Direito de resistência: a desobediência civil como instrumento do pleno exercício da cidadania1 Fabiana Maria Martins Gomes de Castro 2 [email protected] Resumo A sociedade e o direito são caracterizados pela dinamicidade nos aspectos sociais, políticos, econômicos e jurídicos. Por vezes o cidadão ou grupo de cidadão se depara diante de leis injustas e/ou governos com condutas abusivas ou excessivas que extrapolam os limites naturais, circunstâncias que não devem ser admitidas pelo povo. Diante desse cenário, o presente artigo, sem a pretensão de esgotar o tema, tem por finalidade discorrer sobre o direito de resistência e a desobediência civil enquanto instrumento legítimo e adequado para afastar tais abusos e excessos e fazer com que o Estado permaneça fiel aos fins que se propõe, a saber, a pacificação social e o bem comum. O trabalho apresenta a evolução histórica do direito de resistência, analisa e identifica as peculiaridades dos institutos jurídicos do direito de resistência e da desobediência civil e, qualifica a desobediência civil espécie de direito de resistência e instrumento apto para garantir o pleno exercício da cidadania e a efetividade dos instrumentos que reconhecem e tutelam a observância dos fundamentos e princípios do Estado Democrático de Direito. A análise tem como objetivo identificar a relevância da desobediência civil enquanto direito subjetivo individual ou coletivo ou difuso, fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana para garantir de forma não violenta e pública o pleno exercício da cidadania. Palavras-chave Direito de resistência, desobediência civil, princípio da dignidade da pessoa humana Abstract Society and law are characterized by dynamicity of social, political, economical and legal aspects. Many times over, the citizen or a group of them faces unfair laws and/or government abuse of power that goes beyond natural borders - circumstances that should not be tolerated by the people. Given this scenario, the present paper, without the claim of exhausting the theme, aims at discussing the right of resistance and civil disobedience while legitimate and adequate resources to keep away such abuses and to force the state to keep true to its purposes, that is, towork for peacemaking and common good. The paper presents the historical evolution of the right of resistance. It also analyses and identifies the particularities of civil disobedience as a special kind of resistance and as an adequate instrument to guarantee the full exercise of citizenship and the effectiveness of the instruments which recognize and guard the observance of the foundations and principles of the democratic state. The analysis aims at identifying the relevance of civil disobedience as a subjective individual or collective or diffuse right based on the human dignity principle to guarantee, in a public and non-violent way, the full exercise of citizenship. Keywords Right of resistance, civil disobedience, human dignity principle. 1 Trabalho apresentado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, no Programa de Estudos PósGraduação em Direito – Doutorado, como exigência parcial para aprovação na disciplina “Ordenamento Jurídico e Sistemas”. Profa. Doutora Maria Helena Diniz. 2 Bacharel em Direito (Faculdades Toledo). Mestre em Direito das Obrigações (UNESP-Franca). Advogada. Professor Adjunto (Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé – UNIFEG). Professor de Ensino Superior e ATA I (Faculdade de Tecnologia de Mococa). 1. Introdução Para Tércio Sampaio Ferreira Júnior o direito traduz “um dos fenômenos mais 3 notáveis na vida humana (...) é o ministério do princípio e do fim da sociabilidade humana” . Neste 4 mesmo sentido para Miguel Reale “representa uma das dimensões essenciais da vida humana” , pois tem a tarefa de concretizar os ideais de justiça e pessoa é o valor-fonte. Nos ensinamentos do autor o direito é “a realização ordenada e garantida do bem comum numa estrutura 5 tridimensional bilateral atributiva” . Do mesmo modo, compete ao legislador, na função de estabelecer as leis, estar atento aos anseios sociais e elaborar leis justas. Neste sentido, Paulo Nader pondera que “semelhante ao trabalho de um sismógrafo, que acusa as vibrações havidas no solo, o legislador 6 deve estar sensível às mudanças sociais, registrando-as, nas leis e nos códigos, o novo Direito” . A participação política dos membros da sociedade traduz o exercício efetivo da cidadania e viabiliza o desenvolvimento da pessoa de forma integral e integrada o objetivo de atingir a pacificação social e o bem comum. O art. 1º da Constituição Federal de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil constitui Estado Democrático de Direito sob os fundamentos da soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e livre iniciativa e pluralismo político. A cidadania é compreendida como atributo político da pessoa para que tenha o direito de participar 7 das questões governamentais e também ser ouvido pela representação política. É neste contexto que as pessoas ao exercerem a cidadania possuem a faculdade (direito subjetivo), diante de determinado cenário social, de fazer uso do direito de resistência ou da desobediência civil para impedir os excessos e abusos do poder estatal. É importante destacar que a ideia de resistência remonta desde a Idade Antiga até os dias atuais e relaciona-se com o tempo e espaço frente ao poder político caracterizado pelo abuso ou arbitrariedade, circunstâncias que não devem ser admitidas pelo povo e, portanto, devem diante desse cenário buscar e/ou resgatar os fins almejados pelo Estado. Já a desobediência