PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Paulo Gomes Ferreira Filho
O controle do Terceiro Setor pelo Ministério Público
e a tutela do cidadão cliente
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Paulo Gomes Ferreira Filho
O controle do Terceiro Setor pelo Ministério Público
e a tutela do cidadão cliente
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE
em Direito, com concentração em
Direito do Estado, subárea de Direito
Administrativo,
pela
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
sob orientação do Prof. Doutor
Clovis Beznos.
SÃO PAULO
2012
Banca Examinadora:
________________________________
________________________________
________________________________
Aos meus pais, Cacá e Paulo,
que me ensinaram as lições mais valiosas desta vida.
A Monique, por tudo, e ao Lucas, que chegará para
iluminar nossa família.
AGRADECIMENTOS
Graças a meus pais, sempre estudei nas melhores escolas da cidade em que
morava, a bela Juiz de Fora – MG, onde me graduei em Direito. Não lhes prestei o
devido agradecimento à época, pois me sentia cumprindo apenas uma espécie de “dever
cívico”: a formatura era decorrência natural das excelentes oportunidades que tive de
estudar.
Nos difíceis anos de preparação para concursos públicos, meus pais sempre
estiveram ao meu lado como amigos, psicólogos e incentivadores. Sem a ajuda deles,
não teria ingressado no Ministério Público Federal.
Logo, nesse momento de verdadeira realização intelectual, é chegada a hora
de manifestar minha profunda gratidão aos meus pais, Maria do Carmo e Paulo, por
terem despertado meu interesse pela leitura e pelos estudos, e por tudo o que fizeram e
continuam fazendo por mim.
A minha esposa Monique, sempre presente em minha vida, pela
compreensão e ajuda carinhosa. Ao amigo Aureo, meu sincero agradecimento pelo
apoio e constante estímulo intelectual. Às minhas irmãs, Aline e Ana Luiza, pela ajuda
na formatação e revisão do texto.
É hora de agradecer também os Professores Lúcia Valle de Figueiredo,
Clarice Von Oertzen de Araújo, Márcio Cammarosano, Marcelo Souza Aguiar, Silvio
Luís Ferreira da Rocha, Ricardo Marcondes Martins e Dinorá Grotti: cada um deles
ensinou-me uma maneira diferente de pensar o Direito.
Consigno, por fim, um especial agradecimento ao Professor Clovis Beznos,
pela orientação precisa e pelas brilhantes lições que me ensinou.
O CONTROLE DO TERCEIRO SETOR PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
E A TUTELA DO CIDADÃO CLIENTE
Paulo Gomes Ferreira Filho
RESUMO
O objeto deste estudo é o regime jurídico do Terceiro Setor sob a
dupla perspectiva do controle dos recursos públicos repassados às entidades privadas
sem fins lucrativos e da tutela do cidadão cliente dos serviços de relevância pública.
Partiu-se do pressuposto de que o Estado é o protagonista dos direitos sociais.
Juridicamente, de acordo com a Constituição Federal, foi possível conceituar o Terceiro
Setor: é o conjunto de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos,
beneficiadas pela atividade administrativa de fomento, que prestam serviços de
relevância pública. Foram examinados os principais títulos jurídicos concedidos às
entidades privadas sem fins lucrativos. Apurou-se que a lei federal das Organizações
Sociais é, em boa parte, inconstitucional. Foi possível demonstrar que a realização de
processo seletivo prévio e objetivo para a escolha da entidade privada parceira do Poder
Público contribui decisivamente para se evitar o desperdício de recursos públicos e a
prática de crimes e atos de improbidade. Os resultados alcançados permitem afirmar que
é obrigatória a realização, pelo Terceiro Setor, de procedimento administrativo prévio
para a contratação de terceiros, com recursos públicos, e para seleção de pessoal. Foram
identificadas as características do regime do consumidor de produtos e serviços e do
usuário de serviços públicos, para, então, apresentar-se o regime jurídico do cidadão
cliente do Terceiro Setor. Concluiu-se que, para tutela do cidadão cliente, o artigo 22 e
toda a parte processual do Código de Defesa do Consumidor se aplicam às entidades do
Terceiro Setor parceiras do Poder Público que recebam recursos e bens públicos. Foram
analisados os meios de atuação extrajudicial e judicial do Ministério Público no controle
do Terceiro Setor. O controle interno exercido sobre a transferência de recursos públicos
para a iniciativa privada é deficiente, o que reforça a importância do controle externo
exercido paralelamente pelos Tribunais de Contas e pelo Ministério Público sobre as
entidades do Terceiro Setor.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Terceiro Setor. Controle.
Recursos Públicos. Ministério Público. Direito do consumidor. Organização NãoGovernamental.
THE CONTROL OF THIRD SECTOR BY PROSECUTORS
AND CITIZEN’S PROTECTION
Paulo Gomes Ferreira Filho
ABSTRACT
The subject-matter of this study is the legal regime of the Third
Sector, analyzing both the control of public resources transferred to private nonprofit
and the protection of citizen customer of public relevance services. It was presupposed
that the State is the protagonist of social rights. Legally, according to the Federal
Constitution, it was possible to conceptualize the Third Sector: the set of private nonprofit organizations which receives states incentives and provides social services. It was
examined the main legal titles awarded to private nonprofit organizations. It was
demonstrated that the federal law of social organizations are, in part, unconstitutional. It
was possible to demonstrate that the implementation of previous and objective selection
process to choose the private partner of the Government contributes decisively to
prevent the waste of public resources and the committing of crimes and acts of
dishonesty. The results have revealed that the Third Sector should always carry a
selection process for hiring companies and people using public funds. It was identified
the regime characteristics of the consumers of products and services and of the public
services user, to then present the legal rules of the Third Sector clients. It was concluded
that for protection of the citizen client, the Article 22 and the entire procedure of the
Consumer Protection Code apply to the Third Sector organizations which are partners of
public authorities and receive funding and public goods. It was analyzed the means of
extrajudicial and judicial action of the prosecutors in charge of the Third Sector. The
internal control exercised over the transfer of public resources for private initiative is
lacking, which reinforces the importance of parallel external control exercised by the
Courts of Accounts and the prosecutors on the Third Sector organizations.
Keywords: Administrative Law. Third Sector. Control. Public
Resources. Prosecutors. Consumer rights. Non-Governmental Organization.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
Capítulo I – O TERCEIRO SETOR NO BRASIL .............................................................. 13
1. Breve histórico e evolução constitucional ........................................................................ 13
2. Análise do Terceiro Setor à luz da CF/88 ......................................................................... 19
3. Serviços de relevância pública .......................................................................................... 26
4. Atividade administrativa de fomento ................................................................................ 30
5. Direitos sociais e atuação do Estado ................................................................................. 35
5.1 Princípio da subsidiariedade .................................................................................. 38
5.2 Princípio da complementaridade ........................................................................... 40
5.3 O Estado como protagonista dos direitos sociais ................................................ 42
Capítulo II – OS TÍTULOS JURÍDICOS DO TERCEIRO SETOR ................................ 47
1. Os títulos jurídicos ............................................................................................................ 47
2. Utilidade pública ............................................................................................................... 48
3. Entidade beneficente de assistência social ........................................................................ 50
4.Organização Social ............................................................................................................ 53
5. Organização da Sociedade Civil de Interesse Público ...................................................... 62
Capítulo III – O CONTROLE DO TERCEIRO SETOR ................................................... 69
1. Crescimento do Terceiro Setor e a importância de seu controle ...................................... 69
2. Instrumentos jurídicos da atividade de fomento ............................................................... 72
2.1 Contrato, convênio e contrato administrativo ...................................................... 72
2.2. Convênios ................................................................................................................ 74
2.3 Contratos de repasse ................................................................................................ 78
2.4 Contratos de gestão ................................................................................................. 78
2.5 Termos de parceria .................................................................................................. 82
3. Parâmetros de controle do Terceiro Setor ......................................................................... 84
3.1 Transparência ........................................................................................................... 87
4. Controle prévio ................................................................................................................. 91
4.1 Procedimento administrativo e atividade de fomento ........................................ 92
4.2 Procedimento de competição para celebração de parcerias ............................... 94
4.3 Inconstitucionalidade do inciso XXIV do artigo 24 da Lei 8.666/93 ............... 99
4.4 Qualificação técnica .............................................................................................. 101
5. Controle concomitante .................................................................................................... 104
5.1 Realização de vistorias in loco............................................................................. 106
5.2 Controle dos recursos e bens públicos ................................................................ 107
6. Controle posterior ........................................................................................................... 110
6.1 Prestação de contas ................................................................................................ 110
6.2 Tomada de contas especial ................................................................................... 114
6.3 Inconstitucionalidade do artigo 17 do Decreto 6.170/07 ................................. 116
Capítulo IV – A PROTEÇÃO DO CIDADÃO CLIENTE DO TERCEIRO SETOR ... 120
1. Introdução ....................................................................................................................... 120
2. A defesa do consumidor no direito brasileiro ................................................................. 124
2.1 Relação de consumo .............................................................................................. 125
2.2 O regime jurídico do CDC ................................................................................... 127
2.3 O consumidor do serviço de relevância pública ................................................ 130
2.4 Responsabilidade civil em face dos danos causados a terceiros ..................... 131
3. O regime jurídico dos serviços públicos ......................................................................... 132
3.1 Conceito de serviço público ................................................................................. 132
3.2 Regime jurídico do serviço público .................................................................... 134
3.3 Posições doutrinárias sobre a aplicação do CDC aos serviços públicos ........ 137
3.4 A aplicação do CDC aos serviços públicos........................................................ 139
3.5 Distinções entre usuário e consumidor ............................................................... 143
3.6 Responsabilidade civil em face de danos causados a terceiros ....................... 147
4. O regime jurídico do Terceiro Setor sob a perspectiva do cidadão cliente .................... 148
4.1 Regime jurídico do Terceiro Setor ...................................................................... 148
4.2 O cidadão cliente dos serviços prestados pelo Terceiro Setor......................... 153
4.3 O parâmetro legal da prestação de serviços pelo Terceiro Setor .................... 155
4.4 Aplicação do artigo 22 do CDC ao Terceiro Setor ........................................... 157
4.5 Responsabilidade civil em face dos danos causados a terceiros e
proteção processual do cidadão cliente ..................................................................... 160
4.6 Aplicação integral do CDC ao Terceiro Setor ................................................... 164
5. Responsabilidade civil do Estado pelos danos causados pelo Terceiro Setor ................ 166
Capítulo V – O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CONTROLE DO TERCEIRO SETOR .... 169
1. O Ministério Público no Brasil ....................................................................................... 169
1.1 Evolução histórica do Ministério Público .......................................................... 169
1.2 O Ministério Público na Constituição de 1988 .................................................. 170
1.3 Garantias e vedações dos membros do Ministério Público.............................. 172
2. As atribuições do Ministério Público e a fiscalização do Terceiro Setor ....................... 173
2.1 Fonte constitucional .............................................................................................. 173
2.2 Atribuições legais .................................................................................................. 177
2.3 A fiscalização ministerial das associações integrantes do Terceiro Setor ..... 180
2.4 O velamento das fundações .................................................................................. 183
2.5 Fundações instituídas pelo Poder Público .......................................................... 189
3. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva................................................................... 192
3.1 Inquérito civil ......................................................................................................... 193
3.2 Recomendação ....................................................................................................... 200
3.3 Termo de ajustamento de conduta ....................................................................... 203
4. Ação civil pública ........................................................................................................... 209
5. Ação de improbidade administrativa .............................................................................. 215
6. Ação penal e crimes relacionados ao Terceiro Setor ...................................................... 222
CONCLUSÕES..................................................................................................................... 230
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 241
9
INTRODUÇÃO
O crescimento das parcerias estabelecidas entre o Estado e a sociedade
civil para a promoção de direitos sociais pode ser percebido no aumento exponencial
dos recursos públicos repassados às entidades do Terceiro Setor.1 Cada vez com maior
frequência, alguns dos serviços mais importantes para os cidadãos – nas áreas de saúde
e educação, por exemplo – são prestados por entidades privadas sem fins lucrativos.
As entidades privadas do Terceiro Setor prestam serviços essenciais
para a promoção da cidadania, dentro do espaço normativo permitido e até estimulado
pela Constituição Federal de 1988, que assegura a livre associação, para fins lícitos,
como direito constitucional fundamental. O objetivo de promover o bem de todos, sem
qualquer discriminação, missão de várias dessas entidades privadas, amolda-se à diretriz
fundamental do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Não obstante, não há uma definição legal do que seja o Terceiro Setor
e, por outro lado, as figuras jurídicas até então criadas pelo legislador não apresentam
características plenamente consentâneas com a ordem constitucional vigente (caso das
Organizações Sociais – OS) ou vêm sendo utilizadas para a terceirização ilegal da
prestação de serviços públicos (caso das OS e também das Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público – OSCIPs).
É inconteste a deficiência da estrutura administrativa existente para
efetiva fiscalização, pelos órgãos públicos, do dinheiro público repassado às entidades
do Terceiro Setor. No cenário ideal, o próprio órgão repassador se aparelharia
suficientemente para realizar o controle da correta utilização dos recursos transferidos.
Mas, atualmente, a estrutura desses órgãos está muito longe do que seria minimamente
aceitável para o exercício de tal desiderato: faltam servidores públicos e condições
materiais. Essa deficiência do sistema de controle interno reforça e legitima o papel
constitucional do controle externo, realizado paralelamente pelos Tribunais de Contas e
pelo Ministério Público.
Veja-se o paradoxo: os órgãos públicos não possuem estrutura mínima
para
o
exercício
do
controle
interno,
mas,
mesmo
assim,
continuam
indiscriminadamente celebrando parcerias e repassando recursos e bens públicos à
1
Nesta dissertação, adotou-se concepção restrita do significado do Terceiro Setor, entendido como o
conjunto de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, beneficiadas pela atividade
administrativa de fomento, que prestam serviços de relevância pública. É nesse sentido que a expressão
Terceiro Setor será utilizada tem todo este trabalho. Infra, I-2.
10
iniciativa privada. A consequência, nefasta, é o aumento da corrupção, a prática
desenfreada de crimes e atos de improbidade administrativa contra o erário e a
terceirização ilegal de serviços públicos. Rotineiramente, são noticiados escândalos
envolvendo quadrilhas formadas por funcionários e dirigentes de entidades do Terceiro
Setor com a finalidade exclusiva de desviar recursos públicos que deveriam ser
aplicados em nobres finalidades sociais.
Soma-se a esse panorama fático-legal a enorme insegurança jurídica
gerada pela demora excessiva do Supremo Tribunal Federal em julgar definitivamente a
ADI 1923/DF2, na qual se questiona a constitucionalidade da Lei 9.637/98, que dispõe
sobre a qualificação das Organizações Sociais no âmbito federal.
Nesse contexto, este trabalho pretende situar o Terceiro Setor no
quadro normativo estabelecido pela Constituição Federal de 1988. É a partir do texto
constitucional que toda a análise é realizada. Parte-se do seguinte pressuposto: o Estado
é o protagonista da concretização dos direitos sociais no Brasil. Não se trata do
reconhecimento de determinada posição ideológica, mas de simples interpretação da
Constituição Federal, que estabelece nos artigos 193 a 230 diversos deveres estatais,
alçando incontestavelmente o Estado como principal ator no campo dos direitos sociais.
Logo, não há que se falar em Estado mínimo nem em terceirizações de serviços
públicos.
Buscam-se dois objetivos com o presente trabalho.
O primeiro é traçar os mecanismos de controle dos recursos públicos
repassados ao Terceiro Setor, desde a escolha da entidade parceira até a prestação de
contas ao órgão repassador, com ênfase nas atribuições constitucionais do Ministério
Público.
O segundo é estudar o Terceiro Setor sob a perspectiva do cidadão
cliente, aquele que usufrui gratuitamente dos serviços de relevância pública prestados
2
A ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada em 1998 e somente dois Ministros votaram até
agora. O Ministro Ayres Britto, relator, votou pela procedência parcial da ação, nos seguintes termos:
“voto pela procedência parcial desta ação direta. Isto para declarar a inconstitucionalidade dos seguintes
dispositivos da Lei 9.637/98: a) o fraseado ‘quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação
como organização social’, contido no inciso II do art. 2º; b) a expressão ‘com recursos provenientes do
contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao exercício de função temporária de
direção e assessoria’, contida no § 2º do art. 14; c) os arts 18, 19, 20, 21 e 22, com a modulação proposta
no parágrafo anterior. Interpreto ainda, ‘conforme à Constituição’ os arts. 5º, 6º e 7º da Lei 9.637/98 e o
inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93, para deles afastar qualquer interpretação excludente da realização
de um peculiar proceder competitivo público e objetivo para: a) a qualificação de entidade privada como
‘organização social’; b) a celebração do impropriamente chamado ‘contrato de gestão’.” O Ministro Luis
Fux, julgou parcialmente procedente o pedido, “apenas para conferir interpretação conforme à
Constituição à Lei 9.637/98 e ao art. 24, XXIV da Lei 8666/93, incluído pela Lei 9.648/98”. Atualmente,
o processo está no gabinete do Ministro Marco Aurélio, que pediu vista.
11
pelas entidades privadas sem fins lucrativos. Para esse propósito, a análise do artigo 22
do Código de Defesa do Consumidor é de especial importância: defende-se a aplicação
dessa norma às entidades do Terceiro Setor que estabelecem parcerias com o Poder
Público e recebem recursos ou bens públicos. Até que ponto a legislação consumerista
aplica-se ao Terceiro Setor é um dos centrais pontos abordados.
Assim, justifica-se o tema escolhido pela atualidade dos problemas a
ele relacionados e pela importância de se exercer o controle dos recursos transferidos ao
Terceiro Setor e de se tutelar o cidadão cliente que usufrui dos serviços de relevância
pública prestados pela iniciativa privada. Além disso, o tema estudado é pouco
explorado pela doutrina pátria.
O trabalho prioriza a pesquisa bibliográfica da doutrina nacional,
embora se utilize também a doutrina portuguesa, sempre com o devido cuidado de se
verificar se as teses alienígenas resistem à filtragem da Constituição brasileira de 1988.
Com o intuito de enriquecer a pesquisa, busca-se a análise multidisciplinar do Terceiro
Setor pela pesquisa de estudos realizados sob o viés econômico e social. Ademais, a
dissertação assenta-se na jurisprudência, em estudos realizados por instituições oficiais
e no banco de dados do Ministério Público Federal.
No que se refere ao controle do Terceiro Setor, o estudo contempla a
fiscalização exercida pelo Tribunal de Contas da União e apresenta diversos exemplos
da atuação do Ministério Público. A partir do panorama do que ocorre na realidade,
pretende-se contribuir para o aperfeiçoamento dos instrumentos de controle do repasse
de recursos públicos à iniciativa privada.
Em face dos objetivos propostos, esta dissertação não se limita à
análise textual da Constituição e da legislação relacionada ao Terceiro Setor, sob o
enfoque do direito administrativo. Embora o cerne da pesquisa se relacione a tal ramo
do direito, são estudados diversos institutos e princípios do direito civil, direito do
consumidor, direito processual civil e direito penal.
O trabalho é apresentado em cinco capítulos.
Inicialmente, após a apresentação de breve histórico da filantropia no
Brasil, analisa-se a configuração constitucional das entidades privadas sem fins
lucrativos e propõe-se um conceito de Terceiro Setor de acordo com o ordenamento
jurídico brasileiro. São fixados os limites constitucionais da atividade administrativa de
fomento, submetida aos princípios da subsidiariedade e complementaridade,
destacando-se o Estado como protagonista dos direitos sociais.
12
Na sequência, são analisados os títulos jurídicos de Utilidade Pública
Federal, Entidade Beneficente de Assistência Social, Organização Social e Organização
da Sociedade Civil de Interesse Público, com enfoque nos limites constitucionais dos
meios de fomento repassados às entidades detentores desses títulos especiais. São
estudas as diversas inconstitucionalidades da Lei 9.637/98, que dispõe sobre a
qualificação das Organizações Sociais.
Após os dois primeiros capítulos, fundamentais para a compreensão
do formato jurídico do Terceiro Setor, o estudo passa a abordar os mecanismos de
controle do repasse de recursos públicos. Nessa parte, apresentam-se dados concretos
sobre a ineficiência do sistema de controle interno e analisam-se pormenorizadamente
as fases de controle prévio, concomitante e posterior.
Feito isso, o exame recai sobre a proteção do cidadão cliente do
Terceiro Setor. Como se distinguem os regimes jurídicos do consumidor, do usuário dos
serviços públicos e do cidadão cliente do Terceiro Setor? Há diferença quanto ao regime
jurídico dos usuários dos serviços públicos e dos consumidores de produtos e serviços?
Como se dá a responsabilidade civil das entidades do Terceiro Setor prestadoras de
serviços de relevância pública? O Estado responde civilmente pelos atos praticados
pelas entidades do Terceiro Setor? Essas e outras questões são abordadas no Capítulo
IV.
O estudo segue com a análise das atribuições constitucionais e legais
do Ministério Público para controle do Terceiro Setor, incluindo a fiscalização das
associações e o velamento das fundações. Na sequência, examinam-se as principais
técnicas extraprocessuais de tutela coletiva – inquérito civil, recomendação e termo de
ajustamento de conduta – e a utilização da ação civil pública, ação de improbidade
administrativa e ação penal no exercício do controle do Terceiro Setor pelo parquet.
Ao final, são resumidas as principais ideias e conclusões expostas ao
longo do texto e indicada a bibliografia utilizada para a realização deste trabalho.
13
Capítulo I – O TERCEIRO SETOR NO BRASIL
1. Breve histórico e evolução constitucional. 2. Análise do Terceiro Setor à luz da
CF/88. 3. Serviços de relevância pública. 4. Atividade administrativa de fomento. 5.
Direitos sociais e atuação do Estado. 5.1 Princípio da subsidiariedade. 5.2 Princípio
da complementaridade 5.3 O Estado como protagonista dos direitos sociais.
1. Breve histórico e evolução constitucional
“Amarás a teu próximo como a ti mesmo”1, mandamento cristão
síntese da caridade, é um dos significados do vocábulo filantropia, que também quer
dizer amor à humanidade, humanitarismo.2 A ajuda desinteressada entre os homens
sempre existiu ao longo da história. As relações sociais de cooperação mútua,
inicialmente restritas ao plano familiar, expandiram-se para o relacionamento entre
vizinhos e pequenas comunidades e ajudaram a impulsionar o progresso da civilização.
Por razões altruístas ou pela necessidade de sobrevivência, os seres humanos sempre se
reuniram para ajudar o próximo.
Não obstante, transcorreram quase dois milênios até que os valores da
solidariedade e da fraternidade passassem a constar dos textos internacionais referentes
aos Direitos Humanos, o que ocorreu após as grandes guerras do século passado. Depois
da 2ª Guerra Mundial, a humanidade passou a compreender melhor o valor da dignidade
humana, inscrevendo-a nos documentos jurídicos internacionais. A Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1948, reconhece que os seres humanos são
dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade.
O Direito confere personalidade jurídica própria à reunião de pessoas
para a realização de objetivos comuns. As formas legais adotadas são as associações,
fundações ou sociedades, cada uma delas com características específicas. A sociedade
objetiva a exploração de atividade econômica ao passo que as associações e fundações
são os modelos legais associativos utilizados para finalidades sociais relevantes,
inclusive para ajudar o próximo.
O
campo
de
atuação
das
entidades
civis
que
servem
desinteressadamente à sociedade na promoção dos direitos sociais deve ser verificado
no plano normativo de cada país. Ora se concede maior liberdade e estímulo à sociedade
1
Mateus 22:39.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª
edição. Curitiba: Editora Positivo, 2004.
2
14
civil para desempenhar serviços sociais, ora o Estado assume com mais intensidade esse
papel. É a Constituição que delimita como, quando, com qual intensidade e em que
setor a sociedade civil organizada pode atuar na prestação de atividades sociais
relacionadas às necessidades coletivas consideradas relevantes.
No Brasil, as atividades filantrópicas iniciaram-se por obra da Igreja
Católica, religião dos colonizadores portugueses. A Santa Casa de Misericórdia de
Santos – SP, a pioneira do país, foi fundada em 1534 e teve seu primeiro hospital
construído pelo português Brás Cubas, com a ajuda de moradores locais. Em 1551, o
hospital, denominado então de Hospital de Todos os Santos, recebeu de Dom João VI o
título denominado “alvará real de privilégios”. 3
Do descobrimento até a outorga da primeira constituição brasileira, o
país foi regido pelas ordenações portuguesas, inteiramente a mercê dos interesses de
Portugal. A vida da sociedade brasileira girava em torno das grandes lavouras
açucareiras e a presença do Poder Público na área social era pontual, limitando-se ao
amparo dos mais carentes em situações emergenciais. Importadas de Portugal, as Casas
de Misericórdias desenvolviam “iniciativas caritativas e cristãs, que tratavam a questão
social como de resolução da sociedade, mediante a criação de asilos, educandários e
corporações profissionais”.4 A Igreja Católica, religião oficial e próxima ao governo
civil, assumiu papel destacado nas ações sociais, muitas vezes confundindo-se com o
próprio Estado.
A análise das constituições brasileiras, em cotejo com o momento
histórico de cada uma delas, demonstra a evolução gradativa da participação da
sociedade brasileira na prestação de serviços sociais. A dependência externa e a
influência europeia se mantiveram com mais intensidade no período histórico em que
vigorou as duas primeiras cartas constitucionais. Aos poucos, porém, o país foi fazendo
sua própria história e suas peculiaridades foram se refletindo nos textos jurídicos
fundamentais.
A Constituição imperial de 1824 adotou oficialmente a religião
católica apostólica romana e não previu expressamente o direito fundamental de
associação. Contudo, estabeleceu que nenhum gênero de trabalho, cultura, indústria ou
comércio fosse proibido, desde que não se opusesse aos costumes públicos, segurança e
3
O
registro
histórico
pode
ser
acessado
no
site
da
própria
entidade.
<http://www.scms.org.br/noticia.asp?codigo=42&COD_MENU=24 >. Acesso em: 21 jun 2011.
4
CABRAL, Heloísa Helena de Souza. Terceiro Setor: gestão e controle social. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 56.
15
saúde dos cidadãos. Previu os direitos aos “socorros públicos”, instrução primária e
gratuita a todos os cidadãos e a instituição de colégios e universidades.5 Durante o
Império, em 1880, foi criada a caixa de previdência dos trabalhadores das ferrovias.
A Constituição da República de 1891 consagrou o Estado laico,
proibiu o repasse de subvenções às entidades religiosas e determinou que o ensino
ministrado nos estabelecimentos públicos fosse leigo. Estabeleceu, expressamente, o
direito de livre associação. 6
Essas duas primeiras cartas, de clara inspiração no modelo de Estado
Liberal, praticamente não previram a intervenção estatal na ordem social e, por outro
lado, sequer mencionaram a existência de entidades civis com atuação social.
O panorama
normativo
modificou-se
completamente com
a
promulgação da Carta de 1934, que estabeleceu diversos direitos sociais e inovou
substancialmente no cenário jurídico nacional. Pela primeira vez, uma constituição
brasileira tratou da assistência social, ao prever a competência legislativa da União
editar normas fundamentais sobre o tema. O cuidado da saúde e da assistência pública
foi previsto como competência concorrente da União e dos Estados. Previu-se a
obrigação do Poder Público amparar, na forma da lei, os indigentes. Houve um título
específico da ordem econômica e social, que estabeleceu liberdade de iniciativa, direitos
dos trabalhadores e direitos previdenciários, bem como regras para concessão e
delegação de serviços públicos. Tratou-se do amparo à maternidade e à infância em todo
o território nacional, destinando-se um por cento dos tributos da União, Estados e
Municípios para tal fim. 7
A Carta de 1934 estabeleceu a educação como dever de todos,
incumbência da família e dos Poderes Públicos e positivou normas com o escopo de
alavancar o desenvolvimento do sistema educacional brasileiro. Nesse sentido,
determinou que a União e os Municípios nunca aplicassem menos de dez por cento, e os
Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos
impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos respectivos sistemas educativos.
Permitiu-se o ensino também em estabelecimentos particulares, que seriam
reconhecidos pelo Estado desde que assegurassem a seus professores estabilidade e
remuneração condigna.
Previu-se a possibilidade da União conceder subvenções ao sistema de
5
Artigos 5º e 179, XXXI, XXXII e XXXIII.
Artigo 72, §§ 6º, 7º e 8º.
7
Artigo 5º, XIX, “c”, artigo 10, II e artigo 113, inciso 34.
6
16
ensino e os estabelecimentos particulares de educação, gratuita primária ou profissional,
oficialmente considerados idôneos, foram imunizados do pagamento de qualquer
tributo.
Ou seja: a Carta de 1934 conclamou a iniciativa privada a participar
do sistema educacional, incentivando-a por meio da concessão de benefícios fiscais.8 O
constituinte objetivou, dessa forma, criar sistemas públicos destinados a formar elites
acadêmicas.
A realidade, porém, demonstrou que a saúde, a assistência e a
seguridade social estruturaram-se sob critérios que recusavam qualquer universalidade.
Diferentemente do desenvolvimento europeu, que atingiu a noção básica de Estado
Providência, o Brasil somente reagiu às pressões corporativas e criou benefícios
previdenciários para seletas categorias profissionais. Os benefícios – recolhidos, não
desembolsados – geraram serviços como habitação e colônia de férias. 9
A Lei 91, promulgada em 1935, criou o título de “utilidade pública”,
concedido pelo Poder Executivo para as entidades constituídas com o fim exclusivo de
servirem desinteressadamente a coletividade. Era o início do reconhecimento estatal
formal das entidades privadas do Terceiro Setor.
A Constituição de 1934 logo foi substituída pela Carta Polaca de 1937,
outorgada no Estado Novo de Getúlio Vargas, texto que previu a competência da União
para legislar sobre normas fundamentais de proteção à saúde e manteve a possibilidade
de prestação de atividades educacionais pela iniciativa privada, ao lado do Estado. Mais
uma vez, previu-se, expressamente, o oferecimento de subsídio estatal para as
associações civis de fins educativos. No plano geral, contudo, a proteção assistencial do
Estado diminuiu em comparação com a Carta de 1934, ao passo em que se ampliou a
intervenção estatal na exploração de atividades econômicas por meio de empresas
públicas e sociedades de economia mista.
Em 1938, foi criado o Conselho Nacional de Serviço Social, órgão
estruturado para repassar subsídios governamentais às instituições sociais. O sistema de
proteção social estatal era voltado, porém, para o trabalho formal – o informal
continuava a cargo da filantropia da Igreja católica, que recebia indiretamente
financiamento oficial, por meio de instituições por ela controladas. 10
8
Na ordem em que aparecem no texto: artigo 156, artigo 150, parágrafo único, “d” e “f”, artigo 150,
“e” artigo 154.
9
CABRAL, Heloisa Elena de Souza. Terceiro Setor: gestão e controle social. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 58.
10
CABRAL, Heloisa Elena de Souza. Terceiro Setor: gestão e controle social. São Paulo: Saraiva,
17
A Constituição de 1946 estabeleceu a imunidade tributária dos
impostos sobre instituições de educação e de assistência social, desde que as rendas
dessas entidades fossem aplicadas integralmente no país para os respectivos fins. A
Carta manteve a liberdade de iniciativa no campo educacional e estabeleceu percentuais
mínimos para a manutenção e desenvolvimento do ensino, calculados sobre a renda
resultante dos impostos: ao menos dez por cento pela União e pelos menos vinte e cinco
por cento pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. 11
Durante os anos da ditadura, o Brasil foi regido por duas cartas
constitucionais. Pela primeira vez, a Constituição de 1967 previu imunidade tributária
especificamente em relação aos impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, para as
instituições de educação ou assistência social. Manteve-se o ensino livre à iniciativa
privada, atendidos os requisitos legais.12 A Emenda Constitucional 1/69 repetiu esses
dispositivos e determinou aos Municípios que destinassem 6% dos recursos recebidos
da União para programas de saúde. 13
A modernização tecnológica iniciada nos anos 1970 com o emprego
dos recursos humanos da escola pública desenvolvida na era Vargas consolidou o
sistema capitalista no país. O período, conhecido como “milagre econômico brasileiro”,
registra que a posição do Brasil no ranking mundial das maiores economias passou do
50º lugar, no início dos anos 60, para o 8º lugar, no final da década de 70. A
incapacidade estatal de satisfazer as demandas sociais geradas por esse exponencial
desenvolvimento motivou o início dos movimentos sociais reivindicatórios e o
surgimento das primeiras organizações não governamentais.14 O Estado lidou com esses
novos desafios com políticas sociais paliativas e atendimento emergencial da miséria. 15
A Constituição de 1988 rompeu completamente com o discurso estatal
que vinha das cartas da ditadura ao conclamar a sociedade a participar ativamente da
vida democrática do país. Não é a toa, portanto, que é chamada de “constituição
cidadã”. O foco da carta é a promoção do cidadão, não as prerrogativas do Estado.
A Carta de 1988 inseriu a universalidade do atendimento à saúde e
criou o Sistema Único de Saúde – SUS. O direito à saúde deve ser garantido por
políticas sociais e econômicas com o objetivo de reduzir o risco de doenças e outros
2007, p. 59.
11
Artigo 31, V, “b”.
12
Artigo 20, III, “c” e artigo 168, §2º.
13
Artigo 25, §4º, com a redação determinada pela Emenda Constitucional n o 27/85.
14
Os Centros de Educação Popular, organizações não governamentais criadas para assessorar
movimentos populares inspirados nos ideários de Paulo Freire, surgiram na década de 60.
15
CABRAL, Heloisa Elena de Souza. Op. cit., p. 60.
18
agravos e pelo acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação (artigo 196). Faculta-se a participação complementar das
instituições privadas no sistema único de saúde (artigo 199).
Mas isso não quer dizer que o constituinte entregou à sociedade a
difícil missão de implementar os direitos sociais, alijando o Estado da promoção de tal
desiderato. Muito pelo contrário: é justamente para o pleno desenvolvimento do cidadão
e a realização da tão almejada justiça social que a prestação dos direitos sociais
incumbe, em primeiro lugar, ao Estado. Somente com o protagonismo estatal nessa
seara é que a realidade social do país será substancialmente modificada e o cidadão terá
condições de se desenvolver e atuar conscientemente na sociedade.
Não há como ignorar os fatos: o Brasil é um país pobre onde reina a
desigualdade social. Diminuir o Estado na luta contra essa triste realidade – em uma
nação capitalista, subdesenvolvida e absurdamente desigual – apenas aumentaria ainda
mais o enorme fosso entre os mais ricos e os mais pobres. A construção equilibrada da
sociedade brasileira depende, necessariamente, da indispensável atuação estatal na
promoção dos direitos sociais.
Essa breve análise dos textos constitucionais brasileiros é importante
para destacar duas questões.
A primeira: o relacionamento entre a sociedade civil e o Estado variou
muito ao longo da história nacional, de acordo com a conjuntura política e a realidade
histórica, o que se refletiu nos textos constitucionais. De uma maneira geral, nas cartas
promulgadas de 1934 e 1946 percebe-se maior abertura para a participação da sociedade
na vida social e foco mais intenso nos direitos sociais. Nas cartas outorgadas de 1937,
1967 e 1969 há maior presença estatal. Contudo, ao longo do tempo, observa-se uma
tendência de ampliação da participação da sociedade civil no campo educacional e o
incremento da atividade administrativa de fomento, cujo ápice está consagrado na Carta
de 1988.
A segunda: o marco jurídico para análise do relacionamento entre a
sociedade civil e o Estado na promoção dos direitos sociais é a Constituição, não a
legislação ordinária. É com base na Carta de 1988 que devem ser extraídos os limites de
atuação das entidades civis na promoção desses direitos e o papel do Estado.16 Por isso,
16
Nesse sentido, o professor Clovis Beznos critica a denominação “marco legal” do Terceiro Setor.
Segundo o renomado professor, o ponto de partida para a análise dessa questão é a Constituição, não a
legislação ordinária, razão pela qual a denominação “marco legal” seria equivocada. Palestra proferida
pelo professor Clovis Beznos no X Congresso Goiano de Direito Administrativo, em 16.06.2011, sobre o
tema “OS e OSCIP: virtudes e defeitos dos marcos regulatórios”.
19
as recentes legislações sobre a qualificação de entidades civis como Organizações
Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público devem ser interpretadas
e aplicadas respeitando-se a Constituição Federal.
Feitas essa observações, passa-se a examinar o campo de atuação das
entidades civis sem fins lucrativos, integrantes do denominado Terceiro Setor, à luz da
Constituição Federal de 1988.
2. Análise do Terceiro Setor à luz da CF/88
Para Boaventura de Souza Santos, o Terceiro Setor é formado pelo
“conjunto de organizações sociais que não são nem estatais nem mercantis, ou seja,
organizações sociais que, por um lado, sendo privadas, não visam a fins lucrativos, e,
por outro lado, sendo animadas por objetivos sociais, públicos ou coletivos, não são
estatais”. 17
A definição do que é o Terceiro Setor e de quais entidades o integram
não encontra consenso na doutrina. Há diferenças claras entre os denominados Primeiro
Setor (o Estado, prestador de serviços públicos) e Segundo Setor (o Mercado, que
comercializa produtos e serviços) – mas quanto ao que exatamente configura o Terceiro
Setor ainda há muitos entendimentos dissonantes. Na verdade, essa expressão começou
a ser utilizada no campo das ciências sociais e acabou consagrada pelo uso na
linguagem jurídica.
De forma ampla, o Terceiro Setor engloba as entidades que não
integram o Estado nem o Mercado. Sob essa nomenclatura são identificadas as
entidades beneficentes, entidades de interesse social, entidades de utilidade pública,
entidades filantrópicas, organizações não-governamentais (ONG), Organizações Sociais
(OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
O que importa é verificar se, de acordo com a Constituição Federal de
1988, há espaço para se falar em um regime jurídico específico que regula a atuação das
entidades civis sem fins lucrativos que busquem finalidades sociais relevantes. Para
tanto, o ponto de partida é a análise textual da Constituição.
17 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma reinvenção solidária e participativa do estado. In:
PEREIRA; In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; WILHEIM, J.; SOLA, L. (Org.). Sociedade e Estado em
transformação. São Paulo: UNESP; Brasília: ENAP, 1999.
20
A Constituição Federal de 1988 prevê dois campos bem definidos:
serviços públicos e atividades econômicas. Tanto o Estado quanto os particulares,
porém, atuam nesses campos, não havendo exclusividade de um ou de outro.
Os serviços públicos são atividades previstas na Constituição de
titularidade do Estado, podendo ser definidos como “toda atividade de oferecimento de
utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas
fruível singularmente pelos administrados”.18 Os serviços de saúde, educação,
previdência e assistência social, quando prestados pelo Estado, são considerados
serviços públicos sociais (infra, I-5).
Os particulares também prestam serviços públicos, por meio de
concessão ou permissão.19 De qualquer forma, a titularidade da atividade qualificada
como serviço público é sempre do Estado, mesmo quando prestada por empresas
concessionárias ou permissionárias.
O Estado também exerce atividades econômicas, mas somente quando
estas forem necessárias aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo, conforme definidos em lei, nos termos do artigo 173 da Constituição Federal.
O texto constitucional também definiu os monopólios estatais de petróleo, gás, minérios
e minerais nucleares, nos termos do artigo 177, I a V.
Por outro lado, as atividades desempenhadas pelos particulares no
regime de livre iniciativa compreendem todas as atividades econômicas, com exceção
dos referidos monopólios e dos serviços públicos.
Assim, a iniciativa privada desempenha atividades econômicas nos
seguintes campos de atuação, cada um com regras constitucionais próprias:
comercialização de produtos e prestação de serviços no mercado (artigo 170); prestação
de serviços de relevância pública – tais como saúde, educação (artigos 199 e 209) – com
objetivo de lucro; e prestação de serviços de relevância pública – tais como saúde,
18
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 687. O conceito de serviço público e seu regime jurídico são estudados de forma mais
aprofundada no Capítulo IV deste trabalho.
19
No caso dos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição, não se previu a hipótese de “autorização
para prestação de serviço público”. A prestação indireta de serviços públicos só pode ocorrer por
concessão ou permissão, nos termos do artigo 175. A única interpretação possível e razoável desses
dispositivos constitucionais é que a autorização mencionada seja o instituto adequado para o desempenho
de atividade do próprio interesse do interessado. Nesse sentido: CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Manual de direito administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Cite-se o exemplo de
autorização mencionado por Ricardo Marcondes Martins: “telecomunicação entre departamentos da
mesma empresa não configura serviço público, mas atividade econômica condicionada à autorização
administrativa”. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. Tese de doutoramento
apresentada à PUC – SP, p. 180.
21
educação e assistência social (artigos 199, §1º, 213 e 204, I) – por entidades sem
finalidades lucrativas.
Essa delimitação deve ficar clara porque o denominado Terceiro
Setor, composto por pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, atua no
espaço consagrado na Constituição para a esfera da livre iniciativa, na prestação de
serviços de relevância pública.
A normatividade constitucional específica dos serviços de relevância
pública prestados por entidades sem fins lucrativos demonstra que não há somente um
espaço constitucional próprio, mas também estímulo claro ao associativismo e
conclamação dessas entidades, por meio da atividade administrativa de fomento, a
perseguirem finalidades sociais relevantes que são também buscadas pelo Estado.
O direito de associação para fins lícitos é assegurado como garantia
fundamental (artigo 5º, XVII) e a criação de associações, na forma da lei, independe de
autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento (artigo 5º,
XXI). Essas entidades, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para
representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente (artigo 5º, XXI). Além disso, o
associativismo deverá ser apoiado e estimulado por lei (artigo 174, §2º, CF/88). 20
O texto constitucional estimula a exploração dos serviços de
relevância pública pelas entidades sem fins lucrativos. 21
Há concessão de imunidades tributárias: vedação de instituição de
impostos sobre patrimônio, renda ou serviços das instituições de educação e de
assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei – artigo 150, VI,
“c”; e imunidade de contribuição para a seguridade social das entidades beneficentes de
assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei – artigo 195, § 7º. Há
também expressa preferência para as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos
participarem, de forma complementar, do sistema único de saúde (artigo 199, §1º).
20
O legislador, atento ao comando constitucional, consagrou a legitimidade processual das
associações, na forma da lei, para exercer a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das
vítimas (artigo 82, IV, da Lei 8.078/90) e para a proteção do meio ambiente, consumidor, ordem
econômica, livre concorrência ou patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (artigo
5º, V, da Lei 7.347/85, na redação da Lei 11.448/07).
21
Já a legislação infraconstitucional prevê isenções tributárias a entidades sem fins lucrativos, como,
por exemplo: isenção de contribuições para a previdência social (Lei 12.101/09); isenção em relação ao
imposto de renda e à contribuição social sobre o lucro líquido das instituições de caráter filantrópico,
recreativo cultural e científico e associações civis sem fins lucrativos (artigo 15 da Lei 9.532/97); e
isenção, relativa ao imposto de importação e ao imposto sobre produtos industrializados, destinada às
instituições de educação e de assistência social (artigo 2º, I, “b”, da Lei 8.032/90 e artigo 1º, IV da Lei
8.402/92).
22
Além disso, a Constituição permite a destinação de auxílios e
subvenções às instituições privadas sem fins lucrativos com atuação na área da saúde,
de acordo com a interpretação a contrario sensu do artigo 199, § 2º.
No campo educacional, os recursos públicos podem ser destinados a
escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas (artigo 213) e às atividades
universitárias de pesquisa e extensão (artigo 213, §2º).
O texto constitucional prevê ainda o incentivo e apoio estatal de
iniciativas privadas nos campos da cultura (artigo 215) e determina que a proteção do
patrimônio cultural brasileiro seja promovida com a colaboração da comunidade (artigo
216, §1º). No campo da ciência e tecnologia, a lei apoiará e estimulará as empresas que
invistam em pesquisa e criação de tecnologia adequada ao país (artigo 218, §4º). É
admitida a participação de entidades não governamentais em programas de assistência
integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem (artigo 227, §1º).
No plano legal, as entidades do Terceiro Setor constituem-se sob a
forma de associações organizadas para fins não econômicos (artigo 53 do Código Civil)
e de fundações constituídas para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência
(artigo 62 do Código Civil).
Logo, há um campo bem demarcado constitucionalmente para atuação
das entidades civis, sem fins lucrativos, que persigam finalidades socialmente
relevantes. Essas entidades civis não buscam lucro, e, por outro lado, não prestam
serviços públicos (pois não são entes ou órgãos públicos). Por isso, é possível enquadrálas, com base na Constituição de 1988, em um regime jurídico diferenciado,
precipuamente privado, mas que sofre ingerência de normas de Direito Público devido à
atuação de tais entes, em colaboração com o Poder Público, na prestação de serviços
sociais relevantes.
Não há como negar essa realidade ou realizar outra interpretação da
Constituição de 1988. Ora, a cidadania e os valores da livre iniciativa são fundamentos
da República Federativa do Brasil (artigo 1º, II e IV). A atuação das entidades sem fins
lucrativos, nos espaços demarcados constitucionalmente, é legítima e encontra pleno
respaldo na moldura jurídica estabelecida pela Carta de 1988.
Esse espaço não equivale ao regime jurídico próprio dos serviços
públicos (normas de Direito Público) e também não se confunde inteiramente com o
regime jurídico das atividades privadas de exploração econômica (normas de Direito
Privado).
23
Com efeito, há uma razão importante para o uso da denominação
Terceiro Setor: identificar o regime jurídico especial das entidades que o compõem, que
não se confunde com o regime jurídico dos serviços públicos prestados pelo Primeiro
Setor, nem com o das principais atividades de exploração econômica com intuito de
lucro das pessoas jurídicas que atuam no Segundo Setor.
A análise da Constituição permite identificar o regime jurídico próprio
das entidades sem fins lucrativos que prestam serviços de relevância pública em
colaboração com o Estado, o que basta para justificar a utilização da expressão
“Terceiro Setor”, já consagrada pela doutrina majoritária. Ainda assim, vê-se que as
atividades desenvolvidas pelo Terceiro Setor, embora não almejem lucro, estão
inseridas no campo do setor econômico lato sensu, ou seja, no espaço tradicionalmente
relacionado ao Segundo Setor. Reconhece-se, porém, que a expressão Terceiro Setor
gera certa confusão e está ainda longe de atingir a desejada estabilidade e univocidade
conceitual, recebendo muitas críticas de parte da doutrina. 22
Os traços constitucionais das entidades que integram o Terceiro Setor
são os seguintes: pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, prestação
complementar de serviços de relevância pública (tais como, saúde, educação e
assistência social) e apoio estatal por meio da atividade administrativa de fomento.
A partir da leitura constitucional, é possível extrair o seguinte
significado da expressão Terceiro Setor: conjunto de pessoas jurídicas de direito privado
sem fins lucrativos, beneficiadas pela atividade administrativa de fomento, que prestam
serviços de relevância pública.23 É neste sentido que a expressão Terceiro Setor é
utilizada tem todo este trabalho.
Há autores que entendem que as entidades sem fins lucrativos e com
objetivos sociais que não possuam qualquer relação com o Estado (noção ampla) e
também as que não persigam uma finalidade pública, mas benefícios mútuos, como, por
22
Por todos, vide: Tarso Cabral Violin, Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública:
uma análise crítica. 2ª ed. rev. ampl., p. 133/137. O autor prefere falar simplesmente em sociedade civil
organizada e relembra que a Constituição não cita, em momento algum, a expressão “Terceiro Setor”.
23
Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina que o Terceiro Setor “caracteriza-se por prestar atividade de
interesse público, por iniciativa privada, sem fins lucrativos; precisamente pelo interesse público da
atividade, recebe proteção e, em muitos casos, ajuda por parte do Estado, dentro da atividade de fomento;
para receber essa ajuda, tem que atender a determinados requisitos impostos por lei que variam de um
caso para outro; uma vez preenchidos os requisitos, a entidade recebe um título, como o de utilidade
pública, o certificado de fins filantrópicos, a qualificação de organização social. Esse tipo de entidade
existe desde longa data, mas agora está adquirindo feição nova, especialmente com a promulgação da Lei
no 9.790, de 22-3-99, que dispõe sobre as organizações da sociedade civil de interesse público.
Normalmente, celebram convênio com o poder público, para formalizar a parceria.” Direito
administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 502.
24
exemplo, os clubes desportivos e as associações recreativas (noção amplíssima),
também integrariam o conceito de Terceiro Setor. 24
Contudo, a utilização dessas noções mais alargadas não agregaria
nenhuma utilidade ao conceito e apenas causaria maior confusão ao uso corrente da
expressão. Por exemplo, uma entidade civil de benefício mútuo que não desempenhe
atividade de relevante interesse social não deve ser enquadrada no conceito aqui
apresentado. Não há, nesse caso, regime jurídico diferenciado, mas plena aplicação das
normas de direito privado, campo próprio da autonomia privada, no âmbito do
denominado Segundo Setor. Incluir esse exemplo no conceito de Terceiro Setor não
faria sentido, pois a situação é regida pelo direito privado (Segundo Setor) e se afasta
completamente do tratamento constitucional diferenciado dedicado ao tema, que
privilegia as entidades que buscam finalidades sociais. 25
A Constituição Federal de 1988 identifica expressamente as seguintes
entidades sem fins lucrativos: associações (art. 5°, XVIII e XIX); cooperativas (artigo
5º, XVIII)26; fundações privadas (art. 150, VI, c); sindicatos (art. 8° e art. 150, VI, c);
partidos políticos (art. 17 e art. 150, VI, c); cultos religiosos e igrejas (art. 19, I, e art.
150, VI, b); e serviços sociais autônomos (art. 240 e art. 62 do ADCT).
Os sindicatos e as cooperativas são entidades de benefício mútuo que
apenas indiretamente perseguem finalidades sociais. Não são passíveis de qualificação
como organizações da sociedade civil de interesse público (artigo 2º, II, IV e X da Lei
9.790/99). Possuem natureza endógena, ou seja, dedicam suas ações em benefício dos
seus próprios membros. Por isso, não se incluem no conceito de Terceiro Setor.
Os partidos políticos tem regramento constitucional próprio. Devido
ao pluralismo político consagrado na Constituição (artigo 1º, V), o relacionamento deles
com o Estado possui características legais específicas, como o acesso aos recursos do
fundo partidário (artigo 17, §3º da Constituição), que não se confunde com a atividade
24
Para José Eduardo Sabo Paes, o Terceiro Setor é o “conjunto de organismos, organizações ou
instituições sem fins lucrativos dotados de autonomia e administração própria que apresentam como
função e objetivo principal atuar voluntariamente junto a sociedade civil visando seu aperfeiçoamento”
Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos, administrativos, contábeis e tributários, 7ª
edição, p. 134.
25
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, um conceito é a “operação lógica pela qual se
fixam pontos de referência convencionais, que servem como indicadores de realidades parificadas pelos
pontos de afinidade previamente selecionados por quem o formulou. Em suma: o conceito é uma
delimitação de objetos de pensamento sintetizados sob um signo breve adotado para nomeá-los (uma
palavra)”. Curso de direito Administrativo, 29ª ed., p. 382.
26
Artigo 3º da Lei 5.764/71: celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que
reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade
econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.
25
administrativa de fomento. Por isso, não integram o conceito de Terceiro Setor aqui
exposto. A Lei 9.790/99 proíbe a qualificação dos partidos políticos como OSCIP
(artigo 2º, IV).
Os cultos religiosos e igrejas, não obstante pratiquem atividades de
inegável relevância pública, possuem tratamento constitucional diferenciado, decorrente
do caráter laico da República Federativa do Brasil. É expressamente vedado à União,
Estados, Distrito Federal e Municípios a concessão de subvenções ou o estabelecimento
de relações de dependência ou de aliança com tais entidades. A Constituição Federal
previu o regime específico da colaboração de interesse público para o estabelecimento
de parcerias entre o Estado e as igrejas e cultos, a ser definido na forma da lei (artigo 19,
I). Registre-se que a Lei 9.790/99 veda expressamente a qualificação como OSCIP das
instituições religiosas (artigo 3º, III).
Os serviços sociais autônomos também não se enquadram no conceito
restrito de Terceiro Setor aqui exposto. São entidades paraestatais cuja criação é
autorizada por lei e se revestem da forma das instituições particulares convencionais,
como as associações e fundações. O traço característico que os afasta do regime jurídico
delineado como característico do Terceiro Setor é o recebimento de contribuições
parafiscais, de natureza tributária. Esses recursos são recolhidos compulsoriamente
pelos contribuintes que as diversas leis estabelecem e não se enquadram propriamente
no âmbito da atividade administrativa de fomento.
A Lei 9.790/99, ao traçar o rol das entidades que não podem se
qualificar como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (artigo 3º),
conferiu enquadramento legal adequado ao tratamento constitucional dos espaços de
atuação das entidades do Terceiro Setor. 27
Portanto, das figuras jurídicas mencionadas no texto constitucional,
apenas as associações e fundações civis podem integrar o Terceiro Setor, nos termos da
restrita noção exposta neste trabalho. Nesse universo, porém, circulam diversas
entidades civis sem fins lucrativos que perseguem finalidades sociais relevantes e
recebem algum tipo de fomento estatal. Muitas vezes denominadas de organizações não
27
As Organizações Sociais, apesar de não poderem ser qualificadas como OSCIPs, estão inseridas no
Terceiro Setor, pois se enquadram em todos os requisitos do conceito aqui apresentado. Perceba-se que a
Lei 9.790/99 pretendeu excluir a possibilidade de cumulação do título de OSCIP com outros títulos
(artigo 18), como forma de tentar prestigiar o modelo legal das OSCIPs: por isso, uma OS não pode se
qualificar como OSCIP. Registre-se o posicionamento de Gustavo Henrique Justino de Oliveira, que
defende que as OS não são entidades integrantes do Terceiro Setor. OLIVEIRA, Gustavo Henrique
Justino de. O contrato de gestão na Administração Pública brasileira, 2005. In: VIOLIN, Tarso Cabral.
Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. 2ª ed. rev. ampl. Belo
Horizonte: Forum, 2010, p. 218.
26
governamentais (ONGs), essas pessoas jurídicas podem fazer jus a títulos jurídicos
como os de utilidade pública federal (Lei 91/35), organização social (Lei 9.637/98) e
organização da sociedade civil de interesse público (Lei 9.790/99), ostentarem o
certificado de entidade beneficente de assistência social (Lei 12.101/09) ou o cadastro
nacional de entidade ambientalista (Resolução CONAMA 292/02). As denominadas
“fundações de apoio” também se encaixam no conceito aqui exposto. 28
A ausência de finalidade lucrativa significa que a entidade,
devidamente formalizada, dispõe em seus estatutos sobre a vedação da distribuição de
lucros entre seus membros. Toda renda eventualmente obtida, a qualquer título, deve ser
reinvestida integralmente no desenvolvimento de suas atividades. Isso não quer dizer
que a entidade não possa se remunerar por seus serviços ou ter superávit.29 Aliás,
diversas entidades sem fins lucrativos alcançam resultados financeiros expressivos,
movimentado a economia e impulsionando o desenvolvimento do país.
O significado constitucional dos serviços de relevância pública
prestados pelas entidades do Terceiro Setor, bem como o regime jurídico da atividade
administrativa de fomento, necessitam de uma explicação mais detalhada para a
adequada compreensão do conceito aqui exposto. São os assuntos seguintes.
3. Serviços de relevância pública
A Carta de 1988 usa a expressão serviços de relevância pública em
duas oportunidades.
A primeira delas, quando se refere à legitimidade do Ministério
Público para zelar pelo efetivo respeito dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados na Constituição (artigo 129, II).
28
Contudo, não é possível reconhecer a legalidade das denominadas “entidades de apoio”, forma
descarada de prestação de serviços públicos por entidades privadas que buscam escandalosamente fugir
do regime jurídico de direito público. Normalmente, as entidades de apoio são criadas por iniciativa dos
servidores públicos de determinada entidade estatal, assumindo a forma de associação, cooperativa ou
fundação, atuando comumente em hospitais públicos e universidades públicas. É procedente a crítica de
Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Em suma, o serviço é prestado por servidores públicos, na própria sede
da entidade pública, com equipamentos pertencentes ao patrimônio desta última; só que quem arrecada
toda a receita e a administra é a entidade de apoio. E o faz sob as regras das entidades privadas, sem a
observância das exigências de licitação (nem mesmo os princípios da licitação) e sem a realização de
qualquer tipo de processo seletivo para a contração de empregados. Essa é a grande vantagem dessas
entidades: elas são a roupagem com que se reveste a entidade pública para escapar às normas do regime
jurídico de direito público.” Direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 507. Sobre o
velamento das fundações de apoio das Instituições Federais de Ensino Superior - IFES e das demais
Instituições Científicas e Tecnológicas – ICTs pelo Ministério Público, vide infra V-2.4.
29
Superávit significa a diferença, a maior, entre receitas e despesas ou saldo positivo. FERREIRA,
Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª edição. Curitiba: Editora
Positivo, 2004.
27
A Lei Complementar 75/93, ao disciplinar as atribuições do Ministério
Público da União (MPU), prevê como incumbência do parquet a adoção das medidas
necessárias para garantir o respeito dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados na Constituição Federal (artigo 2º), especificando as seguintes funções
institucionais do MPU (artigo 5º): zelar pelo efetivo respeito dos serviços de relevância
pública e dos meios de comunicação social aos princípios, garantias, condições,
direitos, deveres e vedações previstos na Constituição Federal e na lei, relativos à
comunicação social (inciso IV); e zelar pelo efetivo respeito dos serviços de relevância
pública quanto aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos
serviços de saúde e à educação e aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da
moralidade e da publicidade (inciso V). Diz também que compete ao Ministério Público
da União expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de
relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe
cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis (artigo
6º, XX). Ainda, no artigo 11, estabelece que a defesa dos direitos constitucionais do
cidadão visa à garantia do seu efetivo respeito pelos Poderes Públicos e pelos
prestadores de serviços de relevância pública.
