19 www.siderurgiabrasil.com.br Metal mecânica A análise de falhas: Parte 1 Fundamentos das falhas, fratura e o papel do aço Figura 1. Exemplificação dos defeitos presentes nas estruturas cristalinas dos metais a partir da representação dos defeitos presentes na estrutura de um rebite de aço[5]. Orientação técnica para detectar o problema e identificar a melhor forma para corrigi-lo. Willy Ank de Morais Marcus Vinícius de Oliveira Gonçalves André Varvello Nunes Celso Sacchetta Filho* Foto: www.freeimages.com 1. INTRODUÇÃO Este artigo é o primeiro de uma série de trabalhos de revisão do processo de Análise de Falhas em componentes metálicos, particularmente feitos em aço. Cada trabalho explora um contexto da análise de falhas, revisando informações básicas da metalurgia e de ferramentas de análise de materiais, correlacionando-as com a experiência e a técnica profissional, a fim de solucionar questões práticas de falhas na aplicação dos metais em componentes e estruturas. Neste primeiro trabalho serão apresentados e discutidos alguns aspectos sobre falha e fratura, os fundamentos da fratura dos materiais e o papel do aço neste cenário. 18 2. FALHAS É muito comum associar falha a uma fratura, geralmente frágil ou oriunda de fadiga ou ainda corrosão. Mas o conceito de falha é mais abrangente e genericamente uma estrutura ou componente pode ser considerado falhado quando este: a. Fica completamente inutilizado; b. Ainda pode ser utilizado, mas não desempenha sua função de forma satisfatória; siderur gia brasil N o 102 c. Apresenta um uso inseguro devido a uma séria deterioração. Para determinar e descrever os fatores responsáveis para a falha de um componente é recomendável a realização de uma análise de falhas, cujos resultados são agregados ao conhecimento histórico técnico empregado no projeto, produção e uso de componentes e estruturas iguais ou similares[1]. Uma análise de falhas é essencialmente um processo de investigação científica e, como tal, deve ser executado seguindo uma metodologia científica. Existem vários procedimentos descritos na literatura[1-4], porém, de uma forma geral, esta análise é realizada através das seguintes etapas: 1. Verificar o histórico e o desempenho prévio existentes do componente e/ou estrutura, ou ao menos de seus similares; 2. Estudar o funcionamento do equipamento ou da estrutura onde ocorreu a falha, assim como de particularidades presentes ou eventuais; 3. Analisar visualmente como a falha se manifestou, inclusive verificando a relação desta falha com o restante do equipamen- to ou estrutura(s) existente(s); 4. Separar amostras e executar uma sequência de testes para caracterizar e registrar as condições de operação e o desempenho reais da parte falhada, prioridade deve ser dada aos ensaios não destrutivos antes dos ensaios destrutivos; 5. Formular hipóteses com base nas observações a análises feitas do componente falhado e validá-las através dos dados obtidos dos testes (ensaios) realizados; 6. Obter as causas da falha, listar as causas-raiz e indicar, ou ao menos subsidiar, a definição de métodos para bloqueio. Genericamente as causas para a falha da maioria das estruturas/ componentes estão relacionadas as duas situações[2]: 1. Desvios na fase de projeto, construção ou operação da estrutura ou componente. 2. Aplicação de um novo projeto ou material. Na maioria das análises de falhas, uma pessoa treinada, ou um time de pessoas, conseguem MAIO/2014 resolver a maioria dos casos apenas através de observação e análise com emprego de recursos simples. Para isso é fundamental que se compreenda os mecanismos de falha nos produtos metalúrgicos, dos quais a fratura é um dos principais. 3. RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS A resistência mecânica dos metais é, em última análise, definida pela presença (tipo, quantidade e distribuição) dos inúmeros defeitos presentes em sua estrutura cristalina, defeitos estes esquematizados na Figura 1. Destes defeitos, as discordâncias possuem papel de destaque nas propriedades mecânicas. Sua movimentação é o principal mecanismo pelo qual os átomos se deslizam uns sobre os outros dentro da estrutura dos metais que é basicamente deformação plástica. Sendo assim, quando a resistência mecânica dos metais é aumentada, normalmente ocorre uma redução na capacidade de movimentação de suas discordâncias[8] e, conse- 21 www.siderurgiabrasil.com.br Metal mecânica quentemente, uma restrição na plasticidade (ductilidade) do metal. Podem ser empregados mecanismos especiais de controle microestrutural para se minimizar os efeitos da perda da ductilidade com o aumento da resistência mecânica. Tais técnicas implicam na obtenção de metais com diferentes níveis de tenacidade já que esta propriedade depende, simultaneamente, da resistência e da plasticidade[6 e 7]. Foto: www.freeimages.com 4. MECÂNICA DE FRATURA A grande aplicabilidade dos metais é oriunda dos seus altos valores de tenacidade, os