Comunicação e novas tecnologias 7.2. Contribuição de Francisco Javier Sancho Más, Nicarágua● VOLTARÁ AO SILÊNCIO? Ainda o esperávamos. Aproximava-se a hora de entrar “no ar”. A atmosfera do estúdio, como todas as noites de programa, inundou-se da fumaça dos cigarros (um atrás do outro) que o diretor fumava sem parar. “Assim, nosso convidado de hoje não se sentirá estranho”, brincou, “pensará que está rodeado de incenso”. Todas as noites o estúdio se transformava em uma bolha de fumo e cabala, palavras suaves e curiosidade. Neste programa, que fazíamos após as notícias das dez, fiz prática de Rádio. A parte central era uma entrevista com uma “personagem”. Era isto mesmo: o personagem. Quando uma pessoa aceita colocar-se diante de um microfone, transforma-se, voltando a ser o que é quando está fora e não o podem ouvir. O diretor nos havia ensinado a vê-lo como a trama de um grande teatro. A fumaça talvez fosse parte dos efeitos especiais. Sabíamos que o convidado chegaria pontualmente, nem um minuto antes ou depois da hora marcada. O diretor do programa e locutor principal nos havia contado maravilhas sobre essa entrevista que havíamos ajudado a preparar naquela ocasião. Em seu afã de que passasse pelo estúdio toda “avis rara” que encontrasse, naquela noite havia conseguido que viesse um monge que vivia em um convento de clausura e, além do mais, tinha voto de silêncio, segundo nos haviam contado. Aos olhos do diretor, um peculiar jornalista com quem acredito que aprendi muitas coisas boas e ruins, o monge parecia exótico o suficiente para ter uma conversa radiofônica com ele durante três quartos de hora e, desta forma, acrescentar um entrevistado a mais, àquele programa líder de audiência naquele horário. As pessoas que havia entrevistado em profundidade provinham de todos os ambientes possíveis. Era uma longa lista de mendigos, antigos sucessos da canção levados ao alcoolismo ou ao jogo, artistas e boêmios de rua, mulheres e homens que se dedicavam à prostituição, traficantes de droga, como também pessoas sem nenhuma fama, que haviam realizado atos de generosidade incríveis. Não havia como aborrecer-se naqueles programas. Como podem imaginar, havíamos visto quase de tudo, e a este personagem em particular, cada um o esperava construindo uma imagem sobre ele. Eu achava que ia chegar caminhando com o rosto oculto sob um enorme capuz, as mãos cruzadas, também ocultas sob as fartas mangas do hábito, como que saído das páginas de “O nome da rosa”. Parece que haviam feito longas reflexões sobre a conveniência de que este religioso comparecesse ao programa e rompesse de alguma forma seu voto de silêncio. Creio que conseguiu uma licença especial, pois chegaram a um consenso de que seria benéfico para a comunidade fazer-se entender melhor ante uma sociedade com a qual apenas tinham contato através de outros canais, mas em meio à qual viviam. Para terminar de pintar a cena mental que eu construía enquanto o esperava, imaginei que, durante o resto do ano, aquele religioso não iria poder pronunciar uma só palavra no convento, nem sequer para expressar alguma dor ou necessidade. Para mim, isso seria pior que o cilício. No entanto, antes de poder fantasiar a história toda, a produtora do programa bateu à porta do estúdio, anunciando-nos que o convidado já havia chegado. Entrou imediatamente. Era um senhor de estatura média, camisa xadrez e calça cinza. Nem sombra do hábito. Tinha o mesmo aspecto que poderia ter meu pai. Seus modos não correspondiam aos de pessoas que não têm costume de ● Jornalista, Manágua (Nicarágua). 1 relacionar-se em sociedade; ao contrário, pareciam totalmente adequados. Ficamos olhando-o espantados, perguntando-nos se aquilo não se tratava de uma fraude. Este era o monge silencioso? Porém, quando a entrevista começou, não tivemos a menor dúvida de que aquele homem era um homem de silêncio. E não porque não falasse. De fato, falou, e muito. O diretor fez-lhe todas as perguntas provocadoras que se possa imaginar: desde o que comiam, como se relacionavam, se havia conflitos e desavenças entre os monges de sua comunidade; como evitavam os desejos sexuais; se alguma vez havia estado a ponto de tirar o hábito: “umas três vezes”, respondeu; “Em todo o tempo que está no convento?”