A reflexão estética de Merleau-Ponty: quando Filosofia dialoga com a História da Arte Fabíola Cristina Alves1 Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ Resumo Este artigo apresenta a pesquisa de Mestrado em Artes em desenvolvimento sobre a estética de Merleau-Ponty, discorrendo sobre o recorte da História da Arte feito pelo autor e suas considerações sobre a expressão artística na linguagem e na pintura. Palavras-chave: Merleau-Ponty; estética; expressão artística. Abstract This article presents the research about Merleau-Ponty’s aesthetics in development to a Master of Art’s Post-Graduation degree, discoursing about the History of Art context worked by the author and his remarks about artistic expression in language and painting. Key words Merleau-Ponty; aesthetics; artistic expression. Apresentação Este artigo pretende apresentar alguns pontos relevantes da pesquisa de mestrado iniciada em 2011, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio Mesquita Filho‖. As considerações são ainda parciais, pois o projeto intitulado ―Indivisibilidades entre natureza, homem e expressão: a reflexão estética de Merleau-Ponty‖ se encontra em desenvolvimento. Este recebe a orientação do professor doutor José Leonardo do Nascimento e está vinculado à área de concentração de Artes Visuais, na linha de pesquisa de Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte. 1 Mestranda em Artes pela Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, graduada em Educação Artística pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professora substituta do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. 100 No campo da Teoria e História das Artes Visuais, a pesquisa se justifica, porque a filosofia de Merleau-Ponty2 influencia o discurso de teóricos, como Argan, Didi-Huberman, Barilli, Novaes, Duarte e Herhenhoff. Assim, podemos notar, após os anos de 1950, que sua filosofia é retomada pelos intelectuais das Artes Visuais. Também é pertinente observar que o filósofo francês constrói o seu pensamento dialogando com a história da arte, sobretudo quando compara a doutrina cartesiana com o período renascentista nas artes e relaciona o pensamento moderno com a arte de vanguarda europeia. O dialogo com a história da arte é parte estruturante de seu pensamento acerca da volta ao mundo percebido3 (a natureza) pelo homem. Nossa pesquisa parte da hipótese de que Merleau-Ponty, ao discutir a expressão artística, no contexto de sua interrogação filosófica, cria uma noção parcial de Arte Moderna, mas valorosa para seu discurso. Nosso objeto de pesquisa é o significado ou os significados presentes sobre a Arte Moderna na interrogação de Merleau-Ponty. Compreendemos que o filósofo também constrói uma representação da Arte Moderna pela sua narração e elege a expressão como conceito norteador deste momento na historia da arte, excluindo outras formas artísticas, como a abstração. Nossas principais fontes da pesquisa são as obras do filósofo francês que compõem os estudos acerca da Estética. Selecionamos A dúvida de Cézanne, publicado em 1945, e O olho e o espírito, escrito em 1960. Essas são significativas na investigação, pois são obras de dois momentos distintos da produção do autor: a primeira, do início de sua carreira, e a segunda, pertencente a sua fase profissional mais madurada. Também de grande relevância é a obra incompleta A prosa do mundo, porque apresenta o discurso do filósofo sobre expressão e linguagem. Outras obras estruturais da produção do autor complementam o estudo, como Fenomenologia da percepção, O visível e o invisível, Natureza, Conversas — 1948. O recorte histórico da arte na narrativa merleau-pontiana 2 Maurice Merleau-Ponty foi um filósofo francês que iniciou seus estudos na Fenomenologia, corrente epistemológica que influenciou toda a sua produção intelectual. Ele também dialogou com as correntes existencialista, estruturalista e a Gestaltheorie. Faleceu em 1961, deixando obras importantes incompletas, como O Visível e o invisível, considerada um estudo representativo na sua nova fase de produção que infelizmente foi interrompida. 