O PODER CONSTITUINTE: subsídios para uma nova reflexão Sílvio Ernane Moura de Sousa Professor Mestre do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos, Campus Araguari. Sidinea Faria Gonçalves da Silva Mestra em Direito Público pela Universidade de Franca - UNIFRAN. Introdução Dissertar sobre o Poder Constituinte não é tarefa simples, pois este se traduz numa das categorias políticas mais importantes do constitucionalismo moderno. Entendemos ser grandiosa a dimensão da problemática do poder constituinte, porque este envolve outras questões complexas e controvertidas da teoria política, do direito constitucional, da teoria da constituição, bem como de tantas outras teorias e estudos. 1 Teoria Clássica do poder constituinte Comecemos, pois, pela conceituação do que seja o poder constituinte. Para Canotilho, o Poder Constituinte se revela sempre como uma questão de "poder", de "força" ou de "autoridade política" "que está em condições de, em determinada situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituição, vista como lei fundamental de determinada comunidade política". Pacífico na doutrina, o Poder Constituinte é o supremo fornecedor das diretrizes normativas que constarão do documento supremo chamado Constituição. Nesse sentido, o fundamento de tal Constituição não poderá ser encontrado em nenhuma regra de matiz jurídico positivada, já que não existe norma jurídica superior à constitucional1. Na Antigüidade, essa idéia de constituição era desconhecida, embora naquela época tenha surgido o Código de Hamurabi (2.000 a.C.), o Decálogo de Moisés (1.600 a.C.), as Leis de Manu (1.100 a.C.), as Constituições de Licurgo (Esparta, 898 a.C.), de Filolau (Tebas, 890 a.C.) e de Sólon (Atenas, 593 a.C.). Em 1 MICHEL, Temer. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p.33. Roma, Tarquínio, o Soberbo ("Jus Papirianun", 520 a.C.), os Decêmviros ("Lex Duodecim Tabularum", 439 a.C.) e Justiniano (Códigos da era cristã, século VI) elaboraram leis de caráter constitucional. Na Grécia ou em Roma, as leis constitucionais não se distinguiam formalmente das demais e se fundavam, sobretudo, nos costumes. Assim, também era na Idade Média, na qual as regras constitucionais eram costumeiras e, dessa forma, só o decurso do tempo podia mudá-las. A idéia de que a Constituição "é fruto de um poder distinto dos que estabelece" é contemporânea com a da de Constituição escrita2. Para melhor compreender a problemática da origem do Poder Constituinte, Canotilho aborda o sentido da perspectiva histórico-genética, segundo a qual, numa Constituição, se reúnem concepções jurídicas e políticas3. Exemplifica, ainda, com traços caracterizadores de três experiências histórico-constituintes: ... os ingleses compreendem o poder constituinte como um processo histórico de "revelação" da "Constituição de Inglaterra"; os americanos dizem num texto "escrito", produzido por um poder constituinte the fundamental and paramount law of the nation; os franceses "criam" uma nova ordem jurídico-política através da "destruição" do antigo e da "construção do novo", traçando a arquitetura da nova "cidade política" num texto escrito - a Constituição. Em todos os exemplos, o Poder Constituinte se revela como o poder de dizer e criar a Constituição. Outros documentos constitucionais são de Maomé, o Alcorão (século VII); de Carlos Magno, as Capitulares (século IX) e de João Sem Terra, a Magna Carta (1 215 d.C.). A primeira Assembléia Constituinte, composta de representantes do povo, reuniu-se, entre 1774 e 1787, em Filadélfia, nos Estados Unidos da América, através de sucessivos congressos, tendo elaborado e promulgado as Constituições das colônias, da confederação e da federação americana. O exemplo americano foi imitado na França com as Constituições de 1791, 1793 e 1795. Entretanto, ainda no século XIX, algumas Constituições não tiveram origem em assembléias políticas, mas foram outorgadas: à França, por Luís XVIII (1814), ao Brasil por D. Pedro I (1824), e a Portugal, por D. Pedro IV (1826). Não obstante, o parlamento britânico, desde 1689, vem elaborando e promulgando leis de caráter constitucional, sem comprovar qualquer Assembléia Constituinte. Nele, a Câmara Baixa exerce, singularmente, o Poder Constituinte. Além disso, as regras constitucionais nunca foram integradas num único ato legislativo, podendo ser adequadas a diferentes situações, e a qualquer tempo, por uma lei da Câmara dos Comuns. 