UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO
MÔNICA GOMES DA SILVA
A SÃO PAULO INVENTADA POR ÁLVARES DE AZEVEDO
NITERÓI
2010
MÔNICA GOMES DA SILVA
A SÃO PAULO INVENTADA POR ÁLVARES DE AZEVEDO
Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos para a
obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: Literatura. Subárea: Literatura
Brasileira e Teorias.
Linha de Pesquisa: Literatura e vida cultural.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª MATILDES DEMETRIO DOS SANTOS.
Niterói, 26 de fevereiro de 2010.
S586 Silva, Mônica Gomes da.
A São Paulo inventada por Álvares de Azevedo / Mônica Gomes da
Silva. – 2010.
135 f.
Orientador: Matildes Demetrio dos Santos.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras, 2010.
Bibliografia: f. 131-133.
1. Azevedo, Álvares de, 1831-1852 – Crítica e interpretação. 2.
Correspondência. 3. Azevedo, Álvares de, 1831-1852. Noite na
taverna; Macário. 4. São Paulo (SP) - Brasil. I. Santos, Matildes
MÔNICA GOMES DA SILVA
A SÃO PAULO INVENTADA POR ÁLVARES DE AZEVEDO
Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos para a
obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: Literatura. Subárea: Literatura
Brasileira e Teorias. Linha de Pesquisa: Literatura
e vida cultural
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª MATILDES DEMETRIO DOS SANTOS – Orientadora
UFF
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. ALCMENO BASTOS
UFRJ
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª SÔNIA MONNERAT
UFF
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª ELIANE VASCONCELOS LEITÃO
CASA DE RUI BARBOSA
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª FLÁVIA AMPARO
UFF
Niterói
2010
Aos meus pais, pelo amor incondicional.
AGRADECIMENTOS
A Deus, força e sustento sempre.
Aos meus pais, Bárbara e Maurício, que conseguiram superar e, principalmente, entender essa
fase de cismar sozinha à noite com um tema tão alheio ao mundo, quanto a taverna do artista.
À Professora Matildes Demetrio, mais que uma orientadora, um grande exemplo de
profissionalismo e ética. Grata pela amizade paciente com as “estroinices” desta orientanda.
À Universidade Federal Fluminense e ao CNPq por propiciarem o privilégio da dedicação,
nesses dois anos, ao estudo.
Aos professores que participaram da banca examinadora, Alcmeno Bastos e Sônia Monnerat,
prestando valiosas contribuições para esta pesquisa; assim como os professores suplentes,
Eliane Vasconcelos e Flávia Amparo, que se disponibilizaram a participar da avaliação.
A todos os professores com quem aprendi, ao longo dos cursos de Graduação e PósGraduação, lições que vão além do conteúdo acadêmico. Especialmente, Magnólia Barbosa e
Viviana Gelado.
Aos meus amigos pelo apoio e amizade sempre tão benfazejos. Aqueles de sempre: Amanda,
Ana Carolina, Bianca, Fátima, Lorenza e Maria Cristina. Aos que chegaram junto com o
curso: Luciano, Mariana e Virginia. A quem atravessou o caminho comigo, antes dele
começar: Nilcileia.
Aos professores/amigos, Fábio, Monique, Plácido, Rogério, Renata e Thamy, do PréVestibular de Engenharia da UFF, minha primeira casa como professora.
Aos funcionários da Faculdade de Letras, pela presteza do trabalho e estima sempre
dispensadas. Particularmente, à Neuma pela compreensão das dificuldades dos alunos,
auxiliando no sentido de tranquilizar e informar qual a saída.
Muito obrigada!
“Eis-me em S. Paulo, na terra de Azevedo, na bella cidade das nevoas e das
mantilhas, no solo que casa Heidelberg com a Andaluzia...
Nós os filhos do norte (consente este norte; sabes que é palavra relativa)
sonhamos S. Paulo o oasis da liberdade e da poesia plantado em plenas campinas do
Ypiranga... Pois o nosso sonho é realidade e não é realidade... Se a poesia está no
envergar do ponche escuro e largar-se campo fóra a divagar perdido n'estes geraes
limpos e infinitos como um oceano de juncos; se a poesia está no enfumaçar do
quarto com o cigarro classico, emquanto lá fóra o vento enfumaça o espaço com a
garôa (é uma nevoa espessa como nuvem que se arrastasse pelas ruas) com a garôa
ainda mais classica; se a poesia está no espreitar de uns olhos negros atravez da
rotula dos balcões ou atravez das rendas da mantilha que em amplas dobras esconde
as fórmas das moças, então a Paulicéa é a terra da poesia.
Sim! porque aqui não ha senão frio, mas frio da Siberia; cynismo, mas
cynismo da Allemanha; casas, mas casas de Thebas; ruas, mas ruas de Carthago.
(por outra) casas que parecem feitas antes do mundo, tanto são pretas; ruas, que
parecem feitas depois do mundo — tanto são desertas... ” 1.
Reprodução do fac-símile de carta de Castro Alves ao amigo Augusto Álvares
Guimarães. São Paulo, abril de 1868.
1
ALVES, Castro. Obras completas: volume dois. Org. Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1921,
p. 445. In: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00043820.
RESUMO
Nas obras Macário e Noite na taverna, Manuel Antônio Álvares de Azevedo inaugura a
construção de uma São Paulo mítica, tingida pelas sombras espessas da noite, misteriosa e
fantástica. Uma cidade propícia às deambulações do espírito e ao aflorar dos desejos secretos,
com a presença visível do Mal, marcando o grotesco e o macabro. No meio da turba
enfumaçada das tavernas ou nas ruas quase desertas, surgem tipos angustiados e estranhos à
procura de parceiros amorosos eventuais ou de ouvintes para contar suas experiências
bizarras, falar de “vícios” e confessar perversões. Em contrapartida, na correspondência
endereçada à família ou ao amigo querido, um missivista inadaptado e solitário reclama
porque vive numa cidade provinciana, onde nada acontece de importante ou interessante. No
entanto, o imaginário romântico do autor extrapola os limites do ficcional e invade o espaço
privado das cartas, estabelecendo tensões entre os dois tipos de texto, construindo pontos de
convergência e divergência entre eles.
Palavras-chave: Álvares de Azevedo. Correspondência. Noite na taverna. Macário. São
Paulo – São Paulo, Brasil.
RESUMEN
En las obras Macário y Noite na taverna, Manuel Antônio Álvares de Azevedo inaugura la
construcción de una São Paulo mítica, teñida por las sombras espesas de la noche, misteriosa
y fantástica. Una ciudad propicia a las deambulaciones del espíritu y al aflorar de los deseos
secretos, con la presencia visible del Mal, marcando el grotesco y el macabro. En medio de la
turba ahumada de las tabernas o en las calles casi desiertas, surgen tipos acongojados y
extraños en la búsqueda de parejas amorosas eventuales o de oyentes para contar sus
experiencias bizarras, hablar de “vicios” y confesar perversiones. En contrapartida, en la
correspondencia dirigida a la familia o al amigo querido, un misivista inadaptado y solitario
reclama porque vive en una ciudad provinciana, donde nada acontece de importante o
interesante. Sin embargo, el imaginario romántico del autor extrapola los límites del ficcional
e invade el espacio privado de las cartas, estableciendo tensiones entre los dos tipos de texto,
construyendo puntos de convergencia y divergencia entre ellos.
Palabras claves: Álvares de Azevedo. Correspondencia. Noite na taverna. Macário. São
Paulo – São Paulo, Brasil.
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS.................................................................................................11
INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 12
1. CENAS DE UMA PROVÍNCIA NO SEGUNDO REINADO............................................15
1.1. Difusão e interpretação da correspondência azevediana.........................................16
1.2. Por um novo olhar para a correspondência..............................................................40
1.3. Um missivista sob a insígnia do spleen....................................................................43
1.4. Na carta, cenas de uma São Paulo pacata e provinciana..........................................54
2. CENAS DE UMA CIDADE DO SÉCULO.........................................................................70
2.1. Macário: Satã descortina o véu de tristeza e vícios paulistanos..............................79
2.2. Noite na taverna: desregramentos em uma taverna imaginária...............................95
3. A SÃO PAULO INVENTADA POR ÁLVARES DE AZEVEDO...................................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................131
APÊNDICE.............................................................................................................................134
LISTA DE ABREVIATURAS2
Correspondência
C
Estudos Literários
EL
Lira dos vinte anos
LVA
Macário
MC
Noite na taverna
NT
2
Todas as citações da obra de Álvares de Azevedo, verso ou prosa, serão feitas de acordo com o texto da edição
de 2000, da Editora Nova Aguilar, organizada e comentada por Alexei Bueno. As abreviaturas utilizadas para
cada uma das partes visam tornar a referenciação mais direta e sintética.
12
INTRODUÇÃO
Esta dissertação visa estudar a representação da cidade de São Paulo na correspondência
de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) e nas obras literárias Macário e Noite
na taverna (1855), a fim de se ampliar o espaço de discussão da obra do artista, cuja vertente
poética recebeu um intenso destaque na tradição crítica literária brasileira. Ao
problematizarmos os traços de convergência e divergência que alinhavam os textos epistolar e
literário, notamos a presença de instâncias corrosivas como a estrutura fragmentária, o
grotesco e, principalmente, a ironia responsáveis, tanto nas cartas, quanto na literatura, por
transfigurar a monotonia em ação, a tristeza em spleen, subtraindo beleza de onde somente
seria possível encontrar o feio e o prosaico.
As modulações e ambivalências nas cartas fazem-se presentes nos textos literários
gerando uma dialética entre exterior X interior, crença X descrença, espontaneidade X
artificialismo, exaltação X depressão, a qual aponta para uma beleza efêmera e, portanto,
moderna. O sistema dual, presente na produção azevediana, pode ser entendido como uma
dialética de imagens e olhares, isto é, a visão dicotomizada de Álvares de Azevedo que se
configura como uma postura crítica provocando a derrisão dos motivos românticos.
A fim de se estudar a dupla representação da cidade de São Paulo e, principalmente, a
passagem de um cenário a outro, isto é, de uma cidade interiorana, pitoresca e prosaica a uma
paisagem fantástica, sobrenatural, onírica, nas cartas de Álvares de Azevedo e nas obras
13
ficcionais, fizeram-se necessários um levantamento bibliográfico e uma análise que
contemplassem os seguintes assuntos: o romantismo, a poética de Azevedo, a cidade do
século XIX e a questão epistolográfica.
A dissertação tem, como ponto de partida, o cenário provinciano das cartas que,
posteriormente, será transmudado em drama literário. Procuramos abordar tanto as
características mais amplas, como os aspectos específicos da epistolografia do artista,
principalmente, no que diz respeito à representação da sociedade paulista, burguesa e liberalescravocrata do Segundo Império.
No primeiro capítulo, fizemos uma revisão bibliográfica objetivando delinear o
panorama de divulgação e interpretação da correspondência de Álvares de Azevedo. Os
resultados dessa revisão possibilitaram a formulação da base teórica em conjunto com a
leitura dos estudos de Andrée Rocha, Michel Focault e Matildes Demetrio dos Santos.
Também foi preciso articular os textos de Antonio Candido, José Luis Romero e Roberto
Pompeu de Toledo para o exame de aspectos específicos da cidade paulista nas décadas de
1840-1850, ambiente por onde circulavam o missivista e os demais habitantes.
No segundo capítulo da dissertação, analisam-se o drama Macário e o romance Noite
na taverna. Para a análise das formações citadinas do século XIX, palco da literatura
conhecida e produzida por Álvares de Azevedo, consultaram-se os estudos de Eric J.
Hobsbawm e Robert Moses Pechman. Os motivos românticos como a noite, o satanismo, o
grotesco, a “harmonia dos contrários”, a ironia e a digressão são elementos determinantes para
a composição de um imaginário criador, e são discutidos a partir da leitura de A. Alvarez,
Eduardo Portela, Lélia Parreira Duarte, Mario Praz, Mikhail Bakhtin, Northrop Frye, Tzvetan
Todorov, Victor Hugo e Wolfgang Kayser. Recorrem-se aos estudos de Antonio Candido,
Cilaine Alves Cunha e Décio de Almeida Prado para tratar dos aspectos particulares da
produção azevediana e sua relação com a tradição literária.
14
O terceiro capítulo detém-se na São Paulo inventada por Álvares de Azevedo,
assinalando os pontos de convergência e divergência com a São Paulo epistolar. Deste modo,
pretende-se destacar como o trabalho criativo e crítico de Álvares de Azevedo consegue
inaugurar uma linha de interpretação literária cuja força extrapola o cotidiano comezinho da
Pauliceia do século XIX e antecipa alguns dos dilemas que cindirão a São Paulo do século
XX.
15
1. CENAS DE UMA PROVÍNCIA NO SEGUNDO REINADO
A correspondência de Manuel Antônio Álvares de Azevedo possui uma relação
especial com a publicação das obras do autor, como também com a produção crítica acerca de
seus textos literários. Partindo-se da análise empreendida por Cilaine Alves Cunha (1998) que
estabelece dois grupos de textos na crítica brasileira sobre a obra azevediana, identificados
pela autora como o psicobiográfico e o psicoestilístico, busca-se compreender o lugar
ocupado pelas cartas nos diferentes âmbitos de divulgação da obra do autor, além de analisar
sua contribuição para a exegese dos textos azevedianos.
A corrente psicobiográfica, cujo primeiro texto é concomitante ao aparecimento da
obra do escritor, estendeu-se até o século XX e construiu uma compreensão teórica calcada
em forte biografismo, entendendo a personalidade do artista romântico como explicação para
a produção literária. A segunda corrente crítica tem uma tradição mais tardia, com os
primeiros textos publicados em 1957, e toma por base aspectos estruturais e temáticos da
obra, a fim de destacar seu princípio estético. No entanto, ficaria, como traços remanescentes
da tradição anterior, a recorrência à biografia do artista, quando “privilegia ainda o critério
biográfico” (CUNHA, 1998, p. 64) em análises cuja formulação contava com estudos
estilísticos extremamente elaborados.
Destes grupos, o que empregaria largamente o conteúdo epistolar seria o
psicobiográfico, visto que o grupo psicoestilístico, cujo principal representante é Antonio
16
Candido (1957), faz, apenas, menção ao conteúdo epistolar sem tomá-lo, todavia, como base
analítica. O tom confessional presente na literatura azevediana, entendido como
prolongamento da vida, muitas vezes, é atestado através do conteúdo epistolar, a partir de um
paralelismo influenciado por pressupostos teóricos que ignoram as convenções românticas.
Dentro da corrente psicobiográfica, há mudanças importantes conforme ocorrem as
diferentes etapas de publicação da correspondência. Com as primeiras divulgações
epistolares, predominariam a construção biográfica e a sustentação da tese do gênio
melancólico e triste. Em um segundo momento, com o panorama epistolar ampliado, é a
análise psicanalítica que impera a partir da discussão sobre a personalidade ambivalente do
artista que se refletiria na obra. Por fim, com o conhecimento de toda a correspondência e
novas perspectivas analíticas, os dados revelados nas cartas são utilizados em estudos
históricos-culturais sobre o século XIX, extrapolando o âmbito crítico-literário em que eram
discutidos. Vejamos, então, como a publicação intermitente das cartas contribuiu para a
leitura da obra literária.
1.1. DIFUSÃO E INTERPRETAÇÃO DA CORRESPONDÊNCIA AZEVEDIANA
Houve um caminho tortuoso na difusão da correspondência azevediana, tanto no que
diz respeito à seleção das cartas publicadas, quanto ao lugar que ocupa nas distintas edições
das obras do autor. Além de uma ou outra indicação dada pelo escritor no próprio texto das
cartas, não se tinha até, então, a dimensão da sua relação com a produção literária, os
discursos e os estudos acadêmicos. Com exceção de um discurso — recitado no dia 11 de
agosto de 1849, na sessão acadêmica comemorativa do aniversário da criação dos cursos
jurídicos no Brasil — a produção azevediana é em sua totalidade de publicação póstuma e
cada editor adotou diferentes critérios para a inclusão dos textos epistolares. Conforme se
17
sucederam novas edições, os problemas agravaram-se, pois o acesso aos manuscritos tornouse cada vez mais difícil. Este problema é extensivo à obra literária sendo considerada, hoje,
uma das de mais difícil fixação textual na história da literatura brasileira. No final da década
de 1950, por exemplo, é que se produziria uma edição fidedigna dos poemas azevedianos com
o trabalho de fixação textual realizado por Frederico José e Péricles Eugênio da Silva Ramos
(1957).
As cartas representam o que, em Crítica Textual, se denomina de epitexto privado. O
epitexto são os diferentes gêneros textuais produzidos pelo autor que circundam a obra
literária, mas que lhe são exteriores, como estudos, resenhas e artigos críticos. As cartas e o
diário íntimo formam o epitexto privado, através do qual se dá a conhecer, diretamente, a
palavra do autor e cuja inclusão aparece de forma complementar à obra. Hoje, o epitexto
privado é considerado uma importante fonte de subsídios para a compreensão da obra
literária, pois fornece indícios que ajudam a reconstruir o processo de composição autoral,
desvelando a gênese da escrita.
No entanto, é na condição de fonte de dados para a biografia que aparecem as cartas
do escritor, principalmente, nas primeiras edições de seus poemas e textos em prosa (1853 –
1862). As cartas não eram avaliadas por aquilo que poderiam aportar como gênese poética,
mas para a construção do perfil de Álvares de Azevedo refletido sem mediações em sua obra.
Diversos motivos contribuíram para que a correspondência não tivesse um espaço próprio
nessas edições em uma organização, no mais das vezes, discutível.
O primo do escritor, Domingos Jaci Monteiro, foi o editor das primeiras edições e
relata a dificuldade em estabelecer o texto que as compõem devido à falta de indicações para
a organização dos poemas, principalmente da Lira dos vinte anos, ao desconhecimento do que
seria realmente publicado ou não passava de esboço de uma possível obra e à difícil
decifração das mal traçadas letras de Álvares de Azevedo: “Muitas das composições de que
18
falla o autor nestas cartas, ou perdêrão-se, ou achão-se em tal estado, tão difficeis de ser
entendidas, que não poderão ser dadas a lume.” (MONTEIRO, 1862, p. 347).
Jaci Monteiro selecionou o que considerava importante na produção azevediana e
organizou três edições: a editio princeps, com o primeiro volume em 1853 (contendo a Lira
dos vinte anos) e o segundo volume em 1855 (Macário e Noite na taverna, discursos e
estudos acadêmicos), ambos os volumes publicados pela Tipografia Americana. Essa edição
esgotada rapidamente teve como sequência uma segunda edição, em dois volumes, em 1862,
que repete o conteúdo da anterior, pela Livraria Garnier que havia comprado os direitos
autorais da família. Ainda no ano de 1862, sairia a terceira edição, visto que a tiragem anterior
se esgotaria prontamente. Todavia, não são feitas alterações substanciais, apenas muda-se a
paginação dos volumes que passam de dois a três. Nessas edições figuram a reprodução de
fragmentos de algumas cartas de Álvares de Azevedo para o amigo Luís Antônio da Silva
Nunes (no total de oito cartas), para o pai Inácio Manuel Álvares de Azevedo (uma carta) e
para a mãe Maria Luísa Silveira da Mota Azevedo (também uma só carta).
3
Começava a
complicada difusão de um texto composto, a princípio, para ser lido na intimidade do lar. As
cartas margeiam a produção literária, servindo-lhe como introdução ou ilustração de acordo
com a interpretação dada à obra pelo editor que busca, visivelmente, criar em torno do poeta
uma aura trágica e estabelecer uma primeira chave de leitura, condicionando a recepção da
obra.
É de notável interesse como as cartas são reproduzidas e o lugar que ocupam nessas
edições. As cartas do amigo Luís Antônio (AZEVEDO, 1862, p. 35 – 57) aparecem à guisa de
introdução para a Lira dos vinte anos e substituem o prefácio da primeira parte. Nas cartas,
Álvares de Azevedo fala da melancolia e dos estágios eufórico e depressivo que o assaltam no
ritmo turbulento de sua produção e do tédio que lhe impingia a cidade de São Paulo. Jaci
3
Ver o Apêndice com a relação das cartas publicadas nas diferentes edições. As cartas de Álvares de Azevedo
serão referidas sob o número de ordem que trazem nas Obras completas, ed. 2000
19
Monteiro empreende um encadeamento entre as oito cartas e a binomia conceituada no
segundo prefácio da Lira, na qual a divisão presente na obra, seria, portanto, expressão da
ambivalência pessoal do autor, atestadas no texto epistolar. Cartas e literatura são a confissão
do gênio arrastado ao abismo de si mesmo, sem haver um estudo separado para cada uma
dessas produções. É assim, chamado de gênio e demais epítetos do mesmo jaez que é
qualificado Álvares de Azevedo no longo discurso biográfico de Monteiro (“Discurso
biographico do Bacharel Manoel Antônio Álvares de Azevedo recitado na quarta sessão
solene do Gymnasio Brasileiro pelo socio effectivo e 1º secretario Domingos Jacy Monteiro”,
1862, p. 5-34), no qual constrói uma biografia laudatória, cujas fronteiras entre o literário e o
não-literário são totalmente apagadas.
Deste modo, no texto do editor são alinhavados as cartas e os poemas, como se um
fosse a continuação do outro. Nesse exórdio, aparecem as histórias que adquiririam, com o
passar dos anos, ares de lenda em torno do jovem, considerado a encarnação brasileira do
poeta ultrarromântico: a relação afetuosa com a mãe e a irmã, o temperamento instável e uma
descrição dos pressentimentos sombrios sobre a morte do jovem estudante, carregada de tintas
dramáticas, soturnas e byronianas em excesso. Na construção da biografia, o editor/ crítico
assume para si o tom encontrado na literatura de seu biografado, o que explica, em boa parte,
a confusão entre vida e obra. O tom comovido impressiona e se prolonga nos vários textos
que tratam sobre a vida do artista. Destaca-se a concepção de destino fatal que perpassa o
relato, seja ao comentar o sonho de Dª. Maria Luísa, mãe de Álvares de Azevedo, de que o
filho morreria em sua cama; ou na descrição do comportamento arredio e do abatimento que
toma conta do estudante em seu último ano de vida, quando compôs o poema “Lembrança de
morrer”. A percepção de finitude da personagem poemática ao declarar que “Eu deixo a vida
a vida como quem deixa o tedio/ Do deserto, o poento caminheiro” (idem, p. 19) é vista como
a confissão final de Álvares de Azevedo.
20
Outro paralelismo presente no texto, que acompanha, até hoje, os estudos críticos, é o
cenário descrito nas cartas – a cidade de São Paulo, no fim da década de 1840 – e o cenário do
drama Macário. Jaci Monteiro assinala o “devaneio quasi continuo, certas imagens, certas
expressões que sempre lhe transluzem nos escriptos” (1862, p. 16), sejam eles literários ou
documentais. A passagem do cotidiano e factual para o literário e ficcional é abordada como o
transbordamento de sua personalidade imaginativa e embebida na literatura, fruto do devaneio
de quem pressentia que a cidade seria o seu túmulo, tão sombria quanto a “essa de enterro” do
jovem estudante Macário.
Ao final do primeiro volume, aparecem algumas notas acerca, novamente, do
estreitamento entre a literatura e as cartas. Em meio a essas notas, reproduz-se uma das
inúmeras cartas escritas para a mãe, Maria Luísa Silveira da Mota Azevedo. Trata-se da carta
enviada pelo dia de anos de D. Maria Luísa (N.º 69, S. Paulo, 6 de julho de 1850) e a poesia
escrita especialmente para a data: “À minha mãe”, que, segundo o editor, a vontade do poeta
seria a de inclui-la na Lira:
Estando esta poesia em separado, não incluímos na 1ª parte da Lyra dos vinte annos;
entretanto soubemos que o auctor mandára pedir uma copia della quando tencionou
fazer a publicação de que já fallamos [no caso, o projeto das Três Lyras]. / Eis aqui a
carta que o auctor fez preceder a esta poesia enviando-a. (MONTEIRO, 1862, p.
351).
Até hoje essa poesia vem em separado do seu livro de poemas mais famoso, uma vez
que a informação para a sua inclusão é um testemunho de Monteiro, sem nenhuma outra
indicação por escrito do autor.
A segunda carta familiar transcrita está presente no segundo tomo das edições. Tratase da resposta enviada para o pai, Inácio Manuel Álvares de Azevedo, sob a repreensão
sofrida pelo discurso na sessão de instalação da Sociedade Acadêmica em nove de maio de
1850 (Nº. 59, São Paulo, 03 de julho de 1850). A carta de defesa das ideias proferidas na
comemoração precede a reprodução do discurso. Assim como nas cartas a Luís Antônio, Jaci
21
Monteiro estreita o conteúdo das missivas com a produção do autor, ainda que não o discuta.
Acerca do bacharel é narrado o conhecimento brilhante de Direito Mercantil, os manuscritos
com observações valiosas sobre questões jurídicas e o auxílio que prestava ao pai em seu
escritório na cidade do Rio de Janeiro. Predomina o lamento pela perda do futuro bacharel
destinado a altos cargos no Império.
O restante da correspondência apareceria de forma pontual e cada edição subsequente
traria novas cartas. Essa divulgação intermitente se deve ao zelo com que as cartas foram
guardadas pela mãe do escritor e somente os parentes e amigos mais íntimos a elas tinham
acesso. A posse das missivas e dos manuscritos da obra do escritor gerou o problema de
transcrições feitas de forma precária e responsáveis pelos inúmeros erros de organização e de
conteúdo dos textos, sendo um dos grandes problemas, durante décadas, para a leitura da obra
de Álvares de Azevedo.
Em 1873, Joaquim Norberto de Sousa e Silva organiza a quarta edição das obras de
Álvares de Azevedo, sendo responsável, ainda, pelas quinta, sexta e sétima edições (1884,
1897 e 1900, respectivamente), também pela editora Garnier, e modifica totalmente o lugar
ocupado pelas cartas. Essas edições, hoje, são compulsadas para o estabelecimento da obra de
Álvares de Azevedo, pois são mais bem organizadas e revisadas que as primeiras.
Joaquim Norberto reproduz as cartas divulgadas pelas edições de Jaci Monteiro e
acrescenta somente uma carta escrita para a irmã Maria Luísa, chamada familiarmente de
Nhanhã (Nº. 70, São Paulo, 12 de agosto de 1851). Ao contrário de Jaci Monteiro que
entremeia as cartas à produção poética e acadêmica, Joaquim Norberto confere-lhes uma
seção, no início do terceiro tomo (1873, p. 3- 30), em que divide as cartas de acordo com o
destinatário ou o período em que foram escritas. O primeiro critério é adotado para reproduzir
a carta ao pai e as cartas para Luís Antônio (idem, p. 3-4 e p. 8-30) e o segundo critério para
reproduzir as cartas para a mãe e a irmã (idem, p. 5-7). Essa edição faz retificações
22
importantes e as cartas a Luís Antônio deixam de figurar como introdução para a Lira dos
vinte anos, sendo, devidamente, substituídas pelo primeiro prefácio omitido nas edições de
Monteiro.
Sílvio Romero, tendo por base a edição de Joaquim Norberto (5ª ed. de 1884), produz
o ensaio que é considerado um dos mais importantes desse período dentro da tradição crítica
psicobiográfica. O estudo é iniciado com um panorama dos acontecimentos políticos e sociais
das décadas de 1830 a 1850, narrados em paralelo à vida de Álvares de Azevedo. Nele,
Romero comenta a importância da cidade de São Paulo e dos primeiros sinais de vida
intelectual na Província, a vivência na Academia e o universalismo de sua literatura
destacados, nesse primeiro momento, como positivos. Quando tudo indica que o crítico faria
um rastreamento das fontes conhecidas sem mediação pelo escritor, o estudo sofre uma
guinada e tem seu rumo drasticamente alterado. Embora condene as especulações sobre a
sinceridade do ceticismo recorrente na obra azevediana, considerados por uns verdadeira, para
outros um mero artifício, “inocentes brincos de sua imaginação” (ROMERO, 2000, p. 29), e
acuse as análises de deturpadoras do caráter do estudante e redutoras de sua obra que seria
relegada a uma esfera imponderável e fantástica, o crítico acaba por, também, ser arrastado às
questões suscitadas por essa personalidade.
Em passagem que se tornaria emblemática, Sílvio Romero rejeita terminantemente as
tentativas de enquadrar o artista: “Nem anjo, nem demônio.” (idem, p. 30). Diferente do que
até então se produzia, Romero é o primeiro a apontar a cisão criadora como artifício artístico
consciente — um postulado poético cuja manifestação mais explícita se encontra no prefácio
da segunda parte da Lira dos vinte anos —, além de assinalar o humour como o traço
distintivo e original de Álvares de Azevedo. Entretanto, o que havia de fina percepção do
analista é contraposto a uma conclusão que retoma o tópico da personalidade do artista e
resume o dilema criativo ao estabelecer que a obra é produto de um imaginoso dotado de
23
melancolia ingênita que obedeceu às influências do século, caracterizado pela vacilação, daí
produzir somente “queixumes; porque era um desequilibrado” (idem, p. 36).
O que nos interessa assinalar é a vinculação feita entre as cartas e os textos poéticos. O
estado de vacilação mental é comprovado através da literatura e pela carta de número vinte e
cinco, escrita para o amigo Luís Antônio em 11 de maio de 1848. Pela primeira vez, é feita a
associação entre “Ideias íntimas”, “Um canto do século” e a que se tornará uma de suas cartas
mais famosa (idem, p. 31-33). Esses textos servem de depoimento de uma alma sequiosa por
amar, em que o ideal se esbate na realidade. No momento da expressão artística, essa
disposição do espírito se manifestaria de forma consciente e sistemática, tendendo ao
artificialismo.
Primeiro a conceber a cisão criadora, seguindo, por sua vez, as influências de seu
tempo, Sílvio Romero põe a binomia artística na conta da melancolia, mesmo o humour seria
apenas um momento alto do esboço de contista e dramaturgo que, contudo, não teriam as
qualidades essenciais para imprimir a tensão que estes gêneros necessitariam. O estudo
termina com a reprovação dos postulados literários de Álvares de Azevedo, os quais Sílvio
Romero critica como o sinal da falta de conhecimento do artista em relação ao seu país. Esse
posicionamento deixa patentes as linhas cientificistas com que vinha delineando o ensaio:
terra, povo e língua seriam noções ignoradas pelo artista romântico. Começaria aqui a tradição
de leitura que percebe a obra de Álvares de Azevedo dissociada das questões nacionais.
Durante a comemoração do centenário de nascimento de Álvares de Azevedo, em
1931, a correspondência volta a ter papel de destaque no âmbito de discussão da obra. Estudos
anteriores, como o de José Veríssimo (1916), voltam-se para a produção em prosa e para o
tópico da ironia romântica. Sinalização que permite averiguar, assim como as inúmeras
publicações de Noite na taverna, qual parcela dessa produção encontrava prestígio junto ao
público.
24
Esse panorama recebe modificações, quando vem a lume a transcrição de uma
quantidade substancial de cartas – cinquenta e oito no total – sob o título de Dous românticos
brasileiros, trabalho realizado por um dos descendentes da família, Luís Felipe Vieira Souto,
que herdou o espólio do escritor, tendo posse definitiva na década de 1950. A partir dessa
publicação, as cartas recebem uma atenção especial de um público interessado na literatura
romântica e são vistas como o meio para se confirmar, ou não, as lendas que foram criadas em
torno do artista dilacerado e infeliz, uma vez que compõem um painel mais vasto do o que se
apresenta nas primeiras edições da obra do autor.
Ainda no ano de 1931, concomitante ao trabalho de Vieira Souto, é publicado um
novo marco nos estudos azevedianos. A Revista Nova, dirigida por Antônio de Alcântara
Machado, Mário de Andrade e Paulo Prado, dedica um número especial para o centenário de
nascimento de Álvares de Azevedo. Consoante à proposta da revista em propagar novas
perspectivas e estudos inéditos sobre a cultura brasileira, nessa edição publicam-se inéditos da
prosa de Álvares de Azevedo (dois capítulos do livro de Fra Gondicário cedidos por Homero
Pires) e estudos diversificados sobre a prosa, a poesia e o tempo em que viveu o artista. Existe
uma linha de estudos delimitada no prólogo da Revista, que não é assinado (“Momento”, p.
312-314), cujo destaque observa o seu problema psicológico de uma forma singular. É
considerado o que há de melhor e de pior em sua obra: a inteligência de um tímido que não
aprende da literatura de Musset e Byron o ceticismo, mas encontra ecos em sua sensibilidade,
fruto de um disposição mórbida ulterior. Quando a última predomina, a poesia e a prosa
tornam-se artificiais e pretensiosas. Por outro lado, é o romântico brasileiro mais preocupado
com princípios estéticos e quando sua inteligência supera as emoções, revela-se grandioso: “a
ver agora no comemorado de preferência o que ele nos leciona, Álvares de Azevedo que
brilhe agora para nós aquilo que nele sobrenadou o que ele foi: preocupação de cultura, o
direito da inteligência”. (“Momento”, 1931, p. 314).