Por sua vez, a Lei 8.625/93 dispõe:
Art. 27. Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados
nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o
respeito:
I - pelos poderes estaduais ou municipais;
II - pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou
indireta;
III - pelos concessionários e permissionários de serviço público estadual ou
municipal;
IV - por entidades que exerçam outra função delegada do Estado ou do
Município ou executem serviço de relevância pública. (grifo nosso)
A legislação ministerial, ao detalhar o comando constitucional do
artigo 129, II, diferencia claramente os serviços públicos dos serviços de relevância
pública. O artigo 27 da Lei 8.625/93 refere-se aos serviços públicos prestados pelo
Estado nos incisos I e II, aos serviços públicos prestados por concessionários e
permissionários no inciso III e aos serviços de relevância pública prestados pela
iniciativa privada no inciso IV.
A segunda referência da CF/88 aos serviços de relevância pública se
dá quando o constituinte permite a execução de ações e serviços de saúde, diretamente,
por pessoa física ou jurídica de direito privado (artigo 197).
28
A Lei 8.080/90 estabelece a atribuição administrativa da União,
Estados, Distrito Federal e Municípios de elaborar normas para regular as atividades de
serviços privados de saúde, tendo em vista a sua relevância pública (artigo 15). A Lei
8.212/91 dispõe que as atividades de saúde são de relevância pública (artigo 2º,
parágrafo único).
Não só as prestações referentes à área da saúde configuram serviços
de relevância pública. O próprio artigo 129, II, indica que há outros serviços de
relevância pública não explicitados na Constituição, tais como previdência social (artigo
202), assistência social (artigo 204, I e II), educação (artigo 209), cultura (artigo 215,
§1º) e pesquisa científica e tecnológica (artigo 218, § 1º). Esses serviços estão inseridos
no campo da atividade econômica própria do setor privado, malgrado devam ser
também prestados diretamente pelo Estado por meio de serviços públicos.
O artigo 129, II, da Constituição diferencia as situações exigindo
efetivo respeito aos direitos constitucionais pelos Poderes Públicos e pelos serviços de
relevância pública, demonstrado que estes últimos não são serviços do ou prestados
pelo Estado.30 Esse dispositivo indica também que há outros serviços de relevância
pública que não somente os de saúde. Tais serviços podem ser definidos pelo legislador,
desde que sejam relevantes para a consecução do interesse público.
No julgamento da ADI 1.923, referente à inconstitucionalidade da Lei
9.637/98, o Ministro Ayres Britto reconheceu essa distinção:
31
(...) b) ao lado deles, serviços públicos de titularidade estatal exclusiva,
colocam-se atividades que são também de senhorio estatal, mas não com
exclusividade. Refiro-me às atividades de saúde pública, educação e ensino,
cultura, previdência social, meio ambiente, ciência e tecnologia, assistência
social, que, titularizadas por toda e qualquer pessoa federada (deveres que
são de cada uma dessas pessoas públicas), também se inscrevem no âmbito
do senhorio e exploração das pessoas privadas. Pelo que se definem como
atividades mistamente públicas e privadas. Importando muito lembrar que, se
prestadas pelo setor público, são atividades públicas de regime jurídico
30
GRAU, Eros Roberto. O conceito de “relevância pública” na Constituição Federal de 1988. Série
Saúde e Direito, n. 1. Brasília: Opas, 1994.
31
No mesmo sentido é a opinião de Paulo Modesto. “Essas atividades de regime jurídico peculiar são
os serviços de relevância pública, referidos expressamente na Constituição Brasileira em duas passagens
(art. 129, II e art. 197), mas cujo regime pode ser extraído de um número significativo de normas. São
atividades sociais em que a atuação do Estado é obrigatória e a atuação do particular ocorre por direito
próprio (assistência à saúde, educação, produção e proteção cultural, desporto, defesa do meio ambiente,
pesquisa científica e tecnológica, entre outros setores). MODESTO, Paulo. Reforma do Estado, Formas
de Prestação de Serviços ao Público e Parcerias Público-Privadas: demarcando as fronteiras dos conceitos
de serviço público, serviços de relevância pública e serviços de exploração econômica para as parcerias
público-privadas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito
Público da Bahia, nº 2, maio-junho-julho, 2005. Disponível em:<http://www.direitodoestado.com.br>.
Acesso em: 20 abr. 2010.
29
igualmente público. Se prestadas pela iniciativa privada, óbvio que são
atividades privadas, porém sob o timbre da relevância pública.
A Constituição empregou a expressão serviços de relevância pública
para designar as atividades prestadas pelos particulares relacionadas aos direitos sociais
previstos no artigo 6º: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer,
segurança, previdência social, maternidade, infância e assistência aos desemparados.
Logo, os serviços sociais consagrados na Constituição – como saúde e
educação – são qualificados como serviços de relevância pública quando prestados pela
iniciativa privada. Não são serviços públicos, pois estes só podem ser assim
qualificados quando fornecidos pelo próprio Estado.32 É a lição de Odete Medauar: 33
A Constituição Federal fixa vínculo orgânico ao dispor, no caput do
art. 175, que incumbe ao poder público a prestação de serviços públicos,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão. Por isso, os chamados
“serviços de utilidade pública”, realizados por particulares e reconhecidos
pela Administração como de “utilidade pública”, não podem ser qualificados
como serviços públicos, em sentido técnico, por faltar o vínculo orgânico
com a Administração, por não incumbirem ao poder público – este apenas
reconhece que tais atividades trazem benefício à população, sobretudo se
forem assistenciais, culturais, educacionais, por exemplo.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro define com precisão serviço social: 34
É o que atende a necessidades coletivas em que a atuação do Estado é
essencial, mas que convivem com a iniciativa privada, tal como ocorre com
os serviços de saúde, educação, previdência, cultura, meio ambiente; são
tratados na Constituição no capítulo da ordem social e objetivam atender aos
direitos sociais do homem, considerados direitos fundamentais pelo artigo 6º
da Constituição.
Com efeito, os serviços sociais admitem duplo regime jurídico: são
serviços públicos quando prestados pelo Estado e atividade econômica lato sensu
qualificada como serviço de relevância pública quando prestados pelos particulares,
ainda que sem finalidade lucrativa.
Serviço de relevância pública, portanto, é a atividade desenvolvida
pela iniciativa privada de prestação de serviços relacionados aos direitos sociais (artigo
6º, da Constituição), submetida a regulamentação, fiscalização e controle do Poder
32
Contudo, Eros Grau, quando ministro do STF, decidiu em sentido contrário, aduzindo que as
atividades de saúde e educação, mesmo quando prestadas por particulares, sempre são serviços públicos.
Cf. ADI 1007, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 31/08/2005, DJ 24-02-2006
PP-00005 EMENT VOL-02222-01 PP-00007.
33
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2009.
34
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 122.
30
Público. Apesar de inserido no campo da atividade econômica lato sensu, o serviço de
relevância pública possui regime jurídico especial ou misto, eis que diferenciado do
regime jurídico que rege a exploração econômica de produtos e serviços no mercado de
consumo.
Serviço público e serviço de relevância pública são conceitos
diferentes, conforme extraído da Constituição Federal e explicitado na legislação
infraconstitucional. O campo de atuação das entidades do Terceiro Setor, demarcado
constitucionalmente, é justamente o da prestação dos serviços de relevância pública.
4. Atividade administrativa de fomento
O Estado colabora com as entidades do Terceiro Setor por meio do
fomento, atividade administrativa definida por Sílvio Luís Ferreira da Rocha35
como a ação da Administração com vista a proteger ou promover as
atividades, estabelecimentos ou riquezas dos particulares que satisfaçam
necessidades públicas ou consideradas de utilidade coletiva, sem o uso da
coação e sem a prestação de serviços públicos, ou, mais concretamente, a
atividade administrativa que se destina a satisfazer indiretamente certas
necessidades consideradas de caráter púbico, protegendo ou promovendo as
atividades dos particulares, sem empregar a coação.
Segundo Luis Jordana de Pozas, o fomento público é a ação da
Administração encaminhada a proteger ou promover as atividades, estabelecimentos ou
riquezas desenvolvidas pelos particulares e que satisfaçam necessidades públicas ou se
estimam de utilidade geral, sem usar da coação nem criar serviços públicos. 36
A atividade administrativa de fomento difere-se do poder de polícia,
na acepção clássica de restringir e condicionar o exercício de direitos individuais em
prol do interesse coletivo, e do serviço público (prestação direta de atividades materiais
pelo Estado).37 No fomento, há apenas estímulo, incentivo, forma de persuadir o
35
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 24.
POZAS, Luis Jordana de. Ensayo de una Teoria del Fomento en el Derecho Administrativo.
Disponível em: http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/2/ REP_048_040.pdf>. Acesso em: 05
nov. 2010>.
37
Segundo Alexy, no modelo de princípios é correto falar em restrições a direitos fundamentais, pois
aquilo que é restringido não são posições definitivas, mas posições prima facie. Para ele, vale a teoria
externa, ou seja, há o direito e sua restrição, ao contrário da teoria interna, pela qual não haveria o direito
e sua restrição, mas apenas uma coisa: o direito com um determinado conteúdo. Nas suas palavras: “O
conceito de restrição a um direito sugere a existência de duas coisas – o direito e sua restrição –, entre as
quais há uma relação de tipo especial, a saber, uma relação de restrição. Se a relação entre direito e
restrição for definida dessa forma, então, há, em primeiro lugar, o direito em si, não restringido, e, em
segundo lugar, aquilo que resta do direito após a ocorrência de uma restrição, o direito restringido. Essa é
36
31
particular a buscar, por si próprio, o interesse público. A atuação do particular
fomentado é exercida de forma voluntária (não há coação) para a satisfação, indireta, do
interesse público.
O fomento pode ser positivo quando pretende convencer o particular a
desempenhar determinada atividade de interesse público ou negativo quando pretende
persuadir o particular a não desenvolver determinada atividade, como as alíquotas mais
elevadas dos impostos que oneram as bebidas alcóolicas. O fomento positivo pode ser
honorífico ou econômico.
O fomento honorífico constitui-se em títulos, condecorações, menções
especiais, por meio dos quais o Poder Público, por razões de interesse público, estimula
o exercício de atividades premiáveis. O estímulo é a nota essencial dessa forma de
fomento.38 Exemplos: condecorações civis e militares e concessão pelo Estado de selos
de qualidade, atestadores de produtos ou empresas. 39
Os meios de fomento econômico classificam-se como reais, fiscais,
creditícios e econômicos em sentido estrito. 40
Os meios reais consistem na cessão do uso de bens públicos aos
particulares, como pode ocorrer, por exemplo, por meio de contrato de gestão celebrado
com as Organizações Sociais (artigo 12 da Lei 9.637/98) e de termo de parceria firmado
com as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (artigo 4º, VII, “d” da Lei
9.790/99).
Os meios fiscais consistem na concessão de imunidades e isenções
tributárias. A Constituição Federal, por exemplo, prevê imunidade tributária às
instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos (em relação aos
impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, artigo 150, VI, “c”) e às entidades
beneficentes de assistência social (em relação à contribuição para a seguridade social,
artigo 195, § 7º).
Os meios creditícios consistem em financiamentos mais atraentes para
determinado setor. É exemplo dessa espécie o Procult – Programa BNDES para o
a concepção que, normalmente de forma crítica, é denominada de teoria externa.” ALEXY, Robert.
Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 276-280.
38
ALCÁZAR, Mariano Baeno. Sobre El concepto de fomento. Disponível em: <
http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2116837>. Acesso em: 24 jun. 2011.
39
Este último exemplo é de Ricardo Marcondes Martins. Regulação administrativa à luz da
Constituição Federal. Tese de doutoramento apresentada à PUC – SP, p. 205.
40
A classificação aqui apresentada foi formulada por Sílvio Luís Ferreira da Rocha. Terceiro setor. 2a
Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 34-38.
32
Desenvolvimento da Economia da Cultura, destinado ao apoio de atividades culturais. 41
Os meios econômicos em sentido estrito consistem no fornecimento
direto de ajuda pecuniária pela concessão de subvenção, auxílio e contribuição. É o
caso, por exemplo, da destinação de recursos públicos a escolas filantrópicas, nos
termos do artigo 213 da Constituição Federal.
O Terceiro Setor pode ser fomentado por subvenções sociais,
destinadas para despesas de custeio operacional, tais como manutenção e operação de
serviços, aluguel, despesas com pessoal e conservação de bens. Podem recebê-las
entidades sem fins lucrativos que prestem serviços essenciais de assistência social,
médica e educacional, sempre que a suplementação de recursos de origem privada
aplicados a esses objetivos revelar-se mais econômica para o Estado, conforme definido
no artigo 16 da Lei 4.320/64. O valor das subvenções, sempre que possível, será
calculado com base em unidades de serviços efetivamente prestados ou postos à
disposição dos interessados obedecidos os padrões mínimos de eficiência previamente
fixados (artigo 17 da Lei 4.320/64).
É importante destacar que os recursos das subvenções sociais devem
ser destinados para a suplementação de recursos de origem privada, nos termos do
artigo 16 da Lei 4.320/64, o que impõe, necessariamente, o investimento conjunto de
recursos privados próprios na atividade fomentada. Trata-se do princípio da repartição
de riscos ou do risco compartido, “o que impede considerar a atividade de fomento
como mero ato de liberalidade administrativa, que exonere o beneficiário de todo o risco
ou da obrigatoriedade de aportar recursos próprios para a atividade fomentada”. 42 Por
isso, segundo Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a correta interpretação desse dispositivo
colocaria fim “à farra de transferência de recursos públicos a entes privados que, sob o
pretexto de serem fomentados, passaram, em flagrante desrespeito aos princípios
constitucionais, a gerir bens, servidores e recursos públicos”. 43
A Lei 4.320/64 prevê também as subvenções econômicas, para
despesas de custeio de empresas com fins lucrativos (artigo 12, §2º, II). Para a
realização de investimentos ou inversões financeiras para o custeio de despesas de
capital (que podem gerar serviços, riquezas, produzir um incremento) de entidades
privadas e públicas, a referida lei prevê ainda os auxílios (derivados diretamente da Lei
41
É o programa do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES para apoio ao
setor
cultural.
<http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Areas_de_Atuacao/Cultura/>.
Acesso em: 14.01.2012.
42
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 33.
43
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. Op. cit. p. 33.
33
de Orçamento) e as contribuições (derivados de lei especial), nos termos do artigo 12,
§6º.
Atualmente, as transferências voluntárias de recursos públicos para o
Terceiro Setor estão regradas nos artigos 30 a 35 da Lei 12.465, de 12 de agosto de
2011, que dispõe sobre as diretrizes para elaboração e execução da Lei Orçamentária de
2012. É importante destacar que a transferência de recursos públicos às entidades do
Terceiro Setor dependerá da justificação pelo órgão concedente de que a entidade
complementa de forma adequada os serviços já prestados diretamente pelo setor
público (artigo 34 da Lei 12.465/11). Ou seja: o legislador, acertadamente, reconhece
que a atividade administrativa de fomento deve ser complementar à ação estatal, não se
prestando a substituir a prestação direta de serviços públicos.
Nesse sentido, Alcázar adverte que a atividade de fomento se
descaracteriza como tal quando, por meio dela, a Administração praticamente chega a
substituir o administrado na prestação da atividade considerada de interesse público. Em
alguns casos, se a participação estatal nas atividades fomentadas for muito elevada, a
Administração estaria, na verdade, despenhando indiretamente os próprios serviços
públicos que procurava apenas fomentar. 44
Em um dos raros trabalhos jurídicos nacionais específicos sobre o
tema, José Vicente Santos de Mendonça apresenta alguns critérios para a atividade
legítima de fomento, em palavras que merecem transcrição: 45
Apenas por uma questão de clareza na exposição, sem pretender, com
isso, adentrar em maiores discussões metodológicas, optamos por dividir os
critérios de concessão em formais e materiais. Os critérios formais dizem
respeito à maneira como se vai decidir. Os critérios materiais são aqueles
relacionados ao conteúdo da decisão. Além dos critérios de concessão, ainda
comentaremos, de modo breve, dois critérios relativos à formulação de
políticas de fomento.
Eis os critérios formais da concessão: (i) transparência e
procedimentalização; (ii) competitividade; (iii) objetividade. Quanto aos
critérios materiais de concessão do fomento público, são eles (a) a nãolucratividade, (b) a eficiência do gasto público e (c) a razão pública. Os
critérios da formulação do fomento aqui comentados são dois: (1) a
submissão ao debate público e (2) a compatibilidade entre os requisitos de
acesso ao fomento e o direito fundamental que se pretende fomentar.
Como atividade administrativa, o fomento deve ser submetido ao
regime jurídico administrativo, ou seja, aos princípios da legalidade, impessoalidade,
44
ALCÁZAR, Mariano Baeno. Sobre El concepto de fomento. Disponível em: <
http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2116837>. Acesso em: 24 jun. 2011.
45
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Uma teoria do fomento público. Disponível em:
<http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=463728>.Acesso em: 24 jun. 2011.
34
moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput, CF/88), bem como aos princípios
da motivação (artigo 93, X, CF/88), da igualdade, da finalidade, da razoabilidade e da
proporcionalidade.
O princípio da motivação – dever de demonstrar os fundamentos de
direito e de fato dos atos praticados e a correlação lógica entre os eventos e as situações
que embasaram a providência administrativa adotada46 – ganha especial relevo no
exercício da atividade administrativa de fomento. É que, por ser ampliativa de direito
dos particulares, muitas vezes a Administração, de forma equivocada, entende que não é
necessário motivar essa atividade. Nada mais equivocado: a motivação é imprescindível
para controle da atividade administrativa de fomento, principalmente para verificar se o
princípio da isonomia foi respeitado pela Administração. Somente assim favoritismos
ilícitos podem ser evitados e devidamente controlados. 47
Além disso, sempre que a Administração não puder conceder
determinado meio de fomento a todos os particulares que se encontrarem na mesma
situação jurídica, impõe-se a realização prévia de processo administrativo competitivo e
objetivo para a seleção dos beneficiários da atividade fomentadora, em respeito aos
princípios da isonomia, impessoalidade e moralidade (infra, III-4.1).
O texto constitucional trata do fomento como uma das formas de
regulação estatal da atividade econômica. Diz o artigo 174 que o Estado, como agente
normativo e regulador da ordem econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento. O termo incentivo refere-se justamente à
atividade administrativa de fomento. A Constituição estabelece em diversos dispositivos
o fomento das atividades de relevância pública prestadas por entidades privadas nas
áreas de saúde, educação, assistência social, cultura e ciência e tecnologia (supra, I-2).
Portanto, a atividade administrativa de fomento do Terceiro Setor constitui legítima
forma de intervenção estatal indireta na ordem social.
Isso não significa, por outro lado, que o Estado possa deixar de atuar
diretamente na ordem social, limitando-se a fomentar o desempenho de serviços sociais
pela iniciativa privada. Com efeito, a forma e a intensidade da atuação estatal na
promoção dos direitos sociais encontram-se perfeitamente delineadas na Constituição
Federal e devem ser rigorosamente seguidas pelo Estado para a construção de uma
46
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 115.
47
MELLO, Rafael Munhoz de. Atividade de fomento e o princípio da isonomia. Revista Eletrônica de
Direito Administrativo Econômico, n. 21. Disponível em: < http://www.direitodoestado.com >. Acesso
em: 24 jun. 2011.
35
sociedade livre, justa e solidária.
5. Direitos sociais e atuação do Estado
É preciso deixar bem claro que a Constituição Federal de 1988,
expressamente, incumbiu o Estado da realização de diversos serviços sociais. Esses
serviços sociais são qualificados como serviços públicos quando prestados pelo Estado,
pois apresentam todos os elementos que os caracterizam: são prestações materiais uti
singuli (elemento material), prestadas pelo Estado (vínculo orgânico com a
Administração, pelo critério subjetivo do artigo 175 da CF/88), sob o regime jurídico de
Direito Público (infra, IV-3).
Lúcia Valle Figueiredo ensina que educação e saúde tanto podem ser
serviços públicos, regidos inteiramente pelo regime de Direito Público, quanto podem
ser serviços privados, que deverão ser autorizados e fiscalizados pelo Estado.48 O fato
dos serviços sociais não serem prestados exclusivamente pelo Estado – a Constituição
também permite que os particulares os explorem por direito próprio (independentemente
de concessão ou permissão) – não afasta as características fundamentais do regime do
serviço público, quando esses serviços são prestados pelo Poder Público.
Apenas para citar alguns exemplos, o texto constitucional prevê como
direitos sociais a educação, a saúde, a previdência social e a assistência aos
desamparados (artigo 6º) e estabelece expressamente deveres estatais nestas áreas:
afirma que a educação é dever do Estado (artigos 205 e 208); declara que a saúde é
dever do Estado e serviço público (artigos 196 e 198); estabelece que a seguridade
social compreende um conjunto integrado de ações de inciativa dos Poderes Públicos
(artigo 194); prevê ações governamentais na área da assistência social (artigo 204); e
diz que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional (artigo 215).
Por quatro vezes a Constituição, expressamente, classifica a saúde
como serviço público: ao tratar da intervenção da União nos Estados e no Distrito
Federal e da intervenção dos Estados e União nos Municípios e Território Federal – em
ambos os casos para assegurar a observância da aplicação do mínimo exigido da receita
na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde
(artigo 34, VII, “e” e 35, III); ao vedar a vinculação de receita de impostos a órgão,
48
64.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
36
fundo ou despesa, ressalvada a destinação de recursos para as ações e serviços públicos
de saúde (artigo 167, IV); e ao estabelecer que as ações e serviços públicos de saúde
integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único (artigo
198). 49
Em relação à saúde, educação, previdência social e assistência social,
Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que: 50
Em princípio, poder-se-ia pensar que o titular exclusivo dos serviços
seria o Estado. Nem sempre, porém, é assim, como já se anotou. Há certos
serviços que serão públicos quando prestados pelo Estado, mas que
concernem a atividades em relação às quais a Constituição não lhe conferiu
exclusividade, pois, conquanto as tenha colocado a seu cargo,
simultaneamente deixou-as liberadas à iniciativa privada.
Por outro lado, a Constituição Federal possibilita a participação, de
forma complementar, de entidades privadas no sistema único de saúde (artigo 199, §1º)
e permite a destinação de recursos públicos às instituições privadas de saúde sem fins
lucrativos (artigo 199, §2º, a contrario sensu). Da mesma forma, permite a destinação
de recursos públicos às escolas comunitárias confessionais e filantrópicas (artigo 213).
Por fim, o texto constitucional estabelece a liberdade de iniciativa nas
áreas da saúde e da educação (artigos 199, caput e 209).
A análise sistemática desses dispositivos constitucionais permite
concluir: há uma gradação constitucional na prestação dos direitos fundamentais sociais
que revela que o Estado é o protagonista dessa árdua tarefa.
Em primeiro lugar, quando o Estado cumpre seu dever constitucional
de prestar diretamente os serviços sociais, estes se qualificam como serviços públicos e
possuem regime jurídico próprio, regrado por normas de Direito Público. Trata-se de
intervenção estatal direta na ordem social, objetivando o bem estar e a justiça sociais
(artigo 193 da Constituição Federal).
Em segundo lugar, o Estado pode fomentar economicamente os
particulares a prestarem à população, sem escopo de lucro, serviços de relevância
púbica. Trata-se de atividade discricionária de conformação pelo legislador e pelo
49
Após analisar todos os dispositivos constitucionais pertinentes aos serviços públicos, Alexandre
Santos de Aragão conclui que a República Federativa do Brasil é, por excelência, um Estado prestacional,
pois possui uma série de obrigações a serem cumpridas para a população. ARAGÃO, Alexandre Santos
de. O conceito de serviços públicos no direito constitucional brasileiro. Revista Eletrônica de Direito
Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 17, fevereiro/março/abril,
2009. Disponível na Internet: <http://www.direitoestado.com.br>. Acesso em: 25 mai. 2011.
50
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Grandes temas de direito administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 284.
37
administrador, não de dever constitucional obrigatório. É por essa via que são
concedidos títulos jurídicos e repassados recursos públicos para as entidades do
Terceiro Setor. Trata-se de intervenção estatal indireta na ordem social, forma de ação
estatal na atividade econômica, campo destinado à iniciativa privada (artigo 174 da
Constituição Federal).
Em terceiro lugar, os particulares exploram os serviços de relevância
pública com escopo de lucro. Trata-se de intervenção privada direta na ordem social,
por direito próprio, no campo da ordem econômica, mas fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, com a finalidade de assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170 da Constituição Federal).
Nos dois últimos casos, independentemente da finalidade lucrativa, o
Estado regula, fiscaliza e controla as atividades desenvolvidas pelos entes civis com
base nas normas constitucionais e diretrizes normativas infraconstitucionais expedidas
para assegurar a prestação adequada dos serviços de relevância pública.
Para cumprir sua missão constitucional de intervenção estatal direta
na ordem social, nas áreas da saúde e educação, há previsão constitucional da aplicação
mínima de recursos públicos. A União deve aplicar pelo menos dezoito por cento e os
Estados, Distrito Federal e Municípios, ao menos vinte e cinco por cento, da receita
resultante de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212). Para
as ações e serviços públicos de saúde, a percentagem mínima deverá ser estabelecida em
lei complementar (artigo 198, §3º). 51
Destacam-se os diferentes meios de fomento do Terceiro Setor
previstos na Constituição.
São meios fiscais de fomento as imunidades tributárias das instituições
de educação e de assistência social, sem fins lucrativos (artigo 150, VI, “c”) e das
entidades beneficentes de assistência social (artigo 195, § 7º). O direito à imunidade,
ainda que condicionado ao preenchimento de requisitos legais, decorre de imposição da
própria Constituição. As entidades possuem direito subjetivo a essa forma de fomento
decorrente da Constituição e a margem discricionária do legislador é mínima, cabendolhe somente estabelecer os requisitos para o gozo da imunidade.
51
Cf. Lei Complementar 142, de 13 de janeiro de 2012, que Regulamenta o § 3o do art. 198 da
Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de
rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das
despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis 8.080, de 19 de
setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências.
38
Já os meios econômicos em sentido estrito de fomento dos serviços de
relevância pública nos campos da saúde e da educação são mencionados no texto
constitucional como uma possibilidade de exercício da atividade administrativa de
fomento, condicionada à manifestação ulterior do Estado em instrumentos negociais.
Tal se dá com o repasse de recursos públicos para serviços de saúde (artigo 199, §1º) e
educação (artigo 213), por meio de convênios. Nesses casos, a atividade administrativa
de fomento não é vinculada, havendo maior discricionariedade legislativa e
administrativa.
Os parâmetros constitucionais para se aferir a relação entre a
intervenção direta do Estado na ordem social, por meio da prestação estatal de serviços
sociais, e a indireta, por meio da atividade administrativa de fomento econômico,
seguem os princípios da subsidiariedade e da complementaridade.
5.1 Princípio da subsidiariedade
A ideia básica do princípio da subsidiariedade é a assunção, pelos
próprios indivíduos ou suas comunidades, das funções e responsabilidades que lhes são
próprias, deixando para as estruturas maiores de poder e mais distantes da realidade
local apenas as questões que não puderem ser solucionadas pelos envolvidos diretos no
problema. O princípio em tela encontra campo de aplicação, por exemplo, nas relações
estabelecidas entre: Estado e atividade de fomento das entidades sem fins lucrativos;
União, Estados e Municípios; Administração Pública direta e indireta; Estado e
sociedade; e Mercosul e países integrantes. 52
De acordo com Sílvio Luís Ferreira da Rocha, os méritos desse
princípio são a valorização da sociedade civil, “elevada a primeiro plano na estrutura
organizacional do Estado”, o estímulo da cidadania ativa para a realização privada dos
52
Em 1931, na Encíclica Quadragesimo anno, escrita pelo Papa Pio XI, a Igreja Católica consagrou o
aludido princípio, nos seguintes termos: “Como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar
com a própria iniciativa e capacidade, para confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma
sociedade maior e mais elevada o que as sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma
injustiça, um grave dano e perturbação social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os
seus membros, não destruí-los nem absorvê-los. Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado das
associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiadamente;
poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o
pode fazer: dirigir, vigiar, surgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se
todos os que governam: quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações,
segundo este princípio da função subsidiária dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade
terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da Nação”. PIO XI. Encíclica Quadragesimo anno,
1931, p.79-80. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em: 20 mai. 2011.
39
interesses gerais e a maior eficiência da ação social, em comparação com a ação estatal,
sob grupos menores de pessoas. 53
É importante destacar que o princípio da subsidiariedade não se aplica
à intervenção direta do Estado na ordem social, vale dizer, à prestação de serviços
públicos sociais pelo Estado. Essa observação foi muito bem colocada por Ricardo
Marcondes Martins, para quem 54
é equivocado supor a aplicação do princípio da subsidiariedade no campo dos
serviços públicos. Trata-se, nesse caso, de uma supina incompreensão do
sistema normativo vigente: o campo dos serviços públicos é próprio do
Estado, são atividades de titularidade dele. O Estado não presta os serviços
públicos porque os particulares não os prestaram a contento, ele os presta
porque o constituinte atribui-lhe a missão de prestá-los. Em rigor, os
particulares só podem prestar serviços públicos se houver outorga estatal. A
subsidiariedade é, pois, conceito incompatível com o conceito de serviço
público; pressupõe que a atividade deva ser prestada prioritariamente por
outrem, o que não é o caso dos serviços públicos, atividades próprias do
Estado, estranhas ao campo privado.
O campo adequado para a aplicação do princípio em tela é o da
intervenção estatal indireta do Estado na ordem social por meio da atividade
administrativa de fomento econômico em sentido estrito. Ou seja: o fomento econômico
em sentido estrito dos serviços de relevância pública prestados pelo Terceiro Setor
somente será legítimo constitucionalmente enquanto as entidades privadas beneficiadas
efetivamente dependerem de auxílio estatal para o desempenho satisfatório de suas
finalidades legais.
Em outros termos: se as entidades privadas sem fins lucrativos
conseguissem se estruturar e se financiar por meios próprios (exclusivamente pelo
trabalho voluntário e doações de pessoas jurídicas privadas, por exemplo), não haveria
necessidade da subvenção estatal das atividades por ela desempenhadas. Quanto mais a
sociedade civil organizada se desenvolver e se aprimorar por meios próprios, menor
será a dependência do fomento estatal e menor a interferência indireta do Estado na
ordem social. Por isso, a atividade de fomento estatal do Terceiro Setor não é
estabelecida constitucionalmente como um dever do Estado, mas como uma
possibilidade discricionária a ser mensurada pelo legislador e pelo administrador ao
estabelecer parcerias com as entidades privadas.
53
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 19.
MARCONDES, Ricardo Martins. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. Tese de
doutoramento apresentada à PUC – SP, p. 212.
54
40
É dizer: o exercício de atividades socialmente relevantes por entidades
sem finalidades lucrativas deve ser realizado, precipuamente, com os recursos próprios
da iniciativa privada. O fomento econômico em sentido estrito dessas atividades
somente se legitima na medida em que os particulares não tiverem condições de, por si
mesmos, prestarem, adequadamente, os serviços de relevância pública.
A correta aplicação do princípio da subsidiariedade ocorre sempre sob
a ótica do fomento econômico em sentido estrito (atividade exercida no campo
econômico) e nunca em relação à prestação direta de serviços públicos sociais, dever
constitucional expressamente estabelecido em diversos artigos da Constituição. Ora,
somente seria possível sustentar interpretação diversa – no sentido da prestação dos
serviços sociais pelo Estado unicamente quando a sociedade não conseguisse prestá-los
adequadamente ou, ainda, como opção política assumida em determinada conjuntura
eleitoral – se fossem revogados os artigos 193 a 230 da Constituição Federal.
5.2 Princípio da complementaridade
O fomento econômico em sentido estrito dos serviços de relevância
pública é atividade administrativa regida também pelo princípio da complementaridade.
Em relação aos serviços de saúde, o princípio é expresso: as instituições privadas
poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde (artigo 199, §1º,
CF/88).
O princípio da complementaridade é explicitado no artigo 24 da Lei
8.080/90, que diz que o Sistema Único de Saúde poderá recorrer aos serviços ofertados
pela iniciativa privada quando suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a
cobertura assistencial à população de uma determinada área. Nesses casos, a
participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou
convênio, observadas as normas de direito público (artigo 24, parágrafo único, Lei
8.080/90).
No julgamento da ADI 1923/DF, o Ministro Ayres Britto reconheceu
a incidência do princípio da complementaridade em relação aos serviços de relevância
pública, em passagem que merece transcrição:
(...) Logo, atividades predispostas a uma protagonização conjunta do Estado e
da sociedade civil, por isso que passíveis de financiamento público e sob a
cláusula da atuação apenas complementar do setor público. Noutro dizer, ali
onde a atividade for de exclusivo senhorio ou titularidade estatal, a presença
do Poder Público é inafastável. Contudo, se essa ou aquela atividade
41
genuinamente estatal for constitutiva: a) de serviço público, o Estado não
apeia jamais da titularidade, mas pode valer-se dos institutos da concessão ou
da permissão para atuar por forma “indireta”; ou seja, atuar por interposta
pessoa jurídica do setor privado, nos termos da lei “e sempre através de
licitação” (art. 175 da CF); b) se constitutiva de “serviço de relevância
pública”, que já se define como atividade mescladamente pública e privada
no seu senhorio ou titularidade, aí a respectiva prestação se dá pela iniciativa
privada, em caráter complementar à ação estatal.
Esse princípio possui outros campos de aplicação no Direito. Em
relação ao serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, deve ser observado o
princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal (artigo 223,
CF/88). Existe o princípio da complementaridade do Tribunal Penal Internacional: a
responsabilidade inicial para a repressão de crimes de interesse internacional cabe aos
tribunais nacionais, com a eventual cooperação internacional; a jurisdição do Tribunal
Penal Internacional não substitui inicialmente a jurisdição nacional, só sendo admitida
nos casos em que o Estado falhe no exercício de sua soberania.55 No Direito Civil, o
parente mais próximo deve ser primeiro chamado para prestar alimentos e, somente se
não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados os parentes
de grau imediato para complementarem a prestação, na proporção de seus recursos
(artigo 1698 do Código Civil).
Com precisão, Alberto Shinji Higa observou que: 56
(...) o Estado, por ter adotado um modelo de Estado Social e de Estado
Democrático de Direito, deve, como regra, assegurar a prestação dos serviços
públicos sociais, tais como saúde, educação, previdência e assistencial social.
Segue-se, então, que a atividade administrativa de fomento nessa área
também somente poderá se efetivar de modo complementar, subsidiário,
mediante o incentivo, a promoção, o auxílio dos particulares que
desenvolvam, ao lado da Administração Pública, atividades consideradas de
interesse público.
Com essas afirmações acerca da natureza complementar da atividade
administrativa de fomento, podemos concluir que o Estado não poderá, a
pretexto de adotá-la como instrumento de intervenção, pretender substituir os
papéis principais reservados, respectivamente, ao Estado e ao particular, nos
âmbitos econômico e social. Vale dizer, no primeiro, o particular como
protagonista e no segundo o ente estatal e, vice-versa, cada qual como ator
secundário naqueles campos.
Tal princípio incide sobre as parcerias estabelecidas pelo Estado
visando à prestação de serviços de relevância pública pelo Terceiro Setor. É dizer:
somente quando a intervenção estatal direta na ordem social for insuficiente para a
55
Parágrafo quarto do preâmbulo do Estatuto de Roma, promulgado no Brasil pelo Decreto 4.388/02.
HIGA, Alberto Shinji. A ADI 1.923-DF e os limites do fomento público ao terceiro setor à luz da
Constituição da República. Disponível em: <http://jus.uol.com.br>.Acesso em: 20 jun. 2011.
56
42
realização dos interesses públicos, o Estado poderá atuar indiretamente na ordem social,
recorrendo aos serviços de relevância pública prestados pela iniciativa privada. Assim,
sem prejuízo dos deveres incumbidos constitucionalmente ao Estado, o particular é
chamado a atuar de forma voluntária e complementar na consecução indireta dos
interesses públicos.
5.3 O Estado como protagonista dos direitos sociais
A análise sistemática da Constituição não deixa qualquer dúvida: a
implementação dos direitos sociais, vinculados diretamente ao princípio da dignidade da
pessoa humana, é sempre protagonizada na seara estatal, seja pela prestação direta dos
serviços públicos sociais, seja pela atividade subsidiária de fomento ou, ainda, seja pelo
intenso controle público dos serviços de relevância pública prestados pelos particulares.
Vale dizer: o Estado é o verdadeiro protagonista da concretização dos
direitos sociais no Brasil. De acordo com a Constituição vigente, não há que se falar em
Estado mínimo: o desenvolvimento dos direitos sociais compete, em primeiro lugar, ao
Estado. Isso é de uma clareza absurda de acordo com a Constituição de 1988.
Sustentar-se a existência de um Estado mínimo na ordem social seria
fazer letra morta da Constituição Federal, diminuir a importância dos direitos sociais
para a realização plena da dignidade da pessoa humana e desprezar o papel do Estado
como protagonista na concretização desses direitos. É nesse diapasão que Tarso Cabral
Violin diz que, admitir-se a existência, no Brasil, de um Estado que intervenha somente
quando a iniciativa privada não é capaz de produzir o bem comum, seria como “fechar
os olhos” às desigualdades sociais existentes. 57
A interpretação entusiasmada de algumas correntes doutrinárias que
defendem que o Estado simplesmente abdique do seu papel primordial de prestador de
serviços sociais e transfira totalmente esse importante encargo às entidades civis do
Terceiro Setor, em nome de uma alegada (mas não comprovada) ampliação da
eficiência, é incompatível com a Constituição Federal. Para Sílvio Luís Ferreira da
Rocha, “a atividade administrativa de fomento, enquanto subsidiária, não desonera a
Administração de atuar, de modo direto, na prestação de serviços, como os de saúde e
os de educação”. 58
57
VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise
crítica. 2ª ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Forum, 2010, p. 70.
58
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p.21.
43
Assim, não há respaldo constitucional para as terceirizações de
serviços públicos sociais, por meio de contratos de gestão celebrados com organizações
sociais, realizadas por alguns administradores que propositalmente menosprezam a
Carta de 1988. 59
Lamentavelmente, é o que vem ocorrendo com a entrega de alguns
hospitais públicos à iniciativa privada. Trata-se de proceder completamente exorbitante
dos limites constitucionais da atividade administrativa de fomento: o imóvel público, os
equipamentos médicos e hospitalares e até os servidores públicos passam a ser
administrados pela entidade privada. O Estado não incentiva o particular a gerir com
mais eficiência determinado hospital privado, ele simplesmente entrega toda a gerência
do serviço de um hospital público para a iniciativa privada, que passa a ser responsável
a partir de então por todas as decisões operacionais fundamentais do serviço público.
Esse modo de atuação é flagrantemente contrário à participação complementar da
iniciativa privada no SUS, na forma preconizada pela Lei 8.078/90. 60
Continuam atuais e pertinentes os argumentos de Wagner Gonçalves,
então Procurador Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, em
parecer elaborado sobre as terceirizações na área da saúde em 1998: 61
Previu o Sistema, de conseguinte, que otimizada e em pleno
funcionamento a capacidade instalada pública de prestação de serviços de
saúde, mas sendo esta, em determinada área, insuficiente, seriam chamados,
para participar, de forma complementar, a iniciativa privada com sua
capacidade instalada, ou seja, com seus médicos, instalações, prédios,
equipamentos, know how, etc. O que está acontecendo, na prática, com a
terceirização dos Serviços de Saúde Pública? Não há aumento da capacidade
instalada, pelo contrário. O Estado transfere suas unidades hospitalares,
prédios, móveis, equipamentos, recursos públicos e muitas vezes pessoal para
a iniciativa privada, que passa a dispor dos mesmos como se seus fossem,
recebendo, em contrapartida, recursos públicos, gerindo-os como se
particulares fossem. Não efetua sequer licitação para compra de material ?
Ora, no âmbito do SUS, quis a Constituição e a Lei 8080/90, que a iniciativa
privada (com ou sem fins lucrativos) ocupasse o papel de simples
coadjuvante do Poder Público. Por isso, só excepcionalmente, quando
patenteada a insuficiência das disponibilidades estatais, admite-se a
59
O principal motivo que impulsiona os administradores a adotarem essa prática ilegal, na verdade, é
a limitação com despesas de pessoal imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Se o serviço for
repassado à Organização Social, a contratação de funcionários, celetistas, será feita pela entidade privada:
assim se “dribla” a limitação legal imposta ao Estado quanto às despesas de pessoal.
60
Veja-se que a Lei 8.080/90 só permite o recurso à iniciativa privada depois de esgotadas as
disponibilidades do Estado, de forma complementar: “Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem
insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único
de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Parágrafo único. A
participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio,
observadas, a respeito, as normas de direito público.”
61
GONÇALVES, Wagner. Parecer sobre Terceirização na Saúde Pública. Disponível em:
<http://www.datasus.gov.br/cns/temas/WAGTERC.htm.> Acesso em: 27 set. 2010.
44
participação de entidades privadas na prestação de serviços de saúde no
âmbito do SUS, e, mesmo assim, somente para, com sua capacidade
instalada, complementar a atividade estatal, nunca para substituí-la
completamente, como vem ocorrendo por intermédio das chamadas
terceirizações.
No mesmo sentido posiciona-se Di Pietro: 62
É importante realçar que a Constituição, no dispositivo citado (art.
199, § 1º), permite a participação de instituições privadas "de forma
complementar", o que afasta a possibilidade de que o contrato tenha por
objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o
particular assuma a gestão de determinado serviço. Não pode, por exemplo, o
Poder Público transferir a uma instituição privada toda a administração e
execução das atividades de saúde prestada por um hospital público ou por
um centro de saúde; o que pode o Poder Público é contratar instituições
privadas para prestar atividades-meio, como limpeza, vigilância,
contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, como
os inerentes aos hemocentros, realização de exames médicos, consultas, etc.;
nesses casos, estará transferindo apenas a execução material de determinadas
atividades ligadas ao serviço de saúde, mas não sua gestão operacional."
(grifou-se)
No trabalho intitulado “Entidades Privadas com Poderes Públicos”, o
autor português Pedro Antônio Pimenta da Costa Gonçalves analisa, no contexto
europeu, o exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas. Três
observações do referido autor se aplicam à realidade brasileira e são dignas de menção
por despertarem maior reflexão quanto ao tema analisado.
Primeira: os atores privados não possuem uma tradição institucional
de servir o interesse público, atuando comumente em busca somente de maiores lucros.
Por isso não se deve negligenciar o risco que existe de serem comprometidos ou
diluídos alguns dos mais fundamentais valores de direito público na realização de
atividades tão importantes como os serviços sociais pela iniciativa privada. 63
De acordo com Pedro Antônio Pimenta da Costa Gonçalves, “a ação
pública, deve, em princípio, ser confiada a entidades que se encontrem exclusivamente a
serviço do interesse público” e que “o risco da intromissão de motivações privadas em
domínios públicos não pode deixar de ser tido como um fator a considerar na necessária
ponderação dos custos e dos benefícios que podem resultar da participação privada na
ação pública”. 64
62
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão,
franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8ª ed. São Paulo: Altas, 2011, p. 228.
63
GONÇALVES, Pedro Antônio Pimenta a Costa. Entidades privadas com poderes públicos.
Coimbra: Almedina, 2008, p. 23.
64
GONÇALVES, Pedro Antônio Pimenta a Costa. Op. cit. p. 1100-1101.
45
No campo da saúde, não é rara a utilização da estrutura pública
repassada às entidades privadas para o atendimento de clientes particulares,
desvirtuando-se a destinação pública dos bens e recursos transferidos ao Terceiro Setor.
Outrossim, são frequentes as notícias divulgadas na imprensa de direcionamento de
licitações em favor determinadas organizações privadas, fraudes e malversação das
verbas públicas repassadas ao Terceiro Setor. Ainda são muito frequentes os casos de
utilização criminosa e ímproba de recursos públicos para o enriquecimento ilícito de
pessoas que deveriam trabalhar para promover relevantes questões sociais e não em prol
de seus próprios e escusos interesses.
Segunda: muitas vezes o Poder Público é refém de interesses privados
organizados e cede ante à pressão sistemática de lobbies realizados nos bastidores,
revelando assim uma crise na imposição de decisões emanadas da autoridade estatal.
Em alguns casos, são os particulares que dão a palavra decisiva sobre o conteúdo de
decisões públicas fundamentais, limitando-se o Estado a ratificar as propostas privadas.
No Brasil, essa situação pode ser percebida no amesquinhado papel
que vem sendo desenvolvido pelas agências reguladoras, algumas vezes mais
preocupadas em defender os interesses das empresas concessionárias do que os direitos
dos usuários dos serviços públicos. 65
Terceira: está havendo um “processo de globalização ideológica do
discurso sobre a bondade da participação privada na governação pública” constatado
pelo aumento das transferências de recursos públicos ao Terceiro Setor e pelo
crescimento das parcerias estatais realizadas com a iniciativa privada. Há motivos
ideológicos e pragmáticos para a “glorificação da eficiência econômica do setor
privado”. 66
O discurso que embasa o incremento da participação da sociedade
civil na condução dos serviços sociais pressupõe a completa ineficiência dos serviços
prestados pelo Estado e a excelência dos serviços prestados pela iniciativa privada. Na
verdade, pretende-se a implantação da ideologia neoliberal que impõe a subordinação
do Estado aos interesses econômicos de um pequeno grupo de empresas. Segundo
65
Conforme demonstrado no estudo realizado por Vicente Faleiros, pesquisador da UNB, disponível
em: <http://www.unb.br/noticias/bcopauta/index2.php?i=130>. Acesso em: 24 jul. 2011. Não se
desconhece, porém, que o próprio Governo Federal teve papel incisivo para minar a atuação das agências.
66
GONÇALVES, Pedro Antônio Pimenta a Costa. Entidades privadas com poderes públicos.
Coimbra: Almedina, 2008, p. 15.
46
Ricardo Marcondes Martins, a implantação do programa neoliberal serviu como fonte
de lucros para as empresas multinacionais e os políticos corruptos. 67
A Lei 9.637/98, ao pretender transferir serviços públicos para
organizações privadas, configura claro exemplo de legislação elaborada com inspiração
nessa ideologia. Em última análise, pretende-se a transferência do poder do Estado,
comprometido com o interesse público, para a iniciativa privada, comprometida com o
interesse particular e, na maioria das vezes, em seu aspecto puramente econômico. A
Constituição Federal, contudo, não acolheu a ideologia neoliberal – o Estado é o
protagonista na promoção dos direitos sociais e se encontra impedido de transferir seus
deveres constitucionais à iniciativa privada.
Por fim, os motivos pragmáticos da busca das entidades privadas
como prestadoras de serviços sociais decorrem da denominada “cultura de empresa”, ou
seja, presume-se que os métodos gerenciais privados e o regime de direito privado são
os únicos que permitem a obtenção de resultados satisfatórios.
Na verdade, não é necessário recorrer-se à iniciativa privada para se
alcançar eficiência na prestação dos serviços públicos. A própria Administração Pública
está vinculada ao princípio da eficiência e deve implementá-lo pelos meios adequados,
respeitando-se a Constituição e o princípio da legalidade. Há vários exemplos de
hospitais e escolas públicas bem administradas em todo o país que usam métodos bem
sucedidos de gestão sem desrespeitar a Constituição e as leis.
É com base no tratamento constitucional adequado do Terceiro Setor
que são analisados os títulos jurídicos concedidos às entidades sem fins lucrativos,
assunto do próximo capítulo.
67
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. Tese de
doutoramento apresentada à PUC – SP, p. 125.
47
Capítulo II – OS TÍTULOS JURÍDICOS DO TERCEIRO
SETOR
1.Os títulos jurídicos. 2.Utilidade pública. 3.Entidade beneficente de assistência
social. 4.Organização Social. 5.Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
1. Os títulos jurídicos
As entidades do Terceiro Setor constituem-se sob a forma de
associações organizadas para fins não econômicos (artigo 53 do Código Civil) e de
fundações constituídas para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência (artigo 62
do Código Civil).
As denominações especiais – como entidade de utilidade pública
federal, organização social e organização da sociedade civil de interesse público – não
traduzem uma forma de pessoa jurídica privada, mas apenas significam que a entidade
ostenta determinado título jurídico. Não há uma espécie típica de entidade privada do
Terceiro Setor. 1
A utilização de títulos jurídicos especiais, segundo Paulo Modesto,
tem a vantagem de diferenciar as entidades qualificadas das que não possuem qualquer
título, padronizar o tratamento normativo daquelas que apresentem características
comuns relevantes e estabelecer um mecanismo próprio de controle por meio da
suspensão e cancelamento do título. Mas também há desvantagens referentes à
certificação indevida (realizada sem critério), padronização excessiva (com exigências
muito genéricas) e insegurança jurídica (decorrente do cumprimento de exigências para
manutenção do título, sujeitando as entidades à possível ocorrência de desvios no
sistema de controle). 2
O maior problema na concessão de títulos ao Terceiro Setor, na
verdade, diz com o excesso de requisitos formais e a ausência de requisitos materiais.
Não se exige comprovação referente à atuação concreta da entidade que pleiteia o título.
Não há, por exemplo, verificação quanto à qualidade dos serviços de relevância pública
prestados ou avaliação quanto a satisfação do cidadão cliente atendido pela entidade.
Para a manutenção do título, não há controle de resultados, somente a
apresentação de documentos. Mesmo a simples análise documental não costuma ser
feita adequadamente, devido ao grande número de entidades tituladas e ao reduzido
1
MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do Terceiro Setor no Brasil. Disponível em:
<http://www.direitodoestado.com.br >. Acesso em: 12 dez. 2010.
2
MODESTO, Paulo. Op. cit.
48
quantitativo de agentes incumbidos da fiscalização. 3
A outorga de títulos especiais ao Terceiro Setor é condição sine qua
non para o estabelecimento do regime jurídico diferenciado para as entidades tituladas.
O Terceiro Setor é regido precipuamente por normas de direito privado, com
derrogações parciais de normas direito público, que variam em razão dos meios de
fomento recebidos.
Uma pequena associação civil de assistência social, que não receba
auxílio estatal e nem ostente qualquer título especial, terá suas relações jurídicas
regradas pelo Código Civil. Por outro lado, uma Organização Social que utilize bens
públicos e receba milhões de reais em subvenções, será regida principalmente por
normas de direito privado, mas sofrerá incidência acentuada do regime jurídico de
direito público.
Eis a principal função dos títulos jurídicos especiais: indicar, de
antemão, a intensidade da atividade de fomento que incidirá sobre a entidade do
Terceiro Setor e a menor ou maior derrogação do regime privado por normas
publicísticas.
São analisados neste capítulo os títulos de utilidade pública federal,
entidade beneficente de assistência social, Organização Social4 e, por último,
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
2. Utilidade pública
O reconhecimento estatal da relevância das atividades sociais
desenvolvidas por entidades privadas não é novo. A Lei 91, de 1935, promulgada por
Getúlio Vargas, criou o título de “utilidade pública”, outorgado atualmente pelo
3
TOURINHO, Rita. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. In: MODESTO,
Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira. 2. ed.rev. ampl. Belo Horizonte: Fórum,
2010, p. 333.
4
No âmbito federal, as Organizações Sociais ainda não foram muito utilizadas, talvez devido à espera
do julgamento da ADI 1930 pelo STF, que decidirá sobre a constitucionalidade ou não da Lei 9.637/98.
Há projeto de lei para modificar a organização administrativa brasileira, elaborada pela comissão de
juristas constituída pela Portaria nº 426, de 6 de dezembro de 2007, do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, composta por Almiro do Couto e Silva, Carlos Ari Sundfeld, Foriano de Azevedo
Marques Neto, Maria Coeli Simões Pires, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Paulo Eduardo Garrido
Modesto e Sergio de Andréa Ferreira. O anteprojeto traz normas gerais sobre a Administração pública
direta e indireta, as entidades paraestatais e as de colaboração. São definidas as entidades de colaboração
como “pessoas jurídicas de direito privado não estatais, sem fins lucrativos, constituídas voluntariamente
por particulares, que desenvolvam atividades de relevância pública, essenciais à coletividade, objeto de
incentivo e fiscalização regular do Poder Público” (artigo 73). MODESTO, Paulo (Coord.). Nova
organização administrativa brasileira, 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 398-444.
49
Ministro da Justiça5, para as entidades constituídas com o fim exclusivo de servirem
desinteressadamente a coletividade. 6
Para a obtenção do título, as entidades devem comprovar que possuem
personalidade
jurídica,
que
estão
em
efetivo
funcionamento,
que
servem
desinteressadamente à coletividade e que os cargos de sua diretoria e conselhos fiscais,
deliberativos ou consultivos, não são remunerados.
Os requisitos são os seguintes: demonstrar normal funcionamento nos
últimos três anos e constituição no País; comprovar, por meio de relatórios trianuais, a
promoção de educação, atividades científicas, culturais, artísticas ou filantrópicas; não
remunerar ou conceder vantagens a diretores, ou associados, que devem possuir folha
corrida e moralidade comprovada; publicar demonstração de superávit ou déficit, se
contemplada com subvenção da União no período anterior (artigo 2º do Decreto
50.517/61, na redação dada pelo Decreto 60.931, de 4.7.1967).
A intenção inicial da lei era apenas de conceder um título honorífico,
já que nenhum benefício do Estado decorreria da qualificação, salvo a garantia do uso
exclusivo, pela associação ou fundação, de emblemas, flâmulas, bandeiras ou distintivos
próprios, devidamente registrados no Ministério da Justiça, bem como a possibilidade
de mencionar o título concedido (artigo 3º). Leis posteriores, contudo, possibilitaram
que as entidades de utilidade pública federal fossem fomentadas pela União.
Atualmente, as entidades portadoras do título de utilidade pública
fazem jus aos seguintes benefícios: receber subvenções, auxílios e contribuições da
União; realizar sorteios para obter recursos adicionais à manutenção ou custeio da
obra social (Lei 5.768/71, art. 4°); requerer a isenção da cota patronal para o INSS, se
observados os outros requisitos para tanto (artigo 55 da Lei 8.212, de 24.07.1999);
receber doações de empresas, dedutíveis do imposto de renda (Lei 9.249/95, art. 13, §
2°, III); 7 receber mercadorias abandonadas, entregues à Fazenda Nacional ou objeto de
pena de perdimento (conforme artigo 2º, I, “b” da Portaria 282, de 9 de junho de 2011,
do Ministério da Fazenda); e receber doações de equipamentos de informática
classificados como ociosos ou recuperáveis (artigo 15, parágrafo único, do Decreto
5
Conforme o Decreto 3.145/2000.
O professor Sílvio Luís Ferreira da Rocha ressalva que o título de utilidade pública federal não
deveria ser concedido às entidades de favorecimento mútuo, as quais não servem desinteressadamente a
coletividade. Contudo, aduz que tal título foi concedido indiscriminadamente, possibilitando a ocorrência
de fraudes. Terceiro setor. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 73.
7
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos,
administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 688689.
6
50
99.658/90, na redação dada pelo Decreto 6.087/07).
O Decreto 60.931/67 prevê três hipóteses ensejadoras de instauração
de processo administrativo para cassação do título da entidade. São elas: deixar de
apresentar, durante três anos consecutivos, relatório circunstanciado dos serviços que
houverem prestado à coletividade no ano anterior, devidamente acompanhado do
demonstrativo da receita e da despesa realizada no período, ainda que não tenham sido
subvencionadas pelo Estado; negar-se a prestar serviço compreendido em seus fins
estatuários; retribuir por qualquer forma os membros de sua diretoria, ou conceder
lucros, bonificações ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou associados (artigo 6º).
Qualquer interessado e o Ministério Público possuem legitimidade
para representar pela cassação do título de utilidade pública, nos termos do artigo 5º da
Lei 91/35.
Os incentivos honoríficos e econômicos decorrentes do título de
utilidade pública federal amoldam-se aos princípios constitucionais da atividade
administrativa de fomento: não se prestam a substituir a ação do Estado na promoção
dos direitos sociais, limitando-se a incentivar a prestação de serviços de relevância
pública pela iniciativa privada.
3. Entidade beneficente de assistência social
Em 1959, foi criado o Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos
pela Lei 3.577, que isentou as entidades de fins filantrópicos – reconhecidas de utilidade
pública e cujos membros de suas diretorias não percebessem remuneração – do
pagamento da taxa de contribuição de previdência aos Institutos e Caixas de
Aposentadoria e Pensões.
Em substituição a essa certificação, a Lei 8.742/93 instituiu o
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), atualmente
regrado pela Lei 12.101/09, que determina os procedimentos para concessão de
imunidade de contribuições para a seguridade social concedida às pessoas jurídicas de
direito privado, sem fins lucrativos, reconhecidas como entidades beneficentes de
assistência social com a finalidade de prestação de serviços nas áreas de assistência
social, saúde ou educação, e que atendam ao disposto na referida lei.
O Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social somente
será concedido às entidades sem fins lucrativos que perseguirem interesses sociais. A
Lei 12.101/09 veda expressamente a concessão da certificação para entidades que
51
buscam apenas o interesse exclusivo de seus associados ou de determinada categoria
profissional, ou seja, de interesse mútuo (artigo 2º).