2 3 MICHEL, Temer. Ob. cit, p.45. CANOTILHO, José Joaquim Gomes e Moreira, Vital. Os fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p.293. Na primeira metade do século XX, devem ser destacadas as Assembléias Constituintes dos Estados Unidos Mexicanos (Cidade do México, 1917), da República Socialista Federativa dos Sovietes da Rússia (S. Petesburgo, 1918), da Republica Alemã (Weimar, 1919), da República Italiana (Roma, 1947) e da República Federal da Alemanha (Bonn, 1949), que elaboraram importantes documentos constitucionais. Nesse mesmo período, ocorreram aberrações: a legislação fascista na Itália (1922-1943), salazaristas em Portugal (1928-1968), nazista na Alemanha (1933-1945), franquia na Espanha (1936-1975) e do Estado Novo do Brasil (1937-1945), reproduzida entre 1964 e 1978. Em várias ocasiões, a legislação excepcional teve prevalência sobre a Carta Constitucional de cada um desses países de regime autoritário. Mas é sabido que a idéia de um "poder constituinte", criador de uma lei básica com força e competência para estabelecer o modelo político de um povo não era aceita pelos "homens livres" da Idade Média. De acordo com o modelo inglês, a partir do século XIII, havia sim um complexo de normas que se destinavam a regular relações entre as várias ordens corporativamente organizadas com o sentido de estabelecer um equilíbrio entre os poderes medievais (garantir direitos e liberdades) e assegurar um governo, no qual existissem os pesos e contrapesos das diversas forças políticas e sociais. Os modos específicos e próprios de garantir os direitos (jura et libertates) e estabelecer limites ao poder (poderes de imperium) não era o de criar uma lei fundamental, mas sim o de confirmar a existência de "privilégios e liberdades" radicados em "velhas leis" de direito; às "magnas cartas" era estranha a dimensão de projetar uma nova ordem política criada por um ato abstrato (povo, nação) - ficava difícil um corte radical com as estruturas políticas tradicionais4. Diferentemente do que acontecia com o modelo histórico inglês, no modelo norte- americano há uma idéia política central. O objetivo do poder constituinte era criar uma Constituição para registrar, num documento escrito, um conjunto de regras invioláveis no qual contivesse a idéia de "povo" dos Estados Unidos como autoridade superior, de subordinação do legislador às normas da Constituição, a afirmação de poderes constituídos, autorizados e colocados em posição equilibrada (pesos e contrapesos). Note-se que, neste modelo, o poder constituinte estabelece uma forma de garantir direitos e limitar poderes, serve para criar um corpo rígido de regras garantidoras de direitos e limitadoras de poder, enfim, estabelecem as regras entre os poderes constituídos e a sociedade. Por tudo isso, pode-se dizer que a teoria do poder constituinte corresponde ao objetivo central do constitucionalismo. 4 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Constituinte, assembléia, processo, poder. 2. ed., SÃO PAULO: Revista dos Tribunais, 1986, p. 56, Com o advento da Revolução Francesa, surgem idéias completamente novas. No pensamento da França revolucionária, o poder constituinte tem um titular a nação. A Constituição é um ato imperativo da nação. A nação passa a deter um poder constituinte que se permite querer e criar uma nova ordem política e social, dirigida ao futuro ao mesmo tempo que rompe com o antigo regime. Neste ponto, faz-se importante lembrar o grande teórico abade de Chartres, Emmanuel Joseph Sieyès5, autor do livro (panfleto) denominado "Que é o terceiro Estado?" (Qu'est-ce que le tiers État?), verdadeiro manifesto da Revolução Francesa, no qual expõe as reivindicações da burguesia, definindo como a nação e, conseqüentemente, titular do poder constituinte. Sieyès, portanto, entra na história do Direito Constitucional como o autor da doutrina do Poder Constituinte. Segundo esse autor, todo Estado tem uma Constituição, que é obra de um Poder (o Constituinte), que é anterior à Constituição. Esse Poder Constituinte gera os Poderes do Estado (constituídos), e é superior a estes. Na verdade, a idéia da existência de um Poder Constituinte é o suporte lógico da idéia de Constituição, é a justificativa da superioridade da Constituição; que, sendo derivada do Poder Constituído, não