3 Para definir o mundo percebido, Merleau-Ponty (2004, p.65) diz: ―O Mundo percebido não é apenas o conjunto de coisas naturais, é também os quadros, as músicas, os livros (...)‖. Então, consideramos que o mundo percebido engloba a natureza e a produção cultural, o que leva o filósofo a pensar a arte ao investigar este mundo. 101 Merleau-Ponty faz dois recortes na história da arte que são importantes para a legitimação de sua estética e elucidam suas ideias sobre o pensamento modernista e sua crítica ao cartesianismo. Sua oposição a Descartes o acompanha desde os estudos que compõem a sua tese de doutorado, Fenomenologia da Percepção, e o início de sua divulgação intelectual. Não limita a sua critica apenas a Descartes, mas a toda tradição filosófica baseada na separação sujeito-objeto. Ao explorar a critica merleau-pontiana, Chaui (2002, p. 4) explica que o filósofo francês, ao questionar o estatuto do sujeito e do objeto, estatuto que impede o homem de retornar ao mundo percebido, por este questionamento o filósofo caminha para uma investigação dimensionada em uma ontologia sensível. Para melhor compreender o questionamento ao estatuto sujeito-objeto defendido pela tradição clássica e que sustenta o Cogito cartesiano, devemos situar que a racionalidade gera a estrutura do estatuto sujeito-objeto, pois conforme este princípio o homem deve se separar do mundo para tomá-lo pelas regras de produção do conhecimento. Um dos exemplos de Merleau-Ponty é o conhecimento empírico, que se baseia do principio da intencionalidade. Fatalmente podemos apontar para a distinção entre consciência e representação. A primeira, pertencente ao mundo das ideias (do espírito) e inatingível4. A segunda seria uma tentativa descritiva da realidade produzida pelo homem, que se propõe detentora da verdade e ilusionista. Para o autor o período da Arte Renascentista é condicionado pelo discurso de Descartes, principalmente, porque os pintores renascentistas estão engajados em solucionar os problemas da representação pelas aparências. Merleau-Ponty (2007, p. 27) explica: É uma evidência, para Descartes, que só é possível pintar coisas existentes, que sua existência é serem extensas, e que o desenho torna possível a pintura ao tornar possível a representação da extensão. A pintura então não é mais que um artifício que apresenta a nossos olhos uma projeção semelhante àquela que as coisas neles inscreveriam e neles inscrevem na percepção comum, ela nos faz ver na ausência do objeto verdadeiro como se vê o objeto verdadeiro na vida (...) 4 Para Merleau-Ponty o filósofo Descartes distinguiu rigorosamente o espírito do corpo, não havendo união entre estes, porém a posição de Merleau-Ponty é que a relação corpo e espírito se baseia na indivisibilidade (MERLEAU-PONTY, 2004). 102 Notamos que para Merleau-Ponty a pintura, puramente como representação dos objetos, é conduzida pelas crenças de Descartes. Assim, é pela carga ilusionista da representação que pretensiosamente a pintura afirma uma presença como verdadeira na tela. Mas esta presença, para o cartesiano, não é uma pura verdade da consciência, o que se assemelha ao pensamento Platônico. O desenho como projeção descritiva das aparências dos objetos é o que possibilita uma boa pintura para o cartesiano, que baseia a noção de qualidade na capacidade de semelhança entre o objeto representado e o objeto verdadeiro. Para Merleau-Ponty a arte do Renascimento é conduzida pela racionalização e objetivação do que representa na tela. Neste sentido, consideramos a perspectiva renascentista como instrumental para alcançar os propósitos do pintor renascentista: este se separa do objeto verdadeiro da vida. Conforme o autor, o pintor se coloca em um olhar de sobrevoo, assume a postura de sujeito separado do objeto, exatamente como propõe a doutrina cartesiana5. Portanto, seria pela consciência que o renascentista observa o mundo, escolhe os objetos a serem pintados e depois pinta pelas regras da ilusão. Sobre a Arte Renascentista sugere o