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n
Conferências, comentários e debates
de um Simpósio Internacional
realizado de 11 a 12 de maio de 1981
Coleção Itinerários
BE:J Editora Universidade de Brasília
Como apoio
FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO
Sumário
Este lívro ou parte dele
não pode ser reproduzido sob nenhuma forma,
por mimeógrafo ou outro meio qualquer
sem autorização prévia do Editor
Impresso no Brasil
Editora Universidade de Brasília
Campus Universitário- Asa Norte
70910 Brasília Distrito Federal
Copyright © 1981 Editora Universidade de Brasílía
Capa:
Arnaldo Machado de Camargo Filho
PENSAMENTO FILOSÓFICO E ECONÚMICO
Friedrich Hayek . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Comentários de Vamireh Chacon . . . . .• . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Comentários de Friedrich Hayek . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Comentários de Henry Maksoud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Comentários de Friedrich Hayek . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Perguntas e Respostas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Comentário de Henry Maksoud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Comentários de Friedrich Hayek . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Debates .............................................
1
1
5
9
11
13
15
19
21
23
HAYEKPORELEMESMO .......•............................ 31
Comentários de Henry Maksoud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Perguntas e Respostas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
ILUSTRAÇOES ............................................ 51
ID:tiAS EM DEBATES
Friedrich Hayek por Benedicto Ferri de Barros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
53
NOTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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H417
Hayek na UnB: conferências, comentários e debates de um simpósio internacional realizado de 11 a 12 de maio de 1981. Brasília Editora Universidade de Brasília, c1981.
'
59 p.
(Coleção Itinerários,
330.8
330.831.8
Hayek, Friedrich August von, 1899série
32.001
Pensamento Filosófico e Económico
Friedrich Hayek
O que me foi sugerido como tema é o que se convencionou chamar de relacionamento entre o pensamento filosófico e econômico, e de certo modo, se constitui agora,
em uma de minhas principais preocupações.
Há muitos e muitos anos me foi dito e eu aprendi - que alguém que seja apenas um economista jamais poderá ser um bom economista, eis que é preciso saber muitas coisas mais, a fim de formar qualquer opinião a respeito de problemas práticos.
Nestes últimos anos, porém, tenho enfrentado este fato de maneira mais aguda. Tenho
ficado sobremaneira indignado com meus colegas economistas, já que, quando se trata
de analisar os problemas mais críticos, que realmente caberia aos economistas discutir,
no que se refere à adoção, por exemplo, de determinado tipo de organização da economia, eles, de maneira geral, recusam-se a comprometer-se de forma explícita, na ilusão
de que, em última análise, a escolha entre economia de mercado ou capitalismo ; a
forma alternativa de socialismo é um problema de valores e não um problema científico, sobre o qual, portanto, o economista não tem poder de decisão.
Cheguei à conclusão de que isto é uma espécie de fuga, que não deveria ser utilizada pelos economistas, já que a questão fundamental não é de caráter ético, mas, o
que se tem de saber é se o socialismo pode concretizar o que promete, sendo que, a
resposta é muito simples. Pode-se demonstrar de modo puramente factual quê a economia, sob um regime socialista, não atinge os objetivos que ele preconiza. Isto, no entanto, requer uma investigação sobre se somos livres para escolher os valores morais que
consideramos corretos ou se, ao contrário, herdamos urna tradição moral a qual -e
apenas ela
nos permitiu elevar os índices populacionais atualmente existentes no
mundo. E cheguei à conclusão, de que os princípios morais dominantes na sociedade
de mercado do Ocidente são uma condição essencial, para que mantenhamos uma população mundial em torno de 4 bilhões de seres humanos. Não podemos escolher se
desejamos manter tal população por meio de um sistema baseado na propriedade privada, nos contatos de mercado, ou se podemos alcançar isto através de qualquer outro
método, por meio de algum tipo de direção centralizada, que nos liberaria para alocar
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Friedrich Hayek
Hayek na UnB
a cadà pessoa, não aquilo que o mercado lhe dá, mas o que a justiça ou as normas
éticas estabelecem que cada um tem que ter.
A confusão a respeito deste ponto
e disso estou firmemente convencido provém de um homem geralmente considerado um herói do liberalismo, o grande
economista do século XIX, John Stuart Mill, certamente considerado um grande inspirador da liberdade intelectual. No que concerne à liberdade econômica, penso que ele
ensinou uma doutrina que, caso verdadeira, realmente nos imporia a responsabilidade
moral de distribuir os produtos de acordo com os princípios da justiça social.
Quando se analisa seu importante livro, publicado, coincidentemente, no mesmo
ano em que Karl Marx e Friedrich Engels publicaram seu Manifesto Comunista, e baseado na mesma teoria do valor do trabalho, descobre-se a notável afirmativa após
ele ter gasto um quarto do livro falando sobre o que classifica de teoria da produção de que, uma vez que o produto exista, a humanidade, individualmente ou coletivamente, pode com ele fazer o que mais lhe agrade. Se isto fosse verdadeiro, não poderíamos
negar que o nosso dever moral seria constatar que tal produto, que, segundo ele, ocorre em bases puramente tecnológicas, está disponível e podemos utilizá-lo de forma que
mais nos agrade. Então, nosso dever moral seria, obviamente, cuidar para que tal produto seja destinado aos que ou dele mais necessitam, ou mais o merecem.
Mas John Stuart Mill estava cientificamente equivocado. O fato é que, se fizéssemos isto, o produto poderia estar lá uma vez, mas nunca mais estaria novamente, porque um produto de tal magnitude, torna-se disponível apenas porque nós nos permitimos ser orientados sobre como usar nossos recursos pelos preços de mercado. Nós desenvolvemos, sem compreendê-lo, algo que eu agora gosto de chamar extended society
arder, ou seja, um tipo de ordem social que extrapola o conhecimento que qualquer
pessoa possa ter dos fatos, e na qual cada um de nós satisfaz as necessidades de pessoas
que não conhece, para tanto valendo-se do auxílio de pessoas que também são desconhecidas. E, ainda assim, esses milhares de circunstâncias que estão sendo consideradas
como um todo não são conhecidas de ninguém, mas são alimentadas no computador
do mercado, que transmite a cada um, sob a forma de preços, a informação que se tem
que ter para contribuir ao máximo para a formação do produto social.
A extended arder, como um todo, que representa uma adaptação às atividades
humanas, através de uma infinidade de fatos particulares que ninguém conhece em sua
plenitude, foi feita pelo mercado. E o mercado se tornou possível pela ação de pessoas
que adotaram as normas relativas à propriedade privada, aos contratos e assim por
diante, que elas não aceitavam nli'o por ter compreendido que seriam benéficas à humanidade, mas pela simples razã'o, de que aqueles grupos que de alguma forma se fixavam
nesses princípios do individualismo, multiplicaram-se muito mais rapidamente do que
os outros, já que assim eles podiam manter urna população muito maior. E nossas cren.
ças morais na propriedade privada e na liberdade de contrato cresceram juntamente
com aquela noção moderna de ordem econômica, que tornou possível a sobrevivência
de uma população praticamente quatro vezes superior àquela existente no mundo, antes que o homem deixasse de ser um caçador e um coletor, para se tornar um produtor
para o mercado.
Podemos comprovar historicamente como esse aumento da população mundial
sempre esteve intimamente ligado à adoção de uma ordem de mercado, ou como foi
a expansão da ordem de mercado que nos possibilitou aumentar os índices populacionais até atingirem os níveis em que se encontram hoje, e como ainda temos que depender dessa ordem para alimentar a população que aumentamos. Porque o que eu chamo
de extended arder of the market, um tipo de ordem que extrapola os fatos_ conhecidos,
é um resultado de nossa adesão aos princípios do mercado, da propriedade privada e
do sistema de trocas. Não temos alternativa. Eu não posso julgar se os efeitos disso sobre a humanidade foram benéficos. Vocês ou eu, podemos achar que foi um grande infortúnio a quantidade de pessoas se ter multiplicado tanto. Podemos até pensar que, se
a população mundial fosse menor, seria melhor. Mas o fato é que nós a fizemos crescer
a tal ponto, que só podemos fazê-la sobreviver por meio da economia de mercado. Eu
até estou me convencendo de que - e acredito que isto seja realmente verdadeiro- o
que nós chamamos de avaliação econômica do mercado é realmente uma avaliação em
termos de vidas humanas. Ela nos conduz ao tipo de atividade e ao tipo de distribuição
de esforços que nos possibilitam alimentar o maior número possível de pessoas. E é
claro que isto pode ser observado em todos os lugares. Onde há uma economia de mercado, a população se expande rapidamente. Ela se expande para usarmos uma frase
marxista - com a criação, pelo capitalismo, do proletariado; não, conforme pretendia
Marx, despojando alguém de sua propriedade, mas, sim, dando vida a pessoas que de
outra forma não teriam existido. Há sempre uma razão para a existência do proletariado, em algum lugar, à margem das prósperas economias de mercado, que atraíram
os excessos populacionais que viviam da terra, mas que dela não teriam sobrevivido, e
que foram atraídos para centros comerciais e industriais onde uma economia de mercado em desenvolvimento lhes proporcionou vida.
O mercado foi a grande força que deu vida à humanidade. E agora estamos em
face de uma situação quer gostemos dela, quer não - em que um número quatro·
centas vezes superior de pessoas vivem hoje no mundo em comparação com as que
viviam há dez mil anos, e que só há um meio de alimentá-las: utilizando muito mais
informação do que a de que dispõe qualquer pessoa ou autoridade, informação da qual
o mercado é o instrumento de alimentação em uma espécie de computador central, e
para destinar recursos de uma forma melhor do que em qualquer outro lugar.
Assim, para finalizar, eu diria que minhas conclusões, praticamente, são estas.
Nós não escolhemos nossos princípios morais, nem visamos a multiplicar tanto a
humanidade como o fizemos. Mas, aconteceu! Estamos agora vivendo num mundo
em que, graças a princípios morais, dos quais gostamos ou não, fizemos crescer a população mundial a um nível do qual podemos ou não gostar. Mas, a menos que queiramos
matar grande parte da população, na:o temos alternativa senão aderir àqueles princípios
morais básicos que tornam possível a economia de mercado, ou seja, os princípios da
propriedade privada, do mercado competitivo, da concorrência e tudo o mais.
Assim, curiosamente, o economista pode finalmente chegar a uma clara resposta
à questão "O que é melhor: o capitalismo ou o socialismo?" É claro que, primeiramente, ele tem de voltar à questão fundamental: "O que é que você quer?". Mas, se se quiser manter viva a população mundial e dar-lhe uma chance de futuramente aperfeiçoar
sua maneira de viver, então, deve-se adotar os métodos do mercado, já que é o único
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Friedrich Hayek
modo que o homem conhece, pelo qual aquela infinidade de informações específicas
pode ser utilizada, existente apenas de forma dispersa em meio a estas milhões de pessoas, e que só podemos utilizar plenamente se alimentadas no sistema de mercado:
Comentários de Vamireh Chacon
A visita do Professor Friedrich Hayek ao Brasil, para esta série de conferências,
muito contribui entre outras coisas, para melhor situar uma linha do pensamento e da
ação na economia brasileira: aquela representada pelo patriarca Eugênio Gudin e prosseguida por Octávio Gouveia de Bulhões, Roberto Campos e outros, a linha que se convencionou chamar de monetarista, apesar de Hayer ir além de uma econometria, rumo
a uma filosofia da política.
Da minha parte me permito uma evocação pessoal: entre 1959 e 1960, um jovem estudante latino-americano freqüentava alguma das aulas de Hayek, no Departamento de Economia presidido por Theodore W. Schultz na Universidade de Chicago,
fortaleza de Milton Friedman ... Aquele estudante, eu, mais destinado por vocação e
missão de bolsa de estudo aos cursos de Sociologia do Desenvolvimento então dados
por Bert Hoselitz, não pôde resistir ao fascínio polêmico do autor de The Road to
Serfdom, que eu conhecia desde os tempos de Brasil.
Eis-me agora diante do mestre, embora menos para discutir com ele que para estimular suas respostas nem sempre pacíficas ...
Hayek pertence à vertente austríaca do pensamento econômico, mais rica teoricamente que a alemã. Karl Popper revela, na sua autobiografia intelectual, a grande
influência de John Stuart Mill na sua geração. Dali nasceria a árvore da teoria econômica na Áustria, ao lado de outras florações intelectuais, em Eugen von Boehm-Bawerk,
Ludwig von Mises e Friedrich August von Hayek, de uma estirpe de nobres liberais.
Tentavam, até com um certo quixotismo, salvar o liberalismo em estado quimicamente
puro ...
Diante de Hayek, a quem presto minha homenagem nesse momento, venho fazer muito mais o papel de advogado do diabo, para acirrar sua veia polêmica, que propriamente objetar, lembrando-me sempre da minha perene condição de espectador
diante da magia da sua palavra, desde aqueles longínquos tempos de Chicago.
Eu começaria pelo sentido de modelo matemático da competição perfeita,
ponto de partida e meta da reflexão de Hayek. Portanto, um paradigma tão ideal
quanto qualquer outro modelo matemático, à maneira do modelo da planificação
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Friedrich Hayek
Hayek na UnB
total. Ambos perfeitos, mas só ao nível abstrato formal, diante da crescente realidade
das economias mistas, conforme as definiu o também Prêmio Nobel, Paul Samuelson.
O modelo da competição perfeita pressupõe o pleno livre fluxo dos fatores de
produção e das informações das oportunidades econômicas. Só operaria sob um governo mundial, ou melhor, na ausência dele próprio e principalmente na ausência dosEstados nacionais.
Ora, a situação histórica em que vivemos ainda é a dos Estados nacionais, Rrojetando internacionalmente as exigências resultantes dos grupos de pressão internos nas
suas sociedades, e não sabemos como o quando será o governo mundial, muito menos
a sua ausência.
Os Estados nacionais vivem, na prática, as diretrizes de Friedrich List, o apóstolo
do neo-mercantilismo em nosso tempo. Agora mesmo estamos assistindo à disputa entre a indústria automobilística dos Estados Unidos e a japonesa, cada qual convocando
em seu favor os subsídios, diretos em forma de crédito ou indiretos através de cortes
de impostos, dos respectivos governos. A ponto do próprio Milton Friedman acabar
reconhecendo, em artigo em Newsweek, 6 de abril de 1981, textualmente: Needless
to say, the talk of voluntary restrictions is hypocrisy pure and simple. J apane se exporters are not about to out their own throats 'voluntarily'. They will restrict exports
only if their government requires them to do so - whether openly or more subtle
means of persuasion. And the Japanese Government will require them to restrict
exports only if our government pressures or bribes Japan to doso". 1
Donde Friedman conclui: "I oppose restrictions of any kind, legislated or
voluntary. But if there are to be restrictions, let us be honest and open about them,
not seek to achieve by subterfuge what an Administration dedicated to prombting
free trade and reliance on the market would find it embarrasing to support through
legislation". 2
Não se poderia esperar outra coisa em Estados nacionais equilibrados internamente pelo jogo dos grupos de pressão.
Mas é claro que já começam a surgir confederações econômicas, prelúdios de
confederações políticas, como no caso do Mercado Comum da Europa Ocidental. Então as sucessivas agregações vão se sucedendo pacificamente por consenso, ao modo
agora se estendendo à Península Ibérica e à Grécia democratizadas, em vez do esquema liberalismo econômico-autoritarismo político do Chile e da Argentina, contraditório
porque lhe falta inclusive o livre trânsito das oportunidades econômicas, prejudicado
pela castração da liberdade de informações. E que costuma terminar, ao fim e ao cabo,
em estatizações sacrificando o liberalismo econômico em proveito do autoritarismo político querendo sobreviver em meio às contradições que encontrou e que acabou por
agravar.
Além do mais, há o problema da escala.
O desmantelamento das indústrias subsidiadas pode funcionar no Chile, com algo
mais de dez milhões de habitantes, assim muito mais fáceis de encontrarem artigos de
exportação compensadores e tão escassos beneficiários, em vez da Argentina com três
vezes mais população, conforme se tem visto no eqüilibrio rapidamente alcançado por
um e no crônico deseqüilibrio do outro. A integração, em blocos econômicos, depende
não só da distância quanto da demografia e de graus de desenvolvimento. França e Alemarlha logo se compuseram no Mercado Comum, a Grã-Bretanha o vem conseguindo, a
Itália, apesar de há tanto tempo tentá-lo, continua enfrentando dificuldades que se prenunciam ainda maiores em relação à Espanha, Portugal ou Grécia.
E o que se poderia então dizer do Brasil, à luz inclusive do exemplo das restrições dos Estados Unidos às importações de carros japoneses? Iríamos ser mais "friedmanianos" que Milton Friedman, cortando todos os subsídios às indústrias brasileiras
e enfrentando todos os conseqüentes deseqüilíbrios sociais internos, ameaçadores da
segurança do Estado nacional brasileiro e da própria estabilidade política continental,
quando mesmo Friedman admite o protecionismo defensivo sob pressão dos grupos internos de opinião, em condições muito menos graves, nos Estados Unidos? ...
O Brasil não podia continuar esperando que os vasos comunicantes ou a chamada
mancha de óleo do desenvolvimento mundial chegassem mais tarde, espontânea e
tranqüilamente a nós. Tínhamos de lançar pelo menos as bases da infra-estrutura econômica nacional.