civil é uma das formas de manifestação do direito de resistência não violenta e pública que ocorre no âmago do ordenamento jurídico para que o poder instituído mude a ordem jurídica vigente e via de consequencia resguarde os direitos e garantias fundamentais. Nesta seara, José Carlos Buzanello pontifica que “as várias posições políticas da resistência operam na busca de fontes formais ou informais que legitimem o seu exercício no Estado de Direito. A resistência procura sua legitimidade moral na dignidade humana, solidifica como princípio jurídico, mas a sua justificação transcende a evocação dos princípios éticos, pois 8 tem de ser juridicamente fundamentada, seja no jusnaturalismo ou no positivismo jurídico”. No escólio de Maria Helena Diniz o direito de resistência é reconhecido quando houver abuso de poder para exercer opressão irremediável, surge o direito de resistência, que no sentido amplo, reconhece aos cidadãos, em certas condições, a recusa à obediência, a oposição às normas injustas, à resistência, à opressão e à revolução. Tal direito concretiza-se pela repulsa a preceitos constitucionais discordantes da noção popular de justiça; à violação do governante da ideia de direito de que procede o poder, cujas prerrogativas exerce, e pela vontade de estabelecer uma nova ordem jurídica, ante a falta de 9 eco da ordem vigente na consciência jurídica dos membros da coletividade. O presente trabalho, sem a pretensão de esgotar o tema, apresenta a evolução histórica do direito de resistência, analisa e identifica as peculiaridades dos institutos jurídicos do direito de resistência e desobediência civil e, qualifica a desobediência civil como direito fundamental no exercício de seus direitos subjetivos para garantir o pleno exercício da cidadania e a efetividade dos instrumentos que reconhecem e tutelam a observância dos fundamentos e princípios do Estado Democrático de Direito. 3 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2001. p. 21. 4 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 68. 5 Id. idid., p. 67. 6 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 28. 7 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 348-349. 8 BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. Disponível em <periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15391/13974>. Acesso em 28 fev. 2013 9 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 102. 2. Evolução histórica do direito de resistência Na Idade Antiga a ideia de resistência estava atrelada tanto ao mau governo e governante quanto às leis injustas. O Código de Hamurabi previa a rebelião como castigo ao mau governante que não respeitasse as leis. Na Grécia Sófocles simboliza a resistência na figura de Antígona e Platão e admite o exercício de resistência desde que presente qualquer necessidade suprema do espírito. Em Roma há notícia de várias formas de manifestação do direito de resistência no tocante aos sofrimentos dos escravos romanos e dos cristãos, nos martírios públicos e na perseguição. Já na Idade Média há indícios nos assuntos relacionados aos abusos cometidos pelos monarcas tiranos e de fragmentos extraídos dos pensamentos de Santo Agostinho e São Tomas de Aquino. O pensamento agostiniano admite a resistência de um homem reto e poderoso frente ao governo de gente malvada e criminoso e o tomista preconiza que o bem comum é a medida e o limite do direito do direito de resistência, e é justificado quando presente a opressão ao bem comum. Machado Paupério identifica a recusa à obediência num tríplice aspecto, a saber, a oposição às leis injustas, a resistência à opressão e a revolução em razão da insuficiência das sanções jurídicas institucionalizadas e conclui que durante a Idade Média admitia-se a resistência 10 ao soberano quando este exercia o poder de forma tirana. É nesta conjectura que o autor justifica o reconhecimento do exercício do direito à desobediência, pois “Frequentemente as sanções jurídicas organizadas contra o abuso de Poder não são suficientes para conter a injustiça da lei ou dos governantes, pois estes, quando extravasados de seus naturais limites, muitas vezes não podem ser contidos por normas 11 superiores que já não respeitam”. No período da laicização do direito John Locke identifica o direito de resistência decorrente de relação contratual, pois de um lado o Estado tem o direito e poder de fazer e executar as leis e a obrigação de respeitar as liberdades individuais por outro lado, os cidadãos tem seus direitos civis e políticos e a obrigação de obedecer às leis. Para Maria Garcia o direito de resistência traduz o instrumento político de aperfeiçoamento do Estado “uma vez que não havia ruptura completa das instituições mas tãosomente de novo poder legislativo, ou em outros termos, em Locke, o ‘direito de resistência que, pela primeira vez assumia a forma de um requisito de cidadania apresentava o método excepcional de modificações políticas, quando os processos institucionais se mostravam 12 insuficientes’”. Arremata a autora que o povo é soberano e não abdicou de todos os seus direitos que lhe são inerentes, apenas os delegou. Assim, as condutas que caracterizam prevaricações, abusos ou artifícios justificam o levante e a tentativa do povo assegurar uma nova ordem que 13 observe os fins pelos quais o governo foi erigido. Todavia, como adverte Machado Paupério somente a partir do século XVIII o direito de resistência encontra fundamento na concepção ampla de direito individual de rebelião, pois o povo não deve admitir os abusos da tirania. Esse cenário conduz a inclusão desses direitos na 14 Constituição francesa em 1793 entre os direitos do homem. