III semana de pesquisa em artes 10 a 13 de novembro de 2009 art uerj ensino de arte e cultura “Paixão pela nossa cor”: o Mineiro-pau e a Educação Física Bruno Rodolfo Martins Especialização em História da África e da Diáspora Africana no Brasil – FIS A partir da lei 11.645 procurou-se numa escola evidenciar as marcas africanas na cultura brasileira, trabalhando com turmas de ensino fundamental aspectos artísticos destas influências. Na disciplina Educação Física trabalhamos noções de cultura e vivências com tradições populares. Já neste artigo tratamos de algumas tendências pedagógicas da área, as tradições populares como objetos de estudo, aproveitando para avaliar a aplicação da lei e as questões que surgiram na realização da proposta. Escola; educação física; tradições e culturas populares. Based on the Law 11.645, there has been an effort to find evidences of the African presence in the Brazilian Culture, through working side by side with Fundamental Level students on artistic aspects influenced by this presence. In the course of Physical Education have been subject of study notions of Culture and experiences with popular traditions. In this article, will be presented some pedagogical trends of that matter, having the popular traditions as the main subject while addressing the refered law impacts and the questions that have arisen during the mentioned work. School; Physical Education; popular traditions. Introdução Desde 2008 alguns professores do Colégio Estadual Duque de Caxias, em Duque de Caxias/RJ vinham pensando no desenvolvimento das questões referentes à lei 10.639, ratificada pela 11.645, alterando a LDB de 1996 e incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro145 Brasileira e Indígena”.1 Já em 2009, no planejamento no começo de ano algumas idéias tomaram a forma de um evento na escola, que fora intitulado “Paixão pela nossa cor”, enquanto culminância de trabalhos realizados no segundo bimestre. Primeiramente foi combinado com o turno da tarde (7º, 8º e 9º anos do ensino fundamental), mas depois o turno da manhã (6º ano e ensino médio) aderiu. Para cada turma, um professor ficou responsável por trabalhar questões de cultura africana e afro-descendente (em especial) através da especificidade de cada disciplina. Neste artigo estaremos relatando a nossa experiência e nossa percepção do andamento do projeto, assim como sua culminância, sob a ótica de um professor de Educação Física. Por uma “valorização” da Educação Física Antes de aprofundar as questões do projeto e a participação desta disciplina faz-se necessário identificar certas posições que a Educação Física tem tido nas escolas brasileiras, públicas, e em especial neste colégio estadual. Desde a década de 1960, passando pela ditadura militar em nosso país, existe uma grande campanha em prol das manifestações esportivas. Num primeiro momento, é justamente pela “valorização” da Educação Física que “questionam-se os velhos métodos ginásticos, militaristas, e propõe-se a sua esportivização”, conforme expõe José Finocchio.2 Hoje, ainda se confunde as duas áreas – a educação física e o esporte – como se fossem a mesma coisa ou no mínimo, partes de um mesmo todo. Há certa colaboração para a sustentação deste quadro por campanhas em muitas frentes (por exemplo, pela “mídia”, sistema CREF/CONFEF, governo, programa sociais de “inclusão” etc., assim como os próprios professores da área), esboçando uma necessidade vital de se praticar algum “esporte”. Ciente da forte influência que o “esporte” exerce sobre a Educação Física – esta tem proporcionado quase uma exclusividade destas manifestações no meio escolar. Mesmo depois de um marco na área, o livro de autoria do Coletivo de Autores3, ainda é comum professores sendo formados numa tendência esportivista, e muitas vezes quando no exercício do magistério, desenvolvendo aulas somente com esse foco.4 Enquanto agravante, muitos desses professores (acomodados) têm “dado a bola”, ou seja, têm 146 art uerj III semana de pesquisa em artes feito das aulas de Educação Física Escolar uma recreação, em que, repetidamente, ao longo dos anos dos segmentos e séries, as aulas ficassem reduzidas a futebol para os meninos e queimado para as meninas. Se fosse possível enquadrar estas atitudes em alguma tendência