativos após a utilização
para a produção de A seja dado por G. O valor de G é o resultado líquido do esforço do
empresário para melhorar e conservar seus ativos de capital – seja através da labuta
própria ou da aquisição junto a outros empresários (A1) – e da depreciação e do desgaste
aos quais sujeitam-se os ativos de capital em razão de sua utilização produtiva.
Alternativamente, define-se como G’ o valor do estoque do ativo inutilizado no
processo produtivo ao fim do período. Mesmo assumindo a plena ociosidade dos bens
de capital, ainda assim é conveniente gastar uma determinada quantia em razão de sua
conservação e melhoria, para qual designa-se o termo B’.
Nota-se que G’-B’ é o valor que poderia ter sido conservado ao final do período
caso o equipamento não tivesse sido utilizado na produção de A. O excedente desse
valor potencial sobre o valor assumido pelo equipamento após sua utilização (G-A1) é a
medida do que se sacrificou do estoque de ativos de capital para produção de A; ou seu
custo de uso, expresso abaixo:
U = (G’ – B’) – (G – A1)
(2)
Deste modo, ao substituir a equação (2) na equação (1), chega-se a uma
expressão inteligível para a renda do empresário (3). Para os interesses desse trabalho
será conveniente a divisão da renda do empresário em dois componentes; o corrente
(E1) e o de capital (E2), expressos respectivamente pelas equações (4) e (5), abaixo:
39
E = A – F – [(G’ – B’) - (G – A1)]
E1 = A – F – A1
E2 = G – (G’ – B’)
(3)
(4)
(5)
A separação da renda do empresário nesses dois componentes da renda torna
evidente que as decisões acerca do nível corrente de produção reverberam no fluxo de
renda futuro, justamente por meio das expectativas de alteração no valor do estoque de
capital utilizado. Tal qual acentua Keynes (1936):
O custo de uso é um dos elos que ligam o presente e o futuro, pois, quando um
empresário fixa a sua escala de produção, tem de escolher entre utilizar
imediatamente o seu equipamento ou conservá-lo para o utilizar [sic] mais tarde. O
que determina o montante do custo de uso é o sacrifício esperado de lucros futuros
decorrente da utilização imediata, e é o volume marginal deste sacrifício que,
juntamente com o custo marginal de fatores e a receita marginal esperada, determina
a sua escala de produção.” (Ibid, p.69).
O trecho anterior de Keynes ainda chama a atenção que a maximização da renda
do empresário, ou de forma equivalente, de seu lucro bruto, não considera apenas
ganhos e perdas correntes provenientes do custo associado ao nível produtivo
estabelecido e das vendas efetuadas no período. Ao se incluir o custo de uso na análise,
inclui-se também a expectativa de perdas e ganhos sobre o valor do estoque de ativos de
capital utilizado, em virtude de seu sacrifício corrente na produção. Deste modo, o
preço de oferta de curto prazo de um bem não deve incluir apenas o custo marginal de
fatores, mas, também, o custo marginal de uso associado à escala produtiva posta em
operação.
O caráter temporal do processo produtivo é explicitado pelo conceito de custo de
uso, onde cabe ao componente de capital fazer o link entre o período corrente e o futuro.
Nesse sentido, problemas na definição dos direitos de propriedade tendem a gerar sérias
distorções no cálculo capitalista. Seguramente, quanto maior for a insegurança em
relação à posse do ativo, menor será a importância do componente de capital no
exercício de maximização da renda do empresário. No limite, quando inexistem direitos
de propriedade sobre a terra, o possuidor do ativo agirá apenas pela motivação da
maximização do componente corrente da renda (YOUNG, 2013).
Em termos meramente formais, a inexistência dos direitos de propriedade
elimina o componente de capital do cálculo capitalista, e consigo, abate uma parcela
importante do valor do custo de uso. Ao excluir o componente de capital, exclui-se do
cômputo do custo de uso a grandeza ((G’-B’) – G). Nesse ponto, há razões para crer que
tal grandeza seja positiva, pois equivale a dizer que o valor potencial do equipamento
40
novo é maior do que o valor do equipamento posto em operação na etapa produtiva – ou
seja, existe depreciação e desgaste pela utilização do estoque de capital. Assumindo,
bem como fez Keynes na passagem acima, que a escala de produção é dada pela
igualação entre a receita marginal esperada e o somatório dos custos marginais de uso e
de fatores, ao abater-se parcela do custo de uso, cria-se um incentivo econômico
incontrolável a elevação da produção.
Quando se trata de terras na fronteira agrícola, a indefinição de direitos de
propriedade tende a gerar o sobre-desmatamento, por meio da não percepção por parte
dos agentes de uma parcela significativa do “custo de produção de terras agrícolas”.
Os próximos tópicos utilizarão o conceito de custo de uso e renda do empresário
para entender economicamente o incentivo a desmatar. A base de comparação será
sempre dada pela situação em que os direitos de propriedade encontram-se bem
definidos, e a ela serão incluídos dois novos casos: o caso de direitos de propriedade
inexistentes e o caso dos direitos de propriedade definidos ex-post, chamado
anteriormente de acesso quase-aberto à terras.
II. 2 A Indefinição dos Direitos de Propriedade e as Consequências da Exclusão do
Componente de Capital da Renda do Empresário
O primeiro caso analisado é aquele no qual os direitos de propriedade sobre a
terra inexistem na fronteira agrícola. Nessa situação, o incentivo a considerar os fluxos
de pagamento cujas datas se executem no futuro é mínimo, para não dizer nulo. A razão
para tal é simples: dada a inexistência de direitos de propriedade, considerações sobre
expectativas de rendimento futuro perdem sentido, pois não há nada que garanta a posse
do ativo pelo agente no momento da realização de seus pagamentos.
A consequência imediata desse fato é a exclusão do componente de capital no
cálculo do empresário. Considerações sobre o componente de capital só fariam sentido
se existisse algum meio de assegurar a posse da terra por mais de um período. A partir
daí, seria conveniente, ao decidir produzir, ponderar qual parcela do estoque de ativos
seria sacrificada na produção e qual parcela seria preservada ante a possibilidade de
utilização futura.
Outra consequência fundamental causada pelo forte grau de incerteza devido à
inexistência dos direitos de propriedade em relação a posse da terra é a tendência a
subinvestimentos nessas propriedades. Quaisquer investimentos em ativos cujo período
de retenção se estenda além do período corrente tendem a ser desconsiderados.
41
Correções de solo, compra de colheitadeiras e tratores, fertilizações, dentre outras
medidas que não se paguem com o fluxo de renda imediatamente gerado não figuram
no conjunto das estratégias para o uso da terra. Consequentemente, trata-se de um
modelo em que a produtividade por hectare tende a ser demasiadamente baixa.
Assume-se aqui, tal qual fez Young (1997; 2013), que os agentes na fronteira
são tomadores de preço, isto é, a produção de cada agente na fronteira é pequena para
afetar os preços agrícolas, bem como suas demandas por insumos são relativamente
insignificantes para alterar os preços dos fatores de produção. O autor ainda chama
atenção para a necessidade de se incluir o custo de oportunidade do trabalho da família
no lote de terra que ocupam. O custo de oportunidade seria dado pelo salário que a
família receberia ao ofertar sua força de trabalho à outros agricultores.
Originalmente, o autor assume que os lotes de terras não são homogêneos e, por
isso, as receitas obtidas por hectare adicional desmatado, apesar de positivas, são
decrescentes,
enquanto
os
custos
com o
desmatamento
adicional
crescem
marginalmente. Para explicar as receitas de desmatamento marginalmente decrescentes
o autor assume a hipótese que os indivíduos tendem a desmatar em um primeiro
momento os lotes com maiores retornos esperados, para posteriormente integrarem ao
mercado as terras de menor rendimento. No lado dos custos, na medida em que a
demanda por terras cresce, a conversão tende a se localizar cada vez mais distante das
áreas integradas ao mercado, aumentando os custos com trabalho e, principalmente,
com transporte por lote adicional desmatado. Em relação à natureza das receitas e
custos, Young (2013) afirma:
Agricultural revenues per unit of land decrease if more land is cleared but labour and
transportation costs increase: the idea is that forested land is not homogeneous, and
the first plot to be cleared is the one which presents higher expected net returns.
Therefore productivity and profitability decrease with the expansion of the cleared
area. (Ibid, p.7)
A produtividade marginal decrescente como um fator explicativo para os
retornos monetários declinantes será rejeitada por essa dissertação. Tal recusa se
justifica pelo fato do conceito de produtividade (marginal) apresentar graves problemas
do ponto de vista lógico quando se opera em uma economia monetária. Dentre eles,
destacam-se:
1.
A produtividade só é conhecida após o estado da arte ter sido empregado. Ou seja,
o seu valor só se revela após a produção e não durante a tomada de decisões. De
42
fato, em uma economia empresarial, tanto as condições da demanda quanto da
oferta são objeto de profunda especulação.
2.
Ainda que seu valor fosse expectacional, em uma economia monetária a produção
não é organizada para se obter mais produto, mas mais dinheiro. A motivação
essencial dos agentes à participação no processo produtivo é terminar o período
com mais dinheiro do que se iniciou. Nesse sentido, não seria impossível que
aumentos de produtividade fossem seguidos por queda nos retornos dos ativos (em
termos monetários e da conveniência de sua posse), desde que a demanda ou o
estado de expectativas se alterasse e passasse a agir para tal. Em tal contexto,
dificilmente os empresários optariam pela elevação da escala produtiva, mesmo
diante de um ganho de produtividade.
Deste modo, os retornos marginais declinantes aqui apresentados são frutos da
eficiência marginal decrescente do capital, ou analogamente, da redução da escassez
relativa.
Na situação em que os direitos de propriedade encontram-se indefinidos antes ou
depois do desmatamento e ocupação da terra, a renda que o empresário buscará
maximizar será dada por:
E = E1 = A – W – R = A – C
(6)
Na equação acima, C é o custo total de fatores, que reflete a soma dos custos de
transporte (R) e de mão-de-obra (W).
A receita do empresário, por sua vez, é dada pelo produto entre um vetor de
preços agrícolas e um vetor de quantidade dos bens produzidos no lote de terra, e
vendidos na etapa de mercado, vide equação (7). Nesse cálculo entram quaisquer
produtos obtidos após a conversão da terra de floresta, tais quais as receitas com o corte
seletivo de madeira. Como fora assumido anteriormente, o vetor de preços é dado, seja
para o preço dos bens produzidos ou para os insumos utilizados. Logo, as decisões
relevantes, portando, estão resumidas a escala produtiva, sem qualquer consideração em
relação à precificação estratégica:
(7)
(8)
(9)
43
Por fim, serão assumidas as seguintes equivalências em relação aos retornos
provenientes do desmatamento e a quantidade demandada dos insumos produtivos:
EMgL > 0 ;
d EMgL/dL2 < 0
(10)
d qw/dL >0 ;
d2qw/dL2≥ 0
(11)
d qr/dL >0 ;
d2qr/dL2>0
(12)
A equação (10) assume que a eficiência marginal do capital, apesar de apesar de
ser uma função crescente em relação à área desmatada, apresenta retornos declinantes
por unidade adicional de desmatamento16. As duas equações seguintes (11) e (12)
evidenciam que a demanda pelos fatores de produção cresce na medida em que mais
terra é incorporada ao mercado via desmatamento. Há uma pequena diferença, porém
entre as equações apresentadas aqui e as utilizadas por Young (2013). O presente
trabalho está de acordo que a quantidade de transporte demandada como insumo de
produção aumenta por unidade adicional desmatada, principalmente, em virtude de que
na medida em que o desmatamento avança, terras mais distantes do mercado – leia-se:
terras com acesso cada vez mais restrito à estrutura de transporte – vão sendo
incorporadas, destinadas à produção agrícola. Porém, em relação ao fator trabalho,
julgou-se sendo menos restritiva a hipótese de não concavidade estrita, de modo que a
demanda por trabalho por unidade adicional de desmatamento pode tanto crescer
proporcionalmente quanto de forma mais célere. O que vale é que no todo, o custo total
cresce por hectare adicional de desmatamento.
Para a situação em que inexiste direito de propriedade sobre a terra, o horizonte
temporal considerado na tomada de decisão em relação ao desmatamento tende a ser
extremamente curto. A completa exclusão do componente de capital no cômputo do
custo de uso reduz sensivelmente os custos da conversão de vegetação primária
percebidos pelos agentes. Via de regra, a inexistência de direitos de propriedade sobre a
terra implica na situação em que o preço de oferta da nova terra agrícola (dado pela
soma dos custos de fatores e de uso) desconsidera o custo proveniente da perda do
estoque de bens e serviços ambientais – ou nos termos apresentados por Young (1997;
2013), o custo de depleção. Como era de se esperar, a redução do preço de se “produzir”
terra agrícola e integrá-la ao mercado de terras fornece um incentivo incontrolável ao
16
No modelo original, a equação utilizada faz referência a produtividade marginal decrescente das terras:
.
44
desmatamento adicional, ou ao sobredesmatamento, expresso pela grandeza L – L*, na
Figura 1:
Figura 1: Maximização do Retorno Esperado com Direito de Propriedade
Inexistente
Fonte: Young (2013)
O equilíbrio é dado pela igualdade entre o custo corrente e o retorno total com o
desmatamento. No Ponto L, o lucro monetário esperado com o desmatamento é dado
pela soma das áreas concernentes a renda normal e do custo de depleção. Esse último,
por sua vez, revela o valor – ainda em termos de moeda – de toda a perda de bens e
serviços ambientais que poderia ter sido evitada caso os direitos de propriedade fossem
bem definidos; situação para a qual o nível de desmatamento seria dado por L*.
Em termos ambientais, a ausência de direitos de propriedade, além da tendência
ao sobredesmatamento, responde pelo comportamento predatório dos agentes. Dado o
baixo investimento por hectare, a produtividade da terra tende a cair vertiginosamente
após dois anos de cultivo. (YOUNG, 2013). Durante o período inicial, a própria queima
da biomassa (resultante da conversão da vegetação primária em terra agrícola) libera
nutrientes no solo, compensando a ausência de correção do solo, dentre outras medidas.
Porém, passado esse período, o estoque desses nutrientes torna-se escasso, e sem a
reposição devida, condena a terra a própria exaustão. Assim sendo, o agente descarta a
antiga propriedade e se direciona a outro lote, ou de vegetação primária ou de vegetação
em recuperação. Sobre esse comportamento, Young (2013) acentua que:
Since the major cost is clearing the land, the farmer usually prefers to re-use a plot of
land which had been cleared before but was let to rest for a considerable period of
45
time, with a secondary forest formation (capoeira) with enough biomass to allow a
new cultivation cycle. Thus, if the supply of (secondary) forest is sufficiently large to
accommodate the demand for land every year, the system can be considered
sustainable: there is no pressure to clear primary forest. (Ibid, p.9)
Há de ser dito, ainda, que como não há titulação legítima sobre a terra, não é
conveniente presumir a existência de um mercado spot para esse ativo. Se, por sua vez,
não existe um mercado spot para a terra, não há possibilidade de realizá-la no curto
prazo. Por isso, considerações acerca do prêmio de liquidez perdem todo o sentido nesse
caso, bem como aquelas referentes às expectativas de ganho patrimonial, por razões
óbvias já citadas.
II.3 Acesso Quase-Aberto à Terra: Um modelo de Definição de Direito de
Propriedade Ex-Post-Facto
A análise feita no tópico anterior revelou como a indefinição dos direitos de
propriedade tende a ocasionar uma quantidade excessiva de desmatamento pela não
percepção de parte substantiva dos custos envolvidos na “produção de terras agrícolas”
pelos agentes econômicos. A partir desse ponto, porém, será analisada a situação na
qual os direitos de propriedade, apesar de inexistentes no momento da tomada de
decisões, são passíveis de conquista após a ocupação econômica e o desmatamento da
terra. Trata-se do caso em que os direitos de propriedades são definidos ex-post-facto,
no que Young (2013) convencionou chamar de acesso quase-aberto à terra, vide trecho
abaixo:
Quase-open acess land refers to land where property rights are established only after
economic occupation involving deforestation. The decision of land clearing is mainly
motivated by the expectations of profits from land accumulation, and land clearing is
the mechanism for claiming property rights. (Ibid. p. 6).
Em termos práticos, considerar a situação em que os direitos de propriedade
encontram-se sob disputa e se definem posteriormente as decisões sobre o uso da terra e
sobre a escala produtiva é de suma importância, dado que esse parece ser o caso que
descreve de forma verossímil o ambiente institucional na fronteira agrícola 17.
A obtenção de formas legítimas de posse sobre a terra dá origem a uma série de
mudanças importantes no modelo teórico discutido no capítulo 1. O primeiro fato a ser
destacado diz respeito a possibilidade introduzir uma nova terra no mercado spot. Nesse
mercado, os preços são estabelecidos para pronto pagamento em contrapartida da
17
Vide capítulo 4.
46
entrega imediata do ativo. Ante esse cenário, considerações acerca do componente de
valorização patrimonial e do prêmio de liquidez ganham sentido e passam a assumir um
papel operativo nas decisões dos agentes econômicos. Em outras palavras, o que esta
sendo dito é que o componente de capital da renda do empresário passa a ser, enfim,
motivo de apreciação no cálculo dos agentes nas decisões sobre o uso da terra. Mais do
que isso, a titulação ao garantir a propriedade da terra por tempo indeterminado
possibilita a inversão em melhorias através da aquisição de máquinas e equipamentos
agrícolas, da correção do solo, da reposição de nutrientes, dentre outras medidas
responsáveis pelo aumento da produtividade agrícola.
Ao contrário do que poderia sugerir a lógica, a definição ex-post dos direitos de
propriedade não resolve o problema do sobredesmatamento. Na realidade, existe a
tendência a uma piora sensível nesse quadro. Seguramente, a consideração acerca do
componente de capital, ao introduzir o custo de depleção, deveria gerar um nível
inferior de desmatamento, o que justificaria o engano. Porém, o uso da terra no processo
produtivo durante o intervalo de tempo que vai desde sua ocupação até a conquista de
sua posse legítima tende a apreciar o valor deste ativo ao lhe conferir a qualidade de
transacionável. Transcorrida esta etapa, os ganhos de capital serão esperados toda vez
que as expectativas de retorno com a venda de a nova terra agrícola superarem o custo
de depleção, isto é, sempre que o valor de G superar o valor de G’. Para tais casos, a
introdução do componente de capital no cômputo da renda do empresário dará origem a
um custo de uso negativo, ou, melhor dizendo, uma receita de uso da terra.
Segundo Young (2013), geralmente os rendimentos obtidos com a revenda da
terra superam os custos de depleção, de modo que, sob a perspectiva daqueles que a
detém, o desmatamento tende a ser visto como um investimento, cuja finalidade é a
obtenção de formas legítimas de posse sobre o ativo. Alternativamente, pode-se pensar
nos recursos naturais como insumos a produção dos direitos de propriedade. Nesse
sentido, a demanda por terras passa a não refletir apenas as expectativas sobre sua
quase-renda, mas também a especulação acerca de seu preço – como forma de se obter
ganhos patrimoniais –, além de considerações à respeito de seu prêmio de liquidez,
embutidos na taxa que desconta para o valor presente as anuidades de renda esperadas,
como visto no modelo de escolha de ativos. 18
18
O autor ainda atenta para o fato de que usualmente os agentes tendem a reclamar os direitos de
propriedade sobre áreas maiores do que aquelas que já foram desmatadas. A ideia é utilizar esse
excedente de terra como reserva florestal dentro da propriedade. Deste modo, o desmatamento de novas
47
II.4
A Dualidade na Fronteira e a Teorização do Efeito Indireto sobre
Desmatamento
Para analisar o efeito indireto sobre o desmatamento faz-se necessário identificar
diferentes motivações para a posse da terra, e para tanto, serão introduzidos dois tipos
de agentes. A possibilidade de se fazer trocar de mãos a propriedade da terra em
contrapartida a uma compensação monetária dá origem a um novo agente; o agricultor
de segunda geração. A partir desse ponto, justifica-se a diferenciação de agentes no
modelo sob o critério de suas demandas por terras:
I)
Os colonos: agentes cujas principais motivações para demandarem terras residem
nas expectativas de ganhos patrimoniais e no prêmio de liquidez. Esse tipo de
agente geralmente está menos interessado na capacidade produtiva da terra do que
na possibilidade de valorizações vertiginosas de seus preços no momento em que o
ativo ganha a qualidade de transacionável. Por isso, comumente sua demanda por
terras tende a se assentar nas áreas de fronteira nova, onde os direitos de
propriedade ainda não se encontram definidos. Considerando a possibilidade de que
o uso da terra seja repentinamente descontinuado, os agentes que operam na
fronteira nova tendem a executar um baixo nível de investimento por hectare, e sua
produção tende a contar com uma dotação reduzida de bens de capital, condenando
suas terras a baixa produtividade
II)
Agricultores de segunda geração: agentes que enxergam como principal motivação
para demandar terras o excedente da quase-renda desse ativo sobre seu custo de
manutenção. Como o foco desses agentes é a exploração da quase-renda da terra isto é, o lucro da venda de seus produtos -, os gastos com a aquisição de máquinas e
equipamentos, fertilização, reposição de nutrientes em geral, tendem a ser elevados.
Dado o alto nível de investimentos, esses agentes não costumam ir por conta
própria a nova fronteira reclamar o direito de propriedade sobre a terra, haja vista
que o fracasso nesse processo poderia significar a interrupção do uso de ativos de
capital de forma antecipada a sua realização em mais dinheiro.
O modelo de fronteira dual descreve justamente o comportamento distinto dos
agentes ao maximizarem suas rendas. Enquanto os colonos demandam terras dada sua
natureza de ativo líquido (ou seja, com ênfase no aspecto especulativo de posse da
áreas pode seguir dentro de uma propriedade já estabelecida, ou avançar sobre terras cuja posse não foi
ainda reclamada.
48
terra), os agricultores de segunda geração as demandam pela sua dimensão de ativos de
capital (com ênfase no aspecto produtivo da terra, ou seja, nos ganhos das quaserendas). Essas especificidades na demanda determinam qual o tipo de terra (de fronteira
nova ou de fronteira estabelecida) será incorporado no portfólio cada agentes.
Como hipótese simplificadora, será assumido que os agricultores de segunda
geração não especulam com o preço da terra, ou seja, encontram-se fundamentalmente
impulsionados pelas características produtivas desse ativo, e não pela possibilidade de
ganho patrimonial em futuras revendas. Esta hipótese é assumida apenas em razão de
possibilitar a visualização gráfica do modelo. Porém, novas ondas de especulação
podem ser incluídas ao modelo sem qualquer perda de consistência lógica, em que pese
o fato de que ao se inserir novos agentes (agricultores de quarta, quinta e de n-ésima
geração), perde-se a capacidade de visualização gráfica do modelo, restrita por no
máximo três dimensões.
Tal qual o colono, o agricultor de segunda geração – doravante, agricultor –
também está sujeito à eficiência marginal decrescente do capital – vide equação (13),
abaixo – pelas mesmas razões anteriormente expressas. Como os direitos de
propriedade na fronteira antiga já se encontram definidos, os agricultores consideram o
componente de capital no exercício da maximização de seu lucro bruto. Desse modo, os
custos de produção, além do pagamento aos fatores trabalho e transporte, devem incluir
o custo de oportunidade do trabalho desses agricultores, as despesas com a contratação
de crédito, isto é, o montante gasto com pagamento de juros, além do custo de depleção
dos recursos naturais.
Para evitar confusões, é preciso explicar porque o custo de depleção é
incorporado no cálculo do agricultor e não do colono. Seguramente, na fronteira nova, o
desmatamento observado é de responsabilidade deste último. A conversão da floresta
em área de pastagem é a condição necessária para a aquisição dos direitos de
propriedade, sob os quais se apoiam as expectativas de lucro dos colonos com a revenda
da terra. Porém, a indefinição dos direitos de propriedade ex-ante faz com que estes
agentes continuem não considerando o custo de depleção em seus cálculos. Os
agricultores, por outro lado, encaram os custos de depleção porque, geralmente,
adquirem propriedades com alguma extensão de reserva florestal. Deste modo, os custos
de depleção incorporados nas decisões sobre o uso da terra fazem referência direta ao
desmatamento ocorrido dentro dos limites da propriedade já demarcada e legalizada do
agricultor, e não à conversão em área de fronteira nova.
49
Deste modo, a renda do agricultor de segunda geração (late settler) pode ser
expressa como segue na equação (13), onde o que se busca maximizar é o somatório das
receitas (esperadas) das venda de seus produtos deduzidas do custo de produção, ambos
expressos em termos de seu valor presente em moeda. Por fim, vale ressaltar de novo a
natureza crescente dos custos de produção por unidade adicional de desmatamento (15),
mais uma vez fundamentada no crescimento do custo de transporte.
(13)
(EMgL)L > 0 ; (d EMgL/dL2)L < 0
CTL’ > 0 ; CTL’’ > 0
(14)
(15)
A demanda por de terras registradas, em razão da introdução do agricultor no
modelo, gera expectativas de lucros futuros para os colonos, caso esses avancem para
uma nova fronteira, tal qual expresso nas equações abaixo:
(16)
(17)
C’E > 0 ;
C’’E > 0
(EMgL)E > 0 ; (d EMgL/dL2)E < 0
(18)
(7)
O ganho de capital proveniente da revenda da terra está expresso pelo termo
αPlL, ou equivalentemente, PlE. Este último termo representa o preço da terra na nova
fronteira agrícola. Pela equação (17), nota-se que o preço na nova fronteira é um
múltiplo do preço de uma terra com qualidades equivalentes na velha fronteira, onde α
representa o grau de confiança na obtenção dos direitos de propriedade 19. Caso seu
valor fosse zero, a terra não seria transacionável, pois nenhuma garantia de posse
legítima se estenderia sobre o ativo. Caso seu valor fosse 1, ou seja, os preços se
equivalessem, dificilmente a fronteira se moveria por razões outras que não a
necessidade de se aumentar a produção agrícola, pois nenhum agente estaria disposto a
enfrentar custos mais altos (dada a pior infraestrutura) e qualquer tipo de incerteza em
relação aos direitos de propriedade. Por isso, exclui-se os valores limites.
19
Alfa é uma variável cujo valor é subjetivo e reflete a expectativa dos agentes de se sagrarem vitoriosos
no processo de acumulação de terras, isto é, de obterem a titulação ex-post da terra via desmatamento.
Via de regra, alfa é mais um canal por meio do qual as expectativas dos agentes operam na determinação
dos preços da terra e da quantidade desmatada.
50
Antes de seguir adiante, convém uma breve explicação da natureza crescente dos
custos de produção por unidade adicional de desmatamento. No modelo aqui utilizado,
o desmatamento segue o sentido rodovia-floresta, ou seja, é normal que os primeiros
lotes desmatados em uma propriedade sejam aqueles que apresentem o menor custo de
desmatamento, representado pelo valor C1. Na medida em que a demanda por terras se
eleva, outros lotes de terra vão sendo desmatados, até que se chegue a um novo nível de
custos (C2), maior que o primeiro, e assim sucessivamente, até que o último lote seja
convertido ao maior custo (C4), vide figura 2. Basicamente, o custo de produção que
mais cresce com o avanço do desmatamento é o custo de transporte, para levar os
fatores de produção a áreas mais distantes da rodovia e escoar a produção de áreas mais
distantes até a rodovia. Portanto, ceteris paribus, é natural supor que o retorno esperado
decline por unidade desmatada em razão dos custos crescentes20.
Figura 2. A Natureza crescente dos Custos por Área Adicional Desmatada
Dada a maior dotação de capital e o maior acesso a linhas de crédito sob a
execução do agricultor de segunda geração, o valor presente do seu fluxo de renda
esperado para cada hectare tende a superar o valor corrente da renda obtido pelo colono.
Via de regra, o que esta sendo dito é que o preço de demanda do agricultor por uma
dada terra excede o preço de demanda do colono por este mesmo ativo, ou
alternativamente, que o primeiro está disposto a pagar mais do que o segundo aceitaria
receber como valor mínimo pela terra. Como o objetivo do agente é acumular riqueza
20
Note que nada foi dito sobre a produtividade da terra. Assume-se que os custos são marginalmente
crescentes não em decorrência da produtividade decrescente, mas em razão da necessidade de transporte
não ser homogênea para os diferentes lotes desmatados. De certa forma, é até estranho que a teoria dos
custos marginais crescentes esteja umbilicalmente ligada a hipótese da produtividade marginal
decrescente, haja vista que os custos de produção tendem a ser contratados antes da produção ser iniciada,
enquanto a produtividade só se revela após os bens estarem acabados e prontos para a venda.
51
sob a forma monetária, caso haja demanda pelo ativo, é natural supor que o colono
venderá sua terra tão logo obtenha os direitos de propriedade sobre ela, uma vez que o
valor em moeda obtido com a revenda do ativo supera valor que o colono espera receber
pela continuidade de seu uso.