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1973 estabelecia in verbis, respectivamente que: Artigo 9 – A lei deve proteger a liberdade pública contra a opressão dos que governam. Artigo 33 – A resistência à opressão é consequencia dos outros direitos do homem. Artigo 34 – Há opressão contra o corpo social quando se oprime um único de seus membros. Há opressão contra cada membro quando se oprime o corpo social. 10 PAUPÉRIO, Machado apud Maria Garcia. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 157. Segundo o autor a oposição às leis injustas caracteriza-se pela repulsa de um preceito determinado ou um conjunto de prescrições em discordância com a lei moral; já a resistência à opressão de dá pela revolta contra a violação de prerrogativas exercida pelo Poder e a revolução pela vontade de estabelecer uma nova ordem, uma vez que a ordem vigente na sociedade não atinge o bem comum. 11 PAUPÉRIO, Machado apud Maria Garcia. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 157. 12 GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 163/164. 13 Id. ibid., p. 164. 14 PAUPÉRIO, Machado apud Maria Garcia. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 164/165. Artigo 35 – Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é para este e para cada porção deste o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres. O autor registra, ainda, os juristas que enfrentaram a questão do direito de resistência no século XVIII e reconheceram a sua legitimidade, dentre eles destacam-se Savigny para quem o direito decorre do espírito geral que une todos os membros da nação, justifica a revolução que tenha por objetivo a substituição do governo que se oponha as transformações reclamadas pelo espírito nacional. Bluntschli justifica a revolução em termos semelhantes. Ihering, para quem, em determinados casos, ‘a força deve sacrificar o direito e salvar a existência da nação’, Benjamin Constant, segundo o qual, quando a Constituição passa a ser violada já não há, de direito, governo, e cumpre, para mantê-la, opor a força à força. Vareilles Sommières: o direito de resistência justifica-se pela ideia de 15 legítima defesa. Vê-se, portanto, que a legitimidade ao direito de resistência, neste período, resta fundamentada para coibir os abusos, os excessos e as arbitrariedades ante a ausência de consistência, unicidade e sistematicidade da ordem jurídica. As sanções institucionalizadas pelo Estado são insuficientes para coibir os desvios cometidos pelo poder instituído. 3. Direito de resistência José Carlos Buzanello aponta que as questões que envolvem o direito de resistência referem-se “ao funcionamento do sistema de poder, às estruturas de governo, aos agentes 16 políticos, às práticas sociais e às instituições jurídicas”. ´ Nos ensinamentos do autor este direito comporta duas variáveis, uma política e outra jurídica. A primeira se manifesta pela capacidade de pessoa ou grupo se recusar a cumprir determinada obrigação jurídica por razões jurídicas, políticas ou morais. A segunda se dá pela realidade constitucional em que são qualificados gestos que indicam enfrentamento, seja por ação ou omissão, do ato injusto das normas jurídicas, do governo, do regime político e também de 17 terceiros. Para Norberto Bobbio a ideia institucional do direito de resistência se dá de forma gradativa, pois o Estado liberal e (posteriormente) democrático, que se instaurou progressivamente ao longo de todo o arco do século passado, foi caracterizado por um processo de acolhimento e regulamentação das várias exigências provenientes da burguesia em ascensão, no sentido de conter e delimitar o poder tradicional. Dado que tais exigências tinham sido feitas em nome ou sob a espécie do direito à resistência ou à revolução, o processo que deu lugar ao Estado liberal e democrático pode ser corretamente chamado de processo de 18 constitucionalização do direito de resistência e de revolução. 19 Neste sentido, Maria Garcia destaca que a Lei Fundamental da então República Federal da Alemanha de 1949 entre os princípios constitucionais admitia o direito de resistência ao prever no art. 20, (3) e (4), respectivamente que “o poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito e, não havendo outra alternativa, todos os alemães têm direito de resistir contra quem tentar subverter essa ordem”. Já 15 GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 165. BUZANELLO, José Carlos. Em torno da Constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 42, n. 168, out./dez. 2005, p. 20. 17 BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. Disponível em <periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15391/13974>. Acesso em 28 fev. 2013. Acrescenta o autor que “a determinação material dos conceitos enfatiza critérios que possibilitam aspectos gerais (políticos) e específicos (jurídicos) que permitem aduzir que: a) ambas admitem a ampliação teórica do fenômeno da resistência, independente do ordenamento jurídico; b) os elementos conceituais se apresentam formalmente dependentes dos demais direitos e garantias constitucionais, pois não possuem autonomia específica relativamente ao ordenamento jurídico; c) quando reconhecido o direito de resistência, do ponto de vista material, significa um reforço das garantias fundamentais que não permitem a dissolução da sociedade (John Locke); d) quando a resistência for institucionalizada sua efetividade fica reforçada, assegurada, desse modo, não só sua substância como também sua defesa contra modificações ilegítimas que visem à dissolução do Estado, temor maior de Thomas Hobbes” (p. 16/17) 18 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad.: de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 147 e 148. 