historiador Francastel (1990, p. 99) Quando o Renascimento dispõe-se a objetivar o mundo não mais em valores e em conceitos, mas em figuras, ele vence uma imensa etapa no caminho da representação espacial do universo porque modifica de forma radical o problema das distâncias psíquicas. O historiador caracteriza o Renascimento como uma forma de objetivar pela figuração, enquanto que os valores e conceitos são preocupações da arte medieval, conforme a comparação estabelecida em seu livro. O argumento da Arte Renascentista como uma era da objetividade confirma o discurso de Merleau-Ponty. Já o problema da distância psíquica pode ser referenciado a partir da separação entre sujeito e objeto, pois o sujeito é detentor no seu psíquico das ideias/da consciência (do espírito) fazendo-se necessária a extensão do mesmo com o mundo. A extensão é um dos prejuízos clássicos também apontados por MerleauPonty. Durante toda sua produção intelectual defendeu o retorno ao mundo da percepção, que não separa sujeito e objeto nem corpo e espírito, mas que permite a coexistência do homem com o mundo. O principal argumento do filósofo para combater 5 O assunto é tratado pelo filósofo em Conversa — 1948. (MERLEAU-PONTY, 2004) 103 a separação sujeito-objeto, que consideramos a fronteira que manteve o homem separado do mundo, é o retorno à crença da percepção como forma fundamental para a relação homem-mundo. Para ele a distinção sujeito-objeto se invalida quando observamos que o ―(...) homem existe como ser-no-mundo pelo corpo‖ (NOGUEIRA, 2008, p. 131). Merleau-Ponty acredita que a Arte Moderna consegue, ao contrario dos períodos artísticos anteriores, com mais facilidade apresentar obras que são resultantes de uma experiência do homem (seu corpo) internalizado no mundo. Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p.74), ―a arte é essa experiência da identidade do sujeito e do objeto. Não se sabe mais o que é fato e o que é ideia: tudo se liga numa produção‖. Podemos analisar as palavras do filósofo francês como argumentos opostos à separação entre consciência e representação, que regia a pintura renascentista. Neste sentido, na pintura moderna não haveria um momento anterior ao ato de pintar, um momento do projeto e do desenhar, como se o artista pensasse antes e representasse depois. Uma das conclusões de Merleau-Ponty é que o artista moderno mescla pensamento e ação no processo pictórico, pois pintar já é uma forma de pensar e perceber ao mesmo tempo. O filósofo considera que o pintor moderno é fiel ao seu olhar, pintando apenas o que sua percepção mostra do mundo, convicto de que as sensações das cores farão da pintura um espetáculo de sentidos. O retorno ao mundo percebido é negar o realismo das aparências objetivas e assumir as sensações que foram negadas pelos cartesianos. Sobre o assunto, Matthews (2010, p. 177): O artista moderno constrói um mundo, mas procura fazê-lo de forma que permaneça fiel aos fenômenos, aos objetos tais como os percebemos, a partir do que construímos nossos significados mais sofisticados. A fidelidade à percepção que o pintor moderno possui para com o mundo que habita é, para Merleau-Ponty, o instrumental da Arte Moderna. Esta se preocupa então em deixar sentidos abertos a serem significados pelo olhar, e isso é exemplificado pela característica inacabada da obra de arte moderna. Uma obra que não se pretende verdade absoluta, mas que comunga com o espectador vestígios de um processo do artista, a pintura moderna evidencia os rastros do gesto do pintor para conduzir o olhar do espectador sobre a tela. Os rastros são como sentidos. Assim, a obra se torna um 104 fenômeno que se revela aos processos de significação, a expressão artística reúne todos os envolvidos no acontecimento fenomenológico da obra de arte: de um lado, o pintor e o mundo percebido; do outro, o espectador e a obra. Sobre a experiência de ver, sugerida pela pintura moderna ao espectador, diz Merleau-Ponty (2002, p. 188): Os objetos da pintura moderna ―sangram‖, espalham sob nossos olhos sua substância, interrogam