Sob a perspectiva dos colonos, os ganhos monetários esperados com a revenda
das terras fornecem uma explicação razoável para o desmatamento em áreas cujos
retornos produtivos (Q-C) esperados são negativos ou demasiadamente baixos, dada a
tecnologia utilizada21. De acordo com a maximização da renda do colono, o
desmatamento tenderá a persistir até o ponto em que o retorno monetário corrente
esperado pela conversão de uma unidade adicional de terra seja superado pelo custo
marginal de se desmatar, ou seu custo de reposição – que nada mais é do que o preço de
oferta do ativo. Dentro do custo marginal do desmatamento foram incorporados os
custos marginais de fatores e de uso. Este último, na medida em que se opera com
direitos de propriedade indefinidos ex-ante, desconsidera o custo marginal de depleção,
todavia inclui os ganhos de capital esperados pela venda futura da terra.
Metodologicamente, o custo de uso negativo, decorrente do ganho de capital esperado,
pode ser incluído como receitas de uso da terra associadas ao desmatamento. Assim
sendo, como o ganho de capital dá origem a receitas extras, o retorno esperado com o
desmatamento em uma situação de acesso quase aberto a terra supera o retorno esperado
quando inexiste direito de propriedade sobre esse ativo. Logo, o desmatamento no
primeiro caso excede o desmatamento observado no último caso.
Esta relação pode ser verificada na Figura 3. O primeiro quadrante descreve a
situação na fronteira velha, onde se estabelecem os agricultores de segunda geração. O
limite do desmatamento na fronteira velha é dado pelo valor (L(of)), que é a quantidade
de desmatamento que iguala o valor presente do fluxo de renda esperado pela posse e
uso da terra (preço de demanda do ativo) ao custo marginal do desmatamento ( preço de
oferta do ativo). Deste modo, quando o total desmatado se iguala a (L(of)), o retorno
marginal esperado com o desmatamento é nulo. É possível entender a curva dos
retornos marginais esperados como a curva de preço de demanda da terra na fronteira
velha (pl(of)).
21
Esta é justamente a definição de especulação de terra sustentada por este trabalho.
52
O segundo quadrante representa justamente a relação entre o preço da terra na
fronteira velha e o preço da terra na nova fronteira, onde α seria o coeficiente angular
dessa relação.
O terceiro quadrante, por fim, apresenta as condições na fronteira nova. A curva
(E’(es)) representa o retorno total esperado pela posse e uso da terra no período
corrente, e seu valor é a soma dos retornos marginais correntes (El’(es)) – proveniente
do uso agrícola da terra – e dos ganhos de capital esperados pl(nf). Como era de se
esperar, o total desmatado nesse caso L(nf) supera o total desmatado na ocasião em que
inexistiam os direitos de propriedade L*(nf).
Figura 3: A dualidade na Fronteira
Fonte: Young (2013)
Uma das grandes conveniências do modelo desenvolvido por Young (2013) é
sua capacidade de explicar como as condições na fronteira velha influenciam as
decisões dos colonos acerca do uso da terra na nova fronteira. À exemplo, caso uma
estrada seja aberta na velha fronteira, é de se esperar uma elevação da quase-renda da
terra nessa região, elevando portanto o valor presente do fluxo de renda esperado desse
ativo – ou seu preço de demanda. Esse efeito é representado pelo deslocamento da curva
E’(ls) para direita, de modo que para uma mesma quantidade desmatada na fronteira
velha, espera-se agora um rendimento maior. Como o preço da terra na fronteira nova é
um múltiplo α do preço da terra na fronteira velha, é natural supor que a curva pl(NF)
também se deslocará para fora, e consigo a curva de rendimento corrente dos colonos.
53
Ou seja, o aumento do preço de demanda na fronteira velha não apenas determina o
aumento do desmatamento nessa localidade, mas também eleva o desmatamento na
nova fronteira. Essa é a essência teórica do que se convencionou chamar de efeito
indireto sobre o desmatamento. Uma melhor compreensão pode ser obtida através da
visualização na Figura 4.
Figura 4: Efeito Indireto sobre o Desmatamento
Fonte: Young (2013)
A Figura 4 mostra que uma variação na rentabilidade da terra na fronteira velha
gera um desmatamento adicional nessa região dado pela quantia L(of)d – L(of)a, e, ao
fazer variar os ganhos esperados de capital na fronteira nova, provoca um
desmatamento extra no montante de L(nf)^ - L(nf) nessa localidade. Essa diferença é a
medida em que se fez variar o desmatamento na fronteira nova em razão da variação na
rentabilidade na fronteira antiga, ou o efeito indireto sobre o desmatamento.
II.5 A identificação do efeito indireto e sua importância para política de
desmatamento
A importância de se reconhecer o efeito indireto sobre o desmatamento reside na
necessidade de se atacar as causas desse fenômeno. A origem do processo de
desmatamento está na tomada de decisões dos agentes à respeito da composição de suas
carteiras de ativos. O uso que se dá a terra nada mais é do que um meio utilizado pelo
agente para transformar certa quantidade de dinheiro no início do período em mais
54
dinheiro ao final do mesmo. A desconsideração do efeito indireto – na medida em que
obscurece as causas desse fenômeno – tende a concentrar o combate ao desmatamento
em ações cuja incidência se dá não sobre a tomada de decisões, mas sobre os efeitos
desta, por meio de políticas de comando e controle.
Mais do que o estabelecimento de regras, do que uma fiscalização efetiva e uma
punição severa aos desmatadores, é preciso que se cortem os incentivos econômicos à
atividades historicamente ligadas ao processo de expansão da fronteira agrícola de
forma predatória, sejam eles concedidos na fronteira velha ou na nova fronteira. Porém,
isso só é possível, ao se reconhecer os efeitos indiretos do desmatamento à luz do
entendimento da terra como um ativo que compete com os demais em termos de seus
atributos de rentabilidade. Via de regra, qualquer política que altere a rentabilidade
relativa entre a conversão e a conservação da floresta, em favor do primeiro, responderá
pelo acréscimo nas taxas de desmatamento.
Por fim, é de vital importância que se considere a interdependência do
comportamento dos colonos e agricultores, e ainda, das condições entre as duas
fronteiras. Somente assim, tornar-se-á claro o fato de que até mesmo os incentivos
dados em áreas já convertidas podem ser responsáveis por estimular o desmatamento
em outras localidades.
II.6 Resumo Conclusivo:
O modelo desenvolvido por Young (1997; 2013) através da apropriação do
conceito de custo de uso, além de destacar a importância da interdependência entre
agentes e fronteiras, permitindo a teorização e visualização do efeito indireto, deixa
claro que os problemas de indefinição dos direitos de propriedade estimulam as taxas de
desmatamento na direção de sua elevação.
Em termos práticos, – e tendo em vista o objetivo a que se presta o presente
trabalho – o efeito indireto, analisado de forma compatível com o modelo de escolha de
ativos, é de fundamental importância para explicar a razão pela qual a soja é entendida
na literatura como um dos principais vetores do desmatamento na Amazônia Legal,
embora a participação de sua área plantada nesta localidade seja reduzida. A relevância
da soja na busca pela explanação do processo de desmatamento encontra-se, justamente,
no papel que esta tem desempenhado ao deslocar culturas menos rentáveis de áreas já
convertidas para áreas de floresta. Contudo, este será o assunto do capítulo final.
55
CAPÍTULO III: APROPRIAÇÃO TERRITORIAL, GRILAGEM E A
ESCASSEZ RELATIVA DA TERRA
Nos capítulos anteriores, a terra foi tratada como ativo de natureza múltipla,
onde as decisões acerca de sua aquisição e uso faziam parte das estratégias de
acumulação de riqueza – sobretudo, na forma monetária. Um ativo, por definição, é uma
promessa sobre os rendimentos futuros da economia, e como tais rendimentos não se
encontram pré-determinados, a operação com ativos sempre envolve a especulação
acerca dos seus retornos vindouros. (CARVALHO, 1992).
Quando as estratégias de acumulação de riqueza se direcionam a aplicação em
terras, a própria natureza dupla desse ativo possibilita aos seus detentores a extração de
rendimentos provenientes tanto da sua utilização produtiva (quase-rendas), quanto das
variações em seu preço, em decorrência de negociações futuras no mercado secundário
de terras, ou seja, em razão dos ganhos patrimoniais.
De forma mais geral, a capacidade que a terra tem de render ao curso de sua
retenção um valor maior do que aquele pago na ocasião de sua compra reside na
constatação de sua escassez no mercado de ativos.
De antemão, tratar da escassez da terra pode parecer contra-intuitivo em um país
com dimensões continentais e, acima de tudo, com uma vasta área de seu território
ainda não apropriada, pública ou privadamente. A confusão aqui criada reside na
oposição de conceitos que destituídos de seus significados histórico e econômico podem
parecer antagônicos. Quando se apela para a abundância de terras, lança-se olhar para
uma constatação de ordem física, baseada na grandeza territorial do país. Porém,
quando se diz que a terra é escassa, faz-se uma referência direta a uma dimensão
histórica e mercadológica da terra, remetendo à análise para o processo de apropriação
territorial desordenado, responsável por concentrar a propriedade da terra na mão de
poucos agentes.
É a partir desta distinção que se torna possível entender com clareza a real
importância dos direitos de propriedade sobre a terra. De imediato, sua definição é
imprescindível à possibilidade de se transacionar com esse ativo. É bem verdade que os
direitos de propriedade surgem como pré-condição a existência de qualquer mercado,
entretanto, para o caso da terra sua existência é ainda mais imperiosa dada a imobilidade
deste ativo e a sua irreprodutibilidade.
56
Por sua natureza de bem imóvel, decorre ser simplesmente impossível para o
comprador levar consigo tal bem como meio de afirmar sua posse ou propriedade.
(DEKKER, 2005). Nesse sentido, “quando transferida de uma mão para outra, não é a
terra que se movimenta, mas os direitos sobre ela.”(GUEDES & REYDON, 2012). Em
suma, os direitos de propriedade são essenciais nesse caso, porque o que se transaciona
no mercado de terras não é a terra enquanto bem físico, mas o direito intangível –
porém, socialmente aceito – sobre seu uso e posse.
Enquanto bem irreproduzível, é preciso destacar que para o caso da terra,tal qual
para moeda, não é possível empregar mão-de-obra para se obter unidades adicionais
desse ativo ao final do período. Nesse sentido, a quantidade de terras está exogenamente
determinada. De tal sorte, quando se introduz determinada terra no mercado, não foi a
terra que se produziu no período, mas o direito de propriedade sobre ela.
Deste modo, tratar da escassez da terra remete, além da competição entre taxas
de juros da generalidade dos ativos da economia, ao processo de produção de direitos de
propriedade sobre a terra.
O objetivo desse capítulo é justamente tratar da “produção” desses direitos de
propriedade – o que em termos equivalentes significa a colocação de novas terras no
mercado –, focando a análise no processo de construção da escassez da terra. Embora
seja reconhecida a necessidade de uma abordagem jurídica sobre o tema, optou-se por
uma abordagem histórica do mesmo, capaz de revelar como um determinado grupo de
agentes conseguiu dominar os meios de acesso à propriedade da terra, excluindo os
demais da participação efetiva nesse mercado.
Visando percorrer este extenso caminho, esse capítulo se divide em três seções,
desconsiderando a introdução, o resumo. A primeira seção – A Formação, Consolidação
e Operacionalidade do Mercado de Terras no Brasil – visa tratar da instituição do
mercado de terras no país marcado por uma estrutura fundiária concentrada, trazendo
para a análise as consequências da concentração fundiária para as possibilidades de
aplicação capitalista em terras. A segunda seção – A Grilagem de Terras Públicas:
Entendendo o Problema – objetiva apresentar elementos para a compreensão do processo
ilegal de transferências de terra pública para o patrimônio de particulares por meio de
fraudes documentais. A terceira seção – A Economia da Grilagem – busca tratar das
possibilidades de apropriação de fluxos de renda oriundos da acumulação de terras na
fronteira realizadas pelo expediente da grilagem de terras públicas. Por fim, a quarta
seção, intitulada Aspectos gerais da acumulação de terras na fronteira amazônica – traz
57
um retrato sobre a situação fundiária na Amazônia Brasileira, em razão do recente
processo de colonização da região.
Ao final desse capítulo, constam, ainda, quatro anexos históricos que tratam do
processo de apropriação territorial que antecedeu e caminhou em paralelo a criação e
consolidação do mercado de terras. A ideia é demonstrar que o processo de dominação
dos acessos à propriedade da terra é bem anterior à institucionalização do mercado
desse ativo, o que significa dizer que o mercado de terras já nasceu com a oferta
concentrada na mão de poucos agentes – caraterística que se preserva até hoje, e que é
extremamente funcional à utilização da terra como reserva de valor.
III.1 A Formação, Consolidação e Operacionalidade do Mercado de Terras no
Brasil: Construindo a Escassez da Terra
Tal qual ficou estabelecido no primeiro capítulo desse trabalho, um ativo rende
porque ele é escasso, e se mantem escasso pela concorrência da taxa de juros do
dinheiro.
Porém, quando se entende a terra enquanto objeto de aplicação capitalista, é
preciso trazer para a análise os elementos que permitem constatar sua escassez, mesmo
diante de algumas peculiaridades importantes sustentadas por esse ativo, como no caso
de sua oferta fixa e abundante.
O fato de sua oferta ser abundante descredencia o juízo da escassez da terra no
sentido neoclássico do termo, em que se entende a escassez em razão das condições
físicas de produção no curto prazo. Todavia, a oferta fixa e abundante obscurece, a
primeira vista, o próprio entendimento dos fatores responsáveis por gerar a tal condição
de escassez relativa.
Esta peculiaridade da terra enquanto objeto de aplicação capitalista faz com que
a sua escassez seja explicada não somente pela competição com as demais taxas de
juros da economia, sobretudo com a taxa de juros do dinheiro, mas também por fatores
institucionais e históricos. Sobre esse aspecto, Reydon (1992) afirma: “em princípio, há
terra em abundância, mas a instituição da propriedade privada da terra (legislação) a
torna escassa.” (Ibid., p.86). Posteriormente, o autor vai além: “o fato da terra ser
praticamente irreprodutível, com elasticidade de produção e substituição baixas, e de
ser apropriada privadamente por alguns, favorece as condições para o estabelecimento
de sua escassez econômica.” (Ibid., p.89).
58
No primeiro momento, Reydon (1992) parece sugerir uma visão mais estreita em
relação à escassez da terra, na medida em que afirmou ser esta fruto da instituição da
propriedade privada por intermédio das leis. Mais adiante, porém, o autor toca em uma
questão fundamental, ao atribuir a escassez à “apropriação privada da terra por alguns”.
Essa parece ser a visão mais acertada, haja vista que no momento em que o mercado de
terras foi institucionalizado a semente da concentração fundiária já havia, há muito, sido
plantada. Nesse sentido, o processo de “apropriação privada da terra por alguns”
antecede a institucionalização da propriedade privada da terra e a criação do mercado de
terras.
A Lei nº 601 de 1850 – doravante, Lei de Terras – é reconhecida na literatura
como o marco institucional da propriedade privada sobre a terra no Brasil, tendo sido,
por conseguinte, responsável pelo estopim do processo de mercantilização deste ativo.
(REYDON, 1992; SILVA, 1996; SILVA, 1997; GUEDES, 2006; REYDON et al.,2006:
GUEDES & REYDON, 2012). Em termos práticos, a sua promulgação deu origem a
transição da propriedade da terra sob a forma concessionária para a forma plena,
mercadológica, requisitada pelo – e para – o avanço das forças capitalistas no meio
rural.
A referida lei tentou instituir um mercado de terras no país ao proibir a aquisição
de terras públicas (devolutas) por outro título que não o de compra. Era uma clara
reação a prática disseminada do apossamento privado das terras devolutas, há séculos
em andamento no país. Ao mesmo tempo em que a lei proibia a prática da posse como
meio de acesso a terra, criava os mecanismos legais através do qual a própria posse
seria legitimada. Sobre esse aspecto, Holston (1993) acentua: “a lei de terras no Brasil
promove conflitos, e não soluções, porque estabelece os termos através dos quais a
grilagem é legalizada de maneira consistente.” (Ibid., p.68).22
Ao estabelecer os espaços legais através dos quais a prática da posse poderia
continuar existindo, a Lei de Terra não conseguiu organizar o cadastro de terras
possuídas, e, por conseguinte, estremar as terras públicas daquelas sob domínio dos
particulares. Essencialmente, isso ocorreu porque a medição das terras devolutas só teria
início após procederem à demarcação e medição das terras de particulares. Entretanto,
no entendimento dos juristas da época, a demarcação e medição das terras não se
22
Para uma discussão sobre a transmutação desse conceito ao longo do tempo, ver anexo III.
59
asseveravam como obrigações dos posseiros, mas sim como direitos garantidos pelo
artigo 8º da Lei de Terras; e foi dele que se valeram os posseiros para recusar a
legitimação de suas propriedades quando julgaram ser conveniente.23
O insucesso em discriminar as terras devolutas gerou na academia alguma recusa
em reconhecer a Lei como o marco que deu origem ao mercado de terra no país, tal qual
expresso no trecho abaixo:
Uma lei se converte em prática através de sua aplicação, que é baseada em sua
interpretação. A lei de terra foi interpretada como legitimadora das posses em
qualquer tempo, sempre que tivesse cultura efetiva e morada habitual. Sem estancar a
posse, a lei não conseguiu criar um mercado de terras – transformar a terra em
mercadoria [...]. (SECRETO, 2012: p.88).
Secreto (2012) acerta ao afirmar que a lei foi um instrumento legitimador da
posse durante toda sua vigência. Entretanto, ao afirmar que a lei não conseguiu criar um
mercado de terras, a autora acaba por subtrair toda a importância da intervenção do
Estado na esfera jurídica com vistas de estabelecer a propriedade plena sobre a terra e,
complementarmente, do papel que a institucionalização dessa nova forma de
propriedade (a plena) teve para o processo de mercantilização desse ativo.
Talvez, o problema na passagem acima esteja em não distinguir a criação do
mercado de terras de sua consolidação. De fato, o mercado de terras não se consolidou
no quando da promulgação da lei, tal qual aponta Silva (1996) ao atentar para o pouco
dinamismo no negócio de compra e venda de terras devolutas na segunda metade do
século XIX. Para que a compra e venda da terra se tornasse a forma hegemônica de
aquisição foi preciso contar com diversas outras mudanças institucionais para a
dinamização do mercado, tal qual o fim da escravidão e a formação dos mercados de
trabalho, crédito e produto. (SILVA, 1976; GRAZIANO DA SILVA, 1981; REYDON
& PAOLINO, 1989; SILVA, 1990). Nesse sentido, é correto afirmar que a
mercantilização da terra foi um processo longo, tendo se arrastado por décadas, do qual
a referida lei constituiu não mais – embora de forma fundamental e necessária – que seu
gatilho.
Longe de ser uma particularidade do processo de mercantilização da terra no
Brasil, esta morosidade foi igualmente observada em diversos países. Polanyi (1980)
acentua que a formação do mercado de terras nos países europeus levou quase quatro
séculos para ser concluída. Para o autor, o processo de criação do mercado de terras na
Europa teve início com a mercantilização dos rendimentos feudais, passando pelo
23
Vide Anexo III.
60
crescimento da produção da agricultura com vistas a atender as demandas da revolução
industrial, para, por fim, se consolidar com a criação dos mercados de terra nas áreas
coloniais. Sob uma perspectiva mais geral, a mercantilização da terra constituiu uma
importante etapa da reorganização de um sistema de produção pré-capitalista, para uma
economia de mercado.
No Brasil, o processo recrudescimento das forças capitalistas no campo trouxe a
necessidade da organização da produção via mercado de fatores. Era preciso poder
contar com o mercado como meio de acessar os fatores produtivos e manter para
produção em andamento. (PLATA, 2001). Não obstante, a mercantilização da terra
acontece concomitantemente à importantes transformações nas relações de trabalho. 24
De fato, são fatores complementares os processos de transição da propriedade da terra
sob a forma concessionária para a forma privada (plena) e o de transição da força de
trabalho de sua forma cativa para a livre. Ambos os processos serviram para agudizar a
relação de produção capitalista, impondo restrições ao acesso da terra na medida em que
se libertava a mão-de-obra para a subserviência do capital. Tal qual aponta Reydonet al.
(2006), a mercantilização da terra foi responsável pelo processo de proletarização do
imigrantes e ex-escravos, na medida em que reservara o acesso à este recursos para
àqueles que dispunham dos meios financeiros para adquiri-lo.
É importante ressaltar que antes mesmo do mecanismo de preços exercer sua
seleção discriminatória no acesso à terra, excluindo àqueles sem recursos suficientes
para comprá-la, a exclusão de uma parcela considerável da sociedade já estava em
curso. O que parece fundamentalmente grave na história da apropriação territorial
brasileira é que durante séculos os mecanismos (legais, extra-legais e ilegais) de acesso
à terra foram dominados pelos grandes fazendeiros, tal qual expõem Holston (1993),
Silva (1996; 1997) e Motta (2008).
Inicialmente, é preciso reconhecer que o sistema sesmarial constituía um
verdadeiro regime de privilégios, em que se reservava o acesso legal à terra aos
indivíduos bem relacionados com a Corte e com o Rei de Portugal e que tivessem
condições materiais suficientes para empreender o cultivo em larga escala. Foi
justamente nesse contexto que a posse surgiu, e se materializou como um meio de
esquivar do quadro legal de acesso à terra, possibilitando, de um lado, os indivíduos
24
Esse caráter complementar fica ainda mais aparente pelo fato da Lei de Terras ter sido promulgada
apenas duas semanas após a proibição do tráfico negreiro – por meio da Lei Eusébio de Queirós – e, por
ter como uma das suas principais diretrizes, instituir a adoção de um amplo programa de imigração de
mão-de-obra europeia, a ser financiada com os recursos da venda das terras devolutas.
61
inicialmente excluídos disporem do solo necessário ao seu cultivo e, de outro, a
multiplicação do domínio de grandes fazendeiros, alargando as sesmarias ou enormes
posses sobre sua tutela.
A prática da posse acabou por se disseminar pela sua adequação ao modelo de
produção agrícola extensivo, móvel e predatório.25 Sua hegemonização acabou
resultando em uma série de querelas envolvendo a propriedade das terras entre
particulares e Coroa e de particulares entre si. Holston (1993) chama a atenção para o
fato de que a excessiva complexidade do sistema jurídico por vezes tornou irresolúveis
os litígios de terra pela letra fria da lei, gerando ao longo de toda a história a profusão de
soluções extra-legais, como acordos e soluções a margem dos dispositivos normativos.
Ainda nos tempos de colônia, a elite rural aprendeu a se utilizar do governo, das
leis e da burocracia com o fim de criar uma teia intransponível de regulações sobre a
terra. (LIMA, 1954). Essa teia de regulações aumentava a complexidade do sistema
jurídico e a dificuldade de se chegar de forma rápida, barata e eficiente às
determinações legais, tendo servido aos interesses dos grandes proprietários, não porque
as leis representavam fielmente suas demandas, mas porque estes aprenderam a
manipular e se apropriar do sistema jurídico-burocrático para que não se vissem refém
de determinações legais. Sobre esse aspecto, Holston (1993) afirma que:
[...] a irresolução é também um instrumento de dominação atualizado pelo sistema
jurídico; ou seja, os princípios da lei no Brasil produzem, sistematicamente,
irresoluções para uma sociedade na qual a irresolução é um princípio de ordem
[...].As classes dominantes utilizam-se da lei para evitar as decisões dos tribunais,
sempre sujeitas às incertezas da justiça. Seu procedimento segue o caminho das
manobras jurídico-burocratas, as quais são elaboradas no sentido de manter os
conflitos sob o controle das teias da burocracia até que uma solução extrajudicial,
política e oportuna possa ser garantida. O julgamento, no Tribunal, de um impasse
entre elites, seria considerado um ato de desespero, de consequências muito temidas
por elas, já que significa que suas redes de poderes e favores se esgotaram - ou seja,
que não foi possível dar um jeitinho - e, sendo assim, estariam sujeitos à derrota. No
entanto, a ida ao Tribunal contra aqueles que a elite domina é uma oportunidade
para esta mostrar seu poder de controle sobre o processo judicial, que, geralmente,
humilha os pobres ao forçá-los a aceitar julgamentos ou procedimentos orquestrados
de antemão. (Ibid., p.81).
No plano das resoluções ilegais, não foram poucos os litígios a serem resolvidos
pelo poder paramilitar dos grandes posseiros. Nesse sentido, a permanência da terra era
o resultado da capacidade de determinados indivíduos em frear – com o uso da
violência – a ocupação de outros nos limites de seus estabelecimentos. A Primeira
República foi pródiga nesse tipo de resolução, tendo o fenômeno do coronelismo
25
Vide anexo I.
62
desempenhado um papel fundamental no processo de dominação dos meios de acesso às
terras devolutas e na resolução de conflitos entre pequenos e grandes posseiros, quase
sempre “legislando”, julgando e executando em favor desses últimos. (SILVA, 1996).
Em suma, a criação do mercado de terras encontrou uma estrutura agrária já
latifundizada, mas que ainda estava em pleno processo de concentração. A lei de terras
ao instituir a propriedade privada viabilizou a mercantilização deste ativo, na medida
em que tornou possível a troca do título de propriedade por certa quantia de dinheiro.
Entretanto, devido ao fato de que a terra esteve sempre disponível, em sua qualidade de
bem irreproduzível, “foi a apropriação privada da terra que a tornou uma mercadoria”
(PLATA, 2001: p.13).
No processo de formação do mercado de terras, o autor ainda chama à atenção
para uma série de intervenções do Estado em favor de sua consolidação e dinamização.
Mais do que isso, atenta que tais intervenções, contrariando a necessidade de
constranger a “dominação por alguns” dos mecanismos de acesso a terra, procederam
em favor de sua concentração.
Dentro das ações do Estado responsáveis pela dinamização do mercado de
terras, Plata (2001) atribui especial importância à necessidade de titulação ou escritura
da terra como prova de legitimidade da propriedade, além dos investimentos na área de
infraestrutura, com gastos relevantes em transporte e energia, sobretudo após o Plano de
Metas de Juscelino Kubitschek. Não devem ser esquecidos, porém, os créditos agrícolas
subsidiados, as isenções tributárias, as pesquisas e desenvolvimento na área da
engenharia genética para melhoria de sementes, adaptando-as a tipos de solo e níveis
pluviométricos distintos. (DELGADO,2005). Todos esses fatores serviram para
aumentar a taxa própria de juros da terra e dinamizar o mercado deste ativo.
Esta última medida faz uma menção clara ao processo de modernização
conservadora, instituída pelos governos militares. Em essência, uma característica
marcante deste processo foi transformar a agricultura mais intensiva em capital, por
meio da introdução de insumos químicos e industriais, além de máquinas (tratores,
colheitadeiras e etc) na produção agrícola. O processo de modernização conservadora,
que ganhou fôlego na década de 1970, integrou a agricultura à indústria e ao setor
externo. De imediato, a agricultura passara a demandar crescentemente insumos
industriais para por em andamento a sua produção. Mais adiante, esta produção passou a
ser crescentemente direcionada à exportação, como no caso da produção de soja, a partir
do final da década de 1970 e início de 1980.
63
Há de ser dito, porém, que a transformação pela qual a agricultura brasileira
passou impactou de forma desigual as unidades de produção, tendo beneficiado mais os
grandes proprietários. Isto ocorreu porque a mecanização pela qual a agricultura passou
na década de 1970 demandava uma escala mínima de produção. Durante este processo,
algumas propriedades foram marginalizadas por não atenderem as dimensões mínimas
para a introdução de máquinas agrícolas, e foram gradativamente incorporadas pelas
grandes propriedades. A dinâmica de crescimento das grandes propriedades foi
orientada pela possibilidade de se absorver os ganhos de escala na produção agrícola.
Assim sendo, o processo de modernização conservadora serviu ao aumento da
produtividade da agricultura brasileira ao introduzir os meios pelos quais os latifúndios
se tornariam empresas agrícolas, sem que fosse gerado qualquer desconforto a estrutura
fundiária pré-existente. (PLATA, 2001).
A concentração fundiária presente desde os tempos do Brasil Colônia foi sendo
continuamente recriada, remodelada e reinventada durante a história da apropriação
territorial brasileira e, em diversos momentos, sob a direção do Estado. Tal
concentração, por sua vez, fez com que a participação efetiva no mercado se restringisse
à um número reduzido de agentes, que ao controlarem grandes quantidades de terra
passaram a exigir elevados preços na ocasião da venda de suas propriedades. Assim
sendo, a apropriação territorial traduziu o processo histórico responsável por tornar a
terra um bem escasso. Nos termos colocados no primeiro capítulo do presente trabalho,
foi este mesmo processo, na medida em que concentrou as terras na mão de poucos
agentes, que viabilizou uma expectativa consistente de valorização patrimonial nas
transações de terras no país, convertendo-a em um ativo líquido, facilitando sua
utilização enquanto reserva de valor. (PLATA & REYDON, 2006).