25
Aqui a mudança hermenêutica é feita ao abandonar as críticas romântica e naturalista
em favor do ideário modernista, que já havia triunfado em 1930. A preocupação para com o
país, a cultura popular e a cultura europeia imprimem marcas nessa releitura de Álvares de
Azevedo. Sai de cena o gênio ou o criador imaginoso indiferente à realidade nacional; surge o
criador inteligente, ávido de conhecimento, mais atraente aos artistas e críticos do início do
século XX que buscavam, por meio de uma intensa pesquisa, ampliar o espaço de discussão
sobre o país. Daí elegerem no artista sua consciência estética que se esbatia, às vezes, para
naufragar num “possesso mal-do-século” (idem).
Por um lado, a Revista Nova concorreria para o alargamento do campo teórico dos
estudos azevedianos, lançando as bases para uma crítica que abandona a vinculação entre vida
e obra e se direciona para aspectos relativos à obra poética, ao contrário do psicobiografismo
que vê na literatura a transposição dos sentimentos do homem. Destacam-se, nessa linha,
Homero Pires, “Influência de Álvares de Azevedo” e o levantamento da ação exercida pela
obra azevediana nas gerações posteriores; Afrânio Peixoto, com o estudo pioneiro “A
originalidade de Álvares de Azevedo” que classifica Noite na taverna como novela gótica,
além de trazer um levantamento da tradição desse gênero na Europa e na América; e Luis da
Câmara Cascudo, “Álvares de Azevedo e os charutos”, que tece considerações sobre o
charuto na poética de Álvares de Azevedo.
Por outro lado, indo em uma perspectiva oposta às concepções do prólogo da revista, o
psicobiografismo observado na leitura de Monteiro, Norberto Silva e Sílvio Romero
prossegue. Alguns estudos, através do conhecimento das cartas que surgiam e continuavam a
fornecer dados para os textos biográficos, acentuavam ainda mais o paralelismo entre vida e
obra. Visando o primeiro objetivo, vários estudos tiveram como escopo comentar os
acontecimentos da vida do poeta, reprisando histórias divulgadas desde as primeiras edições
das obras e trazendo os dados colhidos das cartas. Azevedo Amaral, em “Álvares de Azevedo,
26
o único romântico brasileiro”, discute a melancolia da segunda geração romântica brasileira
como consequência da pedagogia presente nos colégios do Segundo Império. Artur Motta,
“Álvares de Azevedo”, traz uma revisão bibliográfica do e sobre o escritor, além de um
estudo sobre a obra em prosa, conservando, porém, a tradição de lê-la em conjunto com a
biografia do artista, citando para isso algumas cartas. Mota Filho (“O drama acadêmico”) e
Aurélio Gomes de Oliveira (“Álvares de Azevedo poeta”) fazem um estudo geracional, o
primeiro privilegia o espaço da Academia de Direito e o outro o caráter doentio da segunda
geração romântica. Vicente P. V. Azevedo, com o “... Ferrão bem no centro” cria a tese de
que o poeta morreu vitimado por uma sífilis que teria contraído durante práticas sexuais
desregradas, ainda que o autor se diga contrário à vinculação de vida e obra e busque destacar
a perversão como artifício poético.
Em separado da revista, em setembro do mesmo ano, esse autor publica o livro
Álvares de Azevedo dados para sua biographia, no qual procura desmentir, mais uma vez, os
equívocos propagados pela confusão entre vida e obra, e as lendas reforçadas pelos epígonos
da Academia de Direito, que “ouviram” falar do byronismo que imperava naqueles anos. No
entanto, a organização narrativo-descritiva não difere da adotada pelo primeiro editor e crítico
da obra azevediana: as vinculações entre biografia e ficção são diretas e, por diversos
momentos, literatura e cartas são usadas indistintamente para compor o perfil biográfico do
escritor.
Nessa perspectiva de estudos, é o ensaio “Amor e Medo” de Mário de Andrade, editor
da Revista Nova, acrescido de notas em O Aleijadinho e Álvares de Azevedo (1935), que
alcançaria a maior repercussão e exerceria grande influência nas décadas seguintes. O ensaio
alia uma engenhosa investigação psico-literária aos dados extraídos do texto epistolar, postos
em notas de rodapé como glosa ao conteúdo crítico, assinalando seu caráter factual de forma a
ratificar o conteúdo expresso na literatura, consubstanciado no complexo de “amor e medo”.
27
Deste modo, por meio da correspondência, atestam-se as manifestações de uma mente
atormentada e recalcada, estabelecendo uma comparação perigosa entre a vida do escritor e
sua produção artística, como se esta fosse um decalque daquela. Desvela-se o chamado “medo
de amar”, entendido no artigo como a incapacidade dos românticos em realizar,
literariamente, o ato sexual, seja pelo repúdio ou idealização da figura feminina.
Ao contrário dos poetas de sua geração, como Fagundes Varela – detentor duma
“franqueza macha” (ANDRADE, 2000, p. 55), Casimiro de Abreu com sua “safadeza das
minúsculas libertinagens” (idem), ou de poetas da geração seguinte, como Castro Alves “o
mais sexuado do grupo” (idem, p. 69), que explora o medo de amar como apenas uma etapa,
logo superada, até o enlace sensual; Álvares de Azevedo seria o único a manifestar em todos
os matizes a incapacidade amorosa devido à sua “inexperiência enorme”: “Pra ele a mulher é
uma criação absolutamente sublime, divina e... inconsútil. O amor sexual lhe repugnava, e
pelas obras que deixou é difícil reconhecer que tivesse experiência dele.” (idem, p. 56).
O crítico estabelece os motivos para essa aversão tecendo comentários em que conjuga
a literatura às cartas do estudante sobre as moças paulistas, em especial, as cartas destinadas
ao amigo Luís Antônio e à mãe. Mário de Andrade utiliza notas explicativas em seu texto para
apontar a maledicência de Álvares de Azevedo para com suas conterrâneas. Ao lado do texto
das cartas (números 14, 29, 36, 51 e 65), Mário alude a textos historiográficos que buscam
desmentir a fealdade das paulistas. Há uma crítica severa à atenção “feminina” do missivista
devido à numerosa descrição de toaletes vista, no mínimo, como suspeita.
Levando essa linha de interpretação ao extremo e gerando uma hiperinterpretação,
Mário de Andrade afirma que, aliada à inexperiência, a prejudicial educação “entre saias” era
a causa primordial para a incapacidade amorosa do escritor, redundando no “complexo de
Édipo”, causa principal do “medo de amar” em Álvares de Azevedo. Para provar sua linha de
raciocínio, do quanto era “prejudicial pro desenvolvimento masculino dos rapazes” (idem, p.
28
69) a convivência tão estrita com mãe e irmãs, alude, igualmente, às histórias veiculadas por
Vieira Souto. Uma delas é a do travestimento do artista. Num momento de ciúme, o rapaz
teria se vestido de mulher a fim aborrecer um pretendente de sua irmã Maria Luísa. Justo
Vieira Souto que apresentará a postura mais radical contra as suspeitas da sexualidade de
Álvares de Azevedo. Se o crítico soubesse que sua história para mostrar o lado “faceto” de
seu parente mais famoso fosse ser usada contra o próprio, tê-la-ia abandonado no anedotário
familiar. Outra história citada é o “caso da cama”, o pesadelo de Dª. Maria Luísa, mãe de
Álvares de Azevedo, de que o filho morreria em sua cama. O crítico modernista defende que
não era “possível diante de certas noções de psicologia, aceitar como simples dados de
sentimentalismo romântico os pormenores que dei desse caso.” (idem, p. 71). A obsessão pela
mãe espraiar-se-ia, na literatura, através da recorrência de imagens maternais e fraternais para
descrever o encontro amoroso, em expressões como “seio materno”, “beijo materno”, “beijos
da irmã”, sendo a imagem do feto, prova do desejo de volta ao ventre materno, de extremo
mau-gosto.
É arrolada como prova de sua incapacidade amorosa a carta ao amigo Luís Antônio,
quando o missivista afirma que não ama ninguém, embora sinta a necessidade de fazê-lo. Na
mesma carta, — a famosa carta de N.º 25 —, outra passagem é destacada, na qual o jovem
descreve dois perfis femininos que haviam atraído sua atenção no ano de 1848. Como sinal de
sua inexperiência, essas descrições, mesmo se tratando da observação direta de duas moças,
igualam-se à imaterialidade das representações femininas da literatura.
Na literatura, a incapacidade amorosa manifestava-se com tipos femininos impalpáveis
e descrições veladas daquilo que o artista jamais experimentara em vida. A imprecisão das
imagens eróticas – langor, tremores e desmaios – configurariam a inexperiência, ainda mais
que o artista atribuía os tremores e desmaios às donzelas, ao contrário dos demais poetas que
29
admitiam “tremer” de amor. Mário de Andrade chamaria essa inversão de “seqüestro do tema
de amor e medo”, jamais admitido por Álvares de Azevedo.
Ao longo do ensaio, os outros sintomas do complexo são enumerados: o medo de amar
e não ser amado, expresso na figura da “útil ingrata” (idem, p. 61), fugindo da decepção
amorosa, o eu lírico se afasta para não sofrer; seja pelo temor de uma rejeição ou de uma
infidelidade. O tema “morrer de amor” é a fuga para o momento máximo do encontro entre
amantes e, novamente, é preferível a idealização à plena realização amorosa, a fim de se
evitar decepções: importa somente o reconhecimento da reciprocidade no amor. Essa
impossibilidade é um tema romântico por excelência e, hoje, sua manifestação não é mais
entendida como a covardia ou fobia para com o sexo oposto e já foram rastreadas as suas
fontes (CUNHA, 1998, p. 82) e como o escritor as transpôs para sua obra. A bem dizer, mais
do que impossibilidade, o “morrer de amor” é o desejo de transcendência, o sublime
alcançado no momento do reconhecimento amoroso, evitando realização física, a fim de
prolongar o ideal.
Outro sintoma do complexo “amor e medo” é a recorrência do sono como fuga,
personificada na imagem da bela adormecida. Para Mário de Andrade, seria uma imagem
cômoda que revelaria a repulsa sexual. Tópico que foi debatido poucos anos após a
publicação de “Amor e Medo”, através do estudo de Eugênio Gomes que constata: “Está
visto que, em suma as belas adormecidas, em Álvares de Azevedo, eram produtos da
imaginação superexcitada pelas visões literárias de Marion de Laurence e tantas outras fadas
do bosque poético do Romantismo.” (GOMES, apud ROCHA, 1982, p. 62).
O ensaio é encerrado com a conclusão de que Álvares de Azevedo foi o único poeta
romântico que não conseguiu superar o complexo de “amor de medo” que terminou por
vitimá-lo e, também, a Macário. Nesse ponto do texto, Mário de Andrade reveste a máscara
do personagem em seu autor, e os limites intercambiáveis traçados no longo ensaio chegam ao
30
seu ponto máximo. Muito mais do que uma projeção, Macário e o seu contrário, Penseroso,
discutem uma poética cindida e o valor da literatura em um mundo que gestava graves
modificações. O ano de 1848 é o derradeiro ano revolucionário do século XIX
(HOBSBAWM, 1981) e antecede a era capitalista que muda a configuração territorial e
econômica do planeta. Justamente, nesse tempo limítrofe, seu primeiro ano como acadêmico,
é construída a literatura de Álvares de Azevedo, cuja percepção não ignora as transformações
de seu século e os novos rumos da literatura no mundo, além da categoria do duplo que
adquire extrema importância na literatura do século XIX.
Em 1942, é publicada a oitava edição completa da obra de Álvares de Azevedo
incluindo, pela primeira vez, uma quantidade significativa das cartas que são acompanhadas
de inúmeras notas e comentários de Homero Pires. As sessenta e nove cartas foram coligidas
nas edições de Jaci Monteiro (1862), Joaquim Norberto (1873) e na obra de Luís Felipe Vieira
Souto (1931). Essa foi, até o final do século passado, a edição de referência da obra
azevediana e continua sendo um importante documento de estudo, tanto pela organização,
quanto pelo estudo de Homero Pires que ao comparar as distintas edições não descarta o
conteúdo de nenhuma delas. Diferente do critério da opera omnia de 1942, Luís Felipe Vieira
Souto (1931) e Vicente P. Azevedo (1976), que têm as cartas como o principal objeto de
estudo, não atentam para as primeiras edições e suprimem as cartas nelas publicadas,
desconsiderando, deste modo, o papel que tiveram nas primeiras leituras da obra azevediana.
No entanto, persistiram, na edição de Homero Pires, alguns problemas de crítica textual, visto
que o acesso à correspondência era restrito e os poucos manuscritos remanescentes
encontravam-se em posse de descendentes que não disponibilizavam o acesso, observação
feita por mais de uma vez pelo editor. No período em que produziu a edição, o único
manuscrito disponível estava na Biblioteca Nacional e era de parte do livro de Fra-
31
Gondicario. Mais três décadas seriam necessárias para que os autógrafos das cartas de
Álvares de Azevedo conseguissem ganhar publicidade.
Na década de 1950, Luís Felipe Vieira Souto apresenta uma tese a fim de concorrer
para uma cátedra no Colégio Pedro II: Reflexos de uma “pállida sombra” no romantismo
brasileiro. Afirma publicar e comentar toda a correspondência de Álvares de Azevedo,
embora não a reproduza e só comente fragmentos das cartas. Vieira Souto dirige sua artilharia
contra a publicação de Homero Pires, cujos comentários e análises sempre concorrem para
que haja uma leitura da obra, em que as cartas merecem uma seção e comentários próprios.
No entanto, Vieira Souto incorre nos mesmos problemas do primeiro editor ao apresentar um
discurso laudatório e não publicar as cartas integralmente, ocorrendo um combate àqueles que
“profanaram” a obra da família e nessa refrega não há mudança significativa no panorama de
leitura das cartas. O estudo de Luís Felipe Vieira Souto torna-se de acesso restrito, uma vez
que não chega a ser publicado, permanecendo arquivado como tese em bibliotecas
universitárias nas coleções especiais. Por isso, a edição de Homero Pires é a referência
obrigatória para o estudo de Álvares de Azevedo, mas a trilha aberta por Mário de Andrade
seria seguida por vários estudiosos que desenvolveriam ainda mais a relação mórbida entre
vida e obra, sendo de destaque os trabalhos que continuam a alicerçar a argumentação por
meio das cartas.
Um dos estudos que exacerba esta linha teórica é o de Hildon Rocha que, na década
de 1950, produz seu primeiro trabalho, O poeta e as potências abstratas, ampliado na década
de 1980 com Álvares de Azevedo, anjo e demônio do Romantismo. Rocha não deixa de prestar
o seu tributo e reconhecimento à análise marioandradina, embora discorde de alguns pontos
levantados pelo crítico, sem, contudo, invalidá-las; ao contrário, trabalha no sentido para que
as suas falhas sejam corrigidas ao afirmar que se vale para sua análise das “entrelinhas [da]
obra [do artista romântico], sugerindo coisas a quem queira perceber e entender, estão nas
32
cartas à família, ao seu amigo Luís Antônio da Silva Nunes” (p. 67). O crítico utiliza
largamente, mais do que Mário de Andrade, o conteúdo epistolar para explicar a obra literária,
quando escreve:
Impossível, sabemos que é impossível divorciar Álvares de Azevedo de sua obra, a
poesia e a prosa. Dividi-lo para uma análise simplesmente estética seria ficar na
superfície do seu abismo existencial. Antes de ser o resultado artístico de quem a
produziu, essa obra é a explicação humana de quem a concebeu.
[...] Não reproduziu nos versos, ou através de sua ficção desordenada, senão aquilo
que viveu e sentiu interiormente, e que foi a sua própria razão de ser, de padecer, de
criar. (ROCHA, 1982, p. 58-59).
Os conteúdos epistolar e literário são analisados a partir das teorias de Carl Gustave
Jung e Sigmund Freud. A partir dos arquétipos junguianos, Álvares de Azevedo é situado
como o introvertido, o encarcerado em prisões subterrâneas subjetivas, de melancolia inata,
um “Prometeu acorrentado em suas próprias cadeias” (idem, p. 7). As cartas, por sua vez, são
o testemunho do progressivo isolamento que culmina em uma descida ao inferno de si
mesmo, repontando em uma obra que registra essa “rotação interior” (idem, p. 11). Rocha
percebe, como fizeram Jaci Monteiro e Sílvio Romero, um tom monocórdico, a continuidade
temática entre ambos os textos, em especial com a lírica, entendida como um contínuo das
cartas para Luis Antônio Nunes, destacando a carta de 1º de março de 1850 (Nº. 55).
Rocha, seguindo os pressupostos de Mário de Andrade, produz uma análise modulada
e amenizada, mas nem por isso abandona o aspecto de caso clínico: fala-se no “problema
Álvares de Azevedo” (idem, p. 61, grifo do autor). O questionamento do juízo de valor do
crítico modernista aparece nos seguintes termos: “Em que depoimento ou confissão, mesmo
veladamente poética, Mário de Andrade se assentara para afirmar tão claramente essa
‘verdadeira fobia sexual’ de Álvares de Azevedo?” (idem, p. 25).
É na condição de
repreensão inicial que aparece esta passagem, visto que o complexo de “amor e medo” é
reiterado em diversos capítulos do livro, destacando-se o de número V, “As fantasias
histéricas” (p. 25-31). Em certas passagens lamenta os devaneios e precipitações do mestre
33
paulista: “Dá pena ter assim acontecido com o ensaio de interpretação psicológica mais
provocante e ágil que até hoje foi escrito sobre o mais complexo dos nossos românticos.”
(idem, p. 62). Como contraponto ao crítico modernista, faz uma longa análise do poema
“Ideias íntimas”, destacando-o como a grande produção de Álvares de Azevedo. Embora para
o autor de Pauliceia desvairada, o poema representasse a manifestação inconsciente da
impotência e frustração sexual, a obsessão pela mãe, Hildon Rocha, entretanto, defende que,
há uma transferência do prazer físico para o sonho, sendo perfeitamente compreensível a
partir da concepção freudiana que acusa como “as piores conseqüências da abstinência
sexual” a histeria e a masturbação: “Assim é que ansiedade e as chamadas fantasias histéricas
são produzidas frequentemente pela excitação não descarregada, que é vinculada ao ato
sexual, e que leva a sintomas histéricos, quando reprimida.” (idem, p. 27).
Sairia de cena a fobia sexual e entrariam dois novos problemas psíquicos: a histeria e a
esquizotimia. “Ideias íntimas” é o ato falho de seu criador, que registra a submersão ao
próprio eu e a (des)compensação de uma sexualidade reprimida. As temáticas do sonho e do
delírio noturno são as revelações desse indivíduo atormentado, deixando de lado a
importância dessas instâncias para a criação romântica. Volta-se ao tópico do ensaio de Sílvio
Romero, para abalizar a ideia principal do livro: Álvares de Azevedo seria anjo e demônio do
romantismo brasileiro. Longe da imaginação prodigiosa defendida por Romero, ou da
lubricidade mal-resolvida apontada por Mário de Andrade, para Rocha, Álvares de Azevedo
seria ambas as coisas, sendo sua parte demoníaca mais cerebrina, plasmada da São Paulo
marginal que, provavelmente, frequentou com seus amigos Aureliano Lessa e Bernardo
Guimarães.
Hildon Rocha acusa de tendenciosas as análises que viam na relação com a mãe e a
irmã a manifestação de uma patogenia, discordando de Mário de Andrade, para também,
contraditoriamente, falar de projeção materna e paterna: sua individualidade cindida seria
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resultado dos anelos literários da mãe e do racionalismo do pai, além de destacar uma
personalidade edipiana, devido à sua identificação espiritual com a mãe. O crítico recorre às
cartas para mostrar o “sentimento romântico do mundo” do jovem, manifestado através de
suas preferências afetivas, não podendo extrair daí nenhum juízo malicioso de sua relação
com o amigo Luís Antônio.
A validade da argumentação polêmica empreendida por Mário de Andrade foi posta
em xeque por diversos estudiosos que comprovaram o grau de comprometimento dos
pressupostos utilizados, incorrendo no mesmo paralelismo biográfico de autores anteriores,
agravados por uma leitura psicanalítica enviesada. Ou então, como pudemos observar, sua
teoria é aceita com uma série de ressalvas, inclusive, por aqueles que a tomaram por base. Um
ano após a publicação do ensaio (GRIECO, 2000), em 1932, a leitura psicanalítica é
rechaçada pela primeira vez, destacando a candura de um filho do século de orgias
imaginárias e embebido pela literatura. O estudo de Agripino Grieco põe em relevo
influências literárias e o trabalho literário de Álvares de Azevedo em transpor o byronismo
para a pacata São Paulo do século XIX.
Somente em fins da década de 1950, surgem novas críticas ao ensaio de Mário de
Andrade (CANDIDO, 1957), ainda que não sejam negadas por completo suas análises
literárias. Antonio Candido, tendo por base a edição de Homero Pires, em observação à parte
do texto “Álvares de Azevedo ou Ariel e Caliban”, indica como grande mérito do trabalho de
Mário de Andrade sua percepção para a dificuldade dos românticos em conceberem o ato
sexual como ato de amor. Mas discorda da propalada abstenção sexual do homem Álvares de
Azevedo, não sendo possível, nem mesmo necessária, sua comprovação. Essa diferenciação
entre vida e obra aparece logo no início do artigo e é reiterada ao longo do texto, embora a
questão da adolescência não seja descartada, seria, aliás, o traço distintivo dessa produção,
origem do dilaceramento do artista: “O drama construído em sua obra não se originou, com
35
efeito, das condições exteriores, mas dele próprio; da sua natureza contraditória, ao mesmo
tempo frágil e poderosa.” (CANDIDO, 2000, p. 83). A subsistência da noção biográfica, ainda
que mediada pelo conceito de máscara poética, é a responsável por fazer com que Cilaine
Cunha (1998) discuta e classifique como psicoestilístico o texto de Antonio Candido.
Esboça-se, na década de 1990, uma nova percepção acerca do estreitamento entre as
cartas e a poesia de Álvares de Azevedo. Vagner Camilo, em Risos entre pares, poesia e
humor românticos (1997), faz uma arguta observação, embora parta do ensaio “Amor e
Medo” de Mário de Andrade. O estudo de Camilo não se coaduna à corrente psicobiográfica,
dado que se baseia na formulação de sistema literário – na concepção de Antonio Candido de
a Formação da literatura brasileira – e as suas particularidades, explorando postulados
estéticos, psicanalíticos e antropológicos para a análise dos poemas, muito diferentes e mais
instigantes do que a análise marioandradina. Contudo, estudá-lo é interessante como
comprovação da força e permanência do estudo de Mário de Andrade, que conseguiu subsistir
por mais de sessenta anos.
Vagner Camilo seguindo a tradição crítica inaugurada por Mário de Andrade e
desenvolvida, posteriormente, por Antonio Candido, destaca o poema “Ideias íntimas” como
o ponto alto da poética azevediana, no capítulo: “Devaneios de um estudante solitário”. Para
ele, o poema seria o momento de amadurecimento, de autorreflexão de uma consciência
moderna e urbana, conforme assinalam Franchetti e Carone (1987). Em uma perspectiva
diametralmente oposta à de Hildon Rocha, que compactua com o complexo de “amor e medo”
e vê as cartas como confirmação de um caso clínico, também diferente, do próprio Mário de
Andrade; Camilo conjuga a literatura aos dados das cartas sem estabelecer uma transposição
direta, mas destacando a afinidade do poema com o seu período de introspecção relatado na
carta de 1º de março de 1850 (Nº. 55) a Silva Nunes:
Sem forçar a nota sugerindo uma associação direta, não seria demais supor que algo
dessa vivência pessoal tenha encontrado alguma ressonância na situação de
36
abandono, isolamento e esterilidade criadora retratada nos versos de “Ideias
Íntimas”, aos quais não faltam sequer a ironia aludida acima, que passa a definir a
ótica pela qual o Eu encara o mundo e a si mesmo. (CAMILO, 1997, p. 81, grifo do
autor).
Em fins dos anos 1990, é que haveria uma crítica mais sistematizada ao ensaio do
crítico modernista, ressaltando-se a sua inconsistência teórica no que tange à ausência de
comentários sobre as convenções românticas presentes no texto de Álvares de Azevedo, sendo
o ideal feminino o ponto de maior conflito do ensaio (SANTOS, 1998; CUNHA, 1998). Esta
convenção é identificada na obra azevediana, desde o artigo de José Veríssimo (1916), como
o “eterno feminino” à maneira de Goethe, e ficou ofuscada pelo tom desabusado com que a
mulher aparece na vertente negra de sua obra e pela pseudo-confirmação através do texto
epistolar, em que as queixas sobre o provincianismo são interpretadas como aversão ao
feminino.
Não obstante a força que os estudos de Mário de Andrade e seus seguidores
apresentaram em várias décadas na tradição crítica brasileira, as cartas passaram,
paulatinamente, a ocupar um lugar distinto dentro da produção azevediana. Do seu papel de
manancial para análises literárias de cunho psicanalítico surgiram outros caminhos críticos
para o seu estudo. Embora existisse o reconhecimento das suas possíveis qualidades
composicionais, o que se destacava era o seu caráter chão, sendo o factual sua maior
contribuição para a biografia do escritor.
Os momentos de notável descrição eram considerados uma exacerbação do
romantismo literário. Trabalhos, como o Carlos Dante de Moraes, “Álvares de Azevedo e o
Romantismo” (1960), também se contrapõem à análise de Mário de Andrade, ao mesmo
tempo que aportam um novo modelo de estudo para as cartas. O crítico assinala a qualidade
dos textos que, por diversas passagens, era superior a vários momentos da produção literária.
A partir dessa sinalização, os olhares para esse gênero textual se modificaram e as análises se
37
encaminharam na tentativa de estreitá-lo com os gêneros literários, apontando as
convergências e divergências entre ambos os textos.
Pela primeira vez é feito um exame criterioso das cartas, tratando-as como um texto
autônomo, observando suas qualidades composicionais. Permanece a leitura da obra poética e
em prosa em paralelo à epistolografia, assim como a noção de “dilaceramento adolescente”
postulada por Antonio Candido, porém, o alicerce principal é a percepção do romantismo
como uma filosofia formadora do jovem artista. Manifestar-se-iam romantismos na
correspondência, responsáveis pelo estilo e assuntos abordados com os seus destinatários. O
crítico aponta o trabalho de construção discursiva desses textos, recusando a noção de
confissão transparente, isto é, do total desprendimento do missivista ao relatar os próprios
sentimentos. No subtópico “As cartas do estudante”, Dante de Moraes aponta como os
grandes momentos dessas trocas epistolares, as cartas a Luís Antônio, a transfiguração do
tédio provinciano para o drama fantástico Macário. Brito Broca (1979) compartilha dessa
visão crítica e produz o artigo “Na São Paulo de Álvares de Azevedo”, reafirmando o valor
estético contido nas cartas que, por vezes, superam a literatura. Isto porque se pleiteia para as
cartas o estatuto de uma construção discursiva, ainda que se trate de um gênero marcadamente
confessional.
Em 1976, após trinta e quatro anos da última edição contendo a correspondência,
Vicente de Paulo V. Azevedo organiza as Cartas de Álvares de Azevedo, em que traz a
reprodução dos manuscritos da correspondência, corrigindo os erros das publicações
anteriores, com notas, fotografias e uma pequena biografia do artista, refutando,
decisivamente, as diversas lendas sobre sua vida e morte. Essa edição, pelo rigor de
organização e reprodução, torna-se a principal fonte de estudo da correspondência do escritor
e serve como uma das edições de base para a edição de 2000, organizada por Alexei Bueno. O
trabalho criterioso do biógrafo segue como o melhor em relação às cartas pelas décadas
38
seguintes, ainda que exclua as seis cartas que aparecem na quarta edição (1873). Essa
exclusão ocorre porque os manuscritos desses textos jamais foram encontrados. Não se sabe,
ao certo, se eles fazem parte das diversas cartas furtadas ao longo das décadas, ou se foram
perdidos ou destruídos. Hoje, recuperá-las seria uma forma de trazer novamente a palavra do
escritor, uma vez que foram reproduzidas parcialmente, com fragmentos censurados.
Todavia, a partir dessa edição, a correspondência azevediana, tratada com o rigor da crítica
textual, torna-se fonte documental para relatos históricos. Obras recentes, como as de
Ubiratan Machado (2001) – compulsando a edição de Vicente Azevedo – e Roberto Pompeu
de Toledo (2003) – através da edição de Alexei Bueno –, fazem uso do relato epistolar
azevediano para, consecutivamente, falar da vida literária do Brasil durante o romantismo e
reconstruir o atraso no qual vegetava a capital paulista até meados do século XIX.
Vimos, através desse breve percurso pelas edições contendo a correspondência e pelos
textos críticos, a importância das cartas para a leitura da obra literária. Existiram diversas
tendências interpretativas que se acentuaram ou amenizaram, conforme surgiam novos
postulados críticos, trazendo, cada qual, uma preferência por este ou aquele aspecto da
correspondência.
A leitura romântica moldou o perfil do gênio, super-estudante e terno filho/ irmão /
amigo. O cientificismo, com noções rudimentares de psicologia, apontou o descompasso e a
inadaptação na Pauliceia como doença e a obra seria, portanto, resultado desse desequilíbrio.
Em contrapartida, são feitas tentativas de defesa do caráter do artista e de sua produção. Para
isso, volta à cena o anjo do romantismo, dotado de sentimentos ingênuos e melancólicos.
Embalde, pois a leitura psicanalítica, haurida em Freud e Jung, surge e se torna vitoriosa ao
utilizar toda a nomenclatura de distúrbios sexuais, analisando o homem, cujos reflexos se
encontrariam na obra.
39
Paulatinamente, esses conceitos são questionados, criticados, para, enfim, serem
abandonados em favor de uma leitura que preza o trabalho de invenção artística de Álvares de
Azevedo. As cartas, por seu turno, recebem uma nova atenção da crítica. Passam a figurar em
estudos histórico-culturais e têm sua autonomia reconhecida quando vários trabalhos
destacam suas qualidades e buscam convergências e divergências com os textos literários do
escritor.
O passo seguinte seria perguntar, para além dos direcionamentos teóricos, o que
favoreceu, por mais de um século, uma leitura tão direta desses textos? Mesmo diante da
heterogeneidade crítica, encontramos um denominador comum que permite responder a essa
questão: a ideia de que o gênero epistolar permite conhecer, sem mediações, a palavra e, por
conseguinte, a vida do artista romântico. Poucos observaram que se trata da correspondência
de um grande escritor e que existe um trabalho de construção discursiva nesses textos, traídos
que foram pela aparente espontaneidade e simplicidade de sua escrita sem mencionar que,
apenas em 2000, houve uma edição reunindo todas as cartas remanescentes. Antes disso só a
edição de Homero Pires chegava mais perto de um resultado mais significativo.
Ao longo desse tempo, as cartas, publicadas pouco a pouco, eram lidas em separado,
destacando-se os momentos de maior expressividade. Tecia-se uma colcha de retalhos e
quando faltavam dados nas cartas para se traçar a história de Álvares de Azevedo,
completava-se com a literatura. Infelizmente, sua correspondência permanece incompleta: em
algumas cartas endereçadas à mãe, menciona pelo menos cinco outras cartas enviadas ao pai e
duas à irmã, que não aparecem entre os manuscritos conhecidos. A correspondência passiva
não foi sequer preservada.
No seu conjunto, porém, é perceptível uma história de vida e da obra que se constrói a
partir dessas cartas e para sabermos, em que medida, devemos sobrepesar o que nos aparece,
40
convém refletir mais sobre o gênero epistolar, tão difícil de ser disciplinado, pelo seu caráter
híbrido, que permite a manifestação das tensões e as convivências entre a literatura e a vida.
1.2. POR UM OUTRO OLHAR PARA A CORRESPONDÊNCIA
No que diz respeito às cartas, a diversidade de análises a que serviu deve-se, em
grande parte, à amplitude temática e estrutural característica do gênero. A convenção genérica
primordial é a função de passar o dia em revista, não para destacar o incomum, mas o que era
habitual, comum na vida do remetente (FOCAULT, 2006). Entretanto, o texto que, a
princípio, poderia ser visto como um simples relato do cotidiano alcança dimensões mais
complexas, uma vez que extrapola a função de portador de notícias e, no caso de Álvares de
Azevedo, de mera queixa de um jovem aborrecido, por morar em um lugar tacanho e
atrasado. Deve-se ao caráter híbrido do gênero, a existência de estudos versando tanto sobre
os aspectos factuais presentes nas cartas, quanto os aspectos particulares dessa produção.