Para concluirmos, neste jogo senão imparcial pelo menos objetivo, de ver as coisas por vários lados, talvez S.E. Finer, de Oxford, também tenha razão a longo prazo,
quando vislumbra nas multinacionais, ou melhor, transnacionais, uma espécie de nova
Liga Hanseática procurando fazer circular os fatores de produção em escala além da
européia ou trilateralista, embora ainda longe das circunstâncias sob um governo mundial ou sua ausência.
Entrementes, temos de conciliar as antecipações e as constatações e assim viver
na economia mista de Samuelson, para a qual convergem pouco a pouco até os governos dogmaticamente leninistas-stalinistas tendo de acolher, na prática, os investimentos
das multinacionais, tanto quanto os países pluralistas liberais admitem intervencionismos aceitos pelo próprio Milton Friedman.
Eram apenas estas as provocações que eu gostaria de dirigir ao mestre eminente.
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Comentários de Friedrich Hayek
Permitam-me fazer um breve comentário à palestra do Prof. Vamireh Chacon.
Achei-a muito interessante, pois, como eu disse antes, cheguei a um ponto em
minha vida em que não mais questiono sobre o que é politicamente possível, a esta
altura dos acontecimentos. Mas minha principal preocupação é tornar politicamente
possível aquilo que agora não o é. Quando alguém é chamado a aconselhar governos,
o mais prático, no momento, é fazer concessões e, ademais, quanto mais democrático é um país, mais a pessoa tem que concordar com o que acontece ser a opinião
dominante.
Embora eu esteja antecipando o que apenas teria que dizer em minha conferência de amanhã, eu sei que tenho sido muito feliz em minha vida. Sempre ocorreu, assim que eu conseguia suficiente reputação local para ser consultado por governos, de
em seis meses eu deixar o país em que estava vivendo. Eu havia justamente chegado a
este ponto, na Áustria, prestando serviços ao Governo, e em seis meses eu estava em
Londres. Vinte anos mais tarde, eu havia até mesmo chegado à posição de alguém a
quem os governos fazem consultas, tendo, certa vez, até atuado junto ao British Colonial Office e, novamente, em seis meses, eu estava na América. E, na América, eu permaneci... Jamais me tornei um cidadão americano e, portanto, nunca me foi dada a
responsabilidade de aconselhar governos.
Por conseguinte, agora eu me posso permitir fazer piadas acerca de todos os
meus amigos que, entre os economistas, tenham, mais cedo ou mais tarde, ........ .
Comentários de Henry Maksoud
Eu faria apenas um breve comentário. Acho que, para quem entende, às vezes
é bom ser breve e rude. E creio que o Professor Hayek, a quem, como todos sabem, eu
admiro bastante e conheço relativamente bem suas idéias -respondeu muito bem às
provocações de Chacon, aliás, interessantíssimas e bastante estimulantes. Mas a resposta é essa mesma. O problema fundamental é este: se você vai dar conselhos a um governo, você tem que de uma forma ou de outra se corromper. E isto não é dito, ou melhor, a palavra corrupção na-o é utilizada, no caso, com um sentido pejorativo, a que
estamos acostumados, mas, sim, em seu melhor sentido. Trata-se de corrupção relativamente às idéias, do ponto de vista filosófico. Sobre isto eu gostaria de ficar aqui conversando longamente, mas não o farei, porque, daqui a pouco, vocês vão me vaiar.
Inicialmente, porém - e depois, se houver oportunidade, eu farei outras colocações - vou fazer alguns comentários, também com a intenção de provocar, não como
fez o Chacon, a fun de que o mestre nos fale alguma coisa sobre os pontos que vou
aqui ditar.
A ciência econômica não é o bastante. Mas, em seu discurso quando do recebi·
mento do Prêmio Nobel, em 11 de dezembro de 1974, o senhor disse: "Na verdade,
temos poucos motivos para nos orgulharmos neste momento. Em termos profissionais, temos feito muitas bobagens".
No seu ensaio intitulado Full Employment at Any Price, publicado pelo Institute of Economic Affairs, de Londres, em 1975, o senhor explica o seguinte: "A falha
intimamente ligada à tendência dos economistas de imitarem tanto quanto possível os
procedimentos brilhantemente bem sucedidos na área das ciências físicas, é uma tentativa que na área da Economia pode levar a um total equívoco.
Poderia comentar isto, Professor Hayek?
Comentários de Friedrich Hayek
- Bem, estes dois pontos realmente estão muito interligados. Em ambas as oportunidades, eu falei amplamente sobre a posição assumida pelos ingleses, mas os problemas, internacionalmente, são muito semelhantes: as dificuldades que agora estamos enfrentando e que são o resultado daquilo que, na Europa Ocidental, pelo menos, surgiu
apenas nos últimos cínqüenta anos ... Acredito· que vocês tenham uma longa experiência quanto a isto. Trata-se, especificamente, do problema da inflação. Esse problema
surgiu concomitantemente com o empenho dos economistas no sentido de ajudar o
governo a enfrentar uma situação de caráter prático, ao invés de insistirem na adoção
de princípios, para tanto apelando para um tipo de Economia simplificada que parece
muito bonita, porque pode operar na base dessa avaliação, em condições relativamente
simples. O problema surgiu sob a forma de desemprego na Inglaterra, no início dos
anos 20, quando John Maynard Keynes, mais tarde Lord Keynes, então considerado
o mais importante economista, se conscientizou plenamente de que a causa fundamental era o fato de que, infelizmente, por um erro inicial na política monetária inglesa, os
salários na Inglaterra se haviam tornado demasiadamente elevados para competirem
internacionalmente. Isto foi o resultado de uma tentativa muito honesta, mas muito
tola, realizada na Grã-Bretanha, por fazer a libra esterlina voltar aos valores do período anterior à guerra, o que fez com que os salários reais na Inglaterra se tornassem muito superiores aos do resto do mundo, causando um desemprego em larga escala. Naquela época, Keynes, primeiramente, afirmava: "Se fizermos isto, teremos que baixar os
salários". Então, ele compreendeu que simplesmente tal coisa era impossível, do ponto
de vista político. E, aí, ele sugeriu: "Vamos contornar as dificuldades com um artifício: se não podemos reduzir os salários, vamos reduzir o valor da moeda, a fim de superarmos o problema do desemprego".
Bem, isto foi conseguido, até certo ponto,já que a inflação tem a sedutora característica de, em curto prazo e à medida que seja continuamente acelerada, aumentar o
nível de empregos. Mas e isto se tornou razoavelmente bem compreendido naquela
época - tal efeito só pode ser obtido à custa da desorientação no uso dos recursos, distorcendo-se a estrutura de preços e fazendo com que os recursos sejam aplicados em
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Friedrich Hayek
setores onde eles somente possam ser continuadamente utilizados se se acelerar a inflação.
Isto deve ter sido realmente entendido, e imediatamente foi utilizado contra
Keynes. Mas as objeções foram rejeitadas com base em outras razões.
O ponto para o qual tenho chamado a atenção e que há muito foi compreendido,
ou seja, o efeito da inflação na estrutura dos preços relativos é algo que não se depreende das estatísticas. As estatísticas servem apenas para os preços médios, e o approach
de caráter estatístico referente ao problema da inflação conduziu a uma concentração
no relacionamento entre dois tipos de magnitude estatística, ou seja, a demanda total
e o nível de preços. E um de meus queridos amigos, Milton Friedman, muito conhecido de vocês, obcecado pela técnica estatística, e insistindo em que apenas o que é estatisticamente mensurável pode ser significativo para a explicação de fatos, concordou
com esta tese. Desta forma, para ele; o único dano causado pela inflação é mudar o
nível de preços, o que prejudica os credores e beneficia os devedores.
O outro efeito da inflação, muito mais sério, em minha opinião, e que se tornou
bem compreendido no último século e nos primórdios deste século, é que ela também
modifica a relativa magnitude dos diferentes preços. Desloca-os daquela posição de
eqüil1brio, na qual a distribuição da demanda entre os diferentes tipos de indústria e a
distribuição dos recursos pelos diferentes tipos de indústria se harmonizam. O desemprego não é, em última análise, como Keynes·e Friedman proclamam, o resultado de
uma disparidade entre a demanda plena e a oferta plena, mas, sim, o efeito de uma diferença em termos de distribuição da despesa, a partir da distribuição de recursos para
a produção de diferentes tipos de bens. Infelizmente, porém, as estruturas dos preços
relativos não podem ser estatisticamente investigadas. Não há estatísticas sobre elas.
Embora isto se constituísse no ponto fundamental, a teoria monetarista, até
cerca de 1920, desapareceu de cena. Somente o que é mensurável é científico. Em
conseqüência, a incipiente teoria quantitativa, na qual acredito como um primeiro
tipo de approach, transformou-se na doutrina a conduzir essa análise. Na verdade,
eu disse, há cerca de 50 anos, que nada pior poderia acontecer à humanidade do que
as pessoas perderem de uma vez sua fé na importância da quantidade de moeda. Mas
isto nâo deve ser levado ao pé da letra. Trata-se, simplesmente, de um primeiro approach,
incipiente. Receio que a pretensão de se parecer muito científico e de dizer-se que o
importante é apenas a relação entre quantidades mensuráveis resultou exatamente nisto. Fomos ensinados, primeiro, por Keynes e, depois, por Milton Friedman, que o que
importa é a relação entre a demanda plena e a oferta plena, e, na medida em que mantivermos suficientemente alto o nível da demanda plena, poderemos resolver o problema do desemprego.
Eu diria que, infelizmente, isto não funciona a curto prazo. Tenho sempre dito
que isto não poderia funcionar a curto prazo, o que, de fato, tem gradativamente sido
comprovado. Atingimos, em todo o mundo, recentemente, um estágio em que o benéfico efeito da inflação sobre os empregos só pode ser preservado por uma aceleração tal
do nível de empregos a ponto de não mais se tornar tolerável. E, desta forma, agora estamos enfrentando uma crise de empregos, a qual resulta, exatamente, de nossa tentativa de combater o desemprego com métodos errados.
Perguntas e Respostas
O segundo conjunto de perguntas apresenta uma confusão semântica, ou seja,
uma confusão no uso das palavras.
Vivemos em meio a uma verdadeira guerra intelectual. Esta guerra se caracteriza
por uma confusão semântica. Hoje, rótulos tais como liberal, conservador e libertário
apresentam tantas definições que quase se tornam sem significado algum. Se uma pessoa, por exemplo, não utiliza o adjetivo social em seu discurso, como na expressão
justiça social, passa a ser classificada como direitista. Por outro lado, há os esquerdistas. Se a pessoa se mostra bastante vaga, pode ser respeitada, digamos, como pertencendo ao centro. Pode-se igualmente ser classificado como de centro-esquerda, de centro-direita, de extrema-direita ou de extrema-esquerda.
Pergunta (Henry Maksoud): Minha primeira questão, portanto, é a seguinte:
Professor Hayek, o senhor é um conservador, um liberal, um libertário, ou se consideraria um demarquista, ou um Wh(g- da antiga tradição?
Resposta: Bem, permita-me, em primeiro lugar, contar-lhe uma recente experiência que me deu um grande prazer. Descobri que o grande sábio chinês Confúcio
disse, certa vez, que se as pessoas utilizam mal a sua linguagem perdem sua liberdade.
Há, realmente, uma grande dose de verdade nisso. Tem havido um continuado
mau uso da linguagem. E o exemplo mais drástico, no caso, é o fato de que, pelo menos na parte norte deste Continente, o que na Europa costuma ser, no século XIX, o
partido da liberdade, o chamado liberalismo, transformou-se, pelo menos na América
do Norte, na denominação do partido da antiliberdade, que pretende o controle da
economia e de tudo o mais.
Quanto ao outro ponto de sua questão, ou seja, o problema da justiça social,
recentemente fiz uma piada no sentido de que social é o que os norte-americanos
chamam de weasel word. Não sei se vocês conhecem tal expressão. Weasel, doninha,
é aquele animal que é capaz de sugar o conteúdo de um ovo sem que se note do lado
de fora, ou seja, sem que se saiba que a casca está oca. Social é, neste sentido, um
weasel word, e, quando ligada a algum outro termo tradicional, a palavra perde seu
significado.
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Friedrich Hayek
Hayek na UnB
Nós temos uma economia de mercado, mas quando você a classifica de uma economia social de mercado, já não significa mais nada. Você tem a justiça, mas quando
você diz justiça social, ela não quer dizer mais nada. Você tem o Estado de Díreíto
-- o que os alemães chamam de rechtstadt mas, quando você junta o termo social
ao rechstadt, novamente isto não quer dizer nada.
A linda expressão social é, portanto, neste sentido, um weasel word, que podemos utilizar para despojar qualquer dos clássicos termos do seu significado apenas
adicionando-se-lhe a palavra social.
Agora, quanto à pergunta sobre como eu classifico a mim mesmo, eu, na verdade, certa vez expliquei que, no desespero de não mais usar a expressão liberal eu costumava classificar-me como liberal durante muito tempo em minha vida- ... Eu diria:
"Não, eu não sou um liberal". Mas eu faço parte daquele grupo ao qual os grandes fi.
lósofos escoceses do século XVIII e pessoas como Edmund Burke pertenceram, os
antigos Whigs. Descobri, porém, que tais homens acharam uma expressão muito melhor para classificarem a si mesmos. Alguns deles, a começar por David Hume, consideravam-se Whigs céticos. Desta forma, eu agora classifico a mim mesmo como um Whig
cético.
Pergunta (Henry Maksoud): Por que os conservadores são, por vezes, tão úteis
aos socialistas ou aos intervencionistas?
Resposta: Porque o que eles querem é o ·controle do governo, mas para diferentes finalidades. Ambos os partidos, o Conservador e o Socialista, desejam dirigir todas
as atividades para aqueles fins que eles consideram importantes. A única diferença entre eles é que os Conservadores têm propósitos diversos dos dos socialistas, mas 0 método é o mesmo. Esta, a grande tragédia, ou seja, o fato de que há pessoas que estão
tentando fazer predominar um novo tipo de intervençã'o no governo, enquanto a maioria deseja usar a mesma intervençã'o no governo meramente para outros fins. No momento, em oposição ao ponto de vista do governo, os liberais demodés- os do meu
tipo, os Whigs céticos têm que se juntar aos Conservadores. Mas, como Lord Acton
disse certa vez, há mais ou menos cem anos, a fim de obter a liberdade, o que acredita
na liberdade, tem sempre que se associar a outros que a buscam por vários e diferentes
motivos- uma associação que é sempre arriscada e, algumas vezes, muito perigosa.
Pergunta (Henry Maksoud): O Senhor é um direitista, ou não?
Resposta: Bem, acho que tenho que sê-lo. Por mais de 60 anos, tenho sido surdo
do ouvido esquerdo. Portanto, nlo posso ouvir a esquerda e talvez por isto eu tenha
que ouvir a direita aliás, eu os ouço de modo extremamente cético.
Pergunta (Henry Maksoud): Em que os liberais clássicos erraram? Será que eles
não desejaram explicitar em seus escritos alguns de seus princípios ou crenças básicos?
Foi este o seu principal erro?
Resposta: Sim, creio que eles foram levados a acreditar em poderes muito maiores, permanentes, para o governo, do que realmente o governo possui. Eu me recordo
de que meu mais importante professor na Universidade, um dos três fundadores da
Escola Austríaca, era um excelente liberal, tendo sido um dos criadores da marginal
utility idea - idéia da utilidade marginal. E é claro que essa idéia foi extremamente
útil ao fornecer uma justificativa racional para a taxação progressiva.
Agora, se você comete o mais leve engano de pensar que pode avaliar os diferentes tipos de utilidades de diferentes tipos de pessoas, então é claro que você tem que
concluir que a mesma renda, a mesma quantidade de dinheiro vale menos para o rico
do que para o pobre. Desta forma, você pode taxá-las a níveis mais altos. Mas o fato
é que, naturalmente, mais uma vez a idéia de que as utilidades de diferentes tipos de
pessoas constituem uma ordem de grandeza que pode ser avaliada e objetivamente
comparada é simplesmente um absurdo, é uma ilusão, uma das scientistic illusions,
como costumo chamá-las, que tão freqüentemente tentam o economista a extrapolar
sua área de competência, por acreditar que possui o conhecimento que o torna capaz
de reorganizar mais beneficamente a atividade econômica.
Comentários de Henry Maksoud
Agora vou fazer algo que eu gostaria que tivessem feito para mim há algum tempo. Eu fui aqui apresentado, se não me engano, como empresário e engenheiro. Real·
mente, sou engenheiro, sou homem de negócios, empresário e tudo o mais. Mas eu
também hoje me julgo muito mais estudante do que jamais fui. Eu me considero hoje
um homem que estuda e que todos os dias ~stá querendo estudar. Isto, por um único
motivo: não para ser estudante e pagar meia entrada no cinema, mas para aprender.
Acho que depois de velho comecei a me conscientizar da importância do estudo, da
importância de compreender determinadas coisas, da importância de compreender
por que existem determinados problemas na vida. Lêem-se e ouvem-se tantas coisas
confusas por af... Assim, é bom que a pessoa tenha, ela própria, consciência de tudo
isso. Mas, como é difícil ter consciência de determinadas coisas, entender determinadas coisas! Como são contraditórias as colocações que nós ouvimos todos os dias!