Nesse sentido, o período de modernização da agricultura parece ser o divisor de
águas no processo aplicação da terra no processo de composição de portfólio. É
justamente nesse período em que o preço da terra começa a crescer de forma mais célere
do que o arrendamento da terra, ou seja: a terra passa a se valorizar de forma mais
rápida do que o crescimento da renda agrícola, vide tabela 1, abaixo. Nas entrelinhas, o
que está sendo dito é que a partir desse momento, há uma percepção generalizada dos
agentes econômicos de que a renda (produtiva) da terra não é o único fator a governar as
64
expectativas de valorização desse ativo. Há, portanto, para o período uma retenção da
terra por razões outras que não para sua utilização produtiva. 26
Tabela 1: Brasil. Taxas Médias de Crescimento do Preço e Arrendamento da
Terra de lavouras, em valores constantes (Jun/1998 = 100).
Ano
Período
Arrendamento (%) Preço (%)
1966 - 1970 Pré-modernização da Agricultura
2,77
0,1
1971 - 1985 Modernização da Agricultura
2,63
5,01
1986 - 1994 Instabilidade Econômica
0,27
4,51
1995 - 1999 Estabilidade Econômica
-3,02
-8,03
1966 - 1999 Período Total
1,57
3,34
Fonte: Plata (2001)
É preciso, ainda, atentar para o fato de que no período em que o preço da terra
cresce de forma mais célere do que a taxa de arrendamento desse ativo coincide com um
período da história brasileira em que a moeda perdia gradativamente sua atratividade
dentre as demais possibilidades de aplicação. O processo inflacionário, que já se fazia
presente a altas taxas na década de 1970, ganha fôlego extra e ultrapassa a casa dos três
dígitos na década de 1980, corroendo as funções da moeda de forma incontestável. Ante
o cenário, outras aplicações ganham importância relativa, como no caso da terra, cuja
natureza líquida do ativo era demasiada atraente aos aplicadores.
O Plano Real, ao pôr fim a inflação de taxas estratosféricas, faz com que a
moeda passe a dividir com a terra a atenção daqueles que buscavam ativos líquidos para
a composição de suas carteiras. Sem falar, que as elevadas taxas reais de juros
praticadas no período tornaram os títulos públicos uma aplicação de atratividade
inquestionável. Mais além, a própria elevação da taxa de juros aumentou
consideravelmente o custo de contratação de crédito agrícola, ao passo que a
sobrevalorização do câmbio como política de controle inflacionário reduzia a
competitividade da produção agrícola para exportação. De fato, o conjunto de medidas
implementadas no início do plano real acabaram validando a redução do preço da terra e
do arrendamento, em virtude da perda de atratividade deste ativo tanto em sua utilização
especulativa, quanto produtiva.
Em suma, o processo de apropriação territorial concentrador pelo qual a
propriedade da terra foi sendo conquistada ao longo da história, tornou a estrutura
fundiária cômoda à utilização da terra enquanto reserva de valor, na medida em que
26
Scofield (1957) chamou de “paradoxo do preço da terra” o fenômeno do crescimento do preço deste
ativo acima das taxas verificadas para seu arrendamento.
65
excluía uma grande quantidade de agentes da participação efetiva do mercado, deixando
o controle sobre a oferta de terra na mão de poucos proprietários, que passaram a exigir
altos preços para se desfazer deste ativo. (PLATA & REYDON, 2006). Ademais, o
controle da oferta de terras na mão de poucos agentes, catalisado pelo apossamento de
terras públicas, permitiu que estes atingissem ganhos incalculáveis em de conjunturas
econômicas distintas, permitida pela dupla natureza da terra enquanto ativo.
A partir desse ponto, esse capítulo se ocupará em trazer para a análise alguns
mecanismos que permitem a melhor compreensão do processo pelo qual a propriedade
sobre a terra tem sido reclamada, quase sempre por meio da subtração do patrimônio
público. Tal exposição ajudará a compreender como a fronteira tem se expandido e qual
é o papel desempenhado pela especulação de terras nesse processo.
III.2. A Grilagem de terras públicas: entendendo o problema
A ideia de que a grilagem é uma atividade que dispensa as determinações legais
é perigosamente enganosa, pois obscurece o processo de apropriação do sistema
jurídico-burocrático daqueles que tem como negócio a produção de direitos sobre a terra
de fronteira agrícola. É obvio que a falta de fiscalização e corrupção são fatores
determinantes na passagem do patrimônio público para o domínio de particulares, mas a
extensão de seus resultados leva a crer que os mecanismos utilizados operam em uma
escala muito maior do que a leviandade de autoridades e falta de vistoria dos imóveis
rurais jamais permitiriam.
Como Holston (1993) acentua, o processo de transferência das terras públicas
para o domínio privado se utiliza do sistema jurídico e burocrático para escapar das
vicissitudes das próprias determinações legais. Saber operar dentro dos limites da lei e
conhecer o seus vácuos é essencial para que o especulador na fronteira travista seus
domínios com o ar da legalidade; e, uma vez que a obtenção dos direitos de propriedade
tende a dar origem à ganhos patrimoniais astronômicos27, é de fundamental importância
para que este agente garanta sua sobrevivência no negócio da grilagem.
Reforçando essa ideia de apropriação do sistema jurídico, Hunebelle (1982:
p.17) afirma que “a especulação fundiária não é um negócio para principiantes; é
preciso ter apoio jurídico para superar os numerosos obstáculos legais”. Sobre esse
aspecto, Jones (2002) vai além:
27
Vide os dois capítulos iniciais.
66
O processo de saque de terras (públicas e de pequenos posseiros e indígenas)
assumiu a feição radical da grilagem especializada [...], praticada sistematicamente e
de forma organizada por grileiros especializados. Isto é, apoiados em assessoramento
jurídico e intimamente articulados às estruturas do poder autoritário e da sua
burocracia, especialmente o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária -, nos Institutos de Terras dos Estados, nas Superintendências de
Desenvolvimento Regional, dos cartórios e financiado por Bancos oficiais. (Ibid., p.2)
Reydon (2007) defende que um dos principais problemas da ocupação e do uso
da terra rural encontra-se na ausência de uma regulação adequada no mercado de terras.
É particularmente grave, nesse caso, a instituição da obrigatoriedade do registro de
posse e de propriedades nos cartórios, instituído pela lei hipotecária de 1864. Essa
tradição jurídica vem resultando em uma série de complicações no processo de
legalização da propriedade, na medida em que “de alguma forma o registro no cartório
dá ares de legal ao imóvel sem que haja qualquer mecanismo que garanta isso”. (Ibid.,
p.33).28
Não apenas o registro se tornou necessário, como por diversas vezes, dada a
complexidade dos fatos em que se apoiavam os direitos de propriedade sobre a terra,
figurou como condição suficiente. Em relação a esse aspecto da institucionalidade do
acesso à terra no Brasil, Holston (1993) ressalta que:
[...] todas as transações relacionadas com a propriedade devem ser registradas a fim
de serem obtidos os direitos legais relevantes. Esses registros são regulados pela Lei
dos Registros Públicos (6015/1973), a qual define as formalidades que constituem o
sistema brasileiro de cartórios - sistema privado, labiríntico e corrupto.(8)Seu
enorme poder burocrático vem do Código Civil (art. 533), o qual afirma que as
transações envolvendo bens imóveis não transferem a propriedade, ou os direitos
sobre ela, a não ser a partir da data na qual são registradas nos livros dos cartórios;
ou seja, como diz o ditado, "quem não registra, não possui".
À respeito da complexidade fundada em alguns litígios de terra, o mesmo autor
chama a atenção para o célebre caso dos Jardins das Camélias, na periferia da cidade de
São Paulo, onde, no início da década de 1970 a empresa ADIS administração de Bens
S.A. loteou e vendeu terrenos à 207 famílias, apresentando para tal, uma série de
documentos que comprovavam o registro de terras no cartório, além de um plano de
28
Embora esta prática tenha sido solenemente ignorada durante grande parte do período imperial e parte
da Primeira República, a obrigatoriedade do registro em cartório da transação com bens imóveis foi
continuamente reafirmada pelos diversos atos normativos, como os decretos de Itaboraí (1868), o Código
Civil (1916) e, posteriormente, decreto nº 19.924/31. Após a promulgação do Código Civil a visão em
favor da obrigatoriedade da transcrição no registro de imóveis das transações com terras se tornou
hegemônica, e reafirmou os cartórios como as instituições de registro. Nesse sentido, o Código Civil foi
divisor de águas na institucionalidade do acesso á terra no Brasil, não apenas por este ultimo fato, mas
pelo entendimento em favor da prescritibilidade aquisitiva das terras devolutas. (SILVA, 1996;
REYDON, 2007). Para mais, vide anexo IV.
67
urbanização para área.29 O problema era que para que tais famílias pudessem registrar
suas terras após a quitação das prestações de seus lotes, transferindo o domínio para elas
próprias, era preciso que a titularidade da Adis fosse reconhecida e incontestável
juridicamente. Entretanto, quatro agentes distintos reclamavam para si a titularidade da
área em disputa: duas empresas do ramo imobiliário (Adis e Ackel), o estado de São
Paulo e o Governo Federal. Sem entrar em muitos detalhes acerca da disputa judicial
que se arrastou por mais de duas décadas, é interessante notar como a busca dos direitos
de propriedade sobre a terra levou os agentes envolvidos a se utilizarem
caricaturalmente de uma estratégia historicizante, buscando fundar na autoridade da
história a legitimidade de suas propriedades.
No caso do Jardins das Camélias, a Ackel reclamou seu direito baseando-se em
plano de urbanização da área aprovado em 1924, em nome de José Miguel Ackel. Em
defesa de seus interesses, a Adis afirmou ter os títulos de propriedades legítimos sobre a
área desde 1958, e seus antecessores desde 1890. O governo federal não ficou atrás, e
afirmou possuir os direitos sobre as terras desde 1580, em virtude de um aldeamento
indígena que ali se localizava.
O que chama a atenção, nesse caso, é como a apropriação da lei e do sistema
burocrático geram a necessidade de um regresso exaustivo até o Brasil Colônia em
busca da origem da propriedade da terra. Nesse sentido:
A razão para desenterrar essa história complexa não é somente analítica. Os conflitos
de terra são também, explicitamente, disputas sobre o sentido da história, porque
opõem interpretações divergentes a respeito da origem dos direitos de propriedade. O
centro nevrálgico desses casos é a busca por um título, a busca pelas origens que
justificam ou desqualificam alegações. Assim, logo descobri que a disputa em questão
não fazia sentido a menos que fosse retraçada ao longo do tempo. Litigantes,
advogados, juízes, moradores e grileiros: todos estudam a genealogia do conflito
para basear seus argumentos atuais sobre a autoridade da história - que, neste caso,
começa em 1580. Eles operam segundo uma premissa, básica para os direitos de
propriedade em muitas sociedades, que diz o seguinte: precedentes históricos
conferem legitimidade. [...]as partes em disputa adotam mais comumente uma
estratégia historicizante: elas se utilizam da lei para conferir às suas alegações
origens históricas críveis. Na maioria das vezes, contudo, elas emergem de maneira
altamente ambígua, e muitas são deliberadamente falsas. (HOLSTON, 1993: p. 69).
Embora o objeto de estudo aqui seja a terra rural, a grilagem possui práticas
comuns: se utilizam das formalidades da lei, bem como de seus desdobramentos
burocráticos – carimbos, selos, assinaturas, reconhecimento de firma, dentre outros –
para complicar e enganar autoridades e terceiros. A complexidade processual que se
29
Embora os documentos fossem reconhecidos em cartório, a Adis não informou às famílias compradoras
dos lotes que o plano de urbanização apresentado não havia sido aprovado pelas autoridades.
68
gera em torno dos litígios de terra, do qual os cartórios são peças chave, gera uma malha
intransponível de irresoluções jurídicas, que, acabam dando lugar a decisões políticoadministrativas, o que no final, terminam por legalizar algum tipo de apropriação
indébita de terras. (HOLSTON, 1993). Sobre esse aspecto, é emblemático o
posicionamento do documento “Pensando o Direito”, que leva o carimbo do ministério
da justiça, à respeito dos conflitos de envolvendo a fragilidade da titulação:
A formatação jurídica destes conflitos exige, para sua solução, informações
impossíveis de se obter hoje ou, mesmo que obtidas, inconsistentes ou simplesmente
falsas. Insistir neste caminho, demandar informações sobre a cadeia dominial, ao que
tudo indica, significa condenar a sociedade brasileira a girar em falso eternamente,
patinando sobre problemas que só podem ser resolvidos se sairmos do debate
puramente jurídico-dogmático para formatar tais conflitos sociais com outra
roupagem [...].
Por mais paradoxal que isso possa soar para um jurista, em especial no que diz
respeito a eventuais (improváveis neste caso) terceiros de boa-fé, tudo leva a crer que
a solução adequada para o conflito nestas áreas seria encontrar uma forma
extrajudicial de regularizar os registros, talvez com a anulação das matrículas e
convocação de todos os eventuais prejudicados, inclusive a União e os estados, para
uma negociação que leve em conta sim eventuais fraudes e documentos jurídicos, mas
que se revista de natureza eminentemente política. Um procedimento que se ponha a
salvo da camisa de força do debate completamente infrutífero sobre a cadeia
dominial. (RODRIGUEZ, 2013; p.13).
Ao longo da história a excessiva burocratização do serviço de terras serviu aos
interesses dos grileiros. Uma quantidade expressiva de documentos 30 foi emitida nos
cinco séculos de apropriação territorial; em muitos casos, os limites práticos entre os
documentos que transmitiam títulos de domínio e àqueles de caráter apenas registral se
tocavam, gerando uma série de confusões jurídicas. Não foram poucos os casos em que
o registro do vigário, também conhecido como o registro paroquial, foi apresentado
como prova de titularidade, embora a legislação da época vetasse expressamente tal
possibilidade. (SILVA, 1996; MOTTA, 2008).
Na atualidade, duas instituições têm grande importância sobre a legalidade
concernente à terra rural no país: o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) –
que desempenha a função cadastral31 dos imóveis rurais -, os Cartórios –que se
concentram no registro dos mesmos. Enquanto o cadastro se ocupa das características
30
Dentre a vasta trama de documentos destacam-se: as Cartas de Sesmaria; os Registros Paroquiais ou
Registros do Vigário; os Registros Torrens; os Títulos de Posse; os Títulos de Legitimação; os Títulos
Provisórios; os Títulos Definitivos; os Títulos de Arrendamento; os Títulos de Aforamento; os Títulos de
Ocupação; os Títulos Coloniais; os Títulos de Ocupação de Terras Devolutas; as Autorizações de
Detenção; as Autorizações de Licença de Título Precário; as Autorizações de Utilização de Bens
Públicos. (RODRIGUEZ, 2013)
31
O decreto nº 72.106/73 tornou obrigatório a matrícula dos imóveis rurais junto ao Incra, cabendo a esta
instituição à emissão do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), que atesta a existência do
estabelecimento rural.
69
físicas do imóvel, para fins tributários (cobrança ITR), o registro, por sua vez, serve
para atestar os direitos de propriedade sobre o bem imóvel, estando sujeito à nulidade de
provas.
Em relação ao registro de imóveis rurais, o caso brasileiro se aproxima do
registro de terras com efeito negativo. Esse tipo de registro também é implementado em
países como França, Bélgica e Holanda, e tem como especificidade o fato de ser
atribuição dos particulares (vendedores e compradores) a apresentação da escritura do
imóvel rural a um órgão registrador, que copia as informações relevantes (requeridas
por lei) em registros públicos, confirmando os dados a respeito da intenção de se
transferir a propriedade da terra. O registro propriamente dito não confere nenhuma
prova de legalidade da transação. Se todas as etapas legais forem cumpridas, a
transferência ocorrerá sem maiores problemas e sem intervenções do governo. O caráter
negativo do registro fica por conta de sua sujeição a nulidade por provas, cabendo à
intervenção de uma terceira parte impugnando a transferência toda vez que for
constatada alguma irregularidade. (DEKKER, 2005).
Além da excessiva burocracia, a grilagem no país foi historicamente facilitada
por uma série de brechas institucionais. No que tange a regulação da propriedade rural
no Brasil, é fundamental destacar o fato de que o cadastro e o registro das propriedades
rurais ocorrem separadamente, o que acaba gerando, tal qual defende Arruda (1999),
uma maior fragilidade dos direitos de propriedade sobre a terra rural. A ausência de um
cadastro único, a falta de diálogo entre os órgãos fundiários nos três níveis de governo
(federal, estadual e municipal), a inexistência de registros especiais para grandes
propriedades, a ineficiência nas atividades de correição sobre os cartórios, a falta de
articulação entre os cadastros federais e estaduais, que não estão cruzados, agravada
pelo fato do cadastro federal ter caráter declaratório, em suma, todos esses fatores
dificultam a efetiva regulação do mercado de terras e a coibição da prática não apenas
da grilagem, mas de forma geral, do apossamento de terras nas áreas de fronteira.
(MDA, 1999). Somado a isto, Reydon (1992) atenta para o fato de que os instrumentos
macroeconômicos foram continuamente direcionados para a valorização da terra.
Até o momento, o fenômeno da grilagem foi apresentado em uma perspectiva
geral. Nesse ponto, a visão de Holston (1993) sobre a apropriação do sistema jurídicoburocrático pelas elites é de fundamental importância para a compreensão da
legalização das usurpações do patrimônio público (terras públicas) na exata escala que
esse problema ocorre. Entretanto, este trabalho carece, ainda, de uma apresentação mais
70
específica das principais motivações, práticas e métodos hoje utilizados para a subtração
de terras do patrimônio público e sua inclusão na riqueza de particulares. Esse será,
justamente, o objetivo do subtópico a seguir.
III.2.1 Grilagem de Terras Públicas: Motivações, Práticas e Métodos
De imediato, vale uma definição daquilo que se busca entender pelo termo
“grilagem”. De forma genérica, a grilagem é toda ação que visa transferir por meio de
falsificação de documentos as terras públicas para o patrimônio de particulares.
As motivações que levam a grilagem com terras são diversas, e nem sempre
estão diretamente relacionadas com o uso da terra. Além das motivações tradicionais,
como o loteamento da terra para a revenda à pequenos e médios agricultores, da
exploração de madeira e a posterior colocação de atividades agropastoris, destacam-se,
ainda, a apropriação da terra para servir de garantia a contratação de créditos agrícolas,
para servir à quitação de dívidas fiscais e previdenciárias e, por fim, para a obtenção de
indenizações decorrentes da desapropriação para projetos de reforma agrária ou criações
de áreas protegidas. (BRASIL, 2002)
Todos os fatores acima listados no último tópico serviram para criar um
ambiente institucional confortável para a disseminação da grilagem. De fato, esse
ambiente tornou-se tão propício, que a grilagem terminou por se hegemonizar como
forma de constituição da propriedade privada no país, tendo alta representatividade nas
áreas de fronteira agrícola, notadamente na região da Amazônia Legal. (MMA, 2006).
A extensão do problema chegou a tal patamar que, em 2001, o Congresso
Nacional criou a Comissão Parlamentar de Inquérito com vistas a apurar as
irregularidades no processo de apropriação territorial nos limites da Amazônia Legal, ou
a CPI da Grilagem de Terra na Região Amazônica. Em seu relatório final, a CPI
enumerou as irregularidades mais comuns no processo de apropriação territorial
indevida na Amazônia, listadas abaixo:
1)
Registro de escrituras de compra e venda sem o correspondente título de domínio
ou do registro anterior, o que terminou por legalizar o domínio sobre extensas
áreas, em diversos casos superiores a 100.000 hectares, e que somadas superavam
1 milhão de hectares;
2)
Duplicidade do registro de matrícula de imóveis rurais, ocasionando a
multiplicação das terras, utilizando-se para tal o instrumento do desmembramento
71
ilegal da terra em inúmeras áreas, que, por sua vez, recebiam novas matrículas, ou
abertura de matricula em um livro diferente, ou em um cartório de outra comarca;
3)
Aceitação do registro de imóveis em sentenças de partilha de bens sem a devida
apresentação das correspondentes provas dos títulos de domínio e que não
encontravam-se matriculados no correspondente cartório;
4)
Abertura de novas matrículas ou registro de averbações concernentes à
demarcação de glebas, sem a devida autorização judicial do Incra, alargando a
área de tais imóveis, ou declarando novos confinantes (vizinhos);
5)
Registro de escrituras de compra e venda e outros pretensos títulos de domínio
sem o devido amparo desses documentos em títulos legítimos;
6)
Registro de imóveis, supostamente realizados em outras comarcas, sem a
apresentação da certidão do referido cartório;
7)
Escrituras de compra e venda lavradas e registro das mesmas nos cartórios de
registro de imóveis, constando pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras como
compradores, em desacordo com a legislação em vigor;
8)
Escrituras de compra e venda lavradas por tabeliões contendo incorreções graves,
como a dispensa de pelo menos uma das partes envolvidas na transação e a não
correspondência dos documentos e, ou, antecedentes pessoais das partes contidas;
9)
Escrituras de compra e venda lavradas e registradas no cartório de registro de
imóveis, em que o transmitente havia há muito falecido;
10)
Laudos de avaliação de glebas emitidos por oficiais registradores;
11)
Matrícula de imóveis supostamente registradas em cartório de outras comarcas,
sem o devido respaldo do respectivo órgão de registro;
12)
Escrituras de compra e venda lavradas por tabeliões com transferência de terras
sem o preenchimento dos condicionantes da Lei, omitindo, por exemplo, o
número de matrícula do imóvel registrado.
A vasta lista de irregularidades quase sempre coloca os cartórios no epicentro da
fragilidade da regulação da propriedade da terra. Além disso, deixa escancarado o
problema da falta de diálogo entre as atividades de cadastro e registro da propriedade
rural, vácuo institucional sistematicamente aproveitado pelos grileiros.
O processo de grilagem é demasiadamente complexo - e assim deve ser. Quanto
menos trivial for tal processo, maiores são as chances dos grileiros obterem ganhos ao
forjarem documentos na busca pela constituição da base legal de suas propriedades. Por
72
vezes, as práticas são extremamente grosseiras, como será visto mais adiante. Porém,
em outros casos as irregularidades só podem – quando podem – ser descobertas através
de um minucioso estudo da cadeia dominal do imóvel, tal qual o caso do Jardim das
Camélias revelou.
Apesar da complexidade que envolve o apoderamento de terras públicas por
meio da falsificação de documentos, abaixo serão apresentadas, de forma simplificada,
e para fins didáticos, as etapas mais comumente percorridas pelos grileiros para
legalização de suas usurpações.
O início de todo o processo ocorre com o grileiro identificando a terra a ser
grilada; em alguns casos, voos são realizados para ter certeza de que a área em questão
não possui outros pretendentes. (MMA, 2006).
Após a identificação da terra, dá-se início ao processo de conquista do controle
sobre ela, por meio um dos métodos a seguir: (i) utilização de concessões inválidas para
exploração de borracha32, (ii) o estabelecimento de ocupação física em uma área
previamente desocupada33, (iii) utilização de concessões inválidas por meio de carta de
sesmaria34, (iv) aquisição, ocupação ou falso arrendamento da terra ocupada por
outros35.
Após conquistar o controle sobre a terra, inicia-se a busca pela legalização do
patrimônio usurpado. O grileiro recorre a um cartório municipal com o objetivo de
registrar a propriedade da terra. Para tal, se utiliza da falsificação de uma série de
documentos – em muitas ocasiões com ajuda dos serventuários – na busca pela
comprovação de que a terra reclamada há muito já era ocupada por ele. Frequentemente,
os cartórios das regiões terminam por registrar propriedades muito maiores, ao
expandirem as linhas de demarcação para dentro da floresta. Essas práticas são muitas
32
Dado o crescimento da demanda por borracha nos anos 40 e 50, o Brasil expediu uma série de
concessões para exploração de seringais com validade de um ano apenas. Apesar do curto prazo de
validade dessas concessões, estas continuaram sendo apresentadas como base para requerer uma série de
outros documentos garantidores de direitos sobre a terra. Essa prática foi muito utilizada para grilar
extensas áreas da Terra do Meio (PA), com o agravante dos documentos não disponibilizarem uma
descrição precisa dos limites das propriedades, o que tornou prática recorrente o registro de áreas muito
mais extensas do que aquelas concedidas inicialmente nos contratos. (GREENPEACE, 2005 - disponível
em: http://www.greenpeace.org/brasil/PageFiles/3951/grilagem.pdf).
33
Após se apoderar de uma área da floresta, o grileiro a demarca e assegura sua posse com homens
armados. (GREENPEACE, 2005).
34
Muito embora a concessão de sesmaria tenha sido extinta em 1822, as cartas de concessão foram
ocasionalmente utilizadas como base para o registro de documentos de terras. (GREENPEACE, 2005).
35
Com frequência, o grileiro adquiri algumas posses sob domínio de pequenos agricultores, fazendo um
cinturão limitado de um lado pelas terras adquiridas, e, de outro, por um rio ou uma estrada. As demais
propriedades compreendidas dentro desses limites são geralmente englobadas a força ao domínio do
grileiro, que se utiliza de capangas para expulsar aqueles que se recusam a deixar as terras que lavravam.
73
vezes facilitadas pelo fato dos cartórios não checarem a validade dos pedidos e não
cruzarem informações do pedido de registro com os documentos de terra apresentados
em outros cartórios. (GREENPEACE, 2005). Por conta disso, não é raro localizar
diferentes registros superpondo diversas áreas, ou seja, uma terra sobre a qual diversos
proprietários afirmam domínio.
“Quando isso ocorre, diz-se que a terra possui
‘andares’, para cada proprietário com título irregular para aquela área acrescenta-se
mais um andar.” (REYDON, 2007).
Tendo conseguido os documentos de registro da terra, o grileiro os leva ao
instituto de terra competente e à Receita Federal. A intenção nesse caso é obter um
registro cruzado dessas três instituições, conferindo à fraude documental um simulacro
de legalidade. (BRASIL, 2002; MDA, 1999; MMA, 2006).
Em tese, esses documentos deveriam ser apresentados ao instituto de terra em
conjunto com mapas cartográficos, assim como prova de origem dos documentos.
Entretanto, é pratica recorrente desses institutos o registro de título de terra não
contestado, baseado em documentos duvidosos lavrados em cartório.
Ao receber tais documentos, o instituto de terra competente emite uma certidão
declarando que a propriedade da se encontra em análise. Fundamentalmente, trata-se de
um documento (precário) que afirma a posse do grileiro sobre a terra até uma eventual
segunda decisão. Adiante, o instituto de terra competente pode proceder à emissão do
título de posse ou à alienação onerosa ou gratuita (venda ou doação, respectivamente)
da terra; em qualquer um dos casos o imóvel rural passará a contar com a escritura
permanente de posse. Por lei, a alienação ou concessão de terras públicas à pessoa física
ou jurídica, por meio de qualquer título, carecerá de aprovação do Congresso Nacional
nos casos em que área do estabelecimento superar 2500 hectares. (BRASIL, 1988). 36 Ao
longo da história, esse dispositivo tem sido constantemente driblado por grileiros pelo
registro de múltiplas posses com área inferior ao limite estabelecido em lei. Cada
registro é feito em nome de uma pessoa diferente, sendo muitas delas “fantasmas”.
Além das fraudes documentais, que são o fato fundador da grilagem, diversas
outras fraudes são facilmente identificáveis no processo de transferência do patrimônio
público para o privado por meio do “grilo”. Abaixo, segue uma categorização
apresentada pelo relatório final da CPI da Grilagem das fraudes encontradas na
constituição da propriedade privada na região amazônica:
36
Ver § 2º do artigo 188 da Constituição Federal 1988.
74
I)
fraude nos títulos: assinaturas, nomes, dizeres, datas e números falsificados;
referência a livros de cadastros inexistentes, canhotos rasurados e descoincidentes;
II)
fraudes nos processos: títulos registrados sem processos, sem editais ou sem
obedecer às formalidades legais;
III)
fraudes na demarcação: demarcações feitas na prancheta, sem ter ido a
campo. Inexistem cadernetas de campo, plantas e colocação de marcos. Há a
multiplicação de léguas, alterações nas denominações dos limites naturais, esticando
ou encolhendo linhas;
IV)
fraudes na localização: muitas terras vendidas sem se saber sua localização
ou vendidas mais de uma vez.
V)
fraudes nos registros: os cartórios chegaram a registrar como propriedade
qualquer documento que lhes era entregue, até simples contratos de compra e venda
de posses ou certidões administrativas de processos (por exemplo, cadastro do
INCRA e recibos de pagamento de ITR) .(BRASIL, 2002).
Fundamentalmente, os métodos e práticas utilizados pela grilagem foram
expressos nesse tópico. O sucesso dessas práticas e métodos, ao travestir a propriedade
usurpada com o simulacro da legalidade tem sido responsável, por um lado, pela
subtração do patrimônio público e, por outro, pela valorização da carteira de ativos
daqueles que dominam o conhecimento das “regras do jogo” no negócio de especular
com terras.
Após demonstrar como se deu à formação do mercado de terras em uma
estrutura fundiária concentrada – trazendo para superfície da análise as consequências
no tocante às possibilidades de utilização da terra enquanto ativo líquido –, e
demonstrar como a apropriação do sistema jurídico por alguns agentes foi de extrema
importância para legalizar a propriedade usurpada, cabe agora fornecer elementos sobre
as rendas oriundas da colocação dessa “nova” terra no mercado. Este será o objeto de
estudo do tópico a seguir.