pode ser modificada pelos poderes constituídos, de maneira que toda manifestação destes somente alcança plena validade, se se sujeitar à Constituição. É preciso lembrar que, na obra de Sieyès, nação não deve ser confundida com o conjunto de homens que a compõe. Para ele, nação é a expressão dos interesses permanentes de uma comunidade. Ainda, a nação que dita a Constituição não fica submetida a ela, pois pode sempre refazer ou estabelecer nova Constituição. Sieyès, uma vez mais, não pode deixar de ser citado em seus ensinamentos, quando trata da fase em que a tarefa de elaborar a Constituição é atribuída "a um grupo de cidadãos..." nela, não é mais a vontade comum real que age, é uma vontade comum representativa. Duas características lhe pertencem: primeiro, esta vontade não é plena e ilimitada no corpo dos representantes, é apenas uma grande porção da vontade nacional; segundo, os delegados não a exercem de forma alguma como um direito próprio, trata-se de direito alheio (do povo). Procurando fundamentar suas reivindicações no direito, Sieyès desenvolveu o seu pensamento jurídico partindo da forma representativa de governo para chegar a uma distinção inédita entre poder constituinte e os poderes constituídos. A criação de um corpo de representantes necessitava de uma Constituição, na qual fossem definidos os seus órgãos, as suas formas, as funções que lhe são destinadas e os meios para exercê-las. Pela Teoria de Sieyès, as leis 5 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. PODER CONSTITUINTE. Revista de direito público. n. 80. 1986. p. 20. Qu'est-ce que le Tiers Etat?,cit. p. 66. constitucionais regulam a organização e as funções dos poderes constituídos (corpos), entre os quais se encontra o Legislativo. Elas são leis fundamentais porque não podem ser tocadas pelos poderes constituídos: somente a nação tem o direito de fazer a Constituição. Assim, esse doutrinador foi buscar fora do ordenamento jurídico positivo (que era injusto) um direito superior, o direito natural do povo de autoconstituir-se, a fim de justificar a renovação da mesma ordem jurídica. O seu pensamento desenvolveu-se nos moldes do racionalismo iluminista, do contratualismo e da ideologia liberal da época. Construiu um conceito racional de poder constituinte, levantando o problema da sua natureza e da sua titularidade, bem como apresentando a sua solução.Desta forma, J.J. Gomes Canotilho discorre que Sieyès formula o pouvoir constituant que surge estreitamente associado à luta contra a monarquia absoluta. Os momentos fundamentais da teoria do poder constituinte de Sieyès são os seguintes: (1) recorte de um poder constituinte da nação, entendido como poder originário e soberano; (2) plena liberdade da nação para criar uma Constituição, pois a nação, ao "fazer uma obra constituinte", não está sujeita a formas, limites ou condições preexistentes. Enfim, o abade de Chartres, Emmanuel Joseph Sieyès6, entra na história do Direito Constitucional como o autor da doutrina do Poder Constituinte. Preconizava que todo Estado tem uma Constituição, que é obra de um Poder (o Constituinte) e anterior à Constituição. Esse Poder Constituinte gera os Poderes do Estado (constituídos), e é superior a estes. Na verdade, a idéia da existência de um Poder Constituinte é o suporte lógico da idéia de Constituição, é a justificativa da superioridade da Constituição; que, sendo derivada do Poder Constituinte, não pode ser modificada pelos poderes constituídos, de maneira que toda manifestação destes somente alcança plena validade se se sujeitar à Constituição. 2 Legitimidade Outro ponto de dificuldade surge em saber da legitimidade das normas assim concebidas. Na idade Média, o sujeito do Poder Constituinte era explicado pela doutrina jusnaturalista, cujos fundamentos tinham origem na vontade divina. Depois, com a doutrina de Siéyès, a nação passou a ser considerada sujeito do Poder Constituinte, é importante lembrar que nação, aqui, é usada como sinônimo de povo. 6 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Ob. cit. p. 66. A nação tem interesse em que o poder público "delegado" não possa jamais se tornar nocivo, pois, sem limites, a Constituinte pode ficar sob as influências das paixões revolucionárias, das manipulações. Nos movimentos revolucionários ou de surgimento de novo Estado, há geralmente um consenso prévio, que se transforma