Trata-se de um gênero pleno em subjetividade e são perceptíveis, dentre a premência
noticiosa, linhas que participam “embrionária ou pujantemente, do mecanismo íntimo da
literatura” (ROCHA, 1985, p. 13). Devido a essa estreita relação do gênero epistolar com o
literário, seria possível perceber, nas cartas, o que Frye denominou como o fato de que “cada
poeta tem sua mitologia particular, sua própria faixa espectroscópica ou formação de símbolos
peculiar” (FRYE, 2000, p. 17). Estaria presente, nas cartas, esta formação, pois se desvelam
ideias, opiniões e estilos que se apresentariam em gérmen e que contribuíram, decisivamente,
para compor uma “mitologia particular” presente na literatura azevediana. Captamos
ressonâncias de uma personalidade e de um modo de ver o mundo, cuja expressão reponta,
ainda que transfigurada, na literatura.
41
Focault (2006) destaca a importância do gênero epistolar como instância de reflexão e
reelaboração de ideias, uma vez que assuntos a serem expostos em outros gêneros – tratados,
ensaios, ou mesmo em textos literários – estariam ali em forma de uma discussão livre das
formalidades genéricas e comportariam uma postura particularizada menos velada que nos
demais textos. A carta emerge como um exercício pessoal do pensamento, atuando em mão
dupla, pelo gesto da escrita que se caracteriza pela simplicidade, despojamento e liberdade de
composição – desde os seus primórdios – e pela recepção, uma vez que o destinatário é parte
importante do texto, seja pela sua relação com o remetente, seja pela ação de leitura.
O exercício do pensamento propiciado pela carta, atravessado pela visão
particularizada, permite ao remetente “mostrar-se”, tornar-se presente num “face a face” com
o seu destinatário o que culminaria em um “desvelamento da alma”: “Por meio da missiva,
abrimo-nos ao olhar dos outros e instalamos o nosso correspondente no lugar do deus
interior.” (FOCAULT, 2006, p. 151). Instaura-se no gênero um jogo especular de olhares: o
do remetente ao compor a narrativa de si mesmo, passando sua vida e pensamentos em
exame; e ao sentir-se objeto de observação do novo “deus interior” que é o destinatário.
Devemos ressaltar que, muito mais que um nome, o destinatário é peça fundamental
dessa tentativa de “fazer-se presente” ou não “deixar estar só”, já que “semelhantes
interlocutores, nada pecos, não se limitam a fazer de figurantes no diálogo epistolar: dão-lhe
eco e vida.” (ROCHA, 1985, p. 19). A capacidade deste leitor vivo e único em animar e
presentificar o diálogo epistolar é o que o converte em uma verdadeira mise-en-scène.
No que tange à epistolografia de Álvares de Azevedo, como em um drama,
acompanhamos as cenas da Província de São Paulo no Segundo Reinado, cujos personagens e
ações ganham uma iluminação especial pelo efeito do humour presente e pelo apuro das
descrições. As “cenas” compostas funcionam como a “faixa espectroscópica” para aquela que
é considerada a grande realização em prosa do artista, a obra teatral Macário.
42
É verdade que ao analisar a correspondência de Álvares de Azevedo, o que
imediatamente avulta é a visão crítica e maledicente da cidade de São Paulo e de seus
habitantes. Essa visão negativa que mostra o descompasso existente entre o grupo de exceção
formado pelos estudantes e a sociedade paulista da época, também deu ensejo a uma possível
explicação da personalidade do poeta e a causa de sua constante melancolia, que seria
transposta, ipsis litteris, para a obra literária. É possível perceber que a existência em “São
Paulo tinha o sabor amargo do exílio. A cidade pesava-lhe como uma condenação.”
(TOLEDO, 2003, p. 330). Mas, se o artista maldizia tanto sua “terrinha” de arrematada
“caipirice”, também sua correspondência registra uma gama variada de assuntos, os quais
poderiam ajudar a compreender essa visão negativa que, embora predominante, não é
absoluta.
Encontramos os mais diversos assuntos nas cartas. Nelas são descritas os passeios pelo
interior da Província, os contratempos do sistema de transportes e a precariedade da ligação
entre São Paulo e o litoral, os pedidos de um “pequeno burguês” vaidoso e ciente da
importância da elegância, as novidades de um século de descobertas técnicas (o
daguerreótipo, uma “moléstia” epidêmica), a literatura (em comentários, ou em produções
enviadas para o exame e deleite dos destinatários), o Rio de Janeiro (em uma oposição
anterior à rivalidade que identificaria as duas capitais), saudades e um tédio que não se
justificavam apenas por morar numa cidade sem atrativos para um jovem romântico.
A fim de se estudar a representação que toma corpo nas cartas e se estende à obra
literária, façamos uma incursão primeiro pelo remetente e observador / ator, seu
distanciamento ou integração existentes ao que é narrado, percorrendo um itinerário de leitura
que busca ressaltar determinadas características da correspondência como:
ƒ
os tons do relato para cada um de seus destinatários;
ƒ
a apresentação das ações dos habitantes;
43
ƒ
a visão que transparece acerca da sociedade e dos costumes retratados;
ƒ
o delineamento do cenário da cidade de São Paulo;
ƒ
o surgimento de espectros de outras ambiências e / ou cidades.
1.3. UM MISSIVISTA SOB A INSÍGNIA DO SPLEEN
Nunca vi lugar tão insípido, como hoje está S. Paulo. Nunca vi coisa mais tediosa e
mais inspiradora de spleen. Se fosse eu só que o pensasse, dir-se-ia que seria
moléstia – mas todos pensam assim. – A vida aqui é um bocejar infindo.
(AZEVEDO, C, p. 811).
As primeiras cartas de Manuel Antônio Álvares de Azevedo datam de 1840, quando se
afasta pela primeira vez da família, residente em Niterói, para estudar no Colégio Stoll, no
bairro de Botafogo no Rio de Janeiro. Com bem assinala Rocha (1985), ninguém escreve uma
carta se tem ao pé de si entes e amigos queridos. São a distância e a ausência, marcas
constitutivas e motivadoras desse gênero. A correspondência azevediana foi dividida, para
efeito de estudo (V. de A., 1976), em três fases, levando em conta, justamente, os locais para
onde o remetente teve que se locomover, sempre em razão dos estudos: a primeira fase, no
Rio de Janeiro (1840-1843); a segunda fase, já adolescente, quando se prepara para o curso
jurídico em São Paulo, no qual não consegue ingressar devido à idade precoce (1844-1845); e,
por fim, quando se torna estudante da Academia em São Paulo (1848-1851).
Um Álvares de Azevedo, menino e estudante, é o remetente da primeira fase
epistolográfica. Dele provém o relato das atividades escolares descrevendo a rápida
progressão nos estudos, sua boa relação com os professores e outros alunos. Confirmando sua
dedicação, escreve algumas cartas em inglês e francês, exigindo da mãe, Maria Luísa Silveira
da Mota e Azevedo, sua principal correspondente deste período, a resposta em língua
estrangeira. Resta, desse período, apenas uma carta escrita ao pai, Inácio Manuel Álvares de
Azevedo, em inglês, não diferindo muito dos tópicos abordados nas cartas à mãe. Nas cartas
44
figuram pedidos simples, lembranças aos irmãos e padrinhos, notícias do seu estado de saúde
e descrições de passeios, ressaltando o pitoresco de alguns casos, como o escafandrista, o
“homem-peixe” Mr. Beaudoin, que fez uma demonstração na praia de Botafogo (AZEVEDO,
C, p. 778, N.º 10). Para o menino, o exibicionismo das proezas desse curioso mergulhador,
causador de grande alvoroço no bairro, é extremamente reprovável. Chega mesmo a sugerir
que o estrangeiro fizesse seus testes nas então desérticas praias de Gragoatá e Ponta D’Areia
em Praia Grande (nome de batismo de Niterói).
Existe uma considerável quantidade de nomes da aristocracia daquele tempo no relato
da criança, demonstrando, assim, o círculo social que a família frequentava. Os comentários
sempre são feitos para descrever suas visitas, o estado de saúde dessas pessoas, os eventos e
os gastos exagerados dessa sociedade, por exemplo, o valor de um vestido de uma certa noiva,
soa para o pequeno missivista como anúncio de riqueza e de pompa excessivas.
Conforme o relato, a expressão torna-se singular, superando a linguagem escolar e
didática do aprendiz de línguas estrangeiras e o remetente-mirim começa a expressar suas
opiniões a respeito das pessoas e situações, revelando-se um perspicaz observador, no qual é
possível entrever um humor que, mais adiante, adquirirá tons críticos e autocríticos. Por
enquanto, nessa primeira fase, prevalecem os comentários jocosos e maledicentes, como o que
faz por não ser recebido na casa de uma das amigas de sua mãe: “hoje não fui a casa de D.
Maria Amália, porque D. Maria Goulart e a Rosinha estão doentes, porém eu creio que não é
nada mais que uma simples dor de cabeça.” (idem, p. 779, N.º 12).
A segunda fase epistolográfica é composta por quatro cartas, escritas durante a
primeira estadia em São Paulo, cujas destinatárias são a mãe e, pela primeira vez, no rodapé
de uma das cartas, uma mensagem à irmã dileta, Maria Luísa. Nesse período a família já havia
se mudado para a capital do Império, sinal de prosperidade e dos bons relacionamentos que
possuía na Corte. Em mais de uma correspondência, faz-se referência à casa imperial. Nas
45
duas cartas do ano de 1844, ocorre uma mudança significativa: continuam a figurar notícias
sobre os estudos e o contato com figuras ilustres e amigas e, ao mesmo tempo, delineia-se o
agudo senso crítico do adolescente, sem resvalar, todavia, no tolhimento e tédio que pontuará
a escrita nos seus últimos anos de vida.
Desde cedo, estabelece-se uma referencialidade externa que, com o passar dos anos, o
texto traz de forma mais intensa. Principiam as queixas acerca do atraso da capital paulista em
relação à metrópole carioca: “mas contudo S. Paulo nunca será como o Rio” (idem, p. 780,
Nº. 14). A descrição das reuniões sociais para a mãe é feita de modo a satisfazer a curiosidade
feminina sobre a decoração dos salões de festa em que “Todas as salas estavam com lustre, o
ar embalsamado de mil cheiros, tanto de flores quanto de essências” (idem), demonstrando
uma pseudosofisticação, marcas da “caipirice”, de uma cidade que se modernizava de forma
claudicante segundo os costumes e modas da Europa. As moças locais ainda não
correspondiam ao ideal de beleza apreendido da leitura de poetas estrangeiros. Em momentos
de maior azedume, as moças são duramente criticadas, produzindo as passagens que poderiam
sugerir a ideia de que não despertavam a atenção do rapaz: “Ali estavam o que chamam cá
moças bonitas.” (idem).
O jovem, não obstante, o descontentamento de residir numa cidade com feições de
arraial, frequentava os bailes e convivia com as figuras notáveis da Província demonstrando o
grande acolhimento que teve em terras paulistas. Mas, não é sem uma dose de fina ironia,
contra os exageros das tentativas de se conseguir requinte, que o missivista narra o anúncio do
casamento de uma filha/afilhada (?) da Marquesa dos Santos, durante um jantar que
participou como convidado. Ressalta o luxo extremamente duvidoso (a expressão é seguida de
reticências) e mais adiante reafirma: “Cedo a menina velha casa-se com luxo... / Agora todo
mundo está se casando. Tudo se casa.” (idem, p. 781). O valor do dinheiro, ou o valor que o
dinheiro confere às pessoas que o possuem, também são questionados pelo jovem. Em um
46
tempo que as moças casavam-se muito novas — Manuel Antônio relata casamentos de
meninas de quatorze anos —, o fato de uma afilhada da Marquesa casar-se com uma idade
“avançada” é, no mínimo, curioso. Em mais de uma carta, existe a discussão sobre a posição
social dos noivos, a negociação sobre os acordos financeiros e quem sairia “lucrando” com a
união matrimonial.
Também narra, entre admirado e zombeteiro, a conduta pouco religiosa da sociedade
paulista que frequentava a igreja em dias de grandes festas, deixando de lado a postulada
pureza de costumes. Por isso, registra que havia “apenas uma ou duas famílias na Sé na
quarta-feira de cinzas.” (idem, p. 782). O esvaziamento das procissões aparece contraposto a
outros divertimentos, estes sim mais frequentados, fazendo frente aos eventos de fé que
costumavam ser o centro organizador do calendário na cidade.
Após um hiato de aproximadamente três anos, quando cursa e se torna bacharel em
Letras pelo Colégio Pedro II, a correspondência é retomada. É o ano de 1848, Álvares de
Azevedo está com dezesseis anos e se prepara para ingressar na Academia de Direito. Assim
que chega à Província, cumpre a promessa feita à mãe “de escrever-lhe logo que pusesse o pé
em Santos” (idem, p. 782, Nº 18). Esse é o período com o maior volume de cartas, sobretudo
no primeiro ano, em que o missivista prossegue com um círculo de correspondentes, que
inclui além da mãe, da irmã e do pai, o amigo, Luís Antônio da Silva Nunes, e o primo Jaci
Monteiro.
O reduzido número de correspondentes notabiliza um missivista intimista e afetuoso
que escolhe seus destinatários entre as pessoas mais próximas para se colocar livremente,
expondo suas emoções e opiniões diante daqueles que lhe podiam retribuir com igual afeto.
Há variações no estilo e nos assuntos para cada um dos correspondentes e, mesmo para cada
um deles, é perceptível mudanças no tom adotado.
47
Convencionou-se ampliar os efeitos do que se chama de “rotação interior”, entendida
como o movimento de isolar-se do convívio da família e dos demais estudantes da Academia
de Direito, provocada por uma profunda melancolia, presente desde as primeiras cartas,
agravada com o passar dos anos na solidão da capital paulista, produzindo um estado de
alheamento, que nem os divertimentos da Corte conseguiam amenizar. Devemos levar em
consideração uma outra dialética no momento de tratar os influxos melancólicos perceptíveis
na correspondência.
A melancolia destacada nas primeiras leituras feitas dos textos epistolares seria a
ambivalência apontada nas leituras psicanalíticas e o humor, surpreendente para os críticos
que se habituaram às lágrimas da literatura ultrarromântica, projetam-se refratariamente, são
momentos expressivos, compostos por imagens, tópicos e construções próprios da obra
literária. Entretanto, não correspondem à totalidade da imagem desse missivista, posto que o
leitor único que é o destinatário tem as suas especificidades levadas em conta no momento da
escrita do texto epistolar.
Um dos tantos males que abateram os jovens do século XIX, a melancolia recebe a
elegante capa literária do spleen. Condenada pelos antigos como a tristeza que soçobra o
indivíduo, retomada pelos renascentistas como o signo do gênio, cuja espontaneidade
individual oscila em um contraste perturbador entre exaltação e depressão; convertida em
motivo e motivador de muitos artistas românticos, a melancolia caracteriza-se como um
mergulho em si mesmo e o distanciamento dos demais, culminando numa capacidade crítica
ambivalente, pois se dá a partir do momento em que o ego é rebaixado. O artista clássico, sob
o véu das regras composicionais, omite a subjetividade, assumindo a impessoalidade
característica do demiurgo. O artista romântico alterna estados emocionais profundamente
egóticos, ao mesmo tempo em que adota instâncias corrosivas para demonstrar as limitações
do indivíduo.
48
Assim, o que se chama de melancolia/ ambivalência necessita de uma outra chave de
leitura que não passe, apenas, pelo tédio da cidade restrita, embora esta tenha a sua parte de
contribuição para a percepção expressa por Manuel Antônio. A pedra de toque desse processo
é a ironia que provoca a derrisão e o humor, possibilidade de riso que “pode misturar o sério e
a brincadeira, o sonho e a realidade, o sublime e o patético, tornando sensível a distância entre
o mundo limitado e o infinito ideal.” (DUARTE, 2006, p. 42). À medida que entramos em
contato com cada um dos destinatários, notamos modalizações na expressão do spleen e, tal
como ocorre na literatura, na correspondência do artista romântico, há lampejos de
autoconsciência, que percebe o transbordamento de sentimentos e de pessimismo, permitindolhe confrontar o direito e o avesso do que está sendo narrado.
Para a mãe, destinatária com o maior volume de cartas (cinquenta e nove ao todo),
Manuel Antônio é o cronista do círculo aristocrático, dotado de um humour de salão com
jogos de palavras e algumas metáforas. A moda, o costume, os hábitos e a religião eram
assuntos que interessavam a essa destinatária, atenta aos bons costumes e preocupada com as
escolhas do filho na capital.
Dessas cartas, sobressai a imagem de um jovem que se escandalizava com a postura
extravagante das moças de sua época, numa visão ingênua. Nas descrições dos saraus e nos
juízos que faz sobre o comportamento das senhoras ricamente vestidas, o remetente
demonstra um comedimento excessivo para a própria idade. Nessa fase da correspondência,
encontramos um jovem atento, disposto a narrar o que acontecia nos bailes e na faculdade,
anotando o instante em que escrevia a carta e como seria enviada. Por seu turno, D.ª Maria
Luísa é uma destinatária ávida e vigilante, que exigia do filho pormenores sobre sua rotina
doméstica, sua atuação nos estudos, num controle à distância. É perceptível a preocupação de
uma mãe conhecedora da má fama dos estudantes da cidade grande querendo preservar o filho
querido. Por seu lado, o remetente se empenha em tranquilizar a devotada destinatária,
49
mostrando-se muito bem de saúde e nada boêmio, pois o ambiente era familiar e pacato
demais como escreve na carta de 20 de julho de 1848:
A febre que eu tive não foi cousa de maior importância, mesmo porque S. Paulo não
é clima de febres. É mister que eu também lhe diga que a caçada não entrou em nada
para ela, pois eu a tive quase um mês depois – e nem bailes, pois os bailes de S.
Paulo acabam à meia-noute – e também havia uns quinze dias que não tinham lugar
cá nesta terra. (AZEVEDO, C, p. 800, N.º 33).
No segundo ano de correspondência à mãe (1849), começa a se manifestar o jovem
confessional com pressentimentos sombrios e melancólicos que pelas tréplicas manifestadas
nas cartas, não é levado muito a sério: “Agradeço-lhe as [cartas] muito. Especialmente a do
mês passado, onde tão letradamente e de um modo tão cavalier, com um rizinho inteiramente
mefistofélico, Vmcê. trata o meu spleenético sentimentalismo...” (AZEVEDO, C, p. 821, N.º
53). A destinatária não acolhe, prontamente, o floreio e os ares literários que essas missivas
começam a adquirir e pede comedimento na construção do texto. Ao contrário, afirma
deleitar-se com a narração dos acontecimentos sociais do pequeno burgo, dos quais sempre
pede maiores detalhes. Daí a mãe chamar a atenção para a intensidade de tais arroubos, mais
bem aceitos na literatura de que é admiradora, gosto comprovado através de várias cartas onde
Manuel Antônio recomenda ou envia poesias para a leitura. Existe apuro e cuidado com as
regras de composição epistolar por parte da mãe e o missivista destaca-lhe o talento para esse
tipo de composição, ainda que seja demasiado sucinto para o seu gosto:
Agradeço-lhe a notícia do — Cassino —, mas sinto muito que Vmcê. quando me
escreve faça essas descrições a cavalo — à la César — vim, vi, e venci — e disse —
e
Não sei que fado mau fortuna escura
impede-lhe sempre de ser extensa como eu desejaria. (idem, p. 793, Nº 28).
O missivista, porém, não consegue desvincular-se completamente da literatura. A
carga imaginativa e a desobediência às regras genéricas próprias do romantismo vinculam-se
50
ao relato. Infere-se que D. Maria Luísa é avessa aos desregramentos dos gêneros e do
excessivo sentimentalismo, reagindo às liberdades excessivas do escritor:
Diz muito bem minha Mãe que deve-se pensar e digerir o assunto de uma carta,
dividi-la, subdividi-la, etc., tal qual um drama ou um poema – esses delírios que se
evaporam do coração à cabeça nem há dizê-los – nem às mães – não é assim? (idem
p. 821, N.º 53).
O missivista dá asas à sua imaginação ao escrever o que chama de “delírios”.
Percebendo que não há um acolhimento total, o missivista zomba de si mesmo para desfazer a
má impressão que havia dado para a mãe. A confidência não se faz transparente, mas é
turvada por esses desencontros e tentativas de atender às expectativas de sua destinatária.
Manuel Antônio inverte a situação: como poderia ser repreendido se a mãe pede que lhe conte
tudo? Logo, o problema seria dela que não estava pronta a receber suas declarações mais
espontâneas:
Segundo a sua carta é assim — mas segundo outras palavras em que Vmcê. me
pedia que lhe contasse tudo que aí me corresse pela vida — tudo — obras, palavras
— pensamentos!! — a sua cartinha é uma contradição — muito bonita é verdade,
muito floreada, muito poética — dessa poesia à Don Juan e à Faust, que ri de tudo,
em cuja lira cada vibrar estremece estrídulo como uma gargalhada, em cujos lábios
cada canto se desfaz num ironia. (idem).
Por meio de uma gradação habilmente construída com o auxílio de travessões (marca
da interdição enunciativa), oscila entre o encanto das primeiras palavras que permitiram e
incentivaram essa expansão sentimental e depois a censura que aponta o risível desses
derramamentos. Desse modo, aos poucos, nas cartas, revelam-se princípios estéticos que
irrompem em meio ao relato do cotidiano.
Nessa meta-carta, aparece, por tréplica, outra inquietação de D.ª Maria Luísa. Não
seria apenas uma propensão do jovem fazer confissões de forma tão dilacerada. Haveria um
excesso de literatura na vida do estudante e a mãe reprova a leitura de romances, receosa que
seus atrativos pudessem desviar a atenção do curso e pede maior atenção para os estudos
jurídicos. Repreensão sintomática de uma época em que esses textos eram vistos como
51
venenos e desencaminhadores da juventude. Porém, Manuel Antônio se defende dizendo que,
naquela época, havia lido pouquíssimos romances. A defesa parece boa, mas é desmentida
pela quantidade de livros que afirmava ter lido e a comparação do estilo das cartas com essa
literatura:
Voltando à primeira carta sua dir-lhe-ei que não foi esquentando de novelas que lhe
escrevi a carta do mês passado — nem as tenho aqui lido. Se tenho às vezes fechado
sobre a mesa o meu livro de Direito das gentes — o Reddée e o Ortolan — meus
mais afeiçoados — não é por novelas que tenho feito — há um outro estudo que me
tem sucedido ao primeiro, é o da minha língua. — Minhas novelas são um tanto
sensaboronas à vista do Antony, do Rafael, e da Consuelo. (idem).
Nos anos de 1849 e 1850, poucas vezes, aparecem confissões tão perturbadoras à mãe.
Somente em 1851, no último ano em que viveu em São Paulo, voltam a ser feitas declarações
tão pungentes. Mesmo sendo o seu penúltimo ano de vida, assinalado como o ano povoado de
pensamentos macabros e proféticos, essas declarações dolorosas ocupam por completo o
espaço de uma carta. Nas demais, ocorre a modalização presente desde os primeiros anos,
demonstrando assim que o spleen é uma das faces desse missivista.
Ainda nas cartas endereçadas à sua mãe, aparece várias vezes menção à irmã Maria
Luísa. O tom das narrações é mais ameno e aparecem constantes pedidos para que não
deixasse de lhe escrever. O humor com que se reporta à Maria Luísa, não alcança as
dimensões e as variações que encontramos no restante da correspondência para a mãe e se
apresenta menos contaminado de pessimismo e melancolia, lembrando o correspondente da
fase infantil. Tanto que sua destinatária é sempre nomeada pelo apelido, Nhanhã, marca dessa
afetividade desembaraçada. Nelas, Manuel Antônio ironiza a esparsa correspondência da irmã
e suas promessas que sempre dão “em droga”. Embora mencione haver escrito uma
quantidade maior de cartas para a irmã, delas restou apenas uma (Nº 70, 12 de agosto de
1851). Nela, a camaradagem é substituída por um doloroso sentimento de solidão e saudade,
que marca o ano de 1851, dito sem restrições composicionais e temáticas. Manifesta a
52
percepção de sua finitude e consequente angústia, assim como a decrepitude da Província de
São Paulo. A vinculação entre estado de alma e paisagem é simétrica e se equipara com um
dos melhores momentos de sua literatura. Podemos afirmar que essa modulação poética faz-se
presente, apenas, quando o missivista se sente acolhido e percebe que seu destinatário não
reprova ou rejeita declarações tão atribuladas. Infelizmente, nem pelas tréplicas é possível
conhecer se a personalidade e percepção de mundo da irmã contribuíram para a escrita da
carta.
Com o pai, existe o registro de apenas duas cartas. O tom é mais sério e respeitoso,
embora a afeição seja a mesma que manifesta com a irmã e a mãe. Em uma das cartas,
exprime-se o bacharel, cujas tendências políticas e ideias liberais, expostas no discurso
pronunciado na sessão de instalação da Sociedade Acadêmica em nove de maio de 1850,
assustam ao pai e são defendidas de forma polida, porém firme. Sai de cena o jovem
entediado e de ironia mordente e surge o articulador político que se doutrina pela corrente
política liberal do romantismo, cuja “teoria ardente balanceada entre o socialismo e o
comunismo entre Platão e Fourier” (AZEVEDO, EL, p. 662) é alvo de estudo no ensaio
“George Sand”. Tampouco, é verdade o fato da total dissociação com a figura paterna. Nas
poucas cartas escritas ao pai, existe uma preocupação similar em contar as angústias de viver
em São Paulo e o aborrecimento é posto na conta dos estudos árduos. O pai sempre é
invocado como “amigo” e uma modulação literária, mais contida, também aparece. Mas, se
para a mãe e a irmã existe o ressoar da lira, para o pai expõe com maior dramaticidade,
revelando o tumulto interior, a dor que assolava sua alma: “Às 11 horas metendo-me na cama
abaixei o pano a mais esse ato passado do entremez às vezes tão doloroso que aí me tem ido
em 17 anos...” (AZEVEDO, C, p. 817, N.º 48).
A única carta remanescente escrita ao primo, Jaci Monteiro, também dá a conhecer
uma pessoa dotada de sentido prático e articulada com os demais estudantes da Academia, o
53
que se contrapõe à ideia da misantropia ingênita, afirmada em tantos estudos críticos. Ao
contrário, o que prevalece nos preparativos da folha literária é, justamente, o espírito gregário,
na tentativa de organizar um meio que desse voz à sua produção literária e a de seus pares. É
notável também pelo fato que essa carta é do período marcado por um maior recolhimento e
pressentimentos sombrios. Os pendores literários que se espraiavam nas demais cartas,
intrinsecamente ligados à forma de compreender a vida e manifestos de forma confessional,
são tratados de forma objetiva.
Sem precisar atender às regras de um destinatário que separa a literatura da vida, ou
longe do pragmatismo necessário para divulgar sua produção literária, nas oito cartas a Luís
Antônio da Silva Nunes, o missivista revela, sem formalidades ou embaraços, seus projetos,
inquietações e sentimentos. As cartas são a “autópsia de sofrimentos”, visto que Manuel
Antônio vasculha, detalhada e dolorosamente, as suas emoções mais íntimas. Encontramos,
através do eco da resposta do destinatário, uma vívida acolhida e compreensão de tão
conturbadas confissões. A reciprocidade permite que não existam embargos ao falar de
sentimentos e emoções quase intangíveis. É dessa forma que, no ano que apresenta melhor
disposição e maior participação na vida da sociedade paulista (1848), escreve uma carta que
se tornaria a confissão de sua incapacidade amorosa, assim como de sua idealização do
feminino (N.º 25, onze de maio de 1848). Destoando do diapasão com que vinha narrando
seus primeiros meses em São Paulo, é a primeira irrupção do spleen, contaminando o discurso
epistolar. Quando o artista se vê realmente com “toda a liberdade poética de divagar e tratar
tudo o que quiser e não quiser.” (AZEVEDO, C, p. 786, N.º 23) — como declara em carta à
mãe — o relato epistolar extrapola a função noticiosa, ainda que tenha como cenário a rotina
banal na Academia.
Com o amigo, deixa de ser o “homem das reações” que não mostra versos a mais
ninguém, atitude de quem achava excessiva a quantidade de versejadores na Pauliceia. Luís
54
Nunes é o confidente e leitor dos textos de Manuel Antônio, seu juízo crítico é conclamado
para avaliar as obras do artista. De sua parte, Luís Nunes demonstra interesse pela produção
do amigo e sempre solicita suas últimas criações. À mãe, as poesias aparecem como frutos da
inspiração e da espontaneidade e Manuel Antônio pede perdão pela incúria e falta de emenda.
Ao amigo, põe a par do trabalho e das dificuldades na criação poética no seu primeiro ano
acadêmico – o que seria um bom exemplo para aqueles que viam sua obra como fruto de uma
transposição direta de sentimentos, contrariando a crítica vigente. Nos anos seguintes, a
correspondência é mais esparsa, apenas duas cartas (uma de 1849 e outra de 1850) e a
mudança no relato dá conta do sofrimento e das incertezas que acompanhavam a criação
literária. Pode-se depreender que existam preocupações de outra natureza permeando o relato
para Luís Nunes e a literatura seria a principal delas, além da sua amizade fervorosa, o amor,
a mulher e a morte, esta aparecendo, sobretudo, na última carta.
Essas preocupações são manifestadas através de uma visão comum e que indica a
presença da consciência antagônica própria do romantismo, que na literatura azevediana foi
consolidada na binomia, “a medalha de duas faces” da Lira dos vinte anos, discutida mais
abertamente do que nas cartas para a mãe. Constantemente, alude a essa disposição — que na
literatura é o grande postulado estético, inovador no painel literário do tempo — que alterna o
sublime e o vil: “Isto chama-se subir aos céus e cair na terra. São asas de Ícaro — cera que o
sol derrete” (AZEVEDO, C, p. 805, N.º 35). A ironia que permeia as cartas a Luís Antônio
não é para relatar a mesmice da cidade de São Paulo, mas para construir a percepção que
oscila entre a tentativa de vislumbrar altas esferas do pensamento e que se abate com a
imperfeição da forma, além da percepção da finitude vital. Por isso, a pungência desse relato
que demonstra a incapacidade da dar forma aos tormentos e ideais que o agitavam, dos
receios da incompreensão alheia, e que encontra no amigo a solidariedade incondicional.
55
1.4. NA CARTA, CENAS DE UMA SÃO PAULO PACATA E PROVINCIANA
Aqui não acontece assim. ― O céu tem névoas, a terra não tem verdura, as tardes
não têm perfume. É uma miséria! É para desgostar um homem toda a sua vida de ver
ruínas! Tudo aqui parece velho e centenário... até as moças são insípidas como a
mesma velhice! (AZEVEDO, C, p. 834).
Conhecemos o missivista dotado, nos momentos mais expressivos para cada um de
seus destinatários, de ambíguos influxos melancólicos: o spleen manifestado por meio da
ironia e do grotesco, instâncias corrosivas do relato. A ambiguidade permite que percebamos,
pelo menos, duas faces desse missivista. Manuel Antônio revela-se atento observador cujos
juízos negativos se voltam para os citadinos e o cenário delineados nas cartas, ainda que
sejam acompanhados de modalizações que visam corrigir os excessos sentimentais e
pessimistas. O que não quer dizer que as lamentações e queixas acerca de São Paulo sejam de
pouca monta e se constituam quase como fio narrativo das cartas do estudante de Direito,
principalmente, nos anos de 1848 a 1851 – a última fase de correspondência.
Os mesmos queixumes são objeto de estudo da “aula” de Satã, o instrutor amoral de
Macário. Ambos reclamam de uma terra com aspecto de ruínas, velhice, com mulheres feias,
enfatizando o tédio de viver numa cidade, com ares de província isolada. As missivas nos
descortinam um painel irônico e, por vezes, maledicente, do burgo paulista no século XIX. O
texto literário, no entanto, revela páginas que conseguem superar os exageros do romantismo
folhetinesco e sentimental que se perdia no devaneio e no erotismo difuso de uma geração
composta por poetas-estudantes muitos dos quais, segundo José G. Merquior, “falecidos na
segunda adolescência, membros de rodas boêmias, dilacerados entre um erotismo lânguido e
o sarcasmo obsceno.” (MERQUIOR, 1979, p. 73).
Teria razão, Manuel Antônio, em maldizer tanto sua cidade natal? Em parte sim, pois
a cidade de São Paulo, em meados do século XIX, não passava de uma aldeia rústica com
vinte mil habitantes. O vale do Anhangabaú, ocupado apenas por algumas chácaras e hortas,
56
era durante o dia percorrido por escravos carregando água, tropeiros, gente de passagem por
ali. O centro da cidade compunha-se de meia dúzia de ruas tortas, edifícios públicos
acanhados, uma humilde catedral e alguns mosteiros. O centro intelectual era a Faculdade de
Direito do Largo do São Francisco. Nos arredores, havia casebres de pau-a-pique. Para
receber notícias e produtos da capital, era necessário ir até o Porto de Santos, a fim de se
sentir em contato com as transformações em marcha pelo mundo. A vida social era restrita a
umas poucas famílias abastadas, que organizavam saraus para se divertirem. A figura mais
ilustre desse tempo era a antiga amante de D. Pedro I, a Marquesa de Santos, cuja presença
marca, na correspondência do artista, os últimos brilhos do Primeiro Império (1822-1831).