19 GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 171/172. 16 a Constituição Portuguesa de 1982 no art. 21.º intitulado direito de resistência dispunha que “todos têm o direito de resistir à qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade”. Machado Paupério declara como favorável a inscrição desses direitos nos textos constitucionais, pois se trata de um fenômeno sociojurídico e para tanto é indispensável o caráter público e coletivo para que seja possível a sua efetivação e inclusão no ordenamento jurídico 20 constitucional. A legitimidade traduz o bem a realizar. Neste contexto, segundo o autor o direito de resistência deve revestir de características indispensáveis, quais sejam, o caráter público e coletivo, a existência de poder arbitrário, a ideia de bem comum, o caráter de necessário, útil e proporcional e, por fim a ofensa de direitos dos cidadãos. No escólio de Maria Helena Diniz o direito de resistência não representa uma ofensa ou afronta à autoridade, “mas sim proteção à ordem jurídica, que se fundamenta na ideia de um bem a realizar. Se o poder desprezar a ideia de direito, é legítima a resistência, porem será 21 preciso que a opressão seja manifesta, intolerável e irremediável”. Segundo a autora a garantia implícita de resistência à ilegalidade está fundamentada no princípio da legalidade, art. 5º, II da Constituição Federal de 1998. E, ainda, constitui instrumento jurídico hábil para garantir ao cidadão ou grupos de cidadãos meios para repelir qualquer forma de ofensa aos seus direitos, liberdades e garantias por se tratar de um direito fundamental, ou seja, é a proteção à ordem jurídica. 3.1. Análise do direito de resistência sob o aspecto explícito e implícito Para José Carlos Buzanello o direito de resistência na Constituição Federal de 1988 22 está dimensionado no aspecto explícito e implícito. O primeiro, a Constituição Federal de 1988 assegura material e formalmente a resistência, ou seja, estabelece de forma difusa no âmbito material e consigna os direitos políticos e civis no âmbito formal. Segundo o autor a resistência na seara constitucional se apresenta quando a reconhece como fato empírico e quando a submete à efetividade normativa no tocante a objeção de consciência, greve política e o princípio da autodeterminação dos povos. Nas palavras do autor Caso haja violação do Estado Democrático de Direito ou ofensa aos direitos fundamentais, surge em tela a resistência, como argumento jurídico e político, na tentativa imperiosa do retorno à ordem democrática. O direito de resistência, portanto, pressupõe mais do que a simples admissão formal no texto constitucional, mais uma ‘relação justa’ entre o comando normativo e as práticas 23 constitucionais. Ademais, os princípios explícitos estão previstos em todo o texto, mas principalmente na abertura da Constituição e são denominados de fundamentos, objetivos e princípios. Já os princípios implícitos encontram-se de forma difusa no texto constitucional, tais como o princípio da liberdade geral em que tudo é livre, exceto no que for proibido, decorrente do princípio da legalidade (art. 5º, II); da finalidade do Estado em realizar a justiça e o bem-estar social; da qualidade de vida física e mental; da legitimidade do título e do exercício do governante. Neste contexto, José Carlos Buzanello adverte que a Constituição, ao reconhecer o direito de resistência, age dentro de uma unidade de valor de defesa do sistema de direitos fundamentais e também da concordância estrutural do direito de resistência com a ordem constitucional, que se assenta na defesa do regime democrático e dos direitos fundamentais. Então, a unidade de valor constitucional está nos direitos e garantias fundamentais e no regime democrático. O sistema aberto se relaciona com valores constitucionais, como o pluralismo jurídico, que recepciona princípios políticos e jurídicos da igualdade e da fraternidade, o pluralismo de ideais, a liberdade de expressão, a 24 liberdade de reunião e a liberdade de associação. 20 Id. ibid., p. 167. DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 103. BUZANELLO, José Carlos. Em torno da Constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 42, n. 168, out./dez. 2005, p. 20. 23 Id. ibid., p. 22. 24 Id. ibid., p. 23. 21 22 O segundo aspecto encontra sua essencialidade na materialidade dos princípios do regime democrático da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político que sob a forma de fundamento do Estado Democrático de Direito viabiliza a abertura e a integração do ordenamento constitucional e a constitucionalização das espécies de direito de resistência. José Carlos Buzanello justifica que a resistência implícita se sustenta pela exegese do art. 5º, § 2º da Constituição Federal de 1988, ou seja, traz à colação aos direitos fundamentais, entre eles os individuais. A resistência implícita lícita está assegurada dentro de certos limites normativos, tais como a legítima defesa civil ou penal e no estado de necessidade e pressupõe uma agressão injusta e via de consequencia admite o ato ou efeito de resistir, qualidade de resistente, defesa em favor de direitos e contra-ataque e defesa contra constrangimento ou ordem 25 ilegal ou injusta. Já a resistência implícita ilícita assenta-se em tipos penais, como crimes constitucionais (art. 5º, XLIV da CF/88), o crime de resistência (art. 329 do CP) e o crime de desobediência (art. 330, CP). Adverte José Carlos Buzanello que a defesa do direito de resistência em nenhuma hipótese pode ser