Para obter o certificado, as entidades devem demonstrar período
mínimo de doze meses de constituição e cumprir, cumulativamente, os seguintes
requisitos: constituição como pessoa jurídica sem fins lucrativos com a finalidade de
prestação de serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação e previsão, nos
atos constitutivos, da destinação do eventual patrimônio remanescente a entidades sem
fins lucrativos congêneres ou a entidades públicas em caso de dissolução ou extinção. O
período mínimo de cumprimento desses requisitos poderá ser reduzido se a entidade for
prestadora de serviços por meio de convênio ou instrumento congênere com o Sistema
Único de Saúde (SUS) ou com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em caso
de necessidade local atestada pelo gestor do respectivo sistema. Além disso, as
entidades devem cumprir as exigências próprias de sua área de atuação – saúde,
educação ou assistência social.
Assim, a entidade de saúde deverá, nos termos do regulamento:
comprovar o cumprimento das metas estabelecidas em convênio ou instrumento
congênere celebrado com o gestor local do SUS; ofertar a prestação de seus serviços ao
SUS no percentual mínimo de 60% (sessenta por cento); comprovar, anualmente, a
prestação dos serviços ao SUS, com base no somatório das internações realizadas e dos
atendimentos ambulatoriais prestados (artigo 4º da Lei 12.101/09).
A entidade de educação deverá aplicar anualmente em gratuidade
pelo menos 20% (vinte por cento) da receita anual efetivamente recebida (artigo13 da
Lei 12.101/09).
Já a entidade de assistência social deverá prestar serviços ou realizar
ações assistenciais, de forma gratuita, continuada e planejada, para os usuários e a quem
deles necessitar, sem qualquer discriminação, observada a Lei 8.742, de 7 de dezembro
de 1993 (artigo 18 da Lei 12.101/09).
A partir da entrada em vigor da Lei 12.101/098, o Conselho Nacional
de Assistência Social (CNAS) deixou de ter competência para receber, analisar ou julgar
pedidos de concessão ou renovação de Certificado. O CNAS, a partir de então, passou a
ter competência somente para acompanhar e fiscalizar o processo de certificação das
entidades e organizações de assistência social no Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome, nos termos do artigo 18, III, da Lei 8.742/93, na redação dada pela
8
A referida lei foi promulgada em 27 de novembro de 2009 e publicada no Diário Oficial da União em
30 de novembro de 2009.
52
Lei 12.101/09.
A competência para a concessão e renovação dos certificados de
entidades beneficentes de assistência social foi repartida entre o Ministério da Saúde,
Ministério da Educação e Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
conforme a área de atuação da entidade (artigo 21). A lei manteve o conceito amplo de
assistência social9, entendendo que as entidades de saúde e educação também fazem jus
à imunidade prevista no artigo 195, §7º da Constituição.
Como a Lei 12.101/09 revogou o artigo 55 da Lei 8.212/91, não há
mais necessidade da entidade ser reconhecida como de utilidade pública federal e
estadual ou do Distrito Federal ou município para fazer jus à imunidade em relação às
contribuições para a seguridade social previstas nos artigos 22 e 23 da Lei 8.212/91. Os
requisitos exigidos atualmente, conforme artigo 29 da Lei 12.101/09, são os seguintes:
não remunerar seus dirigentes; não distribuir rendas a qualquer título; apresentar
certidão negativa ou certidão positiva com efeito de negativa de débitos relativos aos
tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e certificado de
regularidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); manter escrituração
contábil regular que registre as receitas e despesas, bem como a aplicação em gratuidade
de forma segregada, em consonância com as normas emanadas do Conselho Federal de
Contabilidade; manter os documentos contábeis em ordem pelo prazo de dez anos;
cumprir as obrigações acessórias estabelecidas na legislação tributária; e apresentar as
demonstrações contábeis e financeiras devidamente auditadas por auditor independente
legalmente habilitado nos Conselhos Regionais de Contabilidade quando a receita bruta
anual auferida for superior ao limite fixado pela Lei Complementar 123/06 (R$
240.000,00, para as microempresas).
Além da imunidade em relação às contribuições para a seguridade
social, as entidades beneficentes de saúde sem fins lucrativos têm preferência de
participação no SUS quando a disponibilidade de cobertura assistencial da população
pela rede pública de determinada área for insuficiente (artigo 7º). As entidades
certificadas como de assistência social terão prioridade na celebração de convênios,
9
Esse também é o entendimento do STF sobre a matéria. São consideradas de assistência social as
entidades de saúde, educação e assistência social para os fins da imunidade prevista no artigo 195, §7º da
CF/88. Em relação às entidades de saúde, veja-se a ADI 2.085-5 e em relação às de educação, os
seguintes precedentes: RMS 22.192, RMS 22.366, MI 232 e ADI 2.035-6, conforme lição de José
Eduardo Sabo Paes. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos, administrativos,
contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 696.
53
contratos, acordos ou ajustes com o poder público para a execução de programas,
projetos e ações de assistência social (artigo 18, § 4º).
A lei prevê a legitimidade do gestor municipal ou estadual do SUS ou
do SUAS, do gestor da educação municipal, distrital ou estadual, da Secretaria da
Receita Federal do Brasil, dos conselhos de acompanhamento e controle social previstos
na Lei 11.494, de 20 de junho de 2007, dos Conselhos de Assistência Social e de Saúde,
bem como do Tribunal de Contas da União, para representarem ao Ministério
responsável pela área de atuação da entidade quando verificarem a prática de
irregularidade, sem prejuízo das atribuições do Ministério Público.
O procedimento administrativo de cancelamento do certificado da
entidade beneficente tramitará no respectivo Ministério, assegurado o contraditório e a
ampla defesa, nos termos do Decreto 7.327, de 20 de julho de 2010.
Os incentivos honoríficos e econômicos decorrentes do certificado de
entidade beneficente de assistência social amoldam-se aos princípios constitucionais da
atividade administrativa de fomento: não se prestam a substituir a ação do Estado na
promoção dos direitos sociais, limitando-se a incentivar a prestação de serviços de
relevância pública pela iniciativa privada.
4.Organização Social
Os idealizadores da Lei 9.637/98, que prevê o título honorífico de
Organização Social (OS) para entidades privadas sem fins lucrativos, tiveram o
propósito declarado de elaborar o marco institucional de “transição de atividades
estatais para o terceiro setor, e, com isso, contribuir para o aprimoramento da gestão
pública estatal e não estatal”. 10
O escopo da referida lei é bem claro: repassar a totalidade dos serviços
sociais, comumente prestados pelo Estado, para as Organizações Sociais. Nas palavras
dos próprios criadores da lei: “o Estado abandona o papel de executor ou prestador
direto de serviços, mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou
promotor destes, principalmente dos serviços sociais, como educação e saúde, que são
essenciais para o desenvolvimento”.11
10
BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, Secretaria da Reforma do
Estado. Organizações sociais. Cadernos MARE da reforma do estado, v. 2. Brasília: Ministério da
Administração e Reforma do Estado, 1997.
11
BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, Secretaria da Reforma do
Estado. Organizações sociais. Op. cit.
54
Por meio da Lei 9.637/98, pretendia-se repassar para o Terceiro Setor
todos os serviços sociais prestados diretamente pelo Estado nos campos de ensino,
pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção do meio ambiente, cultura e
saúde. Nas palavras dos idealizadores da reforma, a qualificação de uma nova OS “na
maior parte dos casos, deverá ocorrer concomitantemente à extinção de congênere,
integrante da administração pública”. Assim, de acordo com o modelo proposto, haveria
entrega de todos os hospitais e escolas públicas para Organizações Sociais qualificadas
nos termos da Lei 9.637/98, em claro acolhimento da ideologia neoliberal.
O programa de transferência dos serviços públicos sociais para o
Terceiro Setor foi denominado “Programa Nacional de Publicização – PNP” (artigo 20,
Lei 9.637/98). A estratégia de “publicização” visava ampliar a eficiência e qualidade
dos serviços sociais prestados ao cidadão usuário. As entidades privadas, dotadas de
autonomia e regidas pelo Direito Privado, desempenhariam tais serviços em substituição
ao Estado – daí se fala em “publicização”.
Os teóricos do modelo alegavam que os serviços prestados de forma
mais flexível pelas Organizações Sociais seriam otimizados mediante menor utilização
de recursos com ênfase nos resultados, orientados para a satisfação do cidadão cliente e
submetidos a maior controle social. Segundo eles, haveria três grupos de vantagens no
novo modelo.
No campo da gestão de recursos humanos, as OS poderiam contratar e
demitir seus funcionários pelo regime celetista, com base em regulamentos próprios,
sem os entraves da realização de concurso público e do Regime Jurídico Único dos
Servidores Públicos. Isso aumentaria a qualidade e agilidade na seleção, contratação,
manutenção e desligamento de funcionários.
No campo da gestão orçamentária e financeira, os recursos
consignados no Orçamento Geral da União para execução do contrato de gestão com as
OS constituiriam receita própria da Organização Social, cuja alocação e execução não
se sujeitariam aos ditames da execução orçamentária, financeira e contábil
governamentais operados no âmbito do SIAFI e sua respectiva legislação.
No campo da gestão organizacional em geral, a vantagem seria o
estabelecimento de mecanismos de controle finalísticos, ao invés de meramente
processualísticos, como ocorre na Administração Pública. O regulamento de compras e
contratos da OS não se sujeitaria à Lei 8.666/93, o que lhes daria ganho expressivo de
agilidade e qualidade nas aquisições de bens e serviços.
55
Na verdade, a Lei 9.637/98 instrumentaliza verdadeira fraude
constitucional ao estabelecer o seguinte procedimento: particulares, orientados pelo
Poder Público, constituem uma entidade privada sem fins lucrativos; representantes do
Poder Público participam do conselho de administração da entidade civil criada; a
entidade é discricionariamente qualificada como organização social e celebra contrato
de gestão com o Poder Público, sem licitação; a OS passa a exercer atividades de
relevância social e a receber recursos púbicos, inclusive podendo contar com o trabalho
de servidor público cedido; a OS não se submete à Lei 8.666/93, nem realiza concurso
público; exatamente as mesmas competências que eram exercidas pela entidade pública,
sob a égide do Direito Público, passam a ser exercidas pela OS, mas sob o manto do
Direito Privado.
A pretensão legislativa de substituir totalmente o Estado prestador de
serviços sociais pelo Terceiro Setor prestador de serviços de relevância pública não
encontra amparo na Constituição Federal. Como já visto (supra, I – 5), o Estado, por
dever constitucional, é obrigado a prestar diretamente os serviços públicos sociais. A
legislação ordinária não pode liberá-lo de tão importante mister, afrontando a
Constituição.
O escopo da Lei 9.637/98 desborda completamente do espaço
constitucional destinado à atividade de fomento dos serviços de relevância pública,
delineado pelo princípio da subsidiariedade: o financiamento público das atividades
privadas desempenhadas por OS passaria a ser a regra geral de intervenção estatal na
ordem social e não atividade subsidiária de fomento estatal, como previsto na
Constituição. Por outro lado, não se trataria de relação de complementaridade, mas de
verdadeira substituição do serviço social prestado pelo Estado pelos serviços de
relevância pública prestados pelo Terceiro Setor.
Logo, os artigos 18 a 22 da Lei 9.637/98, por tratarem diretamente da
extinção de entidades públicas para absorção de suas atividades por organizações
sociais, são flagrantemente inconstitucionais. Trata-se, nas palavras do Ministro do STF
Ayres Britto no julgamento da ADI 1.923/DF, de terceirização global de funções típicas
do Estado, “juridicamente aberrante” e completamente inconstitucional.
Nem mesmo o alegado objetivo de aumento de eficiência teria o
condão de justificar o repasse integral dos serviços sociais para o Terceiro Setor. Vale
lembrar que o princípio da eficiência, expressamente acrescentado ao artigo 37 da
Constituição Federal pela Emenda Constitucional 19/98, rege toda a atividade da
56
administração direta e indireta. Juridicamente, a Administração tem o dever
constitucional de se pautar pela boa administração, devendo direcionar seus recursos
para tal fim. Empiricamente também não se sustenta a presunção de ineficiência do
serviço público prestado pelo Estado: há exemplos de gestão pública eficiente por todo
o país, principalmente em decorrência da progressiva utilização de sistemas
informatizados pelos gestores públicos. 12
Além do mais, as graves consequências do alijamento total do Estado
da prestação dos serviços públicos sociais seriam sentidas mais de perto pela parcela
mais carente da população, conforme ensina Tarso Cabral Violin: 13
O Estado, ao deixar de prestar diretamente os serviços sociais,
repassando a execução para o “terceiro setor”, abstém-se de fazer uma
política social universal compulsória, não-contributivista e gratuita, com
programas nacionais e regionais, e constitutiva de direitos sociais. O “terceiro
setor” realiza uma política de ações pontuais, setorializadas, localizadas,
focalizadas, segmentadas, incapazes de cobrir suficientemente as grandes
massas em situação de exclusão. Por exemplo, prefere-se repassar dinheiro
para que as entidades do “terceiro setor” atuem em defesa dos direitos da
criança, do adolescente, do idoso, ao revés de estruturar uma “sucateada”
defensoria pública; que elas prestem serviços de capacitação, ao invés de
investimentos em escolas e universidades estatais; assim como atendam
portadores da doença “X”, em vez de investimentos em hospitais públicos.
É preciso que fique bem claro: o texto constitucional não permite a
substituição dos serviços sociais prestados pelo Estado por serviços de relevância
pública prestados pelas OS (supra, I-5.3).
Feitas essas breves considerações, deve-se verificar se há legítimo
espaço constitucional para atuação das OS e, em caso positivo, em que medida a Lei
9.637/98 se conforma à Constituição Federal de 1988.
O ponto de partida é a observância do regime jurídico da atividade
administrativa de fomento, já que a qualificação como Organização Social é título
honorífico por meio do qual o Estado inicia uma relação de colaboração mútua,
12
Ainda há muito que aprimorar e um longo caminho pela frente, mas os serviços públicos prestados
pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS já demonstram melhorias, consequência direta do
aperfeiçoamento dos sistemas informatizados da autarquia previdenciária. Semelhante melhora já se nota
no Poder Judiciário, em decorrência da gradual adoção do processo eletrônico. Recentemente, o Instituto
do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) foi apontado como o melhor hospital público do Estado na
Pesquisa de Satisfação dos Usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme notícia em <
http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultimas-noticias/estado/2011/05/31/instituto-do-cancer-eeleito-melhor-hospital-publico-do-estado-de-sp.jhtm>. Acesso em: 30 jun. 2011. São alguns bons
exemplos de aperfeiçoamento da gestão pública.
13
VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise
crítica. 2ª ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Forum, 2010, p. 277.
57
repassando bens e recursos públicos à entidade e incentivando-a a prestar serviços
considerados de relevância pública. Como já visto (supra, I-4), a atividade de fomento,
por ser administrativa, deve respeito aos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência.
Podem
ser
qualificadas
como
Organizações
Sociais
–
e,
consequentemente, declaradas como de interesse social e utilidade pública para todos os
efeitos legais – as pessoas jurídicas, sem fins lucrativos, cujas atividades se dirijam ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção do meio
ambiente, à cultura e à saúde, atendidos os demais requisitos da Lei 9.637/98.
Para se qualificar como OS, a entidade privada deve comprovar que o
registro de seu ato constitutivo disponha sobre (artigo 2º, I): finalidade social de
interesse coletivo em qualquer das áreas previstas na lei (ensino, pesquisa científica,
desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e
saúde); finalidade não lucrativa; previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de
deliberação superior e de direção, um Conselho de Administração e uma Diretoria
com a participação de representantes do Poder Público e da comunidade, de notória
capacidade profissional e idoneidade moral; obrigatoriedade de publicação anual, no
DOU, dos relatórios financeiros e de execução do contrato de gestão; no caso de
associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do estatuto; previsão de
incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram
destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em
caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra OS qualificada no âmbito
da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos estados, do DF
ou dos municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados.
Ao estabelecer a participação de 20 a 40% de membros representantes
do Poder Público no Conselho de Administração da Organização Social (artigo 3º, I,
“a”), a lei prevê intensa e ilegítima interferência estatal no funcionamento da entidade.
Ora, o Conselho de Administração detém os poderes de direção da
Organização Social, fixando seu âmbito de atuação (artigo 4º, I), aprovando a proposta
de seu contrato de gestão (inciso II) e a proposta de orçamento e seu programa de
investimentos (inciso III). Ou seja: todas as decisões fundamentais de gestão da
entidade são de competência do Conselho de Administração, composto parcialmente
por membros do Poder Público. Por isso, a formação da “vontade” da OS não é
autônoma, sofrendo indevida e intolerável ingerência estatal. O poder jurídico de criar,
58
modificar ou extinguir situações jurídicas próprias é compartilhado com o Poder
Público, o que é vedado constitucionalmente, pois fere o princípio da autonomia privada
da pessoa jurídica. 14
Os autores da petição inicial da ADI 1.923/DF exemplificam que, na
época da propositura da ação, 9 dos 14 membros do Conselho de Administração da
Organização Social Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto ocupavam
cargos públicos na Administração Federal. Ora, o controle da referida OS permaneceu,
de fato com o Poder Público, comprometendo completamente a autonomia privada da
entidade. Tal situação configura interferência estatal desarrazoada no funcionamento da
associação, em franco desrespeito à liberdade fundamental estabelecida artigo 5º, XVIII,
da Constituição Federal de 1988.
As leis sobre organizações sociais do Estado de São Paulo (Lei
Complementar 846/98, artigo 3º) e do Município de São Paulo (Lei 14.132/06, artigo
3º), acertadamente, não exigem a participação de representantes do Poder Público nos
conselhos de administração das entidades. Andou bem, nesse ponto, a lei federal das
OSCIPs, que não prevê a participação de servidores públicos na composição dos
conselhos da entidade (artigo 4º, parágrafo único, da Lei 9.790/99).
Da mesma forma, a discricionariedade conferida ao Ministro ou titular
do órgão supervisor da área de atividade correspondente ao objeto social da OS para a
decisão de aprovação da qualificação jurídica especial, prevista no artigo 2º, II, da Lei
9.637/98, é inconstitucional, por ofensa aos princípios da isonomia, impessoalidade e
moralidade.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, discricionariedade 15
é a margem de “liberdade” que remanesça ao administrador para
eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo
menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de
cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade
legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade
conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma
solução unívoca para a situação vertente.
A decisão de qualificação de determinada entidade como Organização
Social, em face do regime jurídico diferenciado e dos benefícios públicos que a pessoa
jurídica de direito privado fará jus, deve ser considerada como decisão vinculada do
14
Sobre o princípio da autonomia privada: infra, IV-4.3.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 988.
15
59
administrador. Não há margem de liberdade para apreciação discricionária do
administrador quanto à qualificação da entidade como Organização Social: se mais de
uma entidade privada preencher os requisitos previstos na lei, todas deverão receber o
título de Organização Social. A competência para expedição do ato de qualificação da
OS, portanto, é vinculada.
A ausência de parâmetros legais objetivos para a decisão de
qualificação como organização social poderá gerar situações discriminatórias e
favoritismos de toda espécie. Para Sílivo Luís Ferreira da Rocha, “não há razão lógica
que justifique a decisão administrativa de dentre duas pessoas jurídicas que preencham
os requisitos exigidos pelo art. 2º, II, da lei 9.637/98, conceder a uma e negar à outra o
título de Organização Social”.16 Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a lei outorgou
uma discricionariedade de desmedida amplitude, “literalmente inconcebível e até
mesmo escandalosa”.17
No caso de a Administração entender que o título de Organização
Social somente deva ser concedido a uma entidade privada dentre várias pretendentes,
deverá previamente realizar procedimento público de escolha pautado nos princípios da
isonomia, impessoalidade, motivação e ampla publicidade para selecionar a que será
contemplada.
De qualquer forma, a etapa de qualificação das organizações sociais
deverá ser conduzida como procedimento administrativo no qual todos os atos sejam
devidamente motivados, nos termos do artigo 50 da Lei 9.784/99. A atividade
administrativa de fomento decorrente da qualificação como organização social é
intensa, permitindo-se a utilização de bens e recursos públicos pela entidade
beneficiada. Daí ser fundamental a possibilidade de ampla participação dos
administrados eventualmente interessados em colaborar com o Poder Público.
A lei prevê que a desqualificação da entidade ocorra em processo
administrativo no qual se assegure contraditório e ampla defesa (artigo 16, §1º). A lei só
prevê a desqualificação da OS por iniciativa do Poder Executivo (artigo 16 da Lei
9.637/98). Contudo, tal artigo deve ser interpretado de acordo com a Constituição
Federal, que consagra o princípio da autonomia privada, de modo que a OS também
tenha assegurado o direito de requerer sua desqualificação.18 Após o término do prazo
16
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 136.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 244.
18
Da mesma forma como ocorre com as OSCIPs, as quais podem requerer sua desqualificação, nos
termos do artigo 7º da Lei 9.790/99.
17
60
do contrato de gestão, por exemplo, a OS poderá, por sua própria iniciativa, requerer a
desqualificação. Essa decisão compete exclusivamente à entidade, no âmbito de sua
autonomia privada.
Qualificada como organização social, a pessoa jurídica poderá
celebrar contrato de gestão com o Poder Público e receber recursos orçamentários e
bens públicos para o cumprimento do referido ajuste. A lei prevê ainda a possibilidade
de cessão especial de servidores públicos para as Organizações Sociais (artigos 12 e 14
da Lei 9.637/98). 19
Tais entidades, por se qualificarem também como de utilidade pública
federal, podem receber mercadorias abandonadas, entregues à Fazenda Nacional ou
objeto de pena de perdimento (conforme artigo 2º, I, “b” da Portaria 282, de 9 de junho
de 2011, do Ministério da Fazenda) e doações de equipamentos de informática
classificados como ociosos ou recuperáveis (artigo 15, parágrafo único, do Decreto
99.658/90, na redação dada pelo Decreto 6.087/07). Para isenção de Imposto de Renda
(artigo 12, §2º, “a” da Lei 9.532/97) e recebimento de doações de empresas dedutíveis
do Imposto de Renda (nos termos dos artigos 59 e 60 da Medida Provisória 2.158-35, de
24/8/2001), a legislação tributária exige que a Organização Social não remunere seus
dirigentes em valor bruto superior ao limite estabelecido para a remuneração de
servidores do Poder Executivo Federal (artigo 34, parágrafo único da Lei 10.637/02).
Frise-se que o repasse de recursos públicos para as organizações
sociais não pode consistir na única fonte de financiamento da entidade, caso em que não
haveria atividade de fomento, mas verdadeiro financiamento público da pessoa jurídica
de direito privado. A cessão de servidores públicos a tais entes é completamente
inconstitucional. Além disso, deve haver prévia seleção objetiva para a celebração do
contrato de gestão com a entidade e para a contratação, com utilização de recursos
públicos, de obras, serviços, compras e alienações pela OS (infra, III-4.3).
A configuração constitucional das Organizações Sociais impõe o
reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 2º, I, “d” e II, artigo 3º, I, “a” e “e” e
III, artigo 14 e artigos 18 a 22, todos da Lei 9.637/99.20 Essa filtragem constitucional
19
A análise da extensão e legitimidade dos meios de fomento das Organizações Sociais, neste
trabalho, é realizada durante o estudo do instrumento jurídico do contrato de gestão (infra, III-2.4).
20
Para Ricardo Marcondes Martins as Organizações Sociais devem ser consideradas autarquias. Nas
suas palavras: “Ao receber a qualificação de OS e celebrar o contrato de gestão a entidade pública tornase uma pessoa jurídica de direito público, transforma-se numa autarquia. A saída dogmática é coerente
com a denominação dada pelo legislador: programa nacional de publicização. Nada mais lógico: se o
fundo é integralmente público, o regime jurídico incidente sobre ele é integralmente público”. MARTINS,
Ricardo Marcondes. Natureza jurídica das organizações sociais e das organizações sociais de interesse
61
leva a incisiva descaracterização da Lei 9.637/90. A pergunta crucial é: sobra espaço
legítimo para a atuação da Organização Social?
A resposta é positiva, com as ressalvas que seguem. 21
As Organizações Sociais desempenham legitimamente atividades de
prestação de serviços de relevância pública, desde que sejam observados os seguintes
parâmetros: atuação complementar à ação estatal na prestação de serviços sociais
(jamais em substituição a uma entidade pública ou como forma de terceirização ilegal
de atividade fim da Administração); vedação da participação de representantes do Poder
Público no conselho de administração da OS; qualificação vinculada da entidade
privada como OS; seleção pública prévia para celebração do contrato de gestão com o
Poder Público; recebimento de fomento público adequado e necessário apenas para
suplementar as atividades exercidas (as subvenções não devem ser a única fonte de
recursos da OS); vedação do trabalho de servidores públicos cedidos; e, por fim, seleção
objetiva para contratação de obras, serviços, compras e alienações pela OS, utilizandose recursos públicos.
O professor Sílvio Luís Ferreira da Rocha admite que as Organizações
Sociais não se prestam apenas para absorver competências de entes públicos extintos,
mas também para exercer atividades socialmente relevantes, não de competência
exclusiva do Poder Público, sendo legitimamente incentivadas mediante repasse dos
recursos previstos no contrato de gestão.22
Mas é forçoso reconhecer: a adequação da Lei 9.637/98 à Constituição
Federal descaracteriza completamente o modelo das Organizações Sociais imaginado
pelo legislador, aproximando as OS da estrutura legal das Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público. Melhor seria se a Lei 9.790/99, que instituiu as OSCIPs,
tivesse revogado completamente a Lei 9.637/98, extinguindo de uma vez por todas do
ordenamento jurídico brasileiro a anomalia jurídica denominada Organização Social.
público. In: SPARAPANI, Priscilia; ADRI, Renata Porto (coord.). Intervenção do Estado no domínio
econômico e no domínio social. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 287-318.
21
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para que a Organização Social se adequasse aos princípios
constitucionais que protegem o patrimônio público, seria necessário, pelo menos: exigência de licitação
para escolha da entidade; comprovação de que a entidade já existe, tem sede própria, patrimônio e capital;
demonstração de qualificação técnica e idoneidade financeira; submissão aos princípios da licitação;
imposição de limitações salariais quando dependam de recursos do Estado para pagar seus empregados; e
prestação de garantia real tal como exigida nos contratos administrativos em geral. Direito administrativo.
24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 513-514.
22
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 102.
62
5. Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
Menos de um ano após a lei das Organizações Sociais, foi
promulgada, em 23 de março de 1999, a Lei 9.790, que dispõe sobre a qualificação de
pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs, e institui o termo de parceria,
instrumento que formaliza vínculo de cooperação com o Poder Público.
A Lei 9.790/99 surgiu após os debates conduzidos pelo Conselho da
Comunidade Solidária, com a participação da sociedade civil organizada, do Governo
Federal e do Congresso Nacional. Referida lei foi discutida e elaborada durante as duas
Rodadas de Interlocução Política do Conselho da Comunidade Solidária, dedicadas ao
tema “Marco Legal do Terceiro Setor”, realizadas entre 1997 e 1998.
Os objetivos principais da lei que institui as OSCIPs são: simplificar e
agilizar o reconhecimento institucional das entidades sem fins lucrativos, com base em
critérios objetivos e transparentes; ampliar a qualificação para todas as entidades que
desempenhem atividades socialmente relevantes; excluir as entidades de benefício
mútuo ou que possuem regramento jurídico específico; incentivar e modernizar a
realização de parceria entre as OSCIPs e órgãos governamentais, por meio de um novo
instrumento jurídico, o termo de parceria, com foco na avaliação de resultados; e, por
fim, adotar mecanismos adequados de controle social e responsabilização das
organizações e dirigentes com o objetivo de garantir que os recursos de origem estatal
administrados pelas OSCIPs sejam bem aplicados e destinados a fins públicos. 23
O modelo legal das OSCIPs foi mais bem aceito pela doutrina do que
o das OS.
Para Lúcia Valle Figueiredo, as OSCIPS, “nada têm a ver com as
organizações sociais” e, “se bem implementadas, seriam, sem dúvida, ótimo mecanismo
para auxílio das amplas e necessárias atividades cometidas ao Estado pelo Constituinte
de 1988”. 24
Marçal Justen Filho elogia a criação das OSCIPs pela “correção de
alguns defeitos sérios na disciplina da organização social e pela destinação ao
atendimento de outras necessidades”. O referido autor destaca que as OSCIPs podem
23
FERRAREZI, Elisabete. OSCIP — Organização da sociedade civil de interesse público: a lei
9.790/99 como alternativa para o terceiro setor. 2º Edição - Brasília: Comunidade Solidária, 2002, p. 3031.
24
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
172.
63
atuar sem qualquer vínculo com o Poder Público, ao contrário do que se passa com as
organizações sociais. 25
Luis Eduardo Patrone Regules entende que as OSCIPs, sob o aspecto
de seu estatuto jurídico, são vigorosos instrumentos para a consecução dos interesses
públicos no Estado Social e Democrático de Direito. 26
Maria Sylvia Zanella Di Pietro aduz que a qualificação de entidade
privada como OSCIP não afeta em nada a existência ou atribuições de entidades ou
órgãos integrantes da Administração Pública. Para a referida autora: 27
Trata-se, no caso, de real atividade de fomento, ou seja, de incentivo à
iniciativa privada de interesse público. O Estado não está abrindo mão de
serviço público (tal como ocorre na organização social) para transferi-lo à
iniciativa privada, mas fazendo parceria, ajudando, cooperando com
entidades privadas que, observados os requisitos legais, se disponham a
exercer as atividades indicadas no artigo 3º, por se tratar de atividades que,
mesmo sem a natureza de serviços públicos, atendem a necessidades
coletivas.
Em sentido contrário, Tarso Cabral Violin entende que as OSCIPs são
utilizadas, da mesma forma como as OS, para assumirem atividades estatais, com o
intuito de fuga do regime jurídico-administrativo. Ricardo Marcondes Martins
reconhece que a lei das OSCIPs é melhor que a das OS, mas também inválida. 28
A Lei 9.790/99 prevê doze finalidades diferentes que as entidades
privadas sem fins lucrativos devem perseguir para pleitearem a qualificação de OSCIP
(artigo 3º): promoção da assistência social; promoção da cultura, defesa e conservação
do patrimônio histórico e artístico; promoção gratuita da educação; promoção gratuita
da saúde; promoção da segurança alimentar e nutricional; defesa, preservação e
conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; promoção
do voluntariado; promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à
pobreza; experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de
sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; promoção de direitos
25
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Fórum, 2011, p. 300.
26
REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 146.
27
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 517.
28
VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise
crítica. 2ª ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Forum, 2010, p. 215. MARTINS, Ricardo Marcondes. Natureza
jurídica das organizações sociais e das organizações sociais de interesse público. In: SPARAPANI,
Priscilia; ADRI, Renata Porto (coord.). Intervenção do Estado no domínio econômico e no domínio
social. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 287-318. Para Ricardo Marcondes Martins, as OSCIPs são
autarquias coorporativas similares às profissionais: pessoas jurídicas de gestão privada, regidas pelo
direito público. A Lei 9.790/99 seria inválida, segundo ele, porque as autarquias somente podem ser
estabelecidas por lei específica, conforme inciso XIX do artigo 37 da Constituição, o que não seria o caso
da genérica Lei das OSCIPs.
64
estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse
suplementar; promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da
democracia e de outros valores universais; estudos e pesquisas, desenvolvimento de
tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos
técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas no artigo 3º da
referida lei.
A OSCIP deve respeitar o princípio da universalização dos serviços no
respectivo âmbito de sua atuação (artigo 3º) e seu estatuto deve dispor expressamente
sobre os
princípios
da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade,
economicidade e eficiência (artigo 4º, I). A promoção da educação e da saúde deve ser
gratuita, observando-se a forma complementar de participação (artigo 3º, III e IV).
A Lei 9.790/99 não se limitou à tradicional atuação das entidades sem
fins lucrativos – saúde, educação e assistência social – ampliando sensivelmente o rol de
finalidades sociais que podem ensejar a qualificação como OSCIP. Destaca-se a
possibilidade de concessão do título honorífico às organizações com atuação na
construção de novos direitos (artigo 3º, X) e de outros valores universais (artigo 3º,
XII). Com essas expressões intencionalmente vagas e imprecisas, a lei pretende abarcar
as entidades que se constituírem para atuar em atividades relacionadas às novas
necessidades sociais que surgirem em decorrência das velozes mutações sociais que
marcam a atualidade.
Por outro lado, a Lei das OSCIPs captou com precisão o campo
constitucional de atuação do Terceiro Setor (supra, I-2) ao enumerar treze tipos de
entidades que não são passíveis de se qualificarem como OSCIPs (artigo 2º): sociedades
comerciais; sindicatos, associações de classe ou de representação de categoria
profissional; instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos,
práticas e visões devocionais e confessionais; organizações partidárias e assemelhadas,
inclusive suas fundações; entidades de benefício mútuo, destinadas a proporcionar
bens ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios; entidades e empresas
que comercializam planos de saúde e assemelhados; instituições hospitalares privadas
não gratuitas e suas mantenedoras; escolas privadas dedicadas ao ensino formal não
gratuito e suas mantenedoras; organizações sociais (OS); cooperativas; fundações
públicas; fundações, sociedades civis ou associações de direito privado, criadas por
órgão público ou por fundações públicas; organizações creditícias que tenham qualquer
65
tipo de vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da
Constituição Federal.
O estatuto da OSCIP, conforme artigo 4º da Lei 9.790, deve dispor
expressamente sobre: a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência; a adoção de práticas de gestão
administrativa, necessárias e suficientes a coibir a obtenção, de forma individual ou
coletiva, de benefícios ou vantagens pessoais, em decorrência da participação no
respectivo processo decisório; a constituição de conselho fiscal ou órgão equivalente,
dotado de competência para opinar sobre os relatórios de desempenho financeiro e
contábil, e sobre as operações patrimoniais realizadas, emitindo pareceres para os
organismos superiores da entidade; a previsão de que, em caso de dissolução da
entidade, o respectivo patrimônio líquido será transferido a outra pessoa jurídica
qualificada nos termos da referida lei, preferencialmente que tenha o mesmo objeto
social da extinta; a previsão de que, na hipótese de a pessoa jurídica perder a
qualificação instituída pela Lei 9.790/99, o respectivo acervo patrimonial disponível,
adquirido com recursos públicos durante o período em que perdurou aquela
qualificação, será transferido a outra pessoa jurídica qualificada nos termos desta Lei,
preferencialmente que tenha o mesmo objeto social; a possibilidade de se instituir
remuneração para os dirigentes da entidade que atuem efetivamente na gestão executiva
e para aqueles que a ela prestam serviços específicos, respeitados, em ambos os casos,
os valores praticados pelo mercado, na região correspondente a sua área de atuação; as
normas de prestação de contas a serem observadas pela entidade, que determinarão, no
mínimo: a) a observância dos princípios fundamentais de contabilidade e das Normas
Brasileiras de Contabilidade; b) que se dê publicidade por qualquer meio eficaz, no
encerramento do exercício fiscal, ao relatório de atividades e das demonstrações
financeiras da entidade, incluindo-se as certidões negativas de débitos junto ao INSS e
ao FGTS, colocando-os à disposição para exame de qualquer cidadão; c) a realização
de auditoria, inclusive por auditores externos independentes se for o caso, da aplicação
dos eventuais recursos objeto do termo de parceria conforme previsto em regulamento;
d) a prestação de contas de todos os recursos e bens de origem pública recebidos pelas
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público será feita conforme determina o
parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal.
O ato administrativo de concessão do título jurídico, expedido pelo
Ministro da Justiça em até 30 dias, é vinculado ao preenchimento dos requisitos
66
legais (artigo 1º, §2º, e artigo 6º), não havendo margem discricionária para tal
decisão.
Ao contrário do título de OS, a qualificação como OSCIP não
implica automaticamente no recebimento do título de utilidade pública federal. Na
época de promulgação da lei, a entidade poderia manter, por determinado período, as
duas qualificações. Após março de 2004, as entidades qualificadas como OSCIPs
tiveram que optar pela qualificação que desejassem portar, conforme previsto no
artigo 18 da Lei 9.790/99. 29
Os termos de parceria celebrados com as OSCIPs permitem o repasse
de recursos públicos para a execução das atividades de interesse social previstas na lei
de regência (artigo 10, §2º, IV, da Lei 9.790/99). Trata-se de atividade administrativa de
fomento econômico, por meio da qual podem ser repassados bens e recursos públicos às
OSCIPs, que inclusive podem adquirir bens permanentes com recursos do termo de
parceria (art. 4°, V, da Lei 9.790/99). Diferentemente da Lei 9.637/98, não se permite
cessão de servidores para as OSCIPs (infra,III-2.5).
Além disso, as OSICPs podem remunerar seus dirigentes executivos
e prestadores de serviços específicos, respeitados os valores de mercado da região
correspondente à sua área de atuação (artigo 4º, VI, da Lei 9.790/99). Para o gozo de
alguns incentivos fiscais, contudo, a legislação tributária exige que a OSCIP não
remunere seus dirigentes em valor bruto superior ao limite estabelecido para a
remuneração de servidores do Poder Executivo Federal (artigo 34, parágrafo único da
Lei 10.637/02). Tal exigência deve ser observada para que a OSCIP possa se beneficiar
da isenção do Imposto de Renda (artigo 12, §2º, “a” da Lei 9.532/97) e receber doações
de empresas dedutíveis do Imposto de Renda (nos termos dos artigos 59 e 60 da Medida
Provisória 2.158-35, de 24/8/2001).
Tais entidades podem receber mercadorias abandonadas, entregues à
Fazenda Nacional ou objeto de pena de perdimento (conforme artigo 2º, I, “b” da
Portaria 282, de 9 de junho de 2011, do Ministério da Fazenda) e as OSCIPs que
participem de projeto integrante do Programa de Inclusão Digital do Governo Federal
29
Elisabete Ferrarezi escreve sobre o período de transição: “Inicialmente, a Lei 9.790/99 previu, em
seu art.18, o prazo de dois anos para que as entidades pudessem acumular a qualificação como OSCIP e a
Declaração de Utilidade Pública Federal e/ou o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência
Social. A Medida Provisória 2.216/2001, em seu art. 18, prorrogou o prazo para cinco anos, contados a
partir da data de vigência da Lei 9.790/99. Portanto, após março de 2004, a entidade que possuir alguma
daquelas qualificações e também a de OSCIP deverá optar por uma delas (OSCIP ou Utilidade
Pública/Entidade Beneficente de Assistência Social)”. In: FERRAREZI, Elisabete. OSCIP —
Organização da sociedade civil de interesse público: a lei 9.790/99 como alternativa para o terceiro
setor. 2º Edição - Brasília: Comunidade Solidária, 2002, p. 32.
67
poderão receber doações de equipamentos de informática classificados como ociosos ou
recuperáveis (artigo 15, parágrafo único, do Decreto 99.658/90, na redação dada pelo
Decreto 6.087/07).
Os microcomputadores de mesa, monitores de vídeo, impressoras e
demais
equipamentos
de
informática,
respectivo
mobiliário,
peças-parte
ou
componentes, classificados como ociosos ou recuperáveis, poderão ser doados a
instituições filantrópicas, reconhecidas de utilidade pública pelo Governo Federal, e
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público que participem de projeto
integrante do Programa de Inclusão Digital do Governo Federal.
A perda da qualificação de OSCIP pode se dar a pedido ou mediante
decisão proferida em processo administrativo ou judicial, de iniciativa popular ou do
Ministério Público, asseguradas ampla defesa e contraditório (artigo 7º da Lei 9.790).
É muito nítida a diferença do móvel legislativo na elaboração das leis
das OS e OSCIPs. A Lei 9.790/99 não pretende extinguir órgãos públicos e transferir
suas atribuições para serem absorvidas por entidades privadas, como declaradamente o
faz a Lei 9.613/98. A própria análise textual da lei das OSCIPs demonstra isso
claramente. Veja-se.
A prestação de serviços de educação e saúde pelas OSCIPs deverá
ocorrer de forma gratuita e complementar, nos termos do artigo 3º, III e IV da Lei
9.790/99. Ou seja: a lei, expressamente, não pretende a substituição de serviços públicos
sociais pelas OSCIPs nessas duas relevantes áreas, mas apenas atuação complementar.
O Decreto 3.100/99, que regulamenta a legislação das OSCIPS, não
deixa qualquer dúvida: os serviços de relevância pública de educação e saúde são
desempenhados pelas OSCIPs com seus recursos próprios. Os recursos gerados pela
cobrança de serviços de qualquer pessoa física ou jurídica, ou obtidos em virtude de
repasse ou arrecadação compulsória, não são considerados como próprios das OSCIPs
(artigo 6º, §1º do Decreto 3.100/99).
José Eduardo Sabo Paes noticia que, durante a elaboração do
anteprojeto da Lei 9.790/99, havia a preocupação em não se permitir a vinculação das
OSCIPs com o mercado, bem como em se evitar que os recursos públicos repassados
pelos termos de parceria fossem utilizados por escolas, hospitais ou planos de saúde
privados. 30
30
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos,
administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 646.
68
Além disso, há previsão legal expressa de prestação de serviços
intermediários, pelas OSCIPs, de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a
órgãos do setor público que atuem em áreas afins (artigo 3º, parágrafo único, in fine).
Aqui a lei prevê claramente a atividade típica das OSCIPs de prestação de atividades
meio, demonstrando que a intenção legal, reafirme-se, não é a de terceirizar ilicitamente
a prestação de serviços públicos sociais. As atividades fim devem ser prestadas pelo
Poder Público – somente os serviços intermediários (atividade meio) – podem ser
desempenhados pelas OSCIPs parceiras do Estado.
Vê-se, pois, que a Lei 9.790/99 procurou respeitar os legítimos
espaços de atuação do Terceiro Setor demarcados na Constituição Federal, em
consonância com o princípio da complementaridade e com o caráter subsidiário da
atividade administrativa de fomento.
Gustavo Henrique Justino de Oliveira escreveu sobre o legítimo
campo de atuação das OSCIPs, in verbis: 31
Sustenta-se que a Lei Federal n. 9.790/99 inaugurou um novo modelo
de prestação de serviços públicos, a ser viabilizada por meio de um acordo
administrativo colaborativo firmado entre o Poder Público e uma OSICP
(Termo de Parceria).
Todavia, importa reiterar que a OSCIP não recebe delegação do Poder
Público para prestação de serviços, atuando a entidade privada sem fins
lucrativos de modo complementar ou suplementar aos serviços prestados
pelo Poder Público, por meio (i) da realização de projetos, programas e
planos de ações correlatas, (ii) das doações de recursos físicos, humanos e
financeiros, ou (iii) através da prestação de serviços intermediários de apoio a
outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuem
em áreas afins.
Logo, a Lei 9.790/99 não pretende a substituição de serviços públicos
sociais e transferência desses para as OSCIPs. Não se ignora, contudo, que os
administradores de plantão podem fazer uso distorcido e ilegítimo das OSCIPs para
substituição do aparato estatal ou terceirização ilícita de serviços públicos sociais, o que
deve ser prontamente coibido pelos meios judiciais cabíveis.
31
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. OSCIPs e licitação: ilegalidades do Decreto N. 5.504, de
05.08.05. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 12, dezembro/janeiro/fevereiro,
2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 09 jul. 2011.
69
Capítulo III – O CONTROLE DO TERCEIRO SETOR
1. Crescimento do Terceiro Setor e importância de seu controle. 2.Instrumentos
jurídicos de fomento. 2.1 Convênios 2.2 Contratos de gestão. 2.3 Contratos de
repasse. 2.4 Termos de Parceria. 3.Parâmetros de controle do Terceiro Setor. 3.1
Transparência. 4. Controle prévio. 4.1 Processo administrativo e atividade de
fomento. 4.2 Procedimento de competição para celebração de parcerias. 4.3
Inconstitucionalidade do inciso XXIV do artigo 24 da Lei 8.666/93. 4.4 Qualificação
técnica. 5. Controle concomitante. 5.1 Realização de vistorias in loco. 5.2 Controle
dos recursos e bens públicos. 6. Controle posterior 6.1 Prestação de contas. 6.2
Tomada de contas especial. 6.3. Inconstitucionalidade do artigo 17 do Decreto
6.170/07.
1. Crescimento do Terceiro Setor e a importância de seu controle
O financiamento público do Terceiro Setor ocorre, diretamente, por
transferências orçamentárias voluntárias, e, indiretamente, por incentivos fiscais e
renúncias tributárias. É fato o crescimento do volume de recursos públicos federais
repassados para o Terceiro Setor. Em 2010, o Governo Federal empenhou R$ 3,5
bilhões em transferências voluntárias para entidades sem fins lucrativos, o que
representa um crescimento de 26% em relação a 2009. 1
Apesar desse exponencial crescimento, a fiscalização efetivamente
exercida sobre o repasse de recursos públicos ao Terceiro Setor é insuficiente.
Analisando as contas da República, o TCU observou que em 2010 houve um aumento
1
O valor corresponde a despesas em que o indicador orçamentário estava classificado como despesas
“discricionárias” ou “primárias sem impacto fiscal” na célula orçamentária, excluídas as transferências
legais e constitucionais. Das quinze entidades privadas do Terceiro Setor que mais receberam recursos na
modalidade de transferência voluntária da União, em 2010, cinco são Organizações Sociais (RNP – Rede
Nacional de Ensino e Pesquisa, Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron, IMPA Associação Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, Associação de Comunicação Educativa
Roquete Pinto e Núcleo de Gestão do Porto Digital), outras cinco fundações de apoio (Fundação de
Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP, FAURGS – Fundação de Apoio da Universidade Federal do
RS, Fundação Ricardo Franco, Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais – FUNCATE , e
Fundação de Apoio a Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação), duas Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público (Associação Programa Um Milhão de Cisternas – AP1MC e Sociedade Amigos da
Cinemateca – SAC), uma entidade beneficente sem fins lucrativos (CNES – Missão Evangélica Caiuá),
uma associação civil (REDETEC – Rede de Tecnologia e Inovação do Rio de Janeiro) e uma fundação
declarada de Utilidade Pública Federal (Fundação Getúlio Vargas). No tocante à renúncia de receitas
tributárias no exercício de 2010, destaca-se que a função Saúde foi responsável por 9,7% do gasto
tributário federal, no valor de R$ 12 bilhões, tendo havido um aumento de 12% em relação a 2009. Desse
valor, R$ 2,07 bilhões correspondem às entidades sem fins lucrativos da área de saúde. A função
Educação teve gasto tributário de R$ 4,45 bilhões, dos quais R$ 1,96 bilhão (44,1%) corresponde às
entidades sem fins lucrativos com atuação no campo educacional. Na área de Assistência Social, o gasto
tributário estimado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil também apresenta trajetória crescente,
chegando em 2010 a R$ 11,81 bilhões, quase 75% a mais que em 2006. Esse valor consiste basicamente
em isenções tributárias e doações a sociedades civis sem fins lucrativos, isenções a entidades filantrópicas
e isenções de imposto de renda a idosos com mais de 65 anos. Segundo o IBGE, no período de 1996 a
2005, foi de 215,1% o crescimento das fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil.
Esse crescimento foi quase três vezes mais elevado do que a média de crescimento de todos os demais
grupos de entidades, públicas e privadas. Os dados constam do relatório e parecer prévio sobre as contas
da República, referentes ao exercício de 2010, elaborado pelo Tribunal de Contas da União e disponível
em <http://portal2.tcu.gov.br/TCU>. Acesso em: 05 jun. 2011.
70
de 8% no total de prestações de contas não apresentadas dentro do prazo legal. Em
termos de valor, o acréscimo foi de 39% em relação à posição do final de 2009. Para as
prestações de contas apresentadas e não analisadas, o estoque em 2010 ficou 13%
superior ao verificado em 2008.2 Da mesma forma, tanto os valores firmados quanto o
atraso médio foram superiores em 2010, em relação ao ano anterior. Ainda de acordo
com o TCU, chegou a R$ 120 milhões o valor total de verbas federais repassadas às
OSCIPs no ano de 2010 que não tiveram as prestações de contas dos termos de parceira
apresentadas ou analisadas no prazo legal. 3
É válida a advertência do Ministro-Substituto do TCU Augusto
Sherman Cavalcanti, no sentido de que “o Estado brasileiro necessita aferir de forma
mais tempestiva a regularidade das despesas realizadas por seus colaboradores na
execução dos objetos previstos nos convênios e demais instrumentos de transferência”,
em especial quando se constata o constante crescimento dos estoques de processos de
prestação de contas não apresentadas ou não examinadas e a elevação de despesas
públicas por meio das transferências voluntárias que, totalizadas, já podem ser referidas
às dezenas de bilhões de reais. 4
Os dados comprovam que o crescimento da transferência de recursos
públicos não vem sendo acompanhado do efetivo controle da utilização, pelo Terceiro
Setor, desses recursos. Apesar dos avanços normativos recentes5, influenciados
principalmente pelas
decisões do TCU, não há a necessária
relação de
proporcionalidade entre o crescimento desses repasses e a estruturação dos órgãos de
controle. Faltam condições materiais e recursos humanos, principalmente nos órgãos
repassadores dos recursos, para a realização de controle administrativo ao menos
aceitável.6 É inconteste: entidades civis de toda espécie, algumas sem a mínima
2
O número seria ainda maior. Até dezembro de 2010, foram arquivadas 8.130 prestações de contas de
convênios com base no artigo 17 do Decreto 6.170/07, que possibilita o arquivamento de convênios com
prazo de vigência encerrado há mais de 5 (cinco) anos e que tenham valor registrado de até R$
100.000,00 (cem mil reais). Certamente, essa inconstitucional norma contribuiu para impunidade de
diversos agentes por atos de improbidade administrativa praticados no uso de recursos públicos (infra, III6.3).
3
Conforme noticiado no jornal O Globo em 13/06/2011: < http:oglobo.globo.com> Acesso em: 15 jul.
2011.
4
Tribunal de Contas da União: Acórdão 1406/2011 – Plenário.
5
Diante dos recentes escândalos envolvendo repasses de recursos públicos para entidades privadas
sem fins lucrativos, o Governo Federal editou o Decreto 7.502, de 28 de outubro de 2011, determinando a
avaliação da regularidade da execução dos convênios, contratos de repasse e termos de parceria
celebrados com entidades privadas sem fins lucrativos até a publicação do Decreto 7.568, de 16 de
setembro de 2011. As medidas determinadas pela nova norma são úteis, porém paliativas. Com efeito, a
fiscalização efetiva do repasse de recursos públicos para a iniciativa privada deve ser melhor estruturada e
exercida de forma sistemática e contínua.
6
Segundo o relatório e parecer prévio sobre as contas da República, elaborado pelo Tribunal de
71
qualificação técnica e capacidade operacional, continuam a receber recursos públicos
apesar da inexistência de controle efetivo.
No site do Ministério da Justiça, no ano de 2010, havia 5.820 OSCIPs
cadastradas. Várias delas com endereços desconhecidos, outras não exerciam a
atividade anunciada ou já haviam fechado as portas. Contudo, essas entidades poderiam,
ainda assim, continuar a receber recursos públicos.7 Noticiou-se naquele mesmo ano a
participação de entidades privadas em fraudes a processos seletivos e licitações, a
criação de OSCIPs de fachada, a atuação de esquema ilegal de financiamento
imobiliário por meio de entidades do Terceiro Setor e até mesmo a “venda” de OSCIPs
pela internet. 8
Em estudo de campo de entidades civis do Terceiro Setor prestadoras
de serviços sociais e assistenciais na cidade de São Paulo, Eloísa Helena de Souza
Cabral constatou que o exercício da função de controle pelas próprias entidades
privadas era insuficiente. A pesquisa apurou que as organizações privadas não
desenvolviam de forma adequada os mecanismos internos de controle dos resultados
atingidos, em cotejo com a missão institucional previamente estabelecida. 9
Gustavo Justino de Oliveira argumenta que as maiores dificuldades
para a implantação do modelo das Organizações Sociais no país decorrem da
incapacidade da Administração Pública brasileira superar as suas próprias deficiências
de planejamento, fiscalização, controle e mensuração de resultados e de impacto das
ações públicas, por ela desenvolvidas diretamente ou por parcerias. 10
As fiscalizações realizadas pelos órgãos de controle externo
demonstram que as parcerias são muitas vezes indevidamente utilizadas como
mecanismo de enriquecimento ilícito de agentes inescrupulosos que desviam, em
Contas da União e disponível em <http://portal2.tcu.gov.br/TCU>: “Em 2010 foi autuado o processo TC
020.012/2010-1, com o objetivo de avaliar a estrutura de recursos humanos voltada para análise de
prestação de contas de transferências voluntárias da União. O trabalho, que durante sua execução também
subsidiou o Relatório sobre as Contas de Governo de 2009, resultou no acórdão 3.025/2010 - Plenário, no
qual foi apontada uma relativa carência de servidores que atuam na análise da prestação de contas, em
números absolutos, e um desequilíbrio na alocação desses profissionais na Administração, com alguns
órgãos em situação crítica de carência de funcionários”.
7
Cf. notícia publicada no site da revista Veja em 14 de junho de 2011.
<http://veja.abril.com.brticia/brasil/apos-denuncias-governo-endurece-regras-para-oscips >.Acesso em:
15 jul. 2011.
8
Cf. notícia publicada no Jornal O Globo de 13 junho de 2011: <
http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/06/13/ongs-com-selo-de-qualidade-do-governo-oscips-saonegociadas-ate-na-internet-924679332.asp#ixzz1PEk5JGsW>. Acesso em: 15 jul. 2011.
9
CABRAL, Heloísa Helena de Souza. Terceiro Setor: gestão e controle social. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 196.
10
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. As organizações sociais e o Supremo Tribunal Federal:
comentários à Medida Cautelar da ADIN no 1.9223-DF.. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de (Coord.).
Direito do terceiro setor. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 13-36.
72
proveito próprio, os recursos públicos recebidos.11 Na maioria desses casos não foi
realizada prévia licitação ou outro procedimento seletivo objetivo para escolha da
entidade parceira do Poder Público.
Portanto, há pelo menos três razões importantes para o controle
efetivo dos recursos públicos transferidos ao Terceiro Setor. Primeira: evitar o
desperdício de dinheiro público. Segunda: prevenir e reprimir o enriquecimento ilícito e
a corrupção. Terceira: legitimar a atuação eficaz do Terceiro Setor.
A punição adequada das entidades privadas que praticam crimes e atos
de improbidade administrativa legitima e fortalece a própria atuação do Terceiro Setor,
na medida em que possibilita a destinação de mais recursos públicos para o
estabelecimento de outras parcerias com aquelas que respeitam a legislação. Ora,
somente com o efetivo controle do Terceiro Setor é que os novos espaços para o
estabelecimento de parcerias serão ocupados exclusivamente pelas instituições sérias e
eficientes, comprometidas com o interesse público.
Nesse contexto, deve-se observar, inicialmente, o controle finalístico
da transferência dos recursos públicos: a atividade de fomento não deve ser utilizada
para a substituição de serviços públicos prestados pelo Estado, mas sim para a
complementação desses serviços, pela iniciativa privada.
Dessa forma, é fundamental verificar as características de cada um dos
instrumentos jurídicos da atividade de fomento econômico – convênio, contrato de
repasse, contrato de gestão e termo de parceria –, pois é por meio deles que os recursos
públicos são repassados às entidades do Terceiro Setor.
2. Instrumentos jurídicos da atividade de fomento
2.1 Contrato, contrato administrativo e convênio
Segundo Orlando Gomes, contrato é o negócio jurídico bilateral, ou
plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos
interesses que regularam. A liberdade de contratar decorre da autonomia privada que
permeia as relações civis e econômicas. A causa de todo contrato é uma função
11
Cite-se a denominada “Operação Sanguessuga” conduzida pelo Ministério Público Federal e pela
Polícia Federal em Cuiabá – MT, em 2006, que revelou um esquema que desviou milhões de reais
repassados a entidades sem fins lucrativos. Recentemente, a “Operaçao Déja vú 2”, conduzida pela
Polícia Federal, Controladoria Geral da União e Receita Federal, desarticulou quadrilha que se apropriava
de recursos públicos transferidos por prefeituras paranaenses a OSICPs.
73
econômica. 12
No contrato comutativo, os interesses dos contratantes são opostos de
forma que a vantagem de uma parte corresponde à desvantagem da outra – as partes
buscam interesses próprios com a celebração do contrato. No contrato cooperativo, as
partes do negócio jurídico unem esforços para a consecução de interesses comuns, como
ocorre nos contratos societários. O objetivo do contrato de sociedade é constituir pessoa
jurídica com personalidade própria para o exercício de atividade econômica lucrativa. 13
O contrato administrativo, embora também seja um acordo de
vontades, diferencia-se do contrato regido pelo direito privado, pois aquele “é um tipo
de avença travada entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de
cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanência do vínculo e as condições
preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público,
ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado”. 14
A lógica do contrato administrativo indica a existência de duas ordens
de interesses: o interesse público, curado pela Administração – que legitima as
chamadas cláusulas exorbitantes – e o interesse particular, que visa o lucro, o que
justifica o direito do contratante ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato. É um
contrato comutativo, pois os interesses buscados pela Administração não coincidem
com as pretensões do particular.
As denominadas cláusulas exorbitantes são aquelas que não seriam
comuns no contrato civil, por conferirem prerrogativas à Administração que as colocam
em posição de supremacia sobre o contratado. As principais cláusulas exorbitantes,
segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são: exigência de garantia, alteração unilateral,
rescisão unilateral, fiscalização, aplicação de penalidades, anulação e retomada do
objeto. 15
Por ser também um acordo de vontades, o convênio se assemelha ao
12
GOMES, Orlando. Contratos. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 10. O mestre ensina que a
liberdade de contratar jamais foi ilimitada, sempre devendo observar duas limitações de caráter geral: a
ordem pública e os bons costumes, inspiradas em razões de utilidade social. Ordem pública é aquela que
se refere aos interesses essenciais do Estado ou da coletividade, ou que fixa, no Direito Privado, as bases
jurídicas fundamentais sobre as quais repousa a ordem econômica ou moral de determinada sociedade. Ou
seja, embora utilizando-se de outras palavras, o renomado civilista reconhece o princípio da supremacia
do interesse público sobre o privado.