Quando Álvares de Azevedo incursa na Academia de Direito em 1848, a cidade era uma
grande várzea, sem urbanização, cujos pântanos mais afastados constituíam a região maldita
da cidade: zona pobre e insalubre, foco de disseminação de doenças como tifo, peste,
impaludismo, tuberculose, varíola e meningite. As enfermidades que povoavam a cidade são
descritas para a mãe, em julho de 1849, pelo missivista da seguinte forma:
Apesar de não ser doentio S. Paulo, há aqui bastantes doenças. — Em casa do
Cláudio somente há cinco pessoas de cama — e além disso a Olímpia, que é talvez a
mais doente — porque é a que há de morrer quando menos se pensar. É raro o dia
aqui que não há enterro. Ontem houveram três.” (AZEVEDO, C, p. 814, N.º 45).
Os aspectos insalubres e a feição colonial são extremamente ressaltados quando se
estuda a São Paulo do tempo de Álvares de Azevedo, assim como sua má-vontade para com
os costumes e paisagem locais. Mas, se fizermos uma comparação com as demais cidades do
período — em especial, as cidades latino-americanas —, São Paulo não é um caso isolado. As
contradições e limitações desse pequeno burgo também eram comuns às demais cidades
afastadas do contato direto com a Europa e que se formaram a partir de um processo colonial
opressivo. José Luis Romero destaca a “fisonomía colonial, o mejor, una fisonomía
57
envejecida” dessas cidades que se apresentavam aos viajantes como simulacros das cidades
europeias: “Era una especie de Europa, quizá más primitiva, pero que ostentaba un exotismo
moderado, curioso y al mismo tiempo tolerable. Observaron la naturaleza un poco
desmesurada, y las ciudades un poco elementales.” (ROMERO, 1986, p. 217) 4. Portanto, o
relato feito por Manuel Antônio conjuga particularidades, próprias de sua percepção, mas
também compartilha o mesmo estranhamento e a observação dos contrastes das novas
sociabilidades que começavam a ganhar força em meio às limitações locais, principalmente,
no que diz respeito ao aspecto de abandono e pobreza dessas cidades, assim como o exotismo
de uma natureza inóspita.
O historiador classifica como ciudades patricias essa etapa histórica das cidades
latino-americanas, marcadas pela transição entre a estagnação colonial e o posterior
desenvolvimento industrial acelerado. Assim são chamadas, posto que nelas se consolida uma
nova classe dirigente, os patrícios, que integram elementos antigos – descendentes diretos dos
colonizadores, iluministas, citadinos e progressistas – e novos grupos de poder – rurais,
românticos e conservadores. Essa transição é de extremo interesse para percebermos,
claramente, o posicionamento de nosso missivista. Vimos que por meio de uma formação
romântica, consolida-se uma subjetividade ambígua, spleenática, segundo o próprio Manuel
Antônio. Porém, o cenário por que percorre e externa seu ponto de vista também enfrentava
contradições, dilemas e inquietações que propiciarão o surgimento de uma nova Pauliceia,
dinâmica e integrada ao ritmo do comércio mundial.
Após o processo de Independência, as cidades latino-americanas sofreram com as
disputas pelo poder central, confrontando-se, basicamente, uma elite rural — dominadora das
províncias e latifundiária — e outra elite urbana — habitante da capital e ligada ao governo.
4
Tradução nossa: “fisionomia colonial, ou melhor, uma fisionomia envelhecida” / “Era uma espécie de Europa,
talvez mais primitiva, mas que ostentava um exotismo moderado, curioso e ao mesmo tempo tolerável.
Observaram a natureza desmesurada, e as cidades um pouco elementares.”.
58
No Brasil, esses fenômenos, por vezes, adquirem caráter separatista, como a Confederação do
Equador (1824) e a Guerra da Cisplatina (1828). A primeira foi debelada, enquanto que a
segunda terminou com a separação de parte do território nacional e a criação da República da
Banda Oriental do Uruguai. Em São Paulo, não deve ser esquecida a Revolução Liberal que,
na década de 1840, trouxe turbulências e indisposições com a Corte, ainda que de pífia
realização, mas importante indicador do direcionamento político que predominava entre os
paulistas. Por isso, quando o pai de Manuel Antônio chama a atenção para os ares liberais que
seu discurso respira, é porque sabe os dissabores que tal doutrina havia trazido para a cidade.
Essas rebeliões são exemplos dos conflitos capitaneados pelas elites locais que não
reconheciam o poder central e que estarão em constante luta com os seus representantes, ou
seja, a elite urbana. Segundo Romero, desses embates ocorrem a cisão dos países latinoamericanos, sendo Brasil o que mantém a maior integridade de seu território. Surge uma nova
classe que impõe outra mentalidade nos países recém-independentes. No fim desses
confrontos, não existe um vencedor único e “la élite rural se urbanizó tanto o más de lo que se
ruralizaron las ciudades, y al cabo de poco tiempo se integró a su sociedad y a su juego.”
(ROMERO, 1986, p. 178) 5. E se a feição das cidades, principalmente, daquelas afastadas do
poder central, não tiveram sua feição alterada, outros componentes, advindos do contato
conflituoso, entre a cidade e o campo, são os elementos dissonantes em meio à decrepitude
colonial. Funcionaram como disseminadores das novidades e avanços técnicos e intelectuais
que as capitais já compartilhavam naquele momento:
Abiertas as las influencias extranjeras, las ciudades latinoamericanas empezaron a
transformarse cuando se estabilizaron en alguna medida los procesos sociales y
políticos y comenzó a crecer la riqueza: fue preocupación fundamental de las
sociedades patricias enmarcar su vocación de legítima aristocracia arraigada en la
tierra dentro del cuadro de la civilización europea. Todo se imitó: desde los modelos
arquitectónicos hasta la costumbre de tomar el té. Y sin embargo, las formas de
convivencia fueron predominantemente acriolladas durante este largo medio siglo
que siguió la Independencia. Cuando se aceptaron definitivamente las costumbres
5
“a elite rural se urbanizou tanto ou mais do que se ruralizaram as cidades, e ao cabo de pouco tempo se integrou
à sua sociedade e ao seu jogo.”
59
europeas en las clases altas, el viejo patriciado había cedido a su lugar a una nueva
generación, a una nueva clase. (idem, p. 226).6
Em se tratando de São Paulo, a criação da Academia de Direito, em 1827, é o fator
impulsionante para a formação de uma nova mentalidade, estremecendo o torpor secular.
Somam-se a isso a criação da primeira biblioteca (1826) e do primeiro jornal, o Farol
Paulistano (do mesmo ano da instituição do curso jurídico) produzido na primeira tipografia
da cidade, a Patriota. Uma nova sociabilidade haurida nos modelos inglês e francês formavase e os estudantes seriam os seus principais agentes, ainda que resistissem, por parte das elites
locais, comportamentos que remontavam à tradição lusa. Posteriormente, em São Paulo, será
a elite cafeeira, capitalista e burguesa, que toma para si o destino da cidade e o grupo
estudantil perde a força do primeiro momento.
Antonio Candido (1976), em “A literatura na evolução de uma comunidade”, lembra
que a Academia de Direito de São Paulo, em meados do século XIX, apresentava-se como
uma ilha do saber jurídico, gueto artístico, cercada pela estagnação provinciana. Os estudantes
tornam-se literatos em um tempo quando: “Política y literatura eran inseparables en la ciudad
patricia.” (ROMERO, 1986, p. 246) 7. Eram tempos de nacionalismo exacerbado, com a
necessidade de criar uma identidade para o país. Na cidade de São Paulo, como distingue
Candido, essa necessidade vem acompanhada pela escolha de diferentes postulados estéticos,
que refletiam, no seu avesso, o posicionamento político. Em um primeiro momento, as formas
classicistas não são abandonadas e o sentimentalismo é expresso em melodiosos versos à
moda portuguesa. Ou seja, não há ruptura brusca com a literatura produzida anteriormente. O
6
“Abertas às influências estrangeiras, as cidades latino-americanas começaram a se transformar quando se
estabilizaram em alguma medida os processos sociais e políticos e começou a crescer a riqueza: foi preocupação
fundamental das sociedades patrícias marcar sua legítima aristocracia arraigada na terra dentro do quadro da
civilização europeia. Tudo se imitou: desde dos modelos arquitetônicos até o costume de tomar o chá. E no
entanto, as formas de convivência foram acriolladas durante este longo meio século que seguiu a Independência.
Quando se aceitaram definitivamente os costumes europeus nas classes altas, o velho patriciado havia cedido seu
lugar a uma nova geração, uma nova classe.”
7
“Política e literatura eram inseparáveis na cidade patrícia.”.
60
segundo grupo, o nacionalista, celebra o feito do Ipiranga e busca o que havia de autóctone na
terra como o elemento identitário. O Tamanduateí, para os entusiastas daquele momento,
superaria o Mondengo. Mas, é o terceiro grupo, o satanista, que se destacaria, segundo
Candido, de viés cosmopolita, que vê na Academia de Direito em São Paulo uma Coimbra
americana. Por um lado, os estudantes de aparência romântica, acentuada pela capa preta que
usavam, representavam problemas para a acanhada população local, por outro, eram
responsáveis por criarem comportamentos e sociabilidades produtivas que se expressavam nas
repúblicas, agremiações literárias, jornais e revistas. Graças à atuação desses jovens inquietos
e boêmios, pela primeira vez, na cidade, criava-se um circuito de produção literária, ajudando
a formação de grupos de artistas abertos à novidade, entusiasmados com a ideia de
surpreender e interpretar o que havia de mais íntimo na vida e na literatura de sua época.
Álvares de Azevedo torna-se, dessa forma, uma via privilegiada para captar as ressonâncias
das mudanças que ocorriam na cidade, como explica Franchetti:
compreenderemos melhor as vicissitudes de sua obra se considerarmos como um de
seus elementos definidores a vida boêmia, a emulação diária de poetas que se
conheciam e conviviam estreitamente no quotidiano das pequenas cidades de
meados do século passado, pois dela provinha o estímulo mais importante para essa
criação satírica e cômica. (FRANCHETTI, 1987, p. 15).
O grupo de estudantes encontrava na liberdade das repúblicas um meio de respirar ares
liberais e dar espaço para as fantasias despertadas pelas leituras de Byron a Musset. Manuel
Antônio, em sua correspondência, registra a tensão e o desajuste desse grupo à comunidade. O
missivista reclama da ação dos cacetistas, em carta à mãe de 19 de junho de 1848.
Anteontem aqui houveram umas cacetadas. [...] Um estudante por ser achado de
estoque dormiu na cadeia – e no entanto por aí andam os maltistas de pistolas e
espadas sem que ninguém se dê por isso. A razão é esta: um dos grandes no pau é o
Gomide e o Sr. Chefe de Polícia não querendo desagradar os Gomides – pela
simples razão de querer agradar à Chiquinha, não o prende nem manda recrutar...
Ora, valha-nos Deus! Que terra esta onde a polícia é feita por Gomides!
(AZEVEDO, C, p. 795-796, N.º 30).
61
A indignação do remetente denuncia a leniência para com aqueles que tinham projeção
social, enquanto os demais eram punidos. O posicionamento do missivista é de discordância
com a falta de igualdade na aplicação da lei, e ironiza a atitude oficial, ambígua e discutível,
como um dos tantos sinais de atraso provinciano.
Conhecemos a cidade de São Paulo de metade do século XIX através de uma
sensibilidade cosmopolita que captava avidamente as últimas novidades intelectuais e
literárias. Nas cartas, a quantidade de pedidos à mãe e ao pai para que encomendassem da
Europa as obras literárias que ele, leitor voraz, descobria nos catálogos das livrarias, através
dos quais acompanhava as edições dos poetas preferidos, citados como epígrafes nos poemas
ou referenciados no seu próprio texto. Também fica explícita a não identificação do missivista
com a sociedade comum. Sua educação e leitura europeizadas o diferenciam dos seus
concidadãos. As regras e convenções destinadas a ressaltar traços de educação e vínculos de
afeto familiar ou reconhecimento social, por fim, levam ao afastamento daquela sociedade
que destoava imensamente do ambiente no qual fora criado. Deste modo, nas cartas, o
cenário da cidade de São Paulo surge como um espaço tedioso e monótono. As reclamações
acerca da cidade de aspecto colonial, de urbanização deficiente, como na carta para a mãe, em
sete de julho de 1849:
Quanto aos divertimentos — nitchs — só andar pelas ruas dando topadas nas pedras
— cousas em que se ponha a exceção de calos e ruturas nos sapatos. Reduzido a
ficar em casa, por não ter sequer onde ir, e não achar prazer em andar correndo ruas,
acho-me na maior insipidez possível, ansioso de deixar esta vida tediosa do mal
ladrilhado S. Paulo. (idem, p. 812, N.º 43)
A precariedade descrita desestimulava, ainda mais, o jovem a circular pela cidade,
marcando um recolhimento que repontou em uma viagem em torno de si mesmo e do
ambiente restrito do quarto, que alcança a expressão artística, por exemplo, num poema como
“Ideias Íntimas”. Nas cartas, percebemos a gênese do processo de afastamento progressivo da
vida pública, descrito por Carone (1987) como a marca de uma sensibilidade contemporânea
62
acompanhada de uma atitude de objetividade em criticar os temas abordados, até então,
inédita em literatura.
As calçadas seriam amaldiçoadas inúmeras vezes, como também a produção tacanha
de mercadorias, a precariedade das repúblicas de estudantes, a locomoção custosa e a
dificuldade de comunicação com o mundo. A paisagem citadina recebe, na correspondência,
tons insípidos, que traduzem o atraso e a ignorância da sociedade local, cujo contraponto seria
o núcleo acadêmico, do qual seria porta-voz. Mas, como observamos quando se expressa a
cada um de seus destinatários, quase sempre, tais descrições são modalizadas. O pessimismo é
acompanhado de notas irônicas que retiram o caráter excessivamente aborrecido do relato.
Nos primeiros anos de correspondência, essa característica é mais recorrente e a sua
integração, ainda que não seja total, permite que circule e veja atentamente a cidade e seus
habitantes.
Depois de uma das descrições dos inúmeros bailes que frequentou nos anos de
residência em São Paulo, quando avalia a limitação artística de suas “patrícias”, o relato
envereda para um outro caminho. O lugar atrasado e tedioso é alvo de burla, que lembra as
estudantadas dos acadêmicos:
e que quanto aos presentes estou esperando o tempo das formigas de asas (içás),
porque na minha terra só há formigas e... caipiras. Além das formigas, há um
presente que se pode fazer da Ilma pátria dos Tibiriçás, Buenos e Bobadelas, — é o
doce — condição essencial — sine qua non — das formigas. (AZEVEDO, C, p.
785, N.º 22).
Manuel Antônio deixa o seu registro sobre a produção e o que considerava dessa
sociedade. Doces e caixas de chá são as poucas mercadorias que receberam a simpatia do
estudante e são os presentes enviados para a família no Rio de Janeiro. Os demais produtos de
que necessitava, dentro da sofisticação de filho de família burguesa, são vistos como
grosseiros e marca da inabilidade local. Perfumes, espelhos, luvas de pelica, casacas e vidros
de candeeiro não escapam da mesma ironia retórica:
63
Enquanto às luvas agradeço-lhas muito, porque as que aqui há são de muito ruim
pelica — ou antes couro — e quando se recebe fica-se em dúvida se são para os pés
ou se para as mãos — além disso vende-se pela ninharia de 2$600, para se estalarem
nas costuras logo ao calçar-se, apesar de serem tão largas que, em lugar de minha
mão, fosse o Pão d’Açúcar que se quisesse acomodar nelas, pouco lhe custaria o
capricho. (idem, p. 793, N.º 28).
Não é sem exagero que os problemas são descritos, mas no relato dos viajantes a
impressão não é muito diferente. A manufatura de má qualidade era produzida por artesãos
inábeis. Por outro lado, hábitos mais sofisticados começam a ganhar notabilidade em um
espaço que não havia passado pelas transformações econômicas de base. Tratam-se de
inovações tecnológicas que conseguem atrair a atenção, primeiro dos estudantes, depois da
conservadora população local. O daguerreótipo é a grande inovação descrita:
Por aqui lavrou uma mania de daguerreotipar-se (neologismo que creio que
necessário tornar-se-á admitir-se pela aceitação do daguerreótipo). Não há estudante
que não se tenha retratado ou não pretenda retratar-se.
Além disso é barato — por 5$000 tem-se um retrato colorido em um quadro singelo
— sendo em chapa pequena. — E não só os estudantes são os contagiados; a
moléstia vai se espalhando e o médico vai lucrando.
[...] Esse retrato meu não é o que eu destinava para mandar-lhe, eu tinha tirado eu
sozinho numa chapa do tamanho da que vai — e portanto em ponto maior, mas Tio
José trocou-o por este que nós dois juntos tiramos depois. O meu primeiro está
muito parecido, segundo dizem — até acho muito bonito — e está à Byron — de
capa — até Tio José que aproveitou-se (plagiato!) da minha idéia no retrato que vai.
(idem, p. 790, N.º 27).
A atitude romântica é muito valorizada e estar à Byron, era a grande aspiração dos
estudantes que imitavam gestos, vestimentas e atitudes considerados elegantes e sofisticados.
Mas o ambiente em que se “daguerreotipavam” mostra o descompasso em receber a última
moda em um lugar que estava longe de ser requintado. Parece que a palavra-chave para a
cidade de São Paulo, nesse tempo, é o improviso, marca da precariedade e da pobreza. As
ruas de comércio eram de ladrilhos irregulares e as lojas eram pequenas e sujas. Pobres
tavernas eram o ponto de encontro de tropeiros e estudantes. A falta de estrutura reflete-se,
igualmente, na vida estudantil.
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Não existiam, em São Paulo, acomodações regulares para os acadêmicos. A cidade
não estava aparelhada para receber uma Faculdade de Direito e acomodar os jovens de classe
média, ou aristocrática, à procura de uma profissionalização. Os primeiros estudantes foram
hospedados em quartos improvisados, da também improvisada Faculdade de Direito.
Conforme essa população crescia, aumentava a necessidade por novas acomodações. As
repúblicas foram a solução. Em geral eram casas pobres, de taipa, de aluguel barato repartido
entre vários estudantes. Manuel Antônio viveu em algumas, sendo a mais famosa a da
Chácara dos Ingleses que dividiu com os amigos Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães. Em
algumas cartas à mãe, descreve o estado dessas habitações e a dificuldade em consegui-las:
“Estou morando na rua da Boa Vista — são dois casebres muito ruins onde estão metidas seis
pessoas — mas duas provisoriamente, porque têm de mudar-se cedo — ou antes
provisoriamente todos, porque temos de mudar-nos todos.” (idem, p. 825, N.º 56). Essas
associações dos estudantes de comportamento despreocupado e galhofeiro, por vezes,
geravam problemas: “A propósito da mudança — a Mãe do Carvalho Morais escreveu-lhe de
Turim mandando-lhe que não morasse mais com José Bonifácio, por ter este fama de vadio, e
atribui ela à vadiação do João o R do ano passado.” (idem, p. 826, N.º 58). A república é
desfeita para evitar a má fama e a nova mudança ocorre.
Se viver em São Paulo era difícil, transladar-se para a / da cidade também não era
tarefa fácil. As duas principais rotas de acesso eram cansativas. A antiga rota de tropeiros,
saindo do Rio de Janeiro, era a menos utilizada devido às irregularidades e riscos do caminho.
A segunda era a Calçada do Lorena, que ligava Santos a São Paulo, uma estrada considerada
um prodígio da construção do período, mas com uma travessia de preço elevado — alugavamse mulas em Santos para percorrer o trajeto e durante a noite os viajantes se hospedavam em
estalagens para evitar os perigos da estrada. Na carta em que explica porque não vai a uma
festa em Santos, o perigo e o custo são os principais motivos:
65
Não vou a Santos ao casamento de Tio João por três razões — e muito fortes.
A 1ª é que não tenho um companheiro para a volta: e não vejo necessidade de
arriscar-me a vir por aí por essas estradas desertas.
A 2ª é que não indo poupo uma despesa vã e inteiramente supérflua, um completo
desperdício — e indo não sei que lucro tiraria disso. (idem, p. 822, N.º 54).
Se levássemos em consideração essas reclamações sem cotejar todas as cartas, a
impressão inicial seria a de que o missivista era recluso e evitava se locomover pela província.
Embora a circulação fosse difícil e cara, responsável pela complicada comunicação com o
mundo e pelos extravios do correio, Manuel Antônio fez inúmeras expedições pela Província.
Caçadas e festas eram os objetivos desses passeios, em um tempo que o principal meio de
transporte eram os carros de boi e as mulas:
Não pude responder à sua carta pelo correio que saiu há dias, porque estava numa
festa em S. Miguel (três ou quatro léguas da cidade), cujo festeiro era o Ilmo Exmo
Snr. Deputado J. I. Silveira da Mota. — Conhece?
Apanhei lá muito carrapato, — e que foi o único lucro e também o único pesar
(excetuando uns 8$ de aluguel de uma besta, que lá demorei a 20 rs. por dia) que lá
tive. (idem, p. 822, N.º 54).
Não diferindo muito das observações feitas das festas na capital, as expedições pelo
interior ainda possuíam a desvantagem dos incômodos carrapatos, companheiros indesejáveis
e constantes, sinal desse aspecto mais rural do que urbano da Província – assinalado,
anteriormente, com a menção às formigas.
Para o recolhimento profundo que os biógrafos de Álvares de Azevedo gostam de
marcar, a grande descrição de bailes é, no mínimo, curiosa. Mais comuns nos primeiros anos,
raros no último ano, os bailes e as reuniões sociais são o grande palco desse drama. As ruas
com casas tristonhas e calçadas irregulares não convidavam para passeios, feitos fora da
cidade. A sociedade patrícia — escravocrata e burguesa, contraditoriamente — movimentavase e ostentava um luxo duvidoso para o missivista. Manuel Antônio conduz o relato de modo
a sugerir um ambiente atrasado, de hábitos rudes, sem nenhuma elegância, de conotação
caipira. Na carta de 11 de junho de 1848, fala de um baile em casa de família: uma festa típica
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da pequena sociedade para facilitar o encontro das famílias conhecidas e facilitar o flirt entre a
juventude, sob os olhos atentos dos pais. Maneco era muito bem recebido nessas festas.
Entretanto, quase sempre se sentia pouco à vontade nessas ocasiões e, nas cartas, extravasava
a irritação que lhe provocavam aqueles encontros:
Hoje houve aqui a interessante festa dos Caiapós — ainda estou atordoado do
barulho dos malditos tambores. Enquanto ao baile de hoje, nada há que dizer. —
Descrito um baile em São Paulo, estão descritos com pouca diferença todos os
presentes, passados e futuros. De cão a cachorro não há diferença – cara dum
focinho doutro. (AZEVEDO, C, p. 794, N.º 29).
Os bailes e saraus eram as grandes reuniões sociais do antigo rancho de tropeiros. Os
eventos, no entanto, não escapam à observação de um olhar contaminado e aborrecido. O
missivista nos descreve bailes familiares monótonos com as mesmas pessoas e as mesmas
músicas, cujo palco principal eram as casas paulistanas, com ambientes simples e
desconfortáveis, que lembravam um rude serralho. As músicas eram antigas, os pares
marcados (“ainda se dança com cartas”), os oradores de momento — um desastre literário —,
as reuniões são descritas como repetitivas: “Esse mês tem havido por aqui — uma súcia de
bailes de meia-tigela — em uma palavra — de S. Paulo.” (idem, p. 790, N.º 27).
Como eram os frequentadores de tais acontecimentos? A atenção de Manuel Antônio
volta-se quase, integralmente, para as damas. As mocinhas paulistas são descritas comumente
como feias e de aparência envelhecida. Quando compara com a população feminina do Rio de
Janeiro, então, o juízo beira à crueldade:
Na mesma lista pode incluir todas essas moças bonitas cujos nomes por modéstia
omito, mas que não posso esquecer, no meu panteísmo, à vista da irresistível
fealdade das minhas patrícias. É singular que numa terra onde o céu é tão bonito as
caras sejam tão pardacentas e as mulheres tão... (idem, p. 831, N.º 65).
Eram “xucras” que viviam em um meio estagnado. No entanto, a cidade paulista não
era exceção em um século cuja educação feminina era precária. Mesmo no Rio de Janeiro,
67
capital do Império, segundo Ubiratan Machado (2001), as mulheres eram preparadas para
“arranhar” o francês e o piano, além de aprender trabalhos domésticos. A leitura era resumida
a livros devotos e folhetins açucarados, intensificadores de desejos casadoiros. Que dirá de
um burgo atrasado, cuja maioria da população era analfabeta? O olhar do missivista é severo
quando aponta a instrução precária das moças:
Ir a bailes para dançar com essas bestas minhas patrícias, que só abrem a boca para
dizer asneiras, acho que é tolice. Não julgue Vmcê. que falo com exageração ― a
moça, senão a mais bonita, a estátua mais perfeita de tudo, uma Belisária (Mineira) é
uma estúpida que diz ― Nós não sabe dançá prôque, etc., e contudo é uma beleza,
mas é uma estátua estúpida e sem vida ― como diz o soneto do Otaviano.
(AZEVEDO, C, p. 805, N.º 36).
A bem da verdade, a saudade da família e dos amigos queridos aguçava, ainda mais, o
sentimento de vazio e isolamento de um sujeito, cujo imaginário era povoado pelo
ultrarromantismo. Assim, o spleen literário encontrava eco em uma vivência sem opções de
divertimento, em um lugar onde nada de importante acontecia. A carta escrita em quatro de
agosto de 1848 seria o depoimento incisivo desse tédio: “Agora que vieram as luvas, é que me
acharam pouco disposto para bailes, tanto que não pretendia ir tão cedo a bailes em S. Paulo.”
(idem, p. 805, N.º 36). É a mesma carta onde, impiedosamente, destrata Belisária e chama de
“bestas” a todas as suas conterrâneas. Essa indisposição é, mais uma, do “homem das
reações” que era Manuel Antônio. Eis que, vinte e três dias depois, em carta a Luís Nunes
(N.º 38), dá notícia de saída para um... baile! Reiteramos, a ênfase das descrições e juízos
induzem à imagem de misantropia ingênita, quando, na verdade, possuía uma circulação
desembaraçada por esses ambientes, chegando a angariar simpatias.
Em baile organizado para a comemoração da criação dos cursos jurídicos no Brasil,
em que foi orador, encontramos uma disposição muito diferente (carta de 19 de setembro de
1849, N.º 48). Até mesmo a pobre Belisária, tão achincalhada em carta de agosto de 1848 (N.º
36), é reabilitada e sua beleza é descrita como se fosse uma das personagens enigmáticas que
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povoavam a vida dos aventureiros de Noite na taverna. Embora diga não falar com “Madama
nenhuma” e apenas observar os volteios das valsas é o dia em que sai recoberto de flores
como congratulação do discurso. As homenagens recebidas das damas que presenciaram a
comemoração é alvo de longo comentário para a mãe. Destoando do sarcasmo, de grande
parte da descrição de bailes, o gesto é descrito delicadamente:
Mamãe sabe que na renascença da poesia as formosas damas desses tempos que
presididas pela mais bela das castelãs premiavam nas cortes de amor os cantos de
trovadores e menestréis de então com flores ou a banda de suas cores. Era o que se
chamava então um guerdon.
A Snra. D. Condessa (no modo de exprimir do José) tinha-me mandado prometer
um ramo de flores caso eu brilhasse no meu discurso — e uma repreensão caso
contrário.
Bem vê Mamãe que era esse negócio sempre lucrativo, não só porque ninguém
quereria ir dizer-lhe que eu tinha feito mau discurso, mas até porque de uma moça
até uma repreensão é um prêmio.
Deu-me pois o ramo de violetas — flor consagrada como o dizem as velhas lendas
de então — aos trovadores sensíveis. (AZEVEDO, C, p. 816, N.º 47).
A duplicidade do olhar que ora condena e, por vezes, apresenta laivos de simpatia, tem
um parâmetro difícil de ser superado pela Pauliceia de 1850. Trata-se da constante imagem da
cidade do Rio de Janeiro, cujos teatros, saraus, bailes luxuosos, tornava o missivista ainda
mais desolado ao descrever os bailes que tentavam, embora sem êxito, copiar o estilo da
capital: “Segunda-feira fui a um baile dado pelo Sr. Sousa Queirós. Todas as salas estavam
com lustres, o ar embalsamado de mil cheiros, tanto de flores como de essências, mas contudo
S. Paulo nunca será como o Rio.” (idem, p. 780, N.º 14). A ausência das “elegâncias”
francesas que vicejavam na capital do Império, contribuía de forma decisiva para criar uma
distância incomensurável dos requintes característicos da Corte. A saudade do Rio de Janeiro
é mencionada recorrentemente: “Por aí nada de interessante. — Na cidade monotonia — em
mim saudades do Rio. — Nada mais.” (idem, p. 822, N.º 54).
Nesse caso, a presença da imagem do Rio de Janeiro não deve ser vista apenas como
um ponto de comparação. A cidade é a primeira na América Latina a se modernizar ao
receber uma corte europeia: “Río de Janeiro fue la primera ciudad latinoamericana que sufrió
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cambios importantes em su fisonomía, ya en las primeras décadas del siglo.”8 (ROMERO,
1976, p. 222). Esse fato histórico teve inúmeras consequências, mas a principal era a mudança
radical na circulação de mercadorias e ideias. Em um momento, no qual as cidades sofriam
grandes traumas devido às refregas pelo poder, o Rio de Janeiro recebe grandes reformas
urbanísticas, missões artísticas e é iluminada, perdendo, deste modo, o sombrio aspecto
colonial. O Rio de Janeiro será a capital irradiante oposta dicotomicamente a São Paulo. É a
terra luminosa dos prazeres e divertimentos, versus uma terra, cuja garoa recobre como um
“véu de tristeza” a cidade: “adeus cá da terra das névoas para a terra dos fulgores” (idem, p.
828, N.º 60). A garoa paulistana destoa do fog do ambiente soturno da literatura byroniana.
Ao contrário, é monótono, entorpecente: “Boa-noite: já lá vai longe meia-noite, por um frio de
entorpecer: e se por fora há luar e névoa, sucumbo ao spleen e ao sono.” (idem, p. 831, N.º
65). Assim, era a São Paulo do tempo de Manuel Antônio: eclipsada pelo Rio de Janeiro. Há
ecos da Europa, sentidos visivelmente na literatura. Vejamos, então, como era a cidade dos
filhos do século dezenove.
8
“Rio de Janeiro foi a primeira cidade latino-americana que sofreu mudanças importantes em sua fisionomia, já
nas primeiras décadas do século.”.
70
2. CENAS DE UMA CIDADE DO SÉCULO
As cidades são a grande novidade do século XIX. (PECHMAN, 1994, p. 3).
O cenário construído na correspondência pessoal de Manuel Antônio Álvares de
Azevedo traz as contradições de uma “ciudad patricia”, onde se confrontavam uma estrutura
arcaica, colonial, e uma mentalidade liberal e romântica. O remetente legou-nos um relato que
aponta os problemas e limitações. Entretanto, o espectro de uma outra ambiência, em sintonia
com as grandes transformações do século XIX, ajuda a construir a percepção do missivista. O
fulgor da única capital de um império nas Américas, o Rio de Janeiro, serve de modelo e
destino ansiado. Também deve ser levada em conta, uma outra realidade que contribuiu, tanto
ou mais, para a narrativa epistolar. Tratam-se das grandes cidades europeias, espaço das
mutações de um século revolucionário. As cidades do Velho Mundo são um referencial que
aparecem como um eco longínquo nas cartas, a medida pela qual é avaliada a sofisticação e a
elegância da Corte brasileira.
Se o missivista não teve a oportunidade de conhecer as grandes capitais europeias,
limitando suas excursões pelo interior da Província de São Paulo, é certo que não ignorava os
avanços sociais, políticos e tecnológicos por que passavam esses centros urbanos. Como as
cartas atestam e se verifica em sua literatura, o jovem estava em dia com as obras literárias
produzidas na Europa, sem o intervalo de tempo que as inovações artísticas levavam para
chegar ao país. Os poemas, novelas e romances lidos por Manuel Antônio trazem, como
71
espaço das ações frenéticas, cidades europeias habitadas por uma multidão heterogênea e
problemática. Existe uma construção literária da complexidade dos conglomerados urbanos,
cujos centros principais eram Londres e Paris, que ajudaram a compor a mitologia citadina de
Álvares de Azevedo. Os artistas como Alfred de Musset, Lorde Byron e Victor Hugo, em
especial, preocuparam-se em construir uma “légende du siècle”: acontecimentos intensos e
dramáticos, em cidades que se transmudavam incessante e rapidamente, construídos e
projetados pela sensibilidade artística dos românticos. Esse cenário é plasmado e se configura
como o ambiente primordial no drama Macário e no romance Noite na taverna, em
contraposição à natureza e a uma São Paulo oitocentista.