III. 3 A Economia da Grilagem
A economia da grilagem é o termo utilizado para se referir a apropriação de
linhas de financiamentos públicos e a apropriação da renda fundiária conquistada por
meio do apossamento ilegal de terras públicas.
No plano local, o robustecimento dessa economia tem levado a alterações
políticas, econômicas, sociais e ambientais consistentes na Amazônia Legal nas últimas
décadas. À exemplo, a economia da grilagem tem servido para moldar o processo de
apropriação territorial, determinando novas áreas de terras públicas a serem apropriadas
e inseridas no mercado imobiliário, além de justificar a criação de uma série de
municípios, fundados por trabalhadores de madeireiras, mineradoras e serrarias,
75
estabelecidos nas extremidades destes empreendimentos. Destaca-se, aqui, a criação ou
emancipação de cerca de 60 municípios no estado do Pará entre 1980 e 1996.
Essencialmente, mais do que dizer que a economia da grilagem influencia a
dinâmica do processo de criação de municípios na região amazônica, vale destacar a via
contrária, em que a criação desses municípios dinamiza a própria economia da
grilagem. A isso se deve o fato de que muitos dos municípios que se criaram as margens
dos grandes empreendimentos para atender as necessidades de seus trabalhadores
terminaram sob o domínio político ou de grandes fazendeiros ou de gerentes de suas
fazendas. Nesse processo, o poder decisório sobre o domínio privado e público se
fundiu, muitas vezes de forma indissolúvel, na medida em que a emancipação e criação
de municípios tornaram as prefeituras dessas localidades verdadeiras extensões do
poder político das fazendas, tal qual explicita Fernandes (1999):
A presença de gerentes de fazendas interferiu de forma significativa na estrutura
política da região. [...] Com a ascensão dos “gerentes” às prefeituras, os fazendeiros
conseguem ampliar a administração dos seus interesses, chegando até ao poder
público. Dentre as lideranças da região do Araguaia que emergiram na década de
1980, muitas são ex-gerentes das grandes propriedades. As cidades, derivadas do
processo de privatização, tiveram ou têm como prefeito um ex-gerente de grandes
fazendas. É o caso de Redenção, que foi governada a partir de 1985 pelo ex-gerente
dos empreendimentos da Mata Geral, pertencente aos Lanaris, com o senhor Luís
Vargas na Prefeitura. E também temos o caso de Henrique Vita, gerente da fazenda
Campo Alegre, que se elege prefeito de Santana do Araguaia, na mesma época. Em
Xinguara, uma das lideranças políticas dos setores conservadores ligados à
propriedade da terra é Elvírio Arantes, ex-gerente das fazendas do Grupo Quagliato,
que se elegeu prefeito em outubro de 1990.(Ibid., p.56).
O aspecto fundamental nesse caso, é que o domínio do poder executivo – e não
de forma rara, do poder legislativo – tem contribuído de forma decisiva para que os
grileiros se apropriem de diversos fundos públicos, que vão desde editais públicos,
passando por transferências constitucionais aos municípios, até financiamentos de
estatais. 37 (MMA, 2006).
No Pará, na década de 1980 e 1990, alguns desses mecanismos foram
amplamente utilizados para exploração da atividade madeireira 38, em especial o Mogno.
37
Vale dizer que as linhas oficiais de crédito encontram-se direcionadas às propriedades legalizadas,
sejam as de cadeia dominal de origens críveis ou duvidosas.
38
Ao decidir explorar madeira, o grileiro busca a aprovação do IBAMA de um Plano de Manejo Florestal
Sustentável (PMFS) ou uma autorização para desmatamento, estando sujeito à comprovação da
propriedade da terra. Até 2000, o Ibama concedia essas autorizações baseadas em uma escritura de
compra e venda lavrada em cartório, em declarações do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) ou do Incra.
Em razão de uma série de falsificações de documentos, o Ibama deixou de aceitar, em agosto de 2003,
escrituras precárias de compra e venda lavradas em cartório ou declarações do Iterpa como prova de título
final da terra. (GREENPEACE, 2005).
76
A exploração predatória dessa espécie acabou colocando em declínio a atividade
madeireira, de modo que venda de terras passou a ser o objetivo final do apossamento,
tal qual revela o trecho a seguir:
A quase extinção do mogno na “Região do Iriri” ou “Terra do Meio” e o
posicionamento assumido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA) que proibiu e/ou suspendeu todos os planos de manejo
florestal sustentável para a exploração da espécie mogno, trouxe profundas
alterações na composição, na forma e na maneira de agir do crime organizado. De
fato, a extinção da atividade madeireira – apropriação e comercialização de madeira
escassa no mercado – resultou na migração dos grupos criminosos para uma nova e
não menos rentável forma de obtenção de recursos financeiros. Isto é, o crime
organizado orientou e estruturou suas atividades para a ocupação, “limpeza”,
apropriação e/ou grilagem de terras públicas, de forma a estocá-las com o intuito de
logo a seguir promover a introdução e a circulação de parcelas destas junto ao
mercado imobiliário. Para tanto, foi demandada a reorganização do grupo criminoso
e a nova divisão de tarefas, de modo necessário e suficiente à promoção, em larga
escala, da ocupação e do abatimento de extensas áreas do Poder Público. (MPF, s/d.
Apud MMA, 2006).
O que se coloca em evidência nesse caso é uma clara reorientação da estratégia
de valorização do portfólio, em que a terra deixou de ser objeto de exploração, para se
tornar objeto de venda.
De forma geral, a economia da grilagem segue um caminho bem
determinado.39A exploração da “renda fundiária” que sucede a apropriação indébita das
terras públicas costuma ter início pela exploração madeireira, em que o ocupante da
terra procede ao corte seletivo da madeira de lei. A receita gerada com essa atividade
auxilia nos custos de conversão da terra florestada para pastagem e na colocação da
pecuária extensiva. Posteriormente, as os pecuaristas sustentam-se na posse de suas
terras até que apareçam compradores, geralmente produtores de grãos ou outros
pecuaristas voltados para produção intensiva. 40
As etapas acima listadas traduzem uma série de mudanças no uso do solo, em
que a lógica para tais mudanças encontra-se justamente nas estratégias dos agentes em
relação a valorização de sua carteira de ativos. A utilização extensiva da terra parece
corroborar com a tese de que os grileiros realizam seus rendimentos muito mais pela
colocação de “novas terras” (com direito de propriedade recém adquiridos) no mercado
imobiliário do que propriamente pelo uso produtivo das mesmas.41
39
Mais precisamente, esta é a via-crúcis da colocação da terra no mercado. Estes rendimentos são
apropriados por todos àqueles que acumulam terras na fronteira agrícola, não só por grileiros.
40
É nesse cenário em que a produção da soja surge como um importante vetor de desmatamento, ao
comprar terras já convertidas, deslocando a pecuária para novas áreas de floresta – reeditando o ciclo.
41
Silva (1996) atenta para o caráter histórico da pecuária extensiva como vetor de colonização econômica
e expansão das fronteiras já no século XVII.
77
No intervalo de tempo que decorre da apropriação da terra, passando por sua
regularização, até a sua efetiva colocação no mercado imobiliário, a pecuária extensiva
desempenha um papel basilar. De imediato, a colocação do gado serve á exploração de
uma quase-renda da terra no período em que se espera pela plena regularização
propriedade, ou por um comprador. Ademais, o gado possui uma função fundamental na
legitimação da propriedade sobre a terra, na medida em que confere a terra a
característica de produtiva. (YOUNG, 1997 e 2013; MMA, 2006; BARRETO &
SILVA, 2009; FEARNSIDE, 2010). Não obstante, para esse último autor, a introdução
do gado é muitas vezes utilizada como meio de se elevar as cifras das indenizações nos
casos de desapropriação da terra, uma vez que entende-se o rebanho como benfeitoria.
Em uma análise recente, Young et al. (2007) estimaram a rentabilidade da
atividade pecuária para os municípios do estado do Amazonas, por meio de três
metodologias de cálculo distintas: cálculo da rentabilidade corrente, cálculo da
rentabilidade excluindo a valorização da terra e cálculo da rentabilidade total. Como
simplificação, os autores assumiram que os custos de conversão para pastagem foram
cobertos pelas receitas de extração de madeira na etapa inicial do ciclo de uso da terra.
Na primeira estimativa, considerou-se tão somente as receitas com a venda de
animais subtraída dos custos de transporte e produção. Nenhuma consideração acerca
do componente de capital42 foi feita nesse momento. Os resultados obtidos foram
reveladores; a maioria dos municípios analisados apresentaram rentabilidade negativa
para atividade pecuária, tal qual revela o Gráfico 1:
Gráfico 1: Rentabilidade corrente anual – (em R$/Ha)
Fonte: Young et al. (2007)
42
Ver capítulo II.
78
Posteriormente, os autores consideram os retornos correntes somados à parcela
do componente de capital referente ao crescimento natural do rebanho; mais uma vez, o
quadro não foi animador. Diversos municípios apresentaram rentabilidades ou negativas
ou demasiadamente baixas, e aqueles com maior aptidão para o negócio apresentaram
uma rentabilidade anual inferior a R$ 100,00 por hectare, vide gráfico 2.
Gráfico 2: Rentabilidade anual – receita líquida da venda da atividade pecuária
somada ao crescimento natural do rebanho – (em R$/Ha).
Fonte: Young et al. (2007)
Por fim, ao incluírem no componente de capital os ganhos patrimoniais
referentes à valorização da terra, a rentabilidade da pecuária passa a assumir valores
positivos para diversos municípios, tal qual expresso no gráfico 3.
Gráfico 3: Rentabilidade anual total da pecuária – (em R$/Ha)
Fonte: Young et al. (2007)
79
O caráter extensivo da pecuária na região amazônica 43 sugere a utilização da
terra não como ativo produtivo, de capital, mas sim como reserva de valor, em sua
dimensão (já especificada no capítulo I) de ativo líquido. O estudo realizado por Young
et al. (2007) fornece um rico exemplo para definição de especulação de terra realizada
nos capítulos iniciais desse trabalho, em que, dada a competição com os demais ativos,
a retenção de terra não pode ser explicada economicamente quando considerado apenas
seus retornos produtivos (q – c). Nessas condições, a retenção de terra não traduz uma
aplicação capaz de maximizar o retorno monetário ao final do período de retenção desse
ativo, a menos que se considere as expectativas de ganho patrimonial e a conveniência
proporcionada pela liquidez da terra.
O que se mostrou acima para o caso do estado do Amazonas é entendido como
uma característica descritiva da pecuária em grande parte da Amazônia Legal. Essa
coligação entre a pecuária extensiva e uso especulativo da terra pode ser encontrada em
uma série de estudos, tais quais: Young (1997; 2013), MMA (2006); Reydon (2007).
A intima relação que a economia da grilagem possui com a especulação de terras
traz consequências adversas ao quadro ambiental do país. Como visto no capítulo
primeiro, os preços de mercado dos ativos são diretamente influenciados pelas
expectativas de longo prazo dos agentes em relação aos retornos futuros que estes
fornecem. A especulação – em seu sentido amplo, traduzido pela prática de formular
expectativas em uma economia marcada pela incerteza verdadeira – é sim um
componente fundamental na formação dos preços dos ativos, inclusive o da terra. Há,
nesse sentido, uma percepção quase que generalizada por parte dos agentes de que o
desmatamento tende a elevar o preço das propriedades, vide tabela 2. 44
43
Segundo Arima (2005) o cenário mais precário da pecuária na Amazônia responde por uma
produtividade de cerca de 0,5 cabeças de gado por hectare, enquanto o melhor cenário dessa atividade
responde por uma taxa de lotação de cerca de 1,38 cabeças por hectare.
44
Reydon (2011) atribui à origem dessa percepção de que o desmatamento valoriza a terra ao fato de que
uma parte considerável do preço desse ativo é determinada pelas expectativas de ganho produtivo
decorrentes da atividade agropecuária; de modo que a terra desmatada representa para o comprador a
possibilidade de começo imediato do empreendimento agropecuário implementado.
80
Tabela 2: Preços médios de terras de mata e pastagens
Estados
Mata R$/ha Pastagem R$/ha Variação %
108,00
1575,80
1455,40
Acre
Amapá
141,00
800,00
567,40
Amazonas
132,43
1243,91
939,30
Pará
457,73
1509,40
329,80
Rondônia
358,50
1762,50
491,60
Mato Grosso
546,13
2083,69
381,50
416,53
1832,39
439,90
Média Norte
Fonte: Reydon (2011)
Se a intenção do agente ao adquirir terra é trocar certa quantidade de moeda
agora por mais moeda no futuro, então o desmatamento quase sempre se apresenta
como via obrigatória para aqueles que detêm imóveis rurais como aplicações em
carteira.
Recentemente, em meados da década de 1990, especificamente, a região
amazônica começou a vivenciar os efeitos da expansão de grãos, sobretudo a soja, em
seu território.45A chegada acelerada da agricultura intensiva em insumos químicos,
máquinas e equipamentos na região da Amazônia Legal dinamizou o processo de
acumulação (inclusive o por meio da grilagem) das terras públicas e o desmatamento
associado. As forças em favor da conversão da floresta imperaram até meados de 2004,
quando uma série de medidas foram implementadas com vista a redução do
desmatamento.46 Desde então, o poder público, organizações não governamentais e
diversos outros setores da sociedade têm empreendido esforços para a reversão das
taxas históricas de perda da vegetação primária vividas no final dos anos de 1990 e
início dos anos 2000.
Os possíveis efeitos da soja sobre o desmatamento serão tratados no próximo
capítulo. Por hora, convém apenas dimensionar as proporções atingidas pelo fenômeno
da grilagem de terras públicas, demonstrando como esse negócio atingiu cifras
bilionárias, a expensas da vasta redução de áreas florestadas.
45
Vide próximo capítulo.
Como a criação e expansão de Unidades de Conservação; a criação do Projeto Deter – Detecção do
desmatamento em tempo real na Amazônia – que entrega relatórios sobre focos de desmatamento ao
IBAMA a cada 15 dias, permitindo um deslocamento dos fiscais para estes focos em um curto espaço de
tempo; a Operação Curupira (2005) e Arco de fogo (2008), cujo objetivo era o combate ao corte ilegal de
madeira; dentre outras. Para mais, ver MMA (2006) e REYDON (2011).
46
81
III.3.1 Dimensionando o Estrago:
A fragilidade na regulação no mercado de terras, vácuo institucional que há
séculos tem sido utilizado por grileiros para a apropriação dos rendimentos fundiários,
sofre nessas últimas décadas uma série de tentativas de reorganização com vistas a
impor limites práticos à apropriação indébita de terras públicas. Uma análise mais
detalhada desse processo pode ser encontrada em Sabato (2000); MMA (2006),
Rodriguez (2013); Reydon (2007) Guedes & Reydon (2012).
Uma das principais iniciativas ficou por conta da portaria nº558/1999 do Incra,
cujo objetivo era o recadastramento de imóveis com área igual ou superior a 10.000
hectares em todo o país. Das 3065 propriedades notificadas pela portaria, 1438 não
responderam, ou cerca de 46,91% do total.
Um quadro bastante claro da desregulação fundiária é fornecido pela tabela 3,
que estabelece uma comparação entre imóveis cadastrados e imóveis suspeitos de
grilagem. Observa-se que a região norte respondeu por apenas 6,3% dos
estabelecimentos cadastrados no país, ou 22,4% da área total cadastrada. Já os imóveis
suspeitos de grilagem, estes atingiram a marca de 33,3% dos estabelecimentos do país,
ou 52,9% da área total notificada. A região centro-oeste também obteve números
preocupantes, em que os imóveis cadastrados atingiram a marca de 7,7% do número
total e 31,9% da área, contra 40,8%, dos imóveis e 29% da área suspeita de grilagem no
Brasil. (Tabela 3).
Tabela 3: Imóveis rurais cadastrados e suspeitos de grilagem – Por região (%)
Fontes: INCRA, Estatísticas Cadastrais 1998 e Listagem dos imóveis que não atenderam à notificação da
Port. 558/99, de 21/12/2000.
Os números acima parecem sugerir que uma relação íntima entre irregularidades
na propriedade da terra e o pertencimento geográfico desses imóveis à Amazônia Legal,
tendo em vista a alta representatividade em área suspeita de grilagem nas regiões norte,
nordeste e centro-oeste. Esta possível correlação é confirmada pela análise dos dados
82
discriminada por regiões e por unidades da federação, como apresentada pela tabela 4.
Nela, os estados constituintes da região da Amazônia Legal somam 84,1% da área dos
imóveis notificados pela portaria 558/1999 suspeitos de grilagem. Chama a atenção a
elevada participação dos estados do Mato Grosso, Pará e Amazonas.
Tabela 4: Brasil, Regiões e Unidades da Federação – Imóveis suspeitos de
grilagem por localização dos estabelecimentos.
Região/UF Nº de Imóveis
%
Área
%
1438
100
46.156.619,4
100
Brasil
Norte
479
33,3
24.399.978,5
52,9
Nordeste
319
22,2
7.201.450,0
15,6
Sudeste
46
3,2
1.011.045,9
2,2
Sul
7
0,5
145.945,1
0,3
Centro-Oeste
587
40,8
13.398.199,9
29
RO
28
1,9
728.829,3
1,6
AC
61
4,2
3.318.360,5
7,2
AM
98
6,8
4.803.424,2
10,4
PA
207
14,4
13.058.135,4
28,3
AP
8
0,6
583.001,0
1,3
TO
77
5,4
1.908.228,1
4,1
MA
73
5,1
2.173.627,2
4,7
PI
23
1,6
469.596,9
1
CE
1
0,1
13.942,5
0
RN
2
0,1
43.864,9
0,1
PE
1
0,1
21.850,5
0
AL
1
0,1
14.403,0
0
BA
218
15,2
4.464.165,0
9,7
MG
37
2,6
578.144,2
1,3
SP
9
0,6
432.901,7
0,9
PR
6
0,4
135.945,1
0,3
RS
1
0,1
10.000,0
0
MS
39
2,7
827.396,6
1,8
MT
526
36,6
12.250.777,1
26,5
GO
22
1,5
320.026,2
0,7
Fonte: INCRA, Listagem dos imóveis que não atenderam à notificação da Port. 558/99, de 21/12/2000.
Por fim, uma análise estratificada pelo tamanho da propriedade também se
mostra reveladora em relação ao fenômeno da grilagem de terras no país. Na tabela 5 é
possível observar que a existe uma correlação positiva entre o tamanho da propriedade e
a situação jurídica da mesma. Via de regra, o número de imóveis que não responderam
sobre o total de imóveis notificados cresce na medida em que a se aumenta a área do
estabelecimento rural. Ou seja, a ilegalidade é maior para maiores imóveis, com
exceção dos dois últimos estratos.
Mesmo sendo digno de nota, o comportamento dos dois último estratos não
descredibilizam a análise, haja vista a baixa representatividade destes imóveis na
amostra. A soma dos imóveis notificados nesses dois estratos representa apenas 0,26%
do total de imóveis notificados, enquanto a área desses imóveis é de apenas 8,7% do
total.
83
Tabela 5: Imóveis notificados e imóveis que não responderam – segundo estratos
de área.
Total de Imóveis notificados Não responderam
Não responderam
Intervalos de Área
(Ha)
Nº
Área (ha)
Nº
Área (ha) (%) Nº (%) Área
7
0,0
0
0,0
Não Informada
Menos de 10.000
19
63.172,7
0
0,0
10.000 a menos de 20.000
1846
25.270.266,8
863
11.780.433,1 46,75
46,62
20.000 a menos de 50.000
882
25.853.981,9
413
12.158.136,8 46,83
47,03
50.000 a menos de 100.00
184
12.616.842,7
94
6.400.019,1 51,09
50,73
100.000 a menos de 200.000
85
11.786.470,1
46
6.343.230,4 54,12
53,82
200.000 a menos de 500.000
34
9.964.501,2
19
5.757.031,7 55,88
57,78
500.000 a menos de 1.000.000
6
4.996.168,2
2
1.667.709,3 33,33
33,38
Igual ou maior que 1.000.000
2
3.251.937,0
1
2.050.059,0 50,00
63,04
3065
93.803.340,6
1438 46.156.619,4 46,92
49,21
Total
Fontes: INCRA, Banco de dados dos imóveis abrangidos pela Port. 558/99, de 08/01/2001 e Listagem
dos imóveis que não atenderam à notificação da Port. 558/99, de 21/12/2000.
Outros importantes documentos buscaram dimensionar o problema da grilagem
no país, como o caso do “Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil”
Relatório Final da CPI da grilagem de terras públicas na região amazônica
48
47
e o
Por meio
desses dois documentos, estima-se que no Brasil mais de 100 milhões de hectares
tenham sido grilados, dos quais o estado do Amazonas teria contribuído com 55 milhões
de hectares, o Pará com 31 milhões de hectares e o Acre com 3,593 milhões de hectares.
Reforçando o peso da Amazônia no processo de grilagem:“dos 178 milhões de hectares
declarados como propriedades privadas, 100 milhões de hectares podem estar
baseados em documentação fraudulenta.” (GUEDES & REYDON, 2012; p. 538).
O caso do estado do Amazonas é hoje o mais emblemático no processo de
apropriação territorial por meio de fraudes documentais. Em 2001, por força do Ofício
nº01 expedido pelo Incra, a Corregedoria-Geral de Justiça do estado do Amazonas
fiscalizou a situação de 17 cartórios nas comarcas do interior do estado. A correição
realizada revelou algumas atrocidades praticadas contra União, evidenciando um
extenso esquema de grilagens com terras públicas, o que terminou por resultar no
cancelamento de registros de diversos imóveis rurais. Merece destaque a situação
encontrada nas comarcas de Lábrea, Canutama, Novo Aripuanã, Boca do Acre e
Eirunepé, em que a área referente aos registros cancelados superou – de forma no
mínimo curiosa – a área total dos municípios, vide tabela 6.
47
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Livro Branco da Grilagem de Terras no
Brasil. Brasília: Ministério de Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário, 1999.
48
Brasil (2002).
84
Tabela 6: Área dos registros de terra cancelados em relação à área total do
município
Município
Lábrea
Pauini
Borba
Canutama
Manicoré
Beruri
Tapauá
Carauari
Humaitá
Itamarati
Juruá
Novo Aripuanã
Boca do Acre
Eirunepé
Apuí
Envira
Ipixuna
Total
Área cancelada
(Ha)
8.007.098,00
1.263.136,91
1.391.134,20
10.343.351,33
682.657,52
355.286,13
7.799.644,13
646.136,72
51.735,94
0,00
0,00
10.405.081,87
2.921.591,55
4.445.004,28
0,00
156.499,00
9.999,98
48.478.357,56
Área total do
município
6.699.300,00
4.325.258,00
7.522.000,00
2.402.700,00
6.484.000,00
1.724.511,00
8.971.310,00
2.576.961,09
3.086.600,00
2.526.414,00
1.906.994,00
6.451.200,00
2.240.254,00
1.607.900,00
5.437.434,00
1.332.143,00
269.200,00
% da Área cancelada em
relação à area do município
119,52%
29,20%
18,49%
430,49%
10,53%
20,60%
86,94%
25,07%
1,68%
0,00%
0,00%
161,29%
130,41%
276,45%
0,00%
11,75%
3,71%
Fonte: Relatório das Correições Extraordinárias nos Registros de Terras Rurais no Estado do Amazonas
Outras práticas grosseiras foram realizadas nos cartórios do estado do Amazonas
com vistas a transferir indevidamente terras públicas para o domínio de particulares. Na
comarca de Canutama foram registrados dois imóveis de particular interesse para
dimensionar o afrontamento dos grileiros ao poder público. No ano de 1958, deu-se
entrada no registro do imóvel Boca do Pamafari, cuja área total registrada foi de 1,5
bilhões de hectares. Quinze anos mais tarde, no ano de 1973, o imóvel denominado
Fazenda Eldorado e Santa Maria foi registrada com uma área total de 12 bilhões de
hectares, em que pese o fato da área total do Brasil ser de “apenas” 851 milhões de
hectares.
Recentemente, um estudo realizado pelo Greenpeace revelou um esquema
bilionário de vendas de terras públicas na região amazônica pela internet, no que ficou
conhecido como “cybergrilagem”. Uma pesquisa realizada compilou as ofertas de
imóveis feitas por sete corretoras virtuais, que disponibilizavam juntas para venda
aproximadamente 11 milhões de hectares de floresta nos estados do Pará, Amazonas,
Rondônia e Roraima. Alguns casos chamam a atenção, como uma oferta de 2,3 milhões
de hectares no município de Alenquer, no Pará, pela módica quantia de R$ 40,00 por
hectare. Ou, ainda, a oferta de uma área de 900 mil hectares no município de Canutama,
85
no Amazonas, desconsiderando o fato de que 97% desse município pertencemà União.
(GREENPEACE, 2005).
Tabela 7: Cyber Grilagem na Amazônia 49
Fonte: Greenpeace (2005)
A tabela 7 acima mostra um negócio de vendas virtuais de terras, que abrange
mais de 11 milhões de hectares na região amazônica, responde por um valor de
aprocimadamente1 bilhão de reais.
Ainda mais sério é o fato de que algumas das corretoras citadas reconhecem que
há imóveis em seu catalogo de vendas carentes de documentação necessária à
regularização da terra. A exemplo de uma área de 800 mil hectares em Novo Progresso,
no Pará, colocada á venda pelo site www.mercadodeterras.com.br, em que o próprio site
advertia para a falta de escritura da propriedade no cartório de registro de imóveis.
(GREENPEACE, 2005).
O exemplo da Cybergrilagem contempla apenas uma parte ínfima do problema,
todavia ajuda a esclarecer como o negócio de legalização de terras usurpadas podem
gerar cifras astronômicas aos entes privados em um contexto de profunda desregulação
fundiária no Brasil. Não obstante, ante os dados apresentados torna-se evidente que a
região amazônica concentra hoje grande parte das irregularidades no processo de
apropriação territorial.
Um forte indício da extrema relevância da região amazônica no processo de
grilagem recente também pode ser encontrado por meio da Portaria nº596/2001 do
Incra. Tal portaria notificou para o recadastramento os imóveis rurais com área entre
5.000 hectares e 9.999 hectares pertencentes a 68 municípios. A escolha dos municípios
não seguiu um critério aleatório, mas se baseou naquelas localidades onde foram
encontrados os maiores índices de irregularidades na etapa inicial de recadastramento,
no âmbito da Portaria nº 558/1999. Dos 68 municípios listados, 39 deles se encontravam
na região da Amazônia Legal.
49
Sites
Visitados
pelo
estudo
Greenpeace
(2005):
www.imoveisvirtuais.com.br;
www.mercadodeterras.com.br;
www.souzafilhoimoveis.com.br;
www.fazendas.e1.com.br;
www.selocorretora.com.br; www.fazendasenegocio.hpg.ig.com.br; www.sofazenda.com.br.
86
III.4 Aspectos gerais da acumulação na fronteira amazônica
O apossamento de terras ainda nos tempos de colônia se converteu na verdadeira
força motriz do processo de apropriação territorial brasileiro, tendo servido aos pequenos
e grandes agentes nas áreas de fronteira. 50 Em razão de falhas na regulação do processo
de apropriação territorial, ainda hoje esta prática sobrevive como um meio hegemônico
de acessar à terra de fronteira, deixando marcas aparentes na situação fundiária do país,
tal qual revela o gráfico x para o caso específico da Amazônia Legal.
Gráfico 4. Situação Fundiária na Amazônia Legal considerando dados do Sistema
Nacional de Cadastro Rural (2003) e áreas protegidas (2006)
Fonte: Barreto (2008)
De antemão, chama a atenção a quantidade de terras públicas ainda sem alocação
de uso público ou revertidas ao patrimônio privado. É justamente sobre essas terras que o
processo de apossamento (acumulação de terras) avança.
No que diz respeito às propriedades declaradas como privadas (aproximadamente
178 milhões de hectares), as devidamente legalizadas representam apenas 4% da área
total da Amazônia Legal.
Convém lembrar que dos 178 milhões de hectares sob
apropriação privada, aproximadamente 100 milhões destes estão sob suspeita de terem
sido grilados, ou seja, apropriados ilegalmente com auxílio de documentação fraudulenta.
Ainda do montante declarado como ocupado privadamente, destacam-se 42 milhões de
hectares classificados como posse nas declarações cadastrais, estando sujeitos, portanto, à
regularização e legitimação à depender do tamanho, circunstâncias localização e etc.
(GUEDES & REYDON, 2012).
50
Vide anexo III.1, anexo III.2 e anexo III.4
87
Vale dizer que apesar da ocupação desordenada do território amazônico ter raízes
muito mais distantes, que remetem a análise mais uma vez ao período colonial51, a
complexificação dessa situação se deu a partir da década de 1970, orquestrada
diretamente pelo Estado em seus três níveis de governo.
Até a década de 1970 a Amazônia Brasileira possuía apenas 12% do seu território
sob domínio privado, sendo que deste montante mais de 80% das propriedades não se
encontravam desmatadas. (MARGULIS, 2003).