Como são confusas! Principalmente quando se tenta entender algo na área de filosofia
política, como se misturam os filósofos! Quer dizer, o mundo de hoje é um mundo em
que os filósofos são colocados na batedeira, como se colocam a laranja, o gelo e outros
ingredientes, e se dá aquilo para a pessoa tomar, sem se saber bem se é laranjada ou se
é suco de tomate.
Mas a filosofia política é o que nós precisamos estudar. Pensa-se que a filosofia
política é alguma coisa etérea, vaga, mas, na verdade, é algo extremamente importante
e objetivo, principalmente para aqueles que de alguma forma se preocupam com a vida
do homem em sociedade. Aqueles outros que estão muito ocupados em dar de mamar
para as crianças, comprando feijão e arroz etc., que vivam como queiram viver. Mas os
outros, os que têm aquele tipo de preocupação, precisam estudar um pouco de filosofia política.
E é importantíssimo saber-se o que se está estudando. Eu não quero dizer que
não se deve estudar aquilo que eventualmente possa ser contra os próprios pontos de
vista. Por exemplo, eu não sou de forma alguma a favor do coletivismo. Isto não quer
dizer que eu nã'o estude tudo que se refira ao marxismo ou que nele se inspire. De forma alguma! Eu talvez, até, estude mais, leia mais sobre este assunto, para poder enten-
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Friedrich Hayek
dê-lo e para poder, inclusive, combater, com idéias, conceitos que, no meu entender,
são todos equivocados ou que, como diz o Professor Hayek, não vão produzir coisa
alguma.
Então, quando eu digo vamos estudar, vamos compreender, o que eu quero dizer
é que devemos saber se estamos estudando algo que é socialista - não importa se é certo ou errado o socialismo! - ou se não é socialista, mas, sim, o que é. Porque existe
também este o que é, que significa um monte de coisas híbridas que não representam
nem uma coisa nem outra.
Assim, eu gostaria de dizer que comecei, depois de velho, a ser estudante. E teria
sido bom se me tivessem orientado: "Você leia isso aí, porque isso é dessa linha geral
filosófica". Isto, inclusive, para não perder tempo. Quando se é velho, tem-se pouco
tempo.
Esta é a minha colocação, que vai terminar com um pedido de classificação de
filósofos ao Professor Hayek. Vou falar em uma porção de nomes, muitos dos quais,
provavelmente todos, já ouviram falar. Eu vou pedir ao Professor Hayek que, no seu
modo de entender e com base em sua experiência, nos seus 50 anos de filosofia política,
nos diga em que lado ele situaria tal e qual filósofo. Como, por exemplo, um Rousseau
estaria colocado em relação a um Marx, ou um Adam Smith em relação a um Hegel ou
a um Montesquieu? E assim por diante; incluindo alguns que não são propriamente filósofos, mas são autores também conhecidos, tipo Karl Mannheim ou George Bernard
Shaw - coisas dessa natureza.
Vamos fazer um quadro, onde irão sendo colocados os nomes que irei mencionando, na coluna indicada pelo Professor Hayek.
Antes, porém, desejo fazer uma breve introdução, acerca do que eu chamo de
separação de filósofos ou seleção de filósofos.
Na guerra intelectual em que vivemos, o elemento característico é a confusão.
Confusão entre meios e fins, como ocorre quando acreditamos que o método democrático é um fim em si mesmo. Confusão no uso ou mau uso de palavras, como quando
falamos da sociedade como uma entidade concreta, com vida e inteligência, capaz de
ser justa ou injusta, e não como uma abstração, como realmente é. Confusão em termos de conceitos de coisas fundamentais, tais como lei, estado de direito, constituição,
liberdade,justiça, riqueza, pobreza etc.
Mas há também outro tipo de confusão, especialmente entre os intelectuais, os
second-hand dealers o[ ideas, como o Professor Hayek os considera. E esta é a confusão na seleção de filósofos e conceitos filosóficos. Quantas vezes não ouvimos filósofos
totalitários serem considerados como pensadores não-totalitários, como se ambos tivessem os mesmos conceitos sobre a vida em sociedade? Rousseau e Locke, por exemplo, são citados como pertencendo à mesma tradição.
Poderia o Professor Hayek nos dizer qual filósofo pertence a que tradição? Para
começar, poderíamos utilizar um tipo de tabela. Nesta tabela, quem estaria de um
lado, quem estaria do outro? Haveria outros lados?
Comecemos, então. Eu lerei os nomes de vários filósofos e o Professor Hayek
nos dirá em que lado eles se situam.
Comentários de Friedrich Hayek
Permita-me, primeiro, explicar meu padrão de classificação e, a seguir, você
começa a perguntar.
Há poucos instantes, o Sr. Maksoud me confidenciou que ele iria levantar esta
questão. E eu fiquei um pouco embaraçado porque, para fazê-lo corretamente, seria
necessário um ano de conferências S9bre filosofia política, ao invés de se proceder a
uma simples classificação.
Penso que o que interessa ao Sr. Maksoud é até que ponto, cada um dos grandes
nomes pertence a uma ou outra entre duas classes, uma das quais eu denomino de
Construtivista, ou seja, aquela integrada por pessoas que acreditam que temos o poder intelectual de organizar tudo inteligentemente. Do outro lado se encontram
aquelas pessoas, os liberais, que estão conscientes de que fazemos parte de um processo que serve a um mecanismo decisório que não podemos controlar.
Eis aí dois tipos de pessoas: os Construtivistas e os Liberais. A maioria dos filósofos não se insere claramente em qualquer das duas classes e, assim, vou criar um grupo intermediário, integrado por pessoas que, no livro que estou escrevendo, incluí no
capítulo que intitulei The Muddle of the Middle, chamando-as de muddleheads (cabeças desorganizadas). Agora, isto não significa falta de respeito, pois, certamente, grande
número de importantes pensadores tem falado muitas bobagens acerca de questões
políticas. Assim, se, por vezes, eu classificar algumas dessas figuras famosas entre os
muddleheads, não vejam aí nenhuma intenção de desrespeito por seu pensamento filosófico, mas, simplesmente, trata-se de eles não terem compreendido quais realmente
são os problemas da sociedade.
Debates
Henry Maksoud- Sã'o os indecisos. Como os colocaríamos?
Friedrich Hayek Em uma coluna ficariam os Construtivistas; na outra, os Libertários. E haveria uma outra, no meio, a dos muddleheads.
Henry Maksoud- Está certo. São três colunas: Construtivistas, Libertários e
Muddleheads. Trata-se de expressão muito utilizada pelo Professor Hayek, mas de
difícil tradução em português. Acho melhor escrever o título da coluna assim, em
inglês.
Bem, eu vou ler os nomes de alguns filósofos e pensadores, para que sobre eles
o Professor Hayek nos dê sua impressã'o.
Em primeiro lugar, Aristóteles.
Friedrich Hayek -Será que eu poderia começar por Platão, já que ele foi anterior a Aristóteles?
Henry Maksoud- Pois nã'o. Platão.
Friedrich Hayek Platão, obviamente, é o arquiconstrotivista, o inventor do totalitarismo. Estava convencido de que era tão esperto, que poderia organizar tudo.
quanto a Aristóteles, se insere entre os muddleheads, já que, embora, é claro, fosse
um homem muito inteligente, achava que o mundo era estático. Todas as suas lições
sobre economia, que tanta influência exerceram, partiam da seguinte premissa: de
quanto os homens precisavam para se manterem na quantidade em que se encontram?
Ele não pensava que o mundo estava em processo de evolução e nunca perguntava a
si mesmo: como é que foi possível chegar-se ao ponto de tantas pessoas conseguirem
viver na Terra? E, deste modo, ele desenvolveu a teoria da moral económica, que simplesmente explicava o que as pessoas necessitavam para continuar vivendo. E tudo que
estivesse além disso simplesmente não era considerado.
Henry Maksoud - Muito bem. Agora, Péricles.
Friedrich Hayek Bem, Péricles não foi propriamente um filósofo. Foi um daqueles grandes estadistas. E eu o comparo a Abraham Lincoln, cuja intuição nos levou
à idéia básica do Libertarismo. A exemplo de Lincoln, não foi um filósofo, é claro, mas
Friedrich Hayek
Hayek na UnB
ambos utilizaram uma linguagem maravilhosamente clara e entenderam a idéia básica
de uma sociedade livre.
Henry Maksoud Thomas Hobbes.
Friedrich Hayek Thomas Hobbes, por acaso, começou como secretário de outro grande homem> Francis Bacon. Ambos, realmente juntamente com René Descartes - são os inventores do que eu chamo de scientistic ( ? ) tradition, segundo a qual
até mesmo os mais complexos fenômenos no mundo podem ser explicados por métodos mecânicos. Ele desconhecia, completamente, o fato de que os mais complexos fenômenos da vida e da sociedade não poderiam ser tratados com base nos simples princípios com os quais se lida com a mecânica. Portanto, receio que ambos, Francis Bacon
e Hobbes, tenham que ser inseridos no segundo grupo, no grupo da esquerda.
Henry Maksoud John Milton.
Friedrich Hayek Bem, ele é quase semelhante àqueles dois estadistas, Abraham
Lincoln e Péricles. Ele não foi, basicamente, um filósofo político, mas acreditava profundamente na liberdade. Foi um mestre no uso das palavras e provavelmente muito
contribuiu para a expansão do conceito de liberdade, sem, no entanto, ter apresentado
quaisquer idéias originais a este respeito.
Henry Maksoud Santo Tomás de Aquino.
Friedrich Hayek Ele vem logo depois de Aristóteles, no meio, porque, efetivamente, foi o homem que transmitiu ao mundo' moderno os ensinamentos de Aristóteles. Assumiu todas as idéias de Aristóteles, novamente ensinando que, o que era justo
era bastante justo para manter as pessoas no seu então nível de vida, mas tudo aquilo
que objetivasse a obter maior riqueza, ou ser capaz de sustentar maior quantidade de
pessoas era pecaminoso para ele. Porque as pessoas desejavam progredir, ir além do
estágio em que se encontravam.
Henry Maksoud Edmund Burke.
Friedrich Hayek Edmund Burke foi um bom exemplo do libertário. De certa
forma, porém, ele não era igualmente um teórico. Foi um grande orador e, provavelmente, fez muito mais do que qualquer outra pessoa para expandir as idéias liberais.
Ele não tinha idéias firmes, pois era levado pela emoção, mas, mesmo assim, creio que
pode ser inserido entre os que cultivavam a tradição da verdadeira liberdade.
Henry Maksoud Jeremy Bentham.
Friedrich Hayek Bom, aí é necessário dar uma explicação. Até certo ponto,
os construtivistas era originários do pensamento francês, enquanto os libertários provinham amplamente da linha do pensamento inglês. O principal inspirador da esquerda,
nos tempos modernos, foi Descartes, que influenciou Bentham, e também o Utilitarismo. Em última análise, o Utilitarismo é uma idéia construtivista, eis que baseada no
ponto de vista de que somos suficientemente inteligentes para escolher nossa moraL.
(ininteligtvel) ... o que, obviamente, é um absurdo. Jamais conseguimos selecionar
nossos valores morais a partir deste princípio.
Entretanto, obviamente, ele é muito importante para vocês, aqui, já que o bom
homem passou grande parte dos últimos trinta anos de sua vida escrevendo constituições para a América do Sul. Assim, neste ponto, teve grande influência no pensamento
latino-americano.
Henry Maksoud - Marquês de Condorcet.
Friedrich Hayek - Trata-se de um puro construtivista francês. Na verdade, foi
um dos inventores das leis da evolução, que nos dizem de que maneira devemos agir,
novamente com base no fato de que o homem é suficientemente inteligente para saber
aonde deve ir. Mas, é claro que toda a doutrina evolucionista parte do pressuposto de
que descobriremos o que podemos fazer quando nos tornarmos mais sábios. Mas os
construtivistas já são tão sábios!
Henry Maksoud - Lord Acton.
Friedrich Hayek - Lord Acton foi um dos comentaristas do liberalismo inglês
no século XIX. Ele se insere na coluna da direita.
Henry Maksoud --Benjamin Constant.
Friedrich Hayek -Foi um dos ingleses na França. Eu falei em uma certa classificação entre pensadores franceses e pensadores ingleses. Bentham era um pensador francês na Inglaterra, enquanto Constant e Montesquieu e, melhor ainda, Tocqueville, foram pensadores ingleses na França.
Henry Maksoud - Charles Darwin.
Fríedrich Hayek - Darwín jamais escreveu a respeito de questões políticas. Na
realidade, porém, eu diria que ele tomou emprestado aos cientistas sociais o conceito
de evolução, que aplicou aos organismos, e que os pensadores escoceses antes já haviam
aplicado à sociedade.
Henry Maksoud- Darwin, então, fica do lado dos libertários.
Agora, o americano John Dewey.
Friedrich Hayek - Fica na coluna da esquerda.
Henry Maksoud- Adam Ferguson.
Friedrich Hayek- Oh, ele é um dos fundadores da tradição Whig, mas, obviamente, não se poderia colocá-lo nesse quadro sem David Hume e Adam Smith, já que
ele é o terceiro desse grupo, constituído realmente pelos fundadores da nítida tradição
libertária.
Henry Maksoud- Pois não. Vamos colocar, então, junto a Ferguson, David Hume e Adam Smith.
Agora, Gladstone.
Friedrich Hayek -- Gladstone foi o grande político liberal que compreendeu alguma coisa da teoria do liberalismo. Não penso que ele tenha sido exatamente um liberal, mas talvez tenha sido o estadista mais comprometido com uma política puramente
libertária.
Henry Maksoud - Guicciardini.
Friedrich Hayek- Bem, aí nós temos que, mais uma vez, retroagir na História.
Se, no século XVI, ele pudesse ter sido um liberal, ou um libertário, ele o teria sido.
Possuía uma visão muito profunda acerca do funcionamento de uma sociedade e tornou-se isto é que, talvez, seja importante -o mestre do único italiano cuja linha de
pensamento era semelhante à dos escoceses: Giambattista Vico. Vico foi seu discípulo
e talvez tenha sido o único, fora da Escócia, a desenvolver um conceito evolucionista
extremamente claro das instituições sociais, o qual poderia ter-se transformado no fundamento da política liberal.
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Friedrich Hayek
Hayekna UnB
Henry Maksoud - Alexander Hamilton.
Fríedrich Hayek - Receio que ele tenha que ser colocado na coluna do meio. Ele
era realmente um muddlehead. Combinava idéias libertárias com protecionismo ...
Henry Maksoud Wilhelm Von Humboldt.
Friedrich Hayek Foi um dos três grandes libertários alemães ou, talvez, um
dos dois. Ele e o poeta Friedrich Von Schiller são, talvez, no que tange ao pensamento
do século XVIII, embora, é claro, ele tenha vivido bem no fim do século XIX, os únicos alemâ'es que realmente apreenderam as idéias básicas. O terceiro foi Emmanuel
Kant, o filósofo, mas que, de alguma forma, nã'o se mostrou muito firme. Havia formulado a idéia sobre o império da lei mais claramente do que qualquer outro, mas, ao
mesmo tempo, mostrava tendências um pouco autoritárias.
Schiller e Kant... Vejam que estou ansioso por nã'o inserir os libertários propriamente entre os inglêses. Assim, temos três franceses e três alemã'es.
Henry Maksoud - Hegel.
Friedrich Hayek- Na extrema esquerda do quadro. Certamente, ele era um totalitário. Hegel é um exemplo muito claro disso. Permitam-me reformular o que digo.
Era um homem extremamente inteligente. Provavelmente percebeu muitas conexOes
de forma muito mais nítida do que a maioria dos outros pensadores. Entretanto, era
incapaz de pensar em uma ordem que na-o fosse delíberadamente criada pela vontade
do homem. E isto fez com que na-o pudesse ser capaz de entender uma sociedade livre.
Henry Maksoud- William James.
Friedrich Hayek- Conheço pouco sobre seu pensamento político. Nada posso
dizer sobre ele.
Henry Maksoud Joseph Schumpeter.
Friedrich Hayek - Bem, é claro que agora estamos chegando aos que conheci
pessoalmente ... Penso que Schumpeter amava profundamente aquilo que os franceses
chamam de épater les bourgeois, ou seja, chocar as pessoas com a explícação de coisas
contraditórias. Naturalmente, sua principal tese é a seguinte: "É claro que o mercado
livre é muito melhor mas está para ser destruído. O socialismo é horrível, mas é inexorável". Penso que, em parte, ele brincava com seus auditórios.
Henry Maksoud Onde o colocaríamos? Entre os muddleheads e os líbertários?
Friedrich Hayek Sim.
Henry Maksoud- Então, no meio da coluna ...
Friedrich Hayek -Eu nã'o gosto de classificar Schumpeter como um muddlehead, porque ...
Henry Maksoud Então, nós o colocaremos entre os dois.
Agora, Disraeli.
Friedrich Hayek Não creio que ele tenha tido uma filosofia política. Foi um
político e um homem que sabia como usar experiências para atingir a seus objetivos.
Não acredito que ele, realmente ... Mas, provavelmente, duvidava de que realmente
pudesse existir algo como princípios políticos. Não penso que possamos inserí-lo entre
os filósofos.
Henry Maksoud Então, nao vamos colocá-lo no quadro.
que tal Dostoyewski?
