HISTORIOGRAFIA, DOCUMENTAÇÃO, FONTES E PERSPESTIVAS DE
PESQUISAS NAS GERAIS DOS SÉCULOS XVIII E XIX
Aurelino José Ferreira Filho – UFU / Campus Pontal
Esta comunicação é parte integrante das atividades do Núcleo de Estudos
sobre Escravidão em Minas Gerais – NEEMG, de reflexões e diálogos resultantes de
outras comunicações em eventos recentes, e pretende chamar a atenção para a
importância das pesquisas sobre escravidão, fontes e documentação produzidas na
região das Gerais da província mineira, tal qual era entendida, grosso modo, entre os
séculos XVII e o XIX. Região atualmente composta por parte significativa do Estado de
Minas Gerais e Centro-oeste do Brasil.
Se, por um lado, a região é privilegiada para se pensar construções e
representações de Goyazes, de Gerais e de Sertão, por outro, o diálogo sobre a
temática, geralmente, centra-se em regiões em que a escravidão brasileira se fez
presente de forma maciça entre os séculos XVIII e XIX, sabidamente o nordeste e o
sudeste brasileiros. Porém, se tratando da região sudeste, privilegia-se a área
mineradora da província mineira, a região da Zona da Mata, o Oeste Paulista e o Vale
do Paraíba (FARIA, 1998), regiões de produção voltada para a monocultura de
exportação por meio de grandes propriedades e significativos plantéis de escravos.
Sendo assim, pouca importância é atribuída á regiões em que se destacava uma
economia de subsistência e voltada para o mercado interno, diversidade produtiva e
mão de obra cativa concentrada em pequenas e médias propriedades.
Genericamente denominada de Gerais entre os séculos XVII e XIX, na qual se
encontra um número importante de cidades que compõe o atual Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba, a região conta com rica documentação eclesiástica e cartorial.
Documentos produzidos no cotidiano escravista das instituições públicas e
eclesiásticas daqueles séculos e que muito pode revelar sobre a mão-de-obra cativa
na província mineira como um todo.
Entre estas instituições destacam-se paróquias, dioceses, cúrias e cartórios que
mantém sob guarda um importante corpus documental composto por livros de
registros paroquiais e cartoriais. Livros de registros de batismo, de matrimônio, e de
óbitos, livros tombo; Inventários post-mortem, registros de propriedades de terras,
listas de escravos, cartas de alforrias, entre outros.
Trabalhos mais abrangentes com esta documentação precisam abarcar
dioceses e paróquias do atual território de Goiás, uma vez que até por volta de
meados do século XIX, as paróquias e capelas que compõe o atual Triângulo Mineiro
faziam
parte
da
província
eclesiástica
de
Goiás.
Pertenciam,
portanto,
eclesiasticamente àquela província. Ficando, assim, toda a vida eclesiástica submetida
à autoridade do bispo diocesano daquela região, que, por sua vez, reclamava para a
cúria de sua diocese parte da documentação produzida. Apenas por volta do no final
do século XIX, foi criada a Cúria Diocesana de Uberaba, assumindo a
responsabilidade religiosa e eclesiástica dos arraiais e paróquias da região.
Esta documentação é de suma importância para as pesquisas sobre a temática
na região, podendo revelar aspectos importantes, e ainda por saber, sobre – por
exemplo – fluxo e refluxo de escravos para a região no tocante ao comércio interno de
escravos criolos e africanos, o tamanho dos plantéis de escravos, padrões de idades e
vida produtiva, composições e arranjos familiares, entre outros aspectos sobre os
quais a historiografia atual vem se ocupando.
Pesquisas estas que, sem dúvida, fomentarão também o debate sobre políticas
de preservação, uma vez que, embora conte com uma vasta documentação cartorial e
eclesiástica, a região caracteriza-se pela carência de políticas públicas voltadas para a
preservação documental produzidos especificamente no cotidiano da sociedade
escravista mineira.
Por meio de profícuo diálogo teórico-metodológico, pesquisas locais e regionais
questionarão também uma historiografia clássica que sedimentou na produção
historiográfica e no Ensino de História a representação das Gerais – tal qual era
entendida entre o XVIII e o XIX – como uma região pobre e decadente.
Desconsiderando que, embora não possuísse produção agro-exportadora em larga
escala e se caracterizasse essencialmente por uma agropecuária mercantil de
subsistência e voltada para o abastecimento do mercado interno, a região estava
plenamente inserida - salvo características próprias - na sociedade e na dinâmica
escravista mineira daqueles séculos.
Segundo Douglas Cole Libby (1988), esta historiografia, ao tratar da província de
Minas, construiu a representação da “capitania do ouro, da economia dinâmica e do
processo de povoamento com fortes traços urbanos, de valiosa sustentação do regime
colonial” para o período compreendido até o século XVIII em oposição à província “da
decadência, da estagnação econômica, da dispersão demográfica ruralizante em meio
à atividades simples, da marginalização daquilo que restou ao longo do século XIX”
(LIBBY, 1988).