A partir desse ponto, a história começa a mudar. O Estado passa a investir
pesadamente na construção e ampliação dos eixos rodoviários, a assegurar créditos com
taxas de juros subsidiada e incentivos fiscais para os empreendimentos privados, além de
se lançar na pesquisa para a adaptação de tecnologias agrícolas às condições
geoclimáticas da região amazônica, como o ocorrido com a semente da soja soja.
(MARGULIS, 2003; SANT’ANNA & YOUNG, 2010).
Ainda nesse contexto de promoção da colonização da Amazônia, diversos títulos
de propriedade foram concedidos (gratuitamente ou a preços simbólicos 52) à grandes
empresas e à proprietários de terra das regiões sul e sudeste, delegando-os, pelo menos
em parte a tarefa de ocupar e desenvolver economicamente a região. Outros tantos foram
conquistados por meio da grilagem, muitas vezes aparelhada de dentro do poder público
(ASSELIN, 1982).
Esse conjunto de medidas alterou drasticamente a rentabilidade da exploração da
terra na região Amazônica, atraindo olhares de uma multiplicidade de agentes, como
agricultores do eixo sul-sudeste, que buscavam escapar dos elevados preços da terra,
despossuídos do nordeste, fugindo das mazelas da seca e da falta de oportunidade no
meio rural, madeireiras, empresas multinacionais, dentre outras. Com a crise econômica
na década seguinte, outros agentes foram incorporados pela migração à economia local,
impulsionados pelo sonho de fazer fortuna nos garimpos da região. (MARGULIS, 2001).
51
Toda essa complexa e desajustada malha de ocupações no que hoje se classifica como Amazônia Legal
tem origens distantes na história, datando do século XVII, quando o domínio as terras amazônicas ainda se
encontravam em disputa pelas nações europeias. A apropriação foi o instrumento utilizado por Portugal
para encerrar a disputa, fundada no princípio do uti possidetis, instituída no Tratado de Madri (1750), que
garantia o domínio da terra a quem a colonizasse ou ocupasse. Para mais, ver Lima et al. (2012).
52
Um caso emblemático na história da ocupação territorial da Amazônia é dado pela aquisição de terras
pela Construtora Andrade Gutierrez em Tucumã (Pará) na década de 1980, na qual a construtora adquiriu
terras públicas por uma média simbólica de US$ 0,87 por hectare e, tempos depois, as vendeu em
pequenos lotes, para pequenos e médios agricultores a preços que iam de U$$ 44,00 à US$87,00 por
hectare. (HALL, 1987).
88
O “sucesso” dessa política de colonização da Amazônia ficou expresso no
adensamento demográfico da região. Entre a década de 1970 e início da década de 2000,
a densidade demográfica média da Amazônia brasileira saltou de 1,5 habitantes/km2 para
cerca de 4,1 habitantes/km2, resultado de um crescimento populacional anual de 3,5%,
praticamente o dobro da média nacional. 53
Este vertiginoso salto demográfico resultou em um também vertiginoso aumento
do apossamento de terras, opondo pequenos posseiros à grileiros e grandes fazendeiros.
Como reconhecimento da posse juridicamente pode demorar certo tempo, ou seja, a
obtenção da devida titulação pode ser um processo moroso, a capacidade de resistir na
terra do momento da ocupação física até a regularização ou legitimação da propriedade é
fundamental para assegurar a possibilidade de permanência na terra no longo prazo.
Embora a possibilidade de se apropriar de terras públicas na fronteira esteja ao alcance de
pequenos e grandes agentes, a capacidade de se manter na posse da terra é completamente
desigual, seja pela desproporção do poder político e econômico entre as partes, ou
simplesmente – e de forma bem comum – pela desproporção do poder paramilitar na
ocasião da resolução de disputas por meio da coação, ameaça e violência.
Como visto no segundo capítulo dessa dissertação, a acumulação de terras na
fronteira quase sempre se utiliza do desmatamento como estratégia para a obtenção dos
direitos de propriedade. Não há garantias jurídicas de que o desmatamento gere a devida
titulação da terra, entretanto, a conversão da floresta em áreas de pastagem ou lavoura
aumenta consideravelmente as chances que a questão da titulação seja analisada pelo
prisma do fato consumado. Assim sendo, trata-se de uma estratégia que é incorporada as
expectativas dos agentes que operam com terras na fronteira agrícola, sejam eles
pequenos ou grandes. (YOUNG, 1997, 2013; MARGULIS, 2001, 2003; SANT’ANNA &
YOUNG, 2010).
Ainda em consonância com o segundo capítulo do presente trabalho, é preciso
dizer que o desmatamento é atraente aos agentes de fronteira não apenas pelo
reconhecimento de sua importância no processo de titulação, mas também – e em
consequência deste primeiro fator – pelas expectativas de valorização da riqueza mantida
sob a forma da propriedade rural, tal qual aponta Margulis (2001):
Entre a primeira ocupação de uma terra florestada e a titulação desta terra em
cartório já convertida em pasto, pode haver um aumento de mais de cem vezes no
valor da terra. Do ponto de vista econômico este processo especulativo se origina na
53
Para mais, visite: www.ibge.gov.br.
89
característica de livre acesso das terras originalmente desocupadas (devolutas ou
não). Quando os direitos de propriedade não são bem definidos, o horizonte de
planejamento dos agentes diminui enormemente, de modo que as perdas com a
mineração do capital natural não se incorporam em suas decisões (lucros) no curto
prazo. Isto quer dizer que há uma maior pressão por desmatamentos. (Ibid., p.12).
Assim sendo, o apossamento como meio de acessar à terra na fronteira agrícola
produz, de um lado, o desmatamento como estratégia de acumulação, de outro, a
violência como instrumento de afirmação dos direitos de facto de propriedade. 54
III.5. Resumo Conclusivo:
O mercado de terras no Brasil foi instituído pela Lei nº 601/1850. No quando da
promulgação da Lei, a estrutura fundiária do país já havia há séculos encontrado os
meios para a sua concentração, tendo se utilizado amplamente do expediente da posse
de terras públicas para tal.
Durante o processo de formação da concentração fundiária e da propriedade
rural, destaca-se o fato de que a elite aprendeu a dominar os mecanismos legais e a
burocracia jurídica para fazer valer seus interesses contemplados pelo apossamento de
terras. Quando as querelas envolvendo a propriedade da terra não terminavam nos
tribunais, outras formas de dominação se impunham sobre os pequenos posseiros, como
o mandonismo dos “coronéis” na Primeira República, que exerciam seu poder político e
paramilitar – destituídos de qualquer legitimidade – para julgar e executar em favor dos
seus. Esta via de dominação ganhou novos contornos na história recente, mas ainda hoje
a violência se constitui em um importante instrumento para garantir a posse continuada
da terra nas mãos dos grandes agentes.
Em suma, a história da apropriação territorial no Brasil acaba por contar de
forma paralela a história da dominação dos mecanismos oficiais de acesso a terra, ou, ao
menos, dos mecanismos de legalização da propriedade da terra pela elite. A relação
dessa congruência histórica com a economia é estreita, de modo que os fatores que
geraram a concentração fundiária – construções históricas, deve-se dizer – terminaram
por impor uma série de consequências à operacionalidade do mercado de terras no
Brasil, impactando diretamente nas possibilidades de uso desse ativo como reserva de
valor.
O paralelo que se pode traçar desses fatos históricos com o referencial teórico
sustentado por esse trabalho é simples, e pode ser melhor compreendido comparando
54
Sobre a estreita relação entre violência e desmatamento, vide Sant’Anna & Young (2010).
90
algumas características fundamentais sustentadas pela moeda e pela terra enquanto
objetos de aplicação capitalista. Keynes parte da hipótese de concorrência perfeita no
mercado de ativos, mas abre exceção para o caso da moeda. A particularidade da moeda
está na sua elasticidade de produção e substituição nulas ou desprezíveis. A
incapacidade do setor privado em produzir moeda ou substituí-la de forma eficiente por
outros ativos atesta o monopólio do governo como emissor deste ativo. É daí que
rebenta o fato da taxa de juros da moeda ser refratária a queda, de onde surge um limite
mínimo para o retorno das demais aplicações. Para o caso da terra, há também um
“monopólio” da oferta desse ativo, que é uma construção histórica, derivado do
processo desigual e desregulado de ocupação territorial. O amplo domínio que alguns
poucos agentes conquistaram sobre os mecanismos de apropriação territorial, faz com
que estes logrem êxito em sustentar maiores preços pela terra no momento de sua
revenda e, mais, assim como no caso da moeda, tornam sua taxa de juros refratária à
queda.
Essas características operacionais do mercado de terras no país somadas aos
vácuos institucionais que permitiram a profusão do apossamento desse ativo podem ser
responsabilizadas pelo exitoso e lucrativo negócio com terras, que hoje assume cifras
bilionárias ao subtrair enormes áreas do patrimônio público, sobretudo na região
amazônica.
91
ANEXO III.1: Das Sesmarias à Lei de Terras
Diferentemente, das colônias espanholas 55, a razão econômica para a ocupação
do território brasileiro não foi encontrada de imediato, de modo que até o ciclo do
açúcar se tornar uma realidade, a colonização do Brasil seguiu em marcha
consideravelmente lenta, fundamentada em atividades econômicas espaças, como o
corte seletivo de madeira. Durante todo esse período, a ocupação territorial no Brasil
seguiu motivações de ordem política e estratégica, em que Portugal buscava proteger
suas novas posses da cobiça das demais nações europeias. No sentido em que se insere,
o sistema sesmarial, deve ser entendido para além de uma mera política agrária. Na
visão mais ampla que aqui se propõe, em consonância com Furtado (1959) e Silva
(1996), o regime de concessão de sesmaria serviu a tarefa de reduzir os custos de
colonizar o território brasileiro. De um lado, Portugal, ao ceder terras à particulares,
delegava a esses últimos a tarefa de ocupar e defender as novas terras. De outro, a
utilização produtiva das terras ajudava a custear a política de colonização, tal qual
expresso pelo trecho abaixo:
Sem embargo, os recursos de que dispunha Portugal para colocar improdutivamente
no Brasil eram limitados e dificilmente teriam sido suficientes para defender as novas
terras por muito tempos[...] Coube a Portugal a tarefa de encontrar uma forma de
utilização econômica das terras americanas que não fosse a fácil extração de metais
preciosos. Somente assim seria possível cobrir os gastos de defesa dessas terras. [...]
Das medidas políticas que então foram tomadas resultou o início da exploração
agrícola das terras brasileiras... (FURTADO, 1959:p. 7-8).
Oficialmente, as sesmarias eram concessões de terras feitas àqueles com
condição material de por em operação um empreendimento produtivo no prazo máximo
de cinco anos.56 A não observância deste fato legitimador acarretava o cancelamento da
concessão anteriormente feita, restituindo à propriedade da terra ao patrimônio
português, na condição de terra devoluta.57 No que tange a área das concessões, esta
deveria traduzir o tamanho do projeto agrícola a ser implementado, e seus ocupantes,
55
A razão econômica para a ocupação na américa espanhola foi dada pela precoce descoberta de metais
preciosos em seus territórios.
56
As concessões de terra eram feitas a indivíduos que tinha condições materiais necessárias para
enfrentar os custos de transformar a terra da sua condição de mata em bem produtivo dentro do prazo
estabelecido de cinco anos. A propriedade da terra, por assim dizer, não era objeto de reclame de qualquer
um, embora a necessidade de seu uso fosse muito mais generalizada pela sociedade. Tampouco assumia a
terra a forma de mercadoria, pois não se transferia o direito por venda, mas por concessão àqueles mais
bens relacionados com a Coroa. Por assim dizer, a terra era símbolo de prestígio social
57
Nota-se expressamente a forma concessionária da propriedade da terra, na medida em que “Coroa não
cedeu em momento algum a sua prerrogativa de senhora das terras aos particulares” (SILVA, 1996;
p.34)
92
além de estarem sujeitos a condicionalidade da utilização produtiva, deveriam demarcar
e medir suas propriedades, evitando sobreposições de doações futuras e excessos na
apropriação territorial.
Porém, algumas características marcantes da estrutura produtiva da colônia
serviram para perverter a relação de condicionalidades e exigências, atuando em prol da
formação de grandes propriedades improdutivas. De início, a abundância de terras
permitia a concessão de vastas extensões do solo colonial – e assim foi feito! Somado a
isto, a rudimentariedade das técnicas de produção empregadas só tornava atraente o
cultivo executado em grandes propriedades, além de conduzir, tempos mais tarde, ao
esgotamento do solo, aumentando ainda mais a fome por novas terras.
A condição colonial do país também foi de extrema importância para que no
primeiro momento outras questões se mostrassem mais urgentes do que a regulação e
fiscalização efetivas do processo de apropriação fundiária. Imperou sobre todas as
demais preocupações a necessidade de se gerar excedentes produtivos a serem
apropriados pela metrópole. Dentro do quadro oficial, o acesso a terras feito por meio
das sesmarias cedeu o direito ao uso de propriedades imensas, muito além da
capacidade de se comandar qualquer atividade produtiva no local.
No mais, o imperativo de utilização das terras agrícolas de forma a gerar
excedentes para a metrópole também determinou o caráter cativo da força de trabalho.
Seria demasiadamente custosa a política de emigração capaz de induzir portugueses a
lavrarem terras brasileiras, principalmente se considerada as condições de vida e
trabalho na colônia. Tampouco seria efetiva tal política, dada a abundância de terras e o
fato da propriedade sobre esta não se encontrar fundamentada pelo título de compra e
venda, mais por concessão ou posse. Dentro dessa conjuntura, somente altos salários
poderiam induzir a mão-de-obra europeia a trabalhar para outrem, o que reduziria
substancialmente os lucros auferidos pelo capital mercantil. (FURTADO, 1959;
SILVA,1996).58
Alheio aos ditames da lei, outro mecanismo comum de apoderamento da terra se
generalizou nos tempos de colônia: a posse, tendo sido comumente utilizado por
pequenos e grandes proprietários de terra. No caso dos pequenos lavradores, a posse foi
o meio encontrado para acessar a terra às margens do sistema sesmarial. As atividades
colocadas em prática por esse grupo cresceram bordeando latifúndios, provendo os
58
Esta última autora ainda alerta para o fato da escravidão ter contribuído por manter a disponibilidade de
terras vagas, ao passo que ao trabalhador escravo não cabia qualquer direito à propriedade da terra.
93
engenhos e as cidades com gêneros alimentícios. No lado dos grandes proprietários, este
expediente foi amplamente utilizado para multiplicar as terras (geralmente adquiridas
por meio do sistema sesmarial) em seu domínio, criando enormes reservas de terra para
utilização futura.
Os incentivos ao apossamento ilegal de terras eram motivados pelos mesmos
fatores técnicos supracitados: técnicas rudimentares, abundância de terra, além de um
misto de dificuldade e desinteresse da Coroa portuguesa em fiscalizar de forma efetiva a
realidade fundiária do país, pelo menos antes do século XVII.
No lado das dificuldades, sem dúvida as técnicas de medição e localização das
sesmarias eram fatores operativos nessa situação. As cartas de doação traziam
informações demasiadamente imprecisas, quase cômicas, para ser justo. Costa Porto
(1978) faz referência à algumas entradas nas cartas de doações sobre a localização e os
limites das sesmarias. Em 1556 certa quantidade de terras foi cedida a dona Beatriz,
cujo um de seus limites era “o passo onde mataram o varela”. Chama a atenção
também a porção de terras cedida ao senhor Vasco Lucena, cujo limite “partia da
feitiçaria dos índios até onde se mete o rio [...] Ayamá e daí até a riba da casa velha
que foi de Christovão Índio e outra casa que foi de um índio que se chama Aberama,
onde estão uns cajus muito grandes”. (Costa Porto, 1978; p.67).
O desinteresse encontra-se expresso no fato de que por inúmeras vezes o
apossamento ilegal de terras foi encarado com vista grossa pela Coroa em virtude da
preocupação quase exclusiva de se fazer – em termos práticos – da política fundiária um
instrumento capaz de gerar excedentes em terras brasileiras. Em suma, “as mesmas
condições que levaram à falta de controle no tamanho das sesmarias fizeram com que o
limite da posse fosse dado pelo próprio posseiro”. (SILVA, 1997; p.16)
O sistema sesmarial, adaptado às condições da colônia, teve contribuição
decisiva no processo de latifundização do Brasil. Não foram exceções as doações de
terra de 20 a 30 léguas quadradas, o que, equivalentemente, daria cerca de 87.120 a
130.680 hectares. Não obstante, a prática da posse foi amplamente usada como meio de
multiplicar tais grandezas, driblando o esgotamento do solo em um modelo de
agricultura móvel e predatório, catalisando ainda mais o processo de concentração
fundiária.
Fato é que a agricultura colonial, em sua natureza extensiva, móvel e predatória,
via na posse um mecanismo de acesso a terra muito mais apropriado do que a própria
sesmaria. Este último mecanismo, na medida em que solicitava a demarcação e a
94
concessão de terras no exato montante da capacidade produtiva a ser empregada,
dificultava a manutenção de grandes extensões de terra como – e com – capacidade
ociosa. Do ponto de vista individual, a demarcação e a delimitação da propriedade
colocavam em risco a perpetuação do processo de acumulação de riqueza por meio do
uso da terra, e por isso eram com frequência rejeitadas pelos grandes proprietários.
Não tardou para que a posse se tornasse o meio hegemônico de acesso à terra.
Contudo, a hegemonização dessa prática, alheia a demarcação e a delimitação da
propriedade, e, principalmente, sem qualquer garantia jurídica, conduziu país a uma
profusão de conflitos rurais, sobretudo após o ciclo do ouro.
Seguiram-se a todos os conflitos entorno da propriedade da terra esforços de
endurecer a legislação (reafirmando a necessidade de demarcação e delimitação das
sesmarias) e a fiscalização, além da necessidade de se prevenir doações de terras com
propriedades sobrepostas.59 Nos novos esforços para regular a situação fundiária, a
legislação emitida passou a reconhecer a figura do posseiro. Um decreto expedido em
1781, por exemplo, ratificava a necessidade de demarcação e medição das sesmarias,
contudo, sem que tal prática trouxesse prejuízo a quaisquer possuidores que cultivassem
o aquele terreno. Estabelecia-se a primazia do cultivo sobre o privilégio.
A tentativa de solucionar o caos fundiário instituídos com a disseminação da
posse e com os constantes desrespeitos às determinações sobre a demarcação e medição
de sesmarias foi exclusivamente focada em questões jurídicas, não considerando as
condições da produção colonial. De fato, a estrutura produtiva e o modelo de produção
colonial impunham barreiras quase intransponíveis à necessidade de se regular e
disciplinar os direitos de propriedade sobre o solo. Não por acaso, tais intentos se
reverteram em sucessivos insucessos, levando ao abandono do sistema sesmarial antes
mesmo da declaração de independência. (SILVA, 1996).
Após a independência do Brasil, uma nova fase na política de terras teve início
no país. O intervalo de tempo que vai de 1822 a ano de 1850 ficou marcado pela plena
desregulação da propriedade de jure da terra. Durante esse período nenhum projeto que
visasse a regulação da situação fundiária foi levado adiante, de modo que o acesso a
terra passou a se dar exclusivamente por via da posse. Mais do que isso, nesse período
em questão, o próprio Estado abriu mão de impor seu direito de propriedade sobre a
terra. Segundo o Guedes (2006), a razão para a ausência de interesse regulatório
59
Para mais informações sobre o esforço jurídico e das atividades de correição, ver Silva (1996).
95
imediato sobre esta matéria encontra-se na necessidade mais urgente de pacificar e de
legitimar a nova condição política do país, a de Estado independente. Para tanto, não era
de bom tom se indispor com os grandes proprietários de terra, principalmente tendo em
vista que em nada dependia o desenvolvimento econômico da época de uma legislação
sobre a terra.
O período de plena desregulação fundiária perdurou por 28 anos. Além da
urgência em outras questões (acima citadas), a morosidade no processo justifica-se pela
complexidade de interesses envolvidos no processo de regulação jurídica da
propriedade da plena da terra, tal qual expressa no trecho a seguir:
Vários projetos de lei nesse período proibiam os imigrantes de adquirirem, alugarem
ou usarem terras, mesmo de particulares. Nenhum deles foi aprovado porque se
contradiziam com o sistema constitucional que se fundava na liberdade de aquisição e
da livre disposição e vontade dos titulares de direitos. Por outro lado, havia
estrangeiros com capital, investindo em plantações e terras. Os projetos não podiam
avançar porque se chocavam com o principal direito capitalista: o de propriedade.
Este direito era considerado natural, portanto, preexistente ao ordenamento e, como
tal, não poderia ser limitado pela Lei. Todas essas disposições proibitivas de
aquisições de terras feriam a essência do sistema e por isso nunca chegaram a ser
aprovadas, mas mantiveram uma discussão de grande envergadura, o que determinou
a demora na aprovação da Lei de Terras, exatamente porque ela teria que contemplar
os interesses econômicos do capital sem restringir os direitos de propriedade, que
também faziam parte desses interesses.
Foram 28 anos de profunda discussão acerca do que fazer para evitar, de um lado a
livre ocupação, e de outro, respeitar os direitos à livre aquisição de propriedade.
(MARÉS, 2003; p.66)
Fato foi que uma série de condicionantes internos e externos trouxe a questão
disciplinar da terra para a pauta dos assuntos urgentes, principalmente após a segunda
metade da década de 1830. Internamente, destaca-se a urgência de “proceder ao
ordenamento jurídico da terra, passo importante na consolidação do Estado Imperial”
(SILVA, 1997: p.17). Soma-se a isso a intensificação dos conflitos rurais que se seguiu
ao adensamento populacional e ao primeiro surto da economia cafeeira. Em relação a
esse assunto, João de Caldas Viana, que presidia a província do Rio de Janeiro no ano
de 1843 relatou:
Um germe fecundíssimo de desordem e de crimes tem sido a confusão dos limites das
propriedades rurais, tanto as adquiridas por sesmarias primitivamente, como as
havidas por título de posse com cultivos efetivos. As divisas principalmente dessas
últimas só são firmadas e respeitadas por armas de fogo desfechadas e emboscadas
de trás dos grossos troncos de nossas árvores seculares. (VIANA, 1843; p.4 apud
SILVA, 1996; p.101).
No plano externo, a necessidade de se regular a matéria fundiária veio por meio
do acirramento das pressões com Inglaterra sobre o tráfico de escravos que abastecia o
Brasil, em especial depois da década de 1840, quando a Inglaterra se posicionou
96
ativamente – por meio do “Slave Trade SuppressionAct” – contra os recorrentes
desrespeitos aos tradados bilaterais anteriormente firmados entre estas nações com vista
à extinção do tráfico negreiro.
Com o cerco se fechando contra o trabalho escravo, a discussão sobre a
substituição do trabalho cativo para o livre ganhou destaque na época, e a colonização
ascendeu à lista de assuntos prioritários. Em suma, em um contexto em que a mão-deobra se tornava progressivamente livre, era preciso tornar a terra em um bem
progressivamente cativo, caso contrário, dificilmente seria viável submeter os colonos a
lavrarem as terras de terceiros. (MARTINS, 1979). Não por acaso a Lei de Terras foi
promulgada menos de um mês após a aprovação da Lei Eusébio de Queirós,
responsável por proibir o tráfico de escravos.
97
ANEXO III.2: A Lei de Terras no Império
Ao contexto que se seguiu, sob dois aspectos fundamentais era preciso dar fim
ao caos fundiário vigente. De forma mais imediata, a imigração carecia de recursos
públicos para financiá-la. A mercantilização da terra foi a solução encontrada, pelo
menos em tese. A ideia era que Estado dispusesse das terras devolutas para a venda e
utilizasse os recursos obtidos para custear as despesas com a imigração europeia. Para
tal, era preciso vetar a possibilidade de aquisição de terras pelo apossamento. Mais
ainda, para alavancar recursos com a venda de terras, o Estado precisava de um retrato
fiel da realidade fundiária do país. Era imprescindível a delimitação de quais terras
atendiam pela condição de devolutas, para que em seguida fosse possível incorporá-las
ao mercado de terras. Posteriormente, era preciso substituir – ao menos em parte - o que
escravo representava no processo de acumulação de riqueza na economia brasileira
enquanto “mercadoria e capital imobilizado”, que permitia seu uso como ativo
produtivo e reserva de valor. (SILVA, 1996; p.136). A mercantilização da terra viria,
pois, preencher essa lacuna, fornecendo novos ramos para valorização do capital, além
de substituir o escravo como salvaguarda dos empréstimos agrícolas com cláusulas
hipotecárias. (REYDON et al., 2006; GUEDES & REYDON, 2012).
De acordo com Guedes e Reydon (2012), a Lei de Terras respondeu à essas
urgências por meio de seus quatro objetivos básicos: eliminar a posse, organizar o
acesso à terra, estabelecer um cadastro de terras para definir as áreas devolutas e
transformar a terra em uma ativo capaz de salvaguardar os emprestadores na concessão
de crédito agrícola.
Visando eliminar a prática já cristalizada da posse, o a Lei proibiu em seu artigo
primeiro a aquisição de terras devolutas por outro meio que não pelo título de compra,
bem como, estabeleceu no artigo seguinte as eventuais punições aos indivíduos
recalcitrantes nessa questão. 60Entretanto, na contramão do que havia sido estabelecido
como prioridade, a lei também estatuiu os espaços legais por meio dos quais as posses
poderiam ser legitimadas e as sesmarias caídas em comisso poderiam ser revalidadas 61.
Desse modo, não tardou para o que foi gestado como remédio se transformasse em
causa da doença, e em seu Artigo 5º, a lei previu os termos para a legitimação das
posses:
60
O despejo das terras, a perda das benfeitorias, o pagamento de multas e até prisões estavam previstas
como penas.
61
Ver artigo 4º da Lei nº 601/1850.
98
Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria,
ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de
cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente[...]
(Brasil, 1850)
Mais a frente, em seu Artigo 8º, a lei instituiu que os posseiros que deixassem de
proceder a medição de suas terras nos prazos estabelecidos pelo Governo, cairiam em
comisso, sem, contudo, perder a parcela da terra que efetivamente cultivassem. Sobre
esta, manteriam seu direito ao uso, sem, porém, obter o título de propriedade da terra,
impossibilitando a venda ou a hipoteca de suas posses. Nesse sentido, dada a
inaptidãodo Estado em discriminar as situações em que as terras eram efetivamente
cultivadas daquelas em que a terra se mantinha ociosa “essa cláusula acabou
funcionando como um aval do governo para a continuidade da posse” (SILVA, 1996;
p.178). Vale dizer ainda, que ao possibilitar que o posseiro caído em comisso
permanecesse na posse da terra, o artigo 8º se materializava não como um dever perante
o Estado, mas como um direito garantido por este, tal qual expresso abaixo:
A revalidação e legitimação, das posses de terras, nos termos da legislação das terras
devolutas e publicas, não e uma obrigação dos possuidores, a cujo cumprimento
possam ser compelidos judicialmente ou administrativamente. É um direito, que lhes
foi facultado, e de que podem usar, se quiserem. Não usando, deixando de proceder a
respectiva medição nos prazos marcados, incorrem em comisso do artigo 8º da Lei de
18 de setembro de 1850. (FREITAS, 1915; p.461)
Percebe-se na Lei um caráter claramente conciliatório. Um dos maiores símbolos
desse fato está expresso no artigo 9º da referida Lei, em que se determina que “não
obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará proceder á medição das
terras devolutas, respeitando-se no acto da medição os limites das concessões e posses
que acharem nas circumstancias dos arts. 4º e 5º.” (BRASIL, 1850). Se por um lado a
regulação do acesso à terra se impunha como uma necessidade, não só pela transição da
mão-de-obra servil para a livre, mas pelo contexto de consolidação do Estado Imperial,
além, é claro, pela profusão de conflitos agrários, por outro, era preciso mitigar todo
mal estar que a regulação do processo de apropriação territorial geraria nas oligarquias.
O abrandamento da Lei no tocante ao costume da posse traduziu a tentativa de reduzir a
fissura na estrutura de poder político e econômico provocada por tais mudanças. Tal
qual colocou Silva (1996), durante o período de gestação da Lei de Terras, “pediu-se, e
obteve-se, mais benevolência com esses possuidores” (Ibid., p.153).
A benevolência com os posseiros e o caráter conciliatório ficaram ainda mais
evidentes por meio do decreto nº 1318 de 1854 que regulamentou a lei de terras. Nesse
99
decreto foram estabelecidos os meios práticos através do qual o Estado discriminaria as
terras devolutas.
Fundamentalmente, o que se viu foi a delegação à particulares do da iniciativa
que geraria todo o processo de demarcação de terras enquanto vigesse a lei, incluindo as
terras devolutas.