Para que possamos compreender em que medida essa sintonia e cosmopolitismo
contribuíram para a literatura do prosador ultrarromântico, necessitamos analisar uma
dialética de projeções e desejos de modernidade que não encontravam espaço na São Paulo de
meados do século XIX. Para isso, serão necessárias algumas noções acerca da novidade que
as cidades representaram naquela época e como ela é trazida para literatura (os artifícios
composicionais e os gêneros eleitos) para, enfim, chegarmos à cidade de São Paulo construída
por Álvares de Azevedo.
Entre o fim do século XVIII e início do século XIX, sucedem-se mudanças
substanciais na configuração das cidades europeias. Contribuíram para isso, dois movimentos
basilares: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa que aportaram inovações nos
campos tecnológico e político, propiciando uma outra organização urbana em decorrência do
crescimento populacional. A feição medieval é demolida junto com o Ancien Regime e os
novos atores desse desenvolvimento são a crescente massa proletária e a rica burguesia
industrial, ao lado de uma agônica aristocracia e uma desacreditada classe religiosa. Um novo
ritmo é ditado pelas máquinas industriais e pelas locomotivas:
A cidade neoclássica, característica do século XIX, vai corresponder a uma
reformulação relacionada com o desenvolvimento industrial [...] como uma nova
72
forma de construção na paisagem urbana. O aumento em larga escala da população
urbana exige uma reformulação técnica, com base em novos processos de transporte
urbano e amplos programas de equipamentos, desenvolvidos a partir de uma
preocupação constante com a saúde pública. (REIS FILHO, 1994, p. 177).
Ao mesmo tempo, crescem a insatisfação e as rebeliões por parte das classes
trabalhadoras excluídas desse desenvolvimento. As formas labirínticas das cidades, resquícios
do traçado feudal, são substituídas em razão do comércio e de políticas higienistas, mas
também para evitar que a população, aproveitando-se da dificuldade em circular pelo
emaranhado das ruas, fizesse barricadas nos tumultuosos anos pós-Revolução Francesa.
Largas avenidas, um traçado urbano regular, sistemas de esgoto, iluminação, novos meios de
transporte e grandes monumentos públicos são as conquistas da cidade neoclássica, cuja
maior representante é Paris, a capital, por excelência, do século XIX. Por outro lado, a
população menos favorecida é afastada para as periferias, sendo considerada o foco de
tumultos, doenças e criminalidade. Ou então, reside no centro, como em Londres, em
miseráveis habitações coletivas, sujeita a um sistema de trabalho opressivo e a um alto custo
de vida, vítima de epidemias e sofrendo uma violência indiscriminada. No entanto, o modelo
alcançaria imenso sucesso e seria copiado em quase todo o mundo ocidental. Surgem novos
ramos de estudos a fim de se entender as mutações sociais decorrentes dessa nova
configuração:
A sociedade que se gesta no espaço urbano das grandes cidades não se dá a
conhecer. O saber científico que vai sendo construído ao longo do século XIX estará
voltado, em grande parte, para a identificação da nova realidade social, econômica e
cultural sobre a qual se construirá um novo modelo de poder e dominação, que tem
como fundamento a cidade. (PECHMAN, 1994, p. 4 -5).
Os primeiros sociólogos e higienistas tentam encontrar respostas para o caos que se
formava nos grandes conglomerados urbanos que, mais adiante, sob a égide da ciência
determinista, será combatido com medidas eugênicas. A transformação das cidades através
desses embates passa a motivo cultivado pelas artes em geral. Na literatura, o olhar para as
cidades é um dos melhores documentos desse período, fonte para os observadores sociais e
73
para aqueles que queriam conhecer a Europa sem precisar, ou sem poder, fazer as longas e
custosas viagens marítimas. A presença poderosa da cidade torna-se objeto de interesse para
os artistas e, por isso, a vertente literária que apresentaria a maior vitalidade é, justamente, a
que se propunha a decifrar a “alma das ruas”: “A literatura do século XIX, que tratou de
temas e personagens urbanos, pode ser resumida como um magnífico esforço de desvendar os
mistérios do ser, olhando para a cidade.” (PECHMAN, 1994, p. 5). A preocupação com a
realidade das grandes cidades leva autores a criarem personagens que circulam por ambientes
físicos, vivos e particularizados bem mais de acordo com o gosto do público burguês em
ascensão. A partir daí, as paisagens, como escreve Bresciani, são:
capazes de servir como espelho e modelo para os próprios leitores. Para tanto, sinais
de semelhanças devem conduzir o leitor pelos caminhos de uma identificação com
as personagens; ou seja, para quem lê, encontrar-se nos livros significa confrontar-se
com o registro de tipos modelares de determinadas condições sociais e com as
situações e expectativas delas decorrentes. Uma relação de verossimilhança une o
leitor ao modelo na projeção da imagem idealizada. (BRESCIANI, 1994, p. 28).
É o início de uma nova sensibilidade artística. O individualismo, a originalidade e o
misticismo serão as pedras angulares do movimento que surgia. Não basta representar a vida,
há que imprimir emoção e velocidade às histórias, consoante à extensão gradual das
sociedades mais desenvolvidas, às guerras de independência dos estados, pois, ao mesmo
tempo em que se volta para o passado, revalorizando a Idade Média, o romântico capta as
reverberações das modificações citadinas através de um “agudo senso histórico, esse empenho
de estar com o seu tempo — e não acima e fora dele, como pretendiam os clássicos, em seus
anseios universalizantes — abre caminho para toda a estética moderna” (PRADO, 1978, p.
183).
Victor Hugo, em seu Prefácio a Cromwell (1827), cria uma “poética” desses novos
pressupostos estéticos, ao defender a coexistência de elementos altos e baixos na obra de arte,
enfeixando-os na expressão “harmonia dos contrários”. Essa tendência antitética perpassa o
74
movimento romântico, quando coloca lado a lado: sentimentalismo e satanismo, crença e
ceticismo, alma e instinto, belo e horrível, sonho e realidade. A nova posição do artista na
sociedade, também, seria discutida sob os mesmos parâmetros. A subjetividade formada e
expressa através de valores antagônicos, a noção de gênio e a criação de um mercado
consumidor para a obra de arte, criam duas categorias de artistas:
De membro integrado da sociedade, que trabalhava dentro de uma estrutura de
padrões tradicionais de excelência, converteu-se o artista em gênio potencial, e
portanto num rebelde, ou num potencial imitador. As mudanças sociais, que se
registraram na estrutura do patronado, concorreram para essa modificação. O artistagênio não podia contra com a patronagem tradicional da Igreja, da Corte, ou do
Estado, mas precisava encontrar o seu próprio mercado através de negociantes e
colecionadores, em conflito com o gosto da classe média, enquanto que ao artista
que servia ao gosto estabelecido se negava o título de artista, porque ele era tido
como trabalhador que trabalhava de acordo com as regras, imitador, não gênio —
ou, como diríamos agora, “não criador”. Assim nasceram as noções subsidiárias de
boêmia e filistinismo, tão importantes na segunda metade do século passado.
(OSBORNE, 1974, p. 181-182).
Conquanto se aguce essa valorização do artista considerado rebelde e incompreendido,
dotado de uma aura de maldição, rechaçando-se aquele que seguia as regras e o gosto de um
público médio, existia o fato de que, para sobreviver, pela primeira vez, o artista se defrontava
com a realidade de um público consumidor. Paulatinamente, o conflito resulta na relação da
obra de arte com o dia a dia, deixando de ser o lazer de uma classe ociosa, inserindo-se numa
nova prática de leitura devido ao incremento do público leitor, dos novos formatos e meios
editoriais, com destaque para o surgimento do folhetim. Como Bresciani (1994) afirma, esse
público crescente buscava traços de identificação e reconhecimento de sua própria realidade,
ao mesmo tempo em que há um grande sucesso da literatura que extrapolava as convenções
artísticas e sociais. Sobre essa característica, Otto Maria Carpeaux (1978) comenta que era:
“um público menos exigente que não se preocupa com teorias literárias nem com vanguardas
poéticas e muito menos com exaltações místicas. ‘Mística’, para esse público, é aquilo que é
estranho, terrificante, sobrenatural.” (p. 161).
75
Assim, podemos depreender algumas linhas de força para a literatura desse período.
Por um lado existe a preocupação em retratar uma série de mudanças sociais e culturais, cujo
cenário primordial é a cidade. Por outro lado, existem novos postulados estéticos que
preconizam a originalidade e a presença da subjetividade do artista, além de um público leitor
que começava a ganhar corpo contribuindo para o aparecimento de novas fórmulas artísticas,
como o incremento de obras de cores intensas, com enredos aterradores e histórias
ultrassentimentais em um tempo-espaço singular, à noite, em cemitérios, no mar ou em
tavernas.
É dessa forma que artistas como Lorde Byron e Alfred de Musset, por exemplo, a
despeito de suas vidas atribuladas e de suas obras não-canônicas, tornam-se os escritores mais
lidos e influentes desse período com obras que trazem heróis extremados, atraídos pelo vício e
mistério, com um forte conteúdo sentimental:
Ser romântico era viver de uma certa forma, abrir-se sem reservas para a vida
afetiva, desembaraçar-se das peias sociais — que passam a se chamar convenções
—, não consentir que a coletividade, por intermédio de forças moderadoras como a
razão e a vontade, sufocasse a espontaneidade e sabedoria do sentimento. [...]
Viver era expor-se, enfrentar as vicissitudes mais reveladoras (o amor, a morte),
entrar em contato com as fontes mais recônditas da personalidade. (PRADO, 1978,
p. 183).
Dois gêneros textuais, nesse período, ganham destaque e se revelam como as formas
que expressavam o extravasamento de regras artísticas e sociais: o romance e o drama.
Carpeaux (1978) estabelece três correntes na narrativa romântica: o romance gótico ou negro,
o romance medievalista ou histórico e o romance social. Embora faça essa divisão, Carpeaux
deixa patente que uma forma alimenta a outra. Assim, o romance social tem como grande
novidade a temática citadina, mas lança mão de expedientes próprios do romance gótico que,
por sua vez, compartilha de artifícios e temáticas típicas do romance histórico, especialmente,
no que diz respeito a uma nostalgia por uma idade considerada plena de ideais nobres.
Algumas fontes tornam-se essenciais para que possamos compreender o novo estatuto
76
narrativo presente nesses romances. Miguel de Cervantes (Dom Quixote, 1605) e Laurence
Sterne (A vida e as opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, 1760) são iluminadores do
romantismo devido às suas estratégias narrativas como a metaficção, a presença da comédia
ao lado da tragédia, os jogos temporais e a estrutura mise en abîme. Para Bakhtin (1993), em
seu estudo sobre o grotesco no século XIX, Laurence Sterne é considerado o inaugurador do
romantismo, pois apontou “o descobrimento do indivíduo subjetivo, profundo, íntimo,
complexo e inesgotável” (p. 38), que em sua narrativa sinuosa ludibria a expectativa do leitor.
O entrecruzamento de gêneros elide a tripartição clássica, sendo que o gênero
dramático foi um dos que mais se modificou devido à liberação de regras. Em sua missão de
falar do real, as unidades de tempo, espaço e ação são dispostas livremente pelo dramaturgo.
Assim, a ação é descontínua, contada desde seu início e de extensão variável (episódios, atos
e cenas não possuem a mesma medida), ao contrário da tragédia clássica. O enredo é
complexo e possui vários subenredos, sem explicitar todos os pormenores aventados na
tentativa de abarcar a variedade da vida, instigando a imaginação do espectador. As falas dos
personagens são expressas tanto em verso como em prosa, misturando o discurso filosófico às
injúrias e imprecações. O cuidado com a demarcação das unidades de tempo e espaço é
pequeno. Esses componentes dramáticos são indicados, somente, quando influem
decisivamente no enredo. Nessa perspectiva, o drama Fausto de Goethe, ainda no século
XVIII, a partir de uma lenda antiquíssima, será um marco para o drama romântico, visto que
sua construção conta com a liberdade de regras acima mencionada, além de trazer o par
Homem / Diabo discutindo a rebeldia e a inquietação humanas. Com o uso de recursos
semelhantes, Willian Shakespeare aparece como centro do cânone na famosa passagem em
que Victor Hugo define o drama romântico: “Shakespeare é o drama; e o drama que funde sob
um mesmo alento o grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia, o drama
é o caráter próprio da terceira época de poesia, da literatura atual.” (VICTOR HUGO, s/d, p.
77
36-37). Prado ao analisar a explosão do teatro romântico chama a atenção para essa
coexistência de elementos díspares, resultando em um novo gênero: “É através desse jogo
dialético que o drama conseguirá apanhar a multiplicidade, a duplicidade original do universo,
como nunca o teatro clássico, com os seus compartimentos estanques, pôde fazê-lo.”
(PRADO, 1978, p. 171).
Precisamente, a dialética é uma das palavras-chave para que se possa compreender o
conjunto ficcional criado por Álvares de Azevedo. Cilaine Cunha (1998 e 2000) aponta o
código dual presente na poesia e prosa azevedianas, destacando duas diretrizes, uma
sentimental e outra satírica. Ao lado do ideal, da aspiração ao sublime e ao belo, existem o
grotesco e o prosaico, em um diálogo tenso. Essa ambivalência, interpretada por um longo
período como manifestação de uma personalidade bipolar, expressa os dilemas e impasses
para a literatura do século XIX, conforme expusemos anteriormente. Esse postulado estético
era inédito na literatura brasileira e é discutido pelo autor nos prefácios das obras Macário,
Lira dos vinte anos e Conde Lopo. A mudança do papel do artista, a sua “inutilidade” no
mundo do capital, o gosto do público e as novas sociabilidades são temas constantemente
abordados por um Álvares de Azevedo, sensível às mudanças que se processavam na
sociedade e na literatura.
A discussão desses novos dilemas aparece em duas obras em prosa do autor: Macário
e Noite na taverna. Antonio Candido (1989) estuda o acoplamento dessas obras ficcionais,
segundo o crítico, o autor elevaria ao máximo o princípio da liberdade dos gêneros,
comprometendo, às vezes, o sentido e a estrutura nas obras menores. No entanto, a força da
temática noturna associada ao desvelamento dos abismos morais do ser humano constituiria o
ponto alto desse conjunto ficcional. A pedagogia satânica presente nos textos consegue
superar os exageros sentimentais em voga no romantismo brasileiro, incluindo o próprio
Azevedo.
78
Para além das formas e modelos apreendidos da literatura europeia, as temáticas
presentes nas duas obras ajudam a demonstrar o sentido de modernidade da literatura de
Álvares de Azevedo, ao aliar o prosaico e o tema da cidade à inovação estética. O jovem culto
e aristocrático da Academia de Direito, leitor de jornais e revistas mundanas que o colocavam
a par dos últimos lançamentos da moda, cede, na literatura, o lugar a narradores excepcionais
e singulares. Os personagens circulam livremente, cometendo desatinos e crimes de toda
ordem, vivendo seus dramas nas cidades que é a grande tela onde se projetam de forma
espetacular as energias niilistas que regem o mundo ultrarromântico. O ideário ficcional de
Álvares de Azevedo capta o aspecto mutável da cidade, seu caráter transitório e a
contingência de inúmeras formas de vida ao revelar a fugacidade dos sentimentos, o desejo
intenso de viver, a desagregação, a ruína e a morte.
É certo que as cidades ficcionais não possuem densidade sociológica e suas
representações são, muitas das vezes, projeções de um imaginário que associa a Itália, a
Espanha e o Oriente como lugares exóticos, palco de ações inusitadas. Por vezes, são
simulacros dos ambientes habituais do romance gótico, prescindindo de indicações mais
específicas até quando se trata de cidades brasileiras.
Em um primeiro momento, não parece muito claro que o escritor tenha elegido São
Paulo como espaço preferido, visto que aparece uma única vez em sua literatura e por meio de
metáforas, entretanto, esse momento foi o suficiente para a “invenção literária da cidade de
São Paulo” (CANDIDO, 1989, p. 12). Vejamos, portanto, o resultado artístico da confluência
desses espaços, ou seja, como o tedioso rancho de tropeiros descrito nas cartas e as cidades do
século dos autores europeus se consubstanciam na São Paulo transfigurada de Álvares de
Azevedo.
79
2.1. MACÁRIO: SATÃ DESCORTINA O VÉU DE TRISTEZA E VÍCIOS PAULISTANOS
Macário: Esta cidade deveria ter o teu nome.
Satã: Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge.
Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila, e pobre
como uma aldeia. Se não estás reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen,
ou a alumiar-te a rolo, não entres lá. É a monotonia do tédio. (AZEVEDO, MC, p.
524).
As coincidências biográficas entre o personagem-título de Macário e Álvares de
Azevedo fizeram com que alguns críticos vissem o drama como o retrato fidedigno da vida do
artista em São Paulo. Afinal, ambos são estudantes, têm vinte anos de idade e são poetas. No
entanto, as diferenças entre Macário e Álvares de Azevedo seriam maiores que as
semelhanças. O artista era de uma família bem relacionada e excelente estudante. Macário, ao
contrário, desconhece a família e desdenha a condição de estudante e poeta: “Pois eu sou um
estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa. Duas palavras só: amo o
fumo e odeio o Direito Romano. Amo as mulheres e odeio o romantismo.” (AZEVEDO, MC,
p. 516). Décio de Almeida Prado aborda essas similitudes e diferenças, e assim como Antonio
Candido, defende que, muito mais que uma confissão velada das estroinices byronianas dos
estudantes de Direito, existe um trabalho de transposição metaforizada das queixas do artista
sobre a sua terra natal que revela uma capacidade de “pegar a realidade bruta e transformá-la
em matéria literária.” (PRADO, 1995, p. 5).
Macário é um drama composto por dois episódios (o primeiro com quatro cenas, o
segundo com dez) que, tanto do ponto de vista estrutural, quanto temático, são relativamente
autônomos. A ligação entre ambos se dá através do confronto entre o personagem Macário,
pessimista e demoníaco, e o seu duplo, Penseroso, personagem otimista e cristão. No
confronto entre os dois, está Satã, o personagem capital, que domina o “Primeiro Episódio” e
abre as portas para os vícios mais recônditos numa atmosfera noturna e onírica. Esses
personagens funcionam como máscaras poéticas que discutem o amor, a mulher, a glória e a
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literatura — as concepções de drama e os caminhos do movimento romântico — sob uma
dupla clave: a da crença e a do ceticismo.
Essas máscaras poéticas já foram comparadas aos heterônimos de Fernando Pessoa,
visto que implicam em personalidades poéticas que, não obstante, nascidas do artista, dele se
distanciam. Naturalmente, a invenção do escritor romântico difere da novidade introduzida
pelo poeta do Livro do desassossego, que escreve sobre o nascimento das novas
personalidades poéticas e, hoje, são vistas como o sintoma da crise da representação na
literatura através dos confrontos inconciliáveis: máscara / fingimento; verdade / sinceridade.
Entretanto, poderíamos destacar como ponto de contato dessas invenções poéticas a
capacidade da literatura de se reconhecer ficção, ainda que pretenda retratar o mundo:
Afirmação da ilusão das coisas e, antes de tudo, da ilusão da própria arte, a ironia
romântica busca a reprodução infinita de imagens a se refletirem de espelho em
espelho. Por isso seus motivos recorrentes são os da mascarada, do especular e do
duplo. Sua função é mergulhar o leitor num equívoco benfeitor que o faz perceber a
diferença entre o eu que vê, o eu que atua e a transparente opacidade da máscara
que, se for perfeita demais, não distinguirá da falsidade (é preciso ter consciência da
máscara). (DUARTE, 2006, p. 45).
A cisão proposta por Álvares de Azevedo permite que existam pelo menos duas
máscaras constantes e conscientes, sempre em confronto: uma que encarna todos os vícios e
desregramentos da literatura byroniana e outra pura e sentimental como na obra de Lamartine.
Essa bipartição é a expressão da grande capacidade teorização literária do poeta brasileiro
manifestada em textos (prefácios e estudos críticos), nos quais discute suas concepções
artísticas. Sobre essa capacidade de refletir sobre a literatura, Cilaine Cunha escreve: “Com
isso, ao mesmo tempo em que se aproxima do princípio romântico segundo o qual a arte deve
absorver a contradição, Azevedo propõe-se a desenvolver a sátira, tomando por referência a
discussão literária de então.” (CUNHA, 2001, p. 27).
Os dois episódios de Macário são permeados por essa discussão, sendo o momento
culminante o confronto entre Penseroso e o protagonista, onde as duas concepções estéticas,
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que dividiam a literatura brasileira daquele período vêm à tona: a oposição entre uma poesia
utópica / nacionalista e uma descrente / cosmopolita. Há uma forte crítica aos produtores de
cópias e imitações. O grande artista seria o que atua à margem da sociedade, livre para criar.
Na conversa entre Satã e Macário, o tópico aparece nos seguintes termos: “Enquanto era a
moeda de oiro que corria só pela mão do rico, ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de
cobre; não há mendigo, nem caixeiro de taverna que não tenha esse vintém azinavrado.
Entendeis-me?” (AZEVEDO, MC, p. 516). Em um diálogo com Penseroso, Macário repete o
assunto: “Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e mármores – mas a arte –
degenerou em ofício – e o gênio suicidou-se.” (idem, 549). Ao ceder às leis do mercado e
submisso às necessidades financeiras, o artista perde a sua aura de homem genial, tornando-se
ele e sua arte objetos de consumo.
Álvares de Azevedo é imbuído da tendência muito comum entre os românticos — mas
que remonta a autores como Cervantes e Sterne —, que por meio da metalinguagem, a obra
comenta a si mesma, permitindo o desdobramento narrativo. No teatro, dramaturgos como
Shakespeare e Goethe transpõem essa capacidade e fazem com que o drama expresse “aquela
fratura psicológica ou moral que denuncia o metateatro [...]: não apenas o teatro dentro do
teatro, como a rigor deveria ser, mas também da personagem desdobrada, voltada para si
mesma.” (PRADO, 1978, p. 181). No decorrer da ação dramática, o personagem-título é
desdobrado, como espelho de conflitos interiores, em pelo menos duas máscaras (Satã e
Penseroso).
Macário significa o “bem-aventurado” e “alegre”, opondo-se a Penseroso que significa
“melancólico” e “pensativo”. Na literatura, Penseroso é o personagem sinônimo da concepção
de sublime, composto pela austeridade e pelo desalento vistos como fontes de sentimentos
românticos. Curiosamente, Álvares de Azevedo subverte o sentido desses nomes. Macário é
triste e amaldiçoado. Penseroso, inicialmente, aparece cantando louvores ao progresso:
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“Esperanças! E esse descrido não palpita de entusiasmo no rodar do carro do século, nos
alaridos do progresso, nos hosanas do industrialismo laurífero? Não sente que tudo se move
— que o século se emancipa e a cruzada do futuro se recruta?” (AZEVEDO, MC, p. 508). No
fim do drama, subsiste a face da descrença e da melancolia.
No prefácio, ocorre também um interessante jogo ficcional através do uso de uma das
máscaras. O personagem Puff é o dramaturgo dessa “aspiração espontânea”. Protagonista do
poema “Boêmios: ato de uma comédia não escrita”, localizado na segunda parte da Lira dos
vinte anos, na medalha da “sátira que morde”, o personagem segue o princípio corrosivo
proposto pelo prefácio considerado “a essência do [...] pensamento crítico” (CANDIDO,
1989, p. 10) de Álvares de Azevedo. O longo poema tem como tema central a discussão entre
duas concepções de literatura. Níni é o poeta sentimental que busca a glória através da criação
literária. Puff nega e ironiza esse propósito e a literatura é somente um estratagema para
conquistar novas amantes. O antagonista é um poeta libertino, irreverente, anticlerical e
frequentador de tavernas:
Toma dez bebedeiras — são dez cantos.
Quanto a mim tenho fé que a poesia
Dorme dentro do vinho. Os bons poetas
Para ser imortais beberam muito. (AZEVEDO, LVA, p. 211).
O metateatro, entendido como uma peça encaixada em outra, talvez seja o
procedimento de melhor realização dessa pequena comédia, que se comenta, apontando os
defeitos e qualidades de sua composição é o ponto alto e desfecho da balada criada e recitada
por Níni:
Agora basta. Revelei minh’alma.
A cena descrevi onde correra
Inteira uma comédia em vez de um ato,
Se o poeta, mais forte, se atravesse
A erguer nos versos a medonha sombra
Da loucura fatal do mundo inteiro. (idem, p. 231).
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O primeiro a estudar a vinculação entre “Boêmios” e Macário foi o crítico Eugênio
Gomes (1958), para quem o drama é uma “autobiografia subjetiva” e uma “fantasia
dramática” (p. 64), estimulada pelo ímpeto de leitor frenético do artista. Poderíamos salientar
como grande mérito do estudo de Gomes, sua perspicácia crítica para com o fato de que o
escritor “transfigura” personagens e ações de suas leituras e as combina a partir de sua
realidade. Para ele, essa capacidade resultaria em uma “extravagância melodramática” e suas
personagens seriam “produto de caprichosa amálgama”. Puff seria mais um desses
amálgamas:
Trata-se de uma personagem indireta de Shakespeare, na segunda parte do
“Henrique IV”, a qual não vem à cena. O bom homem Puff de Barsan [...] é uma
celebridade local, bem considerado, portanto. Álvares de Azevedo, porém,
converteu o respeitável homem no devasso [...] um arquétipo de beberrão o que
justifica a idéia de colocar-lhe o nome no alto do prefácio de uma narrativa onde o
vapor do vinho seria a atmosfera propícia às demais e não menos absurdas
transformações. (GOMES, 1958, p. 65-66).
O estudo encaminha-se para a tentativa de articular a obsessão pela literatura à
“atividade psíquica super-individual” (p. 68) do artista. Seguindo a teoria de Carl Gustave
Jung, Gomes conclui que a literatura propiciou ao artista delírios que “desrecalcaram” forças
adormecidas em seu inconsciente que, por sua vez, teria forças que afluiriam do inconsciente
coletivo da humanidade. Não obstante o descontentamento para com a construção das
personagens, Eugênio Gomes toca em um importante dado para esse estatuto narrativo
azevediano. A remissão entre os conjuntos ficcionais construídos por Álvares de Azevedo dáse através das personagens. Poderíamos afirmar que, ao colocar Puff como o criador do
“drama que aí vai”, o autor estabelece níveis ficcionais, caracterizados pela negatividade, em
que o texto se torna tentativa, fragmento e arremedo de uma possível obra.
A fragmentação funciona como o princípio negador da possibilidade de que a obra de
arte expresse a totalidade e seja uma síntese de forças contrárias, indicando que o vislumbre
de uma instância superior não venha a se concretizar. O estilo é conscientemente difuso e
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inacabado e são, por isso, muito mais que uma ironia retórica, as expressões “ato de uma
comédia não escrita” e a frase de abertura do prefácio de Macário: “Criei para mim algumas
idéias teóricas sobre o drama. Algum dia, se houver tempo e vagar, talvez as escreva e dê a
lume.” (p. 507). A ideia de fragmento “é por natureza uma denegação da síntese”
(PORTELA, 2004, p. 256) e abre caminho para a modernidade.
Sob o signo da inspiração e da liberação de regras, Puff sinaliza a nova estética que
abjura o drama clássico, que buscava a integração entre as partes dramáticas: “As agonias da
paixão, do desespero e do ciúme ardente quando coam num sangue tropical não se derretem
em alexandrinos, não se modulam nas falas banais dessa poesia de convenção que se chama
conveniências dramáticas.” (AZEVEDO, MC, p. 508). Portanto, o personagem é uma diretriz
importante, ainda que subverta o sentido de sua fonte original. Filiando-se a uma longa
tradição dramatúrgica, do teatro grego a Hoffmann, Puff discorre sobre uma concepção
dramática que expressasse: “A vida e só a vida! mas a vida tumultuosa, férvida, anelante, às
vezes sanguenta — eis o drama.” (idem, p. 508). Nega que Macário seja a realização de sua
utopia dramática: “Esse drama é apenas uma inspiração confusa — rápida — que realizei à
pressa como um pintor febril e trêmulo.” (idem, p. 509). A classificação e, portanto, o
enquadramento em um gênero, também, são negados: “Quanto ao nome, chamem-no drama,
comédia, dialogismo: — não importa. Não o fiz para o teatro é um filho pálido dessas
fantasias que se apoderam do crânio” (idem). O direcionamento da obra estava delineado,
ainda que esta se caracterize como um “sonho” esboçado em uma “noite de insônia”. O
fragmento e a liberação de regras se coadunam aos temas da noite e do sonho.
No texto, há uma preferência pela atmosfera noturna a ponto de atingir a escuridão,
literal e metafórica. A noite funcionaria como ambiente e tempo em “que os valores se
invertem e as regras diurnas já não se aplicam.” (ALVAREZ, 1996, p. 47), dando espaço para
o advento do sinsitro, do horrível, do tenebroso, nas raias do grotesco.
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A irracionalidade, a sensação de mistério e o medo são aguçados pelo manto da
escuridão. As luzes fosforescentes e translúcidas (o luar é uma imagem usada à exaustão)
seriam outros elementos que compõem a atmosfera noturna, trazendo uma iluminação
insuficiente e bruxuleante que intensifica as sombras e contribui para o estado de incerteza e
ambiguidade. A antítese entre o homem solitário e a natureza grandiosa é outra imagem
recorrente e se manifesta junto com a predileção pelos temas hibernais, os relevos selvagens,
as extensões marítimas, as ruínas e os crepúsculos.
Alfredo Bosi (1993) destaca na obra azevediana um estranhamento e assimetria entre
homem e natureza que se reflete na evocação das paisagens em horas de sombra produzindo o
contraste entre o mundo que some e o espírito que sobrevive. A noite converte-se, deste
modo, em elemento que permite ao eu romântico expressar as desarmonias de sua alma. Errar
em plena noite funciona como técnica alucinógena, cujo objetivo é fazer aflorar o que há de
mais primitivo no homem; vagar pela cidade à noite equivale a percorrer os caminhos
sinuosos do inconsciente. Agora, o grande palco das emoções humanas é a cidade, visto que a
cisão entre sujeito e natureza não permite mais que esta seja o cenário das emoções do
indivíduo. Macário, consoante ao quadro noturno do romantismo, nega e ironiza a busca da
natureza como fonte de expressão artística:
Macário: Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo
que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos, ao luar sonolento,
às noites límpidas, acho isso sumamente insípido. Os passarinhos sabem só uma
cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono.
(ÁLVARES, MC, p. 516).
A noite seria também o momento da visitação dos sonhos que adquirem um estatuto
fundamental para os românticos: “Nossos sonhos são uma segunda vida”. (NERVAL, apud
ALVAREZ, 1996, p. 177). A atmosfera onírica representa, concomitantemente, um elemento
estrutural para a obra de arte quanto “um ingrediente essencial da angústia romântica” (idem,
p. 189). Sonhava-se porque havia o desejo de uma outra existência livre das imposições
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sociais. Sonhava-se porque era o acesso a uma outra lógica composta pelos medos e desejos
secretos que não se mostravam à luz do dia.
A desorientação e a dubiedade suscitadas pela atmosfera onírica criam a porta de
entrada para a irrupção do fantástico. Todorov (1970) ao analisar a narrativa fantástica cria as
categorias que vão do estranho ao maravilhoso, isto é, se na obra prevalece o caráter insólito
ou sobrenatural, após o período de hesitação do “fantástico puro”. No entanto, a presença do
fantástico, seja estranho ou maravilhoso, indica que se busca tratar daquilo que se
escamotearia numa obra “realista”. Obliquamente, temas polêmicos e censurados são postos
em cena e atribuídos a instâncias que fogem do controle humano:
Tomemos uma série de temas que provocam frequentemente a introdução de
elementos sobrenaturais: o incesto, o amor homossexual, o amor a vários, a
necrofilia, a sensualidade excessiva... [...] O fantástico é um meio de combate contra
uma e outra censura: os desencadeamentos sexuais serão mais bem aceitos por
qualquer espécie de censura se pudermos atribuí-los ao diabo. (TODOROV, 1970, p.
161).
Em Macário, essa ambivalência e densidade proporcionadas pela noite e pelo sonho
são intensificadas pela presença de um anjo decaído, moderno e filosófico, responsável por
apresentar ao protagonista, entre cínico e desesperado, o lado obscuro do homem e os vícios
da cidade destino do estudante. O encontro de Macário e Satã ocorre sob essa clave de
dubiedade e hesitação do fantástico. Acontecimentos estranhos em uma noite chuvosa – a
fuga da montaria de Macário, a mulher da estalagem com traços disformes, vozes
indeterminadas de fora da cena – acompanhados por um viajante misterioso que recusa
identificar-se imediatamente formam o deslizamento entre sonho e realidade que se intensifica
na cena “Ao luar”. Somente após uma espécie de pacto o desconhecido concede revelar o
nome:
O Desconhecido: Aperta a minha mão. Até sempre: na vida ou na morte!
Macário: Até sempre na vida e na morte! [...]
O Desconhecido: Eu sou o diabo. Boa noite, Macário. (AZEVEDO, MC, p. 522).