pedagógica, poderíamos chamá-la ironicamente de “tendência bolística”, pois até o corpo discente não reconhece outros conteúdos e estilos de aula como “da Educação Física”... principalmente se não existe a bola em meio às aulas (aulas?). Este é um ponto que permanentemente enfrentamos. Um segundo ponto seria um possível dilema existente na academia sobre o uso de tradições populares como instrumento pedagógico, que normalmente é visto como “folclore”, algo “exótico” e que perpassa por um ensino tradicional e informal. O não-reconhecimento de si mesmo (tanto estudantes como professores) nas manifestações culturais afro-descendentes é visível, palpável e passível de ser problematizado nas escolas. É comum tais culturas serem tratadas só em datas e épocas comemorativas, como se fossem algo bem distante, material e temporalmente, servindo estes momentos para “relembrar como as coisas eram” (como se estas “coisas” não fossem presentes). E quando estudar tais culturas se faz de forma acadêmica, em uma escola, e no nosso caso, em aulas de Educação Física – emerge prontamente uma boa parte de resistência diante deste novo. Resistências estudantis: “Por que estamos fazendo isso nesta aula?”, “o que educação física tem a ver com isso?”, “quero jogar bola, não quero saber disso não!”. Vimos com isso o quanto a concepção de escola marginaliza as identidades negras. E quando isso parte do corpo docente, especialmente? Arísia Barros explicita isso: “Uma das características básicas do currículo escolar é a flexibilidade, entretanto, quando a temática é a negra o verbo mais conjugado é o resistir. Resistir sistematicamente aos preconceitos adquiridos em um processo de má informação e da má formação sobre a África. [...] O corpo organizacional da escola (gestão, professoras e professores) justifica a resistência com alegações diversas. Desde o receio de não ter 147 art uerj III semana de pesquisa em artes informações para aprofundar o assunto, com desculpas pueris como ‘na escola não há alunos/alunas negras... portanto não tem porque trabalhar isso’.”5 Afinal, “o que é Educação Física?” e “por que estamos aqui (na escola)?” Em sala de aula desenvolvemos as possíveis respostas destas perguntas (perguntas que foram feitas nos primeiros dias de aula e não foram respondidas pelas turmas; quando sim, de forma reducionista, por exemplo: “é esporte” ou “é recreação”!?), com o propósito de expor as turmas para a amplitude da área e as formas que estas aulas podem tomar. Partindo delas, foram debatidas noções básicas de cultura e natureza, características dos seres humanos (capacidade de aprender peculiar, capacidade de reflexão, por exemplo) e seus aspectos biológicos e culturais, formas de aprendizado, ensino formal e não-formal, pequena história da instituição escolar e a noção de disciplinas, e uma mostra dos possíveis objetos de estudo da Educação Física. Com relação à área, decidimos adotar, por questões didáticas, a noção de culturas corporais de movimento e/ou culturas de movimento; estas noções estão problematizadas por Jocimar Daolio em “Educação Física e o conceito de cultura”.6 O caso: “mas professor, por que a gente ta fazendo isso...?” Esta pergunta, que traduz certo estranhamento por parte de estudantes durante as aulas em quadra, demonstra o quanto foi “trabalhoso” propor vivências corporais desconhecidas pelas turmas. Mesmo levantando debates em aula sobre a disciplina e os motivos de sua existência numa escola, ou provocando um reconhecimento de suas “práticas” atuais e de suas vidas escolares. A escolha do Mineiro-pau7 se deu pela eminência do projeto, pelo raso domínio possuído pelo professor sobre esta manifestação, pela disponibilidade de material (cabos de vassoura e rádio, áudios e apostilas), pela ausência de bola e de desportos, pelo desafio à atenção e concentração que as turmas carecem, pela oportunidade de romper com esteriótipos da área (para citar alguns motivos).8 A maior provocação, no entanto, foi o fato de ser uma tradição, algo que 148 art uerj III semana de pesquisa em artes não se trabalha criticamente nem de forma ordinária na escola. Uma tradição que poderíamos dizer “afro-descendente” que traria e trouxe à tona questões clássicas de preconceitos – algumas vezes entendidos e rompidos, outras