Friedrich Hayek- Bem, ele era um psicólogo, não um teórico em política. Pelo
menos, eu não creio que o tenha sido. No famoso capítulo do Grande Inquisidor,
mostra profundas visOes em termos de questões políticas. Mas nã'o sei se acreditava
nelas. É muito difícil dizê-lo. Mas, pode-se aprender muito com ele.
Henry Maksoud Então, o senhor nao o colocaria no quadro?
Friedrich Hayek Não, eu n[o o colocaria aí. Nao penso que figuras literárias
possam ser inseridas nesse conjunto.
Henry Maksoud- Certo. S!IÔ figuras mais ligadas à Literatura.
E Léon Duguit, positivista?
Friedrich Hayek Penso que ele é um dos positivistas franceses da área do Direito. Foi um teórico constitucionalísta. Escrevi sobre ele, certa vez, mas me esqueci
dos detalhes.
Henry Maksoud - Hans Kelsen.
Friedrich Hayek- Bem, é claro que ele representa um caso extremo dos positivistas ligados à área do Direito e que se opôs a qualquer forma de explicação evolucionista, segundo a qual o poder de legislar era ilimitado, já que toda lei era o resultado
da invenção humana, sendo que, no caso, tratava-se de um construtivista absoluto, do
puro tipo kantiano.
Henry Maksoud - Lord Keynes.
Friedrich Hayek - Duvido que ele tenha tido uma filosofia. Se é que eu posso
dizê-lo, tinha o talento de um artista. Era capaz de representar perante um auditório,
convencido de que poderia conduzir a opinião pública na direção que achasse necessária no momento. Mesmo assim, penso que, em última análise, poderíamos considerar
sua famosa afirmação
da qual Keynes se orgulhava tanto - de que ele era um amoral, o que significava, obviamente, conforme ele e seus contemporâneos proclamavam,
julgar, com base em seus próprios méritos, o que era certo ou errado neste mundo. Naturalmente, ele representava o tipo extremado do homem que pensa que nossa inteligência é suficiente para decidir o que é bom e o que é ruim. Ele se insere na coluna da
esquerda.
Henry Maksoud E Galbraith, poderia ser colocado na coluna da esquerda?
Friedrich Hayek Nã'o, ele não pertence àquela classe de maneira nenhuma.
Henry Maksoud E Harold Lasky?
Friedrich Hayek- Bem, agora você está começando a me embaraçar. Trata-se de
velhos companheiros ... Era um homem que poderia mudar suas convicções, eu poderia
dizer, da noite para o dia, ou no espaço de meia hora, sempre que necessário, e sempre
acreditando no que dizia. Ele não era desonesto, mas era o tipo de pessoa que poderia
mudar de opinião de um momento para o outro. A propósito, permitam-me contarlhes um episódio.
Foi meu colega na London School of Economics durante vinte anos. Então,
aconteceu de estarmos, certo dia, juntos, ouvindo as notícias ... Antes de ligarmos o
rádio, ele nos havia contado sobre as maravilhas da Rússia, sobre como tudo estava
maravilhosamente bem organizado na Rússia, sobre como o comunismo era inevitável
no futuro do mundo. Naquele momento, foi transmitida uma notícia sobre o pacto
Ribbentrop-Stalin. Não sei se vocês se lembram, mas tratava-se daquele acordo entre
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Friedrich Hayek
Hayek na UnB
Hitler e os russos, que reahnente possibilitou a eclosão da Segunda Grande Guerra
Mundial. E Harold Lasky, após ouvir a notícia, e como se jamais tivesse dito uma única palavra a respeito dos russos, passou a invectivar Stalin, em termos os mais extremados, convencido, então, de que eu havia esquecido totahnente o que ele me havia dito
uma hora antes.
Henry Maksoud- Então, onde ele seria enquadrado?
Friedrich Hayek- Bem, Lasky, é hors concours.
Henry Maksoud- Walter Lippmann.
Friedrich Hayek - Bem, eu quase poderia dizer que ele foi o único comentarista
ou ensaísta da primeira metade deste século. Seu ponto alto foi a excelente interpretação que fez, em 1930, sobre a filosofia libertária ao longo do tempo. Pertence à coluna
da direita.
Henry Maksoud - Santo Agostinho.
Friedrich Hayek - Acho que ele não se enquadra também em qualquer das colunas. Veja, a uma pessoa que acredita profundamente na relevação divina não se pode
atribuir uma filosofia política. Foi um cristão original, cujas idéias se baseavam essenciahnente na absorção da filosofia aristotélica. Mas o que pregava era essenciahnente
um tipo de vida monástica. Desprezava aquilo que chamamos de vida política. Não se
pode, neste sentido, atribuir-lhe um pensamento político, mas eu teria cuidado. Nunca o compreendi bem. Santo Tomás de Aquino levei muito a sério, quando o estudei,
mas, quanto a Santo Agostinho, está além da minha compreensão. Coloquemos a coisa
deste modo.
Henry Maksoud- Então, o senhor o deixaria de lado.
E Maquiavel?
Friedrich Hayek- Sem dúvida, trata-se de um grande pensador, mas extremamente mal compreendido e caluniado. Não creio que tenha tido princípios políticos.
Ele se convenceu de que a ordem só poderia ser mantida por um governo autoritário.
Ele estava muito mais preocupado com a eficiência do que com a defesa de princípios.
Henry Maksoud - Onde o senhor o enquadraria?
Friedrich Hayek- Não sei.
Henry Maksoud -Agora estou falando rapidamente os nomes e, para não nos
alongarmos muito, o senhor não precisa explicar muito.
Malthus.
Friedrich Hayek -Penso que ele pode ser colocado na coluna do meio.
Henry Maksoud - Bernard de Mandeville.
Friedrich Hayek -Bem, creio que ele se situa nos primórdios do desenvolvimento da tradição libertária. Penso que, reahnente, sua influência sobre David Hume o torna o criador de uma tradição que veio a produzir o pensamento libertário. Assim, eu o
colocaria na coluna da direita.
Henry Maksoud - Naturalmente, eu não precisaria mencionar -Karl Marx?!
Friedrich Hayek -Extrema esquerda.
Henry Maksoud- John Stuart Mill.
Friedrich Hayek- Considero John Stuart Mill o fundador do Fabianismo. Mas é
claro que ele tem a reputação de ser um grande expoente do liberalismo. No entanto,
entre muitas outras coisas, particularmente algo que mencionei antes, sua mudança de
ênfase da liberdade econômica para a liberdade intelectual forneceu aos liberais uma
desculpa para seu approach em relação à liberdade econômica. Penso que ele teria ficado horrorizado com os efeitos de seus ensinamentos. Ele é, porém, o pai do socialismo
fabiano. É um muddle of the middle.
Henry Maksoud- Ludwig Von Mises?
Friedrich Hayek -Na coluna da direita.
Henry Maksoud- José Ortega y Gasset?
Friedrich Hayek- Penso que ele também se insere na coluna da direita. Meu conhecimento sobre ele é limitado, mas o que li dele me permite classificá-lo assim.
Henry Maksoud -David Ricardo.
Friedrich Hayek- Aí, de novo, trata-se de um homem que se tornou inocentemente responsável pela posterior deturpação de suas idéias. Basicamente, ele era um
libertário, mas ensinava a teoria liberal dos valores, da qual ele, pessoahnente, mais
tarde, passou a duvidar muito. Mas seus discípulos eram fanáticos por ela. E, assim,
os efeitos de seus ensinamentos foram muito diferentes daquilo em que reahnente
acreditava. Neste sentido, ele se insere no grupo libertário.
Henry Maksoud- Robespierre.
Friedrich Hayek -Não penso que tenha tido qualquer tipo de filosofia. Era
um terrorista.
Henry Maksoud- Jean-Jacques Rousseau.
Friedrich Hayek- Definitivamente, ele pertence à coluna da esquerda. O fato
não é, de maneira geral, bem compreendido, mas Rousseau é um descendente de Descartes, um racionalista, que desprezava toda a tradição e queria liberar os instintos
primitivos do Homem, já que todas as leis tradicionais eram suspeitas e, deste modo,
era preciso livrar-se delas.
Henry Maksoud - Saint-Simon?
Friedrich Hayek- Este se insere claramente na esquerda. É o fundador científico do socialismo. Mesmo que Karl Marx o tenha ridicularizado tanto, a idéia do socialismo científico provém de Saint-Simon.
Henry Maksoud- Voltaire.
Friedrich Hayek- Aí é um caso muito, muito difícil, porque ele era um sincero
adepto da tradição racionalista cartesiana. Mas ele desprezava de tal modo qualquer
idéia que qualquer outra pessoa pudesse ter, que, deste modo, nós poderíamos inserílo na coluna da esquerda, já que suas teorias seguiam muito a tradição da esquerda.
Henry Maksoud - Max Weber.
Friedrich Hayek- Era um sociólogo, e como tal, penso que deve ser colocado na
coluna da esquerda.
Henry Maksoud- Alfred North Whitehead.
Friedrich Hayek- Não sei. Sou um grande admirador dele, mas, na verdade, não
sei quais foram as suas idéias políticas.
Henry Maksoud- Vamos deixá-lo de lado.
Agora, alguns contemporâneos: Sydney e Beatrice Webb.
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Friedrich Hayek
Friedrich Hayek -Bem, ambos integravam o grupo fabiano. Aí você tem os
Webbs, Bernard Shaw, H.G. Wells etc. Foram os fundadores do fabianismo. Foram pessoas nas quais os inesperados efeitos dos ensinamentos de John Stuart Mill se tornaram
evidentes. Milllhes havia ensinado que se poderia fazer com o produto social o que se
quisesse. E eles acreditaram piamente nisso e decidiram difundir tais idéias.
Henry Maksoud- Karl Mannheim.
Friedrich Hayek -Você sabe que ele era meu amigo, mas se transformou em
meu inimigo quando, ao se mudar para a Inglaterra, após a ascensão de Hitler, amargamente se queixava de que as suas idéias não poderiam ser expressas em inglês. E eu me
impacientei e lhe disse, certa vez: "Tanto pior para suas idéias". E por causa disso se
tornou meu inimigo eterno. Acredito que se tratou de um grande equívoco. Possuía
um tipo de disciplina sociológica muito fanática, e eu diria o mesmo acerca de todas as
pessoas que proclamam ser os mestres daquilo que se convencionou chamar de Sociologia do Conhecimento, pela qual se pode realmente explicar por que certas pessoas
pensam como pensam, e cujos argumentos não têm nenhum embasamento, mas
simplesmente dizem: "Você somente acredita nisso por este ou aquele motivo, e você
está errado porque ... etc." Ou, ainda: "Pertenço àquela classe excepcional da intelligentsia, liberada, não afetada pelas circunstâncias, e, portanto, só minhas idéias são
válidas".
Henry Maksoud - Onde o colocaríamos?·
Friedrich Hayek- Na coluna da esquerda.
Henry Maksoud -Joan Robinson.
Friedrich Hayek- Não penso que tenha realmente, uma filosofia política. E a
mais esperta e mais teimosa mulher economista que jamais conheci. Penso que é marxista. Coloque-a na coluna da esquerda.
Henry Maksoud -Karl Popper.
Friedrich Hayek- Certamente, ele se insere na coluna da direita. Há poucas
pessoas com quem concordo tanto quanto com ele.
Henry Maksoud - Sylvester Petro.
Friedrich Hayek- Trata-se de um dos melhores economistas ligados' à área trabalhista. Certamente, do tipo libertário.
Tenho que admitir que a seleção do Sr. Maksoud é muito preconceituosa. Suas
simpatias, evidentemente, se inclinam todas para a direita.
Henry Maksoud- Por que o senhor não menciona mais alguns?
Friedrich Hayek- Poder-se-ia aumentar esta lista três vezes mais ...
Henry Maksoud -Por que o senhor não menciona outros?
Friedrich Hayek- Aí eu teria que fazer uma palestra sobre. a história do socialismo. Há centenas de nomes, incluindo-se os socialistas e a maioria dos economistas
vivos.
Henry Maksoud - E que os nomes foram tirados do índice do livro do Professor
Hayek. Mas eu acho que este exercício pode ter sido interessante.
Hayek por ele mesmo
É claro que, de vez em quando, fazem-se reflexões a respeito de tudo que nos
ocorreu e, à medida que se vai envelhecendo, nos tornamos muito mais conscientes
das diferenças entre a visão de quem tem 60 anos ou mais e a dos ingênuos começos,
o que gradualmente nos leva àquilo que se imagina ser uma visão abrangente das coisas.
Confesso que adoro ler biografias ou autobiografias de outros intelectuais, já
que muito aprendo com elas. Mas esse tipo de literatura também me causa certas dúvidas. Um dog problemas é que não gosto quando as pessoas, ao invés de ler os trabalhos
de um autor, preferem ler a respeito do autor. Mesmo assim, não me é fácil resistir ao
seu fascínio, mas penso que jamais me tornei vítima daquela crença errônea de'que se
pode explicar a visão de um autor, a partir de seus dados biográficos. Talvez, algumas
vezes, possamos explicar os erros que as pessoas hajam cometido, considerando as circunstâncias de tempo. Contudo, não creio que jamais se possa saber a razão pela qual
alguém defendeu determinados pontos de vista, ou seja, o que levou tal pessoa a isto.
O fascinante acerca de alguém sobre quem vale a pena ler algo é saber como essa
pessoa reagiu aos desafios que encontrou pela frente. E isso nunca é previsível. Admito
estar em moda, nos tempos modernos, no campo das autobiografias, acreditar-se ser
capaz de explicar, por que as pessoas tinham certo tipo de visão, utilizando-se isso até
para refutá-las. Acredito, francamente, que tal coisa constitui um tipo de afetação e
um absurdo.
Mas, comecemos pelo verdadeiro início. Tive a sorte de nascer em uma boa família de classe média, de tradições intelectuais. E, no que se refere às minhas ligações com
a ciência, meus interesses, no início, influenciado pelos meus ancestrais, se situavam inteiramente no- campo das ciências biológicas. Meu avô e meu pai foram zoólogo e botânico, respectivamente, e as discussões, em minha juventude, eram dominadas pelo interesse em relação à teoria da evolução. Foi justamente a época em que foi descoberto o
complemento essencial à teoria evolucionária de Darwin - a genética de Mendel. E
quase todas as discussões científicas - lembro-me bem - giravam em torno ~isso, na
medida em que a teoria darwiniana estava finalmente se tornando inteligível através
das teorias de Mendel. Mas - e aí também foi acidental - um dos redescobridores de
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Friedrich Hayek
Hayek na UnB
Mendel, que, como todos sabem, antes não era levado muito a sério, era um amigo
muito íntimo de minha família. E quando eu era jovem e começava a me envolver com
a comunidade científica da área da Zoologia e da Botânica em Viena, um dos assuntos
mais populares era contar a história deste homem extraordinário, Mendel, que havia
descoberto a moderna teoria genética. Eu estava, portanto, praticamente convencido
de que me transformaria em alguma espécie de biólogo.
Mas, então, começaram os distúrbios da época da Primeira Guerra Mundial, com
a evidente ameaça de dissolução do império Austro-Húngaro, problemas que cada vez
mais desviavam minha atenção das ciências biológicas para as questões ligadas aos governos e ã própria vida. Curiosamente, eu quase que posso precisar exatamente o momento em que decidi mudar. Quando atingi o penúltimo ano do Gymnasium, em
1916, estávamos no curso introdutório à Filosofia, e nosso professor nos ensinava que
o grande pensador Aristóteles havia dividido a Ética em três tópicos: Moral, Política e
Econômia. De repente, me veio a inspiração: "É isto que desejo estudar". E fui para
casa e disse ao meu pai, o botânico: "Vou estudar Ética". Ele ficou chocado com a
idéia de que o filho de uma faml1ia de cientistas desejasse estudar Ética, e alguns dias
mais tarde me presenteou com algumas cópias de um trabalho de um filósofo positivista do século XIX, para me demover daquela idéia absurda e me levar de volta ao verdadeiro estudo da ciência.
Bem, mas aquele autor, F euerbaéh - talvez este nome seja conhecido de alguns
de vocês - não me impressionou muito, e continuei insistindo naquela minha idéia.
Inclusive, durante os dois anos em que servi ao Exército, no fim da Primeira Guerra
Mundial,comecei a ler sobre Economia. Os primeiros dois livros que caíram em minhas
mãos eram tão ruins que, hoje, fico surpreso ao pensar como eles não foram capazes de
me fazer desistir daquilo. Mas, para estudar Economia tinha-se que, naquele tempo, estudar Direito. Era o único modo de se estudar Economia em Viena. Quando a guerra
acabou, as circunstâncias daquele momento só fizeram aumentar meu fascínio pelos
problemas econômicos e políticos; e eu me tornei estudante de Direito na Universidade
'de Viena. Minha visão política era, então, moderadamente reformista. Eu havia sido
grandemente influenciado por um homem, na época, muito influente, mas que agora
está inteiramente esquecido, um grande industrial alemão, que administrava a utilização das matérias-primas austríacas durante a Primeira Guerra, a exemplo do que fez
Galbraith nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, e que havia descoberto um tipo de planejamento análogo ao preconizado pelo socialismo fabiano inglês.