O autor considera errônea e distorcida esta construção que atribuiu ao século
XIX mineiro uma falsa decadência econômica e social. E questiona: “até que ponto a
historiografia, mesmo a revisionista, não vem aceitando, sem as necessárias
interpretações reflexivas, o juízo de valores dos mineiros do século passado, que viam
no inevitável declínio da mineração aurífera sinais de uma decadência da qual não
haveria recuperação?”.
Ou ainda “Afinal como poderia uma economia estagnada, entregue aos miasmas
da produção para o auto-consumo, sustentar a maior população provincial do Brasil e
maior plantel de escravos de todas as unidades do Império ao longo só século
passado?” (LIBBY, 1988).
O fato é que o crescimento demográfico da província de Minas no século XIX,
embora nada espetacular, segundo o autor, foi constante. Incluía, pelo menos desde a
década de 1810, o firme aumento do contingente mancípio, tendência esta que parece
ter continuado por duas décadas após o término do tráfico negreiro internacional
(LIBBY, 1988).
O trabalho com a documentação eclesiástica e cartorial sobre a região
das gerais possibilitará dialogar com diversos outros historiadores que também
consideram a diversificação econômica e produtiva uma característica marcante
no complexo universo mineiro. Para PAIVA (2000), mesmo na região mineratória,
desde as primeiras décadas da ocupação do território, houve quem preferisse
investir em atividades agropastoris, comerciais ou artesanais a arriscar-se na
aventura da garimpagem ou da faiscação.
Segundo o autor, produzir e vender para quem pagava em ouro em pó
transformou-se em lucrativa opção, coexistindo os que, além de minerar,
plantavam, criavam animais e comercializavam simultaneamente. Um mercado
interno em contínuo crescimento garantia a diversidade dos investimentos, assim
como a circulação de uma enorme gama de mercadorias.
A representação historiográfica que caracterizou a região como pobre e
decadente por todo o XIX, ainda muito presente no ensino de História, tomou os
viajantes europeus como Auguste Saint Hilaire (1816 1822). Viagem pelas províncias
do Rio de Janeiro e Minas Gerais, John Luccock (1808 1818). Notas sobre o Rio de
Janeiro e partes meridionais do Brasil, G.W. Freireyss (1814). Viagem ao interior do
Brasil, entre outros, que por esta região passaram e deixaram suas impressões –
geralmente deterministas e preconceituosas – como fonte.
Embora
estes
viajantes
estivessem
criticando
a
mentalidade
que
consideravam ser próprias dos brasileiros, em seus relatos atribuíram a atividades que
não fossem de mineração – a pequena agricultura de subsistência, a caça, a pesca e
a coleta, vendas nas feiras em um tempo intercalado em dias de trabalho e dias
santos – um caráter de trabalho decadente. Enfim, ao criticar o que consideravam ser
a mentalidade da época, associaram atividades não ligadas á grande agricultura de
exportação, á mineração e á indústria, ao improviso e ao atraso. Não percebendo
assim uma região economicamente diversificada, composta por pequenas e médias
propriedades de subsistência, e produtoras para o mercado interno. Diversificação que
tinha no trabalho livre, mas também em uma significativa mão de obra escrava,
distribuída em pequenas, médias e até grandes propriedades, a sua base de
sustentação.
Efetivamente, estes europeus não perceberam a diversidade nas formas de
ocupação – pequenas e médias propriedades – a diversidade de produção – carnes,
queijos, toucinhos, mantimentos, produção doméstica de fios e panos, oficinas
artesanais de todo tipo – (LIBBY, 1988) e a diversidade de trabalho/ formas de
ganhos, que caracterizava as Minas e as Gerais tanto no século XVIII como no XIX.
Tanto viajantes como a historiografia tradicional não souberam perceber um
conjunto de regiões economicamente heterogêneas, composta por unidades de
produção escravista, exportadoras, mas também por pequenas propriedades, de
exploração diversificada e produtoras para o mercado interno, contribuindo para a
cristalização de uma representação de uma Minas Gerais apenas da mineração.
Não cabem no espaço desta comunicação as infinitas possibilidades, e
limites, do trabalho com a documentação em questão, de maneira a contribuir com a
produção historiográfica sobre escravidão na província de Minas Gerais. Contudo cabe
destacar que na área do ensino de história, especificamente, buscar-se-á, entre outras
demandas, diminuir lacunas ainda existentes sobre a temática no tocante á produção
de materiais didáticos e ao trabalho com fontes, contribuindo para a formação de
professores-pesquisadores capazes de propor alternativas teórico-metodológicas para
a abordagem da temática em sala de aula, constituindo-se assim em importante
subsidio para a implantação da Lei 10.639/2003.
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3. Aurelino José Ferreira Filho