diretamente nosso olhar, põem à prova o pacto de coexistência que fizemos com o mundo por todo nosso corpo. Neste sentido, a pintura moderna obriga o espectador a ver seus elementos visuais, o interroga sobre sua própria percepção, fazendo-o se perceber como um corpo perceptivo no mundo. Podemos notar que o reconhecimento do corpo no pensamento merleau-pontiano também guia suas especulações sobre o fazer do pintor. O autor também sugere que existe um enigma em torno do corpo do pintor e que o artista moderno considera o enigma no seu fazer artístico. Sobre o assunto, Merleau-Ponty (2004, p. 17) explica: ―o enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar (...)‖. A capacidade do pintor moderno de ser vidente e visível no mundo é justificada pelo discurso do filósofo francês no argumento da indivisibilidade entre corpo e espírito, sujeito e objeto, homem e mundo. Considerando a indivisibilidade no contexto da Arte Moderna, quando o artista já não sabe mais onde começa a ideia (pertencente ao espírito) e sua percepção (da natureza do corpo) durante sua criação artística sobre a tela, poderemos respirar a dádiva moderna da existencialidade da expressão. É neste sentido que a Arte Moderna coloca um novo paradigma que envolve a postura do pintor, ou melhor, a sua relação com o mundo. Segundo Candido (2007, p. 82): A relação do pintor com o mundo não se resume a uma posse do segundo pelo primeiro. Antes, há uma entrega ao mundo por parte do pintor, e será apenas oferecendo dessa forma seu corpo que ele conseguirá transformar o mundo em pintura. Podemos pensar que na Arte Moderna o artista perde as forças que o mantiveram separado do mundo nos períodos anteriores da História da Arte, que 105 colocavam sua existência como o centro da origem do tema de uma pintura, num posicionamento ―quase‖ divino. O artista então se encarna no mundo, ou seja, se posiciona como corpo na instância de ser-no-mundo e que já não sabe o que é ideia ou tema ou pincelada. Isto seria um dos fenômenos da Arte Moderna. Este pintor que transforma o mundo em pintura oferece pela sua expressividade pictórica todo o seu Ser6, sem separações entre corpo e espírito, ideia e cor, vida e mundo, consciência e representação. Na arte moderna então percebemos um novo lugar para o pintor ocupar no mundo, onde ele nos dá a ver um mundo transformado. Expressão, Linguagem e Pintura A expressão como tema do debate estético de Merleau-Ponty concilia linguagem e pintura iluminadas pelo interesse do filósofo. A expressividade é gerada no interior da relação do homem com o mundo percebido, notavelmente, conduzida pela noção do ser-no-mundo. Na produção de Merleau-Ponty a investigação sobre o tema permeia todo o seu discurso, mas é certamente nas obras A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A linguagem indireta que ele consegue com plenitude tratar de duas formas diferentes da expressividade, respeitando as especialidades tanto da pintura quanto da linguagem, para compreender o sentido dado à expressão. Em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, obra dedicada a Sartre, o filósofo francês dialoga com o pensamento de Saussure e Malraux. Nesta obra, ele explora as questões de signo e significado e, assim, a linguagem falada se sobressai à pintura porque é na especificidade da palavra esta relação. Conforme Merleau-Ponty (2004, p. 73): A linguagem diz peremptoriamente quando renuncia a dizer a própria coisa. Assim como a álgebra faz levar em conta grandezas que não sabemos o que são, a fala diferencia significações das quais cada uma isoladamente não é conhecida, sendo a força de tratá-las como conhecidas, de dar-nos um retrato abstrato delas e de suas relações recíprocas, que acaba por impor-nos, repentinamente, a mais precisa identificação. A linguagem significa quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-se desfazer e refazer por ele. 6 Notamos o caráter ontológico da arte pelo tratamento dado por Merleau-Ponty . 