interpretada como escudo de proteção de atividades ilícitas, nem como argumento para afastar a responsabilidade civil ou penal por atos criminosos. A Constituição Federal estabelece restrições para configurar o crime constitucional: sujeito ativo – ação armada de grupos civis ou militares, objeto – contra a ordem constitucional e o Estado democrático e 26 sujeito passivo – o Estado democrático. Deste modo, afirma-se que o direito de resistência é direito fundamental. Nos ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet o sistema dos direitos fundamentais é aberto e flexível pela afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana que traduz o núcleo central de todas as reivindicações e a interpretação sistemática por meio dos mecanismos de ponderação e 27 harmonização dos princípios implica na hierarquização dos valores em pauta. Para Ingo Wolfgang Sarlet o princípio da dignidade da pessoa humana revela a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano o que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida 28 em comunhão com os demais seres humanos. Do mesmo modo, Cármem Lúcia Antunes Rocha qualifica o princípio da dignidade da pessoa humana como valor fundante do sistema jurídico e coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana. Nas palavras da autora o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se, então, valor fundante do sistema no qual se alberga, como espinha dorsal da elaboração normativa, exatamente os direitos fundamentais do homem. Aquele princípio converteu-se, pois, no coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana estampado nos direitos fundamentais acolhidos e assegurados na forma posta no sistema 29 constitucional. Infere-se que o sistema jurídico-constitucional brasileiro ao admitir o direito de resistência como direito fundamental incorpora-o ao patrimônio jurídico da cidadania e por tal motivo não há como cogitar a possibilidade de suprimi-lo uma vez que objetiva o exercício das prerrogativas inerentes a todos os cidadãos ou grupos de cidadãos, ou seja, é o instrumento 25 BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. Disponível em <periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15391/13974>. Acesso em 28 fev. 2013. 26 Id. ibidem. 27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 73-75. 28 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídicoconstitucional necessária e possível. Revista brasileira de Direito Constitucional. n. 9. jan./jun. 2007. p. 383. 29 ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Disponível em <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32229-38415-1-PB.pdf>. Acesso em 28 fev. 2013. Acrescenta a autora que “A constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana não retrata apenas uma modificação parcial dos textos fundamentais dos Estados contemporâneos. Antes, traduz-se ali um novo momento do conteúdo do Direito, o qual tem a sua vertente no valor supremo da pessoa humana considerada em sua dignidade incontornável, inquestionável e impositiva, e uma nova concepção de Constituição, pois a partir do acolhimento daquele valor tornado princípio em seu sistema de normas fundamentais, mudou-se o modelo jurídico-constitucional que passa, então, de um paradigma de preceitos, antes vigente, para um figurino normativo de princípios”. jurídico hábil e adequado ao pleno exercício da cidade com o objetivo de fazer com que o Estado permaneça fiel aos fins que se propõe, a saber, a pacificação social e o bem comum. 3.2. Classificação do direito de resistência José Carlos Buzanello aduz que a matriz classificatória está no gênero direito de resistência e nas espécies, a saber, objeção de consciência, greve política, princípio político da autodeterminação do povo, direito à revolução e desobediência civil de acordo com a sua unidade 30 temática. No tocante às espécies entende-se por objeção de consciência a recusa ao cumprimento de deveres incompatíveis com as convicções morais, políticas e filosóficas, numa pretensão de direito individual de obrigação imposta pelo Estado a todos indistintamente. A Constituição Federal de 1988 prevê duas perspectivas, uma como escusa genérica de consciência – art. 5º, VIII e outra enquanto escusa restritiva ao serviço militar – art. 143, § 1º. Já a greve não é somente uma prova de força no confronto, mas também um fator de identidade que permite aos trabalhadores se reconhecer como classe em oposição a outra. Apresenta-se de forma coletiva e exige um grau de organização e de ação política e jurídica. É medida excepcional como a legítima 31 defesa, a defesa possessória e o estado de necessidade. O princípio político da autodeterminação do povo assegura a livre organização política e a soberania às nações e apresenta-se em duas ordens, qual seja, a nacional e internacional. Na primeira o povo luta por exercer o direito de escolha e a forma de governo e essa perspectiva abraça a liberdade dos povos em formar um novo Estado, mediante a luta pela soberania, por não mais querer estar submetido à soberania de outro Estado contra a sua vontade. A Constituição Federal de 1988 descreve no art. 4º, III a autodeterminação dos povos como princípio político de direito internacional. O direito à revolução para esmagar as tiranias que espezinha a liberdade do povo e admite-se até que seja exercida com extrema violência. Negar esse direito seria desconhecer o direito à dignidade da pessoa humana e o direito do povo 32 defender pela força seus direitos fundamentais agredidos. 