vezes sustentados ou simplesmente ignorados pelas turmas. Muitas vezes havia um boicote de estudantes: ora por que queriam jogar suas bolas, ora por que não estavam disponíveis para aquilo (por vergonha, preguiça e até por doutrinas religiosas). Paixão pela nossa cor: reflexões sobre a aplicação da lei Durante todo o bimestre tivemos algumas reuniões com os professores, mas nem todos puderam participar. As discussões comuns eram: como aconteceria o evento e o que seria apresentado. Em geral, nem entre os professores nem entre as turmas houve um debate consistente acerca dos conhecimentos que a lei sugere, o que provocaria o levantamento de temas como preconceito racial e social, discriminação e racismo, diversidade cultural, respeito mútuo, entre tantos outros como o conhecimento das histórias (e) do continente africano, de seus povos e de suas culturas adaptadas no Novo Mundo. Apesar da maior parte das turmas poder ser considerada majoritariamente “afro-descendente” em algum nível, a identificação com as tarefas durante o bimestre e com aquelas artes que estavam sendo divulgadas pelo dia do evento, com suas “africanidades”, era mínima. Para muitos estudantes todo o projeto servira só como um trabalho, com suas respectivas notas; as discussões que poderiam ter sido eleitas entre os professores e entre as turmas não aconteceram. A intenção original, que era usar a lei como respaldo para debates e tomadas de consciência sobre tantos temas, ficou no papel. No entanto, pela perspectiva da Educação Física, podemos avaliar positivamente uns elementos: (1) serviu como incentivo aos professores da área que enfrentam cotidianamente a resistência a novos conteúdos, a metodologias, diante daquelas turmas que buscam o “mais do mesmo” (futebol e queimado), pouco disponíveis para outros aprendizados; (2) serviu também como incentivo para professores de outras áreas, que vêem empecilhos em trabalhos anormais com toda turma, o que muitas vezes justifica a manutenção das situações que vivemos 149 art uerj III semana de pesquisa em artes dentro da escola – ou seja, muitas vezes a resistência ao novo faz parte do quadro do magistério, antes mesmo de fazer parte da molecada;9 (3) demonstrou para toda escola que é possível trabalhar com muitos outros aspectos da atividade física, expandindo o vivido corporal das turmas com gestuais de diversas manifestações da cultura corporal, em especial, brasileira; (4) pela escolha do Mineiro-pau podemos perceber o quão necessário é este trabalho em torno das questões da lei – em se tratando de uma arte “afro” e de termos trabalhado enfaticamente com sua música, rapidamente preconceitos e repúdios, e boicotes à participação da aula foram praticados. E muitas vezes os professores não são/estão preparados para debater tais questões, fugindo de discussões “polêmicas” ou simplesmente nem tratando da temática; (5) e mostra que existem intenções e trabalhos sendo produzidos, apesar de os PCNs da área desconhecerem “completamente a existência dos afrodescendentes, das populações negras, na história e no cotidiano da vida nacional.” 10 Provocações e emergências: “mas... isso é macumba?” Pelas experiências que temos tido, qualquer manifestação “afro” que decidamos trabalhar, que tenha gestos valorizando o baixo corporal (movimentos com quadril e pernas, pisadas, indicações de movimentos para baixo, para a terra) e musicalidade através de cantos e instrumentos de percussão, é considerada quase que caricaturalmente como macumba. Ao indagar as turmas sobre o que é macumba, muitas vezes não há uma resposta. Quando há, aponta generalizações para várias manifestações do tipo “afro”, mas normalmente as “religiões de matriz africana”. Com isso, podemos aproveitar o momento e problematizar diversos assuntos, correlacionados com a lei, seja a 10.639 ou a 11.645. Investindo nesta aplicabilidade, “o organismo escolar promove o diálogo entre os diversos atores e atrizes do processo, paralelamente produz a argamassa necessária para a moldagem, para a construção coletiva e dialogada de uma pedagogia capaz de superar as limitantes idéias racistas”. 