13
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14ª ed. São
Paulo: Dialética, 2010.
14
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 632-633.
15
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 271279. Registre-se que as cláusulas dos contratos de parceria público-privada devem observar o disposto no
artigo 5º da Lei 11.079/04.
74
contrato, mas possui características próprias. Convênio é o acordo firmado entre
entidades públicas ou entre entidades públicas e privadas, para a realização de interesses
comuns dos partícipes. Os deveres e obrigações são acordados pelas partes tendo em
vista a realização de interesses comuns a todos os convenentes – nenhuma das partes
busca vantagens patrimoniais que corresponderão às desvantagens da outra. O convênio,
portanto, não é contrato.
O fundamento legal dos convênios é o artigo 116 da Lei 8.666/93, que
diz que a celebração de convênio, acordo ou ajuste pelos órgãos ou entidades da
Administração Pública depende de prévia aprovação de competente plano de trabalho
proposto pela organização interessada, o qual deverá conter, no mínimo, as seguintes
informações: identificação do objeto a ser executado; metas a serem atingidas; etapas ou
fases de execução; plano de aplicação dos recursos financeiros; cronograma de
desembolso; previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da conclusão
das etapas ou fases programadas; se o ajuste compreender obra ou serviço de
engenharia, comprovação de que os recursos próprios para complementar a execução do
objeto estão devidamente assegurados, salvo se o custo total do empreendimento recair
sobre a entidade ou órgão descentralizador.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro elenca diversas distinções entre o
regime jurídico dos convênios e dos contratos. No convênio, os conveniados possuem
objetivos institucionais comuns, competências institucionais comuns, perseguem
resultados comuns (tais como projetos, estudos ou serviços técnicos) e não cogitam de
preço ou remuneração – os valores recebidos são vinculados ao objeto do convênio,
permanecendo com a natureza de dinheiro público, pois destinado a fim público. No
contrato, os contratantes possuem interesses opostos e antagônicos, os valores pagos por
uma parte à outra são considerados preço ou remuneração e, por tal razão, ingressam no
patrimônio privado tão logo a obrigação compactuada seja adimplida. 16
2.2. Convênios
O Decreto 6.170/07, de 17 de janeiro de 2007, que dispõe sobre
normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos
16
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão,
franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8ª ed. São Paulo: Altas, 2011, p. 232234.
75
de repasse, define convênio como: 17
o acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência
de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da
Seguridade Social da União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou
entidade da administração pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado,
órgão ou entidade da administração pública estadual, distrital ou municipal,
direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando a
execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto,
atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em
regime de mútua cooperação (artigo 1º, §1º, I, destacou-se).
Essa definição se utiliza dos traços essenciais dos convênios: interesse
recíproco, cooperação e ausência de finalidade lucrativa dos convenentes. O convênio é
muito utilizado para a transferência voluntária de recursos públicos para entidades do
Terceiro Setor, constituindo-se em instrumento da atividade administrativa de fomento
econômico em sentido estrito.
Os órgãos e entidades da Administração Pública federal que
pretenderem executar programas, projetos e atividades que envolvam transferências de
recursos financeiros deverão divulgar anualmente no Sistema de Gestão de Convênios e
Contratos de Repasse (SICONV) a relação dos programas a serem executados de forma
descentralizada e, quando couber, critérios para a seleção do convenente ou
contratado.18
Por outro lado, as entidades privadas sem fins lucrativos que
pretenderem celebrar convênio ou contrato de repasse com órgãos e entidades da
administração pública federal deverão realizar cadastro prévio no Sistema de Gestão de
Convênios e Contratos de Repasse – SICONV, conforme as normas do órgão central do
sistema. 19
O Decreto 6.170/07 revogou, tacitamente, o artigo 1º, § 1º do Decreto
5.504/05: atualmente, inexiste obrigação de as entidades privadas sem fins lucrativos
realizarem pregão para selecionar os terceiros com quem irão contratar. Assim, a
aquisição de produtos e a contratação de serviços com recursos da União deverão
observar os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo
necessária, no mínimo, a realização de cotação prévia de preços no mercado antes da
17
Regulamentado atualmente por ato interministerial do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, Ministério da Fazenda e Chefe da Controladoria Geral da União: a Portaria Interministerial
MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011. Esse ato normativo revogou expressamente a Portaria
Interministerial MP/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008.
18
Artigo 4º da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
19
Atualmente, essas normas estão previstas na Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de
novembro de 2011.
76
celebração do contrato (artigo 11 do Decreto 6.170/07).20 Ao final desse procedimento
competitivo simplificado, a entidade privada sem fins lucrativos, em decisão
fundamentada, selecionará a proposta mais vantajosa, segundo os critérios definidos no
chamamento para cotação prévia de preços.
A Instrução Normativa STN nº 1, de 15 de janeiro de 1997 (IN STN
1/97), disciplinou a celebração de convênios de natureza financeira da União até ser
revogada pela Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008 (na
redação dada pela Portaria Interministerial nº 342, de 05.11.08).21 A IN STN 1/97
vedava a realização de despesas a título de taxa de administração, gerência ou similar
com recursos do convênio (artigo 8º, I) e sujeitava as entidades privadas a realizarem
licitação, nos termos da Lei 8.666/93, para execução de despesas com os recursos
transferidos. 22
A redação original da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 127/08
permitia a utilização de até 5% do valor do objeto do convênio para o custeio de
despesas administrativas das entidades privadas sem fins lucrativos, desde que
expressamente previsto no plano de trabalho, relacionado com o objetivo do convênio e
contanto que tais despesas não fossem custeadas com recursos de outros convênios ou
contratos de repasse. Atualmente, os convênios ou contratos de repasse celebrados com
entidades privadas sem fins lucrativos poderão acolher despesas administrativas até o
limite de 15% do valor do objeto, desde que expressamente autorizadas e demonstradas
no respectivo instrumento e no plano de trabalho.23 É a denominada “taxa de
administração”.
Não será razoável e moral se o Poder Público simplesmente adotar a
praxe de destinar, em todos os ajustes conveniais, a “taxa de administração” máxima de
15% para as entidades do Terceiro Setor. Em alguns casos, a “taxa de administração”
poderá ser de 5%, como era na redação original da Portaria Interministerial
MP/MF/CGU nº 127/08; em outros, sequer haverá necessidade de pagamento dela. A
aferição de seu valor deverá ocorrer caso a caso e dependerá, essencialmente, da
complexidade do projeto e da estrutura da entidade privada parceira do Poder Público.
20
O procedimento de cotação prévia de preços no mercado está disciplinado nos artigos 57 a 61 da
Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
21
A Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008, passou a vigorar acrescida
do artigo 74-A, cuja redação era a seguinte: “A Instrução Normativa nº 01, de 15 de janeiro de 1997, da
Secretaria do Tesouro Nacional, não se aplica aos convênios e contratos de repasse celebrados sob a
vigência desta Portaria”.
22
Artigo 27 da IN 1/97, na redação da IN 3/2003, conforme Acórdão TCU nº 1010, de 6.8.2003.
23
Artigo 52, parágrafo único, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de
2011.
77
Como já visto, a atividade administrativa de fomento é subsidiária: a transferência de
recursos públicos não deve se constituir na única fonte de renda das entidades privadas
(supra, I-5.1).
Nem sempre será exigida contrapartida da entidade privada
convenente. É facultativa a exigência de contrapartida para as transferências previstas
na forma de subvenções sociais, contribuições correntes e de capital e auxílios. Por
outro lado, não é exigível contrapartida nas transferências de recursos às entidades com
certificação atualizada de entidade beneficente de assistência social nas áreas de saúde,
educação e assistência social.24 Quando for exigida, a contrapartida poderá ser atendida
por meio de recursos financeiros, bens ou serviços, desde que economicamente
mensuráveis. 25
É vedada a celebração de convênios com entidades privadas sem fins
lucrativos que tenham como dirigente agente político de Poder ou do Ministério
Público, tanto quanto dirigente de órgão ou entidade da administração pública, de
qualquer esfera governamental, ou respectivo cônjuge ou companheiro, bem como
parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau (artigo 2º, II, do
Decreto 6.170/07, com a redação dada pelo Decreto 6.619/08).
Também é vedada a celebração de convênio com entidade privada sem
fins lucrativos que tenha incorrido em pelo menos uma das seguintes condutas em suas
relações anteriores com a União: omissão no dever de prestar contas; descumprimento
injustificado do objeto de convênios, contratos de repasse ou termos de parceria; desvio
de finalidade na aplicação dos recursos transferidos; ocorrência de dano ao Erário; ou
prática de outros atos ilícitos na execução de convênios, contratos de repasse ou termos
de parceria (artigo 2º, V, do Decreto 6.170/07, na redação dada pelo Decreto 7.568/11).
É importante perceber que o convênio estabelecido entre o Poder
Público e as entidades do Terceiro Setor é instrumento de fomento administrativo que
possibilita o repasse de recursos públicos para as entidades privadas sem fins lucrativos,
mas que não deve ser utilizado como forma ilegal de delegação de serviços públicos, na
preclara lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro.26 O incentivo financeiro que ocorre
sob a forma de subvenções, auxílios e contribuições oriundas do orçamento público
jamais pode se constituir na única fonte de financiamento da entidade do Terceiro Setor,
24
Artigo 35, parágrafo único, da Lei 12.465/11.
Artigo 7º do Decreto 6.170/07.
26
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão,
franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8ª ed. São Paulo: Altas, 2011, p. 235.
25
78
que deve manter sua autonomia privada e se gerir por meio de recursos próprios.
2.3 Contratos de repasse
O contrato de repasse possui natureza convenial. É considerado
“instrumento congênere” ao convênio para fins de aplicação do artigo 116 da Lei
8.666/93. Além desse artigo, aplicam-se integralmente aos contratos de repasse o
Decreto 6.170/97 e a Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro
de 2011.
O Decreto 6.170/07 define-o como o instrumento administrativo por
meio do qual a transferência dos recursos financeiros se processa por intermédio de
instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatário da União
(artigo 1º, §1º, II). É utilizado para a transferência de recursos para realização de obras.
Segundo o artigo 8º do Decreto 6.170/07, a execução de programa de
trabalho que objetive a realização de obra será feita por meio de contrato de repasse,
salvo quando o concedente dispuser de estrutura para acompanhar a execução do
convênio. Caso a instituição ou agente financeiro público federal não detenha
capacidade técnica necessária ao regular acompanhamento da aplicação dos recursos
transferidos, figurará, no contrato de repasse, na qualidade de interveniente, outra
instituição pública ou privada a quem caberá o mencionado acompanhamento.
Aplicam-se aos contratos de repasse o mesmo regime jurídico dos
convênios (supra, III-2.2)
2.4 Contratos de gestão
No direito brasileiro, adotam-se duas acepções jurídicas diferentes de
contrato de gestão.
A primeira diz respeito aos acordos celebrados entre entidades da
Administração direta e indireta para ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e
financeira, tendo por objeto a fixação de metas de desempenho, nos termos do artigo 37,
§8º da Constituição Federal, na redação da Emenda Constitucional 19/2008.
A segunda refere-se aos acordos celebrados entre o Poder Público e
entidades privadas, como o contrato de gestão celebrado com o Serviço Social
Autônomo Associação das Pioneiras Sociais (Lei 8.246/91) e com as Organizações
79
Sociais, nos termos do artigo 5º da Lei 9.637/98. 27
Na primeira acepção, o contrato de gestão amplia a autonomia dos
entes públicos e, na segunda, restringe a autonomia das entidades privadas, as quais
voluntariamente se sujeitam às exigências convencionadas no ajuste.28 Em ambos os
casos, o contrato de gestão sempre deve conter, pelo menos, a forma como a autonomia
do contratado será exercida, a fixação de metas de desempenho e a maneira de controlar
os resultados pretendidos.
Neste trabalho importa estudar o contrato de gestão firmado com as
Organizações Sociais, definido como o instrumento firmado entre o Poder Público e a
entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre
as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas de ensino, pesquisa
científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente,
cultura e saúde (artigo 5º, Lei 9.637/98). O contrato de gestão da OS deve sempre
observar os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
economicidade e eficiência (artigo 37, caput, CF/88 e artigo 7º da Lei 9.637/98).
A doutrina se divide quanto à natureza jurídica desse contrato de
gestão, se contrato administrativo ou convênio (supra, III-2.1). Sílvio Luís Ferreira da
Rocha, Lúcia Valle Figueiredo e Tarso Cabral Violin entendem que se trata de contrato
administrativo.29 Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Rafael Carvalho Rezende
Oliveira e José dos Santos Carvalho Filho, o contrato de gestão possui a natureza
jurídica de convênio. 30
No julgamento da ADI 1.923/DF, os Ministros Carlos Ayres Britto e
Luiz Fux reconheceram a natureza convenial do contrato de gestão. Nas palavras de
Ayres Britto:
27
Maria Sylvia Zanella Di Pietro noticia que os primeiros contratos de gestão foram celebrados com a
Companhia Vale do Rio Doce – CVRD e com a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás (ambos com base no
Decreto 137/91) e com o Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais, com fundamento na
Lei 8.246/91. A citada autora menciona também a previsão, nos Decretos 2.487/98 e 2.488/98, de
celebração de contratos de gestão na qualificação de autarquias e fundações como agências executivas.
Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria públicoprivada e outras formas. 8ª ed. São Paulo: Altas, 2011, p. 264-265.
28
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p.. 265.
29
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 141.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 180.
VEDOIN, Tarso Cabral.Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica.
2ª ed. rev. ampl., p. 256.
30
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit. p. 266. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende.
Administração Pública, Concessões e Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p.282.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003, p. 283.
80
Ora, no caso da celebração, entre Estado e organização social, de “contrato de
gestão”, impossível deixar de reconhecer a presença de interesses tão
recíprocos quanto convergentes. A entidade privada “contratante” tem
objetivos de natureza social e finalidade não lucrativa (alíneas “a” e “b” do
inciso I do art. 2º da Lei 9.637/98). Objetivos e finalidades compartilhados
com o Poder Público.
Se utilizado como instrumento para formação de parceria entre as
partes e atividade de fomento da execução de atividades de relevância pública, o
contrato de gestão, realmente, possui natureza jurídica de convênio: os interesses são
comuns e os valores recebidos são vinculados ao cumprimento das metas estipuladas. O
contrato de gestão, assim como os convênios, possui plano de trabalho e fixação de
metas a serem atingidas e prazos definidos para sua execução (artigo 7º da Lei 9.637/98
e artigo 116 da Lei 8.666/93). No contrato de gestão, não há que se falar em supremacia
da Administração, mas em parceria, em colaboração entre o Poder Público e a entidade
privada. Também não há que se falar em equilíbrio econômico-financeiro da avença,
pois a Organização Social não busca lucro com a parceria, mas sim a prestação eficiente
de serviços de relevância pública, objetivo também comungado pelo Poder Público.
Não se desconhece, porém, que a Administração possui poderes
especiais de fiscalização e alteração do contrato de gestão, com o escopo de assegurar o
pleno atendimento do interesse público, características observadas nos contratos
administrativos. Mas, na essência, o contrato de gestão se aproxima mais da natureza
intrínseca dos convênios: são instrumentos de fomento e colaboração mútua para a
execução de serviços sociais por entidades privadas sem fins lucrativos, e não contratos
nos quais o particular busca o lucro, com direito ao equilíbrio econômico financeiro do
ajuste.
A Lei 9.637/98 estabeleceu os seguintes meios de fomento das
Organizações Sociais: título de Organização Social e declaração de interesse público e
utilidade social (fomento honorífico – artigos 1º e 11); destinação de recursos
orçamentários e bens públicos (fomento econômico e real – artigo 12); cessão de
servidor público, com ônus para a origem (execução direta da atividade por servidor
público – artigo 14); e absorção de atividades e órgãos públicos da União (privatização
de serviço social). Além disso, representantes do Poder Público participam
decisivamente na composição do conselho de administração da entidade (forma de
participação estatal na execução da atividade – artigo 3º, I, “a”).
A advertência de Alcázar foi propositalmente ignorada pelo legislador:
no modelo de Organização Social da Lei 9.637/98, a participação estatal é tão intensa
81
que o Poder Público, na verdade, desempenha indiretamente as atividades que
procurava, em tese, apenas fomentar.31 No ponto, assiste razão a Ricardo Marcondes
Martins quando diz que “ao invés de pescar, o Estado fornece o anzol, a isca, o
pescador, remunera o pescador e, ainda, paga um valor pecuniário ao particular
enquanto este aguarda a pescaria”. 32
Como deve ocorrer a utilização dos recursos públicos recebidos pela
OS por meio do contrato de gestão?
A lei diz que o Conselho de Administração das Organizações Sociais
deve aprovar regulamento próprio contendo os procedimentos que a entidade adotará
para contratar obras, compras e alienações, bem como o plano de cargos, salários e
benefícios dos empregados da entidade (artigo 4º, VIII, Lei 9.637/99). Aqui, duas
observações se fazem necessárias.
A primeira: não se exige licitação para as aquisições de bens ou
serviços realizadas pelas Organizações Sociais ou para contratação de pessoal. Por
serem entidades privadas e não integrarem a Administração direta e indireta, as
Organizações Sociais não precisam realizar licitação para tal fim, pois não são
abrangidas nesse ponto pelo estabelecido no artigo 1º da Lei 8.666/93. Mas, por outro
lado, deve haver seleção impessoal e objetiva para a realização dessas contratações, com
o escopo de assegurar os princípios da economicidade, isonomia, impessoalidade e
moralidade. Os procedimentos para contratação devem estar consignados em
regulamento próprio aprovado pelo Conselho de Administração da entidade, nos termos
do 4º, VIII, da Lei 9.637/98.
A segunda: os salários e benefícios dos empregados da entidade, se
pagos com recursos públicos, devem ser fixados de forma proporcional aos valores
praticados pelo mercado (conforme artigo 4º, VI, da Lei 9.790/99, aplicável por
analogia) e limitados à remuneração dos servidores públicos do Poder Executivo
Federal. Esse último parâmetro é estabelecido no artigo 34, parágrafo único, da Lei
10.637/02, que permite a dedução de imposto de renda de doações realizadas a OS e
OSCIPs cujos dirigentes recebam remuneração não superior, em seu valor bruto, ao
limite estabelecido para a remuneração de servidores do Poder Executivo Federal. O
contrato de gestão da OS, ao fixar os limites e critérios para as despesas com
31
ALCÁZAR, Mariano Baeno. Sobre El concepto de fomento. Disponível em: <
http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2116837>. Acesso em: 24 jun. 2011.
32
MARTINS, Ricardo Marcondes. Natureza jurídica das organizações sociais e das organizações
sociais de interesse público. In: SPARAPANI, Priscilia; ADRI, Renata Porto (coord.). Intervenção do
Estado no domínio econômico e no domínio social. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 287-318.
82
remuneração e vantagens percebidas pelos seus dirigentes e empregados (artigo 7º, III,
da Lei 9.673/98), deverá atentar-se a essa limitação legal.
As inconstitucionalidades referentes à participação do Poder Público
nos órgãos de direção da entidade (por ferir a liberdade constitucional de associação e a
autonomia privada) e à absorção de serviços públicos pela OS (por configurar renúncia
estatal de deveres constitucionais), já foram tratadas neste trabalho (supra, II-4).
Faltou abordar a flagrante inconstitucionalidade da excêntrica cessão
de servidores públicos para as Organizações Sociais. Ora, o agente cedido continuará a
se qualificar como servidor público, sendo veículo de expressão da vontade do Estado.
De acordo com Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a cessão não elimina o vínculo existente
entre a Administração e o agente, que continua submetido ao poder hierárquico da
Administração.33 Por isso, a cessão não é atividade de fomento: o trabalho do servidor
público cedido é forma direta de execução estatal de atividade que se pretendia apenas
fomentar. Ademais, o servidor público prestou concurso público para trabalhar na
Administração, não em entidade privada. Impor-lhe que trabalhe em organização
privada viola seus direitos subjetivos ou, mesmo que haja seu consentimento, “não se
admite que o Estado seja provedor de pessoal de entidades particulares”. 34
Luis Eduardo Patrone Regules faz pertinente crítica aos meios de
fomento dedicados às OS, qualificados por ele como imoderados e despidos de zelo
com o patrimônio público.35 Com efeito, o legislador excedeu-se ao estabelecer o
fomento das Organizações Sociais, prevendo meios que configuram prestação direta de
atividades sociais pelo Poder Público e não atividade legítima de fomento. A Lei
9.637/98 deveria ter ser limitado a incentivar e induzir a entidade privada a prestar
serviços de relevância pública por conta própria, como fez a Lei das OSCIPs.
Somente se legitimam constitucionalmente os meios de fomento
honoríficos e econômicos (recursos orçamentários e bens públicos) das Organizações
Sociais. Advirta-se, como já dito, que a qualificação da OS e a celebração do contrato de
gestão devem sempre respeitar os princípios constitucionais administrativos e os
recursos públicos jamais devem se constituir na única fonte de renda da entidade.
2.5 Termos de parceria
33
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 24.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 246.
35
REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 155.
34
83
O termo de parceria é definido no artigo 9º da Lei 9.790/99 como o
instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas
como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de
vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de
interesse público previstas no artigo 3º da referida lei. É conceituado normativamente
como “instrumento jurídico previsto na Lei 9.790, de 23 de março de 1999, para
transferência de recursos para organizações sociais de interesse público”. 36
A lei das OSCIPs, ao estabelecer os contornos jurídicos do termo de
parceria, adotou redação muito próxima à da Lei 9.637/99. Suas cláusulas essenciais são
o objeto (que conterá a especificação do programa de trabalho), a fixação de metas de
desempenho, o respectivo cronograma de execução e a previsão expressa de critérios
objetivos para o controle de resultados (artigo 10, §1º, Lei 9.790/99). O Decreto 3.100,
de 30 de junho de 1999, regulamentou a Lei 9.790/99.
A doutrina se divide quanto à natureza jurídica do termo de parceria.
De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, “esse negócio jurídico
qualifica-se como verdadeiro convênio administrativo, já que as partes têm interesses
comuns e visam à mútua cooperação”.37 Em sentido contrário, Tarso Cabral Violin
entende que o termo de parceria possui a mesma natureza jurídica dos contratos
administrativos, “mas com algumas peculiaridades próprias”.38
Da mesma forma como ocorre com o contrato de gestão, o termo de
parceria foi idealizado pelo legislador como instrumento de fomento das atividades das
OSCPIs, para execução da parceria estabelecida com o Poder Público. Ou seja: é o
instrumento que estabelece as condições nas quais a entidade particular e o Poder
Público vão atuar, em mútua colaboração, na busca de interesses comuns. Dessa
maneira, é inegável a natureza convenial do termo de parceria.
Por serem entidades privadas e não integrarem a Administração direta
e indireta, as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público não precisam licitar
para realizar contratações utilizando-se dos recursos públicos recebidos, pois não são
abrangidas nesse ponto pelo artigo 1º da Lei 8.666/93. Os procedimentos objetivos para
36
Nos termos do artigo 1º, §2º, XXV, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de
novembro de 2011, que estabelece normas para execução do Decreto 6.170/07.
37
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. 287. No mesmo sentido: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na
administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras
formas. 8ª ed. São Paulo: Altas, 2011, p. 281. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Administração
Pública, Concessões e Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p.282.
38
VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise
crítica. 2ª ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Forum, 2010, p. 264.
84
contratação de obras e serviços, contratação de pessoal, bem como para compras com o
emprego de recursos públicos, devem constar de regulamento próprio publicado pela
OSCIP em até 30 dias contados da celebração do termo de parceria (artigo 14 da Lei
9.790/99), observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, economicidade e eficiência.
Nesse sentido, o TCU decidiu que as Organizações da Sociedade Civil
de Interesse Público contratadas pela Administração Pública Federal, por intermédio de
termos de parceria, submetem-se a regulamento próprio de contratação de obras e
serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder
Público, não se lhes aplicando as normas relativas aos convênios (Acórdão 1.777/05).
A participação social foi prestigiada na Lei das OSCIPs por meio da
realização de consulta aos Conselhos de Políticas públicas das áreas correspondentes,
nos respectivos níveis de governo, antes da celebração do termo de parceria (artigo 10,
§1º, Lei 9.790/99). Nos termos do artigo 10, §1º, do Decreto 3.100/99, a manifestação
do Conselho de Política Pública será considerada para a tomada de decisão final em
relação ao termo de parceria. Isso impõe à Administração ônus argumentativo
fundamentado, com a exposição de todos os motivos de sua decisão, em caso de não
acolhimento da manifestação do Conselho de Política Pública.
Os meios de fomento repassados à OSCIP, por meio do termo de
parceria, são recursos e bens de origem púbica, conforme se depreende do artigo 12 da
Lei 9.790/99. A lei não prevê a cessão de servidores públicos ou a absorção de
atividades desenvolvidas por órgãos públicos. Os recursos recebidos com a parceria não
devem ser a única fonte de renda das OSCIPs, o que descaracterizaria a atividade
administrativa de fomento.
3. Parâmetros de controle do Terceiro Setor
Há uma tríplice dimensão do controle da Administração Pública. O
controle do poder, para garantir a liberdade e proteger os indivíduos contra o arbítrio; o
controle dos meios, orientado para otimizar a gestão do patrimônio público e evitar o
desvio de finalidade; e o controle dos resultados, voltado para assegurar a estabilidade e
a manutenção de políticas públicas de longo prazo e o suprimento das demandas dos
administrados.39
39
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo Marques. Os grandes desafios do controle da
85
No âmbito da Administração direta ou centralizada o controle é
decorrência da subordinação hierárquica, ao passo em que na Administração indireta ou
descentralizada resulta da vinculação administrativa, constituindo-se em controle
finalístico, restrito e limitado aos termos da lei que o estabelece. 40
As entidades do Terceiro Setor são pessoas jurídicas de direito
privado, constituídas sob a forma de fundações ou associações, nos termos da lei civil.
Não integram a administração direta (por exemplo, Ministérios) nem indireta (tais como
as autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista).
Por isso, em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que o Terceiro Setor se
submeteria exclusivamente à fiscalização e controle estatal nos termos da lei civil. 41
O controle do Poder Público sobre as entidades do Terceiro Setor
também se manifesta na tríplice dimensão do controle do poder, meios e objetivos, mas
orienta-se pelos seguintes vetores: vinculação ao instrumento negocial (convênio,
contrato de repasse, contrato de gestão ou termo de parceria) para verificação dos
resultados obtidos – em especial quanto à qualidade dos serviços de relevância pública
ao cidadão cliente (infra, IV-4.2), adequada utilização de bens e recursos públicos
(artigo 70, parágrafo único, da Constituição Federal, e artigo 13, “c” do Decreto-lei
200/67) e vedação de interferência estatal no funcionamento da entidade.
Com visto, o Terceiro Setor presta serviços de relevância pública em
colaboração com o Estado, sendo beneficiado pela atividade administrativa de fomento.
Disso decorre necessariamente a incidência do controle dos meios, referente à correta
aplicação dos bens e recursos públicos recebidos e o controle dos resultados, no que diz
com o cumprimento das metas pactuadas nos instrumentos de parceria (contrato de
gestão, termo de parceria ou convênio) e das finalidades sociais das entidades, em
especial quanto à qualidade dos serviços prestados à população (infra, IV). O controle
do poder também se faz presente, uma vez que é vedada a interferência estatal no
funcionamento das entidades, o que impede que o financiamento estatal se constitua no
único meio de sobrevivência da entidade privada fomentada: deve ser resguardada a
autonomia privada da pessoa jurídica de direito privado, nos termos do artigo 5º, XVIII
Administração Pública. In: MODESTO, Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira. 2.
ed.rev. ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 199-238.
40
MEIRELLES, Hely Lopes. Direto Administrativo Brasileiro. 26ª edição, São Paulo: Malheiros,
2001, p. 624.
41
A atuação do Ministério Público no acompanhamento das associações de interesse social e no
velamento das fundações é tratada mais adiante (infra, V- 2.3, 2.4).
86
da Constituição Federal. 42
Tendo como referencial o momento de celebração do instrumento
negocial (convênio, contrato de repasse, contrato de gestão ou termo de parceria), o
controle estatal das entidades do Terceiro Setor pode ser classificado como prévio
(preventivo ou a priori), concomitante ou sucessivo e subsequente ou corretivo (a
posteriori). 43
Controle prévio é o que antecede a expedição do título jurídico
especial, sendo exercido antes do estabelecimento da parceria entre o Poder Público e o
Terceiro Setor. É realizado antes da celebração de convênio, contrato de repasse,
contrato de gestão ou termo de parceria.
Controle concomitante é o exercido durante a execução do objeto da
parceria estabelecida entre o Estado e o Terceiro Setor, tal como a fiscalização do
convênio ou contrato de gestão em andamento e o acompanhamento da execução dos
termos de parcerias pelos Conselhos de Políticas Públicas.
Controle a posteriori é o que se efetiva após a conclusão do ato
controlado, com o escopo de corrigir eventuais defeitos ou declarar sua nulidade. São
exemplos: prestação de contas do convênio, desqualificação das Organizações Sociais e
ajuizamento de ação de improbidade administrativa contra os responsáveis legais de
determinada Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
O controle administrativo das entidades do Terceiro Setor possui
íntima relação com a noção atual de accountability, entendida como a obrigação de
prestação de contas dos resultados obtidos em decorrência das responsabilidades
assumidas no exercício de determinada função. Accountability significa, assim,
transparência, responsabilização e prestação de contas. 44
Lícinio Lopes, tratando do controle administrativo das Instituições
42
Ora, como se falar em autonomia privada se o entidade privada for totalmente financiada com
recursos públicos? O controle das parcerias volta-se aos resultados esperados porque a entidade privada
possui liberdade gerencial para buscar, por sua conta e risco, os melhores meios para atingir as metas
pactuadas. O risco do empreendimento é da entidade privada, não do Poder Público. Se o financiamento
da entidade do Terceiro Setor for exclusivamente público e o Poder Público se responsabilizar
integralmente pela atividade desempenhada, não há parceria legitimamente estabelecida, mas mera e
ilegal fuga do regime de direito público por meio da utilização de uma pessoa jurídica de direito privado.
43
Adotam-se aqui, mutatis mutandis, as lições clássicas de Hely Lopes Meirelles. Direto
Administrativo Brasileiro. 26ª edição, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 627.
44
No plano vertical, accountability refere-se principalmente a premiar ou punir um governante nas
eleições, reelegendo-o ou não. No plano horizontal, trata-se da divisão de poderes e do controle entre eles,
englobando os controles administrativos, legislativos, de contas e judiciários. FÊU, Carlos Henrique.
Controle interno na Administração Pública. Disponível em: <http://jus.uol.com.br> Acesso em: 14 jul.
2011. SANO, Hironobu. Nova Gestão Pública e accountability: o caso das organizações sociais paulistas.
São Paulo: FGV/EAESP, 2003, 149 p. Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-graduação
na FGV/EAESP, Área de Concentração: Governo e Sociedade Civil no Contexto Local.
87
Particulares de Solidariedade Social em Portugal, deixou registrado o significado da
expressão accountability, em palavras que merecem transcrição: 45
Toda a discussão sobre o controle, fiscalização, avaliação e
institucionalização de parâmetros jurídicos de relacionamento embate sempre
neste dado: mais do que a qualidade dos serviços prestados (que também é
importante), o que está fundamentalmente em causa é a correta aplicação dos
recursos públicos ou do financiamento público. A sua explicação racional
centra-se na transparência e na responsabilização pelas decisões tomadas e
pelos procedimentos seguidos. Na verdade, a palavra-chave e juridicamente
normalizadora do modelo de relacionamento entre os poderes públicos e as
organizações, independentemente da sua forma (associativa ou fundacional)
está no significado da expressão accountability. Ela tem, antes de mais, um
significado pré-jurídico – traduz, no plano ético e social, a responsabilidade
pelas próprias decisões, ações e omissões perante o exterior. A
responsabilidade ética e social é aqui sinônimo de reputação e honra. No
plano jurídico, esta expressão tem subjacente uma específica relação jurídica:
na sua origem está a celebração de um pacto ou de um contrato através do
qual uma das partes ajusta com a outra a prestação de determinados serviços.
Mas, em contrapartida, exige a prestação de contas sobre atividade
desenvolvida e a aplicação dos dinheiros recebidos. Isto é, exige-se a
responsabilidade pela gestão de dinheiros e valores públicos. A transposição
do uso deste instrumento jurídico para o quadro relacional entre os poderes
públicos e as organizações fundamenta a criação de uma relação jurídica
especial.
O dever constitucional da transparência deve ser observado sempre,
em todos os momentos de exercício do controle administrativo das entidades do
Terceiro Setor. Por ser deveras importante, é tratado em separado no tópico a seguir.
3.1 Transparência
A publicidade, como princípio normativo previsto no artigo 37 da
Constituição Federal, é o imperativo geral de transparência e divulgação dos atos
administrativos lato sensu praticados no exercício da função administrativa pela
administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios.
São preciosas as lições de Carlos Ari Sundfeld sobre o princípio da
publicidade: 46
A razão de ser do Estado é toda externa. Tudo que nele se passa, tudo
que faz, tudo que possui, tem uma direção exterior. A finalidade de sua ação
não reside jamais em algum benefício íntimo: está sempre voltado ao
interesse público. E o que é interesse público? O que o ordenamento entende
45
LOPES, Licínio. As Instituições Particulares de Solidariedade Social. Coimbra: Livraria Almedina,
2009, p. 457.
46
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4a ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 90.
88
valioso para a coletividade (não para a pessoa estatal) e que, por isso, protege
e prestigia. Assim, os beneficiários de sua atividade são sempre os
particulares. Os recursos que manipula não são seus: vêm dos particulares
individualmente considerados e passam a pertencer à coletividade deles. Os
atos que produz estão sempre voltados aos particulares: mesmo os atos
internos são mero estágio intermediário para que, a final, algo se produza em
relação a eles. Em uma figura: falta ao Estado vida interior, faltam-lhe
interesses pessoas íntimos.
Com os indivíduos é o inverso que ocorre. Sua atividade diz com a
liberdade, com a realização de valores íntimos. Por isso, protege-se sua
privacidade, sua correspondência é sigilosa, sua casa é inviolável (CF, art. 5 o,
incs. X, XI e XII). Como o Estado jamais maneja interesses, poderes ou
direitos íntimos, tem o dever da mais absoluta transparência. “Todo o poder
emana do povo” (CF, art. 1o, § 1o). É óbvio, então, que o povo, titular do
poder, tem o direito de conhecer tudo o que concerne ao Estado, de controlar
passo a passo o exercício do poder. À margem disso, qualquer pessoa
atingida pelo Poder Público – isto é, que de qualquer modo seja destinatária,
prejudicada ou atendida por ato estatal – tem o direito individual de conhecer
esse ato, suas razões, sua base fática e jurídica. Em consequência, seja em
nome da limpidez da atividade estatal, seja para garantia de direitos
individuais, o Estado tem o dever da publicidade.
A publicidade é princípio reitor da atividade administrativa de
fomento que impõe ao Poder Público o dever de conferir ampla transparência a todas as
etapas do estabelecimento de parcerias com as entidades do Terceiro Setor. Por outro
lado, as entidades civis que recebem recursos públicos também devem respeito ao
referido princípio.
No Acórdão 2066/2006 – Plenário, o TCU determinou ao Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão que apresentasse estudo técnico para
implementação de sistema de informática para acompanhamento pela internet de todos
os convênios e outros instrumentos jurídicos utilizados para transferir recursos federais
a outros órgãos públicos e entidades do setor privado. Outrossim, determinou ao
Conselho Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social e ao
Ministério da Justiça a disponibilização na internet das informações relativas aos títulos
jurídicos sob responsabilidade de cada órgão, com a finalidade de viabilizar a
transparência necessária ao controle social. A partir da ação da Corte de Contas, foram
desenvolvidos mecanismos para transparência e controle do repasse de recursos
públicos para as entidades do Terceiro Setor.
O Ministério da Justiça criou, em 2007, o Cadastro Nacional de
Entidades de Utilidade Pública – CNEs/MJ, administrado pelo Departamento de Justiça,
Classificação, Títulos e Qualificação da Secretaria Nacional de Justiça DEJUS/SNJ,
para a inscrição das entidades sociais qualificadas e tituladas no âmbito do Ministério da
Justiça: as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, as entidades de
utilidade pública e as organizações civis estrangeiras que possuem autorização para
89
funcionamento no país.
Essas entidades são obrigadas a fornecer informações relevantes para
cadastro no CNEs, tais como as fontes de recursos públicos e privados, as linhas de ação
e atividades desenvolvidas, o modo de utilização de seus recursos e nomes e a
qualificação de seus dirigentes e representantes.
O CNEs/MJ é regulamentado pela Portaria 24, de 11 de outubro de
2007, do Secretário Nacional de Justiça. Qualquer cidadão pode acessar as informações
do CNEs no portal do Ministério da Justiça. 47
Em relação ao processo administrativo de certificação das entidades
beneficentes de assistência social, a transparência será plenamente observada por meio
da publicidade de sua tramitação em cada Ministério envolvido, permitindo-se à
sociedade o acompanhamento pela internet de todo o processo. Os Ministérios
responsáveis pela certificação deverão manter, nos respectivos sítios na internet, lista
atualizada com os dados relativos aos certificados emitidos e seu período de vigência,
bem como informações sobre as entidades certificadas, incluindo os serviços por elas
prestados no âmbito certificado e os recursos financeiros a elas destinados (artigo 21, §§
5º e 6º da Lei 12.101/09).
As entidades beneficentes de assistência social que gozarem de
imunidade fiscal deverão manter, em local visível ao público, placa indicativa contendo
informações sobre a sua condição de beneficente e sobre sua área de atuação, conforme
o artigo 41 da Lei 12.101/09.
A publicidade do processo de seleção da entidade parceira do Poder
Público é fundamental para a escolha da mais eficiente e para o controle da
impessoalidade no exercício da atividade de fomento.
Assim, será dada ampla publicidade ao chamamento público para
celebração de convênios e contratos de repasse com entidades sem fins lucrativos, pelo
prazo mínimo de quinze dias, especialmente por intermédio da divulgação na primeira
página do sítio oficial do órgão ou entidade concedente, bem como no Portal dos
Convênios (artigo 4º, § 1º, do Decreto 6.170/07, na redação dada pelo Decreto
7.568/11). Para seleção da OSICP que celebrará termo de parceria com o Poder Público,
o edital do concurso de projetos será publicado com ampla divulgação (artigo 23 do
Decreto 3.100/99).
Depois de estabelecida a parceria, a publicidade dos atos praticados
47
< http://portal.mj.gov.br>. Acesso em: 2 fev. 2012.
90
tanto pelo Poder Público quanto pela entidade beneficiada permitirá o acompanhamento
e fiscalização da correta aplicação dos recursos públicos repassados às entidades do
Terceiro Setor.
As disposições da Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regula
o acesso a informações públicas, aplicam-se, no que couber, às entidades privadas sem
fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos
públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão,
termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.
Nesse sentido, os dados referentes à celebração, liberação de recursos,
acompanhamento da execução e prestação de contas de convênios, contratos de repasse
e termos de parceria serão registrados no Sistema de Gestão de Convênios e Contratos
de Repasse (SINCONV), aberto ao público, via rede mundial de computadores Internet, por meio de página específica denominada Portal dos Convênios. 48
Os convenentes ou contratados deverão disponibilizar, por meio da
internet ou, na sua falta, em sua sede, em local de fácil visibilidade, consulta ao extrato
do convênio ou outro instrumento utilizado, contendo, pelo menos, objeto, a finalidade,
os valores e as datas de liberação e detalhamento da aplicação dos recursos, bem como
as contratações realizadas para a execução do objeto pactuado. 49
Por sua vez, as OSCIPs deverão dar publicidade, no encerramento do
exercício fiscal, por qualquer meio eficaz, ao relatório de atividades e das
demonstrações financeiras da entidade, incluindo-se as certidões negativas de débitos
junto ao INSS e ao FGTS, colocando-os à disposição para exame de qualquer cidadão
(artigo 4º, VII, “b” da Lei 9.790/99), bem como publicar o extrato da execução física e
financeira do termo de parceria, referido no art. 10, § 2o, VI, da Lei no 9.790, de 1999,
na imprensa oficial da área de abrangência do projeto, no prazo máximo de sessenta
dias após o término de cada exercício financeiro (artigo 18 do Decreto 3.100/99).
Toda entidade privada sem fins lucrativos, beneficiada com recursos
públicos, deve firmar compromisso de disponibilizar ao cidadão, por meio da internet
ou, na sua falta, em sua sede, consulta ao extrato do convênio ou outro instrumento
48
É o que determina o artigo 13 do Decreto 6.170/07. O site é o www.convenios.gov.br. Ressalte-se
que todas as funcionalidades do SINCOV ainda não foram implantadas. Contudo, o Decreto 7.641, de 12
de dezembro de 2011, inseriu no Decreto 6.170/2007 o artigo 18-B, estabelecendo o prazo de 16 de
janeiro de 2012 para que todos os órgãos e entidades que realizem transferências de recursos oriundos dos
Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União por meio de convênios, contratos de repasse ou
termos passem a utilizar o sistema.
49
É o que dispõe o artigo 53 da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de
2011.
91
utilizado, contendo, pelo menos, o objeto, a finalidade e o detalhamento da aplicação
dos recursos (artigo 34, IV, Lei 12.465/11).
Observa-se que a transparência da atividade administrativa de fomento
das entidades de utilidade pública federal, OSCIPs e entidades beneficentes de
assistência social vem ocorrendo principalmente pela internet, por meio da divulgação
de informações que podem ser acessadas por qualquer cidadão. Ainda não se chegou ao
nível ideal de detalhamento das informações disponibilizadas virtualmente, mas já se
observa esforços do Poder Público em criar uma nova cultura da transparência
administrativa, utilizando-se da internet como importante ferramenta para divulgação de
informações públicas. 50
Em relação às Organizações Sociais, até o momento não houve
regulamentação da Lei 9.637/98, por meio do “Programa Nacional de Publicização –
PNP”, talvez devido à insegurança jurídica decorrente das inconstitucionalidades da Lei
9.637/98. O modelo das OS ainda não foi adotado com intensidade no âmbito federal,
provavelmente aguardando-se a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre a
compatibilidade da Lei 9.637/98 com a Constituição Federal. De qualquer forma, o
dever de ampla publicidade da atividade de fomento das OS decorre dos princípios
constitucionais administrativos e da publicidade que deve nortear a elaboração e
execução do contrato de gestão (artigo 7º da Lei 9.637/98).
4. Controle prévio
Os vários escândalos de corrupção da história recente do país e a
experiência fiscalizatória do Tribunal de Contas da União demonstram que o momento
em que se exerce o controle estatal é crucial para o êxito das parcerias estabelecidas
entre o Poder Público e o Terceiro Setor. Em outros termos: o controle preventivo é
indispensável para a seleção do parceiro privado ideal e influirá decisivamente na
correta aplicação dos recursos públicos posteriormente repassados.
Antônio Alves de Carvalho Neto destaca que o controle prévio é o
mais efetivo e menos oneroso meio de fiscalização do ciclo de transferências de
recursos públicos para o Terceiro Setor.51 Nessa fase devem ser efetivamente verificados
50
Nesse sentido, a Lei Complementar 131, de 27 de maio de 2009, ao determinar a divulgação das
contas públicas em tempo real pela internet, toca diretamente na obrigação de prestação de contas dos
atos públicos para conhecimento e acompanhamento constante da sociedade.
51
NETO, Antonio Alves de Carvalho. Transferências de recursos do orçamento da União para
organizações não-governamentais. Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Orçamento
92
o plano de trabalho apresentado e a qualificação técnica da entidade para executar o
objeto proposto. Com efeito, a ausência de critérios objetivos e previamente
estabelecidos e divulgados para a seleção da entidade parceira, bem como a ineficiente
fundamentação do ato de escolha da entidade, aumentam os riscos de desvio de
finalidade e de ineficiência na obtenção dos resultados pretendidos.
Muitas vezes os convênios e ajustes similares não resistem às
auditorias do TCU ou fiscalizações do Ministério Público, que detectam graves
irregularidades mesmo em casos nos quais já houvera aprovação formal do repassador
dos recursos públicos.
É na fase anterior à celebração do ajuste que deve ser realizado o
procedimento competitivo para seleção da parceira mais eficiente, verificado se a
entidade privada possui patrimônio próprio e analisado se sua qualificação técnica é
adequada. Se o Poder Público se cercar desses cuidados básicos antes de escolher o
parceiro privado, a probabilidade de desvio de recursos públicos diminuirá
consideravelmente.
4.1 Procedimento administrativo e atividade de fomento
A doutrina comumente utiliza a expressão processo e procedimento
administrativo como sinônimos para indicar a sucessão itinerária e encadeada de atos
administrativos que tendem, em conjunto, a um resultado final e conclusivo.52 Contudo,
deve-se distinguir procedimento de processo administrativo.
Procedimento administrativo é o caminho a ser percorrido pela
Administração para cumprir determinadas formalidades sequenciais antes de se chegar
ao ato final. É o que ocorre, por exemplo, com o procedimento de licitação,
procedimento de concurso público e procedimento de inquérito civil.
A
denominação
processo
administrativo
restringe-se
aos
procedimentos nos quais a Administração pretende aplicar sanções ou punições aos
administrados, ou em qualquer hipótese em que houver acusações em geral ou
litigância. Quando houver processo administrativo, serão assegurados o contraditório e
Público promovido pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), da Câmara dos
Deputados, e pelo Instituto Serdezello Corrêa (ISC), do Tribunal de Contas da União. Brasília, 2007.
Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: 14 abr. 2011.
52
É a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São
Paulo: Malheiros, 2012, p. 495.
93
a ampla defesa, nos termos do inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal. 53
Para Carmem Lúcia Antunes Rocha, “o processo administrativo
democrático não é senão o encontro da segurança jurídica justa. Ele é uma das formas
de concretização do princípio da legitimidade do poder, à medida em que se esclarecem
e se afirmam os motivos das decisões administrativas.” 54
Odete Medauar ensina que o procedimento administrativo extrapolou
a dimensão restrita da expedição do ato administrativo em si para chegar até a finalidade
de legitimação do poder. O fenômeno da processualidade administrativa ultrapassou,
assim, a simples perspectiva interna para alcançar perspectivas sociais e políticas. A
aludida autora elenca as finalidades do procedimento ou processo administrativo:
garantir a tutela dos direitos dos administrados afetados pelos atos administrativos;
melhorar o conteúdo das decisões administrativas por meio da participação dos
interessados; aumentar a eficácia das decisões; legitimar o poder; realizar justiça;
aproximar Administração e cidadãos; sistematizar atuações administrativas; facilitar o
controle da Administração; e aplicar os princípios e regras comuns da atividade
administrativa. 55
José Roberto Pimenta Oliveira registrou que, como não há lei
específica disciplinadora da atividade administrativa de fomento no âmbito da União,
aplica-se a Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo.56 Como corolário dos
princípios da razoabilidade e proporcionalidade, deve haver adequação entre os meios e
fins e observância de motivação não apenas no momento da concessão do benefício,
mas também no acompanhamento da execução da medida fomentadora (artigos 2º, VI, e
artigo 50, ambos da Lei 9.784/99).
Assim, a atividade administrativa de fomento deve respeitar os
princípios administrativos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência (supra, I-4) e é desempenhada em procedimento administrativo com, pelo
menos, três objetivos específicos.
O primeiro deles: demonstrar que o estabelecimento da parceria com a
entidade do Terceiro Setor é complementar à atividade estatal e não forma dissimulada
53
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
436 et. seq.
54
ROCHA, Cármen Lúcia Antues. Princípios constitucionais no processo administrativo brasileiro.
Revista Trimestral de Direito Público nº 17. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 5-33.
55
MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1993, p. 61-69.
56
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no
direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 537.
94
de transferência ilegal de serviços públicos que deveriam ser prestados pelo Estado no
cumprimento de seus deveres constitucionais. Para isso, a Administração deve
demonstrar objetivamente que o incentivo ao Terceiro Setor não implicará na
diminuição da capacidade de prestação estatal de serviços públicos e, ao mesmo tempo,
indicar dados concretos sobre a esperada eficiência no desempenho privado das
atividades que serão fomentadas.
O Ministro Ayres Britto, no julgamento da ADI 1.923/DF, assentou
que a administração deve demonstrar, objetivamente, “em que o regime da parceria com
a iniciativa privada se revele como de superior qualidade frente à atuação isolada ou
solitária do próprio Estado enquanto titular da atividade em questão”.
O segundo: possibilitar a disputa da parceria entre as entidades do
Terceiro Setor que se encontrarem nas mesmas condições. Por exemplo, se houver duas
ou mais Organizações Sociais qualificadas para a execução da mesma atividade, o
Poder Público deverá, obrigatoriamente, realizar procedimento competitivo para escolha
da entidade parceira com a qual celebrará o contrato de gestão. Se a realização da
parceria pressupõe a maior eficiência na execução das atividades pelo Terceiro Setor, a
disputa entre as entidades privadas é a forma adequada para a seleção do parceiro mais
qualificado.
Por fim, o terceiro: justificar a escolha de determinada entidade do
Terceiro Setor, quando a Administração, excepcionalmente, não realizar processo
administrativo de competição, por inviabilidade de disputa ou outro motivo
devidamente fundamentado. Exemplo: em face das especificidades do projeto almejado
pelo Poder Público, determinada entidade privada possui exclusivo know-how para o
desempenho das atividades pretendidas com a parceria.
Esses objetivos concretizam as múltiplas finalidades atuais do
procedimento administrativo e possibilitam o adequado controle do exercício da
relevante atividade administrativa de fomento das entidades do Terceiro Setor.
4.2 Procedimento de competição para celebração de parcerias
O artigo 37, XXII, da Constituição Federal, estabelece o dever
constitucional de licitar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e
menciona expressamente a necessidade de fixação de cláusulas que estabeleçam
obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta. Ou seja: o texto
constitucional que impõe a realização de licitação está se referindo ao instituto do
95
contrato, no qual são ínsitos os elementos da remuneração e do equilíbrio econômico
entre as partes.
Especificando o referido dispositivo constitucional, o artigo 2º da Lei
8.666/93 restringe a realização de licitação para a contratação, pela Administração, de
obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e
locações. A lei de licitações, por esses motivos, somente se aplica aos convênios e
instrumentos congêneres (leia-se: contratos de repasse, contratos de gestão e termos de
parceria) no que couber, nos termos do artigo 116 da Lei 8.666/93.
Os convênios, contratos de repasse, contratos de gestão e termos de
parceria formalizam a transferência de recursos e bens públicos para as entidades do
Terceiro Setor e, desde que legitimamente utilizados como meios de fomento, possuem
natureza convenial. Daí não ser necessária realização de procedimento licitatório,
conforme definido na Lei 8.666/93, para a celebração de tais ajustes.
Em muitos casos, todavia, os instrumentos de parceria com o Terceiro
Setor não são utilizados para fomentar atividades sociais das entidades privadas sem
fins lucrativos, mas para a contratação de serviços específicos ou terceirização ilegal de
mão de obra. Nesses casos, é imperiosa a realização de licitação, nos precisos termos da
Lei 8.666/93, pois esses ajustes, apesar da denominação utilizada (convênio, contrato de
repasse, contrato de gestão ou termo de parceira) e da ilegalidade da conduta
administrativa, terão a natureza jurídica de um verdadeiro contrato administrativo.
É precisa a lição de Marçal Justen Filho: as expressões contrato de
gestão e termo de parceria podem comportar figuras de diversa categoria, razão pela
qual é importante verificar a natureza jurídica do ato pactuado sob tais denominações.
“O regime jurídico aplicável dependerá da identificação do substrato da relação jurídica
pactuada.”57 Da mesma forma, a denominação convênio pode se referir, na verdade, a
verdadeiro contrato administrativo, o qual deverá respeitar, integralmente, a Lei
8.666/93, sob pena de nulidade.
De qualquer forma, a Administração deverá realizar procedimento de
competição para selecionar a entidade do Terceiro Setor com a qual celebrará convênio,
contrato de repasse, contrato de gestão (OS) ou termo de parceria (OSCIP). 58
57
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14ª ed. São
Paulo: Dialética, 2010, p. 39.
58
Os dois Ministros do STF que já votaram no julgamento da ADI 1.923/DF – Ayres Britto e Luis Fux
– entenderam que, ainda que não seja aplicável a Lei 8.666/93 para a celebração do contrato de gestão
com as Organizações Sociais, a Administração deverá conduzir o estabelecimento da parceria de forma
pública, objetiva e impessoal, com a observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF, o que só
96
Carlos Ari Sundfeld ensina que a Administração não pode escolher
arbitrariamente o administrado que receberá o benefício estatal e que, como regra geral,
todo benefício estatal exige a prévia realização de um processo de competição. 59
Os objetivos do procedimento de competição são possibilitar a
participação de todos os eventuais interessados (princípio da isonomia) e selecionar o
participante mais preparado ou qualificado para se relacionar com a administração
(princípio da eficiência). Ao contrário do processo administrativo disciplinar, instaurado
em desfavor de alguém, o procedimento de competição é instaurado em favor de todos,
qualificados como candidatos, participantes ou licitantes. 60
O fundamento constitucional para a realização de procedimento
administrativo de competição para seleção da entidade do Terceiro Setor, sempre que
houver viabilidade da disputa, não se encontra no dever de licitação, previsto no artigo
37, XXII, mas nos princípios administrativos insculpidos no caput desse mesmo artigo,
em especial os da impessoalidade, moralidade e eficiência.61 Frise-se que as
Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
também devem respeito a tais princípios, por imposição legal (artigo 7º da Lei 9.637/98
e artigo 4º, I, da Lei 9.790/99).
O significado do princípio da impessoalidade é captado com precisão
por Antônio Carlos Cintra do Amaral: no exercício de uma função estatal, o agente
público atua como órgão do Estado e não como pessoa.62 O cargo ou mandato que
exerce não é seu: é um instrumento para realizar o interesse coletivo primário. Enquanto
pessoa, o agente estatal pode dispor livremente dos seus interesses e atuar no seu
interesse pessoal; enquanto órgão do Estado, seus interesses pessoais são irrelevantes e
o agente possui o dever de agir no sentido de realizar o interesse coletivo primário, o
qual é indisponível. A aplicação correta desse princípio impõe o dever da Administração
tratar todos os administrados sem quaisquer discriminações, sejam benéficas
(favoritismos, clientelismos ou patrimonialismos) ou odiosas (perseguições ou
animosidades pessoais).
pode ser materializado por meio do processo (ou procedimento, no sentido aqui adotado) administrativo.
59
SUNDFELD, Carlos Ari. Procedimentos administrativos de competição. Revista de Direito Público,
nº 83, ano XX, p. 114-119, jul. - set. 1978.
60
BRITTO, Carlos Ayres. O perfil constitucional da licitação. Curitiba: Editora ZNT, 1997, p. 135.
61
A Constituição Federal prevê outras duas formas de concretização do procedimento administrativo
de competição: o concurso público (artigo 37, II) e o processo seletivo público para contratação de
agentes comunitários de saúde (artigo 198, §4º). A Lei 8.987/95 estabelece critérios específicos para o
julgamento da licitação para concessão de serviço público (artigos 14 a 22).
62
CINTRA DO AMARAL, Antônio Carlos. O princípio da impessoalidade no direito público. Boletim
CELC nº . 161, 01.05.09, disponível em <http://www.celc.com.br/>. Acesso em: 16 abr. 2011.
97
Para Ricardo Marcondes Martins, o principio da moralidade 63
é uma determinação no âmbito das circunstâncias fáticas e jurídicas à
Administração para que ela se conduza de maneira proba e honesta. A
Administração não deve ponderar para saber até que ponto deve ser honesta e
agir com boa-fé. Não: trata-se de uma regra, não de um princípio. É uma
regra de estrutura porque disciplina o exercício da função administrativa. É
uma regra em branco, pois se reporta a todas as regras éticas objetivadas; ele
não define os deveres éticos da Administração, ele efetua uma remissão às
regras éticas vigentes no seio da sociedade.
Por fim, o princípio da eficiência é a “exigência jurídica, imposta aos
ocupantes de função administrativa, ou simplesmente aos que manipulam recursos
públicos vinculados de subvenção ou fomento, de atuação idônea, econômica e
satisfatória na realização de finalidades públicas assinaladas por lei, ato ou contrato de
direito público”. 64
Logo, a regra geral é a realização de procedimento de competição
para seleção da entidade privada que será parceira do Poder Público. Sempre que
houver viabilidade de competição entre entidades privadas sem fins lucrativos, o
Administrador deverá realizar o certame, que não precisa necessariamente seguir as
modalidades específicas da concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão
(previstas no artigo 22 da Lei 8.666/93) ou o pregão (Lei 10.520/02).
Nesse sentido, a transferência de recursos às entidades privadas sem
fins lucrativos é condicionada à publicação, pelo Poder respectivo, de normas a serem
observadas na concessão de subvenções sociais, auxílios e contribuições correntes, que
definam, entre outros aspectos, critérios objetivos de habilitação e seleção das
entidades beneficiárias (artigo 34, VI, da Lei 12.465/11). Na mesma lei há também
previsão de recebimento, pelas OSCIPs, de recursos oriundos de transferências previstas
na Lei no 4.320, de 1964 por meio de termos de parceria, casos em que deverá ser
observada a legislação específica pertinente a essas entidades e processo seletivo de
ampla divulgação (artigo 34, §7º, II, da Lei 12.465/11).