em força propulsora do movimento e lhe imprime diretrizes básicas. Temos como exemplo na história constitucional brasileira: na Constituinte de 1988, havia uma forte união contra o regime até então vigente, "a aliança em torno de Tancredo Neves não foi, ela própria, embasada em princípios comuns salvo o ser contra o regime anterior. O que acabou ocorrendo foi uma aliança partidária em torno do candidato oposicionista, com bases populares, mas de cunho difuso"7. A cada manifestação constituinte nasce o Estado, não importa a rotulação conferida ao ato constituinte. Importa a sua natureza e a legitimidade de seus agentes. Se dele decorre a certeza de rompimento com a ordem jurídica anterior, de edição normativa em desconformidade intencional com o texto em vigor, de modo a invalidar a normatividade vigente, tem-se novo Estado. Por fim, as recentes transições constitucionais que culminaram na transformação dos estados ex-comunistas, parecem mesmo apontar para a idéia de que o poder constituinte, exercido segundo um procedimento justo, e movidos por intenções de conformação de uma ordem jurídico-política, justamente ordenada, serve hoje como uma técnica de soluções de crises e rupturas políticas que, em momentos extraordinários, surgem no seio da comunidade. Tais instabilidades das épocas de transição tendem a serenar no momento em que o poder constituinte, democraticamente legitimado, fixa normativamente em constituições os valores básicos reclamados pelas forças constituintes (o povo). Modernamente, portanto, prevalece a idéia de que a titularidade do poder constituinte pertence ao povo, pois o Estado decorre da soberania popular, cujo conceito é mais abrangente que o de nação. Assim, a vontade constituinte é a vontade do povo, expressa por meio de seus representantes, observa o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho que " o povo pode ser reconhecido como o titular do Poder Constituinte mas não é jamais quem o exerce. É ele um titular passivo..." Não se confunde o titular do Poder Constituinte com o seu agente. Este é o homem, ou o grupo, que, em nome do titular do Poder Constituinte, estabelece a Constituição do Estado. O agente é designado pelo titular para estabelecer a Constituição. O poder Constituinte do titular permanece, não se exaurindo depois de sua manifestação, enquanto o do agente se esgota, concluída a sua obra. 7 MICHEL, Temer. Ob. cit., p.45. 3 Caráter inicial da Constituição Também desenvolve Sieyès a análise sobre os efeitos do ato constituinte, da obra do Poder Constituinte. Ela tem presente, e bem nitidamente, a idéia de que a obra do Poder Constituinte, a Constituição, é a base da ordem jurídica. Assim, o Poder Constituinte edita atos juridicamente iniciais, porque dão origem, dão início à ordem jurídica, e não estão fundados nesta ordem. Desse modo, o título que justifica a Constituição é a vontade da nação, ao passo que é a Constituição, por assim dizer, o título em que se baseiam todos os poderes constituídos. Igualmente, Sieyès 8 afirma que a Constituição é sempre superior aos poderes constituídos. De tal forma que qualquer manifestação dos poderes constituídos só é válida desde que se sujeite à Constituição. Concluímos ser o Poder Constituinte inicial, porque nenhum outro pode existir acima dele; ser autônomo, porque somente a seu titular cabe decidir qual a idéia de direito que se fará presente, e, finalmente, ser incondicionado, por não ser subordinado a qualquer regra, autoridade suprema, faculdade ilimitada e livre de formalidade. As correntes doutrinárias estão de acordo em reconhecer que ele é ilimitado, em face do Direito Positivo. A esse caráter os positivistas o designam soberano, pois consideram que esse poder não sofre qualquer limitação de direito. Já os naturalistas, o chamam de autônomo, não é limitado pelo Direito positivo, mas deve sujeitar-se ao Direito natural; é incondicionado (ou onipotente), porque não se subordina a qualquer regra de forma ou de fundo, isto é, não está regido pelo direito positivo do Estado (estatuto jurídico anterior), mas é o mais importante testemunho de um direito anterior ao Estado. 