4. Desobediência civil: espécie de manifestação do direito de resistência E, dentre as espécies de direito de resistência tem-se a desobediência civil como mecanismo indireto de participação da sociedade, já que possui conteúdo simbólico, pois geralmente se orienta para a deslegitimação da autoridade pública ou de uma lei, como a perturbação do funcionamento de uma instituição, a fim de atingir as pessoas situadas em seus centros de decisão. Nos ensinamentos de Hannah Arendt a desobediência civil exerce papel fundamental nos Estados Democráticos, pois permite o desenvolvimento da liberdade e do bem estar de todos os seus cidadãos. Nesta perspectiva aponta que esse direito é marcado por quatro características, a saber, (i) a presença de movimento coletivo; (ii) a necessidade da coletividade partilhar as opiniões no tocante às ações, decisões e normas estabelecidas pelo Estado como injustas; (iii) a 33 condição pública e (iv) o caráter não violento. Priscila Sparapani assinala que Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino colocam a desobediência civil como “um modo particularizado de desobediência, na medida em que é realizada ‘com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o 34 fim mediato de induzir o legislador a muda-la’”. Maria Garcia ao discorrer sobre o tema apresenta o conceito traçado por Celso Lafer. Segundo o autor desobediência civil é “ação que objetiva a inovação e a mudança da norma por meio da publicidade do ato de transgressão, visando demonstrar a injustiça da lei. Essa transgressão à norma, na desobediência civil, completa – é vista como cumprimento de um dever 35 ético do cidadão – dever que não pretende ter validez numa dada situação concreta e histórica”. 30 BUZANELLO, José Carlos. Em torno da Constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 42, n. 168, out./dez. 2005, p. 24/25. 31 Id. ibid., p. 24/25. 32 Id. ibid. p. 24/25. 33 ARENDT, Hannah. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 60-79. 34 SPARAPANI, Priscilia. O direito de resistência, a desobediência civil e os movimentos sociais internacionais. Cadernos de Direito. Piracicaba, v. 11, jul./dez. 2011, p. 35. 35 GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 274. Acrescenta a autora que “Espécie da categoria do direito de resistência, tradição dominante da filosofia política, como lembra Bobbio – a Antonio Carlos Wolkmer ressalta a importância do tema e pondera que “torna-se um fator de indispensável estabilidade, na medida em que contribui para a superação de injustiças, a 36 erradicação dos polos de conflito e a satisfação dos excluídos da dinâmica Política”. A finalidade é “demonstrar que, das inúmeras práticas de violação da lei nas sociedades ocidentais, a desobediência civil é aquela caracterizada pelo seu teor de consciência, publicidade e não violência, objetivando mudança da lei ou alteração de programa governamental, podendo, mesmo 37 com algumas restrições, ser justificada sob o ponto de vista moral político e jurídico”. Acrescenta o autor que a desobediência civil implica certos requisitos, a saber, a urgência da situação objetivada, a imperiosidade de dar a conhecer pontos de vista, arbitrariamente relegados, opressão das minorias, violações constitucionais para parte dos órgãos 38 estatais. Nesta conjectura, Maria Garcia adverte que a desobediência civil requer certo número de pessoas com identidade de interesses e a não violência, para que sirva tanto para mudanças necessárias e desejadas quanto para a preservação ou restauração necessária e desejada do status quo, ou seja, a preservação dos direitos fundamentais ou restauração do equilíbrio e harmonia dos poderes governamentais. Ademais, segundo a autora a desobediência civil não é revolução, pois é despida de violência, vez que o contestador civil aceita estrutura da autoridade 39 estabelecida e a legitimidade geral dos sistemas de leis ao passo que o revolucionário as rejeita. José Carlos Buzanello classifica a desobediência civil em duas perspectivas, a saber, a direta e a indireta. Esta ocorre quando leis isoladas são desafiadas e permite a variável legal, 40 porém ilegítima, já aquela as leis são desafiadas abertamente. A desobediência civil pode ser desempenhada sob o critério de efetividade, quando os atos são justificáveis como parte de um vasto plano de ação para provocar mudança na lei ou programa de governo, ou sob o critério de expressividade quando os agentes manifestantes encontram justificativas no ato de expressar publicamente o seu repúdio a determinada lei ou 41 política governamental. Antonio Carlos Wolkmer apresenta a classificação de desobediência civil sugerida por Vírginia Held por considerar a mais completa e inovadora, pois Primeiramente, a autora aponta como desobediência civil aqueles atos que são realizados por razoes de consciência, cujos infratores esperam que o preceito inobservado seja declarado inconstitucional num breve período subsequente. O segundo tipo de desobediência civil é aquele em que o agente não tem a pretensão de obter a declaração de inconstitucionalidade no futuro, pois sabe que a lei desobedecida é válida, clara e constitucional. A transgressão de norma visa protestar a influenciar as autoridades para que mudem uma determinada política injusta refletida na lei. O terceiro tipo de desobediência civil ocorre quando o descumprimento do preceito legal se efetiva por acontecimentos meramente incidentais. Essas práticas ocorrem para contestar não propriamente ordens ou leis, mas sim programas governamentais injustos e arbitrários. Exemplos deste tipo de comportamento surgem nas manifestações políticas contrárias à guerra do Vietnã. Por fim, a quarta espécie de desobediência civil emerge como denúncia contra condições ou estados de miséria, pobreza, discriminações sociais, belicismo de tipo, etc. trata-se de um recurso para mobilizar e desencadear reações no seio da opinião pública, no âmbito do 42 eleitorado ou mesmo no contexto da maioria governante. desobediência civil é uma das situações em que a violação da lei é considerada eticamente justificada, e dentro das formas tradicionais de resistência, da passiva à ativa, a desobediência civil, em sentido estrito, é uma forma – que se processa dentro do ordenamento jurídico – destacável dentre as várias modalidades possíveis do direito de resistência. (p. 277). 