maiores dentre os materiais de engenharia. Esta maior tenacidade é oriunda da conciliação 20 entre uma boa resistência mecânica e uma razoável capacidade de deformação plástica. Mesmo assim, estruturas e componentes metálicos falham, fraturando-se em várias situações o que incita em um estudo mais profundo dos mecanismos de fratura, abordado nos dias de hoje pela Mecânica de Fratura. O conceito básico empregado na Mecânica de Fratura é que o material apresenta concentradores de tensão severos (trincas), cuja propagação é definida por um balanço entre a energia liberada pelo carregamento mecânico e a energia absorvida na deformação plástica ao redor da trinca. As trincas podem se originar de várias sx sy sxy sVON MISES siderur gia brasil N o 102 Figura 2. Efeito na curva tensão versus deformação de um aço HSLA (0,08%C; 0,65%Mn; 0,030%Nb) pela introdução de um concentrador de tensões (entalhe mecânico com raio de 0,30mm) em corpos de prova de tração prismáticos. Figura 3. Os três possíveis modos de abertura de uma trinca. Figura 4. Interpretação do campo de tensões ao redor de um concentrador de tensões carregado no modo de abertura I (Figura 4) conforme descrito pela Equação 2. A ponta do concentrador de tensões (trinca) está situada sempre no meio da lateral esquerda das figuras. As cores vermelhas indicam valores mais elevados de tensão, as cores azuis valores mais baixos e as laranjas intermediários. formas, mas na maioria dos casos, a origem destas está vinculada a concentradores de tensão. Concentradores de tensão promovem um aumento localizado da tensão aplicada no componente. A máxima tensão (σmáx.) que surge pela presença de um concentrador de tensão pode ser relacionada à tensão aplicada externamente (σ0) por meio de medições experimentais de tensão (extensometria ou outros), por análises numéricas (elementos finitos) ou através de ábacos. De uma forma geral, empregam-se valores do fator de concentração de tensão (Kt) para descrever a amplificação da tensão pelo concentrador: (Eq. 1) Onde: σmáx. representa a máxima tensão presente na região do concentrador de tensão; Kt é o fator de concentração de tensões e σ0 a tensão aplicada no componente (fora do concentrador de tensões). O efeito de um concentrador de tensões intenso pode ser observado pela curva tensão-deformação mostrada na Figura 2. Apesar do aumento da resistência mecânica obtida (+15%), houve uma queda muito acentuada na capacidade de deformação plástica (-87%) o que implicou, para este caso, em MAIO/2014 uma redução da tenacidade para menos de 20% da apresentada pelo CP liso. As trincas podem ser carregados em três modos de abertura: I, II ou III ou em combinações destes, conforme ilustrado pela Figura 3. Um campo de tensões elásticas é gerado ao redor da trinca, conforme exemplificado para o modo I pela Equação 2. Nesta equação associa a intensidade deste campo de tensões a uma constante conhecida como fator de intensidade de tensões (KI, KII ou KIII). (Eq. 2) Onde: σ representa os componentes de tensões normais, τ o componente cisalhante, KI o fator de intensidade de tensões, r e θ as coordenadas polares do ponto considerado à frente da trinca. Considerando o critério de Von Mises como forma de quantificar o efeito plástico do campo de tensões gerado na ponta da trinca é possível fazer uma interpretação gráfica do campo de tensões descrito pela Equação 2, apresentada na Figura 4. Na Figura 5 está ilustrado um CP de dobramento com uma trinca, empregado em ensaios da Mecânica de Fratura. O CP foi preparado de tal forma a evidenciar a deformação plástica na ponta da trinca, conforme indicada na Figura 5. Como o modo de abertura I é o mais comum, é normal considerar apenas este modo de abertura como sendo responsável pe- Figura 5. Um CP de CTOD já aberto ilustrando a geometria e posição da região plástica na ponta da trinca. los eventos de fratura da maioria das condições práticas. Considerando este cenário, é possível considerar a inclusão do valor do fator de intensidade de tensões no modo de abertura I (K I) no critério de balanço de energia considerando um campo de tensões elásticas e obter uma equação elegantemente simples, mas muito útil no estudo da maioria das falhas com fratura: (Eq. 3) Onde: σ representa a tensão aplicada no componente, Y é um fator geométrico (disponível na literatura, mensurável ou obtido através de cálculos numéricos), a é o tamanho da trinca e KI o fator de intensidade de tensões. A unidade de medida para KI é tensão x raiz quadrada de comprimento (exemplo: MPa×m½). Neste caso, ocorrerá propagação de uma trinca (falha do material) quando a intensidade de tensões atuante na ponta da trinca (KI) for superior a um valor característico do material (KIc). Desta forma o parâmetro KIc passa a representar uma forma de quanti- 23 www.siderurgiabrasil.com.br Metal mecânica Tenacidade a Fratura KIc (MPa×m½) METAIS Foto: www.freeimages.com ficar a tenacidade do material na presença