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Portanto, a presença de Satã, além da referência ao Fausto de Goethe (“A maior
desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles...”, [idem]), é o signo da transgressão
moral. Satã perde seu caráter de “espantalho cômico” da Antiguidade e se torna um cavalheiro
cínico e descrente encarnando o espanto, a melancolia e a tragédia. A gargalhada estridente é
trocada pelo riso sombrio e maligno. A sofisticação da presença maléfica faz com que
Macário duvide se havia encontrado, realmente, o diabo. A hesitação aparece em falas
paroxísticas e irônicas:
Macário: E tu és mesmo Satã?
Satã: É nisso que pensavas? És uma criança. Decerto que querias ver-me nu e ébrio
como Calibã, envolto no tradicional cheiro de enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo
em pessoa! Nem mais nem menos: porque tenha luvas de pelica, e ande de calças à
inglesa, e tenha os olhos tão azuis como uma alemã? Queres que te jure pela Virgem
Maria? (AZEVEDO, MC, p. 527).
O suspense mantém-se até o fim do primeiro episódio quando, após deambular por um
lugar indeterminado que chega aos limites da cidade paulista (o nome da cena do passeio
noturno é composta por um artigo indefinido e de um substantivo desacompanhado de outros
complementos explicativos: “Num caminho”), amanhece e a estalajadeira atesta a passagem
do diabo:
Macário: O diabo! (Dá uma gargalhada à força.) Ora, sou um pateta! Qual diabo,
nem meio diabo! Dormi comendo e sonhei nestas asneiras!... Mas que vejo!
(olhando para o chão) Não vês?
[...]
A Mulher: Tem pé de cabra... um trilho queimado... Foi o pé do diabo! o diabo
andou por aqui! (AZEVEDO, MC, p. 537).
O companheiro infernal de viagem apresenta os signos da cidade paulista a Macário.
Na noite, reina Satã, que transita pelas ruas da cidade, como um voyeur amoral, detectando o
vício nos lugares públicos, na multidão, nas ruas. A curiosidade do jovem aprendiz é
respondida da seguinte forma:
Satã: Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são mulheres, os padres
são soldados, os soldados são padres, e os estudantes são estudantes: para falar mais
claro, as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os
estudantes vadios. (AZEVEDO, MC, p. 524).
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Eis a multidão que habita a São Paulo ficcional, sendo que a cartografia urbana não
recebe melhores predicativos. Pelas ruas tortas e mal iluminadas, em péssimo estado de
conservação, reclamação constante nas cartas, transitam beatas e frades blasfemos. Elementos
prosaicos da cidade, como as calçadas, são descritos para demonstrar a decadência urbana e
espiritual:
Satã: [as calçadas] São intransitáveis. Parecem encastoadas tais pedras. As calçadas
do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e os
cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão
que eu estou enjoado. [...] Antigamente o diabo corria atrás dos homens, hoje são
eles que rezam pelo diabo. (AZEVEDO, MC, p. 524)
Em Macário, a religiosidade excessiva e hipócrita é abordada de maneira cruel por
Satã. São descritas rezas ao demônio, monges devassos, beatas dissimuladas ou crédulas, em
uma dura crítica a uma falsa religiosidade — por conveniência ou ignorância — que é tão
perniciosa quanto o sexo desenfreado: “Acredita que faço-te um favor muito grande em
preferir-te à moça de um frade que me trocaria pelo seu Menino Jesus, e a um cento de padres
que dariam a alma, que já não têm, por uma candidatura.” (idem, p.524).
A cidade das cartas, provinciana e diurna, que enfastiava os jovens estudantes,
transmuda-se em um local misterioso. Passa a espaço revelador do macabro, marcado pelo
grotesco. São Paulo aparece na literatura do prosador romântico, por meio de uma linguagem
metafórica, sarcástica e epigramática. Em comum com as cidades do século, apenas a
atmosfera de libertinagem e perdição.
Ainda que transfigurada, a São Paulo oitocentista deixa transparecer o tédio
provinciano. Satã, ao descrever cinicamente as atividades dos jovens estudantes residentes,
deixa entrever as limitações da cidade e adverte Macário: “Se não estás reduzido a dar-te ao
pagode, a suicidar-te de spleen, ou a alumiar-te a rolo, não entres lá” (AZEVEDO, MC, p.
524). Todas as ações dos acadêmicos narradas nas cartas, ou seja, as brigas, as festas e o
tédio, aparecem na fala sarcástica de Satã.
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A descrição da paisagem é, talvez, um dos grandes momentos desse passeio noturno.
As sombras que cobrem a cidade ganham matizes melancólicos e fúnebres: “Hás de vê-la
desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia,
iluminada, mas sombria como uma essa de enterro.” (AZEVEDO, MC, p. 523). A atmosfera
sobrenatural que envolve a urbe é reforçada, a partir de signos reais, de seus pântanos e de sua
péssima iluminação: “Oh! Vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis
um pântano escuro cheio de fogos errantes” (idem, p. 526). Os pântanos fétidos e pestilentos
da realidade se transmudam em lugar de natureza evanescente. As ruínas e o cemitério que
cercam o espaço urbano são outros elementos, que aparecem em um jogo de luz e sombra,
rendendo uma bela imagem poética, mas é o belo horrível, em uma conjunção entre sublime e
grotesco, que atraem a atenção do protagonista, pelo mórbido que predomina na paisagem:
Macário: Que ruínas são estas? É uma igreja esquecida? A lua se levanta ao longe
nas montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, e branqueia os pardieiros escuros
do convento. [...]
Satã: É uma propensão singular a do homem pelas ruínas. Devia ser um frade bem
sombrio, ébrio de sua crença profunda, o Jesuíta que aí lançou nas montanhas a
semente dessa cidade. Seria o acaso quem lhe pôs no caminho, à entrada mesmo, um
cemitério à esquerda e umas ruínas à direita? (AZEVEDO, MC, p. 526)
Na visão pessimista de Satã, a origem de São Paulo é narrada como uma cidade
nascida entre escombros, cemitério e ruínas. O caminho para o progresso nasce de um
passado de mistério e morte, diferente do tom otimista dos primeiros cronistas que louvavam
a abundância e a fertilidade da terra brasileira. Nesse caso, a semente germinou num solo
marcado pela destruição e pela morte.
As pessoas que habitam o cenário ficcional contribuem para aumentar a aura de
perdição e decadência. Mas, as atenções de Satã e de Macário se voltam para as mulheres. Na
primeira cena, a mulher aparece em termos antitéticos debatidos intensamente: “ange et
bête”. Existe um ideal feminino que representa a mulher como anjo, santa, criança ou, ainda,
através do arquétipo da bela adormecida. Na discussão sobre o tema, Macário concorda que a
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verdadeira pureza de alma independe do corpo que habita, porém afirma, na sua habitual
arrogância, que prefere a castidade aliada a dotes mais valiosos materialmente. Para ele, só é
legítimo o melhor vinho na taça mais preciosa:
Macário: Tens razão: a virgindade d’alma pode existir numa prostituta, e não existir
numa virgem de corpo. — Há flores sem perfume, e perfume sem flores. Mas eu não
sou como os outros. Acho que uma taça vazia pouco vale, mas não beberia o melhor
vinho numa xícara de barro. (idem).
Num polo oposto, aparece a meretriz como sinônimo de doença e podridão moral: “O
desconhecido: Tua comparação é exata. A meretriz é um cadáver.” Com cinismo, Macário
replica: “Vale-nos ao menos que sobre seu peito não se morre de frio!” (AZEVEDO, MC, p.
521). A imagem persiste quando Satã descreve as mulheres paulistas. Se as cartas são
povoadas pela moças da aristocracia, no drama, as mulheres ressaltam o aspecto de
venalidade e pecado do ambiente citadino:
Satã: A única que tu ganharás será nojenta. Aquelas mulheres são repulsivas. O
rosto é macio, os olhos lânguidos, o seio morno... Mas o corpo é imundo. Tem uma
lepra que ocultam num sorriso. Burifarinheiras de infâmia dão em troco do gozo o
veneno da sífilis. Antes amar uma lazarenta! (AZEVEDO, MC, p. 525-526)
As doenças e o meretrício eram comuns a São Paulo colonial. Um dos grandes
achados para a transposição da São Paulo factual para a São Paulo literária consiste nas
referências históricas entremeadas no diálogo de Satã e Macário de forma sutil e hábil. O
ambiente colonial onde os viajantes entre os séculos XVIII e XIX registravam duas cidades
opostas no que diz respeito ao comportamento feminino é exposto metaforicamente por Satã.
De um lado, fervilhava um comércio sexual que fascinava os visitantes da cidade. A
libertinagem literária encontra respaldos numa realidade tão sórdida quanto a ficção:
Tanto uns como as outras envolviam-se em longas capas de lã, dotadas de golas que,
levantadas, lhes escondiam metade do rosto, [...] e nos conduz(em) a uma das
fascinantes imagens da São Paulo daquele tempo: uma dança de sombras, movida a
desejos irrefreáveis, a desenvolver-se em torno dos largos e ruelas. [...] [surgem]
aspectos mais crus da realidade, ao apontar uma inevitável conseqüência de tão ativo
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comércio sexual [...] uma prostituta ao ser perguntada se era portadora de sífilis,
devolveu: “E quem não é?”. (TOLEDO, 2003, p. 273).
Parece que o próprio Satã descreveu a resposta cínica dessa anônima perdida em uma
cidade com o “apelo de uma eterna ronda noturna”. Por outro lado, as mulheres das famílias
importantes eram escondidas em casas que lembravam verdadeiros serralhos muçulmanos
com as gelosias que impediam qualquer contato com a rua:
Em meados do século desencadeou-se uma campanha para acabar com as rótulas,
responsáveis pela atmosfera de muçulmana melancolia que impregnava a cidade. Os
mais tradicionais reagiram e argumentando que eram cômodas e serviam ao
propósito de ocultar as famílias. (TOLEDO, 2003, p. 321).
No entanto, essa realidade é transposta refratariamente na ficção e é extrapolada. O
ambiente colonial de São Paulo com resquícios de cidade moura: “Na arquitetura e nos
costumes, São Paulo trairia a influência espanhola, o que representaria mais um traço
distintivo com relação às vilas litorâneas.” (idem, p. 168) permite que um elemento tido como
exótico pelos românticos — o Oriente representado pela presença moura em Espanha — faça
com que seja criado um perfil misterioso de mulher: inacessível e sedutora ao mesmo tempo.
Subitamente, a tacanha população feminina de mulheres encerradas atrás de grades e
circulando nos pátios internos das casas surge como uma legião de “mujeres de alma
atravesada”. Sob as mantilhas negras, Macário sonha com a mulher fatal tão decantada no
romantismo:
Macário: Oh! A mantilha acetinada! os olhares da Andaluza! e a tez fresca como
uma rosa! Os olhos negros, muito negros, entre o véu de seda dos cílios. Apertá-las
ao seio com seus ais, seus suspiros, suas orações entrecortadas de soluços! Beijarlhes o seio palpitante e a cruz que se agita no seu colo! Apertar-lhe a cintura, e
sufocar-lhes nos lábios uma oração! Deve ser delicioso!
Satã: Tá! Tá! Tá! — Que ladainha! parece que já estás enamorado, meu Dom
Quixote, antes de ver as Dulcinéias! (AZEVEDO, MC, p. 525).
Satã repudia o desejo de seu pupilo que espera ansioso o encontro com as mulheres
que lembram as andaluzas aventureiras e sedutoras. Novo dado histórico se superpõe ao
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arquétipo da mulher fatal espanhola, são casos de moças que buscavam amantes pelas ruas
tortuosas e becos escuros, perdidos “nas profundezas do tempo”. Macário alude à lenda:
Tem-se-me contado muitas bonitas histórias. Dizem na minha terra que aí, à noite as
moças procuram os mancebos, que lhes batem à porta, e na rua os puxam pelo
capote. Deve ser delicioso! Quanto a mim, quadra-me essa vida excelentemente,
nem mais nem menos que um Sultão escolherei entre essas belezas vagabundas a
mais bela. (idem, p. 525).
O jovem deleita-se com a ideia de ter a seu desejo tantas mulheres tão livres. Satã,
impiedosamente, desfaz as ilusões com aquelas moças que, quando não são interesseiras, são
descritas como feias, desleixadas, não cuidando da saúde em detrimento da beleza física. A
imagem sedutora é trocada por uma grotesca: “Demais são beatas como uma bisavó; e sabem
a arte moderna de entremear uma Ave-Maria com um namoro; e soltando uma conta do
rosário lançar uma olhadela. [...] Mas as moças poucas vezes tem bons dentes.” (AZEVEDO,
MC, p. 524).
Termina a segunda cena, justamente, na iminência de entrar na cidade paulistana e
após outra discussão sobre as mulheres, Macário conta um caso que caberia, perfeitamente,
em meio às confissões atormentadas de Noite na taverna. Trata-se de uma experiência
excêntrica com uma desconhecida é a deixa para que, novamente, surja o questionamento a
respeito da verdade e a ilusão do mundo. Imagens de beleza meduseia são povoadas por um
mundo em decomposição:
Satã: É tarde. Agora é uma caveira a face que beijaste — uma caveira sem lábios,
sem olhos e sem cabelos. O seio se desfez. A vulva onde a sede imunda do soldado
se enfurdava — como um cão se sacia de lodo — foi consumida na terra. Tudo isso
é comum. É uma idéia velha, não? (AZEVEDO, MC, p. 530).
A conversa é interrompida pela chegada da meia-noite, quase uma entidade, que
levará, mais adiante, o personagem ao passeio mais aterrador de todos: “Macário: Sim. É a
meia noite. A hora amaldiçoada, a hora que faz medo às beatas, e que acorda o ceticismo.
Dizem que a essa hora vagam espíritos, que os cadáveres abrem os lábios inchados e
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murmuram mistérios...” (AZEVEDO, MC, p. 531). O convite para ir ao cemitério, um espaço
em que não se aplicam regras e razoamentos, e ter sonhos “como ninguém os teve” acaba
como uma descida ao inferno em que contempla a face da morte. Acordando de um pesadelo
opressivo, Macário escuta, de forma sobrenatural, as últimas palavras da própria mãe.
Esconjura Satã e, na última cena, fecha-se o périplo da noite infernal com o amanhecer
aturdido na estalagem.
O drama continua com o segundo episódio, onde saímos de São Paulo, ou do caminho
tortuoso que a separa do litoral, para uma Itália sem a força do cenário do episódio anterior.
Predominam os espaços íntimos, os nomes são, sugestivamente, as marcas de recolhimento e
imprecisão: Numa sala (cena 4), A mesma sala (cena 5), Uma sala (cena 7), O quarto de
Penseroso (cena 8). O trânsito nos espaços externos também é indicado da mesma forma
indeterminada: Uma rua (nome de duas cenas: 6 e 10), A porta de uma taverna (cena 9).
Por um breve instante, a natureza aparece como um dado acolhedor e ameno:
“Penseroso: [...] O luar está belo, e passaremos a noite conversando em nossos sonhos e
nossos amores...” (AZEVEDO, MC, p. 542). Uma intensa introspecção e negação do mundo
externo se processam no desenrolar dos diálogos chegando a um alheamento total:
“Penseroso: [...] A lua avermelhada não lança luz no céu escuro: nem a brisa no ar: é uma
noite de verão ardente como se a natureza também tivesse febre a febre que inflama meu
cérebro...” (idem, p. 547).
Predomina o aspecto de “dialogismo” apontado no prefácio: diálogos que reproduzem
um intenso debate entre as ideias dos personagens, perdendo a dinamicidade e concisão do
primeiro episódio. A discussão sobre a desilusão do amor, do progresso e da literatura prepara
a atmosfera para a obra seguinte, em que as ações insólitas e frenéticas aparecem como
consequência do desespero: “O desfolhar das ilusões anuncia o inverno da vida.”
(AZEVEDO, MC, p. 554).
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Penseroso desperta “uma fibra” esquecida no coração de Macário, a do amor e da fé,
mas sucumbe ao ceticismo do amigo e se mata. Italiana, a noiva de Penseroso, aparece sem
consistência dramática e é, apenas, uma variação do tópico da mulher idealizada, pura e
etérea. Com a morte de Penseroso, morrem as ilusões e Satã consegue arrastar, mais uma vez,
o personagem-título para uma nova viagem, como se confirmasse a premissa: “Mas o mundo
é do diabo como o céu dos tolos.” (AZEVEDO, MC, p. 554). O desespero do personagem
reafirma, definitivamente, o pacto do primeiro episódio: “Abrir a alma ao desespero é dá-la a
Satã. Tu és meu. Marquei-te na fronte com o dedo. Não te perco de vista. Assim te guardarei
melhor. Ouvirás mais facilmente minha voz partindo de tua carne que entrando pelos teus
ouvidos.” (AZEVEDO, MC, p. 561).
A dubiedade do primeiro episódio permanece na última cena (Uma rua), posto que
Macário está embriagado e não existe um limite muito claro entre a realidade percebida e as
alucinações do álcool. Sugestivamente, a epígrafe que “encaixilha” ambas as obras é uma
pergunta de Hamlet que questiona:
How now, Horatio? You tremble, and look pale:
Is not this something more than fantasy?
What think you on’t? (AZEVEDO, NT, p. 564).9
Ilusão, fantasia, mistério, sonhos. As histórias contadas parecem alucinações de
mentes embriagadas. Novamente, somos lançados na incerteza e, assim, começa o romance de
Álvares de Azevedo.
9
Tradução livre: “Então, Horácio? Estás tremendo e pareces pálido. / Não é isso mais que simples ilusão? / Que
pensas?”.
95
2.2. NOITE NA TAVERNA: DESREGRAMENTOS EM UMA TAVERNA IMAGINÁRIA
Pois bem, dir-vos-ei uma história. [...] Não é um conto, é uma lembrança do
passado. (AZEVEDO, NT, p. 567).
Noite na taverna é um romance negro, cujos personagens transgridem os limites
morais e sociais, cometendo crimes que desafiam a ordem vigente. A obra pertence a uma
vertente romanesca que, assim como ocorre com o drama, é considerada um gênero híbrido.
Sua organização interna apresenta dois polos em constante tensão: o herói problemático (antiherói ou herói demoníaco) em oposição ao mundo estabelecido. O romance negro será o
precursor desse sujeito que dotado de um niilismo extremo, nega a realidade e chega a um
nível de estranhamento em que não há vinculação entre o eu e o mundo.
No romance, a cisão e o alheamento em relação ao mundo resultam no rompimento do
contrato social. As amarras civilizadoras mostram-se fracas diante do instinto. Destacam-se os
exercícios de libertinagem, os abusos à boa fé alheia e a sexualidade, que, mesmo não sendo
agente exclusivo, atua com força preponderante. Como uma disputa macabra cada
participante da orgia se esmera em contar um caso extraordinário mais repulsivo que o
anterior. As cinco narrativas independentes, que funcionam como se fossem capítulos-contos,
possuem a autonomia e brevidade de um conto, mantendo uma unidade temática e estrutural,
devido à rede de significados constituída pelo cenário e pelas intervenções dos figurantes.
Cada uma dessas falas funciona como disjunções humorísticas que modalizam o teor lúrido
do relato. Por exemplo, quando Bertram narra o grito de agonia depois do combate no navio,
ecoa um outro grito na taverna como se fosse a continuação parodística da história: “— Olá,
mulher! Taverneira maldita, não vês que o vinho acabou-se?” (AZEVEDO, NT, p. 577).
Embora não exista um prefácio que discuta os postulados estéticos da obra como
ocorre em Macário, o primeiro capítulo, “Uma noite do século”, funciona como uma
exposição teórica difusa para as histórias que lhe seguem, cujas temáticas estão impregnadas
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pelas noções discutidas no início da trama. Novas intertextualidades somam-se e ajudam a
construir as diretrizes estéticas e morais da obra. É interessante notar que cada um dos
capítulos-contos tem como referência temas, personagens e situações que estavam em voga
nos romances góticos de então. Álvares de Azevedo faz uma miscelânea e os funde em uma
narrativa que trabalha com a tradição do romance negro europeu. Em geral, podemos
constatar que a eleição das epígrafes nos capítulos-contos, retiradas em sua quase totalidade
de obras europeias, aponta para uma característica ou situação vivida por cada protagonista.
O prosador ultrarromântico estabelece uma nova relação com a tradição, na qual não
há mais a reprodução fiel de cânones, lembrando Victor Hugo que defendia a criação calcada
na imaginação e na inspiração alimentadas pelos motivos mais relevantes do romantismo. O
que explica a quantidade significativa de referências, alusões e citações a outras obras
literárias: “Nesse sentido, a imitação difere da mera cópia, já que permitiu ao escritor recriar
originalmente as obras consagradas e quem sabe inseri-lo, para usar o conceito de Walter
Benjamin, no medium da tradição ocidental.” (CUNHA, 2001, p. 28). Poderíamos destacar,
ainda que não seja de forma exaustiva, pelo menos, três diretrizes essenciais compostas a
partir dessas intertextualidades que ajudam a construir a narração.
As histórias de Ernst Theodor Amadeus Hoffman (1776-1822) são imprescindíveis
para a compreensão do quadro noturno existente em Noite na taverna, como também para sua
estrutura episódica. Hoffmann consegue proporcionar plenitude literária à estrutura episódica
manifestada nos contos e romances negros, revelando “um pedaço do mundo, compondo-se
num mosaico da vida.” (KAYSER, 1989, p. 65). O romance de Álvares de Azevedo
compartilha dessa fragmentação narrativa, que alcança uma amplitude que supera o
isolamento das cenas individuais. Em Hoffman, o quadro noturno é o trampolim para o
grotesco e o fantástico, ainda que exista uma explicação racional para os estranhos
acontecimentos, persiste a sensação de que algo macabro e além da compreensão humana
97
contribui para o decorrer da história. As narrativas hoffmannianas, por vezes, utilizam-se
dessa chave para a criação da atmosfera de estranhamento, utilizando: “a permanente
insegurança do leitor, quanto ao comportamento das coisas na realidade.” (KAYSER, 1989, p.
72). Os personagens oscilam entre uma explicação racional e o sentimento de fatalidade. Do
demoníaco ao macabro, a última gradação do alheamento do mundo é a loucura. Ela será a
responsável pelas atitudes, aparentemente, sem sentido das personagens. Quando isso ocorre,
indica uma existência subjetiva tão rica e onipotente que simplesmente nega tudo aquilo que
lhe é distinto e entramos numa outra realidade, onde predomina o fantástico e o sobrenatural.
Os relatos de Noite na taverna revelam o lado tenebroso de seus protagonistas em que
paira a sensação de que a vida humana está associada à fatalidade e à dor irremediável vindas
de uma instância que vai além da eterna e incorrigível maldade humana. O romance funciona
através do insólito, ou, nas palavras de Todorov, do fantástico estranho. Ao contrário de
Macário, em que todos os limites entre o sonho e a realidade eram explicados pela presença
demoníaca, a dubiedade de Noite na taverna não utiliza o maravilhoso para aceder a uma
outra dimensão. Existem explicações de outra ordem para a oposição entre real-imaginário e
real-ilusório, assim como ocorre nas narrativas hoffmanianas:
No primeiro caso, nada de sobrantural aconteceu, pois nada aconteceu: o que
acreditava ver era apenas fruto de uma imaginação desregrada (sonho, loucura,
drogas). No segundo caso, os acontecimentos se produziram, realmente, mas
explicam-se de modo racional (acasos, tapeações, ilusões). (TODOROV, 1970, p.
157).
O romance é narrado por uma máscara literária similar àquela que prefacia Macário. O
narrador principal, Job Sterne, funciona como um “amálgama” de referências e de recriação
de personagens e postulados literários. Há referência explícita ao fundador do grotesco
romântico, Laurence Sterne (1713-1768), na composição do nome do narrador de Noite na
taverna. Para Cilaine Cunha (2001), essa fusão de nomes Job, uma referência ao Antigo
Testamento, a parte fiel e temente a Deus, e Sterne, numa alusão à digressão, à ironia e à
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sentimentalidade do estilo do romancista de A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram
Shandy, são uma sinalização das diretrizes do romance de Azevedo, “antecipando que seu
estilo confrontará duas consciências, uma passiva e outra cínica e ímpia.” (CUNHA, 2001, p.
27). O personagem é o responsável por alinhavar os cinco relatos dos frequentadores dessa
taverna e tem uma visão distanciada dos acontecimentos. Suas interferências são sutis, pois o
tom profano é idêntico ao dos demais narradores e, deste modo, assegura a continuidade entre
uma e outra narrativa. Apenas percebemos a alteração de narrador através da mudança de foco
narrativo. As confissões em primeira pessoa são seguidas, sem nenhuma marcação explícita,
para a o relato em terceira pessoa. No fim do quinto capítulo-conto ocorre, de forma mais
evidente, esse deslizamento entre os focos. Claudius Hermann não consegue terminar o seu
caso e é ajudado por Arnold. Job Sterne observa a cena e faz o seguinte comentário:
Claudius soltou uma gargalhada. [...] Estava ébrio como o defunto patriarca Noé, o
primeiro amante da vinha, virgem desconhecida até então, e hoje prostituta de todas
as bocas... ébrio como Noé, o primeiro borracho que reza a história! Dormia pesado
e fundo como o apóstolo S. Pedro no Horto das Oliveiras... O caso é que ambos
tinham ceado à noite... (AZEVEDO, NT, p. 601).
Mas a alusão a Sterne, a segunda diretriz da narrativa, proporciona um outro dado
interessante: seu jogo com o tempo, pois o autor inglês será um dos responsáveis pela
autonomia da forma romanesca, em um constante jogo entre o tempo vivido e o tempo do ato
da escrita no presente da narração, adquirindo um aspecto digressivo e progressivo que, sem
ter propriamente um enredo, conjuga narrador e leitor. Em Noite na taverna, os diferentes
episódios narrativos se localizam em um jogo temporal que alia presente e passado, em que o
progredir da ação é, muitas vezes, interrompido para digressões de cunho filosófico e
metafísico.
O desespero da literatura de Alfred de Musset (1810-1857) presente em A confissão de
um filho do século (1836) representa a terceira diretriz importante para o romance escrito por
Álvares de Azevedo e ecoa no título do primeiro capítulo-conto: “Uma noite do século”.
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Deste modo, ainda que paire a incerteza e ambiguidade sob o tempo-espaço vivido pelos
personagens, o século aqui mencionado é o mesmo de uma das maiores obras do
ultrarromantismo e aponta para o sentido de contemporaneidade do romance. A confissão tem
como fundo histórico, o período compreendido entre o domínio do império de Napoleão
Bonaparte, suas conquistas e o seu fim. Noite na taverna é situada, no mesmo período, através
da intervenção de um conviva ocasional na taverna:
Fui soldado, e banhei minha fronte juvenil nos últimos raios de sol da águia de
Waterloo. — Apertei ao fogo da batalha a mão do homem do século. Bebi numa
taverna com Bocage — o português, ajoelhei-me na Itália sobre o túmulo de Dante
— e fui à Grécia para sonhar como Byron naquele túmulo do passado. (AZEVEDO,
NT, p. 578).
A “abominável enfermidade moral” retratada n’A confissão é responsável por criar a
expressão que denominou o páthos de toda uma geração: o mal du siécle. A libertinagem e o
ceticismo são os pecados confessados por Octave que nutria uma “profunda afeição do
desespero”:
Zombar, da glória, da religião, do amor, de tudo no mundo representa um grande
consolo para os que não sabem o que fazer. Escarnecem, por isso, de si próprios e se
justificam sempre como quem pretende ensinar aos outros o que devem fazer. E,
depois, é agradável julgar-se infeliz, quando se é apenas vazio e enfadado. O
deboche, além disso, primeira confusão dos princípios de morte, é uma terrível
prensa para o aborrecimento. (MUSSET, s/d, p. 17).
O mundo é uma ilusão onde imperam a crueldade no amor e as descrenças da
libertinagem. A moléstia fatal que atinge Octave decorre uma grande decepção amorosa,
quando a cortesã, que adorava, o trai. O passado de angústia o atormentará para sempre e
despertará sua capacidade em infligir torturas aos outros, mas também “sempre ávido de
sofrimentos ele mesmo” (PRAZ, 1996, p. 136). Na obra de Musset, é evidente uma insistência
com o aspecto doloroso do amor composto por sofrimentos morais através de cenas de ciúme
buscadas com sede de martírio. Analista de si mesmo, escafandrista das emoções que o
dominam e o destroem, Octave termina sozinho em meio à multidão, ruminando sua dor.
100
Após buscar um lugar ameno afastado da cidade, fonte de todos os males, Octave volta para a
fervilhante Paris a fim de esquecer seu novo amor malogrado.
A obra de Musset é importante para compreender a gênese dos personagens de Noite
na taverna que também respiram a mesma curiosidade do mal. Na noite de Azevedo, a vida é
uma mistura de miséria, loucura, desejos insatisfeitos, crimes e virtudes. Embriagados, sob as
luzes do ambiente fechado e fumacento da taverna, personagens contam suas desventuras e
atrocidades passadas com uma volúpia doentia pelo crime, de prazer extraído da dor que
causaram a outros. Também, para eles, não há felicidade possível e se debatem em meio às
recordações dolorosas.
Sob a epígrafe de José Bonifácio: “Bebamos! Nem um canto de saudade! / Morrem na
embriaguez da vida as dores! / Que importam sonhos, ilusões desfeitas? / Fenecem como as
flores.” (AZEVEDO, NT, p. 565), ocorre uma discussão travada entre alguns participantes da
festa: Solfieri, Bertram, Archibald e Johann. Assim como no Prefácio de Macário, há uma
quantidade colossal de autores, obras e teorias aos quais os personagens se filiam. De Platão a
Ficht, passando por Schelling, Spinoza, Malebranche, Hume, Epicuro até Hoffmann, a lista é
extensa e ajuda a problematizar a descrença alimentada pela efemeridade da vida e a suposta
ausência de Deus. O amor não existe, a vida é uma ilusão, portanto, deve ser aproveitada ao
máximo, fazendo-se tudo aquilo que proporcione prazer. O tópico da libertinagem deixa de
ser uma possibilidade como em Macário para se converter em ação e única saída para os
sonhos destruídos:
No outro tempo o sonho da minha cabeceira era o espírito puro ajoelhado no seu
manto argênteo, num oceano de aromas e luzes! Ilusões! a realidade é a febre do
libertino, a taça na mão, a lascívia nos lábios, e a mulher seminua trêmula e
palpitante sobre os joelhos. (AZEVEDO, NT, p. 566).
A filosofia epicurista, aliada à perversidade libertina, é adotada como moral e regra de
conduta, deixando transparecer um ceticismo similar ao de Macário, em seu extenso diálogo
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com Penseroso no segundo episódio do drama. O sentimento descrente e anti-religioso que se
desenvolve num crescente no drama, em Noite na taverna, é a marca recorrente e se afirma
logo no início da trama. Deus é uma utopia que assegura apenas uma sensação de conforto,
sem a possibilidade de intervenção efetiva nos sofrimentos humanos. A religião seria apenas
mais uma forma de opressão e violência:
— Blasfêmia! — e não crês em mais nada: teu ceticismo derribou todas as estátuas
do teu templo, mesmo a de Deus?
— Deus! Crer em Deus! sim como o grito íntimo o revela nas horas frias do medo
— nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roçar úmida por nós! Na
jangada do náufrago, no cadafalso, no deserto — sempre banhado do suor frio — do
terror é que vem a crença em Deus! — Crer nele como a utopia do bem absoluto, o
sol da luz e do amor, muito bem! Mas se entendeis por ele os ídolos que os homens
ergueram banhados de sangue, e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore
há cinco mil anos! não creio nele! (idem, p. 566-567).
O romance compartilha, também, da mesma atmosfera evanescente e incerta de
Macário, e se estabelece desde o primeiro capítulo:
— O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos!
Após dos vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores em nome de todas
nossas reminiscências, de todos nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas
esperanças que desbotaram uma última saúde! A taverneira aí nos trouxe mais
vinho: uma saúde! O fumo é a imagem do idealismo, é o transunto de tudo quanto
há mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma!
(idem, p. 565-566).
Sob a espessa nuvem dos vapores do vinho e do fumo, surgem as histórias de antiheróis, protagonistas singulares que, por diferentes razões, não recuperam a ordem perdida,
um dano sofrido, pois não conseguem restaurar ou minorar o sofrimento adquirido porque
suas forças não são suficientes e eles acabam derrotados pelo mundo, como o personagem
Claudius Hermann que tenta buscar a felicidade, mas não tem sucesso. Ou porque, embora
reconhecendo a degradação do mundo à sua volta, não desejam mudar nada são céticos e
irônicos, nesse caso, Johann é o personagem mais significativo. Uma terceira variante é o
personagem Bertram, cujo cinismo beira à crueldade, pois conhece as regras do jogo e longe
de querer modificá-las, julga que a saída é usá-las em proveito próprio. Os personagens
102
masculinos, portanto, encarnam o ceticismo e a desilusão, suas narrações não abandonam o
caráter de confronto dialógico presente em Macário e corroem e conspurcam valores e
sentimentos que lhes eram valiosos.