As modalidades licitatórias previstas na Lei 8.666/93 e o pregão foram
elaborados, precipuamente, para a aquisição contratual de bens e serviços pelo Poder
Público, dentro da lógica comutativa do contrato administrativo. Para suprir com
63
MARTINS, Ricardo Marcondes. Princípio da moralidade administrativa. In: ADRI, Renata Porto;
PIRES, Luis Manuel Fonseca; ZOCKUN, Maurício (coord.). Corrupção, ética e moralidade
administrativa. Belo Horizonte: Forum, 2008, p. 305-334 (p. 30).
64
MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o Princípio Constitucional da Eficiência. Revista
Eletrônica
de
Direito
Administrativo
Econômico,
n.
10.
Disponível
em:
<
http://www.direitodoestado.com>. Acesso em: 16 abr. 2011.
98
eficiência as novas demandas da sociedade moderna, no entanto, a Administração vem
se aproximando cada vez mais da sociedade civil, estabelecendo parcerias com o
Terceiro Setor. Nesse novo contexto, o procedimento de competição será regido por
regras jurídicas elaboradas de acordo com as peculiaridades de cada parceria, contanto
que sejam sempre respeitados os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência
e, ainda, assegurado julgamento objetivo. Deve haver maior flexibilidade, por exemplo,
para fixação de prazos, elaboração de critérios de seleção (variáveis em função do
projeto pretendido) e incorporação dos avanços tecnológicos na realização do certame, o
que não seria possível se a observância das modalidades tradicionais (formais e rígidas)
de licitação fosse sempre considerada obrigatória.
Da
mesma
forma
como
a Administração
pode
estabelecer
discricionariamente, por exemplo, as normas do edital de um concurso para ingresso no
serviço público (tais como o cronograma, se as provas serão objetivas ou subjetivas, se
haverá prova oral, a pontuação atribuída a cada questão, a formação da comissão
examinadora, etc.) de acordo com a natureza e complexidade do cargo (artigo 37, II, da
CF/88), o procedimento de competição para seleção da entidade do Terceiro Setor
deverá levar em conta, em cada caso, as especificidades da atividade que será
fomentada (das áreas de saúde, educação, assistência social, cultura, entre outras) e a
complexidade da parceria que será estabelecida.
Ao comentar o artigo 22 da Lei 8.666/93, Marçal Justen Filho ressalta
que não há impedimento para que a Administração produza modalidades inovadoras,
inclusive combinando soluções procedimentais, para a promoção de contratos não
abrangidos no âmbito específico da Lei 8.666/93.65 É justamente o que ocorre na
celebração de parcerias com o Terceiro Setor por meio de instrumentos jurídicos de
natureza convenial.
A legislação infralegal prevê modalidades procedimentais de
competição para celebração de convênios e termos de parceria denominadas,
respectivamente, chamamento público (artigos 4º e 5º do Decreto 6.170/07) e concurso
de projetos (artigos 23 a 31 do Decreto 3.100/99). O Decreto 7.568/2011 veio reformar
o Decreto 6.170/07, para não deixar dúvidas sobre eventual competência discricionária
para a realização ou não dos referidos procedimentos competitivos.66 Sempre que
65
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14ª ed. São
Paulo: Dialética, 2010, p. 273.
66
O Tribunal de Contas da União, na Decisão 931/99, havia determinado ao Poder Executivo o
aperfeiçoamento do Decreto 3.100/99 para que fosse, em princípio, obrigatória a realização de concurso
de projetos para seleção da OSCIP que celebrará termo de parceria com o Poder Público. Na mesma
99
houver possibilidade de competição entre entidades privadas, o chamamento público ou
o concurso de projetos devem ser realizados. Caso o certame não seja realizado por
qualquer motivo, deve haver processo administrativo explicitando os fundamentos
objetivos que justificaram a contratação direta.
Logo, a Administração deve sempre realizar tanto chamamento
público para selecionar a entidade privada com a qual celebrará convênio ou contrato de
repasse quanto concurso de projetos para seleção da OSCIP com a qual firmará termo
de parceria.
Diversamente da celebração de convênios e termos de parceria, ainda
não há, no âmbito federal, normas que disciplinem a seleção da Organização Social que
firmará contrato de gestão com o Poder Público.67 A Administração não é obrigada a
realizar licitação, nos termos da Lei 8.666/93, para escolha da Organização Social com a
qual celebrará o contrato de gestão. Mas, sempre que houver possibilidade de disputa,
deve realizar procedimento de competição.
Assim, a Administração poderá utilizar, no que couber, as
modalidades licitatórias previstas na Lei 8.666/93, ou realizar o procedimento do
chamamento público, previsto no artigo 4º do Decreto 6.170/07 (que regula as
transferências de recursos da União mediante convênios), para a escolha da OS com a
qual firmará o ajuste. Devido à natureza convenial dos contratos de gestão, o
chamamento público poderá ser realizado por analogia, enquanto não houver
regulamentação específica para a seleção da OS parceira do Poder Público.
4.3 Inconstitucionalidade do inciso XXIV do artigo 24 da Lei
8.666/93
O artigo 24, XXIV, da Lei 8.666/93, que prevê dispensa de licitação
para “a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais,
qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas
no contrato de gestão” é inconstitucional por ferir os princípios constitucionais já
senda, no Acórdão nº 1331/2008 – Plenário recomendou ao Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão que avaliasse a oportunidade e a conveniência de orientar os órgãos e entidades da Administração
Pública para que editem normativos próprios visando estabelecer a obrigatoriedade de instituir processo
de chamamento e seleção públicos previamente à celebração de convênios com entidades privadas sem
fins lucrativos, em todas as situações em que se apresentar viável e adequado à natureza dos programas a
serem descentralizados. A orientação foi finalmente acatada por meio do Decreto 7.568/11.
67
No Estado de São Paulo, a celebração do contrato de gestão será precedida de publicação da minuta
do ajuste e de convocação pública das organizações sociais, através do Diário Oficial do Estado, para que
todas as interessadas em celebrá-lo possam se apresentar (artigo 6º, §3º da Lei Complementar 846/98).
100
referidos da impessoalidade, moralidade e eficiência. Tal dispositivo não pode ser
interpretado como forma de conferir competência discricionária para que o
administrador escolha, sem qualquer critério objetivo, a Organização Social com a qual
celebrará contrato de gestão.
Ora, a Administração não pode ceder bens e recursos para terceiros
por mera liberalidade: deverá dar igual oportunidade para todos que estiverem em iguais
condições e celebrar o contrato de gestão com o parceiro mais apto a desempenhar as
metas fixadas. Havendo mais de uma Organização Social ou outra entidade do Terceiro
Setor em condições de prestar o serviço pretendido pela Administração, o procedimento
de competição deve ser realizado.
Se a criação das Organizações Sociais se fundamenta na pretensão de
aumentar a eficiência das atividades sociais, estimulando-as a serem desenvolvidas por
entes privados, não se justifica tenham as OS a fixação de preferência para contratar
com o Poder Público, sem disputar a parceria pública com outras entidades do Terceiro
Setor. “Num bom jogo com as regras de mercado, nada justifica que a organização
social tenha ao seu favor a fixação de uma prerrogativa absoluta” e, nesse sentido, “o
artigo 24, XXIV, da Lei 8.666/93, contradiz a justificativa teórica da Lei 9.637/98”.68
Somente com a realização de processo seletivo prévio para a escolha da entidade
parceira é que se resguardará o princípio da isonomia e assegurar-se-ão a
impessoalidade na ação estatal e a busca eficiente do interesse coletivo.
Não é possível sequer cogitar-se que o referido dispositivo legal seria
constitucional devido à legítima função regulatória da licitação, utilizada pelo legislador
como mecanismo de indução da prática de determinadas atividades sociais relevantes,
tal como ocorre para a contratação de associação de portadores de deficiência física,
sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, para a prestação de serviços ou
fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o
praticado no mercado (artigo 24, XXII).69 Mesmo que tal hipótese fosse ventilada, o
dispositivo do artigo 24, XXIV, da Lei 8.666/93, seria inconstitucional por privilegiar
especificamente as Organizações Sociais em detrimento das OSCIPs e outras entidades
do Terceiro Setor, as quais também desempenham atividades sociais relevantes em
parceria com o Poder Público e não foram igualmente dispensadas da licitação pelo
68
Parecer do Ministério Público Federal na ADI 1.923/DF subscrito pelo então Procurador Geral da
República, Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, pela inconstitucionalidade parcial da Lei 9.637/98.
69
O Ministro do STF Luís Fux no julgamento da ADI 1.923/DF, considerou constitucional o artigo 24,
XXIV, da Lei 8.666/93, por considera-lo forma legítima da função regulatória da licitação. Discorda-se
veementemente desse entendimento, conforme exposto no texto.
101
legislador.
4.4 Qualificação técnica
As auditorias realizadas pelo TCU em 28 convênios celebrados por
órgãos federais com organizações não governamentais, no período abrangido de 1999 a
2005, apontaram graves falhas decorrentes da celebração dos convênios sem a adequada
avaliação da qualificação técnica e capacidade operacional das entidades privadas para
executar os objetos propostos. 70
No Acórdão 2066/2006 – Plenário, o TCU recomendou à Secretaria de
Tesouro Nacional que disciplinasse a obrigatoriedade de ser formalmente justificada
pelo gestor, com indicação dos motivos determinantes e demonstração do interesse
público envolvido na parceria, a escolha de determinada entidade privada para
celebração do convênio ou instrumento congênere. O TCU recomendou à SecretariaGeral de Controle Externo que concentrasse esforços na avaliação do controle
preventivo que deve ser exercido pelo órgão concedente na fase de análise técnica das
proposições dos instrumentos conveniais, atentando quanto a eventuais desvios de
conduta ou negligência funcional de agentes e gestores públicos, caracterizados pela
falta ou insuficiência de análises técnicas, especialmente a avaliação da capacidade da
entidade convenente para consecução do objeto proposto.
Essas determinações do TCU influenciaram na redação do Decreto
6.017/07, que dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União
mediante convênios e contratos de repasse.
A
expressão
qualificação
técnica
significa
o
domínio
de
conhecimentos e habilidades teóricas e práticas para a execução do objeto a ser
executado, abrangendo a situação de regularidade em face dos organismos encarregados
de regular determinada profissão. 71
O conceito de qualificação técnica é complexo e variável, refletindo a
70
Trata-se do Processo Público TC nº 015.568/2005-1, Relatório Consolidado das auditorias
realizadas em ajustes celebrados entre Organizações Não-Governamentais - ONGs e a União ou entidades
da Administração Indireta, no período de 1999 a 2005, com o objetivo de verificar a regularidade da
aplicação de recursos federais repassados a essas ONGs, por meio de convênios, contratos de repasse e
instrumentos similares, em cumprimento ao plano de fiscalização do segundo semestre de 2005. O
documento conclui que não houve cuidado dos órgãos concedentes em avaliar a qualificação técnica das
entidades privadas. O resultado dessa situação fez com que 15 dos 28 convênios fossem celebrados com
entidades que não dispunham de condições operacionais para consecução dos objetos ou não tinham
atribuições estatutárias relacionadas com as atividades propostas. Para tais entidades foram repassados
mais de R$ 82 milhões, o que representou 54% do total fiscalizado pelo TCU.
71
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14ª ed. São
Paulo: Dialética, 2010, p. 428.
102
heterogeneidade de objetos das parcerias estabelecidas com o Terceiro Setor. Cada
serviço de relevância social (saúde, educação, assistência social, entre outros) pressupõe
requisitos próprios de qualificação técnica que devem ser verificados pelo Poder
Público antes de celebração da parceria.
Citem-se alguns exemplos das legislações estaduais e municipais
sobre as exigências de qualificação técnica das entidades do Terceiro Setor
contempladas com títulos honoríficos.
No Estado e no Município de São Paulo, somente serão classificadas
como Organização Social da área de saúde as entidades que efetivamente comprovarem
possuir serviços próprios de assistência à saúde há mais de 5 anos. 72 No Estado de
Minas Gerais, a entidade que desejar se qualificar como OSCIP deverá apresentar
documentos que comprovem experiência mínima de dois anos na execução das
atividades indicadas no seu estatuto social.73
A descentralização da execução de serviços sociais por meio de
convênios ou contratos de repasse somente poderá ser efetivada para entidades
públicas ou privadas para execução de objetos relacionados com suas atividades e que
disponham de condições técnicas para executá-lo.74
Ao apresentar proposta de trabalho, a entidade privada credenciada no
SINCOV deverá apresentar informações específicas quanto à sua qualificação técnica e
operacional para desenvolver o objeto próprio do convênio pretendido. Trata-se de
comprovação genérica da qualificação técnica e capacidade operacional para o fim de
apresentação de propostas de trabalho no sistema. 75
Cumpre registrar também que a Lei 12.465/11 (artigo 34, VII)
condiciona a transferência voluntária de recursos da União às entidades do Terceiro
Setor que comprovarem atividade regular nos últimos 3 anos por meio de declaração de
funcionamento regular da entidade beneficiária, inclusive com inscrição no CNPJ,
emitida no exercício de 2012 por 3 (três) autoridades locais sob as penas da lei.76 Tratase de mais uma exigência de comprovação genérica de qualificação técnica.
72
Respectivamente: artigo 2º, parágrafo único, da Lei Complementar 846, de 4 de junho de 1998, e
artigo 2º, parágrafo único, da Lei 14.232, de 24 de janeiro de 2006.
73
É o que dispõe o artigo 7º, IV, da Lei 14.870, de 16 de dezembro de 2003.
74
Artigo 1º, § 3º da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
75
Artigo 19, V, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
76
As entidades voltadas diretamente para a coleta e processamento de material reciclável, as voltadas
ao atendimento de pessoas em situação de vulnerabilidade social e as voltadas diretamente às atividades
de extrativismo, manejo de florestas de baixo impacto, pesca e agricultura de pequeno porte realizadas
por povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, não precisam comprovar esse requisito,
nos termos do artigo 34, §4º, da Lei 12.465/11.
103
As normas atuais sobre a celebração de convênios impõem ao
administrador o dever de verificar a real capacidade técnica e operacional da entidade
privada que será parceira do Poder Público, previamente à celebração do ajuste e à
transferência de recursos públicos. É vedada a celebração de convênio com entidade
privada que sem fins lucrativos que não comprove ter desenvolvido, durante os últimos
três anos, atividades referentes à matéria objeto do convênio ou contrato de repasse
(artigo 2º, IV, do Decreto 6.170/07, na redação dada pelo Decreto 7.568/11).
A inobservância dessas normas e a ocorrência de prejuízos ao erário
poderá sujeitar o infrator a responsabilização penal e por atos de improbidade
administrativa (infra, V).
O chamamento público para a seleção da entidade convenente parceira
deverá estabelecer critérios objetivos para a aferição da qualificação técnica e
capacidade operacional do convenente para a gestão do convênio. É obrigatória a
utilização de indicadores de eficiência e eficácia para aferição da qualificação técnica e
capacidade operacional das entidades sem fins lucrativos. 77
É nesse mesmo sentido que o Decreto 3.100/99 determina que o órgão
estatal responsável pela celebração de termo de parceria com as OSCIPs verificará
previamente o regular funcionamento da organização e o exercício de atividades
referentes à matéria objeto do termo de parceria nos últimos três anos (artigo 9º, I e II,
na redação dada pelo Decreto 7.568/11) e que a seleção e julgamento dos concursos de
projetos levará em conta a capacidade técnica e operacional da candidata (artigo 27,
II).
Ao escrever sobre as Organizações Sociais, Celso Antônio Bandeira
de Mello critica a ausência de demonstração de qualquer exigência técnica para que a
entidade receba bens públicos, móveis ou imóveis, verbas públicas e servidores públicos
custeados pelo Estado. Com a argúcia que lhe é peculiar, Bandeira de Mello aduz que,
inversamente, para se travar um singelo contrato de prestação de serviços ou de
execução de obras o pretendente é obrigado a minuciosas demonstrações de aptidão, nos
termos dos artigos 27 e seguintes da Lei 8.666/93. 78
A verificação da qualificação técnica das entidades que serão parceiras
do Poder Público – sejam elas de utilidade pública federal, OS ou OSCIP – é exigência
constitucional que decorre do princípio da eficiência. A qualificação técnica exigida é a
77
Cf. artigo 90 da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 244.
78
104
real, ou seja, não é apenas aquela teórica, mas também a efetiva, concreta, consistente
na titularidade de condições práticas e reais de execução do objeto da parceria.79 Não se
admite que o Estado firme parceria e repasse recursos públicos a entidades que
notadamente não possuem as condições adequadas para desempenhar com eficiência as
atividades pretendidas. 80
As normas infralegais acima indicadas, no espaço normativo
permitido pelo artigo 116 da Lei 8.666/93, exigem a verificação da qualificação técnica
das entidades do Terceiro Setor antes da celebração da parceria. É dizer: aplica-se o
artigo 30 da Lei 8.666/93 para comprovação da qualificação técnica das entidades do
Terceiro Setor, sem prejuízo dos demais requisitos estabelecidos pelo próprio Poder
Público caso a caso.
A exigência de capacidade técnica real das entidades do Terceiro Setor
evita a constituição de entidades ad hoc, parasitárias do Estado, constituídas unicamente
para drenarem recursos públicos decorrentes das parcerias firmadas. Nas palavras de Di
Pietro, essas entidades seriam “fantasmas, porque não possuem patrimônio próprio,
sede própria, vida própria” e são mantidas exclusivamente pelas parcerias estabelecidas
com o Poder Público. 81
5. Controle concomitante
É o procedimento de fiscalização realizado durante a execução do
convênio, contrato de repasse, contrato de gestão ou termo de parceria. O controle
79
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14ª ed. São
Paulo: Dialética, 2010, p. 431.
80
O exemplo vem mais uma vez da auditora do TCU, na fiscalização realizada no convênio celebrado
com a Cunpir – Coordenação da União dos Povos e Nações e Indígenas de Rondônia, Norte de Mato
Grosso e Sul do Amazonas, que ilustra bem as falhas dos órgãos concedentes quanto à verificação da
qualificação técnica das entidades parceiras do Poder Público. De acordo com o TCU (TC 015.568/20051): “3.2.16 O caso da Cunpir – Coordenação da União dos Povos e Nações e Indígenas de Rondônia,
Norte de Mato Grasso e Sul do Amazonas é significativo. Segundo relatório da unidade executora, a
entidade configura-se como de caráter cultural e não como prestadora de serviços de saúde, mas a Funasa
fez convênios com a mesma para prestação de assistência médica aos índios, entregando-lhe recursos no
montante de R$ 11.390.857,43. 3.2.17 Vale ressaltar que todos os três convênios celebrados com a
entidade estão com TCE instauradas pela Funasa, em razão de não apresentação de prestação de contas
ou de documentação complementar. O relato da equipe de auditoria noticia “que a sede da Cunpir,
fechada, só foi aberta para a equipe após o término do prazo de Relatório. Mesmo assim, a
documentação lá constante, por estar em grande desordem, (...) quando se verificou a ausência de
ordem e integralidade da documentação, que demandaria meses para que se tirasse algum proveito
técnico de tal documentação, ainda assim sob condição temerária da relação custo x benefício”.3.2.18 O
caso é emblemático porque demonstra, com perfeição, a correlação do tipo causa e efeito entre a
celebração de convênios com entidades sem condições para executá-los, tanto em termos de atribuições
como de capacidade administrativa e operacional, com as irregularidades cometidas na fase de execução e
os consequentes danos ao erário.”
81
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Parcerias na administração pública: concessão, permissão,
franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8ª ed. São Paulo: Altas, 2011, p. 270.
105
concomitante deve ser realizado periodicamente pelo órgão descentralizador dos
recursos ou pelo órgão competente do sistema de controle interno da Administração
Pública, em especial quando os repasses de recursos públicos forem de valores vultosos.
O objetivo principal do controle concomitante é verificar se as metas
fixadas no convênio, contrato de repasse, contrato de gestão ou termo de parceria estão
sendo cumpridas a contento e de acordo com o cronograma previamente fixado.
No acompanhamento e fiscalização do objeto dos convênios e
contratos de repasse serão verificados: a comprovação da boa e regular aplicação dos
recursos, na forma da legislação aplicável; a compatibilidade entre a execução do
objeto, o que foi estabelecido no Plano de Trabalho, e os desembolsos e pagamentos,
conforme os cronogramas apresentados; a regularidade das informações registradas pelo
convenente ou contratado no SICONV; e o cumprimento das metas do Plano de
Trabalho nas condições estabelecidas. 82
A execução do objeto do contrato de gestão celebrado por
Organização Social será fiscalizada, periodicamente, pelo órgão ou entidade supervisora
da área de atuação correspondente à atividade fomentada. O controle terá como foco
principal os resultados alcançados, tendo como parâmetro as metas convencionadas. A
avaliação será realizada por comissão de avaliação, indicada pela autoridade
supervisora da área correspondente, composta por especialistas de notória capacidade e
adequada qualificação (artigo 8º da Lei 9.637/98).
Já a comissão de avaliação do termo de parceria será composta de
comum acordo entre o órgão público parceiro e a OSCIP. Os Conselhos de Políticas
Públicas e o órgão do Poder Público da área de atuação correspondente à atividade
fomentada possuem competência legal para acompanhar e fiscalizar a execução do
objeto do termo de parceria, nos termos do artigo 11 da Lei 9.790/99.
Caso a fiscalização encontre impropriedades na execução desses
ajustes, apurando não ter havido comprovação da boa e regular aplicação dos recursos
públicos, desvio de finalidade, atrasos não justificados no cumprimento do cronograma,
práticas atentatórias aos princípios fundamentais da Administração Pública nas
contratações e demais atos praticados na execução do acordo ou o inadimplemento do
executor com relação a outras cláusulas básicas, as parcelas remanescentes poderão
ficar retidas até o saneamento das irregularidades, nos termos do artigo 116, §3º, I, Lei
8.666/93. A verificação das irregularidades ocorrerá em processo administrativo no qual
82
Artigo 68 da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
106
será fixado prazo para a entidade parceira sanear o que for necessário e apresentar as
informações cabíveis.
Destacam-se, no controle concomitante, duas formas importantes de
fiscalização: a realização periódica de vistorias in loco e a verificação da correta
aplicação dos recursos públicos.
5.1 Realização de vistorias in loco
Para o acompanhamento da execução dos convênios, o órgão
concedente deverá programar vistorias no local de execução das atividades, bem como
registrar no SINCOV todas as ocorrências relacionadas à consecução do objeto,
adotando as medidas necessárias à regularização das falhas observadas. É cláusula
necessária dos convênios e instrumentos congêneres a forma pela qual a execução física
do objeto será acompanhada pelo concedente ou contratante, inclusive com a indicação
dos recursos humanos e tecnológicos que serão empregados na atividade.83
Os servidores dos órgãos ou entidades públicas concedentes ou
contratantes e os do TCU possuem livre acesso aos locais de execução do objeto das
parcerias, para o exercício desembaraçado das atribuições de fiscalização.84 Ademais, os
contratos celebrados à conta dos recursos de convênios ou contratos de repasse deverão
conter cláusula que obrigue o contratado a conceder livre acesso aos documentos e
registros contábeis da empresa, referentes ao objeto contratado, para os servidores dos
órgãos e entidades públicas concedentes e dos órgãos de controle interno.
No exercício de suas atribuições de controle do Terceiro Setor, o
Ministério Público também possui acesso a esses mesmos locais. 85
Registre-se que o TCU recomendou ao Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão que avalie a oportunidade e a conveniência de orientar os órgãos e
entidades da Administração Pública para que “estabeleçam um valor, nos ajustes de
maior materialidade, a partir do qual seja obrigatória a verificação in loco da execução
física dos ajustes firmados com as entidades não-governamentais” (Acórdão 1331/2008
– Plenário).
Da mesma forma, os órgãos fiscalizadores dos contratos de gestão e
83
Artigo 43, XV da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
Nos termos do artigo 43, XVI, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro
de 2011.
85
Dispõem o artigo 41, VI, “c”, da Lei 8.625/93 e o artigo 18, I, “c” Lei Complementar 75/93, que os
membros do Ministério Público possuem ingresso e trânsito livres em qualquer recinto público ou
privado, em razão do serviço, ressalvada a garantia constitucional de inviolabilidade de domicílio.
84
107
dos termos de parceria (incluindo-se aqui os Conselhos de Políticas Públicas) devem
periodicamente realizar vistorias in loco para verificar a execução dos objetos das
parcerias estabelecidas.
5.2 Controle dos recursos e bens públicos
As entidades civis do Terceiro Setor parceiras do Poder Público
recebem e administram dinheiros, bens e valores públicos e possuem, por tal motivo, o
dever constitucional de prestação de contas, nos termos do artigo 70, parágrafo único,
da Constituição Federal.
Em paralelo com o controle dos resultados obtidos, as entidades do
Terceiro Setor devem realizar rigoroso controle da aplicação dos recursos e bens
públicos recebidos pela parceria realizada com o Poder Público. Com efeito, a liberdade
gerencial para o atingimento dos resultados convencionados não implica o desprezo
pelo controle dos meios de aplicação dos recursos públicos. A proteção do patrimônio
público exige o controle estrito da utilização dos recursos públicos pelas instituições
privadas. Esse controle objetiva proteger o patrimônio público, bem como evitar desvios
de finalidade, enriquecimento ilícito e corrupção.
Assim, as entidades privadas beneficiadas com recursos públicos, a
qualquer título, submetem-se à fiscalização do Poder Público, com a finalidade de
verificar o cumprimento de metas e objetivos para os quais receberam os recursos
(artigo 109 da Lei 12.465/11).
Se por um lado o recebimento de recursos públicos amplia a esfera
jurídica das entidades do Terceiro Setor, por outro lado impõe-lhes restrições de ordem
pública tais como a prestação de contas ao órgão repassador. Sempre que as entidades
privadas sem fins lucrativos estiverem na posição de “gestoras privadas de recursos
públicos para fins públicos”, na precisa lição de Gustavo Justino de Oliveira, deverão
cumprir integralmente os procedimentos previstos na legislação para proteção do
patrimônio público, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa. 86
Em outros termos: as normas de direito público incidem sobre os
parceiros privados no que diz com o regime jurídico aplicável ao controle das verbas
públicas transferidas por meio da atividade administrativa de fomento. Cite-se, mais
86
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. OSCIPs e licitação: ilegalidades do Decreto nº 5.504, de
05.08.05. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 12, dezembro/janeiro/fevereiro,
2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 09 jul. 2011.
108
uma vez, a lição de Gustavo Justino de Oliveira: 87
Parece-nos estreme de dúvidas a afirmação segundo a qual o repasse de
verbas públicas para entidades sem fins lucrativos, efetivada pela via do
convênio, termo de parceria, contrato de gestão, contrato de repasse ou
qualquer outro instrumento jurídico, não tem o condão de transformar a
natureza do repasse financeiro, de público para privado.
A Lei Orçamentária de 2012 (Lei 12.465/11) impõe a observância,
pelas entidades do Terceiro Setor, de algumas regras específicas para o devido controle
do patrimônio público.
Assim, para assegurar a transparência no emprego dos recursos
públicos, as entidades privadas possuem o dever de ampla divulgação na internet ou na
sede da entidade do extrato do convênio ou instrumento congênere com o detalhamento
da aplicação dos recursos públicos (artigo 34, IV).
Os pagamentos realizados com dinheiro público devem sempre
identificar, com pelo menos o nome, CPF ou CNPJ, os fornecedores contratados pelo
Terceiro Setor (artigo 109, §2º, da Lei 12.465/11). Ou seja: os pagamentos realizados
com dinheiro público estão sujeitos à identificação do beneficiário final. 88
Há também obrigação de manutenção regular da escrituração contábil
(artigo 34, X, da Lei 12.465/11). Nesse sentido, vale lembrar também que as OSCIPs
devem observar os princípios fundamentais de contabilidade e das Normas Brasileiras
de Contabilidade (artigo 4º, VII, “a” da Lei 9.790/99).
Outra condição para a realização de transferências voluntárias nos
termos da Lei 4.320/64 é que o Poder Público deve constar do instrumento do ajuste
cláusula de reversão patrimonial, válida até a depreciação integral do bem ou a
amortização do investimento, constituindo garantia real em favor do concedente em
montante equivalente aos recursos de capital destinados à entidade, cuja execução
ocorrerá caso se verifique desvio de finalidade ou aplicação irregular dos recursos
(artigo 34, VIII, da Lei 12.465/11).
Além disso, os recursos devem ser movimentados mediante conta
bancária específica para cada instrumento de transferência (convênio, contrato de
repasse, termo de parceria ou contrato de gestão), conforme dispõem o artigo 10 do
Decreto 6.170/07 e o artigo 14 do Decreto 3.100/99. Enquanto os recursos públicos
87
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. OSCIPs e licitação: ilegalidades do Decreto nº 5.504, de
05.08.05. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 12, dezembro/janeiro/fevereiro,
2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 09 jul. 2011.
88
Artigo 10, §1º do Decreto 6.170/07.
109
disponibilizados não forem movimentados pelas entidades privadas, deverão ser
aplicados em caderneta de poupança ou outra operação financeira que lhes preserve o
valor, nos termos do artigo 116 da Lei 8.666/93.
As entidades do Terceiro Setor devem ainda observar algumas normas
para a proteção dos bens públicos ou adquiridos com dinheiro público.
É obrigatória a estipulação do destino a ser dado aos bens
remanescentes do convênio ou contrato de repasse. Por isso, deve haver a elaboração de
cláusula convenial com a definição, se for o caso, do direito de propriedade dos bens
remanescentes na data da conclusão ou extinção do instrumento, que, em razão deste,
tenham sido adquiridos, produzidos, transformados ou construídos, respeitado o
disposto na legislação pertinente. 89
As Organizações Sociais poderão permutar os bens móveis públicos
cedidos por outros de igual ou maior valor, desde que haja prévia avaliação e expressa
autorização do Poder Público, mas os novos bens integrarão o patrimônio da União
(artigo 13 da Lei 9.637/99). Caso a entidade seja desqualificada, os bens permitidos e os
valores entregues à Organização Social serão revertidos ao Poder Público, sem prejuízo
de outras sanções cabíveis (artigo 16, §2º da Lei 9.637/99).
O estatuto jurídico das OSCIPs deve prever, em caso de dissolução da
entidade, a transferência do patrimônio líquido da entidade para outra pessoa jurídica
qualificada também como OSCIP, preferencialmente que tenha o mesmo objeto social
da entidade extinta. Em caso de perda da qualificação de OSCIP, o acervo patrimonial
disponível, adquirido com recursos públicos, será transferido a outra OSCIP, que
preferencialmente tenha o mesmo objeto social. É o que dispõem os incisos IV e V do
artigo 4º da Lei 9.790/99.
Extinta a fundação por ilícita, impossível ou inútil a sua finalidade ou
vencido o prazo de sua validade, seu patrimônio será incorporado a outra fundação com
finalidade igual ou semelhante, salvo disposição em contrário em seu ato constitutivo
(artigo 69 do Código Civil).
Devido à natureza convenial dos contratos de gestão e dos termos de
parceria, aplicam-se subsidiariamente às OS e OSCIPs as normas do Decreto 6.170/07 e
da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011, no que se
refere ao controle da utilização de recursos públicos.90
89
Artigos 43, XIV, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
No Acórdão 1777/2005 – Plenário/TCU a Corte de Contas decidiu que não se aplica às OSCIPs as
normas relativas aos convênios, em especial a IN 01/97/STN. Atualmente, contudo, aplica-se aos
90
110
Os recursos e bens públicos transferidos às entidades privadas sem
fins lucrativos são vinculados à realização do interesse público materializado no objeto
do instrumento negocial. Juntos, em mútua colaboração, Poder Público e Terceiro Setor
almejam o interesse público. Tais recursos e bens não se prestam precipuamente ao
financiamento de organizações privadas: devem ser utilizados para a prestação de
atividades de relevância pública por tais entidades. Em síntese: devem ser utilizados em
benefício da sociedade, não em prol dos interesses próprios das entidades privadas.
6. Controle posterior
Os recursos públicos são coisa pública e têm a finalidade de atender
ao interesse do povo. O princípio republicano exige que a coisa do povo seja “exercida,
efetiva, imediata e permanentemente, segundo o seu interesse, não se podendo
consagrar, nesse exercício, peculiaridades decorrentes de condição pessoal específica e
de privilégios, preferências ou preconceitos”. 91
A Administração não pode dispor livremente do interesse da
coletividade, nem permitir que particulares utilizem os recursos públicos para seus
próprios interesses. Os bens e interesses da Administração não se acham entregues à
livre disposição da vontade do administrador, que tem o dever de curá-los nos termos da
finalidade a que estão adstritos. Da mesma forma se passa com as entidades do Terceiro
Setor: devem zelar pelos bens e recursos públicos recebidos e utilizá-los na prestação
eficiente de atividades de relevância pública, finalidade a que tais recursos estão
vinculados.
O controle posterior objetiva revisar os atos já praticados,
confirmando-os ou corrigindo-os. São estudadas, neste tópico, a prestação de contas e a
tomada de contas especial, formas de controle posterior que incidem após a utilização
dos recursos públicos pelas entidades do Terceiro Setor. As ações judiciais, outra forma
de controle posterior da utilização de recursos públicos, são tratadas no Capítulo V,
referente às atribuições do Ministério Público para controle do Terceiro Setor.
6.1 Prestação de contas
O dever de prestação de contas das entidades do Terceiro Setor que
convênios a Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011, a qual menciona
expressamente os termos de parceria (artigo 1º, §2º, XXV), e deve ser aplicada subsidiariamente tanto à
OSCIP quanto à OS, devido à natureza convenial dos termos de parceria e contratos de gestão.
91
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e federação no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1996,
p. 93.
111
recebem recursos públicos decorre do princípio republicano e do artigo 70, parágrafo
único, da Constituição Federal.
Todas as entidades privadas sem fins lucrativos, como condição para
receberem recursos públicos por meio de transferências voluntárias, devem apresentar a
prestação de contas dos recursos anteriormente recebidos, nos prazos e condições
fixados na legislação. Não deve haver prestação de contas rejeitada (artigo 34, V, da Lei
12.465/11).
Em relação aos convênios e contratos de repasse, a prestação de
contas dos recursos recebidos será registrada no SINCOV, na forma da Portaria
Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011, garantindo-se ampla
publicidade. O órgão descentralizador dos recursos possui competência para analisar as
prestações de contas, nos termos do artigo 116, §3º, I, da Lei 8.666/93.
A prestação de contas dos convênios e contratos de repasse compõe-se
dos seguintes documentos: Relatório de Cumprimento do Objeto; Notas e comprovantes
fiscais, quanto aos seguintes aspectos: data do documento, compatibilidade entre o
emissor e os pagamentos registrados no SICONV, valor, aposição de dados do
convenente, programa e número do convênio; Relatório de prestação de contas
aprovado e registrado no SICONV pelo convenente; declaração de realização dos
objetivos a que se propunha o instrumento; relação de bens adquiridos, produzidos ou
construídos, quando for o caso; a relação de treinados ou capacitados, quando for o
caso; a relação dos serviços prestados, quando for o caso; comprovante de recolhimento
do saldo de recursos, quando houver; e termo de compromisso por meio do qual o
convenente será obrigado a manter os documentos relacionados ao convênio. 92
O prazo para prestação de contas deve constar em cláusula expressa
do convênio ou contrato de repasse.93 Depois de prestadas as contas, o concedente terá o
prazo de 90 dias, contados da data de seu recebimento, para apreciá-las (artigo 10, §7º,
do Decreto 6.170/07). Esses prazos são comumente desrespeitados na prática.
A prestação de contas correspondente ao exercício financeiro das
Organizações Sociais (prevista no artigo 8º, §1º, da Lei 9.637/98) será apresentada à
entidade pública supervisora signatária do contrato, ao término de cada exercício ou a
qualquer momento, conforme recomende o interesse público.
A prestação de contas das OSCIPS será realizada anualmente sobre a
totalidade das operações patrimoniais e resultados da entidade com o objetivo de
92
93
Artigo 74 da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
Artigo 43, XXVII, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011.
112
comprovar a correta aplicação dos recursos públicos recebidos. A OSCIP deverá realizar
auditoria independente da aplicação dos recursos públicos recebidos quando receber
valor superior a R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais) referentes a um ou vários termos
de parceria, firmados com um ou vários órgãos estatais (artigo 19 do Decreto 3.100/99).
As contas serão analisadas pelo órgão estatal parceiro.
Duas observações se fazem necessárias quanto ao órgão competente
para a análise da prestação de contas das entidades do Terceiro Setor.
A primeira: as normas legais conferem competência para tal análise
aos órgãos de controle interno, ou seja, ao órgão descentralizador (no caso dos
convênios e contratos de repasse), à entidade supervisora (contratos de gestão, OS) e ao
órgão estatal parceiro (termos de parceria, OSCIPs). Trata-se da concretização do dever
constitucional próprio do sistema de controle interno, com a finalidade de comprovar a
legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da aplicação de
recursos públicos por entidades de direito privado, conforme previsto no artigo 74, II,
da Constituição Federal.
Eis a segunda: o exercício do controle interno não é excludente do
controle externo, também previsto constitucionalmente, a cargo do TCU e do Ministério
Público.
No caso do TCU, a competência para análise das contas do Terceiro
Setor decorre diretamente do artigo 70 da Constituição Federal: a atividade
administrativa de fomento é expressamente mencionada no caput do referido artigo nas
expressões aplicação das subvenções e renúncia de receitas. E, em complemento, o
parágrafo único do artigo 70 estabelece o dever de prestação de contas das entidades
privadas que gerenciem recursos públicos e o artigo 71, II, prevê a competência do TCU
para julgamento dos responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos.
O TCU havia reconhecido sua competência para julgar as contas
anuais das Organizações Sociais na Decisão 592/98, mas no Acórdão 1952/2007 decidiu
pela não-obrigatoriedade de prestação dessas contas diretamente ao TCU, tendo em
vista que os órgãos governamentais contratantes (supervisores) das Organizações
Sociais já devem, por disposição legal, supervisioná-las, acompanhá-las e avaliá-las.
No tocante à incidência do controle externo da prestação de contas da
OSCIPs, o TCU (TC-014.334/1999-2, Decisão n.º 931/99-Plenário) chegou às seguintes
conclusões: não cabe prestação de contas sistemática das OSCIPs ao TCU, mesmo em
relação aos recursos vinculados ao termo de parceria, pois as prestações de contas
113
devem ser apresentadas aos órgãos repassadores; a instauração de tomada de contas
especial pode alcançar os agentes responsáveis pelo termo de parceria no âmbito das
OSCIPs, inclusive diante da omissão no dever de prestação de contas; e, a mais
importante delas, no sentido de que o Tribunal de Contas tem competência para fazer a
fiscalização direta do termo de parceria.
Para o exercício de 2011, os entes administrativos que firmaram
contrato de gestão nos termos da Lei 9.637/98 tiveram a obrigação de apresentar ao
TCU relatório de gestão com informações sobre o acompanhamento das ações
relacionadas ao contrato de gestão, contemplando, entre outras, o volume de recursos
repassados, a execução do contrato pelo contratado e os resultados obtidos com a
contratação. Nesse mesmo sentido, as unidades administrativas que firmaram termo de
parceria consoante a Lei 9.790/99, tiveram que apresentar à Corte de Contas
informações sobre o acompanhamento das ações relacionadas ao termo de parceria,
contemplando, entre outras, a forma de escolha do parceiro, a execução do cronograma
físico-financeiro e os resultados da parceria. 94
Em relação ao Ministério Público, a atribuição constitucional para o
exercício do controle externo tem fonte no artigo 129, II e III, que tratam,
respectivamente, das funções de zelar pelo efetivo respeito dos serviços de relevância
pública aos direitos assegurados na Constituição e promover o inquérito civil e a ação
civil pública para proteção do patrimônio público e social (infra, V-2.1).
No julgamento da ADI 1923/DF pelo Supremo Tribunal Federal, o
Ministro Ayres Britto reconheceu que a fiscalização realizada pela entidade supervisora
sobre o contrato de gestão da Organização Social ocorre em paralelo “àquela que já faz
parte das competências constitucionais do Ministério Público e dos Tribunais de
Contas” e à exercida pelos próprios cidadãos. No mesmo sentido, o Ministro Luiz Fux
julgou parcialmente o pedido para, entre outras determinações, “afastar qualquer
interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação
de verbas públicas”.
Portanto, no tocante à fiscalização da aplicação de recursos públicos
pelo Terceiro Setor, o controle externo não é residual, indireto ou de 2º grau, eis que
decorrente diretamente da Constituição, podendo incidir inclusive de forma paralela e
independente ao controle interno. O TCU, por exemplo, tem competência para analisar,
94
Conforme Portaria TCU Nº 123, de 12 de maio de 2011, que dispõe sobre orientações às unidades
jurisdicionadas ao Tribunal quanto ao preenchimento dos conteúdos dos relatórios de gestão referentes ao
exercício de 2011.
114
diretamente, denúncia sobre malversação de recursos públicos federais repassados a
entidade do Terceiro Setor, inclusive realizando a fiscalização necessária para apurar a
procedência da denúncia.95 Da mesma forma, o Ministério Público tem atribuição
constitucional, por exemplo, para instaurar inquérito civil com o escopo de apurar
prática de atos de improbidade administrativa, consistentes no enriquecimento ilícito de
gestores de entidades privadas sem fins lucrativos que se apropriaram ilegalmente de
recursos públicos. Essas atribuições realizadas pelo TCU e pelo Ministério Público
defluem diretamente da Constituição Federal e, por isso, independem de qualquer
fiscalização prévia realizada pelo sistema de controle interno.
A coexistência das atribuições de controle interno e externo sobre a
aplicação de recursos públicos pelas entidades do Terceiro Setor não traz qualquer risco
de sobreposição de competências ou de fiscalização excessiva, como vislumbrado por
Floriano de Azevedo Marques Neto.96 A realidade brasileira demonstra exatamente o
contrário: a completa deficiência da fiscalização exercida sobre o repasse de recursos
públicos (supra, III-1).
6.2 Tomada de contas especial
O artigo 84 do Decreto-lei 200/67 e o artigo 8º da Lei 8.443/92
estabelecem o dever geral das autoridades administrativas instaurarem processo de
tomada de contas sempre que se verificar a ausência de prestação de contas, desfalque
ou desvio de bens ou a ocorrência de irregularidade causadora de prejuízo ao erário.
No âmbito federal, a tomada de contas especial é definida como o
“processo administrativo devidamente formalizado, com rito próprio, para apurar
responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública federal e obtenção do
respectivo ressarcimento”. 97
A tomada de contas especial possui a natureza jurídica de processo
95
Nos termos do artigo 74, II, da Constituição Federal e do artigo 5º, I, artigo 41, II e artigos 53 a 55,
todos da Lei 8.443/92, a Lei Orgânica do TCU.
96
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo Marques. Os grandes desafios do controle da
Administração Pública. In: MODESTO, Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira. 2.
ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 199-238. O autor cita alguns problemas que decorreriam
da “autonomização do controle”, dentre os quais se destacam a citada “multiplicidade de instâncias”, que
faria com que as competências fossem exercidas de maneira sobreposta e excessiva e o “déficit de
responsabilidade”, referente ao controle da formalidade em detrimento do controle dos resultados
alcançados. No Brasil, contudo, não há excesso de controle, mas sua deficiência e ineficiência, quando se
trata do repasse de recursos públicos para entidades privadas sem fins lucrativos. Por isso, a preocupação
por ele sustentada não se sustenta diante da realidade brasileira.
97
A definição apresentada consta do artigo 3º da Instrução Normativa TCU 56/2007.
115
administrativo com o objetivo de ressarcimento ao erário. Relembre-se que ação para
ressarcimento do erário, nos termos da Constituição Federal, é imprescritível (artigo 37,
§5º). O procedimento de tomada de contas especial visa apurar os fatos, identificar os
responsáveis e quantificar o dano. É fundamental realizar a fase instrutória do processo,
assegurando-se o contraditório e a ampla defesa ao responsável pela prestação de contas
dos recursos públicos.
Os fatos que ensejam a instauração de tomada de contas especial são
os seguintes: não apresentação de prestação de contas no prazo fixado e não aprovação
da prestação de contas em decorrência das hipóteses previstas na Portaria
Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 201. 98
De acordo com o TCU, a tomada de contas especial, em regra, deve
ser instaurada pela autoridade competente do próprio órgão ou entidade responsável
pela gestão dos recursos (ou seja, pelo sistema de controle interno), depois de esgotadas
as providências administrativas internas com vista à recomposição do erário. Contudo,
pode também ser instaurada por recomendação dos órgãos de controle interno (art. 50,
III, da Lei 8.443/92) ou por determinação do próprio Tribunal, nos casos de omissão na
prestação de contas ou inércia na instauração do processo pelo gestor. 99 A tomada de
contas especial pode ser, ainda, oriunda de conversão de outros processos de controle
externo, tais como, denúncia, representação, inspeção, auditoria e processos de registro
de atos de pessoal (art. 47 da Lei 8.443/92).
Somente deve ser instaurada tomada de contas especial, contudo, se o
dano causado ao erário, atualizado monetariamente, for de valor igual ou superior à
98
É o que dispõe o artigo 82 da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de
2011: “Art. 82. A Tomada de Contas Especial é um processo devidamente formalizado, dotado de rito
próprio, que objetiva apurar os fatos, identificar os responsáveis e quantificar o dano causado ao Erário,
visando ao seu imediato ressarcimento. § 1º A Tomada de Contas Especial somente deverá ser instaurada
depois de esgotadas as providências administrativas a cargo do concedente pela ocorrência de algum dos
seguintes fatos: I - a prestação de contas do convênio não for apresentada no prazo fixado no inciso I do
art. 72, observado o § 1º do referido artigo desta Portaria; e II - a prestação de contas do convênio não for
aprovada em decorrência de: a) inexecução total ou parcial do objeto pactuado; b) desvio de finalidade na
aplicação dos recursos transferidos; c) impugnação de despesas, se realizadas em desacordo com as
disposições do termo celebrado ou desta Portaria; d) não utilização, total ou parcial, da contrapartida
pactuada, na hipótese de não haver sido recolhida na forma prevista no parágrafo único do art. 73 desta
Portaria; e) não utilização, total ou parcial, dos rendimentos da aplicação financeira no objeto do Plano de
Trabalho, quando não recolhidos na forma prevista no parágrafo único do art. 73 desta Portaria; f)
inobservância do prescrito no § 1º do art. 54 desta Portaria ou não devolução de rendimentos de
aplicações financeiras, no caso de sua não utilização; g) não devolução de eventual saldo de recursos
federais, apurado na execução do objeto, nos termos do art. 73 desta Portaria; e h) ausência de
documentos exigidos na prestação de contas que comprometa o julgamento da boa e regular aplicação dos
recursos. (...)”
99
Conforme informado no site do TCU: <http://www.tcu.gov.br > Acesso em: 14 jul. 2011.
116
quantia estabelecida pelo TCU, atualmente fixada em R$ 23.000,00.100 Se o dano
causado for inferior a esse valor, a autoridade administrativa federal competente deverá
esgotar as medidas administrativas internas visando ao ressarcimento pretendido e
providenciar a inclusão do nome do responsável no Cadastro Informativo dos débitos
não quitados de órgãos e entidades federais – Cadin e em outros cadastros afins,
observando-se os requisitos especificados na respectiva legislação. 101
Por fim, os processos de tomada de contas especial serão julgados
regulares (com quitação plena dos responsáveis), regulares com ressalva (falhas
formais) e irregulares. Podem ainda ser considerados iliquidáveis (trancamento das
contas por impossibilidade de julgamento) ou arquivados sem apreciação do mérito
quando verificada a ausência de pressupostos de constituição ou de desenvolvimento
válido e regular do processo.102 Quando as contas são julgadas irregulares há imputação
de débito e/ou multa, decisão que tem eficácia de título executivo extrajudicial (art. 71,
§ 3º, da CF/88 e art. 585, VII, do CPC), tornando a dívida líquida e certa.
6.3 Inconstitucionalidade do artigo 17 do Decreto 6.170/07
Em relação às transferências voluntárias de recursos públicos por
meio dos convênios, a “solução” encontrada para diminuir o estoque de prestações de
contas não analisadas foi a possibilidade de arquivamento de todos os convênios com
prazo de vigência encerrado há mais de cinco anos e com valor de até R$ 100.000,00
(cem mil reais), com base no inconstitucional artigo 17 do Decreto 6.170/07.
Segundo o TCU, até dezembro de 2010 foram arquivados 8.130
convênios com base no referido artigo.103 Ou seja: os órgãos repassadores transferem os
recursos públicos para as entidades privadas, deixam de analisar as prestações de contas
apresentadas de convênios de até R$ 100.000,00 (cem mil reais) e depois de
transcorrido o prazo fixado, simplesmente arquivam esses processos administrativos
sem análise das contas.
Com efeito, o artigo 74, II da Constituição Federal estabelece a
atribuição do sistema de controle interno de comprovar a legalidade e avaliar os
100
IN TCU 56/2007, art. 11.
Art. 1º, §3º, c/c art. 5º, §2º, da Instrução Normativa TCU 56/2007, conforme informado no site do
TCU: <http://www.tcu.gov.br >. Acesso em: 14 jul. 2011.
102
Artigos 197 a 213 do Regimento Interno do TCU.
103
Relatório e parecer prévio sobre as contas da República, referentes ao exercício de 2010, elaborado
pelo Tribunal de Contas da União e disponível em <http://portal2.tcu.gov.br/TCU>. Acesso em: 05 jun.
2011.
101
117
resultados, quanto à eficácia e eficiência, da aplicação de recursos públicos por
entidades de direito privado. O artigo 17 do Decreto 6.170/07 é inconstitucional na
medida em que permite a não realização do dever constitucional de analisar a aplicação
de recursos públicos por entidades de direito privado. E, se não bastasse, utiliza critérios
desarrazoados de valor (R$ 100.000,00) e de tempo (5 anos).
Um mero decreto não pode afastar um dever relevantíssimo
estabelecido na Constituição Federal para o sistema interno de controle: fiscalizar a
aplicação de recursos públicos (dinheiro do povo) pelas entidades de direito privado.
Quando muito, com base em critérios razoáveis, poder-se-ia estabelecer um
procedimento simplificado de verificação das contas apresentadas, jamais o
arquivamento direto das prestações de contas. Sob o pretexto de regulamentar os artigos
116 da Lei 8.666/93 e 25 da Lei Complementar 101/00, o Decreto 6.170/07 permite a
inobservância de relevante dever constitucional e é, por tal motivo, inconstitucional.
Consoante lição de José Roberto Pimenta Oliveira: 104
Quando não há, na emanação de normas estatais, independentemente de sua
fonte (legislativa ou regulamentar) o adequado sopesamento, balanceamento,
ponderação ou equilíbrio entre bens constitucionalmente protegidos, em vista
das circunstâncias que demandam sua edição, perde a Constituição sua força
superior ordenatória de formação e conformação da atividade estatal exigida
nos quadrantes do Estado Democrático de Direito.
Talvez o prazo de cinco anos tenha sido fixado no decreto com base
nos marcos prescricionais para levar a efeito as sanções por ato de improbidade
administrativa (artigo 23 da Lei 8.429/92), para o ajuizamento de ação popular (artigo
21 da Lei 4.717/65) ou para anulação, pela própria Administração, dos atos
administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos administrados (artigo 54 da Lei
9.784/99).
Ocorre, por outro lado, que a análise dessas prestações de contas pode
revelar indícios de graves crimes praticados contra a administração pública, tal como
inserção de dados falsos em sistema de informações (infra, V-5), ou os crimes de
prevaricação e aplicação irregular de verbas públicas. Registre-se que o prazo
prescricional do crime de inserção de dados falsos em sistema de informações é de 16
anos, conforme o Código Penal (artigo 109, II).
Além disso, o prazo geral para instauração de tomada de contas
104
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no
direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 314.
118
especial pelo TCU, salvo determinação em contrário, é de 10 anos contados da data do
fato gerador, conforme artigo 5º, §4º, da IN/TCU nº 56/07. O objetivo da tomada de
contas é o ressarcimento dos dados causados ao erário e ação judicial para essa
finalidade, registre-se, é imprescritível, nos termos do artigo 37, §5º, da Constituição
Federal (infra, V-4).
O arquivamento prematuro das referidas prestações de contas, na
forma preconizada pelo artigo 17 do Decreto 6.170/07, impedirá que chegue ao
conhecimento do Ministério Público indícios de graves delitos, livrando criminosos de
responderem à respectiva ação penal de crimes ainda não prescritos, na forma da lei.
Ademais, o prazo de 5 anos é muito aquém do fixado para instauração de tomada de
contas especial pelo TCU, com o escopo de ressarcimento dos danos causados ao erário,
cuja ação é imprescritível.
Ou seja: o prazo de cinco anos fixados na norma não é razoável
porque impede a proteção satisfatória de outros bens jurídicos considerados relevantes
pela legislação que são tutelados pelo direito penal e pela imprescritibilidade.
De outro lado, o valor de R$ 100.000,00 é muito elevado se
comparado com outras normas jurídicas que também fixam parâmetros pecuniários para
o exercício de competências administrativas relacionadas à recuperação do patrimônio
público ou para a cobrança de dívidas da União.
Ora, a quantia mínima para a instauração de tomada de contas especial
pelo TCU é de R$ 23.000,00, conforme artigo 11 da IN/TCU nº 56/07. Já o valor
mínimo para inscrição, como Dívida Ativa da União, de débitos com a Fazenda
Nacional é R$ 1.000,00 (mil reais) e o ajuizamento das execuções ficais de débitos com
a Fazenda Nacional somente ocorrerá quando o valor consolidado for superior a R$
10.000,00 (dez mil reais).105 Vê-se que não houve a devida ponderação na fixação de R$
100.000,00 – valor dez vezes superior ao estabelecido para o ajuizamento das execuções
fiscais de débitos com a Fazenda Nacional – pelo artigo 17 do Decreto 6.170/06.
O artigo 17 do Decreto 6.170/06 estimula indiretamente o
afrouxamento do controle realizado pelas próprias entidades privadas sobre a utilização
dos recursos públicos recebidos por meio de convênios de até cem mil reais: de
antemão, os gestores dessas entidades saberão que, dificilmente, terão as prestações de
contas analisadas. E é inconstitucional, sob todos os aspectos acima mencionados, pois
105
Conforme artigo 20 da Lei 10.522/02, na redação dada pela Lei 11.033/04, e Portaria do Ministério
da Fazenda nº 049, de 1º de abril de 2004.
119
é mecanismo que contribui para a tão nefasta impunidade que assola o país, inibe o
combate à corrupção e dificulta a reparação de danos causados ao erário.
120
Capítulo IV – A PROTEÇÃO DO CIDADÃO CLIENTE DO
TERCEIRO SETOR
1. Introdução. 2. A defesa do consumidor no direito brasileiro. 2.1 Relação de
consumo. 2.2 O regime jurídico do CDC. 2.3 O consumidor do serviço de relevância
pública. 2.4 Responsabilidade em face de danos provocados a terceiros. 3. O regime
jurídico dos serviços públicos. 3.1 Conceito de serviço público. 3.2 Regime jurídico
do serviço público. 3.3 Posições doutrinárias sobre a aplicação do CDC aos serviços
públicos. 3.4 A aplicação do CDC aos serviços públicos. 3.5 Distinções entre usuário
e consumidor. 3.6 Responsabilidade civil em face de danos causados a terceiros. 4.
O regime jurídico do Terceiro Setor sob a perspectiva do cidadão cliente. 4.1
Regime jurídico do Terceiro Setor. 4.2 O cidadão cliente dos serviços prestados pelo
Terceiro Setor. 4.3. O parâmetro legal da prestação de serviços pelo Terceiro Setor.
4.4 Aplicação do artigo 22 do CDC ao Terceiro Setor. 4.5 Responsabilidade civil em
face dos danos causados a terceiros e a proteção processual do cidadão cliente. 4.6
Aplicação integral do CDC ao Terceiro Setor. 5. Responsabilidade civil do Estado
pelos danos causados pelo Terceiro Setor.
1. Introdução
A Constituição de 1988 é pródiga em estabelecer direitos sociais –
educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social,
maternidade, infância e assistência aos desemparados – e os respectivos deveres estatais
para concretizá-los. O maior desafio, contudo, continua sendo tirá-los do papel e tornálos realidade para a maioria da população brasileira.
Para Fábio Konder Comparato o titular desses direitos “não é o
homem abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente”, mas o
“conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a
marginalização”. 1
O crescimento constante das novas demandas sociais e as limitações
orçamentárias
impossibilitam
o
cumprimento
do
programa
constitucional
exclusivamente pelo próprio Estado. Não há como negar a realidade: o Poder Público,
por si só, não é capaz de proporcionar aos cidadãos todos os direitos sociais da
complexa sociedade moderna. Estrategicamente, a Constituição permite a prestação dos
serviços de relevância pública pela iniciativa privada.
Cristina Queiroz identifica a dicotomia ou dualismo entre os direitos,
liberdades e garantias de um lado, e os direitos econômicos, sociais e culturais de
outro, e ensina que não há barreiras fixas entre ambos – caberá ao operador jurídico,
sobretudo aos tribunais, determinar no caso concreto o regime e a força jurídica desses
1
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3.ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 54.
121
direitos e pretensões no seu conjunto. No moderno Estado de Direito democrático e
constitucional, que é um “Estado de Direitos Fundamentais”, o status positivus –
direitos que asseguram a igualdade, dependentes da ação estatal – deve voltar a ser
posicionado no mesmo plano do status negativus – direitos que asseguram a liberdade,
pela inação estatal. 2
Segundo a referida autora, a cidadania não consiste unicamente em
proteger uma esfera de liberdade face ao Estado. Pelo contrário: a cidadania encontra-se
atualmente ligada ao controle do Poder Público por meio de mecanismos de
participação, segurança e independência (isto é, não dominação) e não por simples
barreiras erguidas contra o Estado (walls against the State).3 O fato é que os direitos
fundamentais se apresentam como aquilo que os cidadãos têm direito a esperar – were
entitled to expect. Esta relação entre a “função” e a “situação social” dos direitos
relativiza a separação entre o Estado e a sociedade, bem como a diferenciação entre o
Estado e o cidadão ou a relação entre cidadãos.