106 Observamos que a linguagem para Merleau-Ponty possui uma natureza abstrata, a fala fragmentada em palavras ou sons não se faz compreendida por si mesma, mas é na relação interna (na reciprocidade) que a significação acontece. O locutor fala, mas a fala não consegue ser totalmente fiel ao pensamento ou à coisa, pois o interlocutor significa pela abertura permitida na linguagem. Esta não copia tampouco imita o pensamento, pois a consciência (as ideias), quando transposta nas palavras, não se remete necessariamente apenas a representar objetos e coisas. A abstração da linguagem também está na ironia, na metáfora, enfim, na sua particularidade de fazer entender uma ideia em vários sentidos — significados. Uma das diferenciações que Merleau-Ponty faz entre pintura e linguagem é que a fala se faz por signos e a pintura trabalha com sensações como a cor, mas ambas são detentoras de sentidos. Em A linguagem indireta o filósofo deixa transparecer sua compreensão de igualdade entre linguagem e pintura, provavelmente porque considera a segunda também linguagem. Merleau-Ponty (2002, p. 74) afirma que a ―(...) comparação entre a linguagem e a pintura só é possível graças a uma ideia da expressão criadora que é moderna, e durante séculos os pintores e os escritores trabalharam sem suspeitar seu parentesco‖. Em A linguagem indireta podemos identificar que a expressão artística na modernidade é, para Merleau-Ponty, uma ação criadora, sobretudo na pintura. Nesta obra, ele afirma que a descoberta da possibilidade da criação pela expressão não é apenas uma descoberta do pintor moderno, mas também do público. Para compreender a criação na Arte Moderna o filósofo também discute a relação intersubjetiva. Para ele, a criação acontece quando uma obra de arte é vivificada pelo olhar. Desta forma, a visão caminharia sobre a tela pintada ou sobre a ação de pintar. Durante o percurso a obra é tocada pelo Ser que anima a visão. O olho do pintor percebe as cores para manipulá-las, faz das sensações sentidos para criar. Uma vez materializada sua expressão sobre a tela, sua pintura se coloca no mundo para ser criada ou recriada. É também o espectador que pela visão faz os sentidos das cores brotarem novamente pela visibilidade da pintura e assim também cria. Portanto, a criação não está apenas na obra finalizada, também é processo artístico e leitura de obra, uma ação entre sujeitos – intersubjetiva. Tanto pintor quanto espectador são homens encarnados no mundo e respondem ativamente aos estímulos da percepção. Então, este homem permite que as cores e as 107 formas que vê numa paisagem venham a ser transformas nas qualidades da pintura moderna. O que é legitimo em grande parte dos movimentos de vanguarda europeus. Porém, a questão merleau-pontiana sobre a pintura enquanto expressão criadora na modernidade é que quando a pintura se propõe a não mais descrever aparências, esta começa a transpor o caráter sensorial das cores e formas que é fundamental para a criação. Para explicar o caráter sensorial, Merleau-Ponty recorre demasiadamente à pintura e às cartas de Cézanne. Continuando, quando transpõe e não descreve, a pintura abre no seu núcleo ontológico uma porta que convida o espectador a participar de sua criação expressiva. A noção de obra inacabada para Merleau-Ponty também se refere à criação entre seres-no mundo que comungam de experiências propiciadas pela arte, pois o olhar do outro significará a ação deixada pelo pintor. Candido (2007, p. 57) complementa: Um quadro é significante não somente porque as cores exalam um sentido. O seu arranjo, o seu contexto exprime um significado que não provém unicamente das cores. Não é somente o sentido das cores que expressa esse significado: o contexto de um quadro, sua totalidade, faz com que as cores exprimam algo a mais do que o simples sentido que está cativo nelas. O processo de significar faz a pintura na modernidade se compreender também linguagem. Significar é dar sentidos às sensações das cores, é decifrar o gesto do pintor, olhar para criar. Por conseguinte, é ao longo das especulações sobre o parentesco entre linguagem e pintura que Merleau-Ponty investiga as