Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul Aula 07 ? História de Psicologia - Prof. William B. Gomes, PhD - 2005 Immanuel Kant (1724 - 1804) Excerto do texto: Hearnshaw, L. S. (1987). The shaping of modern psychology (Capítulo 7, pp. 89-107). London: Routledge. (Tradução de W. B. Gomes.) - Traduzindo para fins de ensino. Revisão de Eduardo A. S. dos Santos Com Immanuel Kant (1724-1804) nós chegamos a uma figura monumental, cuja ‘revolução coperniana’ marcará profundamente a história da filosofia ocidental. Kant passou quase toda sua vida em Könisberg (cujo nome atual é Kaliningrad), onde nasceu, educou-se, e mais tarde tornou-se professor. Sua formação, em seus anos universitários, estava alicerçada na filosofia de Wolff e na física de Newton. Sua filosofia crítica pode ser considerada como uma tentativa de reconciliar o racionalismo de Wolff com a física empírica e exata de Newton. Kant não foi um psicólogo e há opiniões divergentes quanto à influência de sua confusa e difícil filosofia sobre a psicologia. Alguns o consideram como ‘um desastre para a filosofia’.60 Por outro lado, também se diz que ‘Kant, mais que qualquer outro filósofo do século XVIII, influenciou profundamente a psicologia desde o seu tempo’.61 Talvez a verdade seja, como tem sido sugerido recentemente, que ‘a herança de Kant para a psicologia foi um desafio’.62 A própria atitude de Kant sobre a possibilidade de uma ciência psicológica foi ambivalente e as implicações de sua filosofia crítica para a psicologia foram contraditórias. Por várias razões Kant sustentou que era impossível estabelecer uma ciência própria dos sentidos internos. Ele considerava que a quantificação era a marca da verdadeira ciência, e que os sentidos internos não poderiam ser quantificados. Também, não poderiam ser submetidos à análise experimental, uma vez que a introspecção estava confinada ao senso interno, e alterava o que estava sendo observado. 63 Assim, a psicologia não poderia ser mais que uma ciência histórica e descritiva, e não uma ciência em seu verdadeiro sentido. Desde que todos os fenômenos seguem regras, ‘a experiência de nossas próprias faculdades ocorrem de acordo com estas regras’.64 Não estava excluindo ‘um tipo de fisiologia dos sentidos internos’65 baseada na observação dos movimentos dos nossos pensamentos e nas leis naturais do eu pensante. Em sua Anthropology from a Pragmatical Point of View (1798) ele abordou a natureza humana de um ponto de vista empírico e discutiu o funcionamento da mente. Existem, ainda, muitos outros aspectos realmente importantes para a psicologia na filosofia kantiana.66 Na sua tentativa de escapar do conflito entre racionalistas e empiricistas, e do caminho sem saída para qual Hume havia lançado a teoria do conhecimento, Kant propôs que sempre e necessariamente haverá dois componentes no conhecimento: intuições (senso) e conceito (pensamento) - uma proposta que expressa sucintamente seu conhecido aforismo (‘Pensamentos sem conteúdos são vazios, e intuições sem conceitos são cegos’).67 Tanto os empiricistas na tentativa de derivar o conhecimento dos elementos sensoriais, quanto os racionalistas na tentativa de derivar o conhecimento da razão estão equivocados. Nas próprias palavras de Kant ‘Leibniz intelectualizou os fenômenos do mesmo modo que Locke sensualizou os conceitos do entendimento.’68 Ambos estavam presos a um só lado. Toda a experiência, quer dizer, o mundo fenomenal que constitui nossa consciência, é uma construção sintética. Síntese precede qualquer análise possível, e esta síntese, inevitavelmente construída em um enquadre a priori, rende-se para o mundo fenomenal inteligível. Este enquadre reúne as duas formas puras da intuição sensível, espaço e tempo, correspondendo respectivamente ao senso externo e interno, e a um conjunto de categorias a priori, uma das quais é a categoria de causa. Assim, nós vemos o mundo inevitavelmente em termos espaço-temporal e causal. O conhecimento humano está confinado em um mundo fenomenal, o mundo sinteticamente construído que nós experenciamos. Ele não pode ir além da cortina fenomenal para o mundo noumenal, o mundo das próprias coisas. Desta forma, Kant legitimou o conhecimento dentro do mundo de nossa experiência e excluiu o conhecimento metafísico da realidade última e da natureza da alma. Seu argumento era o seguinte: ‘a psicologia racional inteira é impossível enquanto ultrapasse os poderes da razão humana.’ Isto limpou o ar de muitas especulações inúteis! Bem distante desta conclusão saudável havia um grande número de outras implicações importantes para a psicologia procedentes das doutrinas de Kant. Primeiro, a dicotomia entre mente e matéria herdada de Descartes estava sendo superada. De acordo com Kant a mente tem implicações sobre o que é conhecível a respeito da matéria; e a matéria tem implicações sobre o que é conhecível pela mente. A distinção não era entre mente e matéria, mas entre uma composição fenomenal do mundo da experiência e uma realidade noumenal desconhecida. O que está implícito é a existência de um elemento subjetivo inevitável no nosso conhecimento do mundo externo; mas igualmente que era impossível estudar consciência per se sem considerar sua relação com o mundo externo. Foi uma mudança na direção de um estudo da mente através de seu comportamento e de suas interações com o ambiente. Segundo, porque a experiência consciente era essencialmente o resultado de um processo sintético e estava sempre organizada e unificada. Kant abandonou o puro ego da psicologia racionalista e o substituiu pelo que chamou de ‘a unidade transcendental da apercepção’. ‘Nenhum conhecimento acontecerá em nós ...sem a unidade da consciência que precede aos dados de todas as intuições, e sem a qual nenhuma representação de objeto é possível.’70 Kant, em outras palavras, rejeitou as concepções atomistas dos empiricistas, e com ela o papel central da associação de idéias. Como Kemp Smith escreveu em seus ‘Commentary to Kant’s Critique’ “Idéias não se tornam associadas por meramente coexistirem. Elas podem ocorrer juntas em uma consciência unitária. ... Associação é fundada na transcendência.’71 Quer dizer, o princípio da associação fundamenta-se numa atividade sintética a priori que por si faz possível a consciência. Temos aí uma mudança, da visão mecânica de mente para um visão orgânica. Terceiro, a doutrina de Kant, limitando o domínio do conhecimento para o mundo fenomenal, ao mesmo tempo legitimou outros aspectos da experiência, em particular a experiência moral e a experiência estética. Estes aspectos não foram necessariamente excluídos da realidade por não existir lugar para eles no mundo determinístico do universo físico. A experiência da liberdade moral e as intuições dos valores estéticos, eram igualmente válidos, como Kant argumentou em sua segunda e terceira críticas, A Crítica da Razão Prática (1788) e A Crítica do Julgamento (1790). Em outras palavras, ‘Eu tinha que remover o conhecimento, para criar um espaço para crer.’72 Esta posição movimentou-se na direção de uma psicologia do ego no qual os valores tomam parte importante. Estas implicações para psicologia permanecem importantes mesmo apesar da filosofia kantiana ter saído de moda em alguns aspectos. As concepções sobre categorias a priori de Kant estavam limitadas as idéias de seu próprio tempo e baseadas na física newtoniana com seus postulados de espaço e tempo absolutos, na geometria euclidiana, e na biologia não-evolutiva. O estranho mundo da física e matemática não seguem mais a doutrina kantiana. A essência dos ensinos de Kant, tanto quanto concernem à psicologia, contudo, podem ser revistos em termos modernos. Desenvolvimentos posteriores, incluindo a teoria dos construtos pessoais de Kelly, inspiraram-se em Kant, e Konrad Lorenz apontou para afinidades entre o movimento etológico e Kant. Como Lorenz escreveu, A grande e fundamental descoberta de Kant foi que o pensamento e a percepção humana tinham certas estruturas funcionais a priori de cada experiência individual. ... O a priori deve-se a diferenciações hereditárias do sistema nervoso central que têm tornado-se características das espécies, produzindo disposições hereditárias para pensar de determinadas formas.73 Assim Kant permanece relevante, independente de suas contribuições para novos movimentos em filosofia, que por sua vez ajudaram a construir a psicologia, e independente do fato que somente trinta anos depois da morte da Kant ocorreu no trabalho de Johannes Müller um casamento entre fisiologia e psicologia resultando em novos e radicais desenvolvimentos jamais imaginados por Kant.74 Antes desses acontecimentos, contudo, os sucessores imediatos de Kant já questionavam o lado negativo das atitudes de Kant em relação a psicologia, apoiando as reivindicações da psicologia para se tornar uma ciência independente. Entre estes sucessores encontramos uma figura de maior expressão, Johann F. Herbart (1776-1841), o pai da pedagogia científica, e autor dos dois livros textos de psicologia, Lehrbuch zur Psychologie (1816) e Psychologie als Wissenschaft (1824-25).75 Como observou Boring, 76 Herbart trabalhou muito para dar status à psicologia e para tanto dotou a psicologia de uma missão própria. Herbart falava que a psicologia era uma Wissenschaft (ciência) e foi mais adiante dizendo que os dados da nova ciência deveriam receber tratamento matemático, indo assim de encontro a um dos mais fortes argumentos de Kant. Ele abandonou completamente a psicologia da faculdades de Wolff. ‘A alma’, ele dizia, não tem capacidade nem faculdades seja para receber ou para produzir qualquer coisa.’77 Substitui as faculdades com forças, forças