Todo processo começaria com a declaração daqueles que ocupassem a terra, por
qualquer título de propriedade ou possessão, junto as paróquias de suas freguesias,
dentro dos prazos estabelecidos no regulamento. Essas declarações deveriam conter o
nome do possuidor, a designação da freguesia onde se situavam as terras, o nome
particular da situação (se o tiver), sua extensão (se conhecida) e seus limites. 62
Expirado os prazos para o registro, os livros de lançamento seriam enviados ao
delegado do diretor geral das Terras Públicas, e ao próprio diretor geral para a
organização do registro geral de terras do Império. Por meio desses registros esperavase obter informações sobre o território que já havia sido apropriado por particulares,
permitindo, por um lado, estremar o patrimônio público sob a forma de terras devolutas,
e por outra levantar informações estatísticas para fins hipotecários dos imóveis rurais.
(SILVA, 1996; MOTTA, 2008; RODRIGUES, 2008).
Os presidentes de cada província recorreriam aos juízes de direitos, juízes
municipais, juízes de paz, delegados e subdelegados para obterem informações sobre
posses a serem legitimadas e sesmarias ou demais concessões carentes de revalidação
localizadas nas comarcas e distritos de jurisdição dessas autoridades. Uma vez em posse
dessas informações, os presidentes das províncias fariam nomear um juiz comissário de
medição a cada um dos municípios um cujos limites englobassem terras a serem
regularizadas. Somente após a demarcação e medição das terras que o processo de
titulação se concretizaria, diga-se de passagem, pela via administrativa e não judicial.
62
É imprescindível dizer que nenhuma determinação legal conferia aos registros paroquiais da terra
o caráter de título de domínio sobre tal recurso. De fato, o artigo 94 do regulamento firmava justamente o
oposto: “As declarações, de que tratão este e o Artigo antecedente, não conferem algum direito aos
possuidores.” (Brasil, 1854). Mais ainda, esse dispositivo era reforçado pelo artigo 25, que estatuiu que os
títulos legítimos eram aqueles que segundo o direito estavam aptos para transferir o domínio. De acordo com
Freitas (1915), o título justo para tais fins derivava das disposições de última vontade, das decisões judiciais,
dos contratos e da determinação das Leis. Vale dizer que o Registro do Vigário não se aplicava a nenhum dos
casos supracitados. Por assim dizer, os registros paroquiais da terra não constituíam títulos de domínio, mas
apenas em uma das etapas a ser cumprida por particulares no processo de obtenção dos direitos (de jure) de
propriedade sobre a terra. Apesar da clareza dos dispositivos, ao longo do tempo o Registro do Vigário
transmutou-se em uma verdadeira ferramenta de grilagem do patrimônio público e em um gatilho de
conflitos entre particulares, traduzindo-se em fonte primária de contendas judiciais que objetivavam a
assegurar os direitos de propriedade sobre a terra, fato este muito bem documentado por Motta (2005; 2008).
100
Uma particularidade importante do processo de registro de estabelecimentos
rurais é que sua medição só teria início após o requerimento daqueles que ocupavam a
terra, tal qual expresso no artigo 36 do decreto nº 1318: “Os Juízes Commissarios não
procederão á medição alguma sem preceder requerimento de parte: o requerimento
deverá designar o lugar, em que he sita a posse, sesmaria, ou concessão do Governo, e
seus confrontantes.” (Brasil, 1854).
Os efeitos desse dispositivo sobre a demarcação das terras foram catastróficos,
sobretudo para o Estado. O problema é que da maneira como o processo de
regularização da terra estava aparelhado, a demarcação das terras devolutas tornava-se
um processo residual, feito por exclusão das terras já apossadas por particulares. O
processo todo se inaugurava a partir da decisão dos particulares em registrarem suas
terras. Somente após o registro destas que o juiz comissário procederia a medição das
propriedades privadas. As informações produzidas pelo juiz comissário deveriam
chegar aos presidentes das províncias, sendo posteriormente repassadas as autoridades
competentes. Findo esse trâmite, o inspetor-geral das medições procederia à
demarcação e medição das terras devolutas.
Não apenas merece destaque o fato do gatilho do processo de demarcação e
medição das terras ter sido colocado sob o controle de particulares, e, portanto,
condicionado a decisões individuais. Vale dizer, ainda, que o juiz comissário de
medição era uma figura criada pelo próprio projeto normativo, alheio aos quadros da
magistratura, embora sua participação nesse processo fosse central. Segundo Silva
(1996), a maneira como o processo foi desenhado no corpo da lei e de seu regulamento
era sintomático, representando as querelas referentes à distribuição do poder dentro do
Estado Imperial. Sobre essa matéria, a autora acentuou:
As oligarquias não simpatizavam com a centralização administrativa e obtiveram
nesse aspecto uma vitória. Conseguiram deixar nas mãos de uma figura local e
inexpressiva sujeita a pressões, portanto, a execução de uma tarefa da qual dependia
todo o mecanismo de regularização da propriedade da terra. (Ibid., p.184).
O que se verificou após a regulamentação da Lei de Terras foi uma tenaz recusa
dos fazendeiros em demarcarem as terras que ocupavam63. Na medida em que a
63
Em Paraíba do Sul, por exemplo, cerca de 40% dos fazendeiros optaram por não registrar suas terras.
Nessa mesma localidade, do total dos fazendeiros que registraram suas terras, cerca de 80% se valeram da
não obrigatoriedade de informar o meio pelo qual haviam adquirido seus estabelecimentos. Nesse
contexto, a recusa em registrar as “propriedades” pode residir na inexistência de conflitos rurais que
ameaçassem o domínio da terra no momento em que o fazendeiro tomou tal decisão, ou simplesmente – e
até de forma mais provável – porque não queriam limitar seu poder e sua capacidade de avançar sobre
novas áreas, curvando-se ao governo central. Por sua vez, ao não informar o modo como haviam
101
demarcação de terras foi entendida como direito, e não dever do ocupante, a decisão de
registrar ou não uma “propriedade” era individual, estando esta sujeita a costumes,
relações pessoais e sociais e a conjunturas específicas da localidade onde tal
propriedade se encontrava. Nesse sentido, pode-se dizer que os dispositivos da lei foram
acionados de formas distintas, nas distintas localidades do império. (MOTTA, 2008).
Assim, o contexto no meio rural em cada localidade do império definiu os meios
de interação dos indivíduos com a Lei. Em uma visão sóbria do processo, Motta (2008)
refuta a hipótese de que as leis tenham sido gestadas como expressão unívoca dos
interesses das classes dominantes. Fosse esse o caso, como se explicaria a forte
relutância em regularizar as propriedades da terras? No lugar, a autora acentua que os:
[...] conflitos de terra no Brasil nos levam – quase que forçosamente – a identificar,
nas leis agrárias, o resultado dos interesses dos latifundiários. Não conseguimos
dissociar a lei da imposição política dos fazendeiros que, em regra, conseguem tornar
vitoriosa a interpretação que têm dela. Os grandes fazendeiros se “apropriam” da
legislação não porque as leis satisfazem inteiramente os seus interesses, mas porque
eles possuem recursos para financiar processos custosos, recompensando
satisfatoriamente os defensores de sua versão nos tribunais. (Ibid., p.27).
As lacunas deixadas na legislação e as tentativas variadas em esquivar de seus
dispositivos refutam a hipótese sustentada por alguns estudiosos do assunto 64 de que a
Lei de Terras serviu para assegurar a propriedade da terra aos grandes senhores do meio
rural. No período de sua gestação a Lei foi alvo de barganha de interesses políticos,
sociais e econômicos. Nessa direção, Christillino (2010) entende que as brechas na Lei
de Terras, bem como os desvios na sua aplicação fazem parte de um processo de
barganha política entre a Coroa e as elites locais, em um processo que buscava adesão
ao projeto de centralização administrativa. Nesse sentido:
A promulgação da Lei de terras representou o oposto dessa tendência
[descentralização]. Centralizou nas mãos da burocracia imperial o controle de
imigração e de demarcação das terras devolutas. [...] Mas no espírito conciliatório,
que também se manifestava nos dispositivos da lei, ela concedeu aos presidentes de
província a prerrogativa de comandar a demarcação e medição de terras
particulares. Como a demarcação das terras devolutas deveria, em regra, esperar a
discriminação das particulares, o governo imperial, apesar de toda a centralização
representada pela promulgação da lei, ficou na dependência da esfera provincial.
(SILVA, 1996; p.192)
Além das renúncias ao registro de terras, das incorreções e informações pouco
precisas nos livros de entrada das paróquias, até mesmo de episódios de furto desses
adquirido a propriedade, provavelmente escondiam que o haviam feito por meio da posse, haja vista que
seriam legitimadas apenas as posses “mansas e pacíficas”. (MOTTA, 2008).
64
Essa visão é sustentada pelos trabalhos de Martins (1979) e Smith (1990).
102
últimos65, outras foram as práticas que buscaram retardar o de demarcação e
discriminação das terras públicas. Uma prática bastante comum era a recusa das
câmaras Municipais em responder as solicitações dos presidentes das províncias em
relação a existência de terras devolutas dentro de seus limites territoriais.
Torna-se evidente que a tentativa de pôr fim ao caos fundiário que reinava desde
os tempos de colônia no Brasil esbarrou em uma série de dificuldades. Apesar de
instituído pelo Estado Imperial, a discriminação do patrimônio rural público e privado
avançou em marcha lenta, no ritmo imposto pelos particulares, visto que aos últimos
cabia a decisão que desencadearia todo o processo demarcação de terras. A titulação da
terra, embora seja inegavelmente atraente aos olhos de hoje, não cativou os senhores de
terra em uma adesão automática aos preceitos da Lei n º601 de 1850. Sobre este último
aspecto, duas foram suas consequências: em termos práticos, inviabilizou o cadastro de
terras possuídas, minguando as possibilidades de se estremar as terras públicas das
privadas; em termos teóricos, colocou a última pá de terra na interpretação da referida
Lei como um instrumento normativo para assegurar a propriedade da terra ao senhoriato
rural.
65
“A despeito da máxima tolerância havida para com os sesmeiros, concessionários e
ocupantes, ou talvez em razão dela, relativamente diminuto é o número das
concessões revalidadas e posses legitimadas. O domínio público não se acha
extremado do particular, na escala que fora para desejar, senão que tem continuado
a ser invadido, usurpado e devastado. O registro de terras possuídas é um serviço
abandonado; raras foram as localidades onde se começou a dar-lhe execução, e
ainda ocorreu que se extraviaram alguns dos livros em que foram feitos os
lançamentos.” (RMA, 1877; p.35 Apud. MOTTA, 2008; p.172).
103
ANEXO III.3: A Imprecisão do Termo Devoluto
Outro elemento que merece uma análise mais profunda é o conceito de terras
devolutas. Nos tempos de colônia, o termo referia-se as terras que retornavam a Coroa
portuguesa pelo não cumprimento por parte dos concessionários das condicionalidades
impostas para o direito ao uso da terra. Ocorre, pois, que após a extinção do regime
sesmarial, e com promulgação da Lei de Terras, o termo devoluto não caiu em desuso,
mas se transfigurou e se complexificou, tal qual expresso na referida Lei:
Art. 3º São Terras Devolutas:
§ 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou
municipal.
§ 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem
forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não
incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição,
confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo,
que apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em
título legal, forem legitimadas por esta Lei.
(BRASIL, 1850)
A conceituação do termo devoluto tal qual expresso na Lei deu margem para que
as terras devolutas fossem entendidas tanto como terras devolvidas ao Estado
(mantendo-se a semântica inicial), como terras vagas ou incultas. (SILVA, 1996).
A acepção moderna do termo, entendendo as terras devolutas como terras
incultas ou vagas foi sustentada por Junqueira (1964) e Stefanini (1978). Para esse
primeiro autor, a Lei tinha a intenção manifesta de respeitar a permanência do ocupante
na terra, desde que verificados o princípio de cultura efetiva e morada habitual, tal qual
expresso em seu artigo 8º. Consequentemente, afirma o autor: “terras devolutas são as
que não estão incorporadas ao patrimônio público, como próprios, ou aplicadas ao uso
público, nem constituem objeto de domínio ou de posse particular, manifestada esta em
cultura efetiva e morada habitual”. (Junqueira, 1964; p.68).
Fato é, que o entendimento do termo devoluto como inculto, tinha seus dias
contados. A condicionalidade da morada habitual e do princípio de cultura aplicava-se
as terras havidas por posse ou concessão carentes de titulação. É preciso estar atento que
o ato de devolver a terra incursa em comisso estava legalmente fundado em uma forma
de propriedade da terra que a própria Lei buscava modificar; a forma concessionária.
Trata-se de uma herança clara do sistema sesmarial. Todavia, a partir da vigência da
Lei, caso o ocupante (de que forma fosse: posse, sesmaria ou demais concessões)
104
conquistasse o título legítimo sobre a terra, sua propriedade não mais poderia ser
devolvida ao Estado, mesmo que inexistisse qualquer princípio de cultura ou morada
habitual. (LINHARES, 1960).
A compreensão das terras devolutas como terras vagas ou incultas parece revelar
uma interpretação problemática do conceito. Segundo o artigo nº 3 da Lei de terras, as
terras devolutas eram aquelas que não se encontravam aplicadas a algum uso público ou
sob o domínio de particulares com titulação legítima, ou mesmo àquelas caídas em
comisso mais revalidadas ou legitimadas, no caso das concessões e posses,
respectivamente. O artigo nº 8 da referida Lei, apesar de preservar a terra nas mãos
daqueles que a ocupassem, mesmo sem titulação legítima, desde que se observasse o
princípio da cultura e a morada habitual, não concedia a esses agentes o título de
domínio. Assim sendo, embora ocupada, a terra não perdia a sua qualidade de devoluta,
tal qual afirma Linhares (1960):
As observações que aqui ficam têm grande importância porque se dissuade a errônea
convicção de ser devoluto sinônimo de inculto – pois as terras cultivadas de posse
caduca e não legitimada também são devolutas embora estejam ocupadas com
plantações. De outra parte, os terrenos incultos quando estiverem no domínio
particular, por qualquer título legítimo não se consideram devolutos segundo os
expressos termos do Parágrafo 2º da lei.(Ibid., p.129).
A imprecisão do termo devoluto parece revelar claramente um conceito que
estava tropeçando nos acontecimentos históricos. A confusão criada pela duplicidade
semântica do termo – de terras devolvidas ou de terras vagas – é inerente ao período de
transição da forma da propriedade sobre a terra, da concessionária para a plena,
inaugurada pela própria lei. O ponto fundamental é que a Lei tentava disciplinar um
objeto que sua própria promulgação modificava, afastava-se da propriedade da terra
como símbolo de prestígio social, e caminhava-se na direção de sua representação
enquanto objeto de poder econômico (COSTA, 1985).
Com o tempo, o conceito continuou se transmutando, até que se destituiu o
princípio de cultura como elemento delimitador do termo devoluto. Nesse sentido,
definiu Maia (1982), “terras devolutas são aquelas que não estão aplicadas a qualquer
uso público federal, estadual ou municipal, ou que não estejam incorporadas ao
domínio privado”. (Ibid.,p.21). Em suma, chegava-se a conceituação de terras devolutas
como terras vagas, simplesmente. De forma complementar, Marés (2003) afirmou:
Terras devolutas passam a ser não as desocupadas, como ensinam alguns manuais e
dicionários, mas as legalmente não adquiridas. É um conceito jurídico e não físico ou
social. Não quer dizer terra desocupada, mas terra sem direito de propriedade
105
definido, é um conceito, uma abstração, uma invenção jurídica. A mera ocupação de
fato não gerava domínio jurídico, que exigia o título do Estado ou o reconhecimento,
pelo Estado, de um título anterior, ou, ainda, o uso público. Ainda que a terra
estivesse ocupada por trabalhadores, índios, quilombolas, pescadores, produtores de
subsistência ou qualquer outro sem beneplácito do Estado, não perdia sua qualidade
de devoluta. (Ibid., p.70)
Após a promulgação da Lei de Terras, o princípio da cultura efetiva passou a só
fazer sentido para as “propriedades” que se encontravam carentes de regularização. As
terras cujos ocupantes conquistassem o título de propriedade posteriormente a
promulgação da Lei nº601 não mais seriam retornáveis ao patrimônio público por outro
meio que não a desapropriação. Assim, na medida em que a Lei transmutava a forma da
propriedade sobre a terra, da concessionária para a plena, o termo devoluto passava a ser
entendido como sinônimo de vago.
106
ANEXO III.4: Lei de Terras na República Velha
A descentralização provocada pela consagração do federalismo se estendeu a
matéria da regularização fundiária. As terras devolutas tiveram seu domínio transferido
aos estados da federação, cabendo a estes últimos estabelecerem as leis que regeriam o
processo de apropriação territorial. Curiosamente, apesar da autonomia para legislar
sobre a matéria fundiária, o respeito básico aos princípios da Lei de Terra e pelo
Decreto nº 1318 de 1854 foi, em geral, mantido nas legislações estaduais. Cada estado,
por meio de sua legislação, determinou a maneira pela qual as terras devolutas seriam
discriminadas, as sesmarias regularizadas e as posses legitimadas, sem, contudo, se
contrapor aos princípios firmados pela Lei e pelo regulamento.
A adesão dos estados aos princípios da Lei de Terras gera estranheza inicial,
primeiro, dada a tenaz oposição que esta sofreu no congresso no quando de sua
elaboração e votação, posteriormente, em razão da forte recusa nos meios rurais às
determinações do registro de suas propriedades. A explicação para essa súbita mudança
de postura dos governos estaduais em relação aos preceitos da Lei de terras encontra-se,
sobremaneira, vinculada aos benefícios da descentralização administrativa sobre o
processo de apropriação territorial.
Como foi visto anteriormente, apesar da Lei de Terras simbolizar um ato de
centralização administrativa, na medida em que atribuía ao governo federal as rédeas do
processo da regularização da propriedade da terra e da colonização, o fez cedendo
grandes poderes a figura do juiz comissário de medições, alheia a magistratura, e a
outras autoridades de expressão local. Com a proclamação da república, a
descentralização do processo de regulação da propriedade da terra tomou contornos
mais definidos, por meio da consagração do federalismo. Tal consagração representou a
multiplicação do poder dos estados para definir os rumos da apropriação territorial nos
limites de suas fronteiras, além de tornar todo o processo de titulação da propriedade
ainda mais sujeito as pressões das oligarquias locais. Além disso, o respeito aos seus
dispositivos da Lei garantia a continuidade da via administrativa no processo de
titulação da propriedade da terra. Em outros termos, os processos revalidação das
sesmarias e legitimação das posses seriam apreciados, em última instância, pelos
governadores dos estados. (SILVA, 1996)
As pressões se fizeram sentir pela a adoção de legislações estaduais
extremamente permissivas em relação ao apossamento das terras devolutas, expressas,
107
sobretudo, pelas subsequentes dilatações das datas de validade para a legitimação das
posses e a extensão dos prazos para se entrar com pedido de legitimação. Inicialmente,
quando a lei de terras foi regulamentada e entrou em vigor, ficava estabelecido que as
posses a partir daquele ano (1854) não seriam passíveis de legitimação futura.
Entretanto, cada legislação estadual firmou uma data de validade para a legitimação das
posses em seu território, tendo por mínimo o ano de 1889. Já os pedidos de legitimação
tiverem seus prazos prorrogados até o final da década de 1920.
As legislações estaduais frouxas em relação ao apossamento, a explosão do
número de colonos europeus e a abolição da escravatura, enfim, todos estes fatores
serviram para germinar a intensificação dos conflitos rurais na busca pelo acesso a terra.
Poder-se-ia imaginar que a passividade das autoridades em relação ao apossamento das
terras devolutas responderia pela democratização dos mecanismos do acesso à este bem,
quando utilizado por colonos e libertos. Porém, viu-se germinar na primeira república
um fenômeno político que teve importantes desdobramentos no processo de apropriação
territorial: o coronelismo. Os coronéis eram símbolos de concentração de poder na
esfera municipal. Por meio de paternalismo ou violência controlavam o eleitorado rural
e o submetia aos interesses dos das representações políticas estaduais ou até mesmo
federais. A atuação dos coronéis extravasava a esfera eleitoral, estendendo sua
influência aos conflitos rurais que tinha como motivações os direitos de ocupar, lavrar e
dominar a terra. O grande problema é que as resoluções que rebentavam do poder dos
coronéis possuíam invariavelmente a pessoalidade e a parcialidade como marcas
características. Assim Silva (1996) acentuou:
Nesse processo de passagem das terras devolutas para o domínio privado, os
coronéis encontravam-se numa posição estratégica. Exerciam o poder privado por
meio de seus asseclas (exército de jagunços etc.) e contavam com o beneplácito das
autoridades estaduais. Sendo os chefes políticos dos municípios, nada escapava ao
seu controle na sua região. E, nesse aspecto, pouco importa saber até que ponto se
pode identificar o coronel como proprietário de terras. O mais importante não é
saber se o coronel se apropriava das terras para si mesmo ou para parentes, amigos
ou correligionários. O importante a ressaltar é que nada se fazia no município sem a
sua anuência. (Ibid., p. 287).
Via de regra, as constantes dilatações dos prazos de validade das posses,
principalmente após o advento das legislações estaduais sobre a matéria fundiária,
tornou a capacidade de se manter na terra uma via fundamental a legalização da situação
dos posseiros. Em essência, a ideia era sustentar-se na posse da terra e defende-la de
eminentes invasões de terceiros por tempo suficiente até que se pudesse gozar de uma
nova dilatação de prazos que trouxesse ao alcance dos novos posseiros os benefícios da
108
lei. (SILVA, 1996). O grande problema, no caso, era que os conflitos que irrompiam
eram resolvidos pelo arbítrio ou dos coronéis ou das autoridades municipais e estaduais,
que favores lhes deviam.
Em termos práticos, aos pequenos posseiros pouco servia a falta de zelo das
autoridades em fiscalizar a realidade fundiária ou mesmo a frouxidão das leis. Estas vias
de acessar a terra foram dominadas pelo poder paramilitar dos grandes fazendeiros e
pelo paternalismo e mandonismo exercido pelos coronéis.
Outro aspecto fundamental que merece destaque na discussão sobre apropriação
territorial na Primeira República tem início no campo da retórica do direito, mas que
não deixou de produzir, anos mais tarde nos tribunais, efeitos práticos sobre a estrutura
fundiária do país. Este foi o caso da discussão em torno da necessidade da escritura
pública para os casos de venda e concessão de terras feitas pelo Estado.
Na realidade, essa discussão já se encontrava em andamento anteriormente a
proclamação da república, desde a regulamentação da Lei Hipotecária em 1865, que
entendia como indispensável a escritura pública feita por tabelião e transcrita no registro
de imóveis. Em 1868, os decretos de Itaboraí ratificaram a obrigatoriedade da escritura
pública, mesmo nos casos envolvendo o Estado. Todavia, na prática, continuou-se a
lavrar os termos apenas nas tesourarias da fazenda, onde os títulos de propriedade eram
expedidos por meio da assinatura do presidente de província.
Existia aqui, uma má definição, ou sobreposição, dos limites de atuação dos
direitos civil e administrativo. Embora a lei de 1850 integrasse o quadro normativo do
direito administrativo, sua aplicação cruzava a fronteira do direito civil, na medida em
que alienava a terra (para colonização). A partir desse ato, a terra passava a constituir
propriedade de particulares. (LIMA, 1954).
Por de trás de toda essa discussão, estava encampada uma questão bem mais
profunda; a origem do domínio das terras brasileiras, que remetia juristas e operadores
de direito aos primórdios da história da apropriação territorial do país.
Para alguns, o Estado não era um proprietário como outro qualquer, pois havia
adquirido o domínio público sobre a terra em razão do direito de conquista. Após o
descobrimento, a apropriação das terras brasileiras passou a ser regida pelas
Ordenações do Reino, que estabelecia o domínio eminente66 da Coroa de Portugal.67
66
O domínio eminente é o domínio “que o Estado exerce sobre a totalidade do seu território por força da
sua própria soberania. Em razão dele é que o poder público dita as leis referentes à apropriação territorial
e não como proprietário na acepção do direito civil”. (MOREIRA, 1939; p.12 Apud SILVA, 1996; p.38)
109
Nesse caso, a propriedade particular sobre as terras rebentava das concessões feitas pela
Coroa portuguesa, senhora das terras, por meio das sesmarias. Com o passar dos anos, o
domínio eminente não teria sido interrompido, mas transferido pela Coroa Portuguesa à
Coroa Imperial e, posteriormente, por essa última ao Estado republicano, assumindo a
forma de domínio público do Estado.
Outra vertente interpretativa entendia que o Estado era um proprietário como
outro qualquer, pois as terras pertenciam ao Mestrado de Cristo, inexistindo o domínio
eminente da Coroa, de modo que o Rei de Portugal era apenas o administrador das
terras públicas.68 Deste modo, quando o país se tornou independente, nenhum domínio
foi transferido e, assim sendo, as terras que não estivesses sobre o domínio de
particulares ou sob o domínio do Estado deveriam ser entendidas como terras vagas,
estando sujeitas a apropriação de qualquer um. (SILVA, 1996).
Do Império à Primeira República, parece que a interpretação que se sagrou
vencedora foi àquela que entendia as terras devolutas como constituintes dos bens
patrimoniais do Estado, ou seja, dos bens sob domínio privado do Estado. Por
conseguinte, passou-se a entender as terras devolutas como passíveis de qualquer
negócio jurídico de direito privado, estando, portanto, sujeita a compra, venda, hipoteca,
permuta, etc. (LIMA, 1954; SILVA 1996). Mais ainda, ao se tornar hegemônica a visão
de que o Estado não escapava as normas do direito civil na ocasião da alienação das
terras devolutas, reafirmou-se a obrigatoriedade da transcrição do ato de compre e
venda no Registro Geral de Imóveis, em consonância com os decretos de Itaboraí
(1968).
67
Nas palavras de Costa Porto (1978):
De relação ao solo (durante o regime das capitanias hereditárias) esse continuará
constituindo patrimônio do Estado, pertencente a Nação, encarnada no Soberano,
que, empenhado em promover o povoamento e a colonização da conquista, determina
aos capitães o repartam e distribuam de sesmaria entre os moradores, gratuitamente
[...]. (Ibid., p.24-5).
Mais adiante o autor afirma que “as terras de ultramar sempre pertenceram à Coroa, ao
Estado, ad Rempublicam [...]”. (Ibid., p.41).
68
Um expoente dessa corrente interpretativa foi Garcia (1958). Segundo o autor:
Nos primórdios da colonização, todo território do Brasil estava sujeito à judisdição
em de Cristo [...] mas era o próprio Rei o administrador perpétuo dessa ordem. Por
ai se vê que o Rei de Portugual não tinha nenhum direito sobrenatural sobre as terras
do Brasil. Nem tão pouco tinha ele, sobre essas terras, o chamado domínio eminente
que alguns escritores pretenderam reconhecer. (Garcia, 1958: p.10 Apud SILVA,
1996: p.37-8)
110
Esta foi a visão sobre o tema que se consagrou entre os juristas renomados da
época, sobretudo a partir da elaboração do Código Civil (1916). Nas palavras de SILVA
(1996):
Com isso, completava-se o quadro para a transformação do Estado num proprietário
como os outros. E assim ficava sustentada a doutrina da prescritibilidade das terras
devolutas. Ou, em outras palavras, a possibilidade de usucapião das terras
públicas.(Ibid., p.349).
O que estava em jogo nessa discussão que se arrastou por parte do Império e por
toda a Primeira República era a capacidade do Estado de afirmar seu direito sobre as
terras devolutas, e delas dispor da maneira que lhe melhor conviesse. Ao ver tal direito
contestado por diversos juristas, duas consequências fundamentais se impuseram sobre
o processo de apropriação territorial no país. De um lado, a entendimento a favor da
possibilidade de prescrição aquisitiva questionava o que havia sido estabelecido pelo
artigo 1º da Lei de Terras, ou seja, a proibição da aquisição de terras devolutas por outro
título que não o de compra. Por outro lado, a obrigatoriedade da transcrição do ato de
compra e venda de terras devolutas no Registro Geral de Imóveis gerava um forte
incerteza jurídica em relação a propriedade da terra, haja vista que esta não era a prática
recorrente na época nos processos de regularização e titulação das terras, que seguiam,
quase que em sua totalidade, a via exclusivamente administrativa.
Ante a tamanha indefinição jurídica, o Governo Provisório determinou por meio
do decreto nº 19.924 de 27 de abril de 1931 que:
Os títulos expedidos pelo Estado e as Certidões autênticas dos termos lavrados em
suas repartições administrativas, referentes à concessão de terras devolutas, valerão
qualquer que seja o preço da concessão para os efeitos da transcrição no Registro de
Imóveis [...]. (BRASIL, 1931)
Em uma mesma medida, o Governo Provisório atestou a legalidade dos títulos
expedidos pela via administrativa feitos anteriormente e reforçou a obrigatoriedade de
transcrição dos mesmos no registro de imóveis daquele ano em diante. Ao assim fazêlo, o Governo Provisório deu fim definitivo a via exclusivamente administrativa da Lei
de Terras, encerrando seu período de vigência.