4 Espécies de poder constituinte Há uma clássica dicotomia em estudar o Poder Constituinte em Originário e Derivado, mas há autores que fazem referência a uma "terceira" categoria, que seria o poder constituinte revolucionário. Nas palavras do doutrinador Jorge Miranda, "nada é mais gerador de direito do que uma revolução, nada há talvez de mais eminentemente jurídico do que o ato revolucionário" 9 . A diferença entre poder constituinte originário e o poder constituinte revolucionário estaria no fato de que, enquanto o primeiro não reconhece uma legalidade preexistente pelo motivo de que esta não existiu, já que surge ali, o revolucionário, em oposição, não reconhece uma legalidade preexistente, porque a derrubou. 8 9 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Ob.cit., p. 23. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra, 2. ed., 1983, p. 293. Pela análise da doutrina positivista, nega-se o caráter jurídico do poder constituinte originário e reivindica-se o manto da juridicidade apenas para o poder constituinte derivado, situado dentro da Constituição. Numa orientação de ser o poder constituinte como um puro fato, sua explicação encontra sede na observação de que os movimentos revolucionários e os golpes de estado não se realizam de acordo com os princípios jurídicos ou regras constitucionais. O poder constituinte cairá nas mãos do mais forte e não será outra coisa senão uma manifestação de força. Esta tese, típica do positivismo jurídico, defende que a revolução deve ser concebida como um fato patológico, como um fenômeno fora do direito, sendo lógico que todos os fatos preparatórios de uma constituinte, as imediatas manifestações do poder constituinte originário se situam no terreno do pré-jurídico. O direito nasceria em sincronia com a própria Constituição. O poder constituinte será legítimo, a partir de determinadas idéias políticas, de cunho ideológico, mas não a partir do prisma da legalidade. A Teoria Pura do Direito, formulada por Hans Kelsen, ao identificar norma e direito e ver um abismo intransponível entre o direito e a realidade ("dever-ser" e "ser"), julga ser impossível derivar a norma jurídica da realidade; logo, não se pode justificar a validade da Constituição por meio de um ser político, qual seja, o poder constituinte de decisão sobre a unidade política do Estado. Na ciência jurídica, a questão se apresenta sob o aspecto da hierarquia das normas. As leis ordinárias têm fundamento na Constituição e esta, por sua vez, se apóia na norma básica ou fundamental, que não é uma norma legal positiva (posta), mas uma norma pressuposta. Assim, descabe qualquer indagação a respeito de um poder constituinte, nos lindes da ciência do direito, por se tratar este de um conceito metajurídico. Ainda, Alexandre Walmott Borge10, com base nos ensinamentos de Kelsen e Bobbio, leciona que o Poder Constituinte encontra o seu fundamento de atuação, de exercício de sua competência, em norma desprovida de conteúdo. Melhor entendida a relação entre a norma fundamental e o Poder Constituinte, ao se entender que a ausência de conteúdo, desprovida de natureza jurídico-positiva, não permite dizer que a norma fundamental não tenha outros conteúdos. Inclui-se também no elenco o conteúdo político. Há de se diferenciar o papel da norma fundamental como definidora do sistema jurídico, catalogando-o em dimensão estanque aos outros sistemas, de sua provável dimensão política. Com essa explicação, procura-se conciliar a natureza política do Poder Constituinte com a sua fundamentação em norma fundamental, a priori. Tomando-se a abordagem da norma fundamental como norma de 10 BORGES, Alexandre Walmott. Preâmbulo da constituição e a ordem econômica. Curitiba: Juruá, 1992, p. 48. manifestação do poder político, hegemônico no momento histórico de elaboração constitucional, abre-se o sistema jurídico sem perder a sua identidade para condicionamentos exteriores (sistema aberto). A norma fundamental é ditada pelo detentor do poder político (capaz de mobilizar os recursos institucionais e materiais para a detenção do poder) e determina a conformação do Poder Constituinte. A doutrina leciona ser o Poder Constituinte originário aquele que edita Constituição nova substituindo a anterior ou dando organização a novo Estado; aquele que dá origem à organização jurídica fundamental. Essa qualificação distingue esse Poder de Poderes Constituintes instituídos ou derivados. Estes, impropriamente, chamados de constituintes. Eles são constituídos pelo Poder Constituinte originário e dele retiram a força que têm. Por isso, quando se refere a Poder Constituinte é ao originário que se faz referência. 