A literatura e, mais especificamente, a poesia e o poeta aparecem como tópicos
recorrentes de discussão no romance e denotam um dos tantos pontos de continuidade
temática com Macário. O poeta é a expressão do gênio, capaz de exprimir as camadas mais
elevadas do pensamento, e que, no entanto, sucumbe diante da realidade adversa. No
romantismo, o discurso sobre a arte como uma criação excelsa, digna de louvor e glória, vem
acompanhada da angústia da finitude e pela consciência de que a ação do dinheiro contribui
para o rebaixamento do artista e seu trabalho:
O gênio, a águia altiva que se perde nas nuvens, que se aquenta no eflúvio da luz
mais ardente do sol — cair assim com as asas torpes e verminosas no lodo das
charnecas? Poeta! Porque no meio do arroubo mais sublime do espírito, uma voz
sarcástica e mefistofélica te brada — meu Faust, ilusões! a realidade é a matéria.
(idem, p. 580).
A literatura aparece sob a mesma clave de discussão: “Poesia! Por que pronunciar-lho
à virgem casta o nome santo como um mistério, no lodo escuro da taverna? Por que lembrá-la
a estrela do amor à luz do lampião da crápula?” (idem, p. 590). Ou então, a denegação de seu
valor aparece sarcasticamente: “Bofé que chorei quando fiz esses versos. Um dia, meses
depois — li-os, ri-me deles e de mim e atirei-os ao mar... Era a última folha da minha
virgindade que lançava ao esquecimento...” (idem, p. 576).
Entre os descompassos românticos, está a representação feminina que, no romance,
alcança uma um patamar mais sutil e complexo. Extrapolando Macário, em que a mulher é
virginal e santa ou reles prostituta. Na taverna, predominam as estrangeiras, italianas e
espanholas mortalmente perigosas que encarnam o ideal da belle dame sans merci “que reúne
em si todas as seduções, todos os vícios e todas as volúpias.” (PRAZ, 1996, p. 196). Cada
uma das imagens de mulher pode ser associada a uma fase da vida dos protagonistas: a
103
mulher pura habita a fase dos sonhos e anseios de felicidade. É representada pela alvura,
candidez e denominada de anjo, santa, fada e criança. A mulher fatal é a desestabilizadora que
apresenta ao protagonista o viver desregrado e libertino. Suas faces são rubras, seu porte é
altivo, levam à transgressão e à loucura. A prostituta vive na noite espaço onde reina a
descrença e a desesperança. Sua aparência denuncia uma vivência de devessidão e farras. Seu
rosto é macilento e se assemelham a cadáveres em decomposição.
É possível, entretanto, encontrar algumas nuances nessas imagens femininas e,
mesmo, confluência entre elas. Na representação da virgem prevalece o campo semântico da
brancura, ora positivo, indicando luminosidade e limpidez, ora negativo, indicando palidez e
doença. Essa dinâmica processa-se, por exemplo, no conto de Gennaro. Laura10, uma moça
apaixonada pelo aprendiz de pintor, é descrita como uma forma muito alva que aparece como
sinal de sua inocência: “Era uma moça pálida, de cabelos castanhos e olhos azulados; sua tez
era branca, e só às vezes, quando o pejo a incendia, duas rosas lhe avermelhavam a face e se
lhes destacavam no fundo de mármore.” (AZEVEDO, NT, p. 583). Após seu envolvimento
com Gennaro quando é enjeitada e comete infanticídio, o palor é sinal de doença e morte. Sua
queda a aproxima da descrição utilizada para a prostituta: “Ergueu-se branca, com a face
úmida de um suor copioso [...] estorceu-se no leito, lívida, fria, banhada de suor gelado e
arquejou... Era o último suspiro.” (idem, p. 584).
A história de Laura é antecedida de uma outra, em que se repete a temática da jovem
seduzida e brutalmente deixada pelo seu amante. Bertram engana uma jovem de dezoito anos
quando é acolhido num castelo após um grave acidente. Após seduzir, raptar e desonrar a
moça ele a abandona: “A saciedade é um tédio terrível: — uma noite que eu jogava com
Siegfried — o pirata, depois de perder as últimas jóias, dela, vendi-a.” (idem, p. 574).
10
A instabilidade da criação de Álvares de Azevedo se reflete nas pequenas incorreções da narrativa. Laura é
“loira como um anjo” (NT, p. 582) e na página seguinte tem “cabelos castanhos e olhos azulados.”.
104
O tema da jovem perseguida e abandonada estava, nesse período, tornando-se um
clichê folhetinesco que era parodiado no livro Jérôme Paturot à la recherche d’une position
sociale (1842), conhecido de Álvares de Azevedo, pois o título aparece em uma das cartas à
mãe. O livro traz uma receita parodística dos efeitos previsíveis do folhetim:
Pega, senhor, por exemplo, uma jovem infeliz e perseguida. Junta-lhe um tirano
sanguinário e brutal, uma pajem sensível e virtuosa, uma confidente falsa e pérfida.
Quando tiveres em mão todos esses personagens, mistura-os, vivamente, em seis,
oito, dez folhetins e serve-os quentes. (REYBAUD, apud PRAZ, 1996, p. 102).
Mesmo sendo um tópico saturado, não elimina, no entanto, a capacidade que a figura
da jovem perseguida funcione como mote para tratar de um sensualismo obscuro e interdito,
como é o caso, dos personagens Gennaro e Bertram.
A gradação presente na história de Laura, também, aparece na terceira figura feminina
do conto de Bertram. A mulher do comandante desperta no dinamarquês emoções há muito
soterradas. Sua beleza melancólica e cerúlea atrai o jovem libertino:
O comandante trazia a bordo uma bela moça. Criatura pálida, parecera a um poeta o
anjo da esperança adormecendo entre as ondas. Os marinheiros a respeitavam:
quando pelas noites de lua ela repousava o braço na amurada e a face na mão,
aqueles que passavam juntos dela se descobriam respeitosos. Nunca ninguém lhe
vira olhares de orgulho, nem lhe ouvira palavras de cólera: era uma santa.
(AZEVEDO, NT, p. 575).
Após acontecimentos catastróficos, o naufrágio e a deriva em alto-mar, sua palidez é o
sinal da progressiva loucura diante dos infortúnios: “Era um himeneu terrível aquele que se
consumava entre um descrido e uma mulher pálida que enlouquecia: o tálamo era o Oceano, a
escuma das vagas era a seda que nos alcatifava o leito.” (idem, p. 577). O abatimento, a
loucura, a fome e a sede imprimem a palidez da morte: “O delírio tornava-se mais longo, mais
longo: debruçava-se nas ondas e bebia água salgada, e oferecia-ma nas mãos pálidas, dizendo
que era vinho.” (idem, p. 581). Até o desfecho trágico, no qual Bertram, também num acesso
de loucura, mata a pobre mulher: “Eu a vi boiar pálida como suas roupas brancas, seminua
com os cabelos banhados de água: depois não distingui mais — era como a escuma das vagas,
105
como um lençol lançado nas águas...” (idem, p. 582). A cena descrita é um exemplo de beleza
meduseia, composta de elementos que, aparentemente, se contradizem. Uma beleza triste e
decaída em que “o horrível, na categoria do belo, terminou por se tornar um dos elementos
próprios do belo: o do belamente horrível se passou, em graus insensíveis, ao horrivelmente
belo.” (PRAZ, 1986, p. 45).
Essa beleza contaminada, provida de elementos mórbidos, é o leitmotiv do conto de
Solfieri. As belezas fantasmagóricas que povoam a primeira parte do relato, formas femininas
fugidias e pálidas que transitam pela noite romana, contribuem para a atmosfera dúbia e de
sortilégio, assegurando o suspense até o clímax. O personagem fica extremamente
impressionado no primeiro encontro: “Era uma forma branca. — A face daquela mulher era
como uma estátua pálida à lua. [...] No meu delírio, passava e repassava aquela brancura de
mulher, gemiam aqueles soluços, e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo.”
(AZEVEDO, NT, p. 568). Marcado por essa visão tenta esquecê-la com outras mulheres.
Uma noite, encontra-se com uma condessa italiana, Bárbora, cuja representação é a da mulher
lúbrica, de cores vivas: “Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas
faces e a lascívia nos lábios úmidos” (idem, p. 569). Na multidão romântica, a parcela
feminina italiana é inspirada nas “condessas insaciadas” da Renascença que “proclamarão
suas paixões com toda ousadia, os seus amores luxuriosos que semeiam a ruína e a perdição
entre os homens.” (PRAZ, 1996, p. 180). No entanto, a imagem evanescente da jovem do
cemitério é mais forte e revela a tendência mórbida de Solfieri anunciada, anteriormente, pela
epígrafe do capítulo-conto: “Yet one kiss on you pale clay / And those lips once so warm —
my heart! my heart!”11 (AZEVEDO, NT, p. 568).
Na mesma noite, Solfieri, aparentemente, reencontra aquela figura do cemitério. Nesse
ponto, a predileção romântica pelas formas alvas chega ao ponto máximo de adotar a volúpia
11
Tradução livre de Byron, Cain: “... Ainda um beijo em seu corpo lívido. / E nesses lábios outrora tão quentes –
meu coração! meu coração!”.
106
fúnebre, lembrando os amores vampirescos, em que “o amor faz aliança com a tumba, a
própria beleza parece apenas uma aparição apavorante” (PRAZ, 1996, p. 91), o protagonista
comete o seu crime. A beleza se irmana à morte e a moça morta é alvo de desejo de Solfieri e
este celebra uma tétrica noite de núpcias:
Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as
despe à noiva. Era uma forma puríssima. Meus sonhos nunca me tinham evocado
uma estátua tão perfeita. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos
tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo
foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. (AZEVEDO, NT, p. 569).
Ao amanhecer, como se acabasse o efeito mágico e a moça despertasse de um sono
amaldiçoado, variante do mito da bela adormecida, muito recorrente na poesia azevediana,
sabemos que se tratava de um ataque de catalepsia. No entanto, os dois dias de delírio
seguidos da morte da jovem, faz com que Solfieri realize de uma outra forma, a sua obsessão
por mulheres macilentas e mortas: encomenda uma estátua de cera para ter uma representação
permanente dessa moça.
A Duquesa Eleonora, do conto de Claudius Hermann, é a “criatura do céu” que
proporcionaria ao libertino inglês a felicidade amorosa. Eleonara é composta antiteticamente e
seria o meio-termo entre as “formas puras” e as “formas lascivas”. Casada, mas “de tez ainda
tão virgem”; italiana que, literariamente, é a imagem da luxúria feminina, possui uma cor
irisada que atenua o rubor das faces e o negror dos cabelos. Assim, Hermann a presentifica:
Visseis-la como eu — no cavalo negro, com as roupas de veludo, as faces vivas, o
olhar ardente entre o desdém dos cílios, transluzindo a rainha em todo aquele ademã
soberbo: visseis-la bela na sua beleza plástica e harmônica, linda nas suas cores
puras e acetinadas, nos cabelos negros, e a tez branca da fronte; o oval das faces
coradas, o fogo de nácar dos lábios finos, o esmero do colo ressaltando nas roupas
de amazona... (AZEVEDO, NT, p. 589).
O palor aparece na descrição da personagem sob o efeito de narcótico, artifício de
Hermann para conseguir primeiro, aproximar-se e depois, sequestrá-la. Eleonara é a ninfa, a
Vênus, criatura mística que encarna a beleza feminina:
107
O que vi — foi o que sonhara e muito, o que vós todos, pobres insanos, idealizastes
um dia como a visão dos amores sobre o corpo da vendida! Eram os seios níveos e
veiados de azul, trêmulos de desejo, a cabeça perdida entre a nuvem de cabelos
negros — os lábios arquejantes — o corpo todo palpitante — era a languidez do
desalinho, quando o corpo, da beleza mais se enche de beleza, e como uma rosa que
abre molhada de sereno, mais se expande, mais patenteia suas cores. (idem, p. 592).
O segundo tipo feminino abandona o perfil das mulheres pálidas e melancólicas,
associadas ao ideal casto de feminilidade, ou, paradoxalmente, à morte. A mulher fatal, cujos
traços já se manifestavam esparsamente nas outras personagens, surge de forma marcante na
personagem Ângela, a amante espanhola de Bertram. Ela será a responsável por lançá-lo a
uma vida de licenciosidade. Aqui aparece uma variação temática da mulher irresistível,
símbolo de uma feminilidade prepotente e cruel, ideal exótico e erótico dos escritores
românticos, uma projeção fantástica da mulher “de alma endiabrada (alma atravesada)”
(PRAZ, 1996, p. 251):
Havia em Cádiz uma donzela — linda daquele moreno das Andaluzas que não há
como vê-las sob as franjas da mantilha acetinada, com as plantas mimosas, as mãos
de alabastro, os olhos que brilham e os lábios de rosa d’Alexandria — sem delirar
sonhos delas por longas noites ardentes! / Andaluzas! sois muito belas! se o vinho,
se as noites de vossa terra, o luar vossas noites, vossas flores, vossos perfumes são
doces, são puros, são embriagadores — vós ainda o sois mais! (AZEVEDO, NT, p.
572).
O nome da personagem é uma ironia, pois ao lado de sua aparência delicada,
coexistiam atitudes que contradiziam sua semântica celestial. Ângela comete infanticídio e,
em uma inversão da cena shakespeariana de Otelo, a mulher adúltera assassina o marido.
Bertram foge com Ângela e passa a viver aventuras noturnas desregradas e libertinas. Ângela
se torna uma George Sand andaluza: veste-se como homem, bebe, fuma: “Bebia já como uma
Inglesa, fumava como uma Sultana, montava a cavalo como um árabe e atirava as armas
como um Espanhol.” (idem, p. 573). É interessante notar que as comparações selecionadas
servem para aumentar ainda mais o caráter exótico e independente dessa personagem,
tingindo-a com toques de orientalismo. Por fim, Bertram é abandonado por Ângela, ainda que
sua lembrança persista como um “fantasma de um mau anjo perto de meu leito” (idem).
108
Completando a tríade da tipologia feminina, no início do romance e no conto de
Claudius Hermann, aparecem personagens secundárias que são caracterizadas como doentias
e lascivas. A imagem da prostituta é a da sexualidade pervertida e mórbida. No entanto,
fugindo à representação antitética, pura e impura, ocorre a problematização da personagem.
Se, em Macário, não existe a possibilidade em amar uma mulher corrompida, mas dotada de
bons sentimentos; em Noite na taverna, entremeiam-se tópicos e imagens que se rendem “ao
culto da beleza contaminada.” (PRAZ, 1996, p. 113). A pureza na prostituição é representada
pela personagem Giorgia. O crime, a volúpia e a morte iminente compõem a figura pálida
que, ainda assim, possui a lembrança do encantamento dos dias de ilusão. No último capítuloconto, quando todos os participantes adormecem, o narrador descreve o aparecimento
estranho de Giorgia:
Entrou uma mulher vestida de negro. Era pálida, e a luz de uma lanterna, que trazia
erguida na mão, se derramava macilenta nas faces dela e dava-lhe um brilho singular
aos olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza típica, uma dessas imagens que
fazem descorar de volúpia nos sonhos de mancebo. Mas agora sua tez lívida, seus
olhos acesos, seus lábios roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e
gotejante da chuva, disséreis antes — o anjo perdido da loucura. (AZEVEDO, NT,
p. 605).
Em uma trama intrincada e irregular, temas como o incesto e o aviltamento dos sonhos
são motivos condutores e responsáveis pelo desfecho surpreendente. Giorgia volta e assassina
seu irmão Johann e reencontra Arnold que é, na verdade, Artur, um antigo amor e o duelista
do combate narrado no penúltimo capítulo-conto. Confirmam-se assim, no fim do relato, as
histórias narradas durante a orgia. O reencontro dos amantes faz com que ambos se
arrependam da vida que levavam até aquele momento. Os sonhos do passado são contrapostos
à venalidade do presente. O fim trágico funciona como uma versão macabra de Romeu e
Julieta, em que ocorre a morte dos dois amantes.
Os participantes dessa noite excêntrica estão em um espaço indeterminado, cuja
localização em uma taverna à noite, sem outros elementos que a singularizem, intensifica o
109
clima de mistério. Antonio Candido (1989) aponta o mundo fechado da taverna à noite, como
o responsável por aceitarmos os descalabros dos personagens e a atmosfera obsedante dos
enredos estranhos. Em Macário, somos remetidos a uma São Paulo incipiente por meio das
pistas de Satã e depois levados a uma Itália idealizada. Em Noite na taverna, somente as
confissões narradas por cada um desses enfants du siècle possuem um lugar preciso e o
cenário é, inteiramente, europeu.
Roma, Cádiz, Londres e Paris aparecem através do testemunho dos narradores sob a
perspectiva da recordação, como palcos de ações encerradas e que, aparentemente, não
afetam, até o penúltimo capítulo-conto, o momento da narrativa. Essas cidades funcionam
mais como símbolos comportamentais do que, especificamente, um cenário. A única cidade
que possui uma descrição mais detalhada é Roma evocada por Solfieri, mesmo assim, é a
multidão profana e libertina que a particulariza:
Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a
amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo
blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez
da crença! (AZEVEDO, NT, p. 568).
A imprecisão nas descrições da cartografia urbana contribui para os contornos
esbatidos das imagens citadinas, assim como para o predomínio de um traço que funciona
como elo na pintura dessas cidades. Existe uma oposição entre espaços externos e internos.
Os primeiros funcionam como labirintos, onde os personagens circulam aturdidos pelas ruas
intrincadas e desertas, arrabaldes solitários ou em cemitérios. Os espaços internos — pátios,
castelos, teatros, estalagens e tavernas — são marcas do alheamento dos protagonistas, ainda
que sejam habitados por outras personagens. Entretanto, ambos são permeados pelo aspecto
sombrio e são propícios à evasão e à quebra da racionalidade e de regras de comportamento.
Apesar de as cidades, inicialmente, serem delineadas através de imagens consagradas
e recorrentes, a atmosfera noturna que as envolve permite um extravasamento e entramos num
110
outro tipo de espaço que ultrapassa a reprodução dos ambientes dos romances europeus. A
cidade do século presente em Noite na taverna revela-se como um tempo-espaço de
inquietude, transgressão e crime. Portanto, prevalece o mergulho na subjetividade dos
protagonistas que, ao tentarem fugir de suas prisões identitárias e do aborrecimento, acabam
revelando seus abismos morais e sentimentais.
111
3. A SÃO PAULO INVENTADA POR ÁLVARES DE AZEVEDO
Desde os primeiros estudos sobre a obra azevediana, existe a comparação entre o
espaço descrito na correspondência e o cenário do drama Macário. A continuidade temática e
composicional fez com que muitos críticos não estabelecessem uma diferenciação entre os
dois tipos de composição, que utilizavam a correspondência e a obra literária como
depoimentos para compor a biografia do artista. O texto literário seria a confissão velada de
uma personalidade ultrarromântica e a carta, a transposição direta dos sentimentos do escritor.
No entanto, constatamos as vicissitudes que acompanharam, tanto a divulgação, quanto a
exegese, da correspondência azevediana. A interdição e a perda de uma quantidade
significativa de cartas compõem um painel incompleto que impossibilita a reconstituição dos
dados biográficos do autor. No sentido de comprovar a complexidade do gênero epistolar que
se apresenta de uma forma híbrida ao permitir a expressão da subjetividade, dando conta
ainda de fatos sociais, culturais e literários, numa dimensão que extrapola a relação remetentedestinatário.
A carta é um gênero de modulações e especificidades de acordo com o interlocutor
escolhido. A sua escrita aparentemente simples traz uma série de questões referentes à relação
tanto do missivista quanto do destinatário. A eleição deste funciona como um espelho, no qual
se refletem os diferentes estados de alma do remetente. Conforme o grau de afinidade entre os
correspondentes, ocorre um maior, ou menor, desvelamento de si por parte daquele que
112
escreve, pois a reciprocidade determina as possibilidades de manifestação da subjetividade do
remetente.
Na correspondência de Manuel Antônio, há um círculo restrito de destinatários; a
descrição da rotina estudantil, a análise da sociedade paulista e a confissão de sentimentos e
percepções sobre a literatura, o amor e a morte compõem essa epistolografia. As cartas
familiares são dotadas de um estilo cordial e desembaraçado que oscila, em alguns momentos,
para confissões mais aturdidas que tornam o texto mais elaborado quanto à extensão do
assunto. Nas cartas à mãe, os excessos sentimentais são corrigidos, surgindo, em vários
momentos, passagens autoirônicas e parodísticas. Ao pai, poucas são as vezes que
encontramos um tipo de confissão mais pessoal, predominando as notícias sobre a rotina da
Academia de Direito. Dos membros da família, a que mais se aproxima da reciprocidade das
confissões espontâneas ao amigo Luís Nunes, é a irmã Maria Luísa.
Sem dúvida, o destinatário que compartilha da total confiança e estima de Manuel
Antônio é seu amigo Luís Antônio da Silva Nunes que, de fato, é o espelho onde se reflete,
sem refrações, a subjetividade do jovem artista. No excelente trabalho de Dante de Moraes
(1950), o estilo adotado nas cartas ao amigo é analisado como artificial devido ao arroubo e à
intensidade das confissões, no entanto, cumpre salientar que a amizade entre os dois era de tal
ordem que a confissão se fazia numa linguagem intensa, revelando a confiança mútua.
Entretanto, pretendemos demonstrar que a linha é sinuosa e existem sutilezas na
escrita dessas cartas e que é difícil delimitar o ponto em que o relato noticioso resvala para a
literatura, seja na forma, seja no conteúdo. Se supervalorizarmos os momentos confessionais e
descritivos, caímos na tentação de transformar a correspondência em mais uma página
literária. Ao passo que, se houver um exame restrito aos trechos em que observa o ambiente à
sua volta, corremos o risco de avaliar as cartas como uma crônica de costumes floreada
retoricamente.
113
Através das cartas não é possível comprovar as etapas de produção do artista e saber
qual dos textos foi produzido primeiro. A correspondência registra, por exemplo, que há uma
imitação do quinto ato de Otelo na carta 34. A produção do Conde Lopo é registrada na carta
37, cujos manuscritos foram publicados, em 1886, pelo amigo Luís Nunes. Uma tradução da
Parisina de Byron é menciona na carta 38. O estudo sobre Jacques Rolla de Musset e sobre a
marcha da civilização e da literatura em Portugal, mais um “poema em linguagem muito
antiga, mais difícil de entender que as Sextilhas de Frei Antão” e um “romance de duzentas e
tantas páginas” está na 55. Por fim, a menção a uma tradução do poema de Byron “Lágrima”
acha-se na 64.
Infelizmente, não há o registro da produção de Macário e talvez o romance de
“duzentas e tantas páginas” possa ser, a Noite na taverna ou O livro de Fra. Gondicário,
embora não haja referências explícitas a nenhum dos dois. No entanto, existem passagens, a
serem discutidas mais adiante, que ligam a produção de Macário a determinados períodos da
correspondência, principalmente, a carta de 1º de março de 1850, número 55, onde comenta a
produção vultosa das férias. De qualquer forma, é impossível determinar, pelas cartas o
período de produção dos textos literários e é mais provável que o missivista/artista trabalhasse
em vários textos simultaneamente.
É importante ressaltar a liberdade com que Álvares de Azevedo tratava os gêneros
literários. Esse é o motivo pelo qual tratamos, separadamente, cada um dos textos, com a
finalidade de aprofundar a forma e os temas presentes na correspondência e na literatura.
Entretanto, acreditamos que a leitura em conjunto dos vários pontos de contato permite
perceber o compartilhamento de imagens, temas e artifícios composicionais. Longe de
incorrer na afirmativa de que um gênero seria apenas a continuação do outro, preferimos
assinalar uma via de mão dupla, sem estabelecer a prevalência de uma delas. A fim de pautar
114
um trajeto de leitura, destacamos a imaginação como a diretriz que nos ajuda a melhor avaliar
a riqueza de construção desses textos.
Para Harold Osborne (1974) a imaginação ocupa um espaço importante na literatura e
na vida dos artistas do século XIX. Enquanto que para os antigos, a imaginação era
considerada como a menor das capacidades de o homem apreender a realidade, para os
românticos propiciava ao artista uma visão de verdades que transcende a capacidade da razão
abstrata. A capacidade imaginativa não se restringe a uma idealização do mundo,
característica da literatura do período, mas seria o poder de apresentar o mundo mais
interessante e mais estranho do que é habitualmente: “Encontra-se na origem da ficção.”
(OSBORNE, 1974, p. 205). O artista comunicaria de forma vívida, segundo o seu maior ou
menor potencial imaginativo, as impressões de realidades ausentes, conseguindo, deste modo,
presentificá-las para si e para o público:
A imaginação é a base da compreensão afim, por meio da qual podemos penetrar os
sentimentos de outros homens e comunicar-lhes os nossos. No fervor do entusiasmo
romântico, essas noções se fundiram numa luminiscência incandescente e ligaram-se
à nova idéia de gênio artístico. (idem).
A comunicação dos sentimentos inaugura uma nova relação do artista com sua obra:
“Encara-se essencialmente como o instrumento pelo qual entramos em contato com o espírito
criador do artista. A ser espelho, será um espelho que reflete quem o fez.” (idem, p. 182).
Entramos, portanto, no problema da representação da vida do artista na obra de arte. Levando,
ao extremo, a máxima de que “O verdadeiro tema de toda obra de arte é o artista.” (idem),
dando margem para que surgissem as análises sobre a personalidade, sentimental ou
demoníaca, de Álvares de Azevedo. Essa vinculação direta gerou, como demonstramos no
primeiro capítulo, a opinião de que Macário e Noite na taverna seriam o relato da vida dos
estudantes da Academia de Direito. Reafirmando os problemas que essas conjecturas levaram
para a leitura da obra de Álvares de Azevedo, ressaltamos que na carta, o teor confessional e
115
intimista permite que se fale da escrita como reflexo de estados de alma do autor. Em arte,
contudo, a imaginação atuaria sobre a experiência vital do artista e a obra de arte superaria a
condição de transmissora de informações factuais:
Em realidade, os artistas não são com freqüência (são-no, pelo contrário, raramente)
homens de experiência excepcionalmente vasta. O artista, portanto, precisa ampliar a
sua experiência real pela imaginação afinada, colocando-se no lugar de outro
homem ou inventando situações fictícias e reagindo a elas apropriadamente, como se
fossem reais. (OSBORNE, 1974, p. 184).
A imaginação é uma faculdade transcendente que opera a partir da transformação das
restrições da vivência do artista. É dessa forma, também, que Antonio Candido representa a
relação entre o artista e o meio onde atua ou retrata: é a capacidade de transfiguração através
da qual o artista supera a condição de produto do meio ou um foco refletor de tendências
(1976, p. 18). Por meio do “seu próprio espelho, a sua mônada individual e única” (SAINTEBEAUVE, apud CANDIDO, 1976, p. 18), consegue iluminar e mostrar de forma mais
expressiva a realidade, ainda que a modifique (idem, p. 13). Northrop Frye, ao manifestar
ideia similar, dá um passo adiante, quando trata da relação entre a experiência do artista e a
obra de arte:
Todo escritor está constantemente à espreita de experiências que parecem conter
uma história ou um poema, mas a história ou o poema não está nelas; está na
apreensão da tradição literária pelo escritor e no seu poder de assimilar a
experiência a ela. (2000, p. 52, grifo nosso)
Chegamos ao ponto fundamental a respeito da tríade experiência – imaginação –
transfiguração. As pressuposições de originalidade e revelação da subjetividade do artista no
romantismo não excluem o fato de que sua criação só é possível a partir do conhecimento da
tradição literária. Uma transmissão direta de situações e sentimentos pelo artista, ainda
segundo Frye, produziria uma arte altamente convencional. Somente a partir do
conhecimento das convenções literárias é que o artista pode subvertê-las e superá-las. Esse
norteamento faz-se presente na literatura de Álvares de Azevedo. O cosmopolitismo e a
116
consciência estética alcançados através de leitura sistemática foram os traços que buscamos
destacar no segundo capítulo, quando apontamos uma rede complexa de intertextualidades no
drama Macário e no romance Noite na taverna. O jovem ultrarromântico transpõe a sua
experiência na limitada São Paulo de meados do século XIX, quando consegue aliar o
conhecimento à capacidade imaginativa. Os momentos de grande expressão ocorrem quando
abandona a simples reprodução do ambiente onde vivia e o caráter livresco que surge em
algumas de algumas suas obras, que levam às análises que ressaltam o falso tom grave e a
adjetivação de fortes conotações românticas na poesia e na prosa.
No que tange à invenção literária da cidade de São Paulo, há uma complexa rede de
imbricações que articulam a memória e os desejos do missivista, além do conhecimento e
talento do prosador ultrarromântico. O ficcionista vive, imaginariamente, em uma cidade que
se revela como projeção e que supera a negatividade do real sem abandonar as marcas que a
vinculam e a identificam com a cidade concreta.
Nos cenários de Macário e Noite na taverna já indicamos alguns pontos de
identificação com a São Paulo descrita na correspondência, apesar da presença do grotesco
noturno e da ironia. Os personagens e o espaço de atuação como elementos composicionais da
modernidade do texto de Álvares de Azevedo, o tornam destoante do quadro literário da
época (sentimental e nacionalista). Entretanto, é pertinente a inclusão de uma nova
perspectiva nessa abordagem, visando contrabalancear as discussões presentes, tanto na
correspondência, quanto na literatura como responsáveis em aumentar as convergências
temáticas.
A fim de ampliar a análise, acrescentar-se-ia um novo aspecto iluminador do caráter
de modernidade presente na obra azevediana. A respeito da temática urbana, o poema “Ideias
íntimas” oferece um paralelo interessante com as cartas. Nele, a personagem poemática está
sozinha, entre as paredes de um quarto, assumindo uma posição distanciada frente à própria
117
existência e ao mundo ao seu redor. Um sentimento de aborrecimento e enfado atinge os
objetos e os livros. O desinteresse é geral, há o registro de ações para se distrair como fumar e
beber languidamente. A respeito desse poema, Modesto Carone escreveu “Álvares de
Azevedo um poeta urbano” em que mapeia a essência do indivíduo urbano moderno na sua
relação com os objetos, marcas de uma subjetividade restrita aos espaços íntimos:
Uma delas é que o poema trata do homem urbano tal como este se mostra submetido
à interiorização da atividade pessoal, ao desligamento progressivo da vida pública e
ao trato dos objetos caseiros como veículos de identificação. Um passo adiante, não
são alheias a este conjunto a relevância da fantasia compensatória no cotidiano
empobrecido, nem a capacidade de verbalizá-la, que especializa o poeta; acresce o
tom melancólico em que ele o faz e a ironia com que lida com os próprios
sentimentos. (CARONE, 1987, 5).
A partir da ruptura entre o indivíduo e a sua referência social, aprofunda-se a
discussão a respeito da projeção feita pelo enunciador para ultrapassar o cotidiano limitado.
Os ambientes fechados que predominam nas obras analisadas remetem, igualmente, a essa
cesura com o espaço público, seja a São Paulo de Macário, sejam as cidades europeias de
Noite na taverna. Carone trata os objetos como âncoras identitárias que seriam, duplamente, a
vinculação com o cotidiano e passaporte para uma outra realidade:
É evidente, entretanto, que o destino artístico destes não se manifesta pela via de
mão única da fantasia. Por mais que esta às vezes se mostre ditatorial, como na
literatura não-mimética, as coisas têm uma carga própria que assegura sua
integridade no texto. A força que as alimenta vem de fora – do mundo com o qual a
sensibilidade não só trabalha como é trabalhada. É natural, por isso, que a
composição adapte as suas necessidades ao objeto de que serve. [...] E se a novela é
fantástica, o fato se deve muito mais à minúcia do que à falta de detalhes materiais.
(idem, p. 1).
Os símbolos de identificação dos personagens de Macário e Noite na taverna eram
atribuídos em razão do byronismo inspirador de Álvares de Azevedo ou, diretamente, como
simples relato de sua personalidade. Na reflexão empreendida pelo crítico, o estudo da
projeção existente na cidade inventada através desses componentes que funcionariam como
índices da nova subjetividade que começa a emergir na literatura de metade do século XIX e
118
que, em Álvares de Azevedo, proporciona um elo de identificação com a sensibilidade
contemporânea de hoje.
Deste modo, é perceptível o nível em que opera, na literatura de Álvares de Azevedo,
a faculdade imaginativa. No perfil do missivista, há identificação com seus receptores e o
distanciamento em relação à sociedade da época. É interessante, observar como o autor das
cartas revela aos destinatários sua identidade e quais são os elementos que a estruturam.
Um jovem de gosto sofisticado e intelectualizado é conhecido pelos seus pedidos e
agradecimentos ao longo das cartas familiares: perfumes, roupas, sapatos, suspensórios,
espelhos, luvas de pelica, partituras musicais e livros. O rol é imenso e esses objetos, usados
ou desejados, aparecem, principalmente, em sua fase mais expansiva, quando relata a
circulação pela cidade: “Se puder mandar-me algumas luva do Rio mande-me, porque aqui as
vendem-se são de montar a cavalo — luvas inglesas — e são todas de M para cima, quando
eu calço F.” (AZEVEDO, C, Nº. 27, p. 791). Não existe registro dos objetos góticos que a
lenda atribui como predileções mórbidas de sua personalidade (a lápide servindo de mesa e
uma escultura fúnebre). Em ambientes descritos como precários, o mobiliário é modesto e
mais prosaico: candeeiros, mesa, cadeira, louças e talheres.