E aquilo me pareceu realmente digno de estudos. Mas, de fato, durante certo
tempo, embora formalmente eu estivesse disposto a estudar Economia, meus interesses, de certo modo, ainda se encontravam divididos. Talvez como resultado de meu envolvimento inicial na área da Biologia, o interesse pela Economia competia com o interesse pela Psicologia. E, enquanto eu terminava meu curso de Direíto com bastante
sucesso, dividia meu tempo entre a Psicologia e a Economia. Bem, mas quando terminei e tive que escolher uma ocupação, penso que foi muito mais o fato de saber que a
Economia oferecia um campo de trabalho, e que o mesmo não ocorria com a Psicologia, que me fez procurar definitivamente na Economia um meio de vida.
Devo mencionar, contudo, já que isto se tornaria muito importante mais tarde,
que a primeira coisa que escrevi em meus tempos de estudante foi sobre Psicologia e
não sobre Economia. Tratava-se de uma tentativa de explicar como as dif-erenças entre
as percepçOes sensoriais, o que se costuma chamar de a qualidade da experiência, podem ser fisiologicamente explicadas. Mas eu o coloquei de lado por uma razão muito
curiosa, da qual eu estava bem ciente. Estava convencido - e ainda estou de haver
encontrado resposta para um importante problema. Mas eu não poderia prová-la, o
que é algo diferente do instinto que se tem quanto a se ter chegado a uma importante
conclusão, e, assim, inteligentemente, deixei de lado aquele manuscrito. Tinha que começar a trabalhar, o que se verificou em uma função não muito importante, de caráter
temporário, na área governamental, em um dos organismos criados como resultado do
primeiro tratado de paz e que cuidava dos débitos anteriores à guerra existentes entre
os países beligerantes. Trabalhei naquela repartição, como funcionário civil, por cerca
de cinco anos, dos quais, entretanto, despendi um ano e meio - conforme explicarei
como estudante de pós-graduação nos Estados Unidos.
Mas o mais importante foi o fato de que nessa ocasião entrei em contacto com
um homem que se tornou muito influente no desenvolvimento do meu pensamento
posterior. Na Universidade de Viena havia uma enorme tradição, no que se refere ao
estudo da Economia. Talvez este fato tenha contribuído muito para minha decisão em
favor do estudo da Economia, em lugar de me dedicar ã Psicologia. Isto, porque todos
os grandes psicólogos haviam morrido e não havia ninguém de importância para me
ensinar Psicologia, enquanto havia um ou dois eminentes nomes na área da Economia.
O fundador da escola, Carl Menger, ainda estava vivo. Cheguei a vê-lo uma vez e, inclusive, quando ele morreu, no mesmo ano em que me diplomei, fui chamado a dar sugestoes, tanto a respeito de sua biblioteca, quanto acerca dos manuscritos que ele havia
deixado. Era um trabalho extremamente interessante, pois era evidente que esse homem, que morreu com uma idade que eu então pensava ser muito avançada apenas
um ano mais jovem do que sou agora havia concluído um livro muito importante
cerca de dez anos antes de perder totalmente suas forças, mas continuou a corrigí-lo e
a modificá-lo, até que se tornou completamente ininteligível e sem condições de ser
usado. O que se poderia fazer era, já que se havia estudado algumas vezes velhos manuscritos, um esboço do que poderia ter sido o texto original daquele livro muito importante. Mas, quanto a mim, pelo menos, eu não estava pretendendo gastar o resto
de minha vida tentando decifrá-lo. E isto nunca foi feito.
Um de seus principais discípulos, porém, Friedrich Von Wieser, tornou-se meu
professor. E também já se encontrava lecionando na Universidade, como conferencista,
na qualidade de Senior Lecturer, Ludwig Von Mises, que pertencia a uma geração que
se situava entre a minha e a de Wieser. Mas Mises era de tal maneira anti-socialista, que,
quando pela primeira vez eu analisei suas conferências, ele me repeliu como radical extremado. Mas, quando Wieser me recomendou a ele como chefe provisório do escritório governamental, eu me tornei intimamente ligado a ele e passei, então, a dever-lhe
muito. Penso que, de certo modo, foi uma grande vantagem o fato de eu ter chegado
a ele como economista já bem treinado. Há um certo perigo em nos tornarmos um discípulo demasiado entusiasmado de alguém, e eu conheço muitas pessoas que mais tarde se tornaram discípulos de Mises e se transformaram em fanáticos seguidores de suas
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doutrinas. Quanto a mim, no entanto, muito bem treinado à época em que o encontrei, embora ele me convencesse sobre vários pontos importantes, sempre absorvi-suas
idéias de modo crítico. E durante aqueles dez anos em que estive em cantata estreito
com ele, suas obras, particularmente seu importante trabalho sobre o Socialismo, públicado em 1922, exerceram uma grande influência em mim. Aprendi a acreditar que,
de maneira geral, ele estava certo em suas conclusões, embora eu jamais tenha ficado
inteiramente satisfeito com seus argumentos. E eu sei por quê. Mises era, ele próprio,
um produto ainda daquela tradição racionalista, construtivista, da qual emergiu o
socialismo. Ele havia contestado muitas das conclusões socialistas, mas jamais conseguiu destruir, de forma completa, a filosofia da qual emergiu o socialismo. E meu trabalho, em sua maior parte, destinou-se exatamente a expor as idéias de Mises, libertando-as daquele background filosófico, o mesmo racionalismo francês e do utilitarismo inglês, e reformulando-as em termos de um background de caráter evolucionista.
Mas isto me tomou muito tempo. Voltarei a falar sobre o assunto.
Tendo decidido, de forma definitiva, que eu utilizaria os anos que passei a serviço do governo para me qualificar, no sentido de obter um trabalho na área universitária -o que na época se tornava possível escrevendo-se uma tese importante, a fim
de se obter o título de conferencista, e, talvez, mais tarde, ter a chance de conseguir
uma cátedra - cheguei à conclusão de que pàra me tornar um economista teria de
conhecer melhor o mundo. E isto significava, já então, conhecer os Estados Unidos.
Tinha-se razoável idéia do mundo europeu, vivendo-se no centro da Europa, mas as
novidades, os grandes desenvolvimentos, naquele início do período entreguerras,
estavam certamente ocorrendo nos Estados Unidos. Assim, eu estava ansioso por
permanecer um ano ou mais como estudante naquele país. Foi antes das bolsas de
estudo da Fundação Rockefeller, ou melhor, quando a concessão delas não havia
sido estendida aos países considerados ex-inimigos. Assim, embora as bolsas já
existissem, eu, na condição de austríaco, ainda não podia pleitear uma delas. Decidi,
portanto, ír para os Estados Unidos às minhas próprias custas e por meus próprios
riscos.
Eu havia obtido como que uma promessa de um professor visitante americano,
que, como quase todos os professores americanos, tendo visitado a Europa, decidira
escrever um livro sobre a Europa e, assim, utilizar-me como seu assistente, por eu
estar familiarizado com as condições européias. Deste modo, prometeu-me ele que,
se eu fosse para os Estados Unidos, ele me empregaria por algum tempo e, assim, eu
poderia viver com certa tranqüilidade. Bem, tendo conseguido juntar algumas economias no pequeno intervalo de seis meses, decorrido entre o fim de nossa inflação e o
dia em que parti, cheguei a New York com vinte e cinco dólares no bolso, sendo informado de que o tal professor ruro mencionarei seu nome havia viajado de férias
e deixado instruçÕeS para não ser perturbado. Mas eu havia também levado comigo
algumas cartas de apresentação de Joseph Schumpeter, que em 1914 havia estado na
América do Norte como professor visitante e que, por conseguinte, era o único economista austríaco em contacto com economistas americanos. E eu comecei a entregar essas cartas, com cada uma das quais eu conseguia um jantar ... e nada mais.
Minhas ambições e esperanças começaram, portanto, gradualmente, a se reduzir. Era possível ainda viver-se, então, em New York, por duas semanas, como um
imigrante visitante, com vinte e cinco dólares e mais cinco dólares, que alguém havia
colocado sorrateiramente em um pacote de cigarros que me havia dado. Mas, ao fim
de quinze dias, eu havia chegado ao fim de meus recursos e estava a ponto de, em desespero, conseguir um trabalho como lavador. de pratos em um restaurante da Sexta
Avenida, em New York. Aí, para grande alívio meu- mais tarde, um arrependimento
sem fim - antes que eu começasse a lavar pratos em New York, recebi um telefonema
de alguém que me dizia que o Professor "X" havia regressado das férias e que desejava
ver-me. No momento, foi um grande alívio o fato de eu não ter que lavar pratos, mas
como teria sido interessante, para o resto de minha vida, eu contar que havia começado minha vida em New York como lavador de pratos! ... Não posso fazê-lo!... Nunca o
fiz! ...
Bem trabalhei então durante seis meses, como assistente de Jenkins e outros
onze ou d~ze meses' como 'estudante bolsista na Universidade de New York. Mas eu
me sentia enormemente desapontado em relação ao estágio em que então se encontrava a economia americana. Em termos de teoria económica, descobri ou acreditava haver descoberto que, em Viena, nós sabíamos mais que os americanos. Mas os
americanos haviam inovado grandemente em determinada direção. Foi durante o
período da Primeira Guerra, e imediatamente após iniciou-se o moderno desenvolvimento das estatísticas económicas e, em particular, algo que era completamente desconhecido antes, ou seja, a análise das teorias dos ciclos de tempo- time's cycles the
ories
que tornava possível detalhar as flutuações ocorridas na área econômica. Assim, gastei a maior parte do tempo, na América, aprendendo estatísticas económicas,
que mais tarde me ajudaram grandemente. Isto, porque da América é que surgiu a
moda da análise estatística de prognósticos sobre o caráter cíclico dos negócios.
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E é claro que os austríacos desejavam criar seu próprio instituto local. E, considerando-se que eu era o único que havia permanecido na América e apreendido as novas técnicas, fui afinal designado diretor desse novo Instituto, onde deveria realizar estudos ligados a tais prognósticos. Eu jamais me havia entusiasmado muito com isso
na verdade, as análises que eu havia feito me tornaram extremamente descrente em
relação ao assunto, embora esse tipo de approach estatístico realmente facilitasse a
elaboração de previsões.
Bem, de modo bastante curioso, obtive certa reputação naquilo que eu agora
chamaria de um tipo de previsão bastante fraudulenta. Algumas vezes, sou considerado
como tendo sido o único a prever o crash da economia americana em 1929. E, indiretamente, isto é fato. Como eu editava um informativo mensal sobre a situação dos negócios, eu tinha que falar sobre o projeto em que a Áustria se engajara, de recuperar-se da
grave depressão por que estava passando. E, por acaso, eu mencionara que havia pouca
esperança do sucesso desse projeto, já que as taxas de juros se mantinham tão altas,
com todo o capital sendo atraído para a Bolsa de Nova Iorque, e isto fazia com que o
capital se tornasse bastante escasso no resto do mundo, já que estava indo diretamente
para os bolsos dos especuladores de Nova Iorque. Eu disse, então: "A recuperação terá
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que esperar até que a Bolsa de Nova Iorque entre em colapso ... " E acrescentei:" ... o
que não demorará muito a acontecer".
Estas declarações, feitas em fevereiro de 1929, me fizeram ganhar a reputação
de haver prognosticado o crash da Bolsa de Nova Iorque.
De fato, apesar de que minha ocupação principal se situava no terreno das estatísticas, eu estava muito mais interessado na explicação teórica de tudo isto. Tanto que
a maior parte do meu trabalho no Instituto era dedicada à elaboração de um estudo
mais aprofundado das causas das flutuações verificadas no setor industrial. Por volta
de 1929, eu havia completado um esboço de uma teoria sobre o caráter cíclico dos negócios, novamente baseada naquilo que Mises havia sugerido em seu importante livro
sobre a moeda, publicado em 1912. De fato, eu pensara, primeiramente, que eu estava
meramente repetindo o que Mises havia dito, mas o que me fez transformá-lo em livro
foi o fato de Harbeler (?)me dizer: "Você não pode pretender que isto seja amplamente entendido. Você se refere à teoria de Mises, mas tal teoria não é encontrada em lugar
nenhum. Assim, seria melhor se você a reproduzisse". Achei que reproduzi-la não seria
tarefa muito fácil, e, assim, em 1929, produzi meu primeiro livro sobre teoria monetarista e caráter cíclico dos negócios. E isto me conduziu na direção de dois principais
conjuntos de problemas: a teoria da moeda e a teoria do capital.
Em minha análise sobre o caráter cíclico dos negócios estas duas coisas estão
intimamente interligadas. E comecei a planejar' um estudo mais aprofundado da matéria. Deste modo, acidentalmente, cheguei a urna teoria que viria a tornar-se extremamente importante para a minha carreira futura. Os alemães ou, mais especificamente,
o grande sociólogo Max Weber, haviam iniciado, antes da guerra, um importante trabalho enciclopédico de cerca de vinte volumes, A Teoria da Moeda e a Teoria da Economia e da Sociedade, para a qual Weber contribuiu com sua própria vida. Estava
praticamente completo, exceto quanto ao volume sobre moeda, cujos autores que dele
sucessivamente se encarregaram haviam morrido um após o outro. Assim, aquele volume ainda estava por ser escrito. E o editor, desesperado, ansioso por encontrar alguém
que pudesse prepará-lo rapidamente, voltou-se para o jovem conferencista-assistente de
Viena, para saber se ele poderia fazê-lo. Aceitei o encargo, mas, por motivos que presumo serem bons, me convenci de que o que geralmente faltava aos economistas era
um bom levantamento, tanto sobre a história da teoria monetarista, quanto da política
monetária. Comecei, portanto, a escrever grande parte do livro sobre a história da moeda. E me encontrava justamente começando a trabalhar sobre o desenvolvimento da
política e da teoria monetarista na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, quando, inesperadamente, recebi um 'COnvite de Londres para fazer uma série de conferências sobre a
teoria do caráter cíclico dos negócios.
Posso dizer que este foi o grande golpe de sorte em minha vida. Primeiramente, o
simples fato de que, em Londres, um jovem professor ligado à área empresarial, pudesse ler alemão suficientemente bem para considerar importantes os estudos alemães; em
segundo lugar, o fato de eu haver passado quase dois anos na América e ser capaz de
fazer conferências em inglês; em terceiro lugar, o fato de eu ter acabado em conceber
o esboço de uma teoria sobre as flutuações do mercado de negócios, apesar de não conhecer todas as dificuldade a ela inerentes, tais fatores, na ocasião em que fui convida-
do a falar sobre tudo isso em quatro conferências, me encorajaram a completar rapidamente aquele estudo. Se eu tivesse sentado para escrever algo ponderável sobre o assunto, muito provavelmente eu teria produzido um volume que me teria feito trabalhar
durante uns dez anos para completá-lo e, no final, ninguém jamais iria lê-lo. Assim, o
fato de ter sido solicitado a falar sobre todo o assunto, em quatro conferências, me
ajudou extraordinariamente. Aí vem a última parte desse golpe de sorte: o fato de
eu haver preparado aqueles capítulos introdutórios de meu livro sobre teoria monetarista, e haver dedicado três meses ao estudo da teoria monetarista e da política monetária da Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, me fez chegar lá, sabendo mais do que
qualquer outra pessoa que por acaso estivesse presente naquele auditório em Londres.
Como resultado desse conjunto de circunstâncias, foi-me ofertada uma cátedra na
London School of Economics. Recordo-me de que isso, na época, se constituiu em
um acontecimento excepcional. Ou seja, o fato de um jovem professor, de 32 anos,
ser chamado da Áustria para a Inglaterra, a fim de assumir uma cátedra na Universidade de Londres, causou certo sensacionalismo e surpresa.
Eu possuía certas idéias novas que chamavam a atenção de meus colegas em
Londres, e passei os vinte anos seguintes lecionando na London School of Economics, na maior parte do tempo em Londres, embora, durante o período da guerra, em
1939/1945, a London School tenha sido transferida para Cambridge, atuando, portanto, em conjunto com a Universidade de Cambridge. Por conseguinte, por cerca de cinco anos, ao longo desses vinte anos, ministrei aulas numa espécie de joint-enterprise
entre Cambridge e Londres. Na primeira metade desse tempo trabalhei arduamente na
área da teoria pura, principalmente no que se refere à teoria do capital. A propósito,
escrevi um grande livro teórico a respeito do assunto, que se tornou bastante conhecido, embora poucos o tenham lido, já que realmente se trata de trabalho muito difícil de ser lido - aquele sobre a pura teoria do capital. Eu pretendia que, em sua primeira parte, ele contivesse uma teoria bastante aperfeiçoada sobre as flutuações verificadas no setor industrial, mas a qual, de fato, jamais escrevi. Eu estava tão exausto
por haver escrito a introdução, à qual eu havia dedicado oito anos, que me utilizei do
pretexto da eclosão da guerra - ou seja, o de que, a menos que eu o publicasse rapidamente ele nunca apareceria - e concluí o livro de uma vez. Em parte, provavelmente, porque de certo modo meus interesses se haviam modificado. Recentemente, eu
estivera sobremaneira preocupado com a explicação das flutuações que ocorriam no
setor industrial, as quais comecei a considerar cada vez mais claramente como o ponto
central de toda a teoria econômica: a função dos preços orientando a produção, ou,
como às vezes costumo chamar, a signal function of prices. E aconteceu de eu me deparar com o mesmo problema relacionado com dois fatos. Um, quando descobri que
aquele trabalho extremamente importante de Mises sobre o socialismo permanecera amplamente desconhecido nos países de língua inglesa. Assim, publiquei seu ensaio
original, bem como todas as demais discussões, em um único volume, intitulado Collectivist Economic P!anning, no qual a introdução e a conclusão reiteravam o estágio em
que então se encontrava o debate, o que novamente me conduziu à mesma questão:
como, numa sociedade de mercado, os preços determinam às pessoas o que fazer e
como, sem um mercado de preços determinados, o que eu agora denomino extended
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ordem society, isto é, um tipo de ordem que está além da capacidade de compreensão
de qualquer indivíduo, tornou-se possível apenas, pelo fato de o mercado se utilizar de
um tipo de informação extremamente disperso?