111
CAPÍTULO IV: EVIDÊNCIAS DO EFEITO INDIRETO SOBRE
DESMATAMENTO
NA
AMAZÔNIA
BRASILEIRA:
UMA
ANÁLISE PARA O DECÊNIO 2002-2011
Introdução
Mudanças indiretas no uso da terra descrevem processos de (re)composição de
portfólio de agentes que detém terra como opção de aplicação. Em processos como
estes, o diferencial das taxas próprias de juros dos diversos usos possíveis para a terra
fornecem a verdadeira força motriz para que a malha de ocupações do solo permaneça
em constante movimento.
Sob esse prisma de análise, o desmatamento é o resultado da percepção dos
agentes de que a utilização agrícola da terra tende a fornecer ao final do período de
retenção do ativo uma quantidade maior de moeda do que a “floresta em pé”. Há,
portanto, um diferencial nas taxas próprias de juros entre a terra florestada e a terra para
utilização em pastagem ou lavoura que decide o lado para o qual a balança tende, e
historicamente esse lado não tem sido o do uso sustentável dos recursos naturais; fora os
créditos agrícolas subsidiados, há uma falha grave na regulação do mercado de terras
que gera, por um lado, incerteza sobre a posse da terra, e, por outro, a possibilidades de
ganhos monetários sem qualquer relação direta com as características produtivas desse
ativo.
De forma específica, o que se entende como falha grave na regulação do
mercado de terras é o arranjo institucional que permite a legalização ex-post da terra
apropriada, seja por meio da concessão de títulos ou por intermédio da grilagem.
Quando se trata das mudanças (indiretas ou não) do uso do solo, a possibilidade
de acessar terras na nova fronteira (muitas vezes à margem da lei) fornece um grande
desincentivo a intensificação produtiva e a implantação de tecnologias poupadora de
terras e de recursos naturais. Esse é o caso da pecuária na Amazônia, que têm avançado
sobre extensas áreas de floresta, embora a sua rentabilidade seja bastante reduzida
quando descontado os eventuais ganhos especulativos.
A baixa rentabilidade da pecuária não deve ser interpretada como resultado de
um setor em crise. No período analisado por este trabalho, a produção se expandiu de
forma consistente, com um adicional de mais de 27 milhões de cabeças de gado no país,
dos quais cerca de 22 milhões se estabeleceram nos estados constituintes da Amazônia
112
Legal, tendo a região norte vivenciado um acréscimo de cerca de 13 milhões deste total.
A reduzida rentabilidade é, pois, o reflexo da irrisória taxa de lotação das pastagens na
Amazônia, que cresce de forma lenta, sendo possível encontrar diversos municípios em
cujas taxas não superam a marca de uma cabeça de gado por hectare69. Não restam
dúvidas que esta realidade reflete, ao menos em parte, o padrão de formação da
propriedade privada terra, que ao permitir sua legalização ex-post acaba por ampliar o
raio de manobra dos agentes no que tange a suas estratégias de acumulação de riqueza.
É fato que o avanço da pecuária coloca em risco a preservação da floresta e
cerrado amazônica, sobretudo dada a sua baixíssima produtividade média. Entretanto,
não é tão evidente a relação que a soja estabelece com essa cultura, e justamente este
que será o objeto de estudo desse capítulo. É preciso entender como o avanço da soja
mecanizada sobre as áreas de pastagem rebate na dinâmica do uso do solo em outras
localidades. Fundamentalmente, é preciso esclarecer se a perda de áreas de pastagem
pela expansão da área de plantada com soja tem se assentado em ganhos de
produtividade ou na conversão de novas áreas de florestas em pastos.
Para responder tal questionamento, buscou-se analisar no nível municipal o
comportamento dessas duas atividades, a sojicultora e a pecuária. Primeiramente, será
feita uma análise para a Amazônia Legal como um todo, depois, por motivos que serão
explicitados mais a frente, será realizada uma análise mais aprofundada para o estado do
Mato Grosso.
No mais, este capítulo encontra-se dividido da em três tópicos além da introdução e do
resumo conclusivo. O primeiro tópico – Metodologia de Análise – expõe os métodos
utilizados para responder ao questionamento feito acima, além de fornecer a fonte dos
dados diretamente empregados nessa tarefa. O Segundo tópico - A Chegada da Soja a
Região Norte e a Proliferação dos Focos de Mudança Indireta do Uso da Terra – trata
do contexto econômico que se mostrou funcional a expansão da sojicultora na região
norte do país, e ainda, fornece evidências sobre a ocorrência de mudanças indiretas no
uso da terra para a Amazônia Legal. Por fim, o terceiro tópico – Evidências do Efeito
Indireto para o Estado do Mato Grosso – aprofunda a análise feita no tópico anterior
para o caso do Mato Grosso, buscando relacionar o padrão de ocupação do solo do
estado com as taxas de desmatamento e com o preço da terra.
69
Em termos populares, um hectare equivale aproximadamente a área de um campo de futebol,
113
IV.1 Metodologia de análise
A análise que se propõe nesse capítulo não buscará mensurar o efeito indireto
sobre o desmatamento, ou seja, entender a parcela do desmatamento provocada pelas
mudanças na rentabilidade observadas na fronteira antiga. Ao invés disso, se ocupará
em identificar os potenciais propaladores do efeito indireto, ou equivalentemente, os
municípios onde se é possível observar uma perda de participação relativa do efetivo
bovino em razão da expansão da área plantada com soja.
De imediato, serão calculadas as taxas anuais médias de expansão da área
plantada com soja e do efetivo bovino para o Brasil e para as regiões e estados
pertinentes. Essas taxas (de controle) servirão de critério de comparação para os valores
apresentados para as mesmas variáveis referentes aos municípios localizados dentro das
fronteiras dos nove estados pertencentes à Amazônia Legal.
A ideia é observar se para aqueles municípios cuja expansão anual média da área
plantada de soja supera as taxas de controle se verificam um decrescimento do rebanho
bovino, ou um crescimento abaixo da taxa de controle da pecuária, seja ela nacional,
regional ou estadual.
Deste modo, delimita-se o conjunto X de municípios propaladores do efeito
indireto como segue:
X={x| TMeSx>TMeScon e TMeGx<TMeGcon}
;
(1)
onde:
x ≡ município em análise;
TMeSx ≡ Taxa média de expansão da área plantada com soja no município;
TMeScon≡ Taxa média de expansão da área plantada com soja no grupo de
controle (nacional, regional ou estadual)
TMeGx ≡ taxa média de expansão do rebanho bovino para o município;
TMeGcon é a taxa média de expansão do rebanho bovino para o grupo de
controle (nacional, regional ou estadual).
Os dados necessários à construção dessa análise foram obtidos da Pesquisa
Agrícola Municipal e Pesquisa Pecuária Municipal, disponibilizados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ao final do capítulo será realizada, ainda, uma análise mais aprofundada sobre
os focos propaladores do efeito indireto no estado do Mato Grosso. Nessa análise,
114
buscar-se-á relacionar a demanda por determinados tipos de terra com o a distribuição
espacial do incremento do desmatamento no período e com os preços médios estimados
da terra para cada município.
Os dados referentes às taxas de desmatamento foram obtidos junto ao Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), responsável pelo projeto PRODES de
monitoramento do desmatamento via imagens de satélite.
Por fim, os preços médios da terra foram calculados a partir dos dados
fornecidos pela FNP (2012). Esta empresa fornece preços para tipos de terra (pastagem,
lavoura e mata) representativos para uma determinada região ou município. Esses
preços foram ponderados pela porcentagem desses municípios ocupada com as diversas
coberturas possíveis do solo (pastagem, lavoura e mata), chegando-se, a partir daí, a um
preço médio da terra por município, independente do uso em que nela se estabelece. Os
dados da cobertura da terra por município foram obtidos no Censo Agropecuário de
2006, e a análise foi feita assumindo o mosaico de ocupações do solo como constante
para todo o período.
IV.2 A chegada da soja a região norte e a proliferação dos focos de mudança
indireta do uso da terra
Como dito anteriormente, o objetivo desse trabalho não será o de mensurar o
desmatamento provocado pela mudança indireta no uso da terra, mas sim identificar
potenciais focos propaladores desse fenômeno. A ideia é voltar o foco da análise para a
origem do processo, ou seja, para os municípios onde é possível observar o
deslocamento da pecuária em razão da pressão exercida pela expansão nas áreas de
lavoura permanente, notadamente pela expansão da área plantada com soja. Nesse
sentido, faz-se necessária uma breve análise sobre a expansão da soja para a região
norte do país, haja vista que este fato serviu para agudizar a competição por terras,
engatilhando todo o fenômeno de mudança indireta no uso da terra no período aqui
analisado.
A chegada efetiva da soja na região norte ocorreu na segunda metade da década
de 1990, quando pela expansão da demanda global do grão buscaram-se novas áreas
para o cultivo. Nesse mesmo período, não só a soja rompeu as fronteiras dos estados
como Pará, Rondônia, Tocantins, como estado do Mato Grosso se transformou no maior
produtor de soja do país, superando a hegemonia histórica do estado do Paraná.
115
É interessante notar que a conquista da soja na região norte se deu no momento
em que os preços internacionais do grão declinavam, ou, pelo menos, mantinham-se
estagnados em um baixo patamar. Entretanto, a partir da segunda metade da década de
1990, a taxa de câmbio entre real e dólar passou a sofrer uma série de desvalorizações,
em um primeiro momento, suaves, mas traumáticas após o ano de 1999. Essas
desvalorizações se mostraram extremamente funcionais para expandir a área plantada
com soja, na medida em que mais do que compensavam as perdas na rentabilidade do
cultivo em razão da queda nos preços internacionais (Gráfico 5).
Gráfico 5: Comportamento do câmbio e diferencial de preço da tonelada da soja
em real e em dólar – 1996-2011
Fonte: elaboração própria segundo os dados do IPEADATA e FAO.
Porém, a partir do ano de 2003 passa a ocorrer justamente o oposto: o câmbio
inicia uma trajetória de valorização, de modo que a elevação do preço recebido em real
por tonelada passa a refletir a elevação do preço da soja no mercado internacional.
A elevação do preço da soja em real – durante quase todo o período, diga-se de
passagem – forneceu um forte estímulo para o aumento da produção e para o posterior
direcionamento desta ao mercado externo. A exemplo, em 1996 o país exportou
aproximadamente US$ 1,18 bilhões de soja em grão e US$2,27 bilhões em farelo,
enquanto em 2008 a exportação em grão atingiu US$10,952 bilhões e em farelo US$
4,363 bilhões. 70 A vertiginosa elevação das exportações de soja foi conquistada em
grande medida em razão do forte aumento da demanda dos mercados europeu e chinês.
Entre 1996 e 2008, o Brasil viu sua exportação de soja para União Europeia saltar de
70
Dados disponíveis em www.ipeadata.gov.br
116
2,9 milhões de toneladas para 8,9 milhões de toneladas. Em relação ao mercado chinês,
os números são ainda mais expressivos; no período, a exportação de soja saltou de 0,15
milhões de toneladas para 12 milhões de toneladas. (FAO, 2011).
O Gráfico 6, a seguir, mostra qual foi o padrão de expansão da produção da soja
na região norte do país entre 1996 e 2011. Como, ao que tudo indica, a elevação da
produção da soja foi conquistada majoritariamente pela expansão da área plantada, os
impactos sobre a Amazônia Legal passaram a ser mais evidentes. 71
Gráfico 6: Cenários da evolução da produção da soja na região Norte – em
toneladas
Fonte: elaboração própria segundo os dados da CONAB
Nesse contexto, a necessidade de novas áreas agrícolas, em particular para
atender a crescente demanda externa, ao encontrar uma oferta de terras abundante e
relativamente barata na Amazônia gerou o que se convencionou chamar de
internacionalização das forças de desmatamento, estabelecendo uma íntima ligação
entre a taxa de câmbio e as taxas de desmatamento no período, tal qual revela o gráfico
7:
71
Neste gráfico, é possível observar a variação da produção da soja na região norte do país sob três
critérios: elevação da produção com a produtividade fixa referente ao ano agrícola de 1995/1996,
produção com área plantada fixa referente ao ano agrícola de 1995/96 e, por fim, a produção efetiva, em
que se deixa variar a área plantada e a produtividade.
117
Gráfico 7: Taxa de câmbio e desmatamento na Amazônia Legal – 1996-2011
Fonte: Richards (2012)
O aumento da rentabilidade esperada do cultivo do grão provocado, de um lado,
pelo aumento da demanda internacional e, de outro, pelo próprio comportamento do
câmbio contribuiu, sobremaneira, para a mais que duplicação da área plantada com soja
no país, que passou de cerca de 106.632 Km2 em 1996 para 241.810 Km2 em 2011.
72
Da variação total na área plantada entre 1995 e 2009, Richards (2012) estimou que
aproximadamente 63.000 Km2 sejam atribuíveis à desvalorização cambial ocorrida a
partir da segunda metade da década de 1990, dos quais nada menos que 28.000 Km2
ocorreram dentro dos limites da Amazônia Legal.
Mesmo diante das evidências apresentadas, ainda existe uma forte resistência em
parte da academia e da opinião pública em reconhecer a soja como um dos principais
vetores do desmatamento na Amazônia Legal. Os que simpatizam com essa vertente
terminam por se debruçar na baixa representatividade do cultivo do grão em áreas de
floresta para afirmar que os impactos da sojicultura são – quando muito – desprezíveis
para explicar o comportamento das taxas de desmatamento. Outro argumento
comumente utilizado é que a soja se expande não na direção de novas áreas de
exploração agrícola, mas na direção de antigas pastagens de baixa produtividade.
(MUELLER, 2003; BRANDÃO et al., 2005). Um extrato desse posicionamento
controverso é reproduzido por dois grandes intermediários da cadeia produtiva da soja,
revelada no trecho a seguir:
72
Essas cifras fazem referência aos anos agrícolas de 1995/96 e 2010/11.
118
Em julho de 2006, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais ABIOVE e a Associação Brasileira dos Exportadores de Cereais - ANEC se
comprometeram a não comercializar nem financiar a soja produzida em áreas que
foram desmatadas no Bioma Amazônia após esta data. Nestes últimos cinco anos, o
monitoramento da Moratória da Soja produziu evidências de que os plantios da
commodity possuem uma participação ínfima nos desflorestamentos ocorridos após
julho de 2006[...]. Portanto, pode-se afirmar, hoje, que a expansão da soja brasileira
não é um importante vetor de desflorestamento do Bioma Amazônia.
(www.abiove.org.br).
Chama a atenção o fato da ABIOVE e a ANEC, que juntas controlam cerca de
90% da soja comercializada no país, não terem estendido o boicote a soja produzida em
áreas desmatadas de Cerrado. Enquanto a produção de soja no bioma Amazônia ainda é
relativamente incipiente, o cerrado serviu de locus para cerca de 63% da produção
nacional do grão no ano de 2013. Outro fator que merece destaque é que nenhuma
consideração foi feita em relação à possibilidade da expansão da soja estar promovendo
o deslocamento da pecuária extensiva para áreas de floresta. Entretanto, esse será
assunto para o próximo subtópico.
IV.2.1 Soja e gado na Amazônia
É indiscutível que a partir da segunda metade da década de 1990 a soja passa a
se expandir de forma acelerada para a região norte do país, complexificando o mosaico
de utilização da terra, que passou a revelar, de forma mais frequente, o bordeamento de
áreas de lavouras, pastagens e matas. Entre 2002 e 2011, a área plantada com o grão na
região norte passou de 140.656 hectares para 638.315, representando um acréscimo de
353,81%.
Há razões óbvias para crer que esse fato gerou – e tem gerado – pressões no lado
da demanda por terra. Não tão obvia e direita é a derivação dos efeitos desse aumento
da demanda por terras sobre as taxas de desmatamento. O argumento de que a soja se
assenta em áreas anteriormente ocupadas por pastagens não significa que a sua
expansão seja neutra em relação às taxas de desmatamento. Para que se fosse garantido
tal fato, seria necessário que se verificasse ou uma redução do rebanho bovino, ou um
crescimento da taxa de lotação (cabeça/hectare)em um ritmo capaz de compensar as
eventuais perdas de área de pastagem em razão do avanço do cultivo de soja.
Como revela a tabela 8, a região norte e os estados da Amazônia Legal
vivenciaram uma forte expansão tanto da área plantada com soja quanto do efetivo
bovino para o período 2002-2011:
119
Tabela 8: Evolução da Área Plantada com Soja e do Efetivo Bovino
Taxa de Crescimento
Brasil, Grande Região
e Unidade da Federação
Taxa Média de Crescimento
2002/11
Efetivo Bovino
2002/11
Área Plantada com Soja
Efetivo Bovino
Área Plantada com Soja
Brasil
14,82%
46,75%
1,55%
4,35%
Norte
42,10%
353,81%
3,98%
18,30%
Nordeste
23,83%
74,13%
2,40%
6,36%
Sudeste
3,72%
16,51%
0,41%
1,71%
Sul
1,66%
32,46%
0,18%
3,17%
Centro-Oeste
10,82%
55,84%
1,15%
5,05%
Rondônia
51,52%
357,56%
4,73%
18,41%
Acre
40,28%
-
3,83%
-
Amazonas
60,87%
-89,52%
5,42%
-22,17%
Roraima
54,02%
-
4,92%
-
Pará
49,81%
3903,70%
4,59%
50,68%
Amapá
51,96%
-
4,76%
-
Tocantins
14,99%
268,92%
1,56%
15,61%
Maranhão
52,09%
122,75%
4,77%
9,31%
Mato Grosso
31,92%
69,08%
3,13%
6,01%
Fonte: Elaboração própria segundo dados do IBGE
Se não restam dúvidas de que o efetivo bovino não recuou na região Amazônica,
a redução das áreas de pastagem só poderia ocorrer em razão de uma elevação
consistente da taxa de lotação, suficiente para comportar, de um lado, o crescimento do
número de cabeças de gado no período, e de outro, as perdas de área sofridas para a
expansão da sojicultura.
Na literatura correlata é possível encontrar uma multiplicidade de taxas
estimadas de lotação atribuíveis à pecuária brasileira. A necessidade de se estimar tais
taxas reside no fato de que a disponibilidade desse dado ocorre por ocasião da
divulgação do Censo Agropecuário, que fornece de tempos em tempos uma fotografia
das condições de produtividade da pecuária no país. A exemplo, o último Censo
Agropecuário fornece a taxa média de lotação de 1,08 cabeças por hectare para o ano de
2006, em comparação com a taxa de0,86 cabeças de gado por hectare referente ao ano
de 1996. Entretanto, a trajetória evolutiva dessa taxa se perde em função da metodologia
de cálculo e de coleta dos dados.
Optou-se aqui por calcular a variação anual média da taxa de lotação das
pastagens ocorrida entre 1996 e 2006. Posteriormente, extrapolou-se esse número até o
ano de 2011, assumindo que durante todo o período a variação de um ano para o outro
foi homogênea. 73 Ainda no Censo Agropecuário de 2006, o IBGE apresenta uma série
73
Esta hipótese foi assumida dada a periodicidade de divulgação dos dados censitários para a
agropecuária brasileira, que ocorre, geralmente, a cada dez anos. Nunca é demais lembrar que o
levantamento de dados para o próximo Censo Agropecuário, marcado para 2015, foi adiado em função do
corte de mais de R$ 500 milhões no orçamento previsto para o IBGE, dificultando ainda mais a
120
intervalada da evolução da taxa de lotação, tendo como ano inicial 1940. Mais uma vez,
optou-se pelo cálculo da taxa média para o período (1940-2006), procedendo a posterior
extrapolação dos valores até o ano de 2011.
No primeiro caso, a taxa de lotação cresceu a uma média aproximada de 2,30%
entre 1996 e 2006. Desse modo, partindo de uma taxa de lotação de 0,86 cabeças por
hectare em 1996, chega-se a uma taxa de 1,21 cabeças por hectares em 2011. No último
caso, a variação anual média da taxa de lotação foi de aproximadamente 1,51%.
Segundo os dados disponibilizados pelo IBGE, a taxa de lotação em 1940 era de 0,4
cabeças de gado por hectare, que crescendo a 1,51% anuais, atingiu em 2011 a taxa
aproximada de 1,16 cabeças de gado por hectare (Gráfico 8):
Gráfico 8: Taxas de lotação estimadas – Brasil
Fonte: Elaboração Própria
Uma vez calculadas as taxas médias de lotação da bovinocultura no Brasil, é
possível estimar a demanda por terras gerada pela expansão do número de cabeças de
gado no período ao dividir o efetivo bovino adicional pelas taxas supracitadas. Em um
primeiro cenário, referente à extrapolação da taxa média de lotação no período 19962006, nota-se para o Brasil uma elevação da relação gado/hectare mais do que suficiente
para comportar o aumento do efetivo bovino no país. Entretanto, seja para a região
norte, para Amazônia Legal, ou mesmo para o estado do Mato Grosso, a intensificação
da pecuária não foi suficiente para zerar a pressão por novas áreas de pastagem. Nesses
elaboração de pesquisas apoiadas em dados oficiais. Sobra, nesse caso, a saída da estimativa para os
valores de algumas variáveis de interesse, tal qual realizado para a taxa de lotação das pastagens.
121
três casos, houve um consistente aumento na demanda por terras, que no melhor dos
casos, se expandiu em mais de 1,6 milhões de hectares, vide tabela 9.
Tabela 9: Área demandada* de pastagem e demanda adicional por terras – 20022011
Fonte: elaboração própria segundo os dados da Pesquisa Pecuária Municipal e do Censo Agropecuário de
2006.
* Valores estimados pelo autor a partir da extrapolação da taxa de lotação para o período 1996-2006.
Para o caso em que a taxa de lotação é obtida pela extrapolação da taxa média do
período 1940-2006, o cenário é ainda mais preocupante, pois a demanda adicional por
terra, além de ser positiva para todos os grupos de análise, foi ainda maior do que
aquela apresentada na tabela 9. É digno de nota o fato de que a demanda adicional por
áreas de pastagem na Amazônia Legal entre 2002 e 2011 superou em tamanho os
estados de Santa Catarina e Sergipe somados (Tabela 10).
Tabela 10: Área demandada** de pastagem e demanda adicional por terras* –
2002-2011
Fonte: elaboração própria segundo os dados da Pesquisa Pecuária Municipal e do Censo Agropecuário de
2006.
* * Valores estimados pelo autor a partir da extrapolação da taxa de lotação para o período 1940-2006.
Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura
(FAO), as áreas de pastagem no Brasil superavam a marca dos 196 milhões de hectares
em 2011, ou aproximadamente 23,2% do território nacional. 74 Na mesma direção
apontam os dados levantados pela FNP (2013), que sustentam que as áreas de pastagem
no Brasil aproximam-se dos 190 milhões de hectares. Como a estimativa da área total
ocupada com pastagem ficou dentro do intervalo aproximado de 176 milhões de
hectares e 183 milhões de hectares, é possível que este exercício tenha superestimado a
74
Disponível em: http://faostat3.fao.org/faostat-gateway/go/to/browse/area/21/E
122
taxa de lotação das pastagens, de modo que a demanda adicional por terras no período
pode ter sido ainda maior do que aquela apresentada acima.
Para ambos os casos listados acima, percebe-se uma expansão da área plantada
de soja acompanhada por uma expansão da demanda por novas pastagens, com exceção
para o Brasil na tabela 9. Nesse sentido, é possível afirmar que a taxa de lotação das
pastagens ficou aquém da necessária para acomodar o crescimento da pecuária bovina
sem gerar pressões sobre a demanda por terras. Deste modo, o avanço da sojicultura
sobre as áreas de pastagem não provoca sua contração, mas apenas o seu deslocamento
para outras localidades.
Quando se entende o processo de tomada de decisões sobre a aquisição e uso da
terra, torna-se imediata a compreensão de que a expansão da área plantada com soja, na
medida em que eleva a demanda por terras, tende a aumentar a competição entre os
diversos usos possíveis para o solo, dentre eles a conservação de florestas. Em todos os
casos estimados acima, tanto a região norte, como a Amazônia Legal, quanto o estado
do Mato Grosso vivenciaram um período de forte expansão das áreas de cultivo de soja
em paralelo como uma expansão da demanda por novas áreas de pastagem. Nesse
sentido, é sintomático o fato da região norte ganhar participação relativa nas taxas de
desmatamento na Amazônia Legal, haja vista a expansão mais acelerada da pecuária e
da sojicultura nessa localidade (Gráfico 9):
Gráfico 9: Participação relativa por grupo de estados nas taxas de desmatamento
da Amazônia Legal
Fonte: elaboração própria
123
Na tabela 11, abaixo, são apresentados os valores referentes ao comportamento
da demanda por terras aráveis no período 2002-2011, em razão das variações sofridas
na área de lavoura (permanente e temporária) e nas áreas de pastagem para os dois
cenários de produtividade estimados anteriormente. Mais uma vez, torna-se evidente o
fato de que a demanda por terras é geograficamente assimétrica, concentrando-se em
áreas de nova fronteira, onde as terras tendem a ser mais baratas. Não por acaso, estimase que as demandas por terras em razão das atividades listadas recaem mais
pesadamente sobre a Amazônia Legal.
Tabela 11: Demanda acumulada por terras no período 2002-11 segundo cenários
estimados para a produtividade bovina – em hectares
Fonte: elaboração própria
* Referente à taxa de lotação é obtida pela extrapolação da taxa média do período 1996-2006.
** Referente à taxa de lotação é obtida pela extrapolação da taxa média do período 1940-2006.
Dois fatos chamam a atenção de imediato. Primeiramente, a redução da demanda
por áreas de pastagem nas regiões sudeste, sul e centro-oeste. A redução das pastagens
nessas regiões tem origem fundada na subtração do rebanho bovino ou no crescimento
deste abaixo da taxa de crescimento da produtividade. Tendo em vista que a demanda
total por terras foi calculada também em razão da expansão da bovinocultura, é de se
esperar que esta cresça mais lentamente, ou mesmo decresça, em áreas onde o preço da
terra é mais elevado. O baixo retorno por hectare da bovinocultura deve ser compensado
124
por baixos preços (as vezes nulos, como no caso das grilagens) pagos pela terra e pela
expectativa de valorização que os agentes têm a seu respeito. 75
A segunda consideração a ser feita em relação à tabela 11 diz respeito ao
decrescimento das áreas de lavoura no Pará. Este decrescimento é o resultado da queda
em área plantada de algumas culturas de lavoura temporária (arroz, milho) e permanente
(Banana). Enquanto a expansão da área plantada com soja somou aproximadamente 104
mil hectares no período 2002-2011, o decrescimento das áreas de lavouras atingiu a
marca de 68 mil hectares. Esta perda na área de lavouras é fruto da retração em 95.535
hectares dos cultivos permanentes contra uma expansão de 27.517 hectares dos cultivos
temporários. Nota-se por esses números que a área adicionada ao cultivo da soja
superou a expansão, em área, das lavouras temporárias (cifra que a própria sojicultura
perfaz). A única maneira disso ocorrer é por meio da recomposição da ocupação do solo
dedicado ao cultivo temporário, o que equivale a dizer que a forte expansão da soja
observada no período significou a retração da área plantada de uma série de outras
culturas anuais (arroz e milho, por exemplo). Os efeitos dessa recomposição sobre a
preservação das áreas de mata nativa ainda são relativamente desconhecidos, e merecem
uma maior atenção de estudos futuros.
IV.2.2 Focos de Propagação do Efeito Indireto Sobre Desmatamento
As pressões impostas pelo avanço da sojicultura sobre a conservação da floresta
e cerrado amazônicos se tornaram ainda mais visíveis no início dos anos 2000. Morton
et al. (2006) estimaram que no estado do Mato Grosso, entre 2001 e 2004, a conversão
de vegetação primária em área de lavoura superou os 5.400 Km2, de um total 33.200
Km2 desmatados em grandes conversões (mais de 25 hectares).
Não tão aparente aos olhos, porém, tem sido o processo de recomposição de
portfólio operado com as terras de fronteira agrícola. A maior rentabilidade da soja em
relação à bovinocultura tem sido funcional para deslocar a pecuária para novas áreas
toda vez que esta ganha a competição da agricultura mecanizada em uma determinada
75
Nunca é demais lembrar que a fronteira agrícola quase-aberta se apresenta muitas vezes como o
principal entrave a expansão da produtividade da pecuária. Em uma situação de fronteira como essa, é
delegado ao pecuarista ou ao agricultor a decisão de intensificar ou desmatar na ocasião da expansão de
sua produção. Se retorno esperado com a intensificação superar o retorno esperado com a conversão,
ambos trazidos para o valor presente, então o produtor optará pela intensificação, caso contrário, a
conversão será a opção escolhida. A grande questão é que a abertura de novas áreas confere aos seus
ocupantes a possibilidade de ganhos patrimoniais extraordinários, que tendem a superar e muito os custos
de legalização da terra, tornando essa opção quase que imbatível.
125
localidade. Esta recomposição, sob a forma de mudança do uso do solo, pode ser
formalizada pela equação (1), proposta por Garrett et al. (2013):
𝑅(𝑈𝑖,𝑗)
𝑃𝑉(𝑈𝑖, 𝑗 ) = ∑𝑛 𝐸 ⌈∏
𝑝(1+𝑟)𝑝
𝑅(𝑈𝑖,𝑘)
⌉ − 𝐶𝑖, 𝑗 ≥ ∑𝑛 𝐸 ⌈∏
𝑝(1+𝑟)𝑝
⌉ − 𝐶𝑖, 𝑘 (1)
Onde; E representa as expectativas,
R(Ui,j) o retorno da terra na localidade i com o uso j,
r a taxa de juros,
p o número de anos,
Ci,jo custo de conversão da terra na localidade i de sua cobertura para o uso j.