relações entre expressão, criação e significação. Desta forma, entendemos que o ―algo a mais‖ se faz intrínseco nesta triangulação. Observamos ainda que Merleau-Ponty, no final de sua produção intelectual, caminhou por outros caminhos de investigação que complementam seu pensamento. Ele foi buscar no Ser e na sua grandeza elementos que permeiam as relações entre a proposta triangulação. É neste sentido que acreditamos percorrer sua teoria sobre o mundo sensível. Futuramente, na pesquisa de mestrado7 aqui apresentada, nos aprofundaremos mais sobre o assunto. No momento, para melhor iluminarmos as questões acerca do mundo sensível, notamos que o filósofo francês, no final de seus estudos essencialmente fenomenológicos, produzidos na década de 1940, encontrou problemas que procurou 7 Em andamento. 108 resolver posteriormente com a ontologia. Sobre o assunto, Lacoste reconhece que ―O pensamento de Merleau-Ponty é provavelmente a primeira ontologia baseada na pintura e não contra ela‖ 8. Pontuamos ainda que é nas últimas produções do filósofo que a pintura é tratada como linguagem envolvida pelo domínio do Ser. Entre os anos 1950 e 1960, o autor discorre sobre a expressão artística, vinculando-a ao domínio do Ser. Acreditamos que é neste contexto da obra de Merleau-Ponty que ele compreende a autonomia da pintura, atribuindo-lhe o status de linguagem. Sempre recordando que ele possui uma interrogação filosófica que não se sobressai o seu pensamento sobre a pintura e a Arte Moderna. Considerações Parciais Nosso estudo, ainda não concluído, já encontrou ―pistas‖ significativas que ajudarão a encontrar a resposta de nossa pergunta: qual o significado ou os significados da Arte Moderna no discurso de Merleau-Ponty? Notamos que o filósofo compreende a Arte Moderna como o momento mais propício para o desenvolvimento de seu discurso sobre o mundo percebido, considerando também o percurso vivido pelo filósofo, que esteve produzindo entre os anos de 1940 a 1960, na Europa. Lembrando ainda que ele sofreu uma morte prematura em 1961. Merleau-Ponty identifica o ilusionismo da Arte Renascentista como correspondente à doutrina cartesiana. Para ele, os renascentistas absorveram uma postura que separa o sujeito do objeto para pintar. É considerável que foi um grande esforço europeu a conquista da representação na pintura renascentista, porém acreditamos que a libertação das regras da representação só foi possível quando o pintor moderno burlou o distanciamento imposto pela doutrina cartesiana. É evidente que Merleau-Ponty simpatizasse com a Arte Moderna, pois o permite investigar a expressão artística que acredita ser um novo advento. Também 8 LACOSTE, J. A filosofia da Arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 98. 109 recorre à Arte Moderna para exemplificar, podendo assim argumentar acerca dos ganhos humanos ao retomar a percepção. Para melhor compreender a volta ao mundo percebido, o autor, recorre aos estudos acerca da linguagem e da pintura. Ele também discute a relação do corpo de ser vidente e visível ao falar de pintura moderna. O filósofo entende a pintura moderna como linguagem, observando-a como detentora de sentidos — significação, assim como a linguagem verbal. Seus estudos sobre a expressão artística são gerados no interior de sua argumentação sobre os processos de significação, ponto que acreditamos merecer uma dedicação maior ao longo desta pesquisa de mestrado em desenvolvimento. Neste momento, podemos considerar parcialmente que expressão na Arte Moderna para Merleau-Ponty não é apenas uma criação isolada do pintor, mas um processo compartilhado com o espectador e com o mundo a sua volta. Referências bibliográficas CANDIDO, G. B. A arte na filosofia de Merleau-Ponty. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Setor de ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2007. CÉZANNE, P. Correspondências: Paul Cézanne. São Paulo: Martins Fontes, 1992. CHALUMEAU, J. L. As Teorias da Arte. Lisboa: Instituto Piaget, s/d. CHAUI, M. 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