Tampouco, por meio das cartas, encontramos o hábito do apreciador do fumo e do
conhaque (o hábito foi divulgado no texto biográfico do primo Jaci Monteiro). O único
elemento que o aproxima da aparência dos heróis byronianos é o registro de um daguerreótipo
portando uma capa: “O meu [retrato] está muito parecido, segundo dizem — até acho muito
bonito — e está à Byron — de capa — e tão romântico achou-se isto, que tudo agora quer
tirar retrato de capa — até Tio José que aproveitou-se (plagiato!) da minha idéia no retrato
que vai.” (idem, p. 790). A rotina regrada e metódica resumida aos horários matutinos de
estudo; à tarde algumas poucas visitas; à noite o sono que cede lugar, às vezes, segundo o
missivista, nos raros bailes da cidade São Paulo desfaz a imagem ultrarromântica criada em
119
torno de Manuel Antônio e demonstram alguns traços de identificação do missivista, como
também as limitações da cidade que estava muito distante dos hábitos sofisticados da Corte.
Na literatura, esses componentes adquirem um outro estatuto e aparecem como
insígnias de transgressão dos personagens. A apresentação de Macário na estalagem é feita
por meio da disseminação de descrições de objetos que acompanham e identificam o jovem
estudante. Em comum com o missivista, apenas a montaria usada para subir a serra e a capa
byroniana. Ocupam o espaço dos códices de Direito e das luvas de pelica, a garrafa de Cognac
e o cachimbo: “Cognac! És um belo companheiro de viagem! És silencioso como um vigário
em caminho, mas no silêncio que inspiras, como nas noites de luar, ergue-se às vezes um
canto misterioso que enleva!” (AZEVEDO, MC, p. 510).
Indagado por Satã qual teria sido o precioso bem perdido na chegada à estalagem,
Macário desdenha os lugares-comuns que identificam um jovem estudante romântico do
século: “Satã: Levais de certo alguma preciosidade na mala? [...] A coleção completa de
vossas cartas de namoro, algum poema em borrão, alguma carta de recomendação?” (MC, p.
515). A substituição, por assim dizer, é feita pelo cachimbo e Macário tece elogios ao vício:
“Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite
sem mulher — não me pergunteis se fumo!” (idem). No primeiro episódio, assim como
aparece na poética, o fumo é o hábito que permite o retiro da agitação, a entrega a si mesmo,
contrário aos demais vícios da embriaguez e da orgia que o jovem diz vivenciar. Sob a fumaça
do cachimbo e os vapores do álcool, inicia-se a terceira cena, “Ao luar”, que funciona com a
continuidade da discussão presente na primeira cena, “Numa estalagem à beira da estrada”.
Inclusive, as disjunções entre uma fala e outra aparecem mais vezes na tessitura do diálogo:
“Macário: [...] O poeta árabe bem o disse — o vinho faz do poeta um príncipe e do príncipe
um poeta. Sabes quem inventou o vinho? / Satã: É uma bela coisa o vapor de um charuto!”
(idem, p. 527).
120
Consoante à atmosfera soturna e fantástica do drama, o álcool e o fumo são elementos
desestabilizadores que contribuem para criar a dubiedade, além da presença de Satã. Em Noite
na taverna, o fumo é, metonimicamente, o enevoamento dos pensamentos dos narradores, em
um processo de volatilização permanente em sua literatura e a fumaça, a imagem para a
transitoriedade terrena. De forma análoga, Satã questiona a efemeridade dos valores
constituídos, ampliando o niilismo em relação ao mundo: “E demais, o que é tudo no mundo
senão vapor? A adoração é incenso e o incenso o que é? O amor é o vapor do coração que
embebeda os sentidos. Tu o sabes — a glória é fumaça.” (idem) O álcool funcionaria como o
passaporte para o esquecimento em Noite na taverna, ao contrário de Macário que o vê como
fonte de inspiração: “Quando se tem três garrafas de Johannisberg na cabeça, sente-se a gente
capaz de escrever um poema.” (idem, p. 527).
A bem da verdade essas passagens funcionariam como pontos divergentes, nos quais a
literatura supera o prosaísmo do dia a dia do missivista. Encontramos, pelo menos, mais dois
outros processos. Um deles se caracteriza quando a ação da faculdade imaginativa já atua na
correspondência e notamos a transfiguração que acontece de uma carta a outra. O outro
processo é aquele no qual apontamos a dificuldade em saber onde se inicia a literatura e
termina a correspondência, principalmente, quando Manuel Antônio expõe os sentidos de sua
produção, a preocupação com a posteridade, o questionamento do valor da literatura e a
caracterização do ambiente onde viveu durante seus estudos universitários.
Os exemplos mais significativos do segundo momento são as descrições das moças
com quem o missivista compartilhava o sentimento de estima. Na carta de número 25 ao
amigo Luís Nunes, há o comentário do interesse por duas frequentadoras dos bailes da
Concórdia Paulistana, citadas pelas iniciais N.M. e D.Q. Ambas foram identificadas pelo
crítico Vicente de Azevedo (1976, p. 70-71), como Laura Milliet e Olímpia Coriolana da
Costa que aparecem, com recorrência, na pequena crônica dos costumes à mãe. A primeira é
121
descrita como faceira, dada a conversas com os estudantes. Trata-se de uma adolescente entre
dezesseis e dezoito anos, prometida em casamento. Entra para a história da Academia de São
Paulo como o amor platônico do quintanista Feliciano Duarte Coelho, que se mataria por
amor. Coincidência ou não, o ano da morte desse estudante é o do recolhimento inicial de
Manuel Antônio, que deixa descrever e observar os bailes e reuniões sociais. O nome de
Laura Milliet desaparece das cartas, tampouco existem comentários sobre o suicídio, o que é
bem singular, pois o artista fez o discurso fúnebre. Já Olímpia Coriolana é uma de suas visitas
mais constantes, no movimentado ano de 1848, quando informava à moça as novidades da
Corte e, sem ocultar os versos como “homem das reações” que se tornou, dedica-lhe o poema
“No álbum da Exma. Sra. D. O.”. Mas ambas têm como espaço de reinado os bailes:
Dancei umas oito contradanças e — valha-me Deus! — dancei com todos os pares
bons da sala — a saber: as três Xavieres — a D. Olímpia — e as duas filhas do
cônsul francês em São Paulo — Milliet — das quais, como mandei dizer a Nhanhã,
uma anda na roda da fama e talvez case com o Chiquinho Xavier que forma-se este
ano — foi para obstar este casamento que a família dele transplantou-se para a
Paulicéia.
Nada mais há dizer do soirée senão que a filha do Milliet, em conseqüência de ser a
língua mais ferina de S. Paulo, serviu de palito a uma poucas pessoas, Tio José e o
Dr. Meneses, etc. Tio José em vingança a uma alcunha que ela pregou-lhe — coisa
esta em que é muito pródiga. Sabe Deus qual será o meu!... contudo logo que eu o
saiba terei a honra de mandar-lhe dizer que apreciem a espirituosa rabeca da
estonteada D. Laurita. (AZEVEDO, C, Nº. 28, p. 793).
Nas cartas à mãe, no mesmo período da correspondência com Luís Nunes, não é
relatado nenhum interesse especial a qualquer uma das moças, apenas que seriam mais
bonitas e bem-educadas que as moças paulistas:
Enquanto os meus pares — idem — pois resolvi-me a dançar aqui com pares certos,
dos quais não prescindo, e em desdoiro meu ou de S. Paulo, seja dito que não são da
terra — são Xavieres — Olímpia — e Milliets, que são todas santistas. Enquanto à
gente daqui só uma vez na vida danço com as Brigadeiras (Pintos) ou com a filha do
Pacheco (que seja dito entre parêntesis, é uma menina de 13 ou 14 anos)...
(AZEVEDO, C, Nº. 29, p. 794).
No relato à mãe, Laura Milliet aparece como uma mulher bonita, mas não como a
mais bela da festa, aos olhos do exigente observador:
122
A propósito. — Esqueci-me de dizer-lhe que a Laura esteve também muito bonita.
Ofuscada porém como foi pela Bela e pela Belisária (dous nomes parecidos, não é
assim?) teve de ceder-lhes o trono da beleza que ela ocupa nos bailes da Concórdia.
(AZEVEDO, C, Nº. 47, p. 816).
De toda forma, a imagem construída para Luís Antônio equipara-se às descrições dos
perfis femininos presentes nas obras em prosa. Laura Milliet assemelha-se às mulheres puras
e angelicais, de cabelos loiros, olhos azuis, pele branca e rosada:
A N... é uma dessas moças de cabelos d’oiro e de olhos cor do céu, faces de rosa e
fronte de neves, que parecem a quem as contempla anjos esquecidos na terra a
sonhar gozos de outra vida. A certa distância, entre duas luzes esquecidas, seriam
uma imagem de Santa, um desses ideais de madeixa louras de poeta, uma dessas
sílfides que nas noites de luar vagueiam entre as neblinas, à meia-noite, a dançarem
nas relvas dos píncaros da Caledônia, uma dessas fantasiadas belezas de Ossian, um
desses anjos de Moore, desses anjos formosos que nos tempos primeiros do mundo
amaram com amor de anjo as virgens da terra, de tão belas que as acharam.
(AZEVEDO, C, Nº. 25, p. 787).
A visão idealizadora não se sustenta diante da realidade: “Porém vista de mais perto
esvai-se o encanto: o anjo torna-se mulher.” (idem). De perto, numa projeção dos desejos
íntimos do jovem, Laura adquire contornos atraentes: “O corpo da N... é corpo de mulher (tu
me entendes): apesar de não ser alta, é bastante cheia de corpo, sem sê-lo contudo em
demasia.” (idem, p. 788).
Em oposição a essa figura delineada, ao mesmo tempo, sublime e carnal, é feito o
retrato de Olímpia Coriolana. A palidez e a fragilidade são descritas como um ideal poético
perturbado apenas pelo ardor da dança, que empresta cores que formoseiam mais a moça:
A outra — a Q..., se não é uma beleza, lembra esses ideais poéticos dessas virgens
frágeis, desses delírios do vale que um sopro lança em terra: loura, mas seus cabelos
pendem mais para os castanhos, seus olhos são pardos, sua tez é pálida.
Às vezes, no ardor das danças, no prazer da conversação, ou no cansaço, sua faces se
roseiam, ficam como duas largas pétalas de rosa. (idem, p. 787).
A atração física existe, mas a forma delicada inspira mais adoração à distância, do que
uma efetiva proximidade: “A Q... não, é delicada frágil: parece que um sopro a quebraria. Um
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de seus admiradores disse que ela é mulher para se colocar dentro de uma redoma de vidro e
adorar-se de joelhos.” (idem, 788).
No fim, após a descrição das reações das moças e das emoções que elas suscitavam, o
missivista chega a uma conclusão em que tudo relembra os antagonismos românticos, sem
encontrar um ponto de ajustamento: “Contudo, Luís, não sinto que eu ame nenhuma delas. A
N... pareceu-me um anjo num momento de fascinação. A Q... parece uma santa; e não poderia
eu sentir amor por ela: às santas adora-se, mas não ama-se.” (idem).
Na descrição da cidade, o remetente sinaliza alterações na percepção cotidiana, em
particular, quando reclama da má conservação do pavimento, da presença de insetos, certos
aspectos gritantes do relaxamento reinante, que aparecem como uma crítica declarada à
administração oficial em curso. Ou, falar sobre o tempo, um dos tópicos mais comuns nas
conversas sobre as condições atmosféricas da cidade paulista:
O que eu senti que deixaram-me inchados os lugares onde me morderam, que ainda
me doem. Além disto voltamos de noute, e chegamos gelados de frio. A geada foi
tão forte nessa noute — a mais fria que tem havido este ano — que aqui no quintal
achou-se uma pedra de gelo do tamanho de uma mão. (AZEVEDO, C, Nº. 30, p.
795).
No mesmo parágrafo, após narrar a morte de um escravo causada pelo frio intenso, há
em meio ao discurso, um momento em que o real transfigura-se em beleza. O frio, as névoas e
as geadas sempre tão negativos — ou metamorfoseados, fantasticamente, na literatura —
aparecem como belos elementos constitutivos da diversidade dessa paisagem: “Era bem lindo
o espetáculo de manhã, das casas, brancas todas — e das campinas que alvejavam como se
fossem lençóis que as cobrissem.” (idem).
A carta revela-se rica de possibilidades e pode desvendar um modo de sentir e pensar
que se entremeia ao ato de relatar pequenos acontecimentos do dia-a-dia. É, justamente, pela
elaboração textual viva e dinâmica que não conseguimos traçar um limite preciso entre ambos
os gêneros. O labor artístico que se identifica na correspondência, faz com que o cenário
124
descrito se enriqueça, revelando a sensibilidade artística do escritor. A viagem de Santos para
São Paulo figura tanto em carta, quanto no drama Macário. Diante da vista magnífica do
caminho, olhar vagueia fascinado, bem devagar, envolvido na contemplação da paisagem:
Era na serra, no alto da serra. A tarde caía, os vapores azulados do horizonte se
escureciam. Um vento frio sacudia as folhas da montanha e vós contempláveis a
tarde que caía. Além, nesse horizonte, o mar como linha azul orlada de escuma e de
areia – e no vale, como bando de gaivotas brancas sentadas num paul a cidade que
algumas horas antes tínheis deixado. Daí vossos olhares se recolhiam aos arvoredos
que vos rodeavam, ao precipício cheio de flores azuladas e vermelhas das
trepadeiras, às torrentes que mugiam no fundo do abismo, e defronte víeis aquela
cachoeira imensa que espedaça suas águas amareladas, numa chuva de escuma, nos
rochedos negros do teu leito. E olháveis tudo isso com um ar perfeitamente
romântico. Sois poeta? (AZEVEDO, MC, p. 513).
Satã delineia um quadro perfeito da relação entre o homem solitário e a natureza
grandiosa, pintado com as cores atrativas e translúcidas do crepúsculo. Símbolos de finitude e
violência, representados por abismos e quedas d’água, convidam à meditação e despertam
sensações infindáveis. Conforme o estilo epigramático do diálogo entre Satã e Macário, o
jovem estudante nega e desdenha esse momento de contemplação e a condição de poeta
fascinado pela natureza indomável, respondendo de forma a contrariar o interlocutor:
“Enganai-vos. Minha mula estava cansada. Sentei-me ali para descansá-la. Esperei que o
fresco da neblina a reforçasse. Nesse tempo divertia-me em atirar pedras no despenhadeiro, e
contar os saltos que davam.” (idem).
Podemos observar uma passagem semelhante na carta para Luís Nunes, no trecho em
que o missivista descreve o entardecer em São Paulo:
O céu estava nublado e escuro. Só se via, dum amarelo avermelhado, a estrada, até
uns vinte passos, perder-se no escuro das matas negras: parecia uma ponte em um
lago de tinta. E além, lá ao longe, se levantava a cidade negra; e os lampiões,
abalados pela ventania, pareciam esses meteoros efêmeros que se levantam nos
paludes e que as tradições do norte da Europa julgavam espíritos destinados a
distrair os viandantes, a correrem sobre o pântano imenso e preto... ou estrelas de
fogo, faíscas de alguma fogueira no inferno semeadas sobre o campo negro. E do
outro lado, à minha esquerda, uma barra vermelha se estendia, formando do lado
poente um segmento de círculo no horizonte e semelhava um reflexo de um incêndio
imenso que alastrasse um lado do globo.
Eu parei o cavalo e admirei! [...] Parei e admirei esse espetáculo belo! Essas
estrelas... E a brisa balsâmica embatia e sacudia, estremecendo as capoeiras e silvava
125
nas árvores, nos outeiros: e sozinha, por entre a mudez da noite que se aproximava,
uma ave desconhecida descantava seu hino de adeus ao dia que morrera nas trevas.
E então, meu Luís, eu senti como que exalar-se de mim um hino de tristeza,
lânguido como um adeus, mas, se de lágrimas, menos amargas. E esse cântico, esse
pensamento tão doce a incensar-me a mente, era uma idéia de saudade: eras tu.
(AZEVEDO, C, Nº. 34, p. 801)
Diferente da reação do personagem de Macário, o sujeito das cartas reage intimamente
aos aspectos da natureza, com símiles fortes, de cores avermelhadas e negras com
correspondência com faísca, fogueira, incêndio e inferno. As últimas luzes contrastam com o
negror das matas e da cidade deixada para trás. A frágil iluminação dos lampiões balançados
pelo vento, em vez de funcionarem como pequenos faróis que guiam o viajante pela estrada,
evoca o fulgor de uma fogueira infernal. A beleza contaminada pelas forças da imaginação,
torna a passagem reflexo da alma, exacerbadamente, melancólica do missivista. Não falta nem
mesmo o hino de lamentação conjunto pela perda que se processa entre o eu romântico e a
Natureza. A tarde entoa um cântico por mais um anoitecer, o missivista lamenta a ausência do
amigo. A alma aniquilada pela presença poderosa da natureza também mostra sua melancolia
no trato com outras pessoas.
No drama, o desencanto presente nas falas de Macário atinge um caráter dolente no
segundo episódio do drama ao se confrontar com Penseroso. Na longa discussão travada sobre
o amor e a literatura, em que o jovem, com pretensões de libertino, questiona valores como o
amor, o valor da arte e do artista. O mundo que não aprecia o verdadeiro gênio, o
reconhecimento é tardio, após o sucesso de “uma turba embrutecida no plagiar e na cópia”. A
glória é uma ilusão, pois o público não reconhece quem tem o verdadeiro mérito:
Ilusões! O amor — a poesia — a glória. — Ilusões! Não te ris comigo da glória,
como eu rio dela? A glória! Entre essa plebe corrupta e vil que só aplaude o manto
do Tartufo e apedreja as estátuas mais santas do passado! Glória! Nunca te lembra
do Dante, de Byron, de Chatterton o suicida? E Verner poeta, sublime e febril
também, morto de cepticismo e desespero sob sua grinalda de orgia? Glória! São
acaso os loiros salpicados de lodo, manchados, descridos, cuspidos do poviléu, e que
o futuro só consagra ao cadáver que dorme? (AZEVEDO, MC, p. 553)
126
O desejo por uma mulher que obliterasse a dor da descrença, “filha enjeitada do
desespero”, revela-se como sonho que, contraditoriamente, funciona como o alívio, o enlevo
que a imaginação fecunda. O amor defendido, por Penseroso como a instância capaz de
transcender a limitada experiência humana, revela-se uma experiência interdita ao
protagonista:
Escuta. Eu também amei. Eu também talvez possa amar ainda. Às vezes quando a
mente se me embebe na melancolia, quando me passam n’alma sonhos de homem
que não dorme, e que chamam poesia; eu sinto ainda reabrir-se o meu peito a amores
de mulher. Parece que se aquela beleza de olhos e cabelos negros, de colo arquejante
e flutuoso me deixasse repousar a cabeça sobre seu peito, eu poderia ainda viver e
querer viver, e ter alento bastante para desmaiar ali na voluptuosidade pura de um
espasmo, na vertigem de um beijo.
Mas o que me agita as fibras ainda é voluptuosidade — é o ademã de uma beleza
lânguida, a sede insaciável do gozo.
São sonhos! Sonhos, Penseroso! É loucura abrir tanto os véus do coração a essas
brisas enlevadas que vêm tão sussurrantes de enleio, tão repassadas de aromas e
beijos! É loucura talvez! E contudo quando o homem só vive deles, quando todas as
portas se fecharam ao enjeitado — porque não ir bater na noite de febre no palácio
da fada das imaginações? Põe a mão no meu coração. Tuas falas mo fizeram bater.
Havia uma voz dentro dele que eu pensava morta, mas que estava só emudecida.
(idem)
Na carta 55 de 1º de março de 1850, ao amigo Luís Nunes, aparecem as inquietações
sobre o abatimento que toma conta do missivista em suas férias no Rio de Janeiro. Período de
produção febril, descrito através de estados alternados de agitação e prostração, dúvidas sobre
si mesmo, sobre o amor, a literatura e a morte. Se na passagem da serra havia modificações
substanciais que enriquecem o texto da carta, aqui poucas alterações são notadas. No
fragmento, em que Macário discute o papel do gênio, na carta, o autor problematiza o próprio
reconhecimento como artista, deixando transparecer, com intensa melancolia, suas dúvidas.
Grifamos as passagens que se irmanam ao texto literário:
.......................................................................................................................................
Eis aí pois tudo — amor, poesia! Só não te falei na glória. Nem te falo. Rir-te-ias
de mim e dela, como eu também me rio. Glória! em nossa terra! Ó cisnes brancos e
perfumados dos vapores do céu, por que descer ao charco impuro, a nodoar os
alvores, a perder os aromas? Às aves das nuvens – o céu: os poetas – sonhos.
Glórias da terra? Não te lembras de Dante, Chartteton, de Byron? Não te lembras
de Werner, poeta e grande também morto de cepticismo e desesperança sob sua
grinalda de orgia? Glórias da terra!... os aplausos da turba! enfezados louros, o
mais das vezes tressuados de sangue, salpicados do lodo insulto e da baba da
inveja... (AZEVEDO, C, Nº. 55, p. 824).
127
Existem acréscimos dando conta de sua situação sentimental, contudo, em substância,
o desejo insatisfeito por uma mulher que atendesse à expectativa de transcendência é idêntico:
Luís, é uma sina minha que eu amasse muito e que ninguém me amasse. — Eis a
ironia que ai me vem no meu acabrunhar sombrio, nesse meu não crer do que os
outros creiam. [...]
Às vezes ainda — e hoje na minha solidão é essa minha ventura — quando a mente
se me embebe no ebrioso de uma cisma, quando me passam n’alma sonhos de
homem que não dorme, que se chamam poesia, eu ainda sinto reabrir-se meu peito
de amores de mulher. Parece que se aquela beleza de olhos e cabelos negros, de
largo colo, em que flutuam, desatasse com seus dedos macios e finos aquelas sedas
do roupão... se eu aí repousasse essa febre da fronte que me dói, esse queimar de um
cérebro que se me afoga, eu poderia ainda ter vida bastante para desvivê-la aí no
voluptuoso de um espasmo, para morrer aí na loucura de um sonho de beijos... E
quando, ante uma forma alva de loura, na limpidez de uns olhos transparentes e
azuis como o mar, eu leio que vai de pureza, o que há de areias d’oiro sob aquele
esmalte diáfano de vaga, então, como o Faust de Goethe na alcova de Margarida, há
uns eflúvios magnéticos que avivam o já morto palpitar de minhas fibras, oh! Então
eu espero ainda.
Mas, em geral o que às vezes ainda me aviva o pulsar mais trépido do sangue é a
voluptuosidade que se me vislumbra numa mulher donairosa numa daquelas que
parecem feitas por Deus como estátuas para rezar-lhes ao sopé, para pedir-lhes,
como a Vênus lasciva, uma hora — uma só — de gozo... (idem).
Além da forma feminina de cabelos negros e tez pálida, imagem da voluptuosidade em
sua literatura, aparece a mulher loura como o anjo salvador. A menção ao Fausto não é em
vão, a jovem Margarida é a que desperta no cético doutor sentimentos amorosos que se
julgava incapaz de experimentar. No entanto, o desejo que seria satisfeito por uma “Vênus
lasciva” que transcendesse o tédio, revela-se uma veleidade:
São sonhos — sonhos... Luís! É uma loucura abrir tanto as asas de um anjo do
coração a essas brisas enlevadas que à tarde, vêm tão sussurrantes de enleio, tão
impregnadas de aromas e beijos! É loucura! E contudo, quando o homem só vive
deles, quando aí todas as portas fecharam-se ao enjeitado, por que não ir bater só e
de noite no palácio da fada das imaginações?
Há uma única coisa que me pudesse dar hoje o alento que me morre. Que me
morre... [...] Disse-to eu: há uma única coisa que me pudesse dar o alento que me
desmaia, uma mulher que eu amasse. (idem).
Fuga, compensação, projeção, elemento transfigurador. A imaginação aparece aqui
como a instância que permite ao jovem romântico ter consciência de sua radicalidade, seus
desejos incompatíveis e do risco que significa o mergulho nesse íntimo tão atordoado e
insatisfeito.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Manuel Antônio Álvares de Azevedo traz, para a estética romântica brasileira do
século XIX, a cidade de São Paulo como espaço privilegiado para a aventura e desventura de
seus personagens em Macário e Noite na taverna. O cenário ficcional é marcado por uma face
mítica, em que emerge uma cidade noturna, berço de vícios e mistérios, de boêmia e sedução
marginal. Contemplações metafóricas se abrem sobre uma cidade transfigurada, marcada por
olhares alucinados de estranhos e desorientados protagonistas.
Na correspondência, também aparece uma São Paulo, provinciana, diurna, um lugarejo
herdeiro de “ranchos de tropeiros”, coberto de poeira, monótono, cenário próprio para o
marasmo e o tédio de um missivista deslocado, mas afetivo. Não há identificação do
missivista, sua educação e leitura europeizadas, com a sociedade burguesa a que pertence e o
ambiente sua volta. Nas cartas predomina um observador crítico e irônico, pronto a analisar e
julgar uma sociedade pacata de hábitos rotineiros, que não estavam à altura da formação altiva
do sujeito. Na tensão entre uma e outra visão, a ironia e o humor tomam forma, permitindo ao
poeta colorir de ambiguidades o texto ficcional e, ao missivista, propiciando o distanciamento
necessário à reflexão crítica sobre os costumes da burguesa sociedade paulista em ascensão no
século XIX.
As obras Macário e Noite na taverna possuem a noite e a cidade como duas vertentes
temáticas fortes. A noite é paisagem e dado subjetivo, lugar das ações e representações
129
psíquicas, revelando o lado obscuro e melancólico do homem. Em Noite na taverna, as cinco
pequenas narrativas independentes tecem uma rede de referenciais cultos para contar histórias
negras, beirando a loucura, trazendo a maldição e a morte. A narrativa é marcada por um jogo
textual de esconde-revela; com citações literárias que mascaram ou prenunciam o que vai
acontecer em cada um dos capítulos-contos. O manto negro da noite envolve o relato dos
personagens, e funciona com o espaço e o tempo propícios às confissões de crimes e
transgressões. Macário é um drama que se apresenta como o resultado da fusão entre o
grotesco e o sublime, o terrível e a bufonaria, a tragédia e a comédia.
A cidade se transforma em uma paisagem, um cenário, uma floresta de signos de
sentidos incertos, instáveis e ambíguos. Sob olhar de Álvares de Azevedo, a cidade à noite
permite o afloramento de forças antagônicas e adquire um aspecto fantástico e metafórico,
criando uma atmosfera lúgubre e soturna. A ironia se conjuga à composição do cenário,
revelando o caráter insano dos personagens e a atmosfera mórbida da cidade.
Ao tratar do tema citadino, que a partir do romantismo ocupa um lugar cada vez maior
na produção artística do ocidente, Álvares de Azevedo antecipa, de certa forma, o mote
principal dos escritores modernos. A cidade à noite é apreendida como renovação perpétua de
sentimentos e dramas diversos, espreitados pela morte, que reina soberana pela escuridão,
estampando a desagregação do ser humano, encontrando estímulos também nas artes em geral
que retratam as paixões e os sofrimentos humanos, tendo como pano de fundo as grandes
cidades. Os complexos conglomerados urbanos são fixados através da pintura, da fotografia e
do cinema, e se tornam temas de estudo para a sociologia, a filosofia e a história, que passam
a se ocupar dos dramas humanos que se desenrolam nos espaços citadinos. A “modernidade”
embrionária de Álvares de Azevedo é a grande contribuição para a literatura como forma de
entender as forças que, mais tarde irão irromper de forma avassaladora no mundo.
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A São Paulo acanhada, pobre, com ruas assimétricas, de pavimento irregular,
iluminada à luz de lampiões, emula as edificações e os costumes europeus. Num burgo típico
do século XIX brasileiro, a imaginação do ficcionista traça o roteiro que melhor lhe convém.
A “terrinha” de “caipirice” rematada com bailes de “meia-tigela”, descrita nas cartas,
transforma-se nas “ruínas” de Satã, tocadas pelo mistério e, assim, a monotonia ganha o status
literário.
131
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PORTELA, Eduardo. Cisões e decisões da Modernidade. In: JUNQUEIRA, Ivan. Escolas
literárias no Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004.
PRADO, Décio de Almeida. O teatro romântico: a explosão de 1830. In: GUINSBURG, Jacó
(org.). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 167-184.
PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. São Paulo: Editora da
UNICAMP, 1996.
ROCHA, Andrée. Introdução. In: _____ A epistolografia em Portugal. 2. ed. Porto: Imprensa
Nacional / Casa da Moeda, 1985, p. 13-35.
ROMERO, José Luis. Las ciudades patricias. In: _____ Latinoamérica: las ciudades y las
ideas. 4. ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 1986.
TODOROV, Tzvetan. A narrativa fantástica. In: _____ As estruturas narrativas. São Paulo:
Perspectiva, 1970, p. 147-166.
TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão: Uma história de São Paulo das origens a
1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. 559 p.
134
APÊNDICE
As tabelas especificam quantas e quais cartas foram publicadas nas edições das obras
de Álvares de Azevedo, comprovando a sua divulgação problemática e intermitente.
Em algumas colunas adotamos o critério de expor somente as cartas omitidas a fim de
tornar a lista mais compreensível e concisa.
A numeração das cartas corresponde a da edição de Alexei Bueno (2000), com o total
de 72 cartas, tomada como base para a dissertação.
Tabela Nº. 1
Edição
Princeps
JDM
1853-55
2ª ed.
JDM
1862
Quantidade
10 cartas
idem
Luís Antônio (8)
Destinatário
Nº. 25 – 11/05/1848
e
numeração Nº. 34 – 20/07/1848
Nº. 35 – 26/06/1848
da carta
Nº. 37 – 23/08/1848
Nº. 38 – 27/08/1848
Nº. 39 – 04/09/1848
Nº. 40 – 18/04/1849
Nº. 55 – 01/03/1850
Mãe (1)
Nº. 69 – 06/07/1851
Pai (1)
Nº. 59 – 03/07/1850
3ª – 7ª obras
completas
JNSS
1873
11 cartas
Repete o conteúdo
da primeira edição
e acrescenta uma
carta.
Irmã (1)
Nº. 70 –12/08/1851
LFVS
1931 12
62 cartas
Faltam as seguintes
cartas:
Luís Antônio (2)
Nº. 34 – 20/07/1848
Nº. 55 – 01/03/1850
Mãe (4)
Nº. 46 – 29/07/1849
Nº. 51 – Out./ 1849
Nº. 68 – 11/06/1849
Nº. 69 – 06/07/1851
Pai (1)
Nº. 59 – 03/07/1850
Abreviaturas: JDM – edição de Jacy Domingos Monteiro.
JNSS – edição de Joaquim Norberto Souza e Silva.
LFVS – Luís Felipe Vieira Souto no trabalho Dous românticos brasileiros.
12
As cartas à mãe omitidas são publicadas na tese Reflexos de uma “pallida sombra” no romantismo brasileiro.
135
Tabela Nº. 2
Edição
Quantidade
Destinatário
e numeração
da carta
8ª Obras Completas
HP
1942
69 cartas
O editor coligiu as
cartas das três
primeiras edições
e a do trabalho
de Luís Felipe Vieira
Souto (1931).
LFVS
1950
VA
1976 13
70 cartas
66 cartas
Faltam as seguintes
cartas:
Faltam as seguintes
cartas:
Luís Antônio (1)
Nº. 34 – 20/07/1848
Luís Antônio (4)
Nº. 37 – 23/08/1848
Nº. 38 – 27/08/1848
Nº. 39 – 04/09/1848
Nº. 40 – 18/04/1849
Pai (1)
Nº. 59 – 03/07/1850
Mãe (1)
Nº. 69 – 06/07/1851
Irmã (1)
Nº. 70 – 12/08/1851
Abreviaturas: HP – edição de Homero Pires.
LFVS – Luís Felipe Vieira Souto na tese Reflexos de uma “pallida sombra” no
romantismo brasileiro.
VA – Vicente de Azevedo em Cartas de Álvares de Azevedo.
13
Na edição de Vicente de Azevedo, faltam seis cartas: quatro para Luís Antônio (as de números 37, 38, 39 e
40), uma para a mãe (a de número 69) e uma para a irmã (a de número 70). O editor adotou como critério a cópia
dos manuscritos que conseguiu adquirir da família, o que explica, em parte, a ausência dessas cartas. No entanto,
as cartas escritas para Luís Antônio e a mãe figuram desde a primeira edição da obra azevediana, e a carta para a
irmã foi divulgada na 3ª edição, sendo questionável, por isso, a omissão. Principalmente, pelo fato de que
Vicente de Azevedo reproduz algumas cartas das primeiras edições (Nº. 25, Nº. 34, Nº. 59, por exemplo).
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