11 No geral, duvidamos que isso tenha acontecido no projeto Paixão pela nossa cor. Chamamos a atenção para alguns temas em especial, como preconceito e discriminação étnico-racial, social e/ou religiosa. No entanto, não se 150 art uerj III semana de pesquisa em artes pode simplesmente discutir com as turmas, é preciso fazê-lo entre todos os agentes escolares, principalmente entre professores. A maioria carrega consigo deficiências em suas formações acadêmicas e sociais, acarretando na reprodução e manutenção destes preconceitos e discriminações. Conforme Nilma Lino Gomes escreve: “No caso específico da educação escolar, ao tentarmos compreender, debater e problematizar a cultura negra, não podemos desconsiderar a existência do racismo e da desigualdade entre negros e brancos em nossa sociedade. Por quê? Porque ao fazermos tal ponderação inevitavelmente nos afastaremos das práticas educativas que, ao tentarem destacar essa cultura no interior da escola ou no discurso pedagógico, ainda a colocam no lugar do exótico e do folclore.” (p.77) 12 Parece que, mais uma vez, os debates sobre “nossa cor” ficaram no âmbito dos planos. As exposições artísticas, que foram trabalhadas em todas as disciplinas participantes, poderiam ter provocado as questões sugeridas pelas leis, mas ficaram reduzidas a um trabalho acrítico “valendo nota”. Notas 1 BRASIL. Presidência da República/Casa Civil. Lei n.10.639, de 9 de janeiro de 2003. disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm acesso em: 25 de agosto de 2009; BRASIL. Presidência da República/Casa Civil. Lei n.11.645, de 10 de março de 2008. disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.html acesso em: 25 de agosto de 2009. 2 FINOCCHIO, José Luiz. A educação física no Brasil. In: CONGRESSO SUL-MATO-GROSSENSE DE ATIVIDADE FÍSICA, 4., 2001. Campo Grande. Educação, saúde, cultura: educação física, educação e sociedade. Anais... Campo Grande: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2001. p. 28-33. disponível em: http://www.boletimef.org/biblioteca/663/A-educacao-fisica-no-Brasil acesso em: 25 de agosto de 2009. 3 COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992. 4 Para uma breve análise de caso, ver o artigo de: VILAÇA, Murilo Mariano; MARQUES, Gabriel Rodrigues Daumas. Educação Física desportivista: considerações críticas à prática, predominantemente vigente, de Educação Física escolar. In: ENCONTRO FLUMINENSE DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR, 10., 2006, Niterói. Lazer e Educação Física escolar. Anais... Niterói: Departamento de Educação Física e Desportos, Universidade Federal Fluminense, 2006. disponível em: http://www.boletimef.org/biblioteca/1730/Consideracoes-criticas-a-pratica-predominante-de- 151 art uerj III semana de pesquisa em artes Educacao-Fisica-escolar acesso em: 25 de agosto de 2009. 5 BARROS, Arísia. O Brasil não quer ser africano: preconceitos e impressões dificultam a educação cidadã em Alagoas e no país. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/blogs/o-brasil-naoquer-ser-africano Acesso em: 13 de maio de 2008. 6 DAOLIO, Jocimar. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas, SP; Autores Associados, 2004. 7 O Mineiro-pau é uma manifestação cultural de algumas cidades do interior do Estado do Rio de Janeiro. Nossa referência básica foi o Mineiro-pau da cidade de Santo Antônio de Pádua. Realiza-se em festas, com músicas próprias para a marcação de danças com bastões, exigindo não só ritmo mas também muita atenção, coordenação e cumplicidade com as outras pessoas dançadoras. 8 Outros materiais de apoio: COMPANHIA FOLCLÓRICA DO RIO. Apostila de Danças e Folguedos Brasileiros. 2ª ed. DAC/EEFD/UFRJ. Setembro de 2000. Discos produzidos pela COMPANHIA FOLCLÓRICA DO RIO. Folclore Brasileiro: Danças e Folguedos (CDs 1 e 2), 2000. 9 Expressão “afro-descendente”, adaptada de muleke, vinda possivelmente da língua quimbundo presente em várias etnias “angolanas”, designando a população jovem. 10 CUNHA JR., Henrique. A inclusão da história africana no tempo dos parâmetros curriculares nacionais. In: CNTE. A cultura negra no currículo escolar. Cadernos de Educação. (biênio 97-99) p.17 11 BARROS, Arísia. O Brasil não quer ser africano: preconceitos e impressões dificultam a educação cidadã em Alagoas e no país... 12 GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação. n.23, maio/jun/jul/ ago, 2003. p.75-85 152 art uerj III semana de pesquisa em artes