A realidade brasileira de extrema desigualdade social impõe o
reconhecimento dos direitos sociais no mesmo plano dos direitos de liberdade, como
caminho para o desenvolvimento do país. É fato: o Brasil sequer conseguiu atingir a
mera igualdade formal, garantida pelo Estado Liberal, e está ainda muito distante de
alcançar a igualdade material visada pelo modelo normativo adotado pela Constituição
de 1988.
O cumprimento dos objetivos constitucionais fundamentais da
República Federativa do Brasil – com destaque para a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, erradicação da pobreza e da marginalização e redução das
desigualdades sociais e regionais – passa, necessariamente, pelo processo de
concretização dos direitos sociais.
Nesse caminho, as entidades do Terceiro Setor desempenham
relevante papel, ao lado do Estado, pois também contribuem para a efetivação dos
direitos sociais. Essa árdua missão é destinada constitucionalmente tanto ao serviço
público quanto à atividade econômica.4 Atualmente, vem sendo desenvolvidas parcerias
entre o Terceiro Setor e o Estado, unidos pelo móvel comum que, invariavelmente,
rompe barreiras entre os setores público e privado: o interesse público.
2
QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais. Portugal: Coimbra Editora, 2006, p. 5-24.
QUEIROZ, Cristina. Op. cit., p. 29.
4
A ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, nos termos do caput do artigo 170 da Constituição Federal.
3
122
O Terceiro Setor é importante instrumento da cidadania ativa porque
por meio dele a própria sociedade civil se estrutura para prestar serviços de relevância,
contando com a colaboração estatal, diminuindo assim o enorme abismo que costuma
existir entre o Estado e a população. O povo conhece mais de perto seus próprios
problemas e as possíveis soluções para resolvê-los. Paralelamente à prestação de
serviços públicos sociais, o Estado estimula eficazmente a prestação de serviços de
relevância pública pelo Terceiro Setor por meio do fomento concedido nos adequados
limites constitucionais (supra, I-5).
O crescimento do Terceiro Setor – financiado por recursos públicos e
privados – é inegável (supra, III-1). Cada vez com maior frequência, os cidadãos
passam a depender de serviços de relevância pública prestados por entidades sem fins
lucrativos para satisfazer necessidades fundamentais, como nas áreas de saúde e
educação. Duas ressalvas se fazem necessárias quanto a essa constatação.
Primeira: é fundamental que seja exercido efetivo controle sobre a
qualidade dos serviços de relevância pública prestados pelo Terceiro Setor.
Segunda: a legislação deve prever meios adequados de proteção do
cidadão que usufrui os serviços de relevância pública prestados pelo Terceiro Setor.
Nesse sentido, é oportuna a advertência feita por Vladimir da Rocha França: 5
Se o Estado opta por não prestar diretamente o serviço público social,
estimulando o terceiro setor a fazê-lo, deve o cidadão ser protegido contra os
entes privados que foram designados ou reconhecidos por autoridade pública
como aptos e idôneos para atuar sob o regime de fomento. Do contrário,
abrir-se-ia espaço para uma perigosa mitigação dos compromissos que a
Constituição Federal lhe impôs no campo da ordem social.
Nesse novo contexto, os serviços de relevância pública prestados pelo
Terceiro Setor somam-se aos tradicionais serviços públicos sociais e aos serviços
sociais economicamente desenvolvidos pela iniciativa privada.
Não se desconhece que muitas das parcerias estabelecidas entre o
Poder Público e o Terceiro Setor são inválidas por implicarem na terceirização
inconstitucional de serviços públicos para a iniciativa privada. Mas, mesmo em tais
casos, diversos atos administrativos são praticados e os cidadãos são diretamente
5
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Reflexões Sobre a Prestação de Serviços Públicos por Entidades do
Terceiro Setor. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 6, junho/julho/agosto, 2006.
Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 30 mai. 2011. Ressalte-se que
o Estado não pode simplesmente deixar de prestar determinado serviço social qualificado como serviço
público, pois não pode descumprir seus deveres constitucionais. A atividade de fomento econômico em
sentido estrito deve ser fundamentada e subsidiária (supra, I-5).
123
afetados pelas relações jurídicas constituídas a partir da parceria ilegal firmada. Por
exemplo: serviços de saúde prestados por Organização Social (inteiramente mantida
com recursos públicos e que se utiliza de servidores públicos cedidos) que tenha
“absorvido” um hospital público. Apesar de nulos, os atos praticados produzem efeitos
e repercutem na esfera jurídica dos cidadãos. Cabe ao aplicador do direito, portanto,
estudar e verificar quais efeitos são produzidos a partir desses atos e suas consequências
jurídicas. 6
O quadro abaixo sintetiza as diversas situações desenvolvidas neste
capítulo.
Tabela 1 – regimes jurídicos do usuário, consumidor e cidadão cliente.
Atividade
Prestador
Regime
Remuneração
Posição do
jurídico
pelo cidadão
cidadão
Serviço público
Estado
Público
Gratuito
Usuário
Serviço público
Privado
Público
Remunerado
Usuário
(concessão
ou
Consumidor
permissão)
Relevância pública
Terceiro Setor
Privado
Remunerado7
Consumidor
Relevância pública
Terceiro Setor
Precipuamente
Gratuito
Cidadão cliente
Privado
Observe-se que o mesmo serviço social pode ser prestado por pessoa
jurídica pública ou privada, em situações diferenciadas. Por exemplo, no campo dos
serviços de saúde, o atendimento médico pode ser prestado por hospital particular
(serviço de relevância pública, atendimento remunerado), hospital público (serviço
público, atendimento gratuito) ou por Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público (serviço de relevância pública, atendimento gratuito).
Nos dois primeiros exemplos, a configuração do regime jurídico é
clara: há a figura do consumidor de produtos e serviços, no primeiro caso, e a figura do
usuário de serviços públicos, no segundo. Para se estudar o regime jurídico aplicável ao
último exemplo, é importante apontar os traços característicos do regime jurídico do
6
“Todo ato irregular, sendo existente, tem um mínimo de recognoscibilidade social e, portanto, de
eficácia deôntica: ele vincula a comunidade. É uma norma pertencente ao ordenamento, e para dele ser
retirada necessita de outro ato jurídico, editado pela autoridade competente. Enquanto não reconhecida
sua irregularidade pelo órgão competente, o ato viciado vincula a comunidade, pois tem eficácia
deôntica.” MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 262.
7
Ressalte-se que a promoção da educação e da saúde por OSCIP será gratuita, nos termos do artigo 3º,
III e IV da Lei 9.790/99.
124
consumidor dos serviços de relevância pública explorados com intuito de lucro e do
usuário de serviços públicos sociais, para, só então, destacar-se o regime próprio do
cidadão cliente atendido gratuitamente pelo Terceiro Setor, objetivo principal deste
capítulo.
2. A defesa do consumidor no direito brasileiro
A defesa do consumidor, na forma da lei, é dever do Estado e direito e
garantia individual fundamental do cidadão (artigo 5º, XXXII, da CF/88). É também
princípio geral da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social (artigo 170, V, da CF/88).
A proteção do consumidor é considerada especialmente importante
pelo constituinte de 1988, eis que configura tanto direito fundamental do cidadão como
princípio geral da ordem econômica. A Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida
como Código de Defesa do Consumidor (CDC), estabelece normas de ordem pública e
interesse social para proteção do consumidor.
Cláudia Lima Marques classifica o direito do consumidor como novo
ramo do direito, transversal entre o direito privado e o direito público: para ela, o CDC
possui 54 normas de direito privado (artigos 1º a 54) e 64 normas de direito público
(artigos 55 a 119). 8
Segundo a referida autora, o CDC simboliza uma perspectiva mais
solidária, social e fraterna para o direito privado nacional, sintetizada pela expressão
direito privado solidário. Além da origem constitucional, a defesa do consumidor se
justifica pela tutela do vulnerável (princípio do favor debilis), como forma de promoção
da igualdade material. No contexto socioeconômico, o CDC é mecanismo de proteção
do consumidor em face dos desafios da atual sociedade, massificada, globalizada e
informatizada. Com efeito, a internacionalização dos mercados potencializa a
vulnerabilidade do consumidor, exposto a marcas mundiais e novas formas de
publicidade (pela internet e celular), ampliando de forma antes impensável a exposição
às práticas de consumo. Daí, a importância da correta interpretação e aplicação do CDC:
concretizar o mandamento constitucional de defesa do consumidor.
O CDC é voltado para a tutela do mais fraco – o consumidor
8
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de
Direito do Consumidor. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 3047.
125
identificado constitucionalmente como vulnerável – e é lei especial em relação ao
Código Civil de 2002, elaborado para relação entre iguais, ou seja, entre civis ou entre
empresários. 9
2.1 Relação de consumo
A aplicação integral do CDC pressupõe a configuração de relação de
consumo, que nada mais é do que uma relação jurídica que possui elementos subjetivos
(as partes envolvidas: consumidor e fornecedor) e objetivos, que compreendem os bens
(produto ou serviço) sobre os quais recai o interesse da relação.
Consumidor é “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final” (artigo 2º, caput, da Lei 8.078/90). Duas
correntes doutrinárias se formaram quanto à definição legal.
Para os maximalistas, o CDC deve ser aplicado da forma mais ampla
possível, não somente para proteger o consumidor não profissional. Basta a destinação
fática do bem, que o produto seja retirado do mercado, ainda que seja reutilizado na
cadeia produtiva. Exemplo de relação de consumo: empresa que compra couro para
fabricar bolas de futebol.
A corrente dos finalistas adota interpretação mais restrita: somente se
aplica o CDC aos que não se utilizem dos produtos ou serviços como insumos de
produção. O destinatário final deve ser o destinatário fático e econômico do bem ou
serviço. Exemplo de relação de consumo: pai que compra uma bola de futebol para
presentear o filho.
A corrente que tem prevalecido no STJ, segundo Cláudia Lima
Marques, é a do finalismo aprofundado, baseado na noção de vulnerabilidade e no
exame in concreto do caso.10 Para essa corrente, mesmo em algumas situações em que
não haja destinação fática e econômica do bem, haverá relação de consumo, se ficar
provada a vulnerabilidade do consumidor. Exemplo de relação de consumo: pequena
empresa que adquire insumo para produção, fora da área de sua expertise, desde que
comprovado nos autos a vulnerabilidade da adquirente.
Na outra ponta da relação jurídica há o fornecedor: toda pessoa física
9
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual
de Direito do Consumidor. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.
87.
10
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Op. Cit.
p. 113-114.
126
ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, assim como os entes
despersonalizados, que desenvolvem atividade de exportação, montagem, criação,
construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de
produtos ou prestação de serviços (artigo 3º do CDC).
Imperioso destacar que o conceito legal permite que as pessoas
jurídicas de direito público interno – União, Estados, Distrito Federal, Municípios,
autarquias, associações públicas e demais entidades de caráter público criadas por lei
(artigo 41 do Código Civil) – sejam qualificadas como fornecedoras na relação
consumerista.
O mesmo ocorre com as entidades civis do Terceiro Setor, que
também podem figurar como fornecedoras: são pessoas jurídicas de direito privado
(associações ou fundações) que prestam serviços (de relevância pública). Nesse sentido,
é esclarecedora a lição de Elaine Cardoso de Matos Novais: 11
O fato, porém, de certas entidades não objetivarem a repartição do
excedente auferido entre seus membros ou instituidores não quer dizer que
elas não exerçam atividade ou prestem serviços consoante previsão delineada
no CDC. A finalidade de ganho no microssistema consumerista consiste no
escopo de um resultado positivo, na captação de recursos que poderão ser
reimpregados no próprio ente jurídico ou divido entre os sócios.
Corroborando a posição em comento, Roberto Senise Lisboa
reconhece que “podem ser fornecedoras todas as pessoas jurídicas de direito
privado, a saber: as sociedades civis, as sociedades empresariais ou
mercantis, as associações e as fundações”.
Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial
(artigo 3º, §1º, do CDC). Se a relação obrigacional for de dar, o objeto de consumo será
um produto. Ainda que o produto seja gratuito, haverá relação de consumo. Assim, por
exemplo, as amostras grátis repassadas pelo fornecedor ao consumidor ensejam a
aplicação do CDC.
Por fim, serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de
consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de
crédito e securitária, salvo as de correntes das relações de caráter trabalhista (artigo 3º,
§2º). Se a obrigação for de fazer, o objeto de consumo será um serviço.
Cláudia Lima Marques ensina que pode haver três situações diferentes
sobre o que se entende por remuneração do serviço, para fins de configuração da relação
11
NOVAIS, Elaine Cardoso de Matos. Serviços públicos e relação de consumo: aplicabilidade do
Código de Defesa do Consumidor. Curitiba: Juruá, 2008, p. 118 e 119.
127
de consumo: 12
a) ou o serviço é remunerado diretamente pelo consumidor; b) ou o serviço
não é oneroso para o consumidor, mas remunerado indiretamente, não
havendo enriquecimento ilícito do fornecedor, pois o seu enriquecimento tem
causa no contrato de fornecimento de serviço, causa esta que é justamente a
remuneração indireta do fornecedor; c) ou o serviço não é oneroso de
maneira nenhuma (serviço gratuito totalmente) nem o fornecedor remunerado
de nenhuma maneira, pois, se este fosse “remunerado” indiretamente, haveria
enriquecimento sem causa de uma das partes. Conclui-se, pois, que, no
mercado de consumo, em quase todos os casos, há remuneração do
fornecedor, direta ou indireta, há “enriquecimento” dos fornecedores pelos
serviços dito “gratuitos”, que é justamente sua remuneração. Importante que
estes estejam submetidos ao CDC.
Logo, somente quando o serviço for realmente gratuito não haverá
relação de consumo. A referida autora apresenta alguns exemplos de remuneração
indireta que atraem a incidência do CDC: estacionamento, poupança popular, transporte
de clientes, viagens-prêmio, coquetéis gratuitos e lavagens de carro de brinde. 13
Enfim, para a configuração da relação de consumo e aplicação
integral do CDC, há necessidade de conjugação de todos os elementos subjetivos e
objetivos da relação jurídica: fornecedor, consumidor e a comercialização de produtos
ou fornecimento de serviços.
2.2 O regime jurídico do CDC
O reconhecimento da relação de consumo implica a aplicação das
normas protetivas previstas na Lei 8.078/90. O CDC é composto de princípios próprios
e direitos básicos que compõem o regime jurídico específico de tutela do consumidor.
O princípio da vulnerabilidade (artigo 4º, I) reconhece o consumidor
como a parte frágil da relação de consumo, já que é o fornecedor quem detém o acesso
aos meios de produção de produtos e serviços e às técnicas de publicidade e persuasão.
É o princípio central de todo o microssistema do CDC, que se relaciona com a
igualdade material. Busca equalizar as relações entre consumidores e fornecedores.
Segundo Cláudia Lima Marques, a vulnerabilidade pode ser: técnica,
relacionada à falta de conhecimentos específicos do consumidor sobre o produto ou
serviço que está adquirindo, sendo presumida para o consumidor não profissional;
12
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual
de Direito do Consumidor. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.
103.
13
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Op. cit. p.
102.
128
jurídica ou científica, relacionada à falta de específicos conhecimentos jurídicos,
contábeis ou econômicos, presumida para o consumidor não profissional e as pessoas
físicas; e fática ou socioeconômica, decorrente da submissão do consumidor ao grande
poder econômico do fornecedor (em casos de monopólio, por exemplo) ou em razão da
essencialidade do serviço oferecido. 14
A vulnerabilidade não se confunde com a hipossuficiência: esta é
instituto de direito processual de defesa do consumidor, qualificando-se como fática
(quando o consumidor não tem condições de custear a realização de prova no processo)
ou técnica (quando o consumidor não tem condições de provar o nexo de causalidade,
pois é o fornecedor quem possui as informações e o conhecimento técnico sobre o
produto ou serviço). A vulnerabilidade é conceito de direito material necessário à
configuração da relação de consumo (artigo 4º, I), ao passo que a hipossuficiência é
instituto de direito processual que pode ser levado em conta pelo juiz para a inversão do
ônus da prova (artigo 6º, VIII, do CDC). “Todo consumidor é vulnerável, mas nem todo
consumidor é hipossuficiente”. 15
A aplicação do princípio da vulnerabilidade deve levar ao equilíbrio
das relações entre consumidores e fornecedores no mercado de consumo, sem criar
privilégios ou desvantagens desproporcionais para o consumidor. Vigora também o
princípio do equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores como diretriz
necessária para assegurar o desenvolvimento das atividades dos fornecedores no regime
de livre iniciativa, pautada pela lei econômica da oferta e da procura. A legislação
consumerista exige a “compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade
de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos
quais se funda a ordem econômica” (artigo 4º, III).
O princípio da defesa do consumidor pelo Estado (artigo 4º, II) é
oriundo do direto fundamental que determina a promoção estatal, na forma da lei, da
defesa do consumidor (artigo 5º, XXXII, CF/88) e é concretizado pela criação de órgãos
públicos para tanto, como os Procons.
O princípio da boa-fé objetiva (artigo 4º, III) impõe a observância de
um standard objetivo de comportamento que deve ser observado pelos fornecedores e
consumidores antes, durante e depois da relação consumerista. Este comportamento
14
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual
de Direito do Consumidor. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.
90-91.
15
NOVAIS, Elaine Cardoso de Matos. Serviços públicos e relação de consumo: aplicabilidade do
Código de Defesa do Consumidor. Curitiba: Juruá, 2008, p. 99-100.
129
deve ser pautado pela honestidade e moralidade. Não se confunde com a boa-fé
subjetiva, já que esta diz com o elemento anímico do agente, seu conhecimento ou
ignorância de determinada situação que poderia influir na realização do negócio
jurídico.
O princípio da informação e educação impõe aos fornecedores o
dever de divulgação de informações adequadas e claras sobre os produtos e serviços,
especificando-se corretamente a qualidade, características, composição, preço e riscos
que apresentem. Por esse princípio, os órgãos públicos e os fornecedores devem
informar à população sobre seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado
de consumo. Nesse sentido, a Lei 12.291/10 obriga os estabelecimentos comerciais e de
prestação de serviços a manterem, em local visível e de fácil acesso ao público, um
exemplar do Código de Defesa do Consumidor, sob pena de multa.
O princípio da segurança e qualidade, também denominado de
princípio da adequação, impõe que os fornecedores velem pela segurança e qualidade
dos produtos e serviços para assegurar a integridade física e psíquica do consumidor,
“bem como assegurar-lhe um produto ou serviço capaz de oferecer a utilidade dele
esperada”. 16
Por fim, o princípio do combate ao abuso (artigo 4º, VI) almeja a
eficiente coibição e repressão de todos os abusos praticados no mercado de consumo,
inclusive a concorrência desleal e a utilização indevida de inventos e criações industriais
das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos
consumidores.
Os direitos básicos do consumidor estão previstos no artigo 6º do
CDC: vida, saúde e segurança; liberdade de escolha; informação; transparência e boa-fé
(combate ao abuso); prevenção e reparação de danos morais e materiais, com
possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do artigo 28 do
CDC; acesso à justiça e inversão do ônus da prova (quando a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando o consumidor for hipossuficiente); e a prestação de
serviços públicos adequados e eficazes. 17
16
NOVAIS, Elaine Cardoso de Matos. Serviços públicos e relação de consumo: aplicabilidade do
Código de Defesa do Consumidor. Curitiba: Juruá, 2008, p. 102.
17
O artigo 6º do CDC diz que são direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e
segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados
perigosos ou nocivos; II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços,
asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III - a informação adequada e clara
sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características,
composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; IV - a proteção contra a
130
2.3 O consumidor do serviço de relevância pública
Como visto, serviço de relevância pública é a prestação de atividades
materiais atreladas aos direitos sociais (artigo 6º, da Constituição) pela iniciativa
privada, submetida a regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público. Apesar
de inserido no campo da atividade econômica, o serviço de relevância pública possui
regime jurídico especial, eis que a prestação de serviços sociais possui normas próprias
que a diferem da exploração econômica de produtos e serviços (supra, I-3).
A Constituição Federal prevê a exploração econômica, pela iniciativa
privada, dos serviços de relevância pública, tais como serviços de saúde (artigo 199) e
de ensino (artigo 209). É correto dizer, portanto, que esses serviços, embora sociais, são
fornecidos no mercado de consumo.
A iniciativa privada, ao prestar serviços remunerados de relevância
pública, deve respeito às normas de defesa do consumidor (artigo 5º, XXXII e 170, V,
ambos da CF/88) e à regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público. A forma
jurídica adotada para tal fim é a sociedade, constituída para o exercício de atividade
econômica e partilha de lucros (artigo 981 do Código Civil).
Por exemplo, o cidadão que paga mensalidade para estudar em escola
particular é pessoa física que utiliza o serviço como destinatário final (artigo 2º do
Código de Defesa do Consumidor). O ensino ministrado é serviço fornecido no mercado
de consumo, mediante remuneração (artigo 3º, § 2º do CDC). A escola particular é
considerada fornecedora pela legislação consumerista (artigo 3º, caput, do CDC).
A relação jurídica estabelecida entre o prestador do serviço de
relevância pública e o cidadão por meio da cobrança de contraprestação configura
relação de consumo nos termos previstos no Código de Defesa do Consumidor. Há
aplicação plena do Código de Defesa do Consumidor para tutelar os direitos do
consumidor dos serviços de relevância pública.
publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e
cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; V - a modificação das cláusulas
contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes
que as tornem excessivamente onerosas; VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e
morais, individuais, coletivos e difusos; VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas
à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a
proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados; VIII - a facilitação da defesa de seus direitos,
inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; IX
- (Vetado); X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
131
2.4 Responsabilidade civil em face dos danos causados a terceiros
A responsabilidade civil em face dos danos causados a terceiros pelos
prestadores privados de serviços remunerados de relevância pública é objetiva pelo fato
do produto ou do serviço, com fundamento no artigo 14 do CDC.
Antônio Herman V. Benjamin explica o que significa fato do produto
ou do serviço na legislação consumerista, nos seguintes termos: 18
“Fato do produto” ou “fato do serviço” quer significar dano causado
por um produto ou por um serviço, ou seja, dano provocado (fato) por um
produto ou serviço. Encaixa-se em um sistema mais amplo de danos, regrado
pelo Código Civil; danos esses decorrentes ora de “fato próprio” (a regra
geral), ora de “fato de outrem” (arts. 932 a 934), ou, ainda, de “fato causado
por animais” (art. 936). O novo regime desta matéria quer dizer exatamente
isto: o Código Civil, em matéria de danos causados por produtos ou serviços
de consumo, é afastado, de maneira absoluta, pelo regime especial do Código
de Defesa do Consumidor. Só excepcionalmente aplica-se o Código Civil,
ainda assim quando não contrarie o sistema e a principiologia (art. 4º) do
Código de Defesa do Consumidor.
O tratamento que o Código dá a esta matéria teve por objetivo superar,
de uma vez por todas, a dicotomia clássica entre responsabilidade contratual
e responsabilidade extracontratual. Isso porque o fundamento da
responsabilidade civil do fornecedor deixa de ser a relação contratual
(responsabilidade contratual) ou o fato ilícito (responsabilidade aquiliana)
para se materializar em função da existência de um outro tipo de vínculo: a
relação jurídica de consumo, contratual ou não.
Para o CDC, a responsabilidade objetiva quer dizer que, para que haja
imputação de responsabilidade e dever de indenizar, não há necessidade de se analisar
se houve ação ou omissão culposa do fornecedor, mas somente se houve dano ao
consumidor decorrente do produto ou serviço colocado no mercado por aquele. O
consumidor, portanto, deve comprovar a ocorrência do dano, o nexo de causalidade
entre o dano e o produto ou serviço e o valor do prejuízo causado. Poderá haver
inclusive a inversão do ônus da prova pelo juiz em relação a esses elementos, nos
termos do artigo 6º, VIII, do CDC.
A defesa dos interesses e direitos dos consumidores dos serviços de
relevância pública será exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo (artigo
81 do CDC). A legitimidade processual do Ministério Público para a tutela desses
direitos decorre do artigo 129, II, da Constituição Federal (zelar pelo efetivo respeito
18
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual
de Direito do Consumidor. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.
138.
132
dos serviços de relevância pública aos direitos constitucionais) e do artigo 82, I, do
CDC.
3. O regime jurídico dos serviços públicos
3.1 Conceito de serviço público
Não há consenso doutrinário sobre o conceito de serviço público.
Existem quatro principais correntes que merecem destaque, conforme a classificação
proposta por Alexandre Santos de Aragão. 19
A concepção mais ampla equipara o serviço público a todas as
atividades exercidas pelo Estado, incluindo as funções executiva, legislativa e judiciária,
bem como as atividades de polícia administrativa e de fomento. Engloba tanto o serviço
uti universi quanto o uti singuli.
De acordo com Hely Lopes Meirelles, o serviço uti universi é
indivisível, (não há usuários determinados), prestado para atender à coletividade como
um todo e mantido por imposto (tributo geral). São exemplos polícia e calçamento. O
serviço uti singuli possui usuário determinado e sua utilização é particular e mensurável
para cada destinatário, como ocorre com telefone, água e energia elétrica. São
remunerados por taxa (tributo) ou tarifa (preço público). 20
De forma ampla, serviços públicos são as atividades prestadas pelo
Estado ao cidadão, proporcionando-lhe diretamente comodidades e utilidades,
gratuitamente ou mediante remuneração. Engloba os serviços públicos uti singuli, os
serviços sociais e os serviços uti universi.
A noção restrita de serviço público limita o conceito aos serviços uti
singuli e aos serviços públicos sociais.
Por fim, a concepção restritíssima exclui os serviços sociais e os
serviços uti universi, para considerar como serviço público apenas os serviços
remunerados por taxa ou tarifa, específicos e divisíveis, em que é possível a
identificação precisa de quem usufruiu o serviço e em que medida.21
19
ARAGÃO, Alexandre Santos de. O conceito de serviços públicos no direito constitucional
brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público
da
Bahia,
nº
17,
fevereiro/março/abril,
2009.
Disponível
na
Internet:
<http://www.direitoestado.com.br>.Acesso em: 25 mai. 2011.
20
MEIRELLES, Hely Lopes. Direto Administrativo Brasileiro. 26ª edição, São Paulo: Malheiros,
2001, p. 314.
21
É a posição defendida por Paulo Modesto e vislumbrada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
MODESTO, Paulo. Reforma do Estado, Formas de Prestação de Serviços ao Público e Parcerias Público-
133
A noção amplíssima descreve o serviço público como o próprio
Estado, o que retira a utilidade do conceito, pois não diferencia as diversas formas de
atuação estatal; a noção ampla equipara duas realidades completamente distintas – os
serviços uti singuli e uti universi – sob o mesmo conceito, o que prejudica a utilidade do
conceito.
Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua serviço público como22
toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material
destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente
pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e
presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito
Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e restrições
especiais – instituído em favor dos interesses definidos como públicos no
sistema normativo.
É a Constituição Federal de 1988 que estabelece os limites
constitucionais da prestação dos serviços públicos no Brasil. O texto constitucional
refere-se expressamente a diversas competências materiais e legislativas dos entes
federativos para a prestação de serviços públicos. É o caso, por exemplo, dos serviços
de telecomunicações, serviços e instalações de energia elétrica e serviços de
radiodifusão sonora e de sons e imagens, de competência da União (artigo 21, XI e XII,
“a” e “b”); dos serviços locais de gás canalizado, de competência dos Estados e do
Distrito Federal (artigo 25, § 2º e artigo 32, c/c artigo 25, § 2º); e dos serviços públicos
de interesse local, incluído o de transporte coletivo, de competência dos Municípios
(artigo 30, V).
O artigo 175 da Lei Maior evidencia o elemento orgânico da definição
de serviços público ao prevê-lo como incumbência estatal. O Estado deve prestar o
serviço público diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através
de licitação. Além disso, a Constituição deixa espaço para o legislador ordinário criar
novos serviços públicos, desde que respeitada a demarcação constitucional do tema, que
impõe que haja interesse público na prestação de determinada atividade no regime de
Direito Público.
Privadas: demarcando as fronteiras dos conceitos de serviço público, serviços de relevância pública e
serviços de exploração econômica para as parcerias público-privadas. Revista Eletrônica de Direito
Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, maio-ju-jul, 2005.
Disponível na Internet:<http://www.direitodoestado.com.br>.Acesso em: 20 abr. 2010; NETO, Diogo de
Figueiredo Moreira. Mutações nos Serviços Públicos. Revista Eletrônica de Direito Administrativo
Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 1, fev. 2005. Disponível na
Internet:<http://www.direitodoestado.com.br>.Acesso em: 12 de fev. 2011.
22
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 687.
134
3.2 Regime jurídico do serviço público
O serviço público é regido por princípios específicos que delineiam
seu regime jurídico. As “Leis de Rolland” indicam os três princípios dos serviços
públicos tradicionalmente desenvolvidos pela doutrina francesa: princípio da
continuidade (continuité), princípio da igualdade (égalité) e princípio da mutabilidade
(mutabilité). 23
De acordo com o princípio da continuidade, a prestação do serviço
público não deve ser interrompida. O serviço público deve ser oferecido com
regularidade à população, seja prestado diretamente pelo Estado, seja por meio das
concessionárias ou permissionárias de serviço público. O artigo 175, parágrafo único,
IV, da Constituição Federal diz que a lei disporá sobre a obrigação de manter serviço
adequado, consagrando constitucionalmente o princípio da continuidade.24 Esse
princípio, contudo, não é absoluto.
A Lei 8.987/96 permite a interrupção do serviço público em situações
de emergência ou após prévio aviso por razões de ordem técnica ou de segurança das
instalações e por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade
(artigo 6º, §3º). 25
A Lei 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve,
considera serviços ou atividades essenciais: tratamento e abastecimento de água;
produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e
hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; funerários;
transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; guarda,
uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de tráfego aéreo; e
compensação bancária.
Durante a realização de greve, os serviços indispensáveis para o
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade devem ser garantidos pelos
23
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Administração Pública, Concessões e Terceiro Setor. Rio de
Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p.180.
24
Dispõe o §1º do artigo 6º da Lei 8.987/95: “serviço adequado é o que satisfaz as condições de
regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e
modicidade das tarifas”.
25
Com base no artigo 6º, §3º, II da Lei 8.987/95, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido o corte
de serviços essenciais, como água e energia elétrica, nos casos de inadimplemento de conta regular,
relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos
antigos, questionados em juízo. AgRg no Ag 1397093 / PB, Relator Ministro Mauro Campbell Marques.
135
sindicatos, empregados e trabalhadores. Necessidades inadiáveis são aquelas que, se
não atendidas, colocarão em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da
população.26 Em todo o caso, se a iniciativa privada não observar a manutenção dos
serviços essenciais, o Poder Público assegurará a prestação dos serviços indispensáveis.
O princípio da igualdade, uniformidade ou neutralidade significa que
o serviço público deve ser prestado a todos os particulares, sem distinções. Os
beneficiários não podem ser discriminados e devem receber o mesmo tratamento legal,
quando estiverem nas mesmas condições técnico-jurídicas para a fruição do serviço
público. Os que se encontrarem em situação desigual, contudo, devem receber
tratamento jurídico próprio: as tarifas podem ser diferenciadas em função das
características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos
distintos segmentos de usuários (artigo 13 da Lei 8.987/95). Nesse sentido, por
exemplo, a lei prevê a reserva de vagas gratuitas para idosos no transporte coletivo
interestadual (artigo 40 da Lei 10.741/03).
Pelo princípio da mutabilidade ou atualidade os serviços públicos
devem se adaptar às inovações tecnológicas para que a execução do serviço mantenhase eficiente, alcançando-se melhores resultados com menores custos para a população. A
atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e
sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço (artigo 6º, §2º, da Lei
8.987/95). Para manter os serviços sempre atualizados e eficientes, a lei disporá sobre a
realização de avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços (artigo
37, §3º, I, da CF/88).
Além desses três princípios clássicos, há outros que merecem
destaque.
O princípio da modicidade reza que as tarifas sejam fixadas de forma
proporcional ao custo com o escopo de possibilitar que os cidadãos com menor
potencial aquisitivo não sejam alijados do universo de beneficiários do serviço público.
O princípio da transparência impõe a divulgação pelo Estado,
concessionárias e permissionárias das informações referentes ao serviço público. Nesse
sentido, a lei disporá sobre o acesso dos usuários a registros administrativos e a
informações sobre atos de governo (artigo 37, §3º, II, da CF/88).
O principio da participação significa que o usuário tem o direito de
participar na constituição e gestão dos serviços públicos, independentemente da efetiva
26
É o que dispõem os artigos 10 a 12 da Lei 7.783/89.
136
fruição do serviço. A Constituição Federal determina que a lei discipline as formas de
participação do usuário na administração direta e indireta (artigo 37, §3º, caput, da
Constituição Federal).
O princípio do controle submete a prestação dos serviços públicos ao
controle interno, externo e social. Daí a previsão constitucional de disciplina legal das
reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral e da representação
contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração
pública (artigo 37, §3º, I e III da CF/88).
Celso Antônio Bandeira de Mello destaca o princípio do dever
inescusável do Estado promover a prestação dos serviços públicos, diretamente ou
mediante autorização, concessão ou permissão.27 Caso haja omissão estatal, o usuário
possui direito subjetivo de compelir judicialmente o Estado a prestar o serviço público
ou, se for o caso, direito à reparação pelos danos causados pela omissão estatal.
O direito fundamental do usuário, acionável judicialmente, é o direito
ao recebimento do serviço. Além desse direito, o usuário possui também direito à
indenização se o serviço for mal prestado ou interrompido arbitrariamente sua
prestação, causando-lhe prejuízos. 28
A Lei 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão
da prestação de serviços públicos, estabelece os seguintes direitos e obrigações dos
usuários, sem prejuízo do CDC (artigo 7º): receber serviço adequado; receber do poder
concedente e das concessionárias informações para a defesa de interesses individuais
ou coletivos; obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários
prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente
(na redação dada pela Lei 9.648/98); levar ao conhecimento do poder público e da
concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço
prestado; comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela
concessionária na prestação do serviço; e contribuir para a permanência das boas
condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços. Os
usuários possuem também o direito de escolher, dentre pelo menos seis datas diferentes,
os dias de vencimento de seus débitos (artigo 7º-A, incluído pela Lei 9.791/99).
Por fim, o artigo 22 do CDC estabelece que os órgãos públicos, por si
27
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p.694.
28
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. 271-272.
137
ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e,
quanto aos essenciais, contínuos.
3.3 Posições doutrinárias sobre a aplicação do CDC aos serviços
públicos
Elaine Cardoso de Matos Novais sintetiza as quatro principais
correntes doutrinárias que analisam a aplicação do CDC aos serviços públicos. 29
A primeira corrente, defendida por Luiz Antônio Rizzatto Nunes,
sustenta que o CDC se aplica a todos os serviços públicos, direta ou indiretamente
remunerados.30 Para essa corrente, o CDC se aplica tantos aos serviços pagos
diretamente pelo consumidor – como telefonia e energia elétrica – quanto aos serviços
remunerados indiretamente pela sociedade por tributos, como saúde e educação.
Para a segunda corrente, o CDC só se aplica aos serviços nos quais há
contraprestação direta pelo serviço prestado. Assim, o CDC não se aplica aos serviços
custeados pela arrecadação de tributos em geral (tais como saúde e educação), mas
somente aos serviços específicos e divisíveis, remunerados por taxa ou tarifa. Esse é o
entendimento de Cláudia Lima Marques, Celso Antônio Bandeira de Mello e Dinorá
Grotti. 31
A cobrança de taxa pela prestação do serviço, segundo Leonardo
Roscoe Bessa, não afasta a incidência do CDC: 32
A tese defendida pela doutrina no sentido de que a cobrança de taxa – espécie
tributária – afastaria a incidência do CDC conduz a perplexidades. O
pagamento do serviço relativo ao fornecimento de água ora é considerado
preço público, ora é considerado taxa pela jurisprudência. Tais incertezas não
devem afetar a certeza de ser um serviço oferecido profissionalmente (com
habitualidade), divisível, mensurável, com remuneração específica, fatores
que realmente devem ser considerados para exame da aplicação do CDC.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, não há qualquer dúvida sobre
29
NOVAIS, Elaine Cardoso de Matos. Serviços públicos e relação de consumo: aplicabilidade do
Código de Defesa do Consumidor. Curitiba: Juruá, 2008, p. 142-151.
30
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito material
(arts. 1º a 54). São Paulo: Saraiva, 2000, p. 101.
31
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 486. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito
Administrativo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 741. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O
serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 347.
32
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual
de Direito do Consumidor. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.
30-47.
138
a aplicação do CDC aos serviços públicos, eis que a Lei 8.078/90 expressamente dispõe
nesse sentido. Contudo, o eminente administrativista entende que somente o serviço
público individualmente remunerado, independentemente se por taxa ou tarifa, será
submetido ao CDC. 33
A terceira corrente, defendida por Cláudio Bonatto e Paulo Válerio
Dal Pai Moraes, Elaine Cardoso de Mattos Novais e Rafael Carvalho Rezende Oliveira,
restringe a aplicação do CDC aos serviços públicos específicos e divisíveis remunerados
por tarifa ou preço público (casos em que é estabelecido vínculo contratual).
34
Os
serviços públicos remunerados por taxa (natureza tributária) não são tutelados pelo
CDC.
Elaine Cardoso de Mattos Novais defende que “os serviços públicos
remunerados indiretamente não configuram relação jurídica de consumo, na medida em
que a prestação desses serviços está vinculada ao Estado detentor de autoridade”. 35 O
traço diferencial para a não incidência do CDC, segundo a referida autora, é a posição
diferenciada do Estado, que não pode ser fornecedor nas relações em que se envolve
com o manto da potestade estatal.
Por fim, a quarta corrente sustenta que o CDC não se aplica aos
serviços públicos: a relação jurídica entre prestador de serviço público e usuário é
regrada pelo direito administrativo, por isso não há incidência do CDC. Para essa linha
de pensamento, defendida por Antônio Carlos Cintra do Amaral, o CDC só é aplicável à
relação jurídica de consumo travada entre duas pessoas privadas. 36
É inconteste que o CDC não excluiu o Estado do âmbito de sua
incidência. De maneira ampla, o CDC trata expressamente o Estado como fornecedor de
produtos e serviços (artigo 3º, §2º), estabelece o princípio da racionalização e melhoria
dos serviços públicos (artigo 4º, VII) e ainda prevê norma específica sobre os serviços
prestados diretamente pelo Estado ou por suas concessionárias, permissionárias ou sob
qualquer outra forma de empreendimento (artigo 22). Ora, os órgãos públicos
prestadores de serviços, expressamente mencionados no artigo 22 do CDC, obviamente
33
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 763.
34
BONATTO, Cláudio; MOARES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de
Defesa do Consumidor. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 101. OLIVEIRA, Rafael
Carvalho Rezende. Administração Pública, Concessões e Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Lumen Juris
Editora, 2009, p.215.
35
NOVAIS, Elaine Cardoso de Matos. Serviços públicos e relação de consumo: aplicabilidade do
Código de Defesa do Consumidor. Curitiba: Juruá, 2008, p. 163.
36
AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Distinção entre usuário de serviço público e consumidor.
Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 6, mai/jun/jul de 2006. Disponível em: <
http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 17 jul. 2011.
139
atuam investidos de prerrogativas públicas (potestades), decorrentes de sua própria
natureza, e nem por isso deixaram de ser considerados fornecedores pela lei.
Sem embargo, para aplicação geral da tutela do consumidor aos
serviços públicos, faz-se necessária a configuração de relação de consumo, nos termos
estabelecidos nos artigos 2º e 3º da Lei 8.078/90. Ou seja: deve haver a relação jurídica
estabelecida entre o fornecedor (Estado, concessionária ou permissionária), consumidor
e a caracterização de serviço nos termos do artigo 3º, §2º do CDC.
A caracterização de serviço, para o CDC, exige a remuneração
específica do consumidor, ou seja, a contraprestação direta pelo serviço prestado, pouco
importando se por meio do pagamento de taxa ou tarifa. Não se admite outra
interpretação lógica do artigo 3º, §2º do CDC, que expressamente exige remuneração.
Portanto, no caso dos serviços públicos prestados gratuitamente aos usuários, não se
configura relação de consumo. É sabido que tais serviços são custeados por toda a
sociedade, por meio de impostos, mas essa situação não configura forma de
remuneração indireta para configuração da relação de consumo definida no CDC.
Ocorre que, mesmo no caso dos serviços públicos gratuitos, nos quais
não se configura relação de consumo, o CDC terá aplicação parcial. A correta
interpretação quanto à aplicação do CDC aos serviços públicos depende, portanto, da
análise do artigo 22 do CDC. Por isso, nenhuma das quatro correntes ora expostas
encontra-se integralmente consentânea com o ordenamento jurídico brasileiro, como se
demonstra no tópico a seguir.
3.4 A aplicação do CDC aos serviços públicos
Cesar A. Guimarães Pereira defende que os artigos 22 e 59, §1º do
Código de Defesa do Consumidor são normas heterotópicas: normas de direito
administrativo inseridas na legislação consumerista. Segundo o referido autor, essas
normas contém disciplina específica para o serviço público em geral e independem da
parte remanescente do CDC. A aplicação do artigo 22 do CDC aos serviços públicos
prestados pelo Estado não pressupõe nem acarreta a caracterização de uma relação
consumerista, aplicando-se inclusive aos serviços prestados gratuitamente. 37
37
PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 207.
140
Por serem normas de direito público, não há necessidade de
configuração da relação de consumo prevista nos artigos 2º e 3º do CDC – que
pressupõe fornecedor, consumidor e serviço diretamente remunerado.
Contudo, o referido autor admite a possibilidade de aplicação do CDC
em relação ao serviço público, embora ressalve que essa aplicação é limitada ao
necessário respeito do regime jurídico de direito público. Assim, segundo ele, o CDC
pode ser aplicado ao serviço público enquanto não for promulgada a lei de defesa do
usuário de serviços públicos (prevista no artigo 27 da Emenda Constitucional 19/98).
Além disso, podem ser aplicadas ao serviço público as normas de direito administrativo
do CDC (artigos 22 e 59, §1º), bem como toda a disciplina processual de proteção dos
consumidores, especialmente no que se refere à tutela coletiva (artigos 81 a 104 do
CDC). 38
Observe-se que o Estado de São Paulo promulgou a Lei 10.294/99,
que dispõe sobre a proteção e defesa do usuário do serviço público do Estado de São
Paulo. Por isso, no Estado de São Paulo, não há mais que se falar na aplicação do CDC
para a defesa do usuário dos serviços públicos estaduais: aplica-se a citada lei para tal
fim.
Assiste razão a Cesar A. Guimarães Pereira ao afirmar que os artigos
22 e 59, §1º do CDC são normas de direito administrativo cuja aplicação independe da
configuração de relação de consumo. O artigo 22 do CDC é norma que disciplina a
prestação de serviços prestados pelos órgãos públicos, por si ou suas empresas, suas
concessionárias ou permissionárias, os quais são submetidos, como sabido, ao regime
jurídico de Direito Público. Não se trata, pois, de norma de direito privado elaborada
para ser aplicada às relações de consumo. Discorda-se, nesse ponto, do entendimento de
Cláudia Lima Marques (supra, IV-2.1) no sentido de que todas as normas dos artigos 1º
a 54 do CDC seriam normas de direito privado.
Com efeito, enquanto não promulgada a lei federal de proteção ao
usuário, a legislação consumerista deverá ser aplicada no âmbito dos serviços públicos
federais sempre que se configurar relação de consumo nos termos do CDC (fornecedor,
consumidor e serviço remunerado). Se houver pontos de incompatibilidade entre o
regime jurídico consumerista e o regime jurídico dos serviços públicos, prevalecerá este
último. Caso o serviço público seja prestado gratuitamente, não se configurará relação
38
PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 216-224.
141
de consumo, mas serão a ele aplicáveis os artigos 22 e as normas de proteção processual
do CDC.
A aplicação das normas processuais do CDC aos serviços públicos
decorre do parágrafo único do artigo 22 do CDC, que estabelece que “nos casos de
descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas
jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste
código” (destacou-se). Perceba-se: a forma prevista no CDC para a defesa do
consumidor em juízo está prevista nos artigos 81 a 104. O artigo 83, em especial, diz
que são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva
tutela dos direitos e interesses protegidos pelo CDC, incluindo-se nessa disposição os
direitos previstos no próprio artigo 22.
Por exemplo, os serviços sociais qualificam-se como serviços públicos
quando prestados diretamente pelo Poder Público e são regidos por normas de Direito
Público. É o caso, por exemplo, do atendimento gratuito em hospital público ou do
aluno matriculado em escola pública. Nesses casos, o serviço social é remunerado por
toda a sociedade mediante o pagamento de impostos (tributos em geral). O cidadão que
se beneficia do serviço público é qualificado com usuário. Como tal serviço público
prestado diretamente pelo Estado é gratuito, não se configura relação de consumo nos
termos do artigo 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, que exige remuneração
para configuração de serviço na relação consumerista. Todavia, aplica-se o artigo 22 do
CDC para a proteção do usuário desses serviços gratuitos, bem como as normas
processuais do CDC (artigos 81 a 104).
Como visto, os direitos dos usuários dos serviços prestados direta e
gratuitamente pelo Poder Público decorrem das obrigações estatais de fornecimento de
serviços adequados, eficientes, seguros, e, quando aos essenciais, contínuos, nos termos
do artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor. Esse artigo, repita-se, configura
norma de direito administrativo inserida na legislação consumerista e não necessita da
configuração da relação consumerista entre fornecedores e consumidores para sua
aplicação.39
39
Não obstante a robustez dos argumentos apresentados, o entendimento aqui defendido ainda não se
fez ouvir plenamente na jurisprudência. Há precedente do STJ no sentido da não aplicação do CDC em
caso de dano causado a usuário por de erro médico cometido em atendimento em hospital público:
“Portanto, no caso dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no
Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao
serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral
exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF). 4.
Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira
142
Por outro lado, os serviços públicos prestados por particulares no
regime de concessão ou permissão (remunerados por tarifa) são regidos precipuamente
por normas de Direito Público (em especial pela Lei 8.987/95), mas há incidência do
Código de Defesa do Consumidor, por determinação do artigo 7º da Lei 8.987/95, para
proteção do usuário, que nesses casos também é qualificado como consumidor. O
mesmo raciocínio é valido em relação aos serviços públicos remunerados por taxa, pois
haverá plena configuração de relação de consumo.
Além do direito ao recebimento de serviços adequados, eficientes,
seguros, e, quanto aos essenciais contínuos, o usuário consumidor dos serviços públicos
concedidos ou permitidos possui os direitos básicos dos consumidores previstos no
CDC, compatibilizados com os direitos previstos no artigo 7º da Lei no 8.987/95 e na
legislação específica de cada serviço. Ensina Maria Cristina de Oliveira que “em se
tratando de Serviços Públicos prestados mediante concessão ou permissão, é inconteste
a aplicabilidade do CDC, visto que a relação que se estabelece entre o concessionário e
o usuário do Serviço é, reconhecidamente, uma relação de consumo”. 40
O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente reconhecido a
aplicação do CDC aos serviços públicos, por exemplo, quando prestados por
concessionárias de serviços de fornecimento de esgoto, manutenção de rodovia,
fornecimento de água, telefonia móvel e telefonia celular. 41
Apresentam-se duas conclusões quanto à aplicação do CDC aos
serviços públicos.
Primeira: aplicam-se o artigo 22 e a proteção processual do CDC
(artigos 81 a 104) aos serviços públicos gratuitos.
Segunda: enquanto não promulgada a lei de proteção dos usuários
prevista no artigo 27 da Emenda Constitucional 19/98, aplicam-se todas as normas do
CDC aos serviços públicos federais remunerados, na medida em que se
compatibilizarem com o regime jurídico próprio do serviço público.
universal, o que impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica,
afastando a possibilidade da incidência das regras de competência contidas na legislação específica.”
(REsp nº 200201541999, 1ª Turma, relatora Denise Arruda).
40
OLIVEIRA, Maria Cristina de. O Código de Defesa do Consumidor e a Administração Pública.
Interesse Público, nº 22, 2003, p. 82-94.
41
Na ordem em que os exemplos aparecem no texto: REsp 1212378/SP, 2ª Turma, relator Ministro
Humberto Martins, j. 08.02.2011; AgRg no Ag 1067391/SP, 4ª Turma, relator Ministro Luis Felipe
Salomão, j. 25.05.2010; AgRg no REsp 1133507/RJ, relator Ministro Castro Meira, j. 29.04.2010; REsp
764.187/MG, 2ª Turma, relator Ministro Mauro Campbell, j. 27.10.2009; REsp 806.304/RS, 1ª Turma,
relator Ministro Luiz Fux, j. 02.12.2008.
143
3.5 Distinções entre usuário e consumidor
A Constituição Federal prevê que a lei disporá sobre os usuários de
serviço público (artigo 175, parágrafo único, II).
O artigo 37, §3º da Lei Maior, com a redação dada pela Emenda
Constitucional 19/98, estabelece que a lei disciplinará: as formas de participação do
usuário na administração direta e indireta, regulando especialmente as reclamações
relativas à prestação dos serviços público em geral, asseguradas a manutenção de
serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da
qualidade dos serviços; o acesso dos usuários a registros administrativos e informações
sobre atos de governo; e a disciplina da representação contra o exercício negligente ou
abusivo de cargo, emprego ou função na administração público. O artigo 27 da Emenda
Constitucional 19/98 estabeleceu o prazo de 120 dias para que o Congresso Nacional
promulgasse lei de defesa dos usuários de serviços públicos. Essa lei, contudo, ainda
não foi promulgada.
Há diferença substancial entre os conceitos de consumidor e usuário
utilizados pela Constituição Federal?
Celso Antônio Bandeira de Mello reconhece a diferença entre o
regime jurídico do usuário (relação de direito público) e do consumidor (relação de
direito privado), advertindo que a legislação consumerista não se aplicará quando
inadaptada ao regime do serviço público, quando incompatível com prerrogativas
indeclináveis do Poder Público ou suas eventuais repercussões sobre o prestador do
serviço.42
Marçal Justen Filho reconhece a diferença entre o regime jurídico
consumerista e o regime jurídico dos serviços públicos e defende a aplicação subsidiária
do CDC aos serviços públicos, in verbis: 43
O direito do consumidor foi concebido como instrumento de defesa
daquele que se encontra subordinado ao explorador de atividades
econômicas, organizadas empresarialmente para a produção e apropriação do
lucro. A proteção do consumidor foi desenvolvida, em termos específicos, no
âmbito do sistema do common law, que desconhece o instituto do serviço
público.
Ocorre que o serviço público é um instrumento de satisfação dos
direitos fundamentais, em que as condições unilateralmente fixadas pelo
Estado refletem o modo de satisfazer o maior número de sujeitos, com o
42
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 763.
43
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Fórum, 2011, p.703-704.
144
menor custo possível.
O regime de direito público, que se traduz em competências estatais
anômalas, é indispensável para assegurar a continuidade, a generalidade, a
adequação do serviço público. Se cada usuário pretendesse invocar o maior
benefício individual possível, por meio das regras do direito do consumidor,
os efeitos maléficos recairiam sobre outros consumidores.
Em suma, o direito do consumidor não pode ser aplicado
integralmente no âmbito do serviço público por uma espécie de solidariedade
entre os usuários, em virtude da qual nenhum deles pode exigir vantagens
especiais cuja fruição acarretaria a inviabilização de oferta do serviço público
em favor de outros sujeitos.
Aliás e não por acaso, o art. 27 da Emenda Constitucional nº 19/98
previra que seria elaborada, no prazo de 120 dias, uma lei de defesa do
usuário de serviços públicos. A regra reconhece, então, a inviabilidade de
aplicação automática e indiferenciada do Código de Defesa do Consumidor
no âmbito dos serviços públicos.
Em obra fundamental sobre o tema, Cesar A. Guimarães Pereira
estabelece as distinções entre usuários de serviço público e consumidores, em palavras
que merecem transcrição: 44
(...)
a) o usuário, ao contrário do consumidor, não é necessariamente o
destinatário final do serviço público;
b) o usuário, ao contrário do consumidor, não está necessariamente envolvido
em uma prestação onerosa do serviço público;
c) o usuário, ao contrário do consumidor, detém direitos relativos à
organização e à gestão do serviço público, delas podendo participar de modo
ativo, independentemente até da efetiva fruição do serviço;
d) a vulnerabilidade, que integra o conceito jurídico de consumidor, não é
uma característica essencial do usuário;
e) a vulnerabilidade, especialmente a técnica, está frequentemente (ou
praticamente sempre) presente nas relações de serviço público e deve ser
levada em conta na aplicação das normas de direito público, conduzindo ao
reconhecimento do dever do prestador de, sendo o principal detentor das
informações pertinentes, comprovar a regularidade de sua conduta em certos
casos;
f) a relação de serviço público, por envolver o desempenho de função
administrativa, é protegida pelo regime jurídico de direito público, que
assegura deveres-poderes ao Poder Público e, se houver, ao delegatário da
prestação do serviço (embora os poderes de autoridade estejam reservados ao
Poder Público, atribuindo-se ao prestador privado apenas prerrogativas
limitadas e compatíveis com a sua natureza);
g) o usuário não é um agente da economia de mercado porquanto o serviço
público está, por definição, fora do mercado da economia privada (art. 173 da
Constituição); o usuário está ligado a uma atividade econômica apenas em
sentido amplo, uma vez que o serviço público submete-se ao regramento
especial do art. 175 da Constituição; (...)
Para Ricardo Marcondes Martins, o usuário possui mais direitos do
que o consumidor. O Estado tem o dever de prestar o serviço público, já o fornecedor
tem o direito de explorar a atividade econômica. Segundo ele, equiparar o usuário ao
44
PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 206.
145
consumidor, do ponto de vista jurídico, “é chamar azul de amarelo”. O referido autor
sustenta que a equiparação do usuário ao consumidor atende à ideologia neoliberal, pois
submeter o serviço público ao regime da atividade econômica equivaleria a transformálos em atividade econômica, ou seja, privatizá-lo. 45
O tratamento constitucional do usuário de serviço público é realmente
diferente do dispensado ao consumidor de produtos e serviços, embora a legislação
muitas vezes utilize ambas as expressões indistintamente.
A legislação sobre a concessão de serviços públicos não trata dos
conceitos de usuário e consumidor com a devida precisão conceitual. A Lei 7.783/89,
que dispõe sobre o exercício do direito de greve, fala em usuários de serviços ou
atividades essenciais (artigo 13); a Lei 8.987/95, que dispõe sobre concessões e
permissões de serviços públicos, fala em usuários dos serviços públicos (artigo 6º),
mas, no artigo 7º-A (incluído pela Lei 9.791/99) parece equiparar os usuários aos
consumidores; por fim, a Lei 9.074/95, que estabelece normas para outorga e
prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos, fala indistintamente em
usuários (artigo 33) e consumidores (artigo 4º, § 5º, III).
O mesmo ocorre com a legislação das agências reguladoras. A Lei
9.427/96, que institui a ANEEL, usa os termos consumidores (artigo 3º, V) e usuários
(artigo 4º, §1º); a Lei 9.472/97, que institui a ANATEL, cita usuários (artigo 3º) e
consumidores (artigo 21, § 2º); a Lei 9.478/97, que institui a ANP, fala em consumidores
(artigo 1º, III e artigo 8º, I) e usuários (artigo 6º, XXII); a Lei 9.782/99, que institui a
ANVISA, corretamente, usa somente o conceito de usuários (artigo 9º, parágrafo
único); a Lei 9.961/00, que institui a ANS, fala tanto em consumidores (artigo 3º e 4º,
XXXVI) quanto em usuários (artigo 20, § 1º); a Lei 9.984/00, que institui a ANA,
corretamente, fala somente em usuários (artigo 4º, §8º); a Medida Provisória 2.2281/01, que institui a ANCINE, usa corretamente a expressão consumidor (artigo 19); a
Lei 11.182/05, que institui a ANAC, corretamente, fala em usuários (artigo 8º, XXV); a
Lei 11.445/07, que dispõe sobre saneamento básico, fala em cidadão (artigo 29, § 1º,
II), consumidores (artigo 30, VI) e usuários (artigo 38, I e 40, § 1º).
Merece destaque a Lei 10.233/01, que institui a ANTT e ANTQ, que
prezou pela correta distinção técnica entre os conceitos: usa o termo consumidores para
se referir ao destinatário final de fretes de produtos transportados (artigo 11, III) e o
conceito de usuários para ser referir ao usuário dos serviços públicos de transporte
45
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. Tese de
doutoramento apresentada à PUC – SP, p. 237 e 238.
146
(artigo 11, III, IV e VIII).
A Lei 11.079/04, que institui as parcerias público-privadas, usa a
expressão usuários ao se referir, na concessão patrocinada, aos usuários dos serviços
públicos (artigo 2º, §1º).
A principiologia dos regimes jurídicos de usuários e consumidores é
completamente diferente. Os princípios da vulnerabilidade e do equilíbrio do mercado
(supra, IV-2.3), próprios da relação de consumo, não se aplicam ao regime jurídico dos
serviços públicos. O regime jurídico de direito público pressupõe a posição privilegiada
da Administração na prestação dos serviços públicos, em razão dos princípios da
supremacia e indisponibilidade dos interesses da coletividade. Nesse sentido, mais uma
vez, colha-se a lição de Cesar A. Guimarães Pereira: 46
No âmbito do serviço público, não há vulnerabilidade fática ou jurídica a ser
reequilibrada: ou o prestador defende o legítimo interesse da coletividade e o
aparente “desequilíbrio” entre as posições é desejado, útil e valioso para o
Direito, ou não há atuação legítima do prestador e a posição do usuário é
integralmente protegida pelo direito público. Ou seja, abusos do prestador do
serviço público em face do usuário já são vedados pela definição de serviço
público, independentemente de alusão a qualquer regramento externo ao
direito público. A ideia de vulnerabilidade fática ou jurídica parte de um
pressuposto atinente ao equilíbrio da relação entre fornecedor e consumidor,
que deve ser restaurado por ser quebrado em face da desproporção de forças.