E eu obtive confirmaÇ[o disso por uma experiência que, de fato, havia ocorrido
um pouco antes de eu deixar Viena. Descobri que um dos mais urgentes problemas da
política econômica era na:o ter qualquer fundamento de análise teórica. Viena já se
encontrava, então, sofrendo os efeitos de uma legislação restritiva em termos de aluguéis, combinada com uma inflação de grande porte. Na verdade, os aluguéis urbanos
nã:o mais correspondiam ao nível de mercado e a construção civil havia parado completamente. Toda a atividade construtora era exercida pelo Governo, algo que ninguém
havia tido o trabalho de analisar. Voltei-me, então, para o assunto, e novamente descobri que, sem a função orientadora dos preços, que determinavam às pessoas quanto ao
que produzir, como produzir e onde suprir, o mercado falhava completamente. Descobri, por conseguinte, em meados da década de 30, que essa idéia da função orientadora
dos preços, ou seja, a produção direta da economia de mercado, tinha que ser lançada
muito mais claramente. E, assim, em 1936, publiquei um pequeno ensaio, sob o título
Economics and Knowledge, que resume o que eu pessoalmente considero como uma
verdadeira descoberta que fiz no campo da Economia.
Tal descoberta significava que tínhamos de encarar o mercado como um mecanismo de orientação, o único a permitir ao indivíduo adaptar-se a circunstâncias, que
na:o tem condições de conhecer, e aproveitar outras circunstâncias que ele também não
conhece, e que transformam todo esse conjunto em uma única ordem de coisas. Penso
que todo o trabalho teórico que, posteriormente, levei a efeito na área da Economia, se
constituiu, realmente, no aperfeiçoamento desta simples idéia. Esta é a razã:o pela qual
algumas vezes eu digo que minha única invenção, minha única descoberta -mais adiante
eu mencionarei ter igualmente realizado duas invenções o que é algo diferente -mas
a única descoberta que fiz no campo da Economia foi o que eu denomino, de formaresumida, The Cuide Function of Prices.
Mas tal fato não atraiu imediatamente a atenção geral. A idéia foi compreendida
no meu círculo mais imediato de amizades. Muitas pessoas me disseram, depois, haverem se inspirado nesse estudo, mas somente quando, quase dez anos mais tarde, em
1945, eu reafirmei meus pontos de vista, desta vez numa publicação americana, não
inglesa, é que a idéia foi de fato entendida, sendo que a maior parte das pessoas consideram este último ensaio, cujo título na:o me recordo agora, mas publicado em 1945,
minha contribuiçã:o mais importante.
Ao mesmo tempo, meu foco de interesse começou a extrapolar o aspecto técnico da Economia. Em parte, em virtude dos aperfeiçoamentos ocorridos na área da
Economia. A Economia se modificava em dois aspectos que se interligavam, numa
direção que eu não gostava e da qual eu não queria participar. Um deles decorreu
da Teoria Geral da Moeda -General Theory of Money -de Keynes, que surgiu no
mesmo ano, 1936, em que eu havia publicado aquele ensaio. Um pouco antes - na
verdade, imediatamente após minha chegada a Londres - eu tinha dedicado mais de
dois anos à análise daquela grande obra de Keynes. E, quando terminei a análise do
segundo volume de seu trabalho, Keynes, de quem eu me havia tornado amigo, me
disse: "Ora, não tem importância. Eu também nã:o acredito mais nisso". Bem, foi
um tanto desconcertante para um jovem o fato de um grande homem, cujos pontos
de vista ele pensara ter refutado, dizer-lhe que ele próprio não acreditava mais neles.
Isto, infelizmente, teve o efeito de, ao surgir seu segundo livro, ainda em 1936,fazer
com que eu não mais desejasse voltar a dedicar-lhe o mesmo estudo cuidadoso. Seria
desencorajante o próprio autor dizer-me novamente que havia mudado de idéia. Na
verdade, agora eu considero isto, de minha parte, um grave abandono do cumprimento
de um dever. Creio que o que eu deveria ter feito, na época, era realmente voltar a criticar Keynes.
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Mas outra raza:o me fez afastar-me da então tendência que se verificava na área
da Economia e que se ligava totalmente ao que Keynes vinha fazendo. Era a época da
transição do que se costumava chamar micro-economia para o que se considerava macro-economia, ou seja, passava-se a tratar os problemas econômicos não em termos de
ação individual, mas, sim, em termos da relação existente entre magnitudes estatisticamente mensuráveis, tendência que dominou a Economia durante grande parte da geração passada e da qual, por acaso, Keynes também participou. Agora, isto me conscientizou no sentido de que muitas de minhas diferenças em relação aos meus colegas
na área da Economia realmente se baseavam, em última análise, em diferenças de caráter filosófico e metodológico. Deste modo, fui levado a dedicar mais e mais tempo
tanto à análise da base filosófica implícita no método científico, na área das Ciências
Sociais, quanto ao estudo da história da difusão dos tipos de visão anti-individualista.
E, justamente quando começou a guerra, eu havia imaginado e começado a escrever um
livro que eu pretendia chamar de The Abuse and Decline of Reason. Tudo que consegui concluir, no entanto, naquela época, foi a introdução teórica, sob o título Scientism (?) and the Study of Society. Nele eu tentava mostrar como uma errônea imitação de certos métodos considerados essenciais ao estudo das ciências físicas conduzia
a equívocos quando aplicados a fenômenos altamente complexos. Jamais concluí
esse livro, que eu imaginava publicar em dois grandes volumes, e que intitularia The
Abuse and Decline of Reason, mas o trabalho que eu então iniciara desviou permanentemente o centro de meu interesse dos limites entre Economia e Filosofia.
A segunda parte do livro, aquela que teria o título The Decline of Reason, parecia-me de extrema importância na época, quando as pessoas ainda não compreendiam
o fascismo, considerando-o não uma versão do socialismo, mas uma reação contra o
socialismo. Assim, antes de eclodir a guerra, eu já começara a fazer um esforço no sentido de explicar aos meus amigos ingleses, em sua grande maioria influenciados por
tendências esquerdistas, que sua crença de que Hitler era um inimigo do socialismo estava errada. Eu tentava convencê-los de que o socialismo de Hitler era simplesmente
outro tipo de socialismo que igualmente preconizava restrições à democracia, a exemplo do que pretendia a doutrina socialista, caso os socialistas levassem a sério seu programa. Isto me fez escrever um livro intitulado The Road to Serfdom - O Caminho
para a Servidão - que constituiu a minha primeira incursão na área da literatura mais
popular e que, para minha total surpresa, obteve grande sucesso na Inglaterra e ainda
mais nos Estados Unidos, mas que me levou a incursionar também, amplamente, na
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área da Ciência Política, da Sociologia e da História das Idéias. E determinou, ainda,
a evolução futura de minha linha de pensamento no que tange ao campo das idéias.
O que me favoreceu nisto foi o fato de eu ter tido o ensejo de me transferir da
London School of Economics para uma instituição muito especial, a Universidade
de Chicago. A London School of Economics havia sido, sem dúvida, no intervalo entre
as duas guerras, o melhor centro de estudos econômicos do mundo. Mas o fato de viver sempre sob o mesmo teto com outros economistas e com mais ninguém, começou a me cansar um pouco, com o passar do tempo. Eu estava ansioso por retornar
a uma atmosfera universitária mais aberta. E, quando me ofereceram um cargo em
Chicago, em um departamento altamente específico, que se dedicava ao estudo das
linhas divisórias dos vários assuntos ligados às Ciências Sociais, aceitei avidamente,
particularmente, pelo fato de a oferta ter sido muito generosa, por um detalhe que me
parecia extremamente atraente, ou seja, por me haverem dito: "Se você quiser lecionar,
poderá fazê-lo; mas, se, em qualquer instante, você não quiser, não terá que fazê-lo".
Assim, eu me sentia completamente livre, tanto no que se refere ao que eu fazia,
quanto no que dizia respeito àquilo em que eu trabalhava.
Mas durante os doze anos em que lecionei em Chicago, trabalhei arduamente na
análise desse campo intermediário existente entre a área técnica da Economia e a política ou a filosofia moral. Senti, primeiramente, que se tornava necessário, não- conforme eu havia feito no livro The Road to Serfdom -tentar refutar de forma crítica o
socialismo, mas achei que a grande tradição libertária do século XIX não estava mais
sendo compreendida. Passei, então, a dedicar a maior parte de meu tempo, em Chicago,
à elaboração daquele que se tornou meu segundo mais popular trabalho, não especializado, intitulado Constitution of Liberty, uma tentativa de reafirmar, em nossa época,
o que no século XIX era descrito como liberalismo, o qual, agora, de tal maneira tem
sido deturpado em seu significado, que, pelo menos neste continente, parece que o liberalismo se tornou outro nome para o socialismo, não mais um tipo de convicção libertária. Mas, quanto ao livro, admito, ele vai além da área econômica. Isto, porque,
felizmente, nele pude aproveitar minha experiência no campo do Direito -e tal experiência, pelo menos, em Viena, envolvia grande dose de conhecimento sobre a história
das idéias políticas em geral, bem como sobre filosofia e sobre metodologia. E, na verdade, o desfecho de meu trabalho em Chicago foi o fato de, em 1960, eu ter produzido
esse volume substancial, intitulado The Constitution of Liberty, que foi o meu segundo livro de grande sucesso popular. Por sucesso popular eu entendo ser um livro que,
em número de edições e em termos de appeal, extrapolou o caráter técnico da Economia. O que eu havia feito antes foi escrever para outros economistas, não para o público em geral e, neste sentido, os livros Road to Serfdom e The Constitution of Liberty
foram os primeiros a atingir o público. Mas, curiosamente, embora eu tivesse imaginado que ... Oh, mas eu me havia esquecido de algo que devo mencionar rapidamente.
Imediatamente após a publicação de Road to Serfdom - quando meus opositores me atacavam, dizendo que eu nã'o era mais um cientista e que me havia transformado num político -tentei demonstrar que eu ainda era, principalmente, um cientista,
na pura acepção do termo, voltando ao meu trabalho inicial ligado à área da Psicologia,
e publicando, em 1952, completamente revisado e reescrito, aquele estudo psicológico
que eu havia completado em 1920. Devo muito a isto, porque eles descobriram que em
Psicologia se encontra a mesma dificuldade técnica que é característica das ciências sociais, bem como de grande parte das ciências biológicas e, certamente, da Psicologia, ou
seja, tem-se que tratar com fenômenos altamente complexos que, necessariamente, alteram o approach teórico. Eu me tornei consciente do fato de que todas as ciências físicas, pelo menos em termos teóricos, poderiam dar lugar a teorias nas quais surgiam
apenas algumas poucas variáveis, na hipótese de que, para cada uma dessas variáveis, se
poderia inserir uma determinada magnitude quantitativa para se chegar a conclusões
precisas. Uma vez que se passe daquilo que agora eu chamo de teoria dos fenômenos
simples, para os fenômenos mais complexos de organismos, de mentes e da sociedade,
mesmo a potencialidade da ciência se reduz. Nã'o se pode mais planejar pequenos modelos onde se possam inserir todos os dados concretos. Só se pode criar modelos que
forneçam uma descrição de um padrão abstrato, que jamais se possa transformar em
detalhe concreto.
Isto se tornou muito importante para mim, para meu tipo de approach em relação à Economia, bem como para minha intransigente recusa em mudar da micro-economia tradicional para a macro-economia, ou seja, para minha recusa à teoria de Keynes,
para minha recusa quanto a aceitar aquilo que se chama de Economia e grande parte de
suas técnicas matemáticas. Eu me tornava, assim, formalmente antimatemático. Eu estava perfeitamente ciente do fato de que determinados padrões complexos poderiam
ser melhor descritos por meio de fórmulas algébricas, mas eu estava cada vez mais convencido de que nos dever íamos ater às fórmulas algébricas. Jamais se poderiam inserir
aqueles dados quantitativos particulares, que nos propiciariam fazer aquele tipo de
prognóstico, que se torna possível na área da Física e das ciências físicas.
Este foi o tipo de coisa que serviu de orientação ao meu trabalho posterior, o
qual, casualmente, envolveu, de fató, a complementação do livro Constitution of
Liberty por um estudo igualmente abrangente e que eu intitulei Law, Legislation and
Liberty, mas ao qual eu havia de fato destinado o título Constitution of Liberty, já
que naquele segundo livro apresento propostas concretas sobre como, por meios
constitucionais, se pode evitar a degeneração de uma sociedade livre em uma sociedade
totalitária.
Foi durante a elaboração desse trabalho que fiz o que considero as duas invenções que se destacaram de minha descoberta original. Inventei dois mecanismos que,
acredito, mais cedo ou mais tarde terão ou que ser adotados ou, pelo menos, apresentados de maneira aperfeiçoada. Eu me convenci de que a democracia, que se pretendia
ou se imaginava devesse ser um freio ao governo, ou uma espécie de precaução no sentido de evitar-se que o governo se torne indevidamente poderoso, produziu, na verdade, em face de certos equívocos ocorridos na sua implementação, efeitos contrários, e
fez com que os governos se tornassem extremamente poderosos.
Procurei, de forma resumida, detalhar isso.
Penso que, o erro se encontra no fato de que a correta concepção da necessidade
de separação de poderes entre as áreas legislativa e administrativa não foi aplicada em
seu nível mais alto, a assembléia representativa. Deste modo, nossos parlamentos, em
todo o mundo, se tornaram onipotentes, governando de forma ilimitada. Creio que,
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Friedrich Hayek
podemos evitar isto simplesmente replanejando, como um tipo clássico, aquilo que agora se denomina instituição democrática. E, já que a democracia, infelizmente, se tornou tão ligada àquele conceito, segundo o qual a opinião pública é que decide, eu às
vezes imagino se ainda podemos salvar a expressão democracia, com vista à adoção
do novo esquema que tenho em mente.
Tenho, por conseguinte, sugerido que se passe a utilizar a palavra demarquia, baseada no mesmo princípio do qual derivam as palavras anarquia e monarquia. Quase todas as outras formas de governo são derivadas da palavra grega archz'a, ao invés de
krat(a. E foi apenas por um simples acidente histórico que, no caso da demokratia, se
tenha chegado ao termo democracia. Assim, minha sugestão é no sentido de que se faça uma campanha em prol do governo livre, propondo-se uma nova solução, que eu
chamo de demarquia.
A outra invenção está mais ligada à área técnica da Economia. Receio ter chegado à profunda convicção de que, do modo como as coisas vão indo no mundo, nós
jamais teremos novamente um dinheiro de boa qualidade, na medida em que deixemos
a administração da moeda a cargo dos governos. Tenho proposto - e com isto tenho
chocado os economistas profissionais, mais do que com qualquer outra coisa -- que se
retire dos governos o monopólio do fornecimento de dinheiro, transferindo-o à empresa privada, a qual, através da livre competição, nos ofereceria o dinheiro, deixando a
critério do cidadão comum escolher entre usar 'o dinheiro de boa qualidade e recusar
aquele que é ruim.
A maioria das pessoas pensa que esta é uma idéia louca, mas eu não penso assim.
Desde o momento em que os governos colocaram suas mãos no dinheiro, tão logo ele
foi inventado, jamais nos foi permitido fazer experiência com ele. Assim, não sabemos
o que exatamente seria um bom tipo de dinheiro. Nunca nos foi permitido praticar,
na área do dinheiro, o processo competitivo, que na maioria dos outros campos de atividade nos tem possibilitado discernir entre o que é melhor e o que é pior.
Assim, creio que essa mirlha idéia da desnacionalização do dinheiro pode ser, de
certa forma, um processo complicado, mas o que realmente espero- devo dizê-lo é
deixar às novas gerações não apenas um novo insight, que considero muito importante,
mas duas novas recomendações: substituir o antigo modelo de democracia por um novo modelo de governo, a demarquia, e retirar do governo o poder, o monopólio da
produção de dinheiro.
Eu ia utilizando a palavra poder porque estou certo de que, tão logo seja possível
obter dinheiro de melhor qualidade da empresa privada, nirlguém desejará o dinheiro
do governo.
Comentários de Henry Maksoud
Em primeiro lugar, acho que merece todo o nosso aplauso essa oportunidade que
a Universidade de Brasi1ia vem dando a brilhantes homens do pensamento deles mesmos apresentarem, de forma embora sumária, aspectos de sua vida, de seu pensamento,
a evolução do seu modo de pensar. É extremamente útil tal iniciativa. Ademais, creio
que nós, que aqui estamos, acabamos de presenciar algo que, de fato, se poderia classificar de momento histórico. Penso que, especialmente, aqueles que são um pouco
mais jovens do que eu talvez entendam melhor o significado deste momento. No caso,
destaco os que têm maior irlteresse pelos problemas ligados à vida do homem em sociedade. Esses entenderão, daqui a alguns anos, quão importantes foram estes mirlutos em
que ouvinos tão eminente pensador, o Professor Friedrich Von Hayek. É como se nós
tivéssemos podido ouvir pessoalmente figuras como Adam Smith, Alexis de Tocqueville, Montesquieu, David Hume, Thomas Burke.
