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Especial
Povos originários do Brasil não são considerados filhos
deste solo pela nossa “mãe gentil”
“Atropelando a Constituição, as leis e acordos internacionais sobre os direitos indígenas, o governo quer acabar com nossos rios, que são a fonte de
nossa vida. Quer acabar com nossos peixes, que alimentam nossas crianças. Quer apagar a nossa memória e desrespeitar nossos antepassados e
lugares sagrados.” (trecho do Manifesto Kayabi, Apiaká e Munduruku contra as hidrelétricas que o governo pretende construir em suas terras)
Sandra Ortegosa
[email protected]
Apesar da causa indígena ter
emergido com força total a partir de
2012, com a ameaça de “morte coletiva”
dos Guaranis Kaiowás (MS), essa questão ainda vem sendo tratada com negligência pelo governo e um misto de preconceito e indiferença pela maior parte
da população. É notório que a sociedade
brasileira possui um preconceito atávico
em relação aos “índios”, alimentado pelo
total desconhecimento a respeito da sua
história, hábitos, crenças e objetivos de
suas lutas. Na realidade, o que a sociedade costuma rotular genericamente de
“índios” constitui uma população de mais
de trezentos povos, com mais de 180
idiomas diferentes, diversas tradições,
hábitos, lendas e visões de mundo. Ao
contrário do que muitos pensam a luta
dos povos originários do Brasil em defesa de suas terras tradicionais não tem
como objetivo sua mercantilização, pois
para eles a terra não é vista como mercadoria. Trata-se, em realidade, de uma
luta antiga e legítima daqueles que mais
preservam a natureza e que já habitavam essas terras há centenas de anos
antes delas serem invadidas pelos portugueses.
No dia 16 de abril, às vésperas
do “Dia do Índio”, centenas de representantes de várias etnias e regiões do
país, vindos de comunidades indígenas
que hoje vivem em situação extremamente precária à espera da demarcação
das terras acossadas pelo agronegócio,
ocuparam o plenário principal da Câmara dos Deputados em protesto contra a
PEC-215, emenda constitucional que retira da Funai a competência de demarcar
essas terras, transferindo-a ao Congresso Nacional. Num marco histórico de sua
luta, em uma das piores conjunturas políticas desde a promulgação da Constituição de 1988, deram uma demonstração
de força e determinação, acuando os deputados da bancada ruralista, que nesse
mesmo plenário desfiguraram o Código
Florestal e agora querem transferir a um
Congresso por eles dominado, a prerrogativa de demarcação e homologação
das terras indígenas, dos quilombolas e
das áreas de proteção ambiental. Com
a maior de todas as bancadas, os ruralistas detêm o controle de ¼ da Câmara
e, se essa PEC for aprovada, eles passarão a ter influência direta nas decisões
de demarcações, atendendo aos seus
Charge de Santiago, publicada no blogue Humor Político
próprios interesses e colocando em risco
a integridade física dessas comunidades.
O governo e os índios
A forma autoritária como o PT e
seus aliados vêm lidando com essa questão, também tem sido objeto de duras críticas por parte das lideranças indígenas e
ativistas comprometidos com essa causa.
O Governo Federal chegou ao extremo de
baixar um decreto de uso da Força Nacional contra comunidades que se opuserem
à construção de grandes empreendimentos como as hidrelétricas. De acordo com
o CIMI (Conselho Indigenista Missionário),
durante o governo Dilma Rousseff, apenas dez terras indígenas foram demarcadas, sendo todas na região Norte. Centenas de processos ainda estão paralisados
em alguma das etapas do intrincado trâmite burocrático de demarcação, com
perspectivas de demora de 10 a 20 anos
para a conclusão. Muitos já pagaram com
a própria vida devido à falta de agilidade
do poder público na demarcação de suas
terras. Um dos episódios que chocou a
opinião pública, em 1997, foi o assassinato do índio Galdino, queimado vivo por um
grupo de adolescentes, filhos de parlamentares de Brasília. Em março desse ano, o
adolescente Denílson Guarani Kaiowá foi
assassinado por um fazendeiro, com tiros
na cabeça, por estar pescando numa área
que já havia sido declarada como território
indígena. O assassino confesso, além de
não ser preso, ganhou na Justiça a reintegração de posse da área em questão.
Intolerancia e Aldeia Maracanã
Agravando ainda mais esse quadro de insegurança e conflitos ligados à demarcação de terras, outros temas afloram,
trazendo à tona a enorme intolerância que
ainda existe em nossa sociedade em relação aos povos indígenas. Isso se evidenciou nas opiniões veiculadas na mídia por
ocasião do episódio da truculenta expulsão
da comunidade da Aldeia Maracanã pelo
governador Sérgio Cabral, fazendo uso de
tropa de choque para enfrentar índios armados com tacapes, arcos e flechas. “Ao
mandar provisoriamente os expulsos da
(22) 2523-0001
Aldeia Maracanã para o antigo Sanatório
de Jacarepaguá”, como afirmou Arnaldo
Bloch, “o governo simboliza a maneira
como vê os ocupantes do antigo Museu
do Índio: doentes”.
No Mato Grosso do Sul, o Mercado da Fé das seitas pentecostais invadiu as reservas indígenas afrontando
acintosamente as tradições religiosas
dos Guaranis Kaiowás. A mais intolerante é a “Deus é Amor”, justamente a que
mais cresce. Os nativos, em estado de
quase total indigência, são desrespeitados pelos evangélicos, que os chamam
de “demônios”, e têm seus símbolos
religiosos e rituais transformados em
objetos de zombaria. Esse é o caso da
tintura de Urucum, que os índios usam
para pintar o corpo, estigmatizada pelos
pastores como “bosta do satanás”. Cinco
casas de orações dessa comunidade foram criminosamente incendiadas a mando desses pastores. O crescimento da
bancada evangélica e sua aliança com a
bancada ruralista, cujo único horizonte é
derrubar florestas e se apoderar do que
ainda resta das riquezas naturais da pátria mãe gentil, é sem sombra de dúvidas
uma das coisas mais preocupantes no
atual cenário político.
Numa conjuntura de acelerado
processo de destruição ambiental, de
avanço predatório das monoculturas e
da pecuária, de desrespeito aos direitos
constitucionais dos moradores das áreas
atingidas pelos mega-empreendimentos
(como a Belo Monte e dezenas de outras hidrelétricas), a questão indígena
assume um caráter de urgência máxima.
Em seu discurso, durante a sessão solene da Câmara Federal em homenagem
aos Povos Indígenas, o Cacique Raoni
fez um apelo enfático pelo fim do massacre dos povos indígenas, da exploração
de minérios e das invasões de suas terras. Nós, brasileiros, temos uma dívida
histórica em relação à demarcação das
terras indígenas e o momento de repararmos essa dívida é agora. Como disse
o antropólogo Darcy Ribeiro no genial
documentário O Povo Brasileiro: “a coisa
mais importante do brasileiro é inventar o
Brasil que nós queremos”.
Sandra Mara Ortegosa
Arquiteta e socióloga pela USP
Phd em Antropologia
pela PUC-SP
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