de um concentrador de tensões intenso (trinca). A esta característica dos materiais, dá-se o nome de tenacidade a fratura e os valores de KIc tornaram a forma mais popular de quantifica-la. 22 5. O PAPEL DO AÇO A amplitude de resistência mecânica que o aço pode apresentar varia entre os valores de um material polimérico (plástico) até de um material cerâmico (de 100 a 2.000MPa). Nenhum outro material, além do aço, apresenta uma amplitude tão grande desta propriedade. Além disso, o aço é o material de engenharia que apresenta o maior valor de tenacidade à fratura entre todos os materiais existentes (de 30 a 300 MPa×m½), apresentando uma combinação entre resistência mecânica e plasticidade superior aos demais metais, como mostra o gráfico da Figura 6. Entretanto este tipo de comportamento não era tão óbvio ao longo do século 20, período durante o qual houve muitos desenvolvimentos e aplicações dos novos materiais de engenharia, siderur gia brasil N o 102 muitos deles substitutos dos aços. Adicionalmente, surgiram aplicações novas e cada vez mais sofisticadas, exigindo um maior nível de confiabilidade na aplicação dos materiais. Apesar de não terem contribuição exclusiva, estes dois cenários estiveram e ainda estão intimamente ligados às duas principais causas de falhas em componentes e/ou estruturas: 1. Desvios na fase de projeto, construção ou operação da estrutura ou componente. Um material de alta tenacidade à fratura apresenta menor probabilidade de falhar mesmo quando ocorrem alterações na configuração inicial da sua aplicação, como o surgimento de trincas. 2. Aplicação de um novo projeto ou material. Em muitas aplicações a tenacidade e a tenacidade à fratura são características muito importantes à aplicação, mas nem sempre são consideradas ou quantificadas de maneira a refletir a real necessidade que a aplicação requer porque simplesmente não foram percebidas como tal. Mín. Méd. Desv. Pad. Máx. Aço Alta 31,6 97,7 42 165 Ligas Ti 13,5 68,6 28 148 Aço Méd. 34,0 66,2 27 110 Ligas Al 12,0 38,9 26 136 Outros Ñ ferrosos 6,0 15,2 5 27 Figura 6. Correlação entre os níveis de plasticidade (%Alongamento) e resistência (Limite de Resistência) de diversas categorias de metais e valores de tenacidade a fratura KIc para diferentes categorias de metais[8]. 6. CONCLUSÕES Falhas são eventos que ocorrem devido as mais diversas origens, mas muitas associadas pela conciliação de condições mecânicas e metalúrgicas adversas. É de primordial importância a compreensão dos mecanismos básicos para a ocorrência de uma falha e neste sentido a Mecânica de Fraturas é essencial, pois através dela é possível correlacionar defeito (trinca), carregamento mecânico (tensão) e propriedade do material (tenacidade à fratura) para esboçar o cenário onde a falha ocorreu. O desafio torna-se maior especialmente quando novas aplicações e novos materiais surgem. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] – COLANGELO, V.J.; HEISER, F.A., Analysis of metallurgical failures, Wiley, London, 1987. [2] – WULPI, D.J., Understanding how components fail. ASM International, Materials Park, 3rd Edition, 2013. [3] – MORAIS, W.A.; A Condução de uma Análise de Falhas. In: GODEFROID, L.B.; CANDIDO, L.C.; MORAIS, W.A.; Análise de Falhas, ABM, São Paulo. Cap. 9, 2012. MAIO/2014 – SACHS, N.W.; Pratical plant failure analysis - A guide to understanding machinery deterioration and improving equipment reliability. CRC - Taylor & Francis, Boca Raton, 2007. [5] – ENGEL, L.; KLINGELE, H.; An atlas of Metal Damage. Wolfe Science Books,1981. [6] – MAGNABOSCO, A.S.; Resistência Mecânica × Conformabilidade. Módulo 5, Cap.3 p. 481-500. In: MORAIS, W.A.; MAGNABOSCO, A.S; NETTO, E.B.M.; Metalurgia física e mecânica aplicada. 2a Edição. São Paulo: ABM, 2009. [7] – MORAIS, W.A.; Análise das relações entre as características dos aços e sua tenacidade. 65o Congresso Anual da ABM, Rio de Janeiro, jul. 2010. [4] – MATWEB – Material Property Data. Disponível em http://www. matweb.com/search/PropertySearch.aspx Acesso em: 26/02/2014. [8] 8. AUTORES Willy Ank de Morais Mestre e doutorando em engenharia metalúrgica e de materiais, engenheiro metalurgista, técnico em metalurgia. Professor adjunto na Faculdade de Engenharia da Unisanta e consultor técnico na Inspebras. e-mail: willyank@unisanta. br e [email protected] Marcus Vinícius de Oliveira Gonçalves Engenheiro civil e mestrando em engenharia mecânica pela Unisanta. Engenheiro de projetos na Sabesp, técnico da Superintendência de Gestão do Programa de Recuperação Ambiental da Baixada Santista (TBT). e-mail: [email protected] André Varvello Nunes Engenheiro mecânico e mestrando em engenharia mecânica pela Unisanta. Engenheiro da Transpetro. e-mail: andre.varvello@ gmail.com e [email protected] Celso Sacchetta Filho Engenheiro industrial mecânico e mestrando em engenharia mecânica pela Unisanta. Gerente de operação na Bohler Técnica de Soldagem. e-mail: Celso.Sacchetta@ voestalpine.com