Eu diria mesmo, sem qualquer exagero acredito profundamente nisto termos ouvido um filósofo político que, pode dizer-se, constitui uma combinação desses
homems: de um Adam Smith, que tanto e tão bem escreveu lições sobre o mercado
livre, e de um Tocqueville, que, prirlcipalmente com sua obra Democracia na América,
foi um grande crítico da democracia, mas, ao mesmo tempo, um grande amante da
democracia.
O mesmo acontece com Hayek. Hayek é, igualmente, um grande crítico da democracia. Mas ele é um grande crítico da democracia porque possui grande amor à democracia, e está sentirldo como vem ela sendo deturpada.
Montesquieu é o homem do Espírito das Leis, e Hayek também fala bastante, em
seu trabalho, sobre a degeneração do espírito origirlal da lei. Hoje, o que se chama lei,
em geral, não é mais lei. É a degeneração da lei e, prirlcipalmente, a degeneração do
ideal político do Estado de Direito.
Quanto a Hume e Burke, também seriam parte de Hayek, o homem que nós ouvimos hoje, dado o amor de ambos à sociedade livre, principalmente à liberdade individual, tema fundamental de toda a produção filosófica ou político-filosófica do Prof.
Hayek.
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Friedrich Hayek
De forma que nós ouvimos hoje um homem que, daqui a alguns anos, vamos relembrar como se tivéssemos, como já disse, ouvido Smith, Tocqueville, Montesquieu,
Hume e Burke - apenas para citar alguns dos que representam, nos dias de hoje, propriamente a visão de Hayek sobre a natureza da sociedade política.
Perguntas e Respostas
Pergunta: Que pensa o senhor sobre a micro-economia? Poderia explicar sua
utilidade?
Resposta:- O material estatístico que a macro-economia utiliza pode, algum
dia, vir a ser bastante útil como dado histórico. Mas, como meio de explicar o que
ocorre é inútil.
Não se pode, estatisticamente, lidar com ordens de grandeza muito complexas.
Não apenas nã:o se dispõe da informação correta, mas a estatística lida com um tipo
específico de fenômenos. A ordem económica não é um macrofenômeno, mas, sim,
uma adaptação de esforços muito individuais, de pessoas que dispõem de diferentes informações, em circunstâncias igualmente bem diferentes.
Deste ponto de vista, portanto, a macro-economia é totalmente inútil. Ela tem
levado à crença, de que o fenômeno fundamental do monetarismo ... (Aparentemente,
em face da confusão feita entre micro-economia e macro-economia.) ... porque a informação de que se dispõe sobre a quantidade total de moeda e sobre o nível estatístico
dos preços parece tornar-se fundamental. Mas, não há melhor maneira de demonstrar
quão ilusórios eles são.
O que realmente orienta a atividade económica são as variáveis relações entre
preços distintos, as quais desaparecem tão logo se utilizam números, (index numbers)
e as alterações do preço médio. E essas alterações do preço médio são apenas uma parte muito superficial do problema de variação que queremos investigar.
Pergunta: Quais as críticas que o Professor Hayek faria ao sistema capitalista
em seu atual estágio de evolução? Quais seriam os meios de conciliar de modo justo a
liberdade económica e a justiça social?
Resposta:- Bem, a esta pergunta caberia uma resposta muito longa, já que ninguém sabe, realmente, o que significa justiça sociaL Não se pode defini-la, pois não
constitui um objetivo definitivo. E se justiça social significa deter o controle da distribuição da renda, com qualquer que seja a finalidade, destruir-se-la completamente
aquele mecanismo ordenador que nos permite produzir tanto quanto produzimos.
Permita-me repetir o que eu disse ontem. Todo o contexto intelectual do sacia-
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Friedrich Hayek
Hayek na UnB
lismo - e o socialismo tem sido muito mais um affaire dos intelectuais do que da classe trabalhadora - se deve amplamente a determinada afirmação factual que aparece,
em sua forma mais nítida, em John Stuart Mill, que descreve como o produto social
é tecnicamente produzido. E prossegui dizendo que, uma vez que exista o produto social, podemos fazer com ele o que desejamos.
Sim, poderíamos agir assim uma vez, mas ele não estaria disponível uma segunda
vez, porque um produto de tal dimensão está apenas amadurecendo, porque as pessoas
são orientadas por diferentes tipos de remuneração quanto a que fazer, e, no momento
em que se começasse a distribuir este produto de acordo com certo princípio de justiça, os preços cessariam de exercer sua função orientadora, resultando numa terrível
queda da produçlio.
Na verdade, penso que com uma justa distribuição haveria, de fato, muito pouco
a distribuir.
Pergunta:- O Professor Hayek considera-se economista prático ou filósofo? Sente-se realizado? O senhor é de direita ou de esquerda, conservador ou liberal? O senhor
resolveu mudar mudar o nome de democracia para demarquia. Se as idéias são as mesmas, por quê?
Resposta:- Não sou um economista prático, embora possam dizer que sou muito prático. Estou muito consciente do fato de. que muitas coisas que são desejáveis são
impossíveis, na medida em que as pessoas continuam acreditando naquilo em que agora acreditam. Em conseqüência, meu objetivo é tornar politicamente possível muito
do que hoje não o é. E faço isso tentando modificar opiniões e recusando comprometer-me.
Pergunta:- Gostaria de ouvir uma análise do Professor Hayek sobre as conseqüências da aplicação do liberalismo económico pela Sra. Thatcher.
E, mais:
cro das grandes empresas? De que maneira os direitos dos trabalhadores seriam levados
em consideração?
Resposta:- Bem, haveria mais competição em ambos os lados e isto representaria um controle de caráter essencial. Penso que, de maneira geral, há muito maior competição agora do lado das empresas. E onde isto não funciona é, habitualmente, porque
o governo criou certas restrições na área de competição. Do lado do trabalho, lembrese de que não estou falando acerca do Brasil- nada sei sobre o Brasil- mas, naqueles
países com os quais estou familiarizado, o grande obstáculo ao funcionamento de uma
economia de mercado é o monopólio existente na área trabalhista. Os privilégios que
os sindicatos trabalhistas vêm usufruindo têm resultado, em larga escala, na exploração de trabalhadores por outros trabalhadores. Aqueles que detêm a posse dos empregos têm o poder de fazer subir os salários em seu próprio benefício, mantendo fora os
demais. E eu penso que será do interesse dos líderes da classe trabalhista remover tais
monopólios na área do trabalho.
E isto é que eu considero o mais urgente, no momento, na Inglaterra. Obviamente, trata-se, no caso, de um país arruinado economicamente pela força dos sindicatos
trabalhistas.
Pergunta:- A 'demarquia' é uma teoria recente, criada pelo senhor, ou já existiu
uma teoria precedente? A defesa dessa teoria é feita em vários países - como, por
exemplo, por Maksoud, no Brasil - ou em apenas alguns? Existe algum governo que
já tenha colocado ou que esteja colocando em prática a sua teoria?
Resposta:- Eu inventei a expressão demarquia. A idéia, creio, se origina da
idéia de democracia, que se tem modificado enormemente. A democracia pretendia
ser um instrumento de limitação do poder governamental. Desenvolveu-se, no entanto,
como um instrumento de enorme ampliação dos poderes governamentais. Assim, o
que eu chamo de demarquia é aquilo que, em certa época, as pessoas desejaram alcançar com base no ideal democrático, mas que nlio conseguiram.
Em resumo, acredito que, por uma mudança no significado das palavras - e
desta vez, não se trata de democracia, nem de demarquia, mas daquilo a que o Sr.
Maksoud se referiu há pouco, ou seja, o significado da palavra lei- os legisladores deveriam produzir leis, o que significa que a palavra lei tinha um significado muito específico.
Os legisladores não poderiam fazer o que desejassem, mas, tudo o que lhes competia fazer era produzir as leis gerais. Hoje, não os chamamos de legisladores porque
produzem leis, mas denominamos lei a tudo que é decidido por um legislativo, o que
significa justamente o contrário. De fato, as assembléias democráticas de hoje transformaram-se numa espécie de governo ilimitado, apesar de a intençlio da democracia ter
sido a de garantir um governo limitado.
Pergunta:- O senhor concorda em que o capitalismo se modificará, com o tempo, chegando perto do socialismo, fazendo com que não seja tão selvagem como é hoje, e suas relações com o povo e os governos sejam mais humanas e mais eficientes, resolvendo os problemas da inflação e suas conseqüências?
Resposta: Eu preferiria que não se utilizasse esta horrível palavra -capitalismo
- que foi inventada por seus inimigos, não descreve nada em particular e é completa-
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Quais as conseqüências do plano económico de Reagan, aprovado recentemente
'pelo Congresso amaricano?
Resposta:- Pessoalmente, a Sra. Tatcher está agindo na direção correta. Infelizmente, os poderes do Primeiro Ministro britânico são muito mais limitados do que os
de um presidente americano. Ela tem necessidade de apoio de seu Gabinete, e metade
dele é integrada por conservadores extremados, que não acreditam na economia de
mercado e, particularmente, resistem à adoção de medidas muito drásticas. Ela não pode fazer isto. E o tempo está ficando curto. Assim, estou ficando um pouco apreensivo.
Quanto a Reagan, não sabemos ainda, exatamente, o que pretende fazer, mas o
fato é que ele detém poderes muito maiores que a Sra. Tatcher. E, de maneira geral,
penso que suas chances são boas, ou seja, que ele será capaz de fazer o que planeja
fazer, isto é, a exemplo do que deseja a Sra. Tatcher, tentar liberar a economia de mercado e fazê-la funcionar novamente, após ter sido obstaculizada por tantas regulamentações e restrições absurdas.
Pergunta:- Gostaria de saber como o senhor teorizaria acerca das relações entre
o capital e o trabalho, na demarquia. Qual a natureza dos mecanismos institucionais?
Ou, mesmo, existiriam esses mecanismos institucionais de controle dos índices de lu-
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Friedrich Hayek
mente enganadora. Gosto de falar sobre a economia de mercado, e, já que em inglês
a expressão parece rude, eu propus um novo termo, ou seja, cathalexy, originário de
urna palavra grega que significa permuta e que muito significativamente tem um outro
sentido, o de aceitar o estranho e transformar o inimigo em amigo.
Este, o grande efeito da economia de mercado. Se você utiliza a palavra capitalismo como indicativa de urna economia de mercado restrita, entã'o a solução, naturalmente, é remover a restrição e deixar funcionar o mercado por si mesmo.
Pergunta: O pressuposto básico da teoria neoclássica é a concorrência perfeita.
Acredíta o senhor que possa haver concorrência perfeita nos dias atuais, em que alguns
produtos estiro a requerer grandes investimentos e/ou tecnologia sofisticada, e por isso
só podem ser produzidos por um ou por poucos grupos econômicos?
Resposta. - :g claro que a concorrência perfeita não existe, ou raramente existe.
A vantagem do mercado, porém, nã'o depende de uma concorrência perfeita, mas da
possibilidade de haver competição. Se alguém detém um monopólio porque pode
exercê-lo melhor do que qualquer outro, nós ternos que lhe ser gratos. E não há razã'o
por que ele nã'o deva cobrar um preço bastante alto, para deixar de fora os que produzem gastando mais. O que é censurável é a existência daqueles monopólios criados por
restriçOes deliberadas. E, como se sabe, é inegável que as grandes firmas internacionais competem mais intensamente. Tente entr~r numa delas e veja como eles lidam
com seus sócios. Você constatará que se trata de uma competição, tão selvagem
quanto a existente em qualquer outro lugar.
Pergunta: - O senhor acredita que apenas a concorrência é motivo suficiente
para o controle da impressão de dinheiro ir para as mãos da empresa privada? Por favor, explique melhor o problema da concorrência.
Resposta: Bem, tenho que restringir-me à questão da concorrência na área da
produção de dinheiro, eis que, de outra forma, eu teria que lhe dar uma longa explanação. A concorrência, neste campo, significaria que somente aqueles que produzissem
melhor dinheiro poderiam permanecer no negócio. Agora, o permanecer no negócio
de produzir dinheiro seria um trabalho muito lucrativo, é claro. Mas a condição sob
a qual se poderia permanecer no negócio seria a de que se fornecesse um dinheiro melhor do que o de qualquer outra entidade. Assim, poder-se-ia manter tal negócio sob
urna disciplina jamais conseguida por qualquer governo.
Os governos nunca tiveram um verdadeiro interesse de oferecer bom dinheiro ao
povo. Um competitivo produtor de dinheiro, que tem que defender sua posição em
face de outros habilitados a fazer o mesmo, estaria sob compulsão e restrição muito
mais fortes para nos oferecer um bom dinheiro.
Pergunta:- As vitórias do socialismo na França e a derrota de Margareth Thatcher na Inglaterra são sintomas do fracasso do liberalismo? O que está acontecendo
de errado? O que ocorrerá com a economia francesa?
Resposta: Bem, com relação à economia francesa, o que posso dizer é que estou preocupado. Mas é muito difícil prever o que, essencialmente, na atual situação,
um governo de coalizão irá fazer. Isto dependerá de se Mitterand irá ganhar o apoio
dos comunistas, ou se sofrerá limitações por ter o apoio do partido do centro. Admito que, na Alemanha, o Partido Socialista, que dependia do apoio do partido do cen-
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tro, funcionou como um dos mais racionais governos que a Alemanha já teve por um
longo tempo. Embora eu creia que, se os socialistas tivessem obtido a maioria, o governo, provavelmente, teria sido muito ruim.
Espero que suas referências à derrota da Sra. Tatcher não esteja ligadas a alguma
notícia recente que não tenha chegado ao meu conhecimento. Até agora, porém, eu
ainda espero que ela seja bem sucedida, não obstante eu esteja ficando um pouco preocupado.
Pergunta: Contemporâneo de Lord Keynes e acreditando na importância de
suas teorias e suas conseqüências para o mundo daquela época, não pensa o senhor que
estejamos a necessitar de uma nova teoria econômica para resolver os problemas atuais
da economia mundial?
Resposta:- Não sou propriamente um contemporâneo de Lord Keynes, já que
neste ano ele estaria completando, se vivo fosse, 95 anos. Não sou tão velho assim.
Certamente temos que acreditar na necessidade do surgimento de urna outra
teoria econômica, diferente daquela que vem dirigindo o mundo atualmente. Mas não
penso ser necessário haver uma nova teoria. O que costumava ser chamada de teoria liberal, ou, até, de uma forma extremada, de teoria do laissez-faire,jamais foi tentada
e deveria sê-lo.
Ilustrações
Idéias em Debate
Friedrich Hayek
Benedicto Ferri de Barros (Estado de São Paulo, p. 53- São Paulo,
17 de maio de 1981.)
1 -
2 _
O prefessor Hayek respondendo a uma pergunta do auditório, durante a sua conferência
Pensamento Filosófico e Econômico.
Um aspecto da mesa diretora nos trabalhos do seminário , vendo-se à esquerda do Professor
Hayek o Professor José Carlos de Azevedo e o Professor Vamireh Chacon; e à direita Henry
Maksoud e o Professor Cardirn.
Afastado há dez anos do jornalismo , tendo resistido inexpugnavelmente a numerosas tentações , internas e externas, para voltar a atuar intelectualmente , acabei sucunbindo ao irresistível convite para entrevistar-me com Hayek, que me foi feito pelo
Jornal da Tarde.
Nos idos de 1965, na esperança de que a revolução houvesse aberto nova senda
de idéias e de ação para o País, tomamos a iniciativa de promover um grupo de estudos, integrado na sua maioria por professores da Universidade de São Paulo , para atualizarmos nossos conhecimentos sobre o pensamento liberal. Lemos e discutimos durante mais de um ano Lippmann, Betrand de Jouvenel, Ropke, Popper, von Mises ,
Hayek. Em colunas de O Estado e o Jornal da Tarde assinei mais de 400 artigos divulgando idéias que advertiam contra os riscos do p!anismo, da tecnocracia, da estatização da sociedade e do homem brasileiro, que ficariam subordinados à ideologia e aos
interesses de burocratas desavisados da origem , da cor e das conseqüências de suas
idéias. Meus companheiros fizeram outro tanto - ou mais. Inutilmente: a estatização
avassalou a realidade brasileira.
Os homens - salvo raríssimas exceções - não são conduzidos por suas idéias,
mas por seus interesses, e, mesmo assim, poucos são os que enxergam as conseqüências
práticas de suas posições além dos famosos 90 a 120 dias. Keynes calculava um prazo
de 30 anos para que novas idéias viessem a ser operacionalizadas socialmente . De 1945
a 1965, segundo confessou a um repórter de L 'Express, Hayek viveu na mais completa
solidão:
" ... Quando era muito jovem (conta ele em outro lugar) só os velhos acreditavam
em um regime de economia livre, quando alcancei a maturidade, ninguém, salvo eu e
um punhado de amigos, acreditávamos nos princípios da liberdade. Entretanto, agora
tenho mais esperanças, pois uma nova geração começa a descobrir a razão de ser de um
sistema que existiu no passado sem ser plenamente compreendido, mas começa, agora,
a ser entendido e divulgado". Vinte anos de ostracismo intelecutal...