Essa necessidade de equilíbrio nesses termos é estranha ao direito público,
que opera com categorias diversas.
Não obstante a confusão legislativa no uso desses conceitos, a
situação jurídica do usuário e do consumidor é completamente diversa: o usuário tem o
direito à criação e à organização do serviço público e o Estado tem o dever de garantir
esse direito, de acordo com o princípio do dever inescusável do Estado promover a
prestação dos serviços públicos (supra IV-3.2). O consumidor, por outro lado, não tem o
mesmo direito em relação aos produtos e serviços fornecidos no mercado de consumo.
Os fornecedores exercem atividades comerciais no regime de livre iniciativa e podem
encerrar a empresa quando bem entenderem. Por fim, o serviço público deve ser
contínuo e possuir tarifas módicas, eis que possui como objetivo central a satisfação de
interesses socialmente relevantes. Já os produtos e serviços são oferecidos ao
consumidor para obtenção de lucros no mercado de consumo, de acordo com a lei
econômica da oferta e da procura.
46
PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva,
2008, p.203.
147
3.6 Responsabilidade civil em face de danos causados a terceiros
Em brevíssima síntese sobre a evolução da teoria da responsabilidade
civil do Estado, observa-se que em um primeiro momento havia completa
irresponsabilidade do Monarca absolutista e seus funcionários, os quais eram
considerados irresponsáveis civilmente, posto que vigorava o brocardo the king can do
no wrong.
A posterior distinção doutrinária quanto aos atos de império,
praticados no exercício da soberania, e atos de gestão, despidos das prerrogativas de
Direito Público, constituiu-se em notável avanço para o rompimento com a teoria da
irresponsabilidade estatal, eis que se passou a admitir a reparação quanto a esta última
categoria de atos administrativos. Contudo, o pedido de reparação era restrito ao
funcionário responsável pelo ato danoso.
Na sequência, aceitou-se a responsabilização civil do Estado pelos
atos praticados por seus agentes e pelos serviços públicos prestados. O Poder Público
respondia subjetivamente nos casos de inexistência, mau funcionamento ou
retardamento do serviço. Conhecida como teoria da culpa administrativa, essa
concepção teve o mérito de desvincular a responsabilização do Estado da identificação
do funcionário causador do ato danoso.
O estágio atual da doutrina consagra a teoria da responsabilidade
estatal objetiva, adotada no Brasil desde a Constituição de 1946, na modalidade do risco
administrativo. É inconteste que o crescimento das funções estatais na sociedade
moderna tornou o cidadão mais exposto aos riscos inerentes das atividades
administrativas. Para garantir-se justiça social, os encargos decorrentes da ação estatal
devem ser repartidos entre todos os administrados, não se permitindo que sejam
suportados unicamente pela vítima do dano causado pela administração. A solidariedade
social, portanto, é o principal fundamento dessa teoria.
Os elementos para a configuração da responsabilidade estatal objetiva
são os seguintes: ação do Estado lícita ou ilícita, dano e nexo de causalidade entre o
comportamento do Estado e o dano. A vítima não precisa fazer prova do elemento
subjetivo – dolo ou culpa – bastando que comprove a relação de causalidade entre o
evento e o dano. Contudo, o Estado poderá demonstrar em juízo as causas excludentes
de responsabilidade: culpa da vítima, culpa de terceiros ou força maior. 47
47
A teoria do risco integral, ao contrário, não admite causas excludentes da responsabilidade estatal.
HIGA, Alberto Shinji. Terceiro Setor: da responsabilidade do Estado e do agente fomentado. Belo
148
A responsabilidade civil em face dos danos causados a terceiros tanto
na prestação direta de serviços públicos pelo Estado quanto pelas pessoas jurídicas
permissionárias e concessionárias de serviços públicos é objetiva, com fundamento no
artigo 37, §6º da Constituição Federal. Não há necessidade de aplicação do artigo 14 do
CDC, que estabelece a responsabilidade objetiva pelo fato do produto e do serviço, pois
prevalece a norma constitucional.
Na prestação do serviço público há ampla proteção processual ao
usuário lesado, por meio de ações individuais ou coletivas (parágrafo único do artigo 22
do CDC e artigos 81 a 104 do CDC). O Ministério Público é legitimado para propor
ações coletivas para proteção dos direitos dos usuários lesados, nos termos do artigo
129, I, da Constituição Federal (zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos aos
direitos assegurados na Constituição) e do artigo 82, I, do CDC.
4. O regime jurídico do Terceiro Setor sob a perspectiva do
cidadão cliente
4.1 Regime jurídico do Terceiro Setor
O Terceiro Setor é o conjunto de pessoas jurídicas sem fins lucrativos,
beneficiadas pela atividade administrativa de fomento, que prestam serviços de
relevância pública (supra I-2). As associações e fundações que compõem o Terceiro
Setor não são integrantes da Administração Pública direta ou indireta. São entidades
civis submetidas precipuamente ao regime jurídico de Direito Privado.
Dentre os princípios gerais de Direito Privado, importa destacar dois
diretamente aplicáveis ao Terceiro Setor: o princípio da autonomia privada e o princípio
da personalidade coletiva. 48
Ao contrário da Administração Pública que somente pode atuar em
conformidade com o Direito, a iniciativa privada possui ampla liberdade para fazer tudo
o que a lei não proíbe. O princípio da autonomia privada é direito fundamental que
consagra a liberdade: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
Horizonte: Fórum, 2010, p. 200.
48
Além dos dois princípios citados no texto, a doutrina cita ainda os seguintes princípios gerais do
Direito Privado: personificação jurídica do homem, reconhecimento dos direitos da personalidade,
igualdade dos homes perante a lei, reconhecimento da família como instrumento fundamental,
responsabilidade civil, propriedade privada e direito sucessório. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria
Geral do Direito Civil. 4ª edição. Coimbra: Almedina, 2005. Escapa ao objeto deste estudo o exame de
todos os princípios do Direito Privado.
149
em virtude de lei (artigo 5º, II, da CF/88). A autonomia privada significa o poder
jurídico de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas próprias.
A autonomia privada, contudo, não é absoluta. Seus limites são a
ordem pública e os bons costumes. Segundo Francisco dos Santos Amaral Neto,
entende-se por ordem pública o “conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem
os interesses fundamentais da sociedade e do Estado, e as que, no Direito privado,
estabelecem as bases jurídicas fundamentais da ordem econômica” e, por bons
costumes, “o conjunto de regras morais que formam a mentalidade de um povo e que se
exprimem em princípios jurídicos como o da lealdade contratual, da proibição do
lenocínio, dos contratos matrimoniais, do jogo, etc.” 49 O Código Civil, nos artigos 421
e 422, limita a autonomia contratual pela função social, probidade e boa-fé, que são
sintetizados pelo referido autor da seguinte forma: 50
A função social destina-se a impedir o abuso no exercício do direito subjetivo
contratual, atuando como critério de interpretação jurídica e legitimando a
intervenção do Estado por meio de normas excepcionais, como, por exemplo,
as que protegem o consumidor, o inquilino, o promitente-comprador, enfim,
as que estabelecem limitações à liberdade de contratar e que, de modo vago e
generalizado, poderíamos reunir sob a denominação de "ordem pública e de
bons costumes". O princípio da probidade refere-se à honestidade no
procedimento ou à maneira criteriosa de cumprir os deveres contratuais. O
princípio da boa-fé vincula os contratantes ao dever de lealdade que está na
base do contrato.
Uma das formas de manifestação da autonomia privada é a liberdade
de associação, direito fundamental assegurado constitucionalmente (artigo 5º, XVII,
XVIII, XIX, XX e XXI).
O direito de associação possui três elementos – base contratual,
permanência (ao contrário da reunião, que é efêmera) e fim lícito. De acordo com José
Afonso da Silva, o tratamento constitucional do direito à livre associação contém quatro
direitos: o de criar a associação, que independe de autorização do Poder Público; o de
aderir à associação em funcionamento; o de desligar-se da associação; e o de dissolver
espontaneamente a associação.51 Há duas garantias coletivas relacionadas à liberdade de
associar-se: a vedação de interferência estatal no funcionamento das associações e a
possibilidade de dissolução compulsória da associação somente por decisão judicial
com trânsito em julgado. Por fim, há duas restrições à liberdade de associação: a
49
NETO, Francisco dos Santos Amaral. Autonomia privada. Disponível em: <
http://www.cjf.jus.br/revista/numero9/artigo5.htm >. Acesso em: 20 jul. 2011.
50
NETO, Francisco dos Santos Amaral. Op. cit.
51
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 265-267.
150
vedação de associação para fins ilícitos e a proibição de associação de caráter
paramilitar.
As entidades que compõem o Terceiro Setor assumem a forma legal
das associações e fundações, nos termos do Código Civil (artigos 53 a 68). São pessoas
jurídicas de direito privado cuja existência inicia-se com a inscrição do ato constitutivo
no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do
Poder Público (artigo 45 do Código Civil). O princípio da personalidade coletiva
significa o reconhecimento legal da existência das pessoas jurídicas de direito privado,
que não se confundem com as pessoas físicas de seus membros. Em outras palavras: as
pessoas jurídicas de direito privado possuem personalidade jurídica própria e
patrimônio próprio, cujos bens respondem pelo inadimplemento das obrigações
contraídas (artigo 391 do Código Civil) e pelos danos extracontratuais causados a
outrem (artigo 942 do Código Civil). São investidas de capacidade processual e podem,
em nome próprio, contrair obrigações e gozar direitos reconhecidos pelo ordenamento
jurídico.
Perceba-se: os atos constitutivos das pessoas jurídicas de direito
privado possuem natureza contratual. Por isso, desde a constituição, tais entes devem
observar a função social para a qual foram criadas (artigo 421 do Código Civil). No
caso das entidades do Terceiro Setor, a função social é muito clara: a prestação de
serviços vinculados aos direitos sociais, considerados essenciais ou prioritários para a
sociedade.
Autonomia privada e personalidade coletiva são os princípios gerais
que determinam o regime jurídico do Terceiro Setor. Contudo, o regime jurídico de
Direito Privado do Terceiro Setor sofre limitações de ordem pública relacionadas à
prestação de serviços de relevância pública, bem como derrogações parciais
decorrentes da atividade administrativa de fomento.
As limitações de ordem pública decorrem da regulamentação,
fiscalização e controle dos serviços de relevância pública pelo Poder Público.52 Como
são consideradas atividades essenciais para a sociedade – tais como saúde e educação –
52
Trata-se, em sentido amplo, de “poder de polícia”. Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que a
atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade, ajustando-as aos interesses coletivos, é
designada de “poder de polícia” em sentido amplo, e abrange atos do Legislativo e do Executivo. Em
sentido estrito, a expressão “poder de polícia” relaciona-se com as intervenções gerais e abstratas
(regulamentos) e também concretas (autorizações e licenças) do Poder Executivo, com o fim de prevenir
e obstar o desenvolvimento de atividades privadas contrárias ao interesse público. In: BANDEIRA DE
MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, p.
838-839.
151
há incidência de condicionamentos normativos que buscam assegurar isonomia,
adequação e eficiência na prestação dessas atividades.
Cite-se o exemplo da educação. O ensino é livre a iniciativa privada,
contanto que haja o cumprimento das normas gerais da educação nacional e autorização
e avaliação de qualidade pelo Poder Público (artigo 209 da CF/88). Ou seja: normas de
Direito Público restringem a plena liberdade privada de prestar serviços educacionais.
Note-se que as limitações à autonomia privada decorrentes das normas
de Direito Público não se restringem às atividades prestadas pelo Terceiro Setor. Com
efeito, as sociedades empresárias que buscam lucro, bem como as fundações e
associações não integrantes do Terceiro Setor, também devem respeito a essas normas
se explorarem serviços de relevância pública. Tanto uma OSCIP que ofereça serviços
educacionais gratuitos para a população quanto uma escola particular que cobre
mensalidades dos alunos devem respeito à Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996).
É a importância social do serviço de relevância pública, portanto, que
sujeita as pessoas jurídicas ao condicionamento público mais intenso do que o que
ocorre na comercialização de produtos e outros serviços no mercado de consumo.
A atividade administrativa de fomento se dá por meio de normas de
Direito Público que derrogam parcialmente o regime de Direito Privado do Terceiro
Setor. Com efeito, as entidades do Terceiro Setor recebem benefícios estatais não
usufruídos pela generalidade das associações e fundações, mas, por outro lado,
submetem-se a condicionamentos e restrições especiais estabelecidas em lei. A
intensidade da incidência das normas de Direito Público varia em função do meio de
fomento recebido pela entidade civil.
Em relação aos meios honoríficos de fomento, ressalte-se que a pessoa
jurídica de direito privado, no exercício de sua autonomia privada, tem a faculdade de
pleitear os títulos honoríficos de utilidade pública, organização social e organização da
sociedade civil de interesse público (supra, II). Para fazer jus à titulação requerida, no
entanto, a entidade deverá comprovar os requisitos específicos da lei correspondente ao
título pleiteado. Não há lei que obrigue a entidade civil a requerer esta ou aquela
qualificação: trata-se de ato formulado livremente.
Da mesma forma, a entidade civil possui autonomia para decidir se
deseja permanecer ostentando determinada qualificação jurídica. A entidade de utilidade
pública federal tem a faculdade de não renovar o título, deixando de apresentar a
152
documentação anual exigida (artigo 5º da Lei 91) e a OSCIP poderá pleitear sua
desqualificação (artigo 7º da Lei 9.790/99). O mesmo raciocínio é aplicável à
Organização Social, apesar da omissão da lei (supra, II-4). Cabe à entidade civil, no
âmbito de sua autonomia privada, decidir se permanece ou não ostentando determinado
título jurídico, com os ônus e bônus dele decorrentes.
Uma vez obtida a nova qualificação jurídica, a entidade civil poderá
receber benefícios estatais específicos, mas terá o regime jurídico privado parcialmente
derrogado por normas de Direito Público. Essas derrogações decorrem da legislação
específica de cada título jurídico e já foram abordadas nos capítulos antecedentes.
As OS e OSCIPs, por exemplo, devem respeito aos princípios de
direito público, em especial os da legalidade, impessoalidade e publicidade. O princípio
da legalidade, no âmbito do Direito Administrativo, significa que a atividade
administrativa é sublegal, consistente na expedição de comandos complementares ao
Direito. O princípio da legalidade maximiza a obrigação de observância pelas entidades
de direito privado, respectivamente, das Leis 9.637/98 e 9.790/99, em especial no que
respeita à transparência de seus atos e ao controle dos recursos e bens públicos
recebidos. Não quer dizer que essas entidades não possuem autonomia privada para se
autogovernar: as mencionadas leis concedem amplo espaço de liberdade para as OS e
OSCIPs perseguirem suas respectivas finalidades sociais.
A legislação prevê requisitos específicos para que a entidade civil
possa usufruir dos meios fiscais de fomento, consistentes na concessão de imunidades e
isenções tributárias. São normas de Direito Público, de natureza tributária, que devem
ser observadas pelas entidades do Terceiro Setor. Cite-se o exemplo do limite de
remuneração dos dirigentes das OS e OSCPIs – valor bruto estabelecido para a
remuneração de servidores do Poder Executivo Federal (artigo 34, parágrafo único da
Lei 10.637/02) – como condição para a isenção do Imposto de Renda (artigo 12, §2º,
“a” da Lei 9.532/97) e recebimento de doações de empresas dedutíveis do Imposto de
Renda (nos termos dos artigos 59 e 60 da Medida Provisória 2.158-35, de 24/8/2001).
Os meios reais (uso de bens públicos) e econômicos em sentido estrito
(repasse de recursos públicos) de fomento são os que implicam maiores derrogações ao
regime jurídico privado do Terceiro Setor, inclusive quanto à responsabilidade civil
(infra, IV-4.5).
No que se refere à contratação de funcionários, obras e serviços com
recursos públicos, deve haver prévio processo seletivo público e isonômico estabelecido
153
no regulamento ou estatuto da OS ou OSCIP. As entidades sem fins lucrativos
conveniadas com a Administração devem realizar cotação prévia de preços para
contratação de serviços com recursos da União (supra, III-2.2, 2.4 e 2.5).
Ademais, as entidades do Terceiro Setor estão submetidas a normas de
Direito Público no que diz com o estrito controle dos recursos e bens públicos recebidos
para o desenvolvimento da parceria. Possuem o dever de prestar contas dos recursos e
bens públicos recebidos e submetem-se ao controle interno e externo quanto a eles
(supra, III-5.2). As entidades do Terceiro Setor constituídas como fundações de direito
privado sujeitam-se ao velamento pelo Ministério Público (infra, V- 2.4).
Há ainda limitações voluntárias decorrentes de obrigações diversas
fixadas convencionalmente pelas entidades civis e pelo Poder Público nos instrumentos
de repasse – contrato de gestão, contratos de repasse, termos de parcerias e convênios –
que devem ser respeitadas pelo Terceiro Setor.
As entidades do Terceiro Setor podem figurar como fornecedoras ou
consumidoras na relação consumerista. No primeiro caso, quando fornecerem serviços
sociais remunerados, caso em que haverá relação de consumo (infra, 4.5). No segundo,
quando adquirirem produtos e serviços como destinatária final, em posição de
vulnerabilidade. É o que ocorre, por exemplo, com pequena associação de assistência
social que adquire leite em supermercados para alimentar moradores de rua.
O regime jurídico público, referente aos serviços públicos, não se
aplica aos serviços de relevância pública prestados pelo Terceiro Setor. Não há que se
falar em usuários desses serviços, pois não se trata de serviço público. Se os serviços
forem prestados gratuitamente, não há relação de consumo, não se aplicando
integralmente o CDC.
À guisa de conclusão: o regime jurídico aplicável ao Terceiro Setor é
misto, precipuamente regido pela legislação civil (com a aplicação parcial ou integral do
CDC, dependendo do caso) e derrogado parcialmente por normas de Direito Público. Os
casos em que o CDC se aplica ao Terceiro Setor são detalhados nos tópicos seguintes. 53
4.2 O cidadão cliente dos serviços prestados pelo Terceiro Setor
53
Ressalte-se, porém, que as situações completamente inconstitucionais que escapam dos limites
legítimos da atividade administrativa de fomento, como no caso da absorção de um hospital público por
uma Organização Social, devem ser analisadas caso a caso. Em muitos casos, haverá mera prestação
dissimulada de serviço público, o que deverá atrair a aplicação do regime jurídico de direito público
(concurso público, licitação, etc.).
154
Como já analisado (supra, IV-3.4), quando os serviços públicos são
prestados diretamente pelo Estado, as normas de direito público – em especial os artigos
22 e 81 a 104, todos da Lei 8.078/90, e o artigo 37, §6º, da CF/88 – protegem o cidadão.
Já quando prestados por permissionárias ou concessionárias de serviços públicos ou por
empresas privadas mediante o pagamento de contraprestação pelo cidadão, há
incidência geral do Código de Defesa do Consumidor.
Ocorre que, com utilização crescente de recursos públicos, cada vez
mais serviços sociais fundamentais para a promoção da dignidade humana (como nos
campos da saúde e da educação) vem sendo prestados pelo Terceiro Setor.
A abordagem proposta neste trabalho é ainda pouco estudada pela
doutrina. Refere-se ao estudo do regime jurídico dos serviços de relevância pública
prestados gratuitamente pelo Terceiro Setor sob a perspectiva do cidadão que deles
usufrui. Perceba-se: não se trata de serviço público, pois a atividade é prestada por
entidades privadas; não se trata, por outro lado, de relação de consumo, eis que não há,
de uma forma geral, contraprestação paga pelo cidadão (não há remuneração, não se
configurando serviço para os fins do 3º, §2º, do CDC). Não se trata, também, de aplicarse integralmente o Código Civil, uma vez que a prestação de serviços de relevância
pública pelo Terceiro Setor é submetida a intensa regulamentação, fiscalização e
controle do Poder Público, sofrendo derrogações especiais de normas de ordem pública.
Propõe-se, pois, que o cidadão que usufrui desses serviços seja
denominado cidadão cliente, nos termos do artigo 20, I da Lei 9.637/98. De acordo com
o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o conceito de cidadão cliente
traduz a noção de que a administração pública gerencial vê o cidadão como contribuinte
de impostos e como cliente dos seus serviços. Nesse contexto, os resultados da ação do
Estado são considerados bons não porque os processos administrativos estão sob
controle e são seguros, como quer a administração pública burocrática, mas porque as
necessidades do cidadão cliente estão sendo atendidas. 54
Essa denominação diferenciada se justifica para destacar que os
serviços de relevância pública prestados gratuitamente pelas entidades do Terceiro
Setor não se qualificam como serviços públicos (figura do usuário), nem como serviços
fornecidos no mercado de consumo (figura do consumidor). A expressão legal merece
54
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/PLANDI2.HTM>. Aceso em: 11
jun. 2011.
155
acolhida porque demonstra que o regime jurídico ora estudado é híbrido, pois é formado
por normas de direito público (cidadão) e de direito privado (cliente). 55
Pretende-se abordar quatro principais questões: qual é o parâmetro
legal qualitativo dos serviços de relevância pública, quais são os direitos básicos do
cidadão cliente, como se dá sua defesa processual e como é a responsabilidade civil das
entidades do Terceiro Setor. Em conjunto, o enfrentamento dessas questões revela as
características do regime jurídico peculiar de tutela do cidadão cliente.
4.3 O parâmetro legal da prestação de serviços pelo Terceiro
Setor
Ao qualificar entidades privadas sem fins lucrativos como de utilidade
pública federal, Organização Social ou Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público, o Estado reconhece atributos especiais da pessoa jurídica que presta serviços de
relevância pública. A partir dessas qualificações, são fomentadas as atividades
desempenhadas pela inciativa privada. O Estado assim o faz para estimular a própria
sociedade a resolver seus problemas, estabelecendo parcerias que estreitam as fronteiras
entre os espaços públicos e privados.
Os teóricos do PNP alegam que as novas parcerias com o Terceiro
Setor aumentariam a eficiência dos serviços prestados. De qualquer forma, o Estado
estabelece essas novas formas de relacionamento com as entidades privadas na
expectativa de que os serviços sejam por elas adequadamente prestados, ou, pelo
menos, minimamente prestados da mesma forma como desempenhados diretamente
pelo próprio Poder Público.
Vale dizer: o Estado não celebra convênio com entidade sem fins
lucrativos, contrato de gestão com OS ou termo de parceria com OSCIP,
convencionando-se que as atividades que serão desempenhadas pela iniciativa privada
sejam inferiores (em qualidade, economicidade e eficiência) aos serviços prestados
diretamente pelo próprio Estado. Ao contrário – as metas de desempenho e os
indicadores de qualidade e produtividade que devem constar desses ajustes (artigo 116,
II, da Lei 8.666/93; artigo 7º, I, da Lei 9.637/98; e artigo 10, II e V da Lei 9.790/90) –
55
Etimologicamente, a palavra “cliente” vem do Latim cliens, o que significa “protegido de um
patrono”. Durante a República romana, as pessoas (geralmente ricos empobrecidos ou estrangeiros
conquistados) se colocavam sob a proteção de outra mais poderosa. Quando esta saía à rua, o fazia
cercada por um bando de clientes, que muitas vezes estavam apenas atrás de um pouco de comida. <
http://origemdapalavra.com.br/palavras/cliente/>. Acesso em: 31 jan. 2012. Atualmente, contudo, o uso
econômico do nome cliente aproximou-o do termo consumidor, ou seja, de quem adquire produtos ou
serviços no mercado.
156
demonstram que o Estado pretende que os serviços prestados pelo Terceiro Setor sejam
satisfatórios para o cidadão cliente ou, ao menos, desempenhados da mesma forma
como faria o próprio Poder Público na execução direta dessas atividades.
Nem poderia ser diferente, pois a atividade estatal é pautada pelo
princípio da eficiência (artigo 37, CF/88). Seria um enorme retrocesso admitir-se o
contrário: fomentar-se a realização de serviços de relevância pública pelo Terceiro Setor
(sendo que tais serviços também poderiam ser prestados diretamente pelo Estado),
embora se contentando com o fornecimento de serviços piores do que os que seriam
prestados pelo próprio Poder Público.
A fixação de metas de desempenho nos ajustes celebrados revela a
pretensão estatal de alcançar plena eficiência na prestação de serviços de relevância
pública pelo Terceiro Setor. Essas metas devem ser estabelecidas proporcionalmente à
intensidade de fomento concedido e à capacidade operacional da entidade beneficiada,
sempre com o objetivo de se alcançar a excelência na prestação de serviços ao cidadão
cliente. Aliás, relembre-se que o princípio da eficiência deve constar expressamente dos
estatutos das OSCIPs (artigo 4º, I, da Lei 9.790/99).
Como sabido, o principal objetivo declarado oficialmente para o
incremento do fomento estatal é o suposto ganho de eficiência na prestação de serviços
pela iniciativa privada. Parte-se do pressuposto de que o Terceiro Setor é capaz de
prestar serviços sociais de forma mais eficiente do que os mesmos serviços prestados
diretamente pelo próprio Estado. 56
O parâmetro legal de comparação entre os serviços sociais prestados
pelo Terceiro Setor e os serviços públicos sociais estatais é o artigo 22 do CDC, norma
de direito administrativo aplicável aos serviços públicos prestados diretamente pelo
Poder Público enquanto não for promulgada legislação específica para proteção dos
usuários dos serviços públicos.
Assim, o Estado é obrigado a fornecer serviços adequados, eficientes e
seguros, e, quanto aos essenciais, contínuos. Esse é o padrão mínimo exigível dos
serviços públicos prestados diretamente pelo Estado. Além disso, outras exigências
jurídicas poderão ainda somar-se a esse patamar mínimo, decorrentes do regime
específico de cada serviço público e dos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência.
56
I-5.3.
Embora se discorde dessa visão de “glorificação da eficiência econômica do setor privado”: supra,
157
Ademais, quando o Estado presta diretamente serviços públicos na
sociedade de risco, responde objetivamente pelos danos eventualmente causados a
terceiros, nos termos do artigo 37, §6º da Constituição Federal, pela teoria do risco
administrativo (supra, IV-3.8).
O mesmo patamar mínimo exigível dos serviços sociais prestados
diretamente pelo Estado deve ser rigorosamente observado pelo Terceiro Setor. Em
outros termos: a norma de referência qualitativa dos serviços de relevância pública
prestados pelo Terceiro Setor é o artigo 22 do CDC. Logo, deve haver efetivo controle
sobre a qualidade e eficiência desses serviços, para assegurar o pleno atendimento das
expectativas do cidadão cliente e legitimar a escolha política de prestação complementar
de serviços tão relevantes pela iniciativa privada ao invés de diretamente pelo próprio
Estado, como determinado constitucionalmente.
4.4 Aplicação do artigo 22 do CDC ao Terceiro Setor
O artigo 22 do CDC é norma de direito administrativo inserida no
CDC. Essa norma aplica-se ao Terceiro Setor, derrogando parcialmente o regime de
direito privado, nos casos em que as entidades civis firmarem parcerias com o Poder
Público e receberem meios de fomento reais (uso de bens públicos) ou econômicos em
sentido estrito (recursos públicos). Veja-se a redação do citado artigo:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos
essenciais, contínuos. Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total
ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas
compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista
neste código. (grifo nosso)
O dispositivo legal não se refere expressamente a “serviços púbicos”,
como faz o CDC nos artigos 4º, VII e 6º, X. Refere-se genericamente a “serviços”,
englobando os serviços públicos prestados diretamente pelos órgãos públicos, os
serviços públicos prestados pelas empresas estatais, pelas concessionárias e pelas
permissionárias de serviços públicos, e também os serviços de relevância pública, que
estão abrangidos pela expressão legal qualquer outra forma de empreendimento. Por
qualquer outra forma de empreendimento entende-se as parcerias estabelecidas pelo
Estado com o Terceiro Setor por meio dos instrumentos jurídicos do contrato de gestão,
158
contrato de repasse, termo de parceria e convênio e do efetivo repasse de recursos ou
bens públicos.
Empreendimento significa o ato de empreender; ato de uma pessoa
que assume uma tarefa ou responsabilidade; projeto; realização. O verbo empreender
significa decidir realizar uma tarefa difícil e trabalhosa, tentar, por em execução,
realizar. 57
Não há dúvidas de que as parcerias estabelecidas com o Terceiro Setor
configuram forma de empreendimento estatal. Relembre-se que os instrumentos de
repasse possuem natureza convenial e referem-se à “realização de projeto, atividade,
serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua
cooperação”, nos termos do artigo 1º, §1º, do Decreto 6.170/07.
Nas parcerias estabelecidas entre o Estado e as OS, OSCIPS e demais
entidades privadas sem fins lucrativos, há intensa participação estatal na elaboração,
execução e controle do contrato de gestão, do termo de parceria e do convênio ou
contrato de repasse. É por isso que as legislações de regência das OS e OSCIPs falam
expressamente que a parceria ocorre para fomento e execução dessas atividades (artigo
5º da Lei 9.636/98 e 9º da Lei 9.790/99). Ora, o Estado participa da concepção da
parceria, formulando plano de trabalho e fixando metas; repassa recursos e bens
públicos; controla a execução do ajuste até o fim. Não há como negar que participa de
todas as etapas – planejamento, execução e prestação de contas – dos serviços de
relevância pública prestados pelas entidades parceiras do Terceiro Setor.
Essa relação de cooperação é uma forma de empreendimento estatal
que fica mais evidenciada nas Organizações Sociais, que pode inclusive contar com a
participação de representantes do Poder Público no conselho de administração da
entidade e até com servidores públicos cedidos. 58
Reafirme-se que o Terceiro Setor, voluntariamente, consente em
celebrar tais ajustes com o Poder Público e submeter-se, parcialmente, à incidência de
normas de Direito Público. A autonomia privada é plenamente respeitada: é livre a
decisão de se estabelecer ou não a parceria com o Poder Público.
57
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª
edição. Curitiba: Editora Positivo, 2004. HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa . Rio de Janeiro: Objetiva. Versão 1.0. 1 [CD-ROM]. 2001.
58
Observe-se, contudo, como já mencionado neste trabalho (supra, II-4 e III-2.4), que a participação
de representantes do Poder Público no Conselho de Administração e a cessão de servidores públicos é
flagrantemente inconstitucional.
159
A participação estatal na parceria não significa, de forma alguma, a
assunção da atividade de relevância pública ou seu direcionamento pelo Poder Público.
A execução do contrato de gestão, termo de parceria ou convênio é realizada
diretamente, por conta e risco da entidade civil, a qual possui personalidade jurídica e
patrimônio próprios. Dessa forma, a autonomia privada é plenamente preservada
durante a execução do ajuste, respeitando-se as decisões gerenciais da entidade civil
quanto à melhor forma de cumprimento das metas pactuadas. Como sabido, o controle
estatal direciona-se à verificação dos resultados alcançados e à correta aplicação dos
recursos e bens públicos recebidos (supra, III-5). Cabe à entidade civil, no âmbito de
sua autonomia privada, escolher os melhores meios para alcançar os resultados
convencionados.
Para a incidência do artigo 22 do CDC deve haver parceria entre o
Estado e o Terceiro Setor para o alcance de objetivos comuns, ou, em outras palavras,
para o desenvolvimento de um empreendimento comum. Ou seja: é indispensável a
celebração de contrato de gestão, termo de parceria ou convênio, e o efetivo repasse de
recursos ou bens públicos para o Terceiro Setor. Não bastam, para tal fim, os meios
honoríficos ou fiscais (renúncia fiscal) de fomento.
Assim, a simples qualificação como Organização Social ou
Organização Social de Interesse Público, ou a concessão do título de utilidade pública
federal, não configuram forma de empreendimento estatal para ensejar a aplicação do
artigo 22 do CDC ao Terceiro Setor.
Por outro lado, em todos os casos em que as entidades civis receberem
recursos ou bens públicos, o cidadão cliente possuirá o direito a receber serviços
adequados, eficientes, seguros, e, quanto aos essenciais, contínuos durante a execução
da parceria, da mesma forma como ocorreria se os serviços fossem prestados
diretamente pelo Estado.59 Esse é o padrão legal mínimo exigível dos serviços de
relevância pública prestados por tais entidades, extraível, também, dos princípios da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e eficiência, que
devem ser atendidos pelas OS e pelas OSCIPs (artigo 7º da Lei 9.637/98 e 4º, I, da Lei
9.790/99). 60
59
De acordo com o artigo 10 da Lei 7.783/89, o único serviço de relevância pública considerado
essencial que pode ser desempenhado pelas OS e OSCIPs é a assistência médica e hospitalar (inciso II).
60
Embora a Lei 9.673/90, de 15 de maio de 1998, por se anterior à Emenda Constitucional 19/98, de 5
de junho daquele ano, não se refira expressamente ao princípio da eficiência.
160
Embora o Código de Defesa do Consumidor tenha sido promulgado
quase dez anos antes das leis da OS e das OSCIPs, a expressão sob qualquer outra
forma de empreendimento, conceito jurídico indeterminado, é capaz de definir
pressupostos de fato ou áreas de interesses ou de atuação perfeitamente identificáveis no
momento de sua aplicação pelo intérprete.61 O exponencial crescimento do Terceiro
Setor, a necessária equidade que deve haver entre os usuários de serviços públicos e o
cidadão cliente de serviços de relevância pública e a criação de novas figuras
legislativas (OS e OSCIPs) para a prestação de serviços sociais fundamentais,
configuram relevantes pressupostos fáticos e jurídicos que autorizam a interpretação do
artigo 22 do CDC na forma aqui defendida.
Atualmente, portanto, o artigo 22 do CDC deve ser aplicado a todos os
casos em que as entidades do Terceiro Setor sejam parceiras do Poder Público
beneficiadas por meios de fomento reais e econômicos em sentido estrito,
instrumentalizados por contrato de gestão, temo de parceria, convênio ou contrato de
repasse. Como já demonstrado neste trabalho (supra, IV-3.4), a aplicação desse artigo
independe da configuração de relação de consumo nos termos dos artigos 2º e 3º do
CDC.
Dessa forma, garante-se a aplicação do CDC em consonância com a
realidade brasileira atual na qual se verifica que a Administração Pública incentiva cada
vez com maior frequência e volume de recursos públicos a prestação dos serviços de
relevância pública pelas entidades do Terceiro Setor.
4.5 Responsabilidade civil em face dos danos causados a terceiros
e proteção processual do cidadão cliente
A palavra responsabilidade significa “obrigação de responder pelas
ações próprias ou dos outros”.62 A teoria da responsabilidade civil é a imputação do
resultado da conduta antijurídica e resulta necessariamente na obrigação de indenizar o
dano causado, tendo como pressuposto os seguintes elementos: conduta antijurídica,
dano e nexo de causalidade. 63
61
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Democracia, Jueces y Control de la Administración. Una Nota
sobre el Interés General como Concepto Jurídico Indeterminado. Quinta edición ampliada. Civitas: 2000,
p. 217-254.
62
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa . Rio de Janeiro:
Objetiva. Versão 1.0. 1 [CD-ROM]. 2001.
63
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1997,
161
A responsabilidade subjetiva ou aquiliana pressupõe a ação dolosa ou
culposa do autor do dano. O direito brasileiro adota a concepção genérica de culpa,
abrangendo toda forma de comportamento contrário ao direito, seja intencional ou não,
porém imputável por qualquer razão ao causador do dano. 64
De seu turno, a configuração da responsabilidade objetiva independe
de culpa. Basta verificar a causalidade entre o mal sofrido e o fato causador, com base
no princípio segundo o qual toda pessoa que causa a outra um dano está sujeita à sua
reparação, sem necessidade de se cogitar do problema da imputabilidade do evento à
culpa do agente. 65
A violação de uma obrigação estabelecida contratualmente dá ensejo à
responsabilidade contratual. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas
e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente
estabelecidos, e honorários de advogado (artigo 389 do Código Civil).
Na responsabilidade extracontratual, aquele que por ato ilícito causar
dano a outrem, fica obrigado a repará-lo (artigo 927 do Código Civil). A
responsabilidade extracontratual decorre da violação de um dever jurídico decorrente
diretamente da lei – não há relação obrigacional precedente. Em regra, a
responsabilidade extracontratual é subjetiva, mas será objetiva nos casos especificados
em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar,
por sua natureza, riscos para os direitos de outrem (parágrafo único do artigo 927 do
Código Civil).
Na prestação dos serviços sociais pelo Terceiro Setor, por vezes,
ocorre a prática de atos que causam danos à esfera jurídica do cidadão e geram
responsabilidade do prestador do serviço pela reparação do mal causado. A
responsabilidade civil das entidades do Terceiro Setor, em princípio, seria subjetiva, nos
termos do artigo 927 do Código Civil: trata-se de pessoas jurídicas de direito privado
submetidas, precipuamente, ao Direito Privado. Mas há hipóteses em que a
responsabilidade será objetiva.
Existem duas correntes doutrinárias sobre a responsabilidade civil do
Terceiro Setor quanto aos danos causados a terceiros. A primeira entende que a
responsabilidade de tais entidades é objetiva com fulcro no artigo 37, §6º, da
p. 420.
64
PEREIRA, Caio Mário da Silva. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol.
I. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 419.
65
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 422.
162
Constituição Federal, e, a segunda, que é aquiliana, nos termos do artigo 927 do Código
Civil.
Cristiana Fortini defende a aplicação do artigo 37, §6º da CF/88 às
Organizações Sociais devido à regência publicística da matéria.66 Vladimir da Rocha
França entende que a responsabilidade das entidades privadas sem fins lucrativos, por
prestarem serviços públicos sociais, deve seguir o mesmo regime jurídico da
responsabilidade do Estado. 67
Para Luis Eduardo Patrone Regules a regra é da responsabilidade
subjetiva das OSCIPs por seus atos, por não se tratar de delegação de serviço público.
Para ele, a responsabilidade será objetiva quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem, nos
termos do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil.68 Essa também é a opinião de
Rafael Carvalho Rezende Oliveira. 69
O professor Sílvio Luís Ferreira da Rocha entende que não se aplica,
“nem de longe”, o artigo 37, §6º, da Constituição Federal, às Organizações Sociais,
pessoas jurídicas de direito privado que não exploram serviços públicos mediante
concessão, permissão ou autorização. 70
É certo que tais entidades são pessoas jurídicas de direito privado, não
integrantes da Administração Pública, que não prestam serviços públicos. Por isso, não
se lhes aplica o artigo 37, §6º, da Constituição. Na verdade, a responsabilidade civil das
entidades do Terceiro Setor pressupõe a correta interpretação e aplicação do artigo 22
do CDC.
Como já explicado, o Estado participa dos empreendimentos sociais
que as entidades do Terceiro Setor desenvolvem quando celebra com elas contratos de
gestão, termos de parceria, convênios ou contratos de repasse e repassa-lhes recursos ou
bens públicos. Nesses casos, aplica-se o artigo 22 do CDC, norma de direito
administrativo que independe da configuração de relação de consumo, ao Terceiro
66
FORTINI, Cristiana. Organizações sociais: natureza jurídica da responsabilidade civil das
organizações sociais em face dos danos causados a terceiros. Revista Eletrônica sobre a Reforma do
Estado.
Salvador,
nº
6,
junho/julho/agosto,
2006.
Disponível
na
Internet:
<http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 25 mai. 2011.
67
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Reflexões Sobre a Prestação de Serviços Públicos por Entidades do
Terceiro Setor. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 6, junho/julho/agosto, 2006.
Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 30 mai. 2011.
68
REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 161.
69
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Administração Pública, Concessões e Terceiro Setor. Rio de
Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p.299.
70
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 177.
163
Setor, que desenvolve atividades de relevante interesse social em parceria com o Poder
Público.
Ocorre que a aplicação do parágrafo único do citado artigo impõe a
reparação dos danos causados por tais entidades a terceiros na forma prevista no CDC.
É dizer: nesses casos a responsabilidade será objetiva pelo fato do serviço, com
fundamento no artigo 14 c/c artigo 22, parágrafo único do Código de Defesa do
Consumidor, e não com base no artigo 37, §6º da Constituição Federal. A aplicação do
artigo 22 do CDC derroga o regime privado do Terceiro Setor no que se refere à
responsabilidade civil, afastando-se a responsabilidade subjetiva prevista no artigo 927
do Código Civil. Por extensão, todas as normas processuais do CDC (artigos 81 a 104)
são aplicáveis ao Terceiro Setor para tutela do cidadão cliente.
Conclui-se: em todos os casos nos quais as entidades civis do Terceiro
Setor recebam recursos ou bens públicos para a prestação gratuita de serviços sociais, a
responsabilidade em face de terceiros prestados será objetiva pelo fato do serviço, com
fundamento nos artigo 14 c/c artigo 22, parágrafo único do Código de Defesa do
Consumidor. A defesa dos interesses e direitos dos cidadãos clientes dos serviços de
relevância pública poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo,
nos termos dos artigos 14, 22, 81 a 104, todos do CDC.
Quando não houver atividade administrativa de fomento real (bens
públicos) ou econômica em sentido estrito (recursos públicos), a responsabilidade das
entidades do Terceiro Setor por atos praticados contra terceiros será subjetiva, nos
termos do Código Civil, se os serviços forem prestados gratuitamente. Se houver
remuneração pelos serviços prestados, haverá configuração de relação de consumo e a
responsabilidade será objetiva pelo fato do serviço, aplicando-se integralmente o CDC.
Em qualquer caso, qualquer que seja a modalidade de fomento
administrativo, a legitimidade processual do Ministério Público para a tutela dos
serviços de relevância pública decorre diretamente do artigo 129, II, da Constituição
Federal (zelar pelo efetivo respeito dos serviços de relevância pública aos direitos
constitucionais), não havendo necessidade de se recorrer às normas do CDC.
Vislumbra-se, por fim, uma importante consequência prática em se
aplicar o artigo 22 do CDC aos serviços de relevância pública prestados gratuitamente
pelo Terceiro Setor: a equiparação do regime jurídico de responsabilização civil dos
164
prestadores de serviços públicos sociais e dos prestadores de serviços de relevância
pública em parceria com o Estado. 71
O quadro abaixo sintetiza as situações de responsabilidade civil das
entidades do Terceiro Setor.
Tabela 2 – Responsabilidade civil do Terceiro Setor.
Remuneração
Meios de fomento
pelo serviço
Remunerado
Indiferente
Posição
Responsabilidade
do cidadão
Civil
Consumidor
Objetiva
Base legal
Artigo 14, I,
do CDC
Gratuito
Real ou econômico em
Cidadão cliente
Objetiva
sentido estrito
Gratuito
Honorífico, fiscal ou
Artigo 22, par. único,
c/c artigo 14, CDC
Cidadão cliente
Subjetiva
Artigo 927 do CC
creditício
4.6 Aplicação integral do CDC ao Terceiro Setor
De uma forma geral, os serviços de relevância pública são oferecidos
gratuitamente ao cidadão cliente.
Os serviços de promoção da educação e da saúde prestados pelas
OSCPIs deverão, necessariamente, ser gratuitos por imposição legal (artigo 3º, III e IV,
da Lei 9.790/99). Em relação às OS e às demais finalidades legais buscadas pelas
OSCIPs, a lei não proíbe expressamente a cobrança de contraprestação do cidadão,
71
Fernando Borges Mânica refere-se à função do artigo 22 do CDC de equiparação da proteção
jurídica do cidadão usuário dos serviços públicos e do cliente consumidor dos serviços privados de saúde.
A observação do autor é procedente, mas em termos: a aplicação do CDC aos serviços públicos justificase somente enquanto não promulgada a lei dos usuários dos serviços públicos e a responsabilidade
objetiva dos prestadores de serviços públicos decorre diretamente do artigo 37, §6º, da Constituição
Federal, não do CDC. Mas em relação à aplicação das normas processuais do CDC, o autor está coberto
de razão. Seguem suas próprias palavras: “Nos casos em que o serviço é prestado de forma gratuita, o
serviço público deve submeter-se apenas ao que dispõe o artigo 22 do CDC que, em uma análise acurada,
não trata de relação de consumerista, mas de relação decorrente de lei, de índole estatutária, mesmo
porque, nos termos do parágrafo 2º do artigo 3º da lei em referência, a prestação de serviços objeto de
disciplina pelo Código do Consumidor há de ser remunerada. Nesse prisma, pode-se perceber que a
disposição constante do artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor tem como objetivo fazer com que
o cidadão usuário dos serviços públicos de saúde não fique menos protegido do que o cliente consumidor
dos serviços privados de saúde. Como assinalado neste trabalho, a garantia do direito à saúde e o
cumprimento do dever do Estado realizam-se pela oferta de serviços de saúde a todos que dele necessitam
no Brasil – como serviços públicos ou como serviços privados, gratuitamente ou mediante remuneração.
(...) Considerando que a prestação dos serviços públicos de saúde tem sido promovida em caráter gratuito,
ainda que assim não determine a Constituição Federal, não se verifica na hipótese a incidência das regras
estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor. No caso dos serviços de saúde, a proteção dos
usuários foi estabelecida por ato normativo, intitulado Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (...).
MÂNICA, Fernando Borges. O setor privado nos serviços públicos de saúde. Belo Horizonte: Fórum,
2010, p.152-153.
165
embora a gratuidade integral dos serviços oferecidos por tais entidades seja a medida
que mais se adeque aos objetivos sociais que justificam suas qualificações jurídicas
especiais.72 Afinal, os recursos públicos devem ser utilizados pelos entres privados para
o atendimento do cidadão cliente e não para beneficiar também consumidores que
possam pagar por tais serviços em outros estabelecimentos privados que operem no
mercado visando lucro.
Cite-se a Lei Complementar 1.131/2010 do Estado de São Paulo, que
possibilita o direcionamento de 25% dos leitos e demais serviços hospitalares do
Estado, sob contrato de gestão com Organizações Sociais, para o atendimento de
pacientes particulares ou de planos e seguros de saúde privados. Ou seja, no Estado de
São Paulo, as Organizações Sociais de Saúde poderão prestar atendimento médico
diretamente ou por plano de saúde, mediante o pagamento de contraprestação pelo
cidadão.
Partindo desse exemplo, é importante deixar claro que em todos os
casos em que as entidades do Terceiro Setor exigirem contraprestação do cidadão, sob
qualquer título (taxa, tarifa, preço, mensalidade, plano de saúde, etc.) pelos seus
serviços, estará plenamente configurada relação de consumo nos termos do CDC.
O STJ já se posicionou nesse sentido, como se verifica na ementa
abaixo transcrita:
Processual civil. Recurso especial. Sociedade civil sem fins lucrativos de
caráter beneficente e filantrópico. Prestação de serviços médicos,
hospitalares, odontológicos e jurídicos a seus associados. Relação de
consumo caracterizada. Possibilidade de aplicação do código de defesa do
consumidor. - Para o fim de aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
o reconhecimento de uma pessoa física ou jurídica ou de um ente
despersonalizado como fornecedor de serviços atende aos critérios
puramente objetivos, sendo irrelevantes a sua natureza jurídica, a espécie
dos serviços que prestam e até mesmo o fato de se tratar de uma sociedade
civil, sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico, bastando que
desempenhem determinada atividade no mercado de consumo mediante
remuneração. Recurso especial conhecido e provido. 73 (grifo nosso).
72
Para a professora Cristiana Fortini, como o texto constitucional elegeu a dignidade da pessoa
humana como direito fundamental, a única interpretação possível é a proibição da cobrança de
contraprestação pelas Organizações Sociais. FORTINI, Cristiana. Organizações sociais: natureza jurídica
da responsabilidade civil das organizações sociais em face dos danos causados a terceiros. Revista
Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, nº 6, junho/julho/agosto, 2006. Disponível na Internet:
<http://www.direitodoestado.com.br>.Acesso em: 25 mai. 2011.
73
STJ, Acórdão RESP 519310/ SP; Recurso Especial 2003/0058088-5. Fonte DJ Data: 24/05/2004
PG:00262. Relator Min. Nancy Andrighi (1118). Data da Decisão 20/04/2004. Órgão Julgador T3 –
Terceira Turma.
166
A ausência de finalidade lucrativa, conquanto considerada pela ordem
constitucional indispensável para o recebimento de isenções, para o estabelecimento de
preferência na prestação dos serviços de relevância pública e para a obtenção da
qualificação jurídica especial, é irrelevante para a configuração da relação de consumo
nos termos do Código de Defesa do Consumidor. Por serem atividades privadas
prestadas mediante remuneração ao destinatário final, a relação de consumo é
plenamente estabelecida. A consequência jurídica é que o cidadão será considerado
consumidor, tutelado pelo CDC, e as entidades privadas consideradas fornecedoras no
mercado de consumo.
5. Responsabilidade civil do Estado pelos danos causados pelo
Terceiro Setor
As associações e fundações civis integrantes do Terceiro Setor
possuem personalidade jurídica de direito privado reconhecida pelo ordenamento
jurídico, como decorrência do princípio da personalidade coletiva (supra, IV-4.3). Têm
patrimônio próprio que responde pelo inadimplemento das obrigações assumidas (artigo
391 do Código Civil) e pelos danos extracontratuais causados a outrem (artigo 942 do
Código Civil). Nesse sentido, o Código de Processo Civil dispõe que o devedor
responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e
futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei (artigo 591).
Assim, o estabelecimento de parcerias para o cumprimento de
objetivos comuns, a princípio, não implica a responsabilidade civil do Estado pelos
danos provocados pelo Terceiro Setor a terceiros. Quem executa o objeto da parceria é a
entidade privada, por sua conta e risco, não o Estado. O repasse de recursos e bens
públicos às entidades do Terceiro Setor não atrai a responsabilidade do Estado pelos
danos provocados a terceiros, nem mesmo subsidiária.
Explica-se: embora participe ativamente da fase de planejamento da
parceria, fixando as metas de desempenho dos convênios, contratos de gestão ou temos
de parceria, e, posteriormente, repasse recursos e bens públicos para a consecução dos
objetivos convencionados, o Estado não executa o objeto dos referidos ajustes nem
determina os meios de cumprimento do que fora estipulado. A execução do ajuste é de
inteira responsabilidade da entidade civil, no âmbito de sua autonomia privada. Cabe ao
Estado o controle dos resultados alcançados. Se a entidade civil, por exemplo, decide
adotar determinada técnica para a prestação mais eficiente do serviço e vem a causar
167
dano ao cidadão por isso, não há como se imputar o evento danoso ao Estado, eis que
este não terá decorrido de ação ou omissão estatal, mas sim de conduta direta da
entidade privada no âmbito de sua autonomia privada.
Logo, como regra geral, os danos causados pelo Terceiro Setor ao
cidadão cliente, ainda que na execução de parceria fomentada com recursos e bens
públicos, não geram responsabilidade civil do Estado. Não obstante, existem duas
exceções a essa regra que implicam a responsabilidade subsidiária do Estado. 74
A primeira decorre da omissão estatal no dever de fiscalizar a
atividade fomentada. Nesse caso, haverá responsabilidade estatal subsidiária, se
presentes os pressupostos da responsabilidade subjetiva. Aplica-se a teoria da culpa do
serviço, importando verificar se a fiscalização deixou de ser exercida ou se foi exercida
com atraso ou com falha pelo Poder Público. Se houver nexo causal entre o dano
causado e a omissão estatal, haverá responsabilidade subsidiária do Estado. 75
A segunda ocorre quando a atividade de fomento ultrapassar os limites
fixados constitucionalmente, configurando terceirização ilícita da prestação de serviços
públicos sociais. Nessa hipótese, haverá a utilização da pessoa jurídica de direito
privado apenas para fugir ilegitimamente do regime jurídico de Direito Público. A
responsabilidade do Estado, nesse caso, será objetiva em razão dos atos comissivos
praticados pela entidade civil e subjetiva pelos atos omissivos. Cite-se o exemplo
preciso formulado por Alberto Hinji Higa: 76
(...) a Administração Pública constrói hospital visando suprir a necessidade
de determinado bairro carente. Equipa-o com todos os instrumentos
necessários para o seu funcionamento e admite servidores públicos, mediante
regular concurso de provas e títulos.
Não obstante seja seu encargo constitucional a prestação desses
serviços de saúde e possua meios para tanto, decide celebrar contrato de
gestão com organização social, no qual destinará esse bem público, cederá
servidores públicos com ônus para a origem, além de destinar recursos
orçamentários.
Ora, no exemplo aventado, emerge cristalino, é verdade, com amparo
em normas legais evidentemente inconstitucionais, que não se está diante de
legítima atividade administrativa de fomento, mas sim de transferência do
dever constitucional do Estado de prestar serviço público de saúde ao
particular, mediante a “fuga do regime jurídico administrativo”, o que
justifica, então, a responsabilidade objetiva desta organização social e a do
Estado, no que toca aos atos comissivos por ela praticados e subjetiva quanto
a seus atos omissivos.
74
A princípio, não há que se falar em responsabilidade solidária do Estado. A solidariedade não se
presume, resulta da lei ou da vontade das partes (artigo 265 do Código Civil).
75
HIGA, Alberto Shinji. Terceiro Setor: da responsabilidade do Estado e do agente fomentado. Belo
Horizonte: Fórum, 2010, p. 250.
76
Op. cit. p. 253-254.
168
Sílvio Luís Ferreira da Rocha sustenta que a participação do Estado no
conselho de administração da Organização Social não acarreta responsabilidade estatal,
nem mesmo subsidiária, por atos da entidade. O referido autor concorda com a
responsabilização subsidiária estatal nos casos de negligência em fiscalizar as metas do
contrato de gestão, desde que fique comprovado que a desídia estatal, realmente,
contribuiu para que o terceiro sofresse danos. 77
A doutrina pátria, contudo, não é uníssona quanto ao posicionamento
aqui adotado.
Para Rafael Carvalho de Resende Oliveira, a responsabilidade do
Estado por danos causados pelo Terceiro Setor a terceiros é subsidiária, “sendo certo
que a ausência de cumprimento de metas pela entidade parceira não é fato suficiente
para gerar responsabilidade estatal”.
78
No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho
Filho defende a responsabilidade subsidiária do Estado, “eis que em última análise o
parceiro privado não deixa de ser um de seus agentes”.
Por fim, Luis Eduardo Patrone Regules defende a responsabilidade
solidária do Estado em face dos danos causados pelas OSCIPs a terceiros, desde que se
demonstre o nexo de causalidade entre a negligência na fiscalização do termo de
parceria e o dano causado. 79
77
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2a Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p.
185-186.
78
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Administração Pública, Concessões e Terceiro Setor. Rio de
Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p. 301.
79
REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 161.
169
Capítulo V – O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CONTROLE DO
TERCEIRO SETOR
1. O Ministério Público no Brasil. 1.1 Evolução histórica do Ministério Público. 1.2
O Ministério Público na Constituição de 1988. 1.3 Garantias e vedações dos
membros do Ministério Público. 2. As atribuições do Ministério Público e a
fiscalização do Terceiro Setor. 2.1 Fonte constitucional. 2.2 Atribuições legais. 2.3 A
fiscalização ministerial das associações integrantes do Terceiro Setor. 2.4 O
velamento das fundações. 2.5 Fundações instituídas pelo Poder Público. 3. Técnicas
extraprocessuais de tutela coletiva. 3.1 Inquérito civil. 3.2 Recomendação. 3.3
Termo de ajustamento de conduta. 4. Ação civil pública. 5. Ação de improbidade
administrativa. 6. Ação penal e crimes relacionados ao Terceiro Setor.
1. O Ministério Público no Brasil
1.1 Evolução histórica do Ministério Público
Não há consenso sobre a origem histórica do Ministério Público.
Costuma-se associar a instituição ao funcionário real do Egito Antigo conhecido como
magiaí, que desempenhava a função de reprimir infratores e proteger os cidadãos
pacíficos, bem como ao funcionário da Grécia Antiga denominado de thesmotetis ou
desmodetas, que velava pela correta aplicação das leis.1 Basicamente, ambas as funções
de acusador e de fiscal da lei são relacionadas ao Ministério Público, o que permanece
até os dias de hoje.
A doutrina reconhece, porém, que a origem mais próxima do
Ministério Público, na forma como hoje a instituição é conhecida, encontra-se na
Ordenação Francesa de Felipe IV, o Belo, de 23 de fevereiro de 1302, que estendeu aos
procuradores do Rei o mesmo juramento dos magistrados e lhes impôs a proibição de
exercício de outra função que não a de defender os interesses da Coroa. Com o passar
do tempo, os procuradores do Rei assumiram a função de acusadores oficiais, ganharam
maior autonomia e se transformaram em procuradores da sociedade. 2
No Brasil, desde as Ordenações Afonsinas de 1447 se encontram
traços da instituição. A Lei 1.030, de 1890, foi a primeira norma do país a organizar o
Ministério Público como instituição, mas a Constituição de 1891 limitou-se a consignar
que um dos membros do Supremo Tribunal Federal seria designado Procurador-Geral
da República. 3
A Constituição de 1934 inaugurou o tratamento constitucional do
1
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª edição, rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 7-8.
2
GARCIA, Emerson. Op. cit. p. 9-10.
3
Artigo 58, § 2º, da Constituição de 1981: O Presidente da República designará, dentre os membros
do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República, cujas atribuições se definirão em lei.
170
Ministério Público, inserindo-o ao lado do Tribunal de Contas e dos Conselhos
Técnicos, no capítulo intitulado “Dós órgãos de Coordenação das Atividades
Governamentais”.4 O Procurador-Geral da República era demissível ad nutum5, ou seja,
poderia ser destituído do cargo, a qualquer momento, sem possuir qualquer estabilidade.