. “Não. A cada dia”. Argumentou o que pode e o que o diretor lhe permitiu, com uma serenidade que ainda recordo. Não encontrávamos nele aquele ponto de loucura que esperávamos de cada personagem convidado para participar do programa. Não sei se o monge sentia-se à vontade ou não, pois não demonstrava uma sensação clara. No entanto, conforme avançava a entrevista, custava-lhe mais e mais explicar-se, traduzir a motivação de sua eleição, a “Grande Causa” que, segundo ele, havia por trás de suas opções. Porém, estava ali por isto mesmo, porque acreditava que devia aproveitar um meio de comunicação que lhe era oferecido, para dizer por canais não habituais o que tinha para dizer. Bom, os meios de comunicação avançaram muito desde então, em muito poucos anos. A oferta digital apresenta um leque enorme de opções. Isto apresenta pontos contra e a favor daqueles que têm uma mensagem a transmitir. A favor, porque é muito mais fácil do que antes que alguém leia o que você escreveu, te escute e te olhe. Contra, porque a saturação da oferta de comunicações é tal que o alcance da mensagem depende de estar armada de uma extraordinária originalidade. O aspecto criativo e a simplicidade da mensagem, ou seja, sua construção e clareza são claves para que tenha impacto. A pergunta seria: “Mas, que impacto desejamos?”. Suponhamos, por exemplo, que nossa mensagem chegue a um grupo de pessoas que havíamos definido como “público alvo”. Poder-se-ia dizer que é uma mensagem bem sucedida, pois realizou a tarefa de uma mensagem: simplesmente chegar. Isto porque, hoje em dia, com a enorme competitividade comunicativa, nem sempre livre, uma mensagem enfrenta problemas comparáveis aos que enfrentava uma pomba mensageira em tempos da Primeira Guerra Mundial. É impossível garantir que chegará de verdade a seu destino. E quando isto acontece, o que vem depois; o que deve acontecer. As pessoas entre 12 e 50 anos, principalmente nos países mais ricos, são os usuários majoritários da Internet. É um público que pode receber nossa mensagem. De acordo. Contudo, há pouco tempo, um diretor de cinema expressava seu desapontamento, dizendo que “as pessoas passam 10 horas diante de um computador e chamam a isso “comunicar-se”. Sem dúvida, há mensagens muito diretas, que causam impacto e movem o internauta a realizar uma ação. Há muitos exemplos de campanhas bem sucedidas. Reflitamos sobre duas. Uma delas, sobre a Anistia Internacional, para conseguir assinaturas contra as penas de morte e as torturas. A distribuição intensiva, o reenvio “viral” de uma animação realizada por computador consegue sensibilizar, utilizando a inocência das emoções. Logo, passa a “pendurar-se” no youtube de forma espontânea, e o número de pessoas que o vêem e se manifestam não pára de crescer. As imagens no vídeo e a chamada simbólica ao espectador são precisas e sem nuances. Aqui o link: http://es.youtube.com/watch?v= MCydPK0fzLA As mensagens transmitidas pela Internet têm a injusta obrigação de se simplificarem de tal forma, que colocam as pessoas em um aperto na hora de decidir se não se estará ultrapassando a fronteira entre a verdade e a demagogia, sentimentalismo ou algo parecido com a falsidade. No entanto, ao simplificar, se recorda algo essencial, algo que todos entendemos de forma rápida e direta, em qualquer parte do mundo. Pode ser difícil explicar as causas, onde estão as responsabilidades, explicar os pormenores e as nuances das culpas; porém, ninguém tem dúvida sobre quem são as vítimas e, portanto, os inocentes. 