5 Poder constituinte originário O Poder Constituinte Originário apresenta três características fundamentais. Ele é inicial porque não se funda em nenhum outro, antes, é dele que derivam os demais poderes. As correntes doutrinárias estão de acordo em reconhecer que ele é ilimitado, em face do Direito Positivo. A esse caráter, os positivistas o designam soberano, pois consideram que esse poder não sofre qualquer limitação de direito. Já os naturalistas o chamam de autônomo, não é limitado pelo Direito positivo, mas deve sujeitar-se ao Direito natural. Por fim, ele é incondicionado no sentido de que não tem fórmula prefixada nem forma estabelecida para a sua manifestação. Pode, ainda, ser subdividido em histórico e revolucionário. O primeiro seria o verdadeiro poder originário, estruturando pela primeira vez o Estado. O segundo seriam todos os posteriores ao histórico, rompendo por completo com a antiga ordem e instaurando uma nova, conforme já apresentado neste trabalho. Lembramos que o Brasil adotou a corrente positivista em que o Poder Constituinte Originário é totalmente ilimitado, apresentando natureza pré-jurídica, uma energia ou força social, já que a ordem jurídica começa com ele e não antes dele. Canotilho11 sintetiza essas características dizendo que: o poder constituinte, na teoria de Sieyès, seria um poder inicial, autônomo e onipotente. É inicial porque não existe, antes dele, nem de fato nem de direito, qualquer outro poder. É nele que se 11 BORGES, A. W. Preâmbulo da constituição e a ordem econômica. Curitiba: Juruá. p. 48 CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. Op. cit. p. 16. situa, por excelência, a vontade do soberano instância jurídico política dotada de autoridade suprema. É um poder autônomo: a ele e só a ele compete decidir se, como e quando, deve "dar-se" uma constituição à Nação. É um poder onipotente, incondicionado: o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo. É importante ressaltar que o Poder Constituinte é permanente, pois não desaparece com a realização de sua obra, sua titularidade permanece latente, manifestando-se novamente mediante uma nova Assembléia Nacional Constituinte ou um ato revolucionário. Ainda importante, registra que são duas as formas básicas de expressão do Poder Constituinte: outorga e Assembléia Nacional Constituinte/convenção12. A outorga é o estabelecimento da Constituição por declaração unilateral do agente revolucionário, que auto limita seu poder. A Assembléia Nacional Constituinte (ou convenção) nasce da deliberação da representação popular, devidamente convocada pelo agente revolucionário, para estabelecer o texto organizatório e limitativo de Poder. 6 Poder constituinte derivado - reformador O Poder Constituinte Originário, ao criar uma Constituição, estabelece parâmetros para que, posteriormente, e sempre que necessário, procedam-se atualizações e ou modificações. Embora a Constituição do Estado consubstancie sua estrutura fundamental, não é permanente ou imutável, por isso, nela própria já vêm estabelecidos os limites para sua reforma. É um poder de direito resultante do texto constitucional, também chamado de poder de revisão, ou de reforma, além de relativo, secundário e limitado. Decorrente é o Poder Constituinte dos Estados-Membros da Federação, que devem respeitar sempre os princípios constitucionais da lei fundamental da União. 7 Limitações ao poder constituinte A doutrina é pacífica em afirmar alguma sorte de limitação à força constituinte originária, que não pode se apresentar de forma tão descompromissada. Mesmo sendo um poder inicial e criador, há sempre um respeito à situação histórica da comunidade política, aos ideais de justiça, ao Direito Internacional, a um direito Natural, a grupos de pressão, a crenças ou a uma realidade social subjacente limitadora ou a princípios superiores de convivência humana. 