A Carta de 1937 tratou do Ministério Público em dispositivos
esparsos, com destaque para a possibilidade de a lei cometer ao Ministério Público dos
Estados a função de representar em Juízo a Fazenda Federal. 6
O Ministério Público ganhou título próprio na Constituição de 1946,
alheio à estrutura dos Poderes da União. Na Carta de 1967, foi incluído no capítulo
referente ao Poder Judiciário, e, na Constituição de 1969, foi inserido no capítulo do
Poder Executivo.
A Constituição Federal de 1988 acolheu o Ministério Público no
capítulo das funções essenciais à Justiça, ao lado da Advocacia Pública, da Advocacia e
da Defensoria Pública, como função essencial à justiça, conferindo-lhe autonomia
administrativa e independência funcional. Diz a Constituição que o Ministério Público é
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis (artigo 127).
O constituinte de 1988 alargou os poderes ministeriais e expandiu a
conformação institucional do Ministério Público, dotando-o dos instrumentos jurídicos
indispensáveis para a prossecução dos valores mais importantes da ordem
constitucional. Desde então, o Ministério Público vem se tornando uma instituição cada
vez mais forte e independente, tendo sua credibilidade reconhecida pela sociedade.
1.2 O Ministério Público na Constituição de 1988
Houve o nascimento de um “novo” Ministério Público com a
promulgação da Constituição de 1988.
A Constituição Federal desvinculou o Ministério Público dos estreitos
laços que a instituição mantinha com o Poder Executivo, tornando-o verdadeiramente
independente. Destarte: assegurou a autonomia administrativa e financeira do parquet,
vedou a representatividade judicial e a consultoria das entidades públicas e estabeleceu
4
Artigos 95 a 98.
O que significa “a um aceno de cabeça”. Funcionários demissíveis ad nutum são os que podem ser
dispensados do serviço a qualquer momento.
6
Artigo 109, parágrafo único.
5
171
o princípio da independência funcional. Além disso, deixou de prever a destituição ad
nutum do cargo de Procurador-Geral da República, pois condicionou tal ato à
autorização da maioria absoluta do Senado Federal (artigo 128,§2º, CF/88).
Outro avanço constitucional que ensejou sensível mudança no perfil
da instituição foi a consagração da função ministerial de promover o inquérito civil e a
ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos, com a correspondente previsão dos deverespoderes de notificação e requisição de informações e documentos para instrução dos
procedimentos administrativos de competência do parquet (artigo 129, III e VI). Além
da já tradicional função acusatória criminal, a Constituição alçou o Ministério Público à
condição de principal defensor dos interesses difusos e coletivos da sociedade.
Três princípios ministeriais institucionais foram expressamente
previstos na Constituição Federal.
O princípio da unidade significa que os promotores e procuradores
integram um único órgão, sob a direção de um só chefe: o Procurador-Geral da
República como chefe do Ministério Público da União e os Procuradores-Gerais como
chefes dos respectivos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal.
O princípio da indivisibilidade permite a substituição dos integrantes
da carreira, uns pelos outros, quando se fizer necessário, como nos casos de férias,
licença e impedimentos, desde que integrantes do mesmo ramo do Ministério Público.
Por exemplo, um membro do Ministério Público Militar não pode substituir um membro
do Ministério Público estadual. Por outro lado, em uma comarca em que só atuem dois
promotores de justiça, um na tutela coletiva e o outro na área criminal, pode haver
substituição de um pelo outro durante as férias. Os atos praticados pelo membro são
sempre creditados diretamente à instituição.
Os membros do Ministério Público são agentes políticos, isto é, atuam
com “plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e
responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais”.7 Nesse
sentido, de acordo com o princípio da independência funcional, o membro do
Ministério Público pode atuar livre e fundamentadamente, vinculado somente à lei e à
sua consciência, não sendo subordinado à chefia da Instituição no que se refere ao
desempenho das atividades-fim do órgão. Além disso, os promotores e procuradores não
são responsabilizados pelos atos praticados no estrito exercício de suas funções, exceto
7
MEIRELLES, Hely Lopes. Direto Administrativo Brasileiro. 26ª edição, São Paulo: Malheiros,
2001, p. 71.
172
se procederem com dolo ou fraude (artigo 85 do Código de Processo Civil). Trata-se do
princípio mais importante do Ministério Público, porém não absoluto: deve conviver
harmonicamente com os princípios da unidade e da independência funcional.
O Ministério Público tem a natureza jurídica de instituição
constitucional, conforme lição de Emerson Garcia. O parquet ocupa posição
intermediária entre o órgão e a pessoa jurídica: não é órgão como mero plexo de
atribuições, pois está desvinculado de qualquer estrutura hierárquica no exercício de
suas atividades-fim; mas também não é pessoa jurídica por não possuir personalidade
jurídica, embora dotado de personalidade judiciária para o exercício de suas funções em
juízo. 8
1.3 Garantias e vedações dos membros do Ministério Público
As prerrogativas dos agentes políticos não são privilégios pessoais,
mas garantias necessárias ao pleno exercício das funções dos cargos ocupados. São
mecanismos jurídicos estabelecidos na Constituição e nas leis para possibilitar o
exercício isento e eficaz das relevantes funções desempenhadas por esses agentes,
blindando-os contra as naturais pressões políticas e econômicas que cercam os cargos
por eles ocupados.
Sempre com o objetivo de fortalecer a autonomia da Instituição, a
Constituição consagrou garantias aos membros do Ministério Público. São elas:
vitaliciedade, após dois anos de exercício do membro, não podendo o membro perder o
cargo senão por sentença judicial transitada em julgado; inamovibilidade, salvo por
motivo de interesse público, por decisão da maioria absoluta dos membros do órgão
colegiado competente; e irredutibilidade de subsídios (artigo 128, §5º, I).
As vedações, que comungam do objetivo de tornar a Instituição
completamente independente, são as seguintes: receber, a qualquer título e sob qualquer
pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; exercer a advocacia; participar
de sociedade comercial, na forma da lei; exercer, ainda que em disponibilidade,
qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; exercer atividade políticopartidária; e receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas
físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei (artigo
8
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª edição, rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 41-42. O autor refere-se às atribuições do Conselho Nacional do Ministério Público, cujo poder
disciplinar seria próprio de estruturas hierárquicas e subordinadas, para dizer que a Instituição possui uma
pequena semelhança com os órgãos administrativos.
173
128, §5º, II, da Constituição Federal).
A legislação proíbe o membro do Ministério Público de exercer o
comércio ou participar de sociedade comercial, exceto como cotista ou acionista (artigo
237, III, da Lei Complementar 75/93 e artigo 44, III, da Lei 8.625/93). A liberdade de
associação, contudo, é ampla para fins lícitos, nos termos dos artigos 5º, XVII, e 8º, I,
ambos da Constituição Federal. É dizer: a princípio, não há impedimento legal para que
o membro do Ministério Público se associe a uma entidade sem fins lucrativos. Não
obstante, o artigo 2º, II, do Decreto 6.170/07, veda a celebração de convênios e
contratos de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos que tenham como
dirigente membro do Ministério Público, ou respectivo cônjuge ou companheiro, bem
como parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau.
Esse conjunto de garantias e vedações credencia o Ministério Público
a exercer a fiscalização externa do Terceiro Setor. Perceba-se: o parquet é apartidário,
blindado contra pressões políticas e econômicas e detentor do instrumento jurídico mais
adequado para coletar as informações necessárias – o inquérito civil. A experiência vem
demonstrando que a fiscalização realizada pelo Poder Público parceiro do Terceiro Setor
(controle interno) por vezes é insuficiente ou meramente formal, o que realça ainda mais
a importância do controle externo a cargo do Ministério Público e dos Tribunais de
Contas (supra, III-6.1).
2. As atribuições do Ministério Público e a fiscalização do Terceiro
Setor
2.1 Fonte constitucional
A atribuição constitucional para o exercício do controle externo do
Terceiro Setor pelo Ministério Público decorre do artigo 129, II e III e do artigo 129, IX,
c/c artigo 127, que tratam, respectivamente, das funções de zelar pelo efetivo respeito
dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição e de
promover o inquérito civil e a ação civil pública para proteção do patrimônio público e
social e proteger os interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, o parquet tem
atribuição para zelar para que os serviços de relevância pública prestados pelas
entidades do Terceiro Setor respeitem os direitos previstos na Constituição, bem como
para verificar se os recursos públicos repassados às entidades do Terceiro Setor são
devidamente aplicados.
174
Serviço de relevância pública é a atividade desenvolvida pela
iniciativa privada de prestação de serviços relacionados aos direitos sociais (artigo 6º,
da Constituição), submetida a regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público.
O texto constitucional fala genericamente em respeito dos serviços de
relevância pública aos “direitos assegurados nesta Constituição” (artigo 129, II). Quais
seriam esses direitos que devem ser respeitados pelos prestadores dos serviços de
relevância pública?
A Constituição não especifica, mas certamente refere-se em especial
aos direitos e deveres individuais e coletivos previstos no artigo 5º e aos direitos sociais
previstos nos artigos 6º a 11 da Lei Maior. Alguns exemplos da jurisprudência pátria
ilustram quão amplos são os direitos que devem ser respeitados pelos serviços de
relevância pública.
O STF reconheceu a legitimidade ministerial para impugnar, em ação
civil pública, mensalidades escolares abusivas, por se tratar de tema ligado ao direito à
educação.9 O STJ reconheceu a legitimidade do Ministério Público em ação civil
pública com pedido de imediata internação hospitalar de pessoa acometida de câncer no
esôfago, com o fundamento de que o direito à saúde contém relevância pública,
definida no julgado como “expressão para a coletividade”.10 Em outro caso, o STJ
reconheceu a legitimidade do parquet para intervir em ação de dano moral por resultado
falso positivo em exame de sorologia anti-HIV ajuizada contra fundação pública, sob o
fundamento de que uma das funções ministeriais consiste justamente em zelar pelo
efetivo respeito dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na
Constituição, entre eles, os direitos da personalidade. 11
O Ministro do STF Ayres Britto reconheceu a legitimidade do parquet
para promover as medidas necessárias à efetivação do controle externo da atividade
policial e afirmou que o artigo 129, II, refere-se a todos os direitos consagrados na
Constituição: 12
(...) O Poder Judiciário tem por característica central a estática ou o não-agir
por impulso próprio (ne procedat iudex ex officio). Age por provocação das
partes, do que decorre ser próprio do Direito Positivo este ponto de
fragilidade: quem diz o que seja “de Direito” não o diz senão a partir de
9
RE 163231, Relator(a): Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 26/02/1997, DJ 29-062001 PP-00055 EMENT VOL-02037-04 PP-00737.
10
REsp 695.396/RS, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, 1ª Turma, julgado em 12/04/2011, DJe
27/04/2011.
11
REsp 708.087/PE, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em 26/08/2008, DJe 25/09/2008.
12
HC 97969, Relator(a): Min. Ayres Britto, Segunda Turma, julgado em 01/02/2011, DJe-096
DIVULG 20-05-2011 PUBLIC 23-05-2011 EMENT VOL-02527-01 PP-00046).
175
impulso externo. Não é isso o que se dá com o Ministério Público. Este age
de ofício e assim confere ao Direito um elemento de dinamismo
compensador daquele primeiro ponto jurisdicional de fragilidade. Daí os
antiqüíssimos nomes de “promotor de justiça” para designar o agente que
pugna pela realização da justiça, ao lado da “procuradoria de justiça”, órgão
congregador de promotores e procuradores de justiça. Promotoria de justiça,
promotor de justiça, ambos a pôr em evidência o caráter comissivo ou a
atuação de ofício dos órgãos ministeriais públicos. 4. Duas das competências
constitucionais do Ministério Público são particularmente expressivas dessa
índole ativa que se está a realçar. A primeira reside no inciso II do art. 129
(“II - zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo
as medidas necessárias à sua garantia”). É dizer: o Ministério Público está
autorizado pela Constituição a promover todas as medidas necessárias à
efetivação de todos os direitos assegurados pela Constituição. A segunda
competência está no inciso VII do mesmo art. 129 e traduz-se no “controle
externo da atividade policial”. Noutros termos: ambas as funções ditas
“institucionais” são as que melhor tipificam o Ministério Público enquanto
instituição que bem pode tomar a dianteira das coisas, se assim preferir. (...)
(grifo nosso).
Logo, o Ministério Público tem a função institucional de garantir que
os serviços de relevância pública prestados pelo Terceiro Setor respeitem os direitos
consagrados na Constituição Federal, detendo legitimidade para promover as medidas
administrativas e judiciais que se fizerem necessárias.
As entidades do Terceiro Setor, fomentadas pelo Poder Público,
muitas vezes recebem recursos e bens públicos, os quais devem ser utilizados em prol
da parceria estabelecida. O fomento é uma forma de estímulo estatal à prestação de
serviços de relevância pública pelas entidades privadas. Os recursos públicos repassados
ao Terceiro Setor são vinculados ao objeto do convênio, contrato de repasse, contrato de
gestão ou termo de parceria e permanecem com a natureza de dinheiro público durante a
execução do ajuste, pois continuam destinados ao fim público para o qual foram
repassados. Permanecem integrando o patrimônio público, embora sob a administração
das entidades privadas sem fins lucrativos. É incontestável a legitimidade do Ministério
Público em exercer o controle externo do Terceiro Setor, eis que a Instituição tem a
função constitucional de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a
proteção do patrimônio público e social. 13
Está assente na jurisprudência do STF e do STJ que o Ministério
13
Paulo Gustavo Guedes Fontes diferencia patrimônio público de patrimônio social nos seguintes
termos: “No caso brasileiro, as disposições constitucionais e legais são suficientemente claras no sentido
de permitir tal atuação ao Ministério Público. Saliente-se, em primeiro lugar, que o artigo 129, III, atribui
à instituição a defesa do ‘patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos’. Ora, a menção ao ‘patrimônio social’, que ainda não aparecera na legislação ordinária,
corresponde justamente ao patrimônio histórico, artístico e cultural ao qual se refere a LACP; ao
qualificativo público restaria a acepção mais restrita de patrimônio econômico e financeiro do Estado.”
FONTES, Paulo Gustavo Guedes. O controle da administração pelo Ministério Público. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006.
176
Público é parte legítima para propor ação civil pública contendo pretensão de
ressarcimento do erário por danos sofridos pela malversação de verbas destinadas ao
atendimento de necessidades da sociedade.14 O STF decidiu, por exemplo, que o
parquet tem legitimidade para propor ação civil pública com o objetivo de anular Termo
de Acordo de Regime Especial - TARE, em face da legitimação ad causam que o texto
constitucional lhe confere para defender o erário. 15
Relembre-se que nos dois votos já proferidos no julgamento da ADI
1923/DF, os Ministros do STF Ayres Britto e Luis Fux reconheceram a legitimidade
constitucional do Ministério Público de controlar a aplicação de verbas públicas
utilizadas pelas Organizações Sociais.
A legitimidade do Ministério Público para propor as demais ações
necessárias, além da ação civil pública, em face de malversação de verbas públicas
pelas entidades civis do Terceiro Setor, decorre da própria Constituição Federal, que
prevê o exercício de outras funções compatíveis com a finalidade do parquet (artigo
129, IX, c/c artigo 127, ambos da CF/88). Em tais casos há interesse público
evidenciado pela natureza da lide, o que também legitima o parquet a agir conforme
previsto no artigo 82, III, do Código de Processo Civil. Cite-se o exemplo de ação de
indenização por responsabilidade civil proposta pelo parquet contra ex-gestor de
fundação privada, em razão de má gestão e desvio de verbas que causaram enormes
prejuízos à entidade. 16
Atualmente, o Ministério Público é dotado dos instrumentos jurídicos
adequados para a efetiva fiscalização de todas as fases do estabelecimento de parcerias
entre o Poder Público e as entidades do Terceiro Setor. A Constituição Federal
consagrou alguns instrumentos jurídicos para o cumprimento das funções ministeriais,
nos planos extrajudicial e judicial.
No plano extrajudicial, a Carta de 1988 prevê o inquérito civil público
e o poder requisitório, importantes meios de investigação manejados pelo parquet
(artigo 129, II, III e VI).
No plano judicial, ao lado da tradicional promoção da ação penal,
14
STF, AI 545466 ED, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 31/05/2011, DJe117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011 EMENT VOL-02547-01 PP-00140. STJ, REsp
132.107/MG, Rel. Ministro José Delgado, 1ª Turma, julgado em 13/11/1997, DJ 16/03/1998, p. 20.
15
RE 576155, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 12/08/2010,
REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-226 DIVULG 24-11-2010 PUBLIC 25-11-2010
REPUBLICAÇÃO: DJe-020 DIVULG 31-01-2011 PUBLIC 01-02-2011 EMENT VOL-02454-05 PP01230
16
REsp 991.176/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 16/12/2010, DJe 08/04/2011.
177
legitima o parquet a promover tanto a ação civil pública para a proteção do patrimônio
público e social quanto as demais ações judiciais necessárias para a consecução da
finalidade ministerial de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os
interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 129, I, III e IX, c/c artigo 127).
O parquet, assim, tem atribuição para instaurar de ofício inquérito
civil para acompanhar e fiscalizar as parcerias estabelecidas entre o Poder Público e o
Terceiro Setor, com o objetivo de apurar fatos que acarretem danos efetivos ou
potenciais a interesses que lhe incumba defender, servindo como preparação para o
exercício das atribuições inerentes às suas funções institucionais.
Se a investigação ministerial apurar desvio de verbas públicas federais
por entidade do Terceiro Setor, sujeita à prestação de contas perante órgão federal, a
atribuição para conduzir o inquérito civil será do Ministério Público Federal. Nos
demais casos de desvio de verbas públicas, a atribuição será do Ministério Público do
respectivo Estado lesado ou do Distrito Federal. 17
Para o desempenho de suas atribuições fixadas constitucionalmente, o
Ministério Público não depende de provocação de quem quer que seja ou de
representação dos órgãos administrativos responsáveis pelo controle interno das
parcerias firmadas com as entidades do Terceiro Setor. O parquet pode – ou melhor,
deve – agir de ofício sempre que entrever a prática de qualquer ilegalidade praticada
pelo Terceiro Setor. A apuração levada a cabo pelo parquet correrá em paralelo ao
controle interno realizado pelo órgão repassador de recursos e não depende, de forma
alguma, desta (supra, III-6.1).
2.2 Atribuições legais
O direito brasileiro tradicionalmente reconhece o Ministério Público,
por sua própria natureza, como a instituição que detém atribuição para exercer o
controle externo das entidades privadas sem fins lucrativos integrantes do Terceiro
Setor.
O artigo 26 do revogado Código Civil de 1916 já estabelecia o
velamento das fundações pelo Ministério Público.
Desde a Lei 91, de 28 de agosto de 1935, há previsão legal (artigo 5º)
17
Conforme interpretação das súmulas 208 (compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito
municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal) e 209 (compete à
Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio
municipal) do STJ.
178
de representação a cargo do Ministério Público para cassação do título de utilidade
pública federal, nos casos em que as entidades civis deixarem de preencher os requisitos
legais exigidos para a obtenção e manutenção do referido título.
O Código de Processo Civil de 1939 estabelece que a sociedade civil
com personalidade jurídica, que promover atividade ilícita ou imoral, será dissolvida
por ação direta promovida pelo parquet (artigo 670 do Decreto-lei 1608/39).
Em relação ao controle do recebimento de verbas públicas pelas
entidades do Terceiro Setor, a atribuição do Ministério Público é reconhecida desde a
Lei 1.493, de 13 de dezembro de 1951, que estabelecia a atribuição do “promotor
público” de atestar o regular funcionamento das entidades privadas de caráter
assistencial ou cultural recebedoras de subvenções ordinárias. O Decreto-lei 41/66 prevê
a atribuição ministerial, por ofício ou por provocação, de requerer a dissolução da
sociedade civil de fins assistenciais que receba auxílio ou subvenção do Poder Público
ou que se mantenha, no todo ou em parte, com contribuições periódicas de populares.
A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e a Lei do Ministério
Público da União também conferem atribuição ao Ministério Público para controlar o
Terceiro Setor, prevendo a incumbência de o parquet adotar as medidas necessárias para
garantir que os serviços de relevância pública respeitem os direitos assegurados na
Constituição. 18
Comentando essa atribuição ministerial, Emerson Garcia esclarece: 19
Além das entidades que sejam reconhecidas como de utilidade
pública, das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de
interesse coletivo, tem o Ministério Público o dever de fiscalizar a atividade
de todos os entes que prestem serviços de relevância pública, ainda que não
ostentem nenhuma qualificação especial concedida pelo Poder Público ou
recebam qualquer subsídio deste. Tal dever advém do art. 27, IV, da Lei
8.625/93 (...). Esse preceito, aliás, é mero desdobramento da regra do art.
127, II, da Constituição da República (...). À guisa de ilustração, tanto estará
enquadrada nessa categoria uma associação de moradores que, de forma
contínua e sistemática, desenvolva programas sociais em prol de determinada
comunidade carente, como uma entidade privada de proteção ao crédito, pois,
em ambos os casos, é indiscutível a relevância pública do serviço prestado.
Detectada qualquer irregularidade, está o Ministério Público legitimado a
utilizar os meios necessários à sua cessação (termo de ajustamento de
conduta, ação civil pública etc.). Poderá, ainda, pleitear a própria dissolução
da associação ou da sociedade civil em sendo divisado o desvirtuamento de
seu objeto e a sua utilização para a consecução de fins ilícitos.
18
Por exemplo, é o que dispõem o artigo 2º, artigo 5º, IV e V, artigo 6º, XX, e artigo 11, todos da Lei
Complementar 75/93, e o artigo 27, IV, da Lei 8.625/93 (supra, I-3).
19
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª edição, rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 384-385.
179
A Lei 8.625/93 prevê também a atribuição do parquet de promover o
inquérito civil e a ação civil pública para a anulação ou declaração de nulidade de atos
lesivos ao patrimônio público ou à moralidade administrativa do Estado ou de
Município, de suas administrações indiretas ou fundacionais ou de entidades privadas
de que participem (artigo 25, IV, “b”). A Lei Complementar 75/93 confere legitimidade
ao Ministério Público da União para defender o patrimônio nacional, o patrimônio
público e social e o patrimônio cultural brasileiro (artigo 5º, III, “a”, “b” e “c”) e para
promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico (artigo 6º, VII, “b”).
O Ministério Público tem ainda atribuição legal para: zelar pelos
direitos de assistência social (artigo 31 da Lei 8.742/93), fiscalizar a escolha dos nove
representantes da sociedade civil que compõem o Conselho Nacional de Assistência
Social (CNAS) e apurar irregularidades em entidades do Terceiro Setor certificadas
como entidades beneficentes de assistência social (Lei 12.101/2009, artigo 27).
Por fim, a Lei 9.637/99 impõe aos responsáveis pela fiscalização da
execução do contrato de gestão o dever de comunicação ao TCU de qualquer
irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública por
Organização Social (artigo 9º). No mesmo sentido, a Lei 9.790/99 (artigo 14) impõe aos
responsáveis pela fiscalização dos termos de parceria a obrigação de comunicação,
nesses mesmos termos, ao TCU e ao Ministério Público. Em ambos os casos, a omissão
de comunicação aos órgãos de controle externo acarretam a responsabilidade solidária
do responsável pelo sistema de controle interno.
Mais uma vez, colha-se a lição de Emerson Garcia: 20
Em que pese o fato de a Lei 9.637/98, que trata das organizações sociais, não
ter previsto de forma expressa a iniciativa do Ministério Público no processo
de desqualificação, a Instituição tem o dever de fiscalizar a atividade dessas
entidades sob uma dupla vertente: a) a aferição da correta utilização dos bens,
serviços e rendas oriundos do Poder Público nas atividades a serem
executadas por essas entidades, o que possibilitará a preservação do
patrimônio público e o exato cumprimento das regras e princípios regentes da
atividade estatal; e b) a efetividade do princípio da eficiência, assegurando a
qualidade dos serviços prestados e a consecução dos direitos fundamentais da
população, não raras vezes condicionados à correta prestação dos referidos
serviços.
Vale lembrar que o servidor público tem o dever de provocar a
20
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª edição, rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 384.
180
iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que
constituam objeto de ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção (artigo 6º da
Lei 7.347/85). Ademais, se o fato constituir crime definido na lei de licitações, os
titulares dos órgãos integrantes do sistema de controle interno deverão comunicá-lo ao
Ministério Público, nos termos do artigo 102 da Lei 8.666/93.
O artigo 66, I, do Decreto-lei 3.688/41, tipifica como contravenção
penal, punível com multa, “deixar de comunicar à autoridade competente crime de ação
pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação
penal não dependa de representação”.
A análise textual dos dispositivos constitucionais e legais que preveem
o controle do Terceiro Setor pelo Ministério Público demonstra a coexistência entre o
sistema de controle interno, de responsabilidade dos órgãos repassadores de recursos
públicos que celebram os convênios, contratos de repasse, contratos de gestão e termos
de parceria, e o sistema de controle externo atribuído ao Ministério Público e ao TCU
(supra, III-6.1).
É importantíssimo que haja célere intercâmbio de informações entre
os sistemas de controle interno e externo para assegurar que os fatos configuradores de
crimes e atos de improbidade administrativa sejam apurados em tempo hábil e os
responsáveis sejam efetivamente punidos.
2.3 A fiscalização ministerial das associações integrantes do
Terceiro Setor
A maneira como se dá o controle ministerial das entidades do Terceiro
Setor varia em função da forma jurídica adotada pela entidade civil sem fins lucrativos,
se fundação ou associação.
No caso das fundações civis, o parquet desempenha a função
institucional de velamento, que lhe impõe amplos deveres-poderes para acompanhar as
atividades da entidade, desde a sua criação (infra, V-2.4).
Por outro lado, a fiscalização ministerial das associações não tem essa
mesma amplitude, voltando-se para os recursos e bens públicos recebidos pelas
entidades do Terceiro Setor e à qualidade dos serviços de relevância pública por elas
prestados.
As associações civis atuam no amplo espaço de liberdade consagrado
pelo princípio da autonomia privada, devendo respeito a apenas duas limitações
181
constitucionais expressas: finalidade lícita e vedação de caráter paramilitar (artigo 5º,
XVII, CF/88).
De acordo com o Código Civil, as associações são pessoas jurídicas de
direito privado que se constituem pela união de pessoas que se organizam para fins não
econômicos (artigo 53, CC). Na associação predomina o elemento pessoal, eis que as
pessoas que se reúnem têm objetivos comuns, sem finalidade lucrativa, podendo
inclusive não possuir patrimônio, sendo irrelevante que tenham ou não finalidade social.
Conceituam-se como universitas personarum, ou seja, conjunto de pessoas voltado a
um objetivo comum. As associações possuem ampla liberdade para alterarem seus
estatutos, para adquirirem e alienarem bens e para declararem-se extintas. São
instituídas livremente mediante a deliberação de um grupo de pessoas, não sendo
necessária a observação da forma pública. 21
Perceba-se: a Constituição proíbe a interferência estatal no
funcionamento das associações (artigo 5º, XVIII). Dessa forma, o parquet não participa
da elaboração dos estatutos das associações, não exerce sistemática e contínua
fiscalização sobre suas atividades e nem atua na gestão e extinção dessas entidades.
As associações civis que integram o Terceiro Setor, contudo,
desenvolvem serviços de relevância pública e recebem recursos e bens públicos, o que
atrai a atribuição constitucional fiscalizatória do Ministério Público. São exemplos de
associações fiscalizadas pelo parquet: as que prestam assistência a crianças e
adolescentes, idosos e deficientes físicos; as que prestam serviços de saúde e educação;
as que recebem recursos públicos por qualquer forma de ajuste; as qualificadas como
OS e OSCIPs. Por outro lado, não haverá interesse ministerial em fiscalizar associações
que não recebam recursos públicos nem desenvolvam atividades sociais relevantes, tais
como uma pequena associação desportiva ou uma entidade de benefício mútuo restrita a
limitado número de sócios.
No âmbito extrajudicial, o Ministério Público pode instaurar inquérito
civil para acompanhar os serviços de relevância pública prestados pelas associações
integrantes do Terceiro Setor, bem como exercer a fiscalização contábil, financeira e
finalística dessas entidades, com o objetivo de zelar pela regularidade da aplicação dos
recursos públicos recebidos e pela qualidade das atividades sociais desenvolvidas.
Destaca-se a atribuição ministerial de emitir atestado de regular
funcionamento da associação de interesse social, mediante requerimento da
21
GRAZZIOLI, Airton; RAFAEL, Edson José. Considerações gerais sobre associação e fundação.
Disponível em: <http://www.apf.org.br>. Acesso em: 28 jul. 2011.
182
interessada.22 Ressalte-se que as entidades privadas sem fins lucrativos dependem do
atestado de regular funcionamento emitido por três autoridades locais para receberem
recursos públicos, nos termos do artigo 34, VII, da Lei 12.465/11. É extremamente
conveniente que o parquet realize inspeções in loco para verificar se as finalidades
estatutárias da entidade estão sendo desempenhadas satisfatoriamente.
Na maioria das vezes, o Ministério Público instaura inquérito civil
para apurar o repasse de dinheiro público ao Terceiro Setor a partir de notícias de
ilegalidades já praticadas, exercendo o controle a posteriori. Entretanto, é extremamente
eficaz a atuação de ofício do parquet no exercício do controle preventivo das parcerias
estabelecidas entre o Terceiro Setor e o Poder Público, acompanhando todas as etapas
da celebração e execução dos convênios, contratos de repasse, contratos de gestão e
termos de parceria firmados com as entidades sem fins lucrativos.
Quando for o caso, o parquet poderá tomar compromisso de
ajustamento de conduta com a finalidade de aprimorar a prestação de serviços de
relevância pública pelas entidades do Terceiro Setor ou ajuizar as medidas judiciais
cabíveis.
Dentre as ações judiciais de iniciativa do parquet, destacam-se a ação
de dissolução de associação, a ação de responsabilidade civil e a ação de destituição de
dirigentes, que possuem fundamento legal no Decreto-Lei 41, de 18 de novembro de
1966.23 Essas ações podem ser propostas contra associações que possuam fins
assistenciais lato sensu e recebam subvenção do Poder Público ou que se mantenham,
no todo ou em parte, com contribuições periódicas de populares.
Segundo José Eduardo Sabo Paes, assistência social stricto sensu é
“assistência imediata a quem dela necessite”, ao passo que a assistência social lato
sensu é mais ampla, garantidora de direitos, que extrapola o título da Ordem Social e
refere-se também à saúde, previdência, educação, cultura, desporto, família e
adolescente, idoso, política urbana, política agrícola e fundiária e reforma agrária. 24
22
Conforme “Cartilha sobre a atuação da Promotoria de Justiça de Fundações”, elaborada pelo
Ministério Público do Estado da Bahia, o requerimento de atestado de regular funcionamento deve ser
instruído com os seguintes documentos: requerimento do representante legal da entidade interessada;
apresentação da documentação exigida na prestação de contas; e ata da última eleição da diretoria.
Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br>. Acesso em: 28 jul. 2011.
23
O Decreto-Lei 41/66 dispõe sobre a dissolução das “sociedades civis de fins assistenciais”, então
tratadas no artigo 16, I, do Código Civil de 1916, as quais correspondem atualmente às associações que
perseguem finalidades assistenciais lato sensu. Atualmente, as associações estão normatizadas nos artigos
53 e seguintes do Código Civil de 2002 e podem ou não ter finalidade assistencial.
24
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos,
administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 561562.
183
As hipóteses legais que permitem a dissolução judicial das
associações são as seguintes: deixar de desempenhar as atividades assistenciais previstas
no estatuto; aplicar as importâncias representadas pelos auxílios, subvenções ou
contribuições populares em fins diversos dos previstos nos seus atos constitutivos ou
nos estatutos sociais; e ficar sem efetiva administração, por abandono ou omissão
continuada dos seus órgãos diretores (artigo 2º do Decreto-Lei 41/66).
O Ministério Público pode valer-se também da ação civil pública para
responsabilizar as associações do Terceiro Setor por danos morais e materiais causados
a qualquer outro interesse difuso o coletivo, nos termos da Lei 7.347/85 (infra, V-4).
2.4 O velamento das fundações
Assim como ocorre em relação às associações, o Ministério Público
possui atribuição legal para o exercício do controle externo da prestação de serviços de
relevância pública e da aplicação de recursos e bens públicos pelas fundações
integrantes do Terceiro Setor. Porém, a atuação do parquet vai muito além: cabe ao
Ministério Público velar pelas fundações.
A atribuição ministerial de velar pelas fundações é estabelecida no
artigo 66 do Código Civil. Velar significa permanecer de vigia, de guarda, de sentinela,
dispensar cuidados, zelar, proteger.25 Trata-se do acompanhamento sistemático e
contínuo da fundação pelo parquet, desde os atos preparatórios do nascimento da
entidade até sua eventual extinção.
Conforme lição de José Eduardo Sabo Paes, quatro são os motivos que
justificam o velamento das fundações pelo Ministério Público: o patrimônio da
fundação pertence à sociedade ou à parcela desta; as fundações complementam e
substituem as atividades governamentais prestando serviços de interesse público; as
entidades fundacionais devem apresentar uma estrutura organizacional delineada; e, por
fim, o fato delas receberem benefícios e isenções tributárias.26
Ressalte-se que o Ministério Público não vela as entidades fechadas de
previdência social constituídas sob a forma de fundações, por disposição expressa do
artigo 72 da Lei Complementar 109/01.27 O STJ tem reiteradamente decidido que não é
25
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa . Rio de Janeiro:
Objetiva. Versão 1.0. 1 [CD-ROM]. 2001.
26
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos,
administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 573.
27
Eis a redação do referido artigo: “Compete privativamente ao órgão regulador e fiscalizador das
entidades fechadas zelar pelas sociedades civis e fundações, como definido no art. 31 desta Lei
184
necessária a intervenção do Ministério Público em todos os processos judiciais nos
quais fundações fechadas de previdência privada figurem como parte.28 Contudo,
sempre que ficar evidenciado no processo o interesse público decorrente da natureza da
lide ou da qualidade da parte, o Ministério Público deve ser intimado a intervir, sob
pena de nulidade processual (artigo 82, III, do CPC). O parquet também possui
legitimidade para ajuizar as medidas necessárias e intervir em todos os casos em que os
direitos tutelados em juízo possuírem repercussão social.
De acordo com o Código Civil, as fundações são pessoas jurídicas de
direito privado que se constituem pela personificação de um patrimônio a que se atribui
uma destinação de interesse público. Na fundação predomina o elemento material: a
personificação de um patrimônio. Conceituam-se como universitas bonorum, ou seja,
conjunto de bens vinculado a uma finalidade religiosa, moral, cultural ou de assistência
social lato sensu.29 Ao contrário das associações, as fundações sempre terão uma
finalidade social e só podem ser instituídas mediante escritura pública ou testamento.
Denomina-se instituidor a pessoa física ou jurídica que destina bens
livres e especifica a finalidade da fundação. A declaração de vontade do instituidor deve
ser respeitada pelas pessoas encarregadas de administrarem a fundação, que não são
sócias do patrimônio nem detém o poder de modificar os objetivos delineados
inicialmente.
Na fase de constituição, o Ministério Público deverá verificar se os
bens destinados são suficientes ao fim a que a fundação se destina (artigo 1200 do
CPC), em especial se bastam para que a entidade comece a existir, podendo adotar em
cada caso a solução que reputar mais conveniente e oportuna (artigo 1109 do CPC).
A previsão no estatuto da denominada cláusula de reversão, isto é, a
possibilidade de retorno ao patrimônio do instituidor dos bens constantes da dotação em
caso de extinção da fundação (artigo 547 do Código Civil), não deve ser aceita pelo
parquet, por pelo menos duas razões.30 Uma, de ordem moral: se os bens da fundação
retornarem para o instituidor, este poderá se enriquecer ilicitamente, pois eventual
Complementar, não se aplicando a estas o disposto nos arts. 26 e 30 do Código Civil e 1.200 a 1.204 do
Código de Processo Civil e demais disposições em contrário.” Os artigos citados da lei civil referem-se ao
Código Civil de 1916.
28
REsp 262.673/MG, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, 4ª Turma, julgado em 09/03/2004, DJ
29/03/2004, p. 244. REsp 621.406/DF, Rel. Ministro Castro Filho, 3ª Turma, julgado em 25/05/2004, DJ
07/06/2004, p. 227
29
GRAZZIOLI, Airton; RAFAEL, Edson José. Considerações gerais sobre associação e fundação.
Disponível em: <http://www.apf.org.br>. Acesso em: 28 jul. 2011.
30
Informações da “Cartilha sobre a atuação da Promotoria de Justiça de Fundações”, elaborada pelo
Ministério Público do Estado da Bahia. Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br>. Acesso em: 28 de
julho de 2011.
185
resultado positivo da entidade terá sido fruto de subvenções públicas, imunidades e
isenções fiscais e doações de particulares e, por outro lado, em caso de prejuízo não será
o instituidor quem responderá com seu patrimônio. É dizer: seria um investimento com
benefícios diferenciados e socialização de eventuais prejuízos, o que é, evidentemente,
imoral. A outra razão, de ordem jurídica, é a seguinte: a cláusula de reversão coloca os
bens da fundação na condição de propriedade limitada, resolúvel, que só se tornará
plena se o ente fundacional sobreviver ao instituidor e aos herdeiros deste. A lei,
contudo, exige a dotação especial de bens livres, o que exige propriedade plena já na
instituição da fundação (artigo 62 do Código Civil). Por essas duas razões, a cláusula de
reversão é nula de pleno direito.
As finalidades das fundações devem ser religiosas, morais, culturais
ou de assistência lato sensu e não poderão ser objeto de alteração posterior do estatuto
da entidade (artigo 67, II, do Código Civil). A forma de instituição – escritura ou
testamento – é prescrita em lei e sua inobservância gera nulidade do negócio jurídico
(artigo 166, IV, do Código Civil).
O próprio Ministério Público deverá elaborar o estatuto da fundação e
submetê-lo à aprovação do juiz, quando o instituidor não o fizer nem nomear quem o
faça, ou quando a pessoa encarregada não cumprir o encargo no prazo assinado pelo
instituidor, ou, não havendo prazo, dentro de seis meses (artigo 1202 do CPC).
Após a emissão de parecer ministerial aprovando a constituição da
fundação, a escritura pública será registrada no cartório competente, iniciando-se a
existência legal da pessoa jurídica (artigo 45 do Código Civil).31 Se o Ministério
Público não aprovar o estatuto, o interessado poderá requerer ao juiz o suprimento da
aprovação (artigo 1201, §1º, do CPC).
O parquet também aprecia a pertinência de modificações posteriores
do estatuto das fundações, indica as alterações que entender necessárias e aprova as
modificações requeridas.32 Da mesma forma, a alienação ou aquisição de bens de
31
Cf. “Cartilha sobre a atuação da Promotoria de Justiça de Fundações”, elaborada pelo Ministério
Público do Estado da Bahia, devem ser encaminhados ao Ministério Público os seguintes documentos
para a instituição de fundação: requerimento do instituidor ou de alguém por ele expressamente
autorizado; minutas da escritura pública, da ata de constituição e do estatuto (inter vivos); cópia do
testamento e do estatuto elaborado pelo testamenteiro, se for o caso; o nome e a individualização dos
instituidores e dos diretores (art. 46, II, do CC). Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br>. Acesso em:
28 jul. 2011.
32
Nos termos da “Cartilha sobre a atuação da Promotoria de Justiça de Fundações”, elaborada pelo
Ministério Público do Estado da Bahia, devem ser encaminhados ao Ministério Público os seguintes
documentos instruindo o requerimento de modificação do estatuto da fundação: requerimento do
representante legal da fundação (na hipótese de as alterações não haverem sido aprovadas por
unanimidade, deve o representante legal requerer seja notificada a minoria vencida, para os fins do art. 68
186
significativo valor e as atas das reuniões dos órgãos de direção das fundações devem ser
submetidas previamente à análise e aprovação do Ministério Público.33 Em alguns
casos, será preciso a realização de diligências prévias como a juntada de documentos ou
a retificação de alguma deliberação registrada em ata que estiver em desacordo com o
estatuto da fundação. De qualquer forma, se o parquet não aprovar os pedidos
formulados, o interessado poderá requerer judicialmente o suprimento judicial, nos
termos do artigo 1201 do Código de Processo Civil.
O velamento recomenda a realização de inspeções periódicas e
programadas da fundação pelo presentante do Ministério Público, preferencialmente
acompanhado de especialistas nas áreas de contabilidade, assistência social, saúde e
outras adequadas à finalidade estatutária da entidade.
Quando solicitado, o parquet emite atestado de regular funcionamento
das fundações, geralmente para atender a exigência de órgãos públicos na celebração de
convênios e recebimento de recursos públicos, nos termos do artigo 34, VII, da Lei
12.465/11.
A fiscalização sobre a aplicação e utilização de bens e recursos
públicos e privados destinados às fundações se dá, principalmente, pela análise da
prestação de contas da entidade, que deve ser apresentada ao parquet anualmente,
independentemente de notificação.34 Se a prestação de contas não for apresentada, o
do Código Civil; a falta deste requerimento acarretará o indeferimento imediato do pedido); ata da
reunião que aprovou as alterações, contendo a relação dos dispositivos modificados; ata da reunião em
que foram eleitos os atuais integrantes dos órgãos administrativos; cópia do estatuto em vigor; cópia do
estatuto com as alterações pretendidas. Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br>. Acesso em: 28 jul.
2011.
33
Os documentos necessários para a apreciação ministerial das atas de reunião das fundações são os
seguintes: requerimento do representante legal da fundação, ata da reunião e estatuto da fundação.
Informações da “Cartilha sobre a atuação da Promotoria de Justiça de Fundações”, elaborada pelo
Ministério Público do Estado da Bahia. Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br>. Acesso em: 28 jul.
2011.
34
A prestação de contas da fundação deve conter, ao menos, os seguintes documentos: relatório das
atividades, que deve ser bem detalhado, com a exposição sucinta das principais atividades desenvolvidas
e a avaliação do desempenho da entidade; demonstrações contábeis (balanço patrimonial, demonstração
do resultado do exercício e demonstração das origens e aplicações de recursos) firmadas por contabilista
registrado pelo representante legal da entidade, que devem seguir rigorosamente as Normas Brasileiras de
Contabilidade, especialmente a NBCT 10; cópia autenticada do parecer do Conselho Fiscal e da decisão
do órgão administrativo encarregado do julgamento das contas, conforme o Estatuto; certidão negativa
dos órgãos envolvidos, na hipótese de a Fundação haver recebido recursos públicos e/ou firmado
convênio com entidades públicas; caso a Fundação atue em outro município, certidão do Promotor de
Justiça da Comarca sobre a regularidade de suas atividades; cópia autenticada da Relação Anual de
Informações Sociais - RAIS e do recibo de entrega; cópia autenticada da declaração de isenção do
imposto de renda pessoa jurídica e do recibo de entrega; cópias autenticadas das atas das reuniões do
Conselho Curador, ou órgão equivalente, se ainda não foram levadas ao Cartório para averbação;
certidões negativas do INSS, FGTS e Tributos Federais. Dados cadastrais: a) nome, CPF, endereço e data
da eleição e posse dos componentes dos órgãos administrativos, destacando o representante legal; b)
nome, CPF, OAB e endereço do advogado; c) Cartório, livro, n.º de ordem e a data do registro dos atos
187
Ministério Público poderá requerê-la judicialmente.
As fundações não podem ser extintas livremente pela vontade de seus
órgãos dirigentes, já que estes não são meros administradores e executores da vontade
do instituidor. A fundação somente será extinta se tornar-se ilícita, impossível ou inútil,
quando vencer o prazo (se houver) de sua existência ou quando for impossível a sua
manutenção (artigo 69 do CC e artigo 1204 do CPC). Se ocorrem essas causas, o
parquet ou qualquer interessado promoverá a extinção da fundação, judicial ou
extrajudicialmente, incorporando-se o patrimônio da entidade extinta a outra de
finalidade semelhante, salvo disposição estatutária em contrário.
Justifica-se a amplitude das atribuições ministeriais de velamento das
fundações, pois deve haver proporcionalidade “entre os encargos atribuídos e os meios
postos à disposição para a consecução daqueles, sob pena de inocuidade do dever-poder
atribuído ao Ministério Público no exercício de quão importante mister”, conforme já
decidiu o STJ.35
No âmbito judicial, o Ministério Público deve ser intimado em todos
os processos em que as fundações figurarem como parte, sob pena de nulidade absoluta
do feito a partir do momento em que o parquet deveria ter sido intimado, por força do
artigo 82, III, do Código de Processo Civil.
São seis as ações judiciais mais comuns propostas pelos membros do
Ministério Público que exercem as atribuições de curadores de fundações. 36
A ação de execução por quantia certa contra devedor solvente tem
base legal no artigo 64 do Código Civil e é ajuizada quando os instituidores deixarem de
integralizar a dotação inicial indicada na escritura pública de instituição da fundação,
que configura título executivo extrajudicial (artigo 585, II, do CPC). Essa ação também
é utilizada “em todas as situações em que for julgado procedente o pedido formulado
pelo curador de fundações em ação condenatória; após o trânsito em julgado da decisão,
o Ministério Público deverá proceder à execução da sentença”. 37
A ação declaratória de ineficácia de escritura pública ou testamento,
constitutivos e dos estatutos da fundação. Cartilha sobre a atuação da Promotoria de Justiça de Fundações,
elaborada pelo Ministério Público do Estado da Bahia. Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br>.
Acesso em: 28 jul. 2011.
35
REsp 776.549/MG, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 15/05/2007, DJ 31/05/2007, p.
346
36
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos,
administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 600603.
37
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos,
administrativos, contábeis e tributários. Op. cit. p. 600-603.
188
ajuizada na Vara Cível e não na de Registros Públicos (pois não está em causa questão
relativa ao registro), deve ser proposta nos casos em que o instituidor não tenha
interesse em dar continuidade ao processo de constituição da fundação, elaborando o
estatuto, ou quando a dotação inicial de bens é insuficiente para constituir a fundação. O
parquet, ao verificar a inviabilidade de dar prosseguimento ele mesmo à criação da
fundação, “deverá ajuizar ação declaratória de ineficácia da escritura ou testamento,
com vistas a tornar ineficaz o ato de constituição, incorporando-se os bens a ela
destinados a outra fundação de fins iguais ou semelhantes, se de outro modo não
dispuser o instituidor”. 38
A ação de extinção de fundação será proposta como procedimento de
jurisdição voluntária, se houver convergência entre o Ministério Público e os dirigentes
da fundação quanto à necessidade de extinção da entidade, ou pelo procedimento
ordinário, se configurada lide. Tem fundamento legal no artigo 69 do Código Civil, que
elenca as hipóteses de extinção das fundações.
As ações de responsabilidade civil e destituição de dirigente possuem
fundamento legal no artigo 66 do Código Civil, que confere legitimidade ao Ministério
Público para velar pelas fundações, e devem ser propostas em face de dirigente da
fundação que causar dano ao patrimônio da entidade pela prática de ato ilícito.
A ação de obrigação de fazer, também embasada na atribuição
ministerial de velar pelas fundações, deve ser ajuizada sempre que os dirigentes das
fundações deixarem de cumprir os deveres legais e estatutários, como, por exemplo, não
prestar contas ao Ministério Público.
A ação civil pública costuma ser ajuizada para coibir e reparar o uso
indevido de verbas públicas e a apropriação indébita de recursos da fundação (infra, V4).
Por fim, registre-se que o Ministério Público vela também pelas
denominadas fundações de apoio instituídas com a finalidade de dar apoio a projetos de
ensino, pesquisa e extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico,
inclusive na gestão administrativa e financeira estritamente necessária à execução de
projetos realizados com as Instituições Federais de Ensino Superior - IFES e as demais
Instituições Científicas e Tecnológicas - ICTs, nos termos da Lei 8.959/94, com as
modificações realizadas pela Lei 12.349/10.
38
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos,
administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 601.
189
2.5 Fundações instituídas pelo Poder Público
As fundações públicas são entidades da administração indireta (artigo
4º, I, “d” do Decreto-lei 200/67, na redação da Lei 7.596/98) instituídas pelo Poder
Público. A característica essencial das fundações públicas é a mesma das fundações
privadas: a personificação de um patrimônio destinado à realização de uma finalidade
social. O instituidor da fundação pública, no entanto, é o Estado, e não pessoa física ou
jurídica. Logo, as fundações públicas não são entidades integrantes do Terceiro Setor.
A doutrina diverge quanto à natureza jurídica da fundação pública. Há,
basicamente, três posicionamentos. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, as
fundações públicas possuem a natureza jurídica de autarquias. Marçal Justen Filho, José
dos Santos Carvalho Filho, Rafael Carvalho Rezende Oliveira e Sergio de Andréa
Ferreira entendem que são pessoas jurídicas de direito privado. 39
Diversamente, o entendimento majoritário aduz que há duas espécies
diferentes de fundações públicas no ordenamento jurídico brasileiro: as fundações
públicas de direito público, com personalidade jurídica de direito público e
prerrogativas administrativas, e as fundações públicas de direito privado, com
personalidade jurídica de direito privado, mas despidas de potestades públicas. 40 Ambas
não se confundem com as fundações privadas, instituídas por particulares e regidas pelo
Código Civil. Este entendimento foi consagrado pelo Supremo Tribunal Federal. 41
Maria Sylvia Zanela Di Pietro, filiando-se à corrente dominante,
posiciona-se sobre o tema da seguinte forma: 42
Quando o Estado institui pessoa jurídica sob a forma de fundação, ele pode
atribuir a ela o regime jurídico administrativo, com todas as prerrogativas e
sujeições que lhe são próprias, ou subordiná-las ao Código Civil, neste último
39
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 190. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª ed. rev. e atual.
Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.284. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito
administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 405 a 409. OLIVEIRA, Rafael Carvalho
Rezende. Administração Pública, Concessões e Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora,
2009, p.130.
40
MEIRELLES, Hely Lopes. Direto Administrativo Brasileiro. 26ª edição, São Paulo: Malheiros,
2001, p. 41. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 148-149. PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e entidades de interesse social – Aspectos
jurídicos, administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica,
2010, p. 220. FERREIRA, Sergio de Andréa. As fundações estatais e as fundações com participação
estatal. In: MODESTO, Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira. 2. ed. rev. ampl.
Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 69-113.
41
ADI 191, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 29/11/2007, DJe-041
DIVULG 06-03-2008 PUBLIC 07-03-2008 EMENT VOL-02310-01 PP-00001 RTJ VOL-00205-01 PP00015
42
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 445.
190
caso, com derrogações por normas de direito público. Em um e outro caso se
enquadram na noção categorial do instituto da fundação, como patrimônio
personalizado para a consecução dos fins que ultrapassam o âmbito da
própria entidade.
A fundação pública de direito público, assim como a autarquia, é
criada e extinta por lei, sujeitando-se ao regime jurídico de direito público. Não há
necessidade de inscrição de seu estatuto no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, pois
sua personalidade já decorre da lei. Seus servidores são estatutários, seus bens são
públicos e elas possuem as mesmas prerrogativas e privilégios das autarquias, tais como
prazos processuais diferenciados (artigo 188 e artigo 475, I e II, do CPC),
impenhorabilidade de seus bens, juízo privativo (artigo 109, I, CF/88) e sujeição ao
regime de execução por precatórios (artigo 100 da CF/88).
A fundação pública de direito privado tem a criação autorizada pela
lei e a sua extinção também depende da lei, não se lhe aplicando o artigo 69 do Código
Civil. Somente adquire personalidade jurídica com a inscrição de sua escritura pública
no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Mas seu regime jurídico é precipuamente
privado, o que significa que seus empregados são celetistas, seus bens são penhoráveis,
não possuem juízo privativo e não se sujeitam ao regime de precatórios.
Com efeito, as fundações públicas de direito público constituem-se em
verdadeiras “autarquias travestidas em forma fundacional” conforme reconhecido pela
doutrina e pela jurisprudência.43 Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, o que
define uma entidade como autarquia é o seu regime jurídico: se a entidade se sujeitar ao
regime de direito público, será uma autarquia. 44
Marçal Justen Filho diferencia autarquia e fundação quanto às
prerrogativas de direito público e à essencialidade das atividades prestadas por cada
entidade. Segundo o renomado doutrinador, a autarquia é dotada de prerrogativas de
direito público para o fornecimento de prestações materiais próprias do Estado, ao passo
que a fundação não possui essas prerrogativas e desenvolve atividades de interesse
43
Expressão utilizada pela Ministra do STF Ellen Gracie no julgamento de Agravo no RE nº 219.9001/RS, Acórdão de 4 de junho de 2002.
44
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1967, p. 203 et. seq. Ora, não faz sentido usar a expressão “fundação pública de
direito público” para se denominar uma autarquia: dois signos diferentes nominando o mesmo instituto
jurídico. Nesse caso, seria de melhor precisão conceitual e evitaria ambiguidades nominar-se a entidade,
logo em seu nascedouro, como autarquia ao invés de fundação. Assim, tem-se que, em sentido próprio, a
expressão fundação pública deve ser utilizada somente para nominar a pessoa jurídica de direito privado,
ainda que seja mantida com recursos públicos, como dispõe o artigo 5º, IV, do Decreto-lei 200/67.
Todavia, lamentavelmente, predomina a corrente que utiliza as denominações de fundação pública de
direito público e fundação pública de direito privado.
191
coletivo não exclusivamente estatais. A semelhança entre ambas é a realização de
interesses públicos, assumida pelo Estado mediante a utilização de bens públicos para o
desenvolvimento da atividade. É imperioso notar que não há uma via de mão dupla
entre ambas: é possível estabelecer uma autarquia para desempenhar atividades próprias
das fundações, mas não é viável instituir uma fundação, que possui personalidade de
direito privado, para desempenhar atividades próprias de uma autarquia – isso
configuraria ilegítima fuga para o direito privado, “gerando situação incompatível com
o próprio Estado de Direito”. 45
Diante da enorme confusão causada pela absoluta ausência de
precisão conceitual legislativa na criação dessas entidades, impõe-se seja verificado,
caso a caso, o objeto das atividades desenvolvidas e o regime jurídico adotado, para se
verificar se a entidade é uma autarquia ou fundação.
O Ministério Público não possui atribuição legal para velar pelas
fundações públicas de direito privado, pois a elas não se aplica o artigo 66 do Código
Civil, conforme artigo 4º, §3º, do Decreto-lei 200/67, na redação da Lei 7.596/98. Em
relação às “fundações públicas de direito público” não há que se falar em velamento do
Ministério Público, na medida em que tais entidades possuem a mesma natureza e
regime jurídico das autarquias, submetendo-se ao controle administrativo exercido
diretamente pela entidade que as instituiu. O parquet, a princípio, não realiza o controle
finalístico das fundações públicas, que já se encontram naturalmente submetidas à
supervisão ministerial exercida pelos órgãos da Administração Direta. 46
Nesse sentido, o STJ tem reconhecido a desnecessidade de
intervenção do Ministério Público em todas as ações nos quais a fundações públicas
45
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Fórum, 2011, p. 286-287.
46
Eis o que dispõe o artigo 26 do Decreto-lei 200/67: “Art. 26. No que se refere à Administração
Indireta, a supervisão ministerial visará a assegurar, essencialmente: I - A realização dos objetivos fixados
nos atos de constituição da entidade. II - A harmonia com a política e a programação do Governo no setor
de atuação da entidade. III - A eficiência administrativa. IV - A autonomia administrativa, operacional e
financeira da entidade. Parágrafo único. A supervisão exercer-se-á mediante adoção das seguintes
medidas, além de outras estabelecidas em regulamento: a) indicação ou nomeação pelo Ministro ou, se for
o caso, eleição dos dirigentes da entidade, conforme sua natureza jurídica; b) designação, pelo Ministro
dos representantes do Governo Federal nas Assembleias Gerais e órgãos de administração ou controle da
entidade; c) recebimento sistemático de relatórios, boletins, balancetes, balanços e informações que
permitam ao Ministro acompanhar as atividades da entidade e a execução do orçamento-programa e da
programação financeira aprovados pelo Governo; d) aprovação anual da proposta de orçamento-programa
e da programação financeira da entidade, no caso de autarquia; e) aprovação de contas, relatórios e
balanços, diretamente ou através dos representantes ministeriais nas Assembleias e órgãos de
administração ou controle; f) fixação, em níveis compatíveis com os critérios de operação econômica, das
despesas de pessoal e de administração; g) fixação de critérios para gastos de publicidade, divulgação e
relações públicas; h) realização de auditoria e avaliação periódica de rendimento e produtividade; i)
intervenção, por motivo de interesse público.”
192
figurem como parte, ressaltando, porém, que deve o parquet intervir nos casos em que
houver interesse público envolvido. 47
Não obstante, a supervisão ministerial não impede o exercício das
atribuições constitucionais do Ministério Público de investigar irregularidades
envolvendo as fundações públicas, sejam elas de “direito público” ou privado. É o caso,
por exemplo, da instauração de inquérito civil para apurar a prática de atos de
improbidade administrativa pelos dirigentes de fundação pública ou para apurar a
qualidade dos serviços de saúde prestados por fundação pública. 48
O controle externo eventualmente exercido pelo parquet sobre as
fundações públicas não conflita de forma alguma com o controle administrativo de
supervisão ministerial, podendo incidir paralelamente a este. As funções ministeriais de
zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos
direitos constitucionais e promover o inquérito civil e a ação civil pública para proteção
do patrimônio público e social, previstas na Constituição, legitimam o parquet a
investigar amplamente, quando for o caso, as fundações públicas, independentemente
do regime jurídico – público ou