36 WOLKMER, Antonio Carlos. Desobediência civil nas sociedades democráticas. Sequencia: Estudos jurídicos e políticos. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. v. 11, n. 20. p. 24. Disponível em <http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16224>. Acesso em 28 fev. 2013. 37 Id. ibid. p.21. 38 Id. ibid. p.24. 39 GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 268/270. 40 BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. Disponível em <periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15391/13974>. Acesso em 28 fev .2013. Exemplifica o autor que as grandes campanhas públicas de natureza ativa, coletiva e pacífica contra a discriminação racional nos Estados Unidos e na África do Sul, motivadas respectivamente, por Martin Luther King e Nelson Mandela ou a campanha das Diretas Já, no Brasil são consideradas desobediência civil de forma direta, já a ocupação do solo rural pelos sem-terra (MST), que constitui atos isolados que desafiam a lei de proteção à propriedade privada e tem em mira chamar a atenção para o problema social de reforma agraria é considerada desobediência civil de forma indireta. 41 WOLKMER, Antonio Carlos. Desobediência civil nas sociedades democráticas. Sequencia: Estudos jurídicos e políticos. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. v. 11, n. 20. p.30. Disponível em <http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16224>. Acesso em 28 fev. 2013 42 Id. ibid., p.30/31. No escólio de Antonio Carlos Wolkmer os fundamentos da desobediência civil são justificados no âmbito moral, político e jurídico vez que “a justificativa de determinada ação implica no exame valorativo de um comportamento atribuindo-se motivos ‘em favor de sua aceitação ou 43 execução que qualquer pessoa razoável considerará convincente”. No âmbito moral Antonio Carlos Wolkmer justifica a desobediência civil na concepção de Habermas que identifica “não como meio de ruptura da ordem constitucional, senão que contribui ao diálogo entre os cidadãos de um Estado Democrático, transformando-se, desse modo, 44 numa alternativa válida de participação política para determinados setores da população”. Já no político sustenta que “pode ser um dos meios de romper com a nefasta indolência, sacudindo, mediante violações públicas da lei, consciência dos indivíduos. Chamar a atenção sobre assuntos conflitivos, motivar o cético e instruir ao cidadão poderiam ser objetivos 45 alcançáveis com essa forma de dissenso”. E, no âmbito jurídico preconiza que “independentemente de posturas negativistas e dogmáticas, o certo é que a desobediência civil se revela como um canal apropriado de infração legal legitimada, além de tornar-se uma estratégia adequada para o exercício da cidadania, articulando-se processos jurídicos capazes de revisar toda a atividade governamental através do 46 controle judicial de constitucionalidade”. Maria Garcia reforça que o direito fundamental da desobediência civil “encontra-se vinculado a essa ordem constitucional – sistema aberto e incompleto, de amplitude e terminação – 47 que admite e assimila a desordem consubstanciada na vida social: ordem e desordem” e o regime dos direitos fundamentais consagrado na Constituição Federal de 1988 abrange “no seu sistema, a possibilidade de direitos fundamentais implícitos, decorrentes do regime e princípios 48 adotados pela Constituição – dentre eles, o direito da desobediência civil”. Maria Helena Diniz explica que tanto o direito de resistência quanto a desobediência civil são formas diversificadas de manifestação. A resistência em sentido amplo “reconhece aos cidadãos em certas condições, a recusa à obediência, a oposição às normas injustas, a 49 resistência à opressão e à revolução” e acrescenta que “a resistência é legítima contanto que a ordem que o poder pretende impor seja falsa, divorciada do conceito ou ideia de direito imperante 50 na comunidade” . A desobediência civil é “uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça e a invalidade da lei e 51 com o fim mediato de induzir o poder a mudá-la. Daí ser um ato inovador e não destruidor”. Priscilia Sparapani ao tratar do tema direito de resistência e desobediência civil faz referência a Primavera Árabe como forma de manifestação do direito de resistência, pois os movimentos revolucionários sociais são recorrentes quando o Estado ignora os direitos e as garantias do individuo e perante um governo despótico é preciso resistir para se alcançar o ideal de democracia e as greves na Europa que traduz paralisações e greves gerais enquadram-se também em desobediência civil, pois novamente a questão não é romper a ordem jurídica instituída, mas resguardar os direitos fundamentais e rejeitar as medidas de austeridade impostas na Grécia, Itália, Portugal e Espanha que se pretendem impor no Reino Unido num verdadeiro 52 retrocesso social. Maria Garcia expõe que a corrupção seria sempre uma das causas justificadoras do direito de resistência, pois tanto a corrupção como a opressão são formas correspondentes que motivam a insatisfação dos governados seja qual for o conceito de que se tenha de Estado. A desobediência civil é para a autora uma garantia das prerrogativas da cidadania e a Revolução Jovem de maio de 1968 mostra-se uma reação comovente e extraordinária de todo modo um momento de desobediência civil numa nova concepção de direito, que se afirma não só como 53 exigência do cumprimento dos direitos, mas da instituição de novos direitos. 