12 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 206. Não é demais lembrar que o Poder Constituinte não se confunde com Poder Estatal. A nova Constituição não ensejará um novo Estado. Portanto, é importante distinguir a força constituinte ou Poder Constituinte Originário, característico de momentos de ruptura forçada e inevitável, que apenas respeita a si mesmo, do Poder Constituinte historicamente situado, que, nesse sentido, seria muito mais limitado no seu atuar, por vezes instituído legalmente pela ordem jurídica anterior. Jorge Miranda já apontava três tipos de limites materiais ao poder constituinte originário: a) transcendentes são aqueles que provêm de imperativos de direito natural, de valores éticos superiores, de consciência jurídica coletiva, de direitos fundamentais; b) imanentes são os que decorrem do sentido de poder constituinte formal, ligado à configuração do Estado; c) limites heterônomos são os impostos por uma vontade política externa, que se referem a regras ou atos de direito internacional, donde resultam obrigações para este Estado e mesmo reportando a regras de direito interno13. Minoritários, mas importantes, os posicionamentos de Bachoff e Jorge Miranda, sendo interessante frisar que para Bachoff a violação do Poder Constituinte Originário aos seus limites, importará em inconstitucionalidade da norma constitucional originária, enquanto para Jorge Miranda, o que existirá nesta hipótese é a invalidade ou ilegitimidade da Constituição ou até injustiça da lei inconstitucional, o que não seria uma inconstitucionalidade, pois seria incongruente invocar a própria Constituição para justificar a desobediência ou insurreição contra as suas normas14. Existem, também, limitações ao poder constituinte derivado ou reformador; tais como o temporal quando a Constituição prescreve lapso temporal para ser objeto de reforma; limites circunstanciais que Canotilho leciona como circunstâncias excepcionais que proíbem a reforma, tais como Estado de Guerra, Estado de Sítio, Intervenção Federal, Estado de Defesa; os chamados limites materiais vêm expressos nas cláusulas pétreas e envolvem questões de conteúdo e não de forma, explícitos ou implícitos. Ensina ainda o renomado professor que a revisão total da Constituição só é possível quando expressamente prevista. Quando não, sua efetivação equivale ao rompimento da ordem legal. No entanto, esses limites estão sujeitos a uma interpretação evolutiva, de acordo com Jorge Miranda, as únicas normas de revisão que não podem ser revistas são aquelas que se ligam a princípios da Constituição. 13 14 O poder constituinte. RDP 80:16. Coimbra, p. 57. HOLTE, J. C. Magna charta. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. FERREIRA FILHO, M. G. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 1995. p.15/25. De modo que, para os autores que estudamos, há dois tipos de limites materiais: os que representam os princípios constitucionais, e estes não podem ser revistos, e há aqueles que não revelam o espírito fundamental da Constituição, quando a revisão é, então, possível. Por fim, convém ressaltar que no Direito brasileiro, não há limitações temporais. A exceção foi o art. 3° dos Atos e Disposições Gerais e Transitórias no que tange ao processo revisional já ocorrido no prazo ali estabelecido de cinco anos após a promulgação da Constituição. CONCLUSÃO Desta forma, concluímos que melhor seria empregar a expressão Poder Constituinte para designar o Poder Constituinte Originário, considerando não apenas que ele cria um Estado novo, mas também quando haja uma ruptura com o ordenamento jurídico precedente. E que esse Poder Originário, ao criar a Constituição, na realidade apenas estabelece competência a órgão já instituído, atribuindo-lhe poderes para reformá-la. Por fim, discordamos que o Poder Constituinte Originário seja ilimitado, uma vez que está obrigado a observar limites absolutos que decorrem de vontade não-jurídica, mas inerentes à natureza humana. Como exemplos, os de não alterar as leis da natureza; os de não impor coisas que vão de encontro à consciência da nação. BIBLIOGRAFIA BORGES, Alexandre Walmott. Preâmbulo da constituição e a ordem econômica. Curitiba: Juruá, 1992. CANOTILHO, José Joaquim Gomes e Moreira, Vital. Os fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. HOLTE, J. C. Magna charta. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Constituinte, assembléia, processo, poder. 2. ed., SÃO PAULO: Revista dos Tribunais, 1986. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. São Paulo: Saraiva, 1995. MICHEL, Temer. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra, 2. ed., 1983. ______________ O poder constituinte. RDP 80:16. Coimbra. SIEYÈS, Emmanuel Joseph. PODER CONSTITUINTE. Revista de direito público. n. 80. 1986. Qu'est-ce que le Tiers Etat?.