das idéias. Idéias tornamse forças quando resistem uma à outra em seu esforço para ocupar os mesmos espaços na consciência. Desta forma, surge uma interação dinâmica na qual as idéias são misturadas, associadas em ‘massas aperceptivas’, e, quando perdem a luta podem ser suprimidas abaixo do limiar da consciência. A proposta matemática de Herbart para este processo dinâmico não foi bem sucedida e tem sido ignorada; mas outros aspectos de suas teorias deram frutos. Ele conseguiu fazer com que os psicólogos deixassem de se preocupar com as faculdades para prestar atenção aos conteúdos. Foi o início da construção do conceito de conteúdo mental, um conceito importante para os processos de desenvolvimento e educação. Educação era essencialmente uma matéria de enxertar novas informações em ‘massas aperceptivas’ previamente adquiridas. O aluno só estaria interessado no que ele já tinha algum conhecimento. Instruções meramente formais não eram efetivas porque jamais interessaria ao aluno. Estes entendimentos de Herbart tiveram grande influência na educação e teoria educacional no século XIX. Mas sua importância ultrapassou o campo da educação. Seu conceito de limiar, que estava implícito e que sem dúvida nenhuma derivou-se da doutrina de Kant, foi de avanço significativo. A supressão dinâmica das idéias abaixo do limiar da consciência, junto com a capacidade de enquanto suprimido exercer efeitos na consciência, foi o prelúdio da teoria freudiana. Na verdade, sabe-se que os livros textos de Herbart foram usados no Gymnasium em que Freud estudou, e que Meynert, que supervisou Freud em seus primeiros anos, seguia a orientação de Herbart. 79 Mas entre a morte de Herbart em 1841 e as primeiras importantes publicações de Freud muita coisa aconteceu na psicologia, e a influência de Herbart não pode ser considerada como mais que marginal. IMMANUEL KANT (1724-1804) Kant foi um filósofo alemão, considerado por muitos como o pensador mais influente dos tempos modernos. Nasceu em Kõnigsberg (atualmente Kaliningrad, Rússia). Recebeu sua educação no Collegium Fredericiacum e na Universidade de Kõnigsberg. No Colégio estou principalmente os clássicos, e na universidade estudou física e matemática. Com a morte de seu pai, foi obrigado a deixar a universidade e trabalhar como professor particular para garantir o próprio sustento. Em 1755, graças ao auxílio de um amigo pôde reassumir seus estudos e por fim obter o doutorado. Foi nomeado professor da Universidade de Königsberg em 1870 para as disciplinas de lógica e metafísica. Lecionou durante 27 anos, atraindo um grande número de alunos. Kant tinha uma visão não ortodoxa de religião pois baseava suas interpretações na razão e não na revelação. Por esse motivo entrou em conflito com Frederico William II Rei da Prússia e foi proibido de lecionar ou escrever sobre religião. Kant obedeceu a ordem e só voltou a escrever e falar sobre religião depois da morte do rei. Aposentou-se em 1797, e no publicou um resumo de suas posições sobre religião. A teoria de Conhecimento "Kant admite que todo o conhecimento começa com a experiência mas nem todo procede da experiência. Isso significa que a explicação genética do conhecimento, ao modo de Hume, não é para Kant totalmente satisfatório: resolver a questão da origem não é, todavia, resolver o problema da validade. A experiência não pode por si só outorgar necessidade e universalidade às proposições de que se compõem a ciência e, em geral, todo o saber que aspire ser rigoroso. "Como é possível a experiência ou como encontrar o fundamento da possibilidade de toda a experiência? "Kant responde, primeiramente, classificando os juízos em analíticos e sintéticos (a priori e a posteriori). Nos juízos analíticos o predicado está contido no sujeito; por isso são certos, porém vazios. Por exemplo, na afirmação "Casas brancas são casas" a verdade da proposição é evidente porque dizer o contrário faria da proposição uma autocontradição. Nos juízos sintéticos, o predicado não está contido no sujeito, por isso não são vazios e nem tão pouco absolutamente certos, por exemplo, a casa é branca. Os juízos a priori são formulações independentes da experiência. Assim, como supunham (por diferentes razões) Leibniz e Hume, os juízos analíticos são todos a priori e os sintéticos todos a posteriori; não parece que possam escapar ou a uma metafísica dogmática racionalista ou a uma teoria do conhecimento empirista. "Com efeito, ou os juízos sintéticos a posteriori são redutíveis a juízos analíticos a priori, em cujo caso os princípios da experiência são princípios da razão, ou os juízos sintéticos a posteriori nunca são redutíveis a juízos analíticos a priori, em cujo caso não há nunca certeza completa a respeito dos princípios do conhecimento. "Portanto, supõe-se que o conhecimento real se fundamenta em juízos sintéticos "a priori", quer dizer, em juízos capazes de dizer algo sobre o real com caracter universal e necessário; então há que perguntar-se pela possibilidade de tais juízos: é o tema da critica da razão, a qual deve proceder uma análise dos seus próprios poderes como preparação para uma metafísica "como ciência". Ferrater Mora p. 1840- Estes argumentos levam Kant a formular a seguinte questão: "Como são possíveis os juízos sintéticos "a priori" na matemática e na física" (ou o conhecimento da natureza), e como tais juízos são possíveis na metafísica?" - Kant examina estas questões na primeira parte do seu tratado Critica da Razão Pura, que é: "doutrina transcendental dos elementos". Esta parte divide-se em duas: "estética transcendental" e "lógica transcendental". A lógica transcendental divide-se em "analítica transcendental" e "dialética transcendental". - O adjetivo transcendental é fundamental em Kant. Classicamente, o termo `transcendental' refere-se a todo o conhecimento que não se ocupa tanto dos objetos quanto do modo de conhecê- lo. Por isso, a filosofia kantiana é só "a idéia de uma ciência" cujo plano arquitetônico deve trazer a "Crítica da Razão Pura". Porém, ademais e sobretudo, `transcendental' é o nome de um modo de ver e também o nome de "algo" que não é nem objeto nem tampouco o sujeito cognoscente, senão uma relação entre ambos de tal índole que o sujeito constitui transcendentalmente, com vistas ao conhecimento da realidade enquanto objeto. A filosofia transcendental é, assim, a reflexão crítica mediante a qual o dado se constitui como objeto do conhecimento. E o conhecimento é por isso, em cada caso, um processo de síntese (e de unificação) que pode chamar-se "síntese transcendental". (Fonte desta primeira parte: Ferrater Mora) Análise Transcendental - (lógica transcendental) (doutrina das categorias) As categorias são formas ou modos de enunciado ou predicado. Para Kant nosso conhecimento brota de duas fontes primordiais do espírito: 1) Faculdade para receber representações (a receptividade das impressões - um objeto é dado) 2) Faculdade de conhecer com o pensamento um objeto mediante estas representações - espontaneidade dos conceitos - neste caso o objeto dado é pensado em conexão com aquela representação (como mera determinação do espírito) "Assim pois, intuição e conceito constituem os elementos de todo nosso conhecer, de modo que nem os conceitos sem uma intuição que em certo a corresponda, nem a intuição sem conceitos podem produzir conhecimento" (Kant). Kant fala de suas categorias mediante a análise de nossa forma de julgamento. As 12 categorias são: 1. Unidade 2. Pluralidade 3. Totalidade 4. Realidade 5. Negação 6. Limitação 7. Inerência 8. Subsistência (substância e acidente) 9. Causalidade e dependência (causa e efeito) 10. Possibilidade e impossibilidade 11. Existência e inexistência 12. Necessidade e contingência. Porém junto a esta dedução metafísica Kant conhece todavia outra dedução transcendental das categorias partindo do "eu penso" da apercepção transcendental, que é algo assim como a célula inicial do espírito, posto que este "eu penso" da apercepção transcendental deve poder acompanhar todas as representações. O número das categorias continua o mesmo, porém sua função destaca com mais perfil, pois agora as categorias da natureza prescrevem um certo modo da lei graças a qual são primeirissimamente possíveis. Aqui é onde está a revolução coperniana, quer dizer, a tentativa de demonstrar que os objetos devem reger-se por nós e não vice-versa. Dialética transcendental - parte decisiva da Crítica da Razão Pura A teoria sobre a possibilidade e os limites do conhecimento humano e com isso também sua nova metafísica. A temática é tradicional: mundo, alma, Deus, liberdade, imortalidade. A inovação de Kant é que esses conceitos vão se constituir em idéias. Para Kant idéia não é uma representação. É formada de noções (puro conceito a priori), que rebaixa a possibilidade da experiência. Todo o nosso conhecimento começa com os sentidos, passa pela inteligência e termina na razão. A função característica da razão é o raciocínio dedutivo. A razão é a tentativa de pensar o conjunto de todas as condições de algo determinado". As idéias são portanto princípios "heurísticos" ou "regulativos"; são como uma ficção, um "como se" mediante o qual nossa busca tem certo objetivo, porém nenhum fim, de modo que a idéia significa propriamente um fazer sem fim. Ex.: A idéia de Deus - a totalidade absoluta de todas as condições (omnitudo realitatis). Os conceitos são princípios constitutivos. As idéias são princípios regulativos. Para as idéias não temos uma intuição direta como temos para as coisas que podemos pensar como conceitos. Conceitos - para objetos idéias - para noções como liberdade, imortalidade, Deus. (Hirschberger, 1973, pp. 208-232)