2 Uma animação semelhante à da Anistia, mas, neste caso, de Médicos sem Fronteiras, circulava através da Internet, televisão e salas de cinema, sobre o dia mundial da AIDS, há dois anos. Também no youtube: http://es.youtube.com/ watch?v=xQ2ibpLyUjY Neste caso, trata-se unicamente de transmitir uma sensação de urgência, algo que deve fazer parar a enorme bola mortal de uma epidemia. Como não sentir-se interpelado a fazer algo, seja o que for? Mensagem direta, reação imediata. Segundo o “expert” Francisco Borranco, o objetivo de uma comunicação é dizer sempre “quem somos e o que oferecemos, pedimos ou denunciamos. Mensagem e Objetivo. Imagem e Conteúdo. Nada mais. Nada menos”. Se isto é assim, qualquer ato de comunicação, por menor que seja, não só fala sobre a situação ou as pessoas sobre as quais falamos, mas fala de nós mesmos também. Uma espécie de carta de apresentação. Às vezes, alguém pode se perguntar se tem ou não legitimidade para falar sobre certas coisas. Se se carece de informação, de proximidade física ou emocional, ou de representatividade, não se deveria falar em nome de nada nem de ninguém. Pois bem, qualquer pessoa que se sinta tocada por uma mensagem, especialmente quando se trata da mensagem de uma felicidade ou de uma dor, um sofrimento humano, pode falar, não em nome de, mas ser simplesmente um eco, colocar-se, para que a mensagem não deixe de ressoar. Esta é a função que a comunicação virtual estabelece hoje em dia, e a que os internautas, por exemplo, têm. Basta recordar como, através do “Facebook”, por exemplo, chegou-se a convocar marchas multitudinárias a favor da paz na Colômbia, em diversas cidades do mundo. A gravação e disseminação de vídeos através de celulares e os SMS escapam a todo tipo de controle e censura, inclusive quando falamos de férreas ditaduras. Através deste meio de comunicação, soubemos dos graves acontecimentos que sucediam no Tibet e da repressão do exército chinês. Por este meio temos visto as torturas do exército norte-americano no Iraque. No entanto, quando não estamos falando do que entendemos como notícia (uma novidade relativamente atual), torna-se mais complicada a transmissão da mensagem através das tradicionais e das novas tecnologias. Como transmitir a solidão de uma mulher que se encontra há dez anos em cativeiro, em Darfur, ou na Colômbia, ou no leste da República Democrática do Congo, em favor da qual não se pode fazer muito mais que solidarizar-se? Como transmitir conceitos tão diferentes? Lembro-me de uma pergunta que fizemos a um jovem de quatorze anos, no leste do Congo, uma pergunta simples, pela qual se inicia uma entrevista: De onde você é? Respondeu-me: “daqui”, fazendo um círculo no ar com as mãos. Porém, de nenhum lugar em concreto. Sabia onde estava agora, mas não de onde vinha. Havia nascido, como tantos outros, no caminho, no escuro dos bosques. Durante seus quatorze anos, tinha sido sempre excluído em seu próprio país, por causa da violência, e não tinha consciência de sua origem. Como explicar, em tão pouco tempo, as duas linguagens que entre nós e ele se estabeleciam como impossíveis? Como fazer com que sua solidão chegue aos olhos e ao coração, e conseguir uma resposta mais duradoura e não tão breve e imediata como nos exemplos que vimos acima? Para mim, esta é a grande pergunta. Aquela que nos obriga a escolher entre os muitos meios de comunicação que a era digital e ferramentas como a Web 2.0. nos oferecem. Fazer um balanço entre os recursos e o impacto; entre o impacto e a qualidade do compromisso ao qual queremos chamar as pessoas. Para contar algo, é necessário contá-lo em clave humana. As cifras, os dados, sempre dão razão à crueldade de Stalin, a quem se atribui a frase “40.000 mortes não são mais que uma estatística, mas uma só morte pode chegar a ser uma tragédia”. A mensagem que conta a história de uma só mulher ou um só homem é maior que os números, maior ainda que a imagem. Na Nicarágua, quando o furacão Mitch ceifou a vida de mais de 2.500 pessoas de comunidades próximas ao vulcão Casitas, as notícias da tragédia não deixaram de repetir-se, mas a imagem que seria lembrada depois foi a de uma criança respondendo ao presidente dos Estados Unidos, que se encontrava de visita na região e que lhe havia perguntado qual era seu maior desejo, para poder ajudá-lo: “que me devolva meus pais”, disse-lhe diante das câmeras. O presidente ficou em silêncio. 3 Para os que constroem a comunicação, há uma busca desesperada de serem verdadeiros e originais ao mesmo tempo. Há uma enorme dificuldade em ser sempre original. Borges recriava uma frase em que Salomão dizia que “não há nada de novo sobre a terra” e outra na qual Platão dizia que o conhecimento nada mais era que a memória; com isto, concluía que Salomão havia querido dizer, com sua frase, que tudo aquilo que classificamos como “novo”, não é que realmente o seja, mas nos esquecemos de que alguma vez o foi. “A novidade nada mais é que o esquecido”. Porém, como Borges gostava muito de labirintos e de complicar as coisas, eu não lhe faria muito caso, exceto quando afirma que a novidade às vezes consiste em recordar a simplicidade das coisas, por mais complicado que seja o canal que utilizamos. Transmitir o que se é, como se é e como se quer ser. Para que não se esqueçam do personagem do qual lhes falava antes – o monge que, por uma noite, quebrou seu voto de silêncio – conto-lhes que a conversa com o diretor do programa não estava se tornando tão atraente como havíamos pensado, pois as perguntas tinham agarrado em um ponto em que não deixavam de repetir-se. Mas, o que é o silêncio? Para que serve? De que lhe serve? Para que nos serve? O religioso se desdobrava, tentando explicar, sem êxito, até que, cerca das onze da noite, a ponto de acabar a entrevista, recobrou a tranqüilidade e disse ao jornalista: -“Sabe de uma coisa? Você não vai entender o que é o silêncio, senão guardando silêncio, permanecendo em silêncio; compreendo que, no Rádio, isto é um pecado”. O diretor do programa compreendeu o desafio. Não ia fugir dele. Então, respondeulhe: -“Padre, o senhor pensa que não sou capaz de permanecer em silêncio “no ar” diante de um microfone? Quanto tempo deseja que o faça?” - “Três minutos serão suficientes, mas, e os ouvintes?” -“Que o escutem também”, disse; em seguida, pediu a todos que não movessem nem um lápis. Da mesa de controle, um companheiro estava a ponto de levar o dedo indicador à têmpora, para mostrar a loucura repentina do diretor. Prendemos a respiração. De repente, tudo se transformou em um golpe de silêncio surdo no princípio, e depois, uma suavidade; não saberia como explicá-lo. Até que se cumpriram religiosamente os três minutos. A entrevista não continuou, no breve espaço que restava, concluindo de forma muito bonita. Quando nos despedimos do entrevistado, o diretor, ao vê-lo distanciar-se através dos corredores da Rádio, perguntou, sem esperar resposta: “Você acredita que ele voltará ao silêncio?” Não sei se voltou ou se alguma vez chegou a arrepender-se desta aventura, mas o que sei é que, naquele dia, por um instante, acreditávamos entendê-lo. E se me perguntassem agora, não saberia explicar, senão voltando ao silêncio. Às vezes buscamos a originalidade, mil formas de encontrar caminhos de comunicação, esquecendo que dentro de nós reside uma grande capacidade de simplicidade e novidade. Está em nossa raiz dizer o que somos. Agora temos mais meios para dizer algo, porém, muito menos tempo concedido. Não podemos congelá-lo. Apenas alguns segundos para dizer, gritar ou guardar silêncio. Seja o que for, o ideal é que venha do mais profundo de nós mesmos, que a mensagem seja o reflexo do que somos. E ter claro que, às vezes, não é tanto o que se diz, mas o que não se diz. Antes de terminar, gostaria de contar-lhes que, poucos dias depois daquela entrevista, na Rádio nos deram uma notícia curiosa: durante aqueles três minutos de silêncio, havia sido registrado o índice mais alto de audiência daquele horário. Quase nunca se havia superado este índice: 3 minutos em que não se escutou nada… [email protected] 4