De acordo com essa equação, o uso do solo i irá mudar de k para j se, e somente
se, o valor presente do fluxo de renda esperado pelo uso j exceder o valor presente do
fluxo de renda esperado pelo uso k. Toda vez que isso ocorrer, o agente poderá obter
mais moeda ao final do período de retenção da terra com a conversão do uso do solo.
Esta é a formalização do processo que tem impulsionado o deslocamento da pecuária
cada vez mais para o norte do país, reservando a essa atividade o papel de abrir novas
áreas de fronteira e integrar novas terras ao mercado. (YOUNG, 1997 e 2013; YOUNG
et al. 2007; FASIABEN, 2007; ALVARENGA JR & YOUNG 2013).
No que tange ao diferencial de rentabilidade, FNP (2013) estima um lucro médio
de aproximadamente R$74,00 hectare/ano para a pecuária bovina. Isto se deve a baixa
produtividade média dessa atividade em território nacional, algo na ordem de
3,7@/hectare/ano. Segundo os dados disponibilizados na mesma publicação, para a
pecuária equipar seu lucro ao lucro médio das lavouras nos últimos 10 anos, a
produtividade por hectare deveria saltar de 3,7@/ano para 25@/ano, o que geraria o
retorno líquido de R$ 501,00 por hectare/ano. As disparidades são ainda mais
perceptíveis quando comparadas as lavouras de soja e milho; para igualar o retorno
oferecido por estas culturas – cerca de R$700,00 hectare/ano – seria preciso uma
verdadeira revolução técnica na pecuária, capaz de elevar sua produtividade a
35@/hectare/ano.
Longe desse cenário ideal, a pecuária vem perdendo ano a ano milhares de
hectares para a agricultura, sobretudo a mecanizada. Estima-se que nos últimos dez
anos, 7,65 milhões de hectares de pastagem tenham sido convertidos em lavouras, e que
outros 12,5 milhões de hectares receberão a mesma destinação até o ano de 2022 em
126
razão do avanço da produção de cana de açúcar e de grãos. (AGROCONSULT, s/d
apud FNP, 2013; p.40).
Em relação aos focos de propagação do efeito indireto, foram avaliados nove
estados constituintes da Amazônia Legal. Entretanto, apenas Maranhão, Mato Grosso,
Pará, Rondônia e Tocantins constam na análise abaixo, haja vista terem sido os únicos
estados a se apresentarem como produtores de soja durante todo o período de análise.
Foram calculadas as taxas médias de expansão anual da área plantada com soja e
do efetivo bovino para cada um dos municípios pertencentes aos estados listado acima,
entre 2002 e 2011. Os valores encontrados para os municípios foram comparados com
três taxas de corte referentes às mesmas variáveis, porém calculadas para o Brasil,
grande região e unidade da federação pertinentes.
Em todos os estados produtores de soja da Amazônia Legal foi possível observar
municípios em que a expansão acelerada da área plantada de soja ocorreu
concomitantemente à retração ou ao crescimento abaixo da linha de corte do efetivo
bovino, vide figura 5.
Figura 5: Localidade dos Municípios Propaladores do Efeito Indireto
Fonte: Elaboração Própria
Tomando como amostra os municípios produtores de soja e de gado no decênio
considerado – 134, no total –, a remoção (ou perda de participação relativa) da pecuária
127
pelo plantio da soja ocorreu em 29,85% desses municípios, pela a taxa de corte
nacional, em 31,34% dos municípios, pela taxa regional, e em 37,31% dos municípios,
pelo corte estadual (tabela 12).
Tabela 12: Focos propaladores do Efeito Indireto sobre o Desmatamento
Fonte: Elaboração Própria
Dos cinco estados observados, são emblemáticos os casos do Pará e Rondônia,
onde a incidência de municípios em que se observou o deslocamento do gado pela soja
foi consideravelmente elevada. Coincidência ou não, os dois estados em questão
possuem as maiores taxas de expansão da área plantada com o grão entre 2002 e 2011,
3903,7% e 357,5,%, respectivamente.
Em termos precisos, a simples ocorrência da redução ou do crescimento abaixo
da linha de corte do efetivo bovino em municípios de rápida expansão da área plantada
de soja não é suficiente para caracterizar o efeito indireto sobre o desmatamento. Esta é
apenas a origem do processo, a parte fácil de ser identificada. A parte difícil é
justamente o encontrar destino dos recursos (pecuários) que foram forçados
economicamente a se deslocar de uma fronteira para outra, impulsionando novas
conversões.
Todavia, essa segunda etapa não se faz necessária para que se possa afirmar que
o avanço da sojicultura sobre áreas de pastagem esteja gerando pressões sobre as taxas
de desmatamento. A análise da evolução da taxa de lotação das pastagens, estimada no
subtópico anterior, fornece indícios suficientemente fortes para tal, haja vista que em
todos os estados da Amazônia Legal, esta tem crescido a uma taxa anual média inferior
a taxa anual de crescimento do efetivo bovino.
Dentre os trabalhos que buscaram dimensionar o efeito indireto sobre o
desmatamento, destacam-se os de autoria de Lapola et al. (2010) e Arima et al. (2011).
O primeiro trabalho estima o desmatamento provocado indiretamente pela
expansão da produção dos biocombustíveis de primeira geração, cujos principais
insumos são a soja e a cana-de-açúcar. Segundo os autores, a expansão da área lavoura
128
para atender a demanda por biocombustíveis no período 2003-2020 acarretaria no
desmatamento indireto aproximado de 122 mil Km2, dos quais a soja e a cana
responderiam cada uma por quase 50% desta área. 76
Por fim, Arima et al. (2011) utilizam modelos econometria espacial para
capturar os efeitos da expansão da produção mecanizada da soja na fronteira velha sobre
a conversão de florestas em pastagens na fronteira nova. Os autores se utilizaram de três
modelos: mínimos quadrados ordinários (MQO) e dois modelos de dados em painel,
diferindo pela existência (FE2) ou não (FE1) de uma variável defasada para a soja.
Segundo os autores, uma redução em 10% (ou 3910 Km2) da área plantada com soja
entre 2003 e 2008 teria levado a uma queda do desmatamento da ordem de 4061 Km2,
pelo MQO, ou de 10.963 Km2 pelo FE1, ou, ainda, de 26.039 Km2 pelo FE2.
A análise feita para o período recente fornece evidências fortes de que a
expansão do cultivo mecanizado do grão tem deslocado a pecuária bovina para áreas de
mata nativa, haja vista que em nenhum dos cenários construídos foi possível chegar a
uma redução nas áreas de pastagem para os estados constituintes Amazônia Legal.
Sendo assim, ao que parece, a expansão da área plantada com soja, e de forma mais
geral das áreas de lavoura temporária, tem agravado as pressões sobre as taxas de
desmatamento, na medida em que aumenta a competição por terras, aumentando o custo
de oportunidade da conservação de áreas florestadas. 77
Durante o período analisado, foi possível identificar uma quantidade
considerável de municípios onde esse processo de deslocamento da soja pela pecuária
se encontrava em curso. Em termos absolutos, o estado do Mato Grosso se destaca; não
era pra menos, uma vez que o estado é o maior produtor de soja do país além de ser o
estado da Amazônia Legal onde a produção da soja se encontra mais dispersada
espacialmente. Em termos relativos, os estados do Pará, Rondônia e Tocantins
apresentam, a depender do cenário, mais da metade dos seus municípios produtores de
soja na lista de potenciais focos propaladores da mudança indireta no uso da terra. Não
obstante, foram esses os estados de maior taxa média de expansão da soja em todo o
país e, talvez não por acaso, a configuração espacial do desmatamento esteja mudado na
76
Há nesse sentido uma inerente contradição na produção de biocombustíveis de primeira geração, que se
propõe a reduzir as emissões pela substituição da combustão de diesel fóssil por diesel de biomassa, mas
que no fim, termina por estimular as emissões via desmatamento. (ALVARENGA JR. & YOUNG, 2013).
Há de ser dito que o balanço de emissões não zera nesse cálculo. Lapola et al. (2010) demonstraram que a
conversão de 122 mil Km2 de floresta geraria um débito que demoraria cerca de 250 anos para ser pago
pela substituição da queima do diesel fóssil por biodiesel.
77
Para mais sobre o custo de oportunidade da terra, ver Young et al., 2007.
129
direção de reservar a região norte uma parcela cada vez maior das taxas de
desmatamento verificadas na Amazônia Legal.
IV.3 Evidências do Efeito Indireto para o Estado do Mato Grosso
Como visto anteriormente, o estado do Mato Grosso é aquele que se encontra
mais pressionado pela expansão da demanda por terras aráveis, embora as taxas de
desmatamento tenham se reduzido drasticamente dentro de suas fronteiras. Fato é que
reprodução desse padrão de crescimento da demanda por terras concomitantemente a
um possível processo de fechamento da fronteira agrícola (consubstanciado pela
redução das taxas de desmatamento) nesse estado pode terminar ocasionando em um
vazamento das forças do desmatamento para outras localidades, como para os estados
adjacentes da Amazônia Legal.
Em consonância com essa ideia, Arima et al. (2011) demonstrou um íntima
ligação entre a fronteira agrícola intensiva localizada no Mato Grosso e a extensiva
assentada no estado do Amazonas. Segundo os autores, entre 2001 e 2008, o
deslocamento de 80km para o norte da fronteira intensiva ocasionou, a mais de 930km
de distância deste local, em um deslocamento de cerca de 130 km da fronteira extensiva
na direção noroeste.
A forte pressão exercida pela vertiginosa elevação da demanda por terras no
período 2002 e 2011 e a comprovação da mudança indireta no uso do solo pelos autores
acima já seriam suficientes para justificar o aprofundamento da análise feita no tópico
anterior para o caso do Mato Grosso. Somado a isso, o fato desse estado ser o líder em
produção de soja no país e – provavelmente, em consequência disso – apresentar o
maior número de municípios na condição de potenciais propaladores do efeito indireto
dão maior sustentação lógica à escolha aqui feita. Não obstante, deve-se ressaltar que
mesmo após o arrefecimento de suas taxas de desmatamento, o Mato Grosso ainda
ocupa a segunda colocação nesse quesito dentre os estados da Amazônia Legal,
perdendo apenas para o Pará.
Durante todo o período analisado, a demanda incremental por terras no estado do
Mato Grosso foi estimada entre 5,91 milhões de hectares a 7,55 milhões de hectares, o
que representa mais de 43% da demanda adicional por terras de toda Amazônia Legal.
Tão relevante quanto a grandeza da demanda por terra é perceber que tal procura
ocorreu de forma bastante assimétrica dentro das fronteiras mato-grossenses, vide tabela
13 e Figura 6.
130
Tabela 13: Demanda Adicional por Terras, segundo regiões Mato-Grossenses – em
hectares78
Fonte: elaboração própria segundo dados do IBGE.
Figura 6: Microrregiões Mato-Grossenses
Fonte: FNP (2013)
Esta forte assimetria, por sua vez, encontra respaldo no padrão de ocupação do
solo, que tem reservado grande parte das áreas de expansão de lavouras temporárias na
região central do estado e de pastagens ao norte.
Em relação às áreas de lavoura, as regiões de Barra do Garças, Sinop e Tangará
da Serra responderam por cerca de 78% do adicional de área plantada no período.
Destaca-se ainda, a proeminência da soja na área incremental de lavoura e na demanda
78
A delimitação das regiões segue a proposta dos anuários estatísticos Agrianual (2013) e Anualpec
(2013), publicações de autoria da empresa Informa Economics (FNP).
131
total por terra nessas regiões; algo em torno de 61% da variação das áreas de lavoura, ou
ainda, 66% da demanda total por terras no primeiro cenário e 59% no segundo.
No que tange a expansão das áreas de pastagem, é preciso fazer uma distinção
por cenários, ou seja, depende de como a taxa de lotação foi estimada e extrapolada para
o ano de 2011. No primeiro cenário 79, nota-se uma redução quase que generalizada das
áreas de pastagem no estado do Mato Grosso, concentrando quase que exclusivamente a
demanda adicional por as áreas de pastagem nas regiões (mais ao norte) de Aripuanã,
Alta Floresta e Vila Rica. Há ainda nesse cenário, uma pequena elevação nas áreas de
pastagem na região de Pontes e Lacerda. No segundo cenário 80, embora o
decrescimento das áreas de pastagem não seja generalizado no centro e no sul do estado,
o padrão de expansão é o mesmo, reservando a parcela majoritária das novas áreas de
pastagem às três regiões mais ao norte.
O que os dados revelam é que o Mato Grosso possui um padrão bem definido de
expansão da demanda por terras aráveis, em que se é possível observar uma grande
concentração dessa procura na região central e no norte do estado. Enquanto na região
central, a demanda adicional por terras aráveis se explica, em grande medida, pela
expansão das áreas de lavoura temporária, com destaque para o cultivo da soja, na
parcela mais ao norte do estado, a demanda por pastagem representa 90% da procura
total por terras.
É evidente que a vertiginosa elevação da demanda por áreas de lavoura e
pastagem na parcela central e norte do Mato Grosso resulta no aumento do custo de
oportunidade da terra, ou seja, o sacrifício de rentabilidade necessário para se manter a
terra florestada. Deste modo, como era de se esperar, a concentração de grande parte da
demanda por terras nessas localidades desembocou em um padrão semelhante nas taxas
de desmatamento. Quando calculado o incremento da área desmatada no período, ao
desmembrar essa informação pelas mesmas regiões acima citadas, é possível observar
uma clara concentração da perda de vegetação primária nas áreas de maior expansão da
demanda por terras (Gráfico 10).
79
80
Referente a taxa de lotação é obtida pela extrapolação da taxa média do período 1996-2006.
Referente à taxa de lotação é obtida pela extrapolação da taxa média do período 1940-2006.
132
Gráfico 10: Participação relativa das microrregiões no incremento da área
desmatada no Mato Grosso entre 2002-2011.
Fonte: elaboração própria
O padrão das taxas de desmatamento é uma característica sintomática do padrão
de ocupação da terra verificado no período. No centro do estado, nota-se um aumento
da demanda por terras provocada fundamentalmente pela expansão da soja e de algumas
outras culturas de caráter temporário. Para essas regiões, bem como nas regiões ao sul,
as áreas de pastagem cresceram a uma taxa anual inferior a média verificada para Mato
Grosso, ou mesmo decresceram (Tabela 14).
Tabela 14: Taxa estimada média de expansão das áreas de pastagem por região do
Mato Grosso – 2002-2011.
Fonte: Elaboração Própria
133
A perda de área pastagem para outros usos possíveis da terra na região centro-sul
do Mato Grosso fez com que a pecuária deslocasse seu centro nevrálgico cada vez mais
para o norte do estado, fato visível por meio de taxas anuais de crescimento mais
elevadas para o efetivo bovino e para as áreas de pastagem em Aripuanã, Alta Floresta e
Vila Rica. 81
Trazendo a análise mais uma vez para o plano municipal, é possível notar uma
clara relação espacial entre as taxas anuais de expansão do efetivo bovino e incremento
da área desmatada por município. Esta relação é particularmente mais clara ao norte do
estado, justamente nos municípios pertencentes às regiões de Alta Floresta, Aripuanã e
Vila Rica (Figura 7).
Figura 7: Mapa quantílico para a taxa anual de crescimento do rebanho (A) e para
o incremento da área desmatada (B) – 2002-2011
(A)
(B)
Fonte: Elaboração Própria
Já no que diz respeito à relação soja e desmatamento, é possível ver uma relação
mais clara na porção central do estado, nas regiões de Tangará da Serra, Sinop e Barra
do Garças, vide figura 8. Sem dúvida, o caso da região de Sinop é o mais emblemático,
haja vista que entre 2002 e 2011 as áreas de lavouras se expandiram em quase 1,9
milhões de hectares (dos quais a soja contribuiu com 65% deste total), tendo sua
participação no incremento do desmatamento sido de aproximadamente 22%. Para o
mesmo período a variação das áreas de pastagem na região de Sinop foi razoavelmente
baixa, variando entre uma redução de 30 mil hectares no cenário 1 à uma elevação de 60
mil hectares pelo cenário 2.
81
Entre 2002 e 2011 o efetivo bovino do Mato Grosso foi incrementado por mais de 7 milhões de cabeças
de gado, tendo o rebanho da região de Aripuanã crescido em 1,5 milhões de cabeças de gado, de Alta
Floresta em mais de 2 milhões de cabeças de gado e, por fim, Vila Rica, cujo o rebanho cresceu em mais
de 1,25 milhões de cabeças de gado.
134
Figura 8: Mapa quantílico para a taxa anual de crescimento da área plantada com
soja (A) e para o incremento da área desmatada (B) – 2002-2011
(A)
(B)
Fonte: Elaboração Própria
O desmatamento na região central do estado do Mato Grosso sugere que durante
o período as conversões diretas para lavouras foram não desprezíveis. Em consonância
com os dados aqui apresentados está o trabalho de autoria de Morton et al. (2006). Os
autores estimaram que entre 2001 e 2004 aproximadamente 16,26% do total das grandes
conversões (maiores que 25 hectares) foram diretamente ocasionados pela expansão da
área de lavouras. Ainda sobre a participação direta da soja nesse processo, os autores
acentuam:
A shift in clearing dynamics occurred between 2002 and 2003 deforestation. The
fraction of deforested area converted to cattle pasture decreased from 78% to 66%,
whereas direct transitions to cropland increased from 13% to 23%, and the amount
classified as not in production (9–10%) and in small clearings (15–17%) remained
nearly constant. Favorable market conditions for agricultural exports, especially for
soybeans, may have influenced the patterns in land use after deforestation. The mean
annual soybean price during 2001–2004 was related to the amount of deforestation
for cropland in Mato Grosso (R2 _ 0.72).
For all years, the average clearing for cropland was more than twice the size of that
for pasture (cropland mean = 333 ha, SD = 459 ha; pasture mean = 143 ha, SD =267
ha; P = 0.0001). Deforestation for cropland accounted for 28% of the clearings >
200 ha in 2003 compared with 6% of clearings < 200 ha. (Ibid., p.14638).
Ao confrontar a taxa anual média de expansão da área plantada com soja com a
taxa anual média de crescimento do efetivo bovino, mais uma vez, o resultado é
revelador. Nota-se, de maneira geral, que a localidade (região central do Mato Grosso)
onde a área plantada de soja cresce de forma mais acelerada coincide com a localidade
onde o rebanho bovino cresce a menores taxas (Figura 9).
135
Figura 9: Mapa quantílico para a taxa anual de crescimento do efetivo bovino (A)
e para o para a taxa anual de crescimento da área plantada com soja (B) – 20022011
(A)
(B)
Fonte: Elaboração Própria
Em outras palavras, diz-se que a região central do Mato Grosso é região de
maior frequência dos focos propaladores do efeito indireto, vide figura 10, abaixo. De
fato, somadas as regiões de Tangará da Serra, Sinop e Barra do Garças representam
61,54% do total dos municípios em condição de potenciais propagadores do efeito
indireto sobre o desmatamento.
Figura 10: Municípios propaladores do efeito indireto e frequência por região
mato-grossense
Fonte: Elaboração Própria
Mais abaixo foram calculados os preços médios da terra (em R$/Ha) para cada
município mato-grossense para os anos de 2002 e 2011. Os dados mais uma vez foram
apresentados na forma de mapas quantílicos (Figura 11), que facilitam a visualização
quando se opera com um elevado número de municípios (141).
136
Figura 11: Mapa quantílico do Preço Médio da Terra - 2002-2011 – (em R$/Ha)
(A)
2002
(B) 2011
Fonte: Elaboração Própria
Confrontando o preço médio da terra com o padrão de ocupação do solo, alguns
comentários merecem ser feitos. Nota-se, de imediato que as terras mais baratas do
estado se localizam majoritariamente na fronteira com a região norte do país, sendo
justamente nessa localidade onde se foi possível observar uma forte concentração da
demanda por áreas de pastagem no Mato Grosso. Observa-se, ainda, que as parcelas
central e sul do estado concentram o último quartil do preço da terra, com especial
ênfase para as regiões82de Rondonópolis, Tangará da Serra, Sinop e Barra do Garças, ou
seja, as quatro regiões de maior incremento da demanda por áreas de lavoura. Não
obstante, para essas mesmas regiões foi possível notar um decrescimento das áreas de
pastagem, ou, ao menos, um crescimento abaixo da média do estado do Mato Grosso,
comprovando o modelo apresentado no segundo capítulo deste trabalho.
IV.4 Resumo Conclusivo:
É ponto pacífico na literatura sobre o tema que o cultivo da soja apresenta uma
rentabilidade média maior do que a pecuária. Quando se trata da terra como um ativo,
em que sua aquisição e uso estão condicionados às estratégias dos agentes de
valorização da riqueza monetária, o diferencial de rentabilidade acaba por fornecer a
força que emprega dinâmica a mudança do uso do solo. Para os casos em que o retorno
esperado do cultivo da soja excede o da pecuária, é de se esperar que o sojicultor esteja
propenso a pagar um preço maior pela terra do que aquele que o pecuarista aceitaria
receber para se desfazer dela em troca de dinheiro. Este seria o comportamento padrão
de agentes que operam em uma economia monetária da produção, pois ambos os
82
Segundo a categorização da FNP (2012).
137
agentes, ao assim procederem, estariam maximizando a quantidade de moeda sob seu
domínio.
Tanto para Amazônia Legal quanto para o Mato Grosso, é possível encontrar
fortes indícios de que os agentes operam desta maneira quando transacionam com
terras, sendo possível observar um número considerável de municípios (dentre aqueles
que produzem soja) onde a expansão da área plantada com o grão tem ocorrido em
paralelo a uma retração do rebanho bovino ou um crescimento anual médio abaixo das
taxas de corte. Especificamente para o caso do Mato Grosso, foram contabilizados 26
municípios nessa situação, distribuídos espacialmente de forma heterogênea. Dos 26
municípios, 17 se localizam nas regiões de Rondonópolis, Tangará da Serra, Sinop e
Barra do Garças, ou seja, as regiões de maior expansão da demanda por áreas de lavoura
temporária.
Nesse contexto, a acirrada competição por terras nessas regiões encontra-se
refletida nos maiores preços médios por hectare observados nessas localidades. Essa
competição e os preços mais elevados de que dela resultam acabaram revelando um
padrão de expansão da pecuária concentrado no norte do estado, nos municípios cujo
preço médio da terra tende a ser menor. Coincidências a parte, é justamente nessa
localidade onde grande parte do incremento do desmatamento (59%) foi observado para
o período.
138
Conclusão:
Este trabalho se propôs a tratar das mudanças indiretas no uso do solo, focando a
análise na tomada de decisões sobre o uso da terra como forma de entender as forças
econômicas responsáveis pelas transformações das áreas de pastagem em áreas de
lavoura temporária, em uma dada localidade, e de floresta em pastagem, em outra. Mais
do que isso, se dispôs a analisar estas mudanças como fenômenos relacionados, embora
separados espacialmente.
Viu-se pelo referencial teórico aqui utilizado que as decisões sobre o uso do solo
refletem decisões de acumulação, onde os proprietários da terra – em sua acepção ampla
do termo – trocam dinheiro hoje por dinheiro futuro. Dado o fato de que a quantidade de
dinheiro ao final do processo de acumulação depende de fluxos de renda desconhecidos
no momento da tomada da decisão, tem-se que as decisões sobre o uso da terra são
fundamentalmente especulativas. Deste modo, o que move as transformações na
utilização do solo são as expectativas dos agentes sobre a rentabilidade dos diversos
usos possíveis para este recurso. Assim sendo, quando, por exemplo, a soja avança
sobre uma determinada área de pastagem, constata-se que para aquela área se espera um
retorno monetário maior com a sojicultura do que com a pecuária. Tal qual dito
anteriormente, o diferencial de rentabilidade entre os usos concorrentes para a terra é a
verdadeira força motriz para que a malha de ocupações do solo permaneça em constante
movimento.
Em vista destes fatos, a simples constatação feita por esse trabalho de que a
rentabilidade da soja excede a rentabilidade da pecuária é suficiente para entender
porque as pastagens tem perdido área para o avanço das lavouras temporárias. Como
resultado, entre 2002-2011, dos 134 municípios produtores de soja e de gado na região
da Amazônia Legal, foi possível observar em 40 deles que a acelerada expansão da área
plantada com soja se deu concomitantemente a uma retração, ou a crescimento abaixo
da média nacional, do rebanho bovino. Este número foi ainda maior quando utilizadas
as taxas de corte regionais e estaduais, atingindo a marca de 42 e 50 municípios,
respectivamente.
Seria possível argumentar que o avanço da sojicultura sobre os pastos não estaria
gerando pressões sobre a conservação das áreas florestadas, não fosse pelo baixíssimo
crescimento da taxa de lotação das pastagens estimada para o período. Em um primeiro
cenário, a taxa de lotação média estimada para o ano de 2002 era de 1,016 cabeças de
139
gado por hectare, passando ao final do período, em 2011, para a marca de 1,16 cabeças
de gado por hectare. No segundo cenário, a taxa de lotação média estimada saiu de 0,98
cabeças de gado por hectare em 2002, para 1,21 cabeças de gado por hectare em 2011.
Esta trajetória não foi suficiente nem para zerar as pressões na demanda por terras pelo
vertiginoso aumento do rebanho bovino na Amazônia Legal, quanto menos para
compensar as áreas perdidas para o avanço da soja e demais culturas anuais. De fato, tal
qual este trabalho estimou, a introdução de 22 milhões de cabeças de gado na Amazônia
brasileira gerou uma demanda por terras na região entre 7,7 e 12 milhões de hectares.
Ante os números apresentados, a primeira conclusão que se tira é que a relação
entre o gado e a soja na Amazônia não refletiu uma simples relação de substituição,
onde a pecuária cedeu lugar à lavoura. Esta substituição de fato ocorreu, mas seguida a
ela se deu o deslocamento do rebanho para novas áreas.
Uma análise para o caso específico do Mato Grosso ajuda a evidenciar em qual
direção esse deslocamento se deu. De imediato, é preciso dizer que a área central desse
estado concentrou as maiores taxas de expansão da área plantada com soja. Mais além,
essa parcela do território mato-grossense respondeu por cerca de 62% dos municípios
para os quais o avanço acelerado da soja ocorreu em paralelo ou a retração do rebanho,
ou sua expansão a taxas muito baixas.
Durante o período analisado, a demanda por áreas de lavoura na parte central do
estado atingiu a marca de 3,31 milhões de hectares, enquanto as áreas de pastagem se
reduziram em aproximadamente 211 mil hectares, para o primeiro cenário, ou foram
acrescidas em 174 mil hectares para o segundo. Embora positivas, a variação na área de
pastagem nessa localidade ocorreu a taxas muito mais lentas em relação à média matogrossense, o mesmo ocorrido para a parcela mais ao sul deste estado.
As perdas de área de pastagem ou baixo crescimento destas no centro-sul do
Mato Grosso revelaram a sua região norte como o único reduto de franco crescimento
da atividade pecuária. Esta localidade, composta pelas regiões da FNP de Alta Floresta,
Vila Rica e Aripuanã, respondeu por um acréscimo na área de pastagem entre 2,48
milhões de hectares à 3,40 milhões de hectares.
As razões para a concentração do incremento das áreas de pastagem no norte do
Mato Grosso são algumas. Primeiramente, o baixo crescimento das áreas de lavoura
temporária nessa localidade aponta para uma competição ainda incipiente pela terra
entre a sojicultura e a pecuária; sabendo que a segunda atividade dificilmente poderia
resistir ao avanço da primeira. Posteriormente, esta região apresenta possibilidades
140
amplas de acumulação de terras, quando comparadas a região central e sul do estado,
onde grande parte da terra já foi apropriada e titulada. Ademais – e em função desse
segundo aspecto -, as terras nessa parte do estado são em média muito mais baratas do
que àquelas da região centro-sul mato-grossense, sendo, portanto, muito mais cômodas
à exploração de atividades de caráter extensivo, como no caso da pecuária.
Por fim, é preciso ser dito que este padrão de ocupação do solo, ao ser
confrontado com o incremento das taxas de desmatamento no período também revelou
informações relevantes. Entre 2002-2011, as regiões de Aripuanã, Alta Floresta e Vila
Rica concentraram cerca de 60% do incremento das taxas de desmatamento do estado.
Deste modo, o deslocamento da pecuária cada vez mais para o norte tem tido como
subproduto o deslocamento em igual direção das taxas de desmatamento no estado do
Mato Grosso. Embora a rentabilidade da pecuária não tenha sido calculada nesse
trabalho, baseada na literatura utilizada, há indícios de que esse desmatamento seja
vítima não de elevadas quase-rendas fornecidas pela bovinocultura, mas em razão dos
ganhos com a acumulação de terras em nova fronteira.
141
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