A verdade é que de 1945 para cá -por inúmeras razões, que poderíamos capitu-
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Friedrich Hayek
Hayek na UnB
lar sob o título de Churchill deu ao VI volume de sua História da Segtmda Guerra Mtmdial:. "Triunfo e Tragédia" o mtmdo embarcou no modelo da ideologia russa. A inteligência ocidental se engajou no sonho cor-de-rosa do Estado Providencial, distribuidor
das benesses de uma prosperidade jamais conhecida em toda a história do Ocidente. A
Filosofia e as Ciências Sociais praticamente desapareceram do universo intelectual,
abafadas pelas utopias vociferadas pela propaganda. Propaganda política.
A despeito de que os mais e autênticos "milagres económicos" do período tivessem sido textualmente operados à base dos princípios da economia empresarial pelos
dois grandes vencidos de 1945 - Alemanha e Japão -, os países vencedores se deixaram arrastar pela onda da estatização, cujas idéias económicas e sociais contrariavam
toda a luta, toda a experiência, todas as tradições seculares do Ocidente. A prosperidade do período talvez pudesse dar-se ao luxo de. desprezar o custo do pacote gerido pela
''nova classe", de vitoriosos gerentes da economia: Planismo, Fiscalismo, Distributivismo, Previdencialismo, Tecnocracia e Estatização.
Hayek aponta em Stuart Mill a origem histórica da idéia de que, existindo o produto (que incumbe à economia gerar), não importa que destino se lhe dê, como se a
distribuição não, fosse parte estrutural da economia mas se referisse a bens gratuitos a
que o Estado pudesse dar a destinação social mais conveniente a seus interesses políticos. Que oportunidade mais sedutora do que esta: a de entregar aos gerentes burocráticos do Estado o papel de administrar socialmente os resultados económicos, aplicandoos em planos de desenvolvimento nacional e de distributivismo democrático eleitoral?
Sob a gerência da nova classe os "cratas" da tecnologia económica -, a Economia
Polítíca foi substituída pela Política Económica, ou, dito mais resumidamente, a Economia (tanto a ciência, como a atividade social desse nome) foi transformada em Política.
E assim, nesse extraordinário período de crescimento da produção, realizado
pelo que ainda restava no mtmdo de atividade empresarial tanto a Europa como os
países culturalmente tributários do que se chama cultura Ocidental, Estados Unidos,
inclusive - permitiram que suas estruturas económicas, políticas e sociais resvalassem
para modelos ideológicos e institucionais obsoletos, opostos à experiência e tradição
responsáveis pelo êxito histórico do Ocidente.
A revolução económica, operada pela classe que Marx glorificou sob o nome de
"burgueses" e que ele desejava ver substituída por heróis de uma nova classe, acabou,
de fato, sob a administração dos burocratas, uma versão Ocidental dos "comissários"
homens do poder, inspirados por variados modelos ideológicos da estatização providencialista.
A despeito de ser a Rússia a mais atrasada nação da Europa (segundo Lenine),já
não achava este mesmo Lenine que a economia atingira tal grau de desenvolvimento social que a função empresarial podia ser substituída pela mera administração dos
negócios? Se isto era verdade para a Rússia de 1917 (embora ainda hoje ela dependa da
agricultura e da tecnologia do Ocidente para se alimentar e se desenvolver), por que
não poderia toda a economia ocidental ser brilhantemente dirigida pelos ilustres
economocratas do Ocidente, em benefício social, sob a benévola providência do
Estado?
Hayek já advertira em "0 Caminho da Servidão" para onde todas essas falácias
acabariam conduzindo.
Mas foi preciso pagar o preço da experiência. Foi preciso esperar que as nações
ocidentais atingissem os limites do impasse e o limiar da falência, beneficamente postos
em foco pela crise energética, para que se voltasse a pensar criticamente sobre o modelo ideológico implantado nestes quase quarenta anos de prosperidade econômica, orgia
intelectual e propaganda política.
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II
O tempo e a verdade são os dois dilemas de que se trama a tragédia do intelectual. Desengajados dos erros e falácias de sua época, moscardos dos homens e da História, ou dizem sua verdade e são desprezados e banidos por seus contemporâneos, ou
põem sua inteligência a serviço da moda, pela paga do sucesso renegando-se como intelectuais e sendo freqüentemente desmascarados por seus erros. Não são muitos os que
chegam a ver suas idéias verdadeiras reconhecidas como a verdade dos tempos. E era
por isso, principalmente, que me rejubilava a perspectiva do encontro com Hayek. Ele
representa, em toda a paisagem intelectual do mundo moderno, o exemplo raro do intelectual fiel a suas idéias, que tem a felicidade de vê-las crescer historicamente. Praticamente o reverso do final melancólico de Sartre.
Em 1974 ele recebera o Prêmio Nobel da Economia, uma das mais altas distinções que se pode prestar ao trabalho intelectual. Juntamente com Solzhenitsyn e Ronald Reagan, é ele um dos três membros honorários do famoso Instituto Hoover.
Margareth Thatcher, Franz Strauss. e Ronald Reagan foram convertidos à sua filosofia
social pela leitura de seus livros, Hayek se surpreendia, recentemente, de que a própria
França .>e estivesse voltando para diretrizes da filosofia econômico-social à que se dedicou desde a leitura de "On Human Action", de Ludwig von Mises. Porém, mais do que
o Prêmio Nobel, a honorabilidade que lhe foi conferida pelo Instituto Hoover, o fato
de que o próprio eleitorado democrático comece a exprimir como reivindicações e
protestos as idéias que ele enunciou em sistemas conceituais, o que o entusiasma é o
movimento das novas gerações em direção à do seu pensamento.
Recapitulava todas essas questões ao me preparar para a feliz oportunidade de
entrevistar-me com Hayek. Mas não eram elas que estavam no primeiro plano de minhas cogitações. Essas, eram questões passadas. De certa forma, por mais frustrante
e pungente que possa ser viver-se num mundo que marcha em direção contrária às
nossas convicções intelectuais, nada mais gratificante de que se poder encontrar um
velho Mestre que após um ostracismo intelectual de mais de 20 anos, vê, aos 82 anos
de idade, suas idéias despontarem na alvorada intelectual de novos tempos.
Se e quando essas idéias se tornarão socialmente vitoriosas, isto é, passarão a ser
adotadas como diretrizes e normas de ação, isto não é mais problema seu. Na sua idade, com sua bagagem de experiência e de conhecimentos, Hayek está, mais do que ninguém, farto de conhecer a lentidl!'o e os caprichos da história. Margareth Thatcher adotou sua filpsofia, mas para aplicá-la à situação inglesa preferiu a receita de seu amigo
Friedmann. Hayek teme que possa não dar certo. Que nenhum governo seja capaz de
56
Friedrich Hayek
Hayekna UnB
resistir à pressão política resultante de um monetarismo gradualista. Qualquer grande
estadista pode resi.stir a uma violenta taxa de desemprego que não ultrapasse mais de 6
meses, nenhum resiste a uma estagflaçrro com desemprego crónico -ele supõe. Entretanto, se Reagan conseguir o apoio político necessário à sua corajosa reversão da estatizaçrro, o modelo liberal poderá adquirir popularidade no mundo inteiro. Mas ... - a história é um embaralhado de "mas ... ". As diretrizes que permitiram o milagre alemão e
japonês após a guerra foram adotados com igual êxito pela Coréia do Sul, Formosa e
Singapura. O Chile fez recentemente uma experiência bem sucedida em linhas que se
inserem na filosofia económica de Hayek. Mas... no mesmo dia em que, à página 12
do Jornal da Tarde, Léo Gilson Ribeiro, apresentava sob o título- "Hayek: o fracasso
do socialismo", seu texto da entrevista em que, como jornalista titular, me acompanhou no encontro com Hayek, pela primeira página desse mesmo jornal se sabia que o
socialismo vencera na França com Mítterrand. E a França, "a França de Mitterrand",
fala, pelo programa de Mitterrand, de mais "nacionalizações" (entrega da direçrro de
empresas à direção de burocratas políticos), de mais planismo centralizado, de redução
de horas de trabalho e aumento das distribuições económicas. O socialismo vence na
França!
Que poderia dizer o velho mestre, que observaria sinais de alguns lampejas de
sua filosofia na França?
Nem antes, nem depois da entrevista, me'preocupava o "socialismo" prometido
por Mitterrand. Está ainda para ser provado que ele se converterá em política, pois,
Mitterrand é um homo politicus. Entretanto, se as promessas eleitorais vierem a ser
cumpridas e a França for lançada naquilo em que a Inglaterra e os Estados Unidos lutam desesperadamente por livrar-se, é quase certo que o fracasso dessa experiência intelectualmente anacrónica servirá para acelerar o reconhecimento universal de erros
que na atualidade estão mais do que provados, mesmo para os socialistas franceses.
Alain Touraine, sociólogo esquerdista francês, com mais de vinte volumes publicados, acaba de publicar um livro (L' Aprés Socialisme) que começa assim: "0 socialismo está morto. A palavra continua em todos os lugares, nos programas eleitorais, no
nome de partidos e até de Estados, mas está vazia de sentido. Salvo quando designa
uma vasta fami1ia de Estados autoritários( ...) O socialismo foi a teoria do movimento
operário; transformou-se em grande parte do mundo em nome de poder do Estado( ...)
"Mas, que é uma sociedade socialista? Admitindo que não se trate de uma sociedade do tipo escandinavo ou alemão, nem de um regime do tipo soviético ou chinês,
quem se preocupa em definí-la? Ninguém, talvez porque a única definição que se possa
dar é de que nela o Estado será o principal detentor do poder económico;"
Como depoimento sobre o "fim do socialismo" na França, parece-me mais significativo o livro de Touraine do que os resultados eleitorais da rejeiçrro de Giscard. Será
um acidente histórico se a França tiver de pagar o preço de uma experiência, cujos resultados já conhece intelectuahnente.
publicara em 1918 "The Roads to Freedom") dedicou-o provocadoramente "Aos Socialistas de Todos os Partidos" e, ainda hoje, se se lhe pergunta o que acha das reivindicações sindicalistas, ele responde que na prática são reivindicações de elites operárias
em detrimento de massas proletárias, e se se lhe pergunta se não é "contra" o salário
mínimo ele continua dando a mesma resposta que já enunciava em "The Constitution
of Liberty" (1959): "You can pay it if you can afford" - se você agüenta, pode pagar.
Ele também não é "contra" o "seguro social"; ele acha apenas que o Estado não tem o
direito de assumir o monopólio da previdência, que, aliás, não cumpre e opera mal nem o monopólio de atividade económica alguma, atividade que melhor se opera por
instituições empresariais privadas.
Hayek é, sim um lutador. Um lutador que aos 82 anos não interrompe sua peregrinaÇ[o pelo mundo, que comparece a convite da Assembléia Nacional francesa para
expor suas idéias, que, com infinita paciência continua a responder a quaisquer perguntas, a dizer a sua verdade, a repetí-la, quantas vezes perguntada lhe for, ainda que já a
tenha dito em dezenas de livros e centenas de artigos.
Porque acima dos "mas", dos acidentes, das voltas da história, da solércia dos
acontecimentos, da obtusidade dos homens, Hayek é um "scholar" - um intelectual
amadurecido no estudo, no trato independente de idéias, na fidelidade apenas para
com a verdade. Que é a verdade em matéria histórica, social e económica? As verdades
existem? Existem.
Uma delas, é que não há fórmulas aplicáveis genericamente a qualquer povo,
independentemente de sua cultura, sua economia, sua história. Keynes enunciou uma
receita prática para o governo de Roosevelt num período de crise; Ropke fez um diagnóstico e uma prescrição que fundamentou o "milagre alemão" operado por Ludwig
Ehrard. Não é possível, então, enunciar uma fórmula para se eliminar a estagflação?
Acuado o scholar cede lugar ao polemista: anunciar uma fórmula é possível; o
que não é possível é encontrar um estadista capaz de aplicá-la.
Os pensadores, que fizeram o movimento neoliberal contra o totalitarismo e todas as formas de estatização, há decênios declararam que estado providencial equivalia
à inflaçrro crõnica. Mas nem mesmo as idéias podem ser impostas de cima para baixo.
Nem mesmo partindo dos intelectuais. Elas também têm de passar pela prova do mercado, pelo teste da eficiência, da rejeiçrro, da açrro. Por isso, o acontecimento intelectual mais importante da atualidade é que as idéias do planismo, da tecnocracia, a substituição do empresário económico pelo burocrata político, o previdencialismo estatal,
o fiscalismo, o confisco e o centralismo das decisões estejam sendo ''provadas" pelas
novas gerações, que não leram os ''livros antigos", mas pagam pela realidade atual.
No setor puramente económico, essa revisão vem sendo feita há anos, em Londres, pelo "lnstitute of Ecoriomic Affairs". Nas principais universidades americanas surge uma
"nova economia", destacando-se, entre outros, na Universidade de Chicago, Robert
Lucas, na de Minnesota, Thomas Sargent, na Harvard, Martin Feldstein, na do Sul da
Califórnia, Arthur Laffer, na Stanford, Michael Borkin.
Um empresário americano deu, no ano passado, condições a Milton Friedmann
para formular uma série de conferências expondo, em forma de divulgaÇ[o, as idéias de
uma economia empresarial em contraposiçrro a uma economia estatizada. A série foi
III
Hayek, o velho mestre, é sim, certamente, um polemista, forma que o intelectual
assume como lutador. Ao publicar em 1944 "The Road to Serfdom", (Bertrand Russel
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Friedrich Hayek
transformada em um produto de vídeo, utilizado em escala nacional, e em um livro
"The Freedom of Choice" -A Liberdade de Escolha. As teses principais estavam incluídas na plataforma eleitoral de Reagan. O que Reagan, em suma·, prometeu foi tirar
o governo das costas do povo americano~ (Mesmo porque dizia outro intelectual, este francês: quando o Estado assume tudo, acaba politicamente impotente.) Neste livro,
Friedmann relata um fato espantoso: o orçamento previdenciário americano é o terceiro orçamento do mundo: vem em seguida ao orçamento dos Estados Unidos e da Rússia. Quem não deseja o "direito" de receber dinheiro de graça?
Há não muito tempo, um número da revista Time dedicou larga análise ao previdencialismo estatal na Europa. Todos os planos estão falidos. Não só atuarialmente.
Socialmente. Os homens que produzem não querem mais trabalhar: o sueco calcula
quantos dias deve parar de trabalhar para que o aumento da sua renda não se transforme diretamente em imposto. Na França, disse um gaiato que os franceses deveriam
ter mais filhos para que o aumento das novas gerações de trabalhadores viabilizassem,
com suas contribuições previdenciárias, os crescentes pagamentos de "benefícios SO·
ciais". Mas será que as novas gerações estão dispostas a vir ao mundo para assumir os
encargos da benevolência estatal? - "If you can afford ... "
Os homens não seguem o caminho das idéias. A revisão que as novas gerações
estão fazendo da estatização no mundo inteiro não é, como alguns intelectuais gostariam de crer, ou escreveriam na história das idéias, resultado de um estado das
idéias. É uma procura, nas velhas fontes de explicações e saídás para realidades com as
quais se deparam, com as quais não estão de acordo, que não desejam assumir. Realidades que significam impasse, falência, fracasso, erro, inflação, estagflação desemprego,
queda da poupança, baixa da produtividade, obsolecência dos investimentos, marasmo,
derrota final no grande campo histórico de provas que é o mercado internacional. O
"não" do contribuinte, o "não" do poupador, o "não" do consumidor, o "não" do
empresário. A retração do desenvolvimento, os déficits de balança, a instabilidade da
moeda... o surpreendente e "perigoso" êxito da Alemanha e do Japão! Do Japão a
quem o Estado americano pede o favor de não exportar para seu país os carros mais
baratos e de melhor qualidade que a população americana deseja comprar.
A "revolução socialista" da França (se houver) não será um passo no "Caminho
para a Servidão". Na atualidade do mundo os riscos são outros, diz Hayek: se os políticos não destruírem o mundo nos próximos 15 ou 20 anos com seus programas insensatos, há uma esperança para a frente. Os politícos acreditamos - reciclam rapidamente suas idéias, convertendo os "não" populares em "sim". Mas, antes, será necessário que as vítimas dos seus erros digam "não". Diante das imperfeições das estruturas
democráticas atuais, os Mestres têm de aguardar pacientemente que o castigo da experiência obrigue os homens de novo a pensar e abrir seus olhos e Seus ouvidos às palavras
que há tanto tempo disseram.
Notas
1) "f: desnecessário dizer que a conversa de restrições voluntárias é hipocrisia pwa e simples. Os
exportadores japoneses não estão dispostos a cortar 'voluntariamente' seus próprios pescoço~.
Só restringirão as exportações se o seu governo obrigá-los a isto seja abertamente ou a traves
de meios mais sutis de persuasão. E o governo japonês só os obrigará se o nosso governo pressio·
nar ou compensar o Japão por isto".
2) "Eu me oponho a restrições de qualquer tipo, legisladas ou voluntárias. Mas se tiver de, h.aver
restrições, vamos ser honestos e claros a respeito, não procurando alcançar, por subterfug10, o
que uma administração, dedicada à promoção do livre comércio e à confiança no mercado, consideraria incómodo apoiar mediante legislação",
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Hayek na UnB