43 WOLKMER, Antonio Carlos. Desobediência civil nas sociedades democráticas. Sequencia: Estudos jurídicos e políticos. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. v. 11, n. 20. p.31. Disponível em <http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16224>. Acesso em 28 fev. 2013. 44 Id. ibid. p.33. Para o autor o relativismo não consegue dar uma resposta plenamente convincente, pois uma ação que parece ser correta numa sociedade, não implica que parece ser correta em outra sociedade. Já o utilitarismo também parece ser insuficiente, pois supervaloriza o resultado da ação, mas relega para um segundo plano o aspecto essencial da ética normativa, ou seja, a intencionalidade do agente. (p. 31/32). 45 Id. ibid., p.34. 46 Id. ibid., p.36. 47 GARCIA Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 295. 48 Id. ibid. p. 297. 49 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 102. 50 Id. ibid., p. 102. 51 Id. ibid., p. 102. 52 SPARAPANI, Priscilia. O direito de resistência, a desobediência civil e os movimentos sociais internacionais. Cadernos de Direito. Piracicaba, v. 11, jul./dez. 2011, p. 25-35. 53 GARCIA Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: RT, 2004. p. 290. 5. Considerações finais Nos ensinamentos de Rosa Maria de Andrade Nery a vida em sociedade requer a existência de ordem e organização para que seja possível atingir a pacificação social, ou seja, nas palavras da autora “o mínimo de ordem que permita a convivência harmônica de todos é requisito 54 necessário para a mantença da sociedade, que, por essa disposição passa a se organizar” . Depreende-se da análise da evolução histórica do direito de resistência que na antiguidade caracteriza-se pela rejeição do povo as condutas excessiva, abusiva e arbitrária da autoridade governamental ou a imposição de leis injustas sob o fundamento de desrespeitar o direito natural ou o contrato social. A concepção ampla de direito de rebelião se dá com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1793 e via de consequencia as constituições democráticas passam a reconhecer, legitimar e tutelar no processo de constitucionalização tais direitos alicerçados pela ciência jurídica e pela doutrina. Assim, o direito de resistência é direito fundamental e instrumento legítimo do cidadão ou grupo de cidadãos de reação às arbitrariedades governamentais e legais pela afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana como valor fundante do sistema jurídico e coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana. A desobediência civil é uma das formas de manifestação do direito de resistência, consequentemente, dotada das mesmas qualidades – é um direito fundamental e instrumento legítimo para o exercício da cidadania. Todavia, não se confundem, pois enquanto o direito de resistência traduz a proteção à ordem jurídica a desobediência civil revela o mecanismo indireto de participação da sociedade. No escólio de Hannah Arendt a desobediência civil caracteriza-se pela presença de movimento coletivo; pela necessidade da coletividade partilhar as opiniões no tocante às ações, decisões e normas estabelecidas pelo Estado como injustas; pela condição pública e pelo caráter não violento. Ademais, a desobediência civil é direito subjetivo da pessoa na perspectiva de direito fundamental, pois o sistema dos direitos fundamentais é aberto e flexível pela afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana que traduz o patrimônio jurídico moral da pessoa humana. A cidadania é o direito de ter direitos e se demonstra “na expressão política da liberdade, é vértice desta, a liberdade no seu mais elevado grau que vai alcançar a participação no exercício do poder, do governo e da autoridade pública e, nessa dimensão, encontra-se consagrada em termos constitucionais: daí decorre o seu caráter principiológico, de verdade 55 fundante” . Deste modo, direito de resistência reconhece aos cidadãos, em certas situações, o não acatamento da norma jurídica quando esta revela incompatibilidade com o bem comum, princípios e fundamentos do Estado. Esse direito é previsto nas constituições democráticas seja de forma explícita ou implícita. Já a desobediência civil não objetiva romper com todas as instituições, mas sim mantê-la. É direito púbico subjetivo que consiste em medidas ou técnicas de proteção das prerrogativas da cidadania. Admite ao cidadão, sem o uso da violência, alterar ou modificar a ordem jurídica já instituída sempre de forma pública quando for injusta ou inválida, de forma a resguardar os direitos e garantias fundamentais. Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad.: de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1992. BUZANELLO, José Carlos. Em torno da Constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 42, n. 168, out./dez. p. 19-28. 2005. BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. Disponível em <periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15391/13974> p. 09/28. Acesso em 28 fev 2013. DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 2006. 54 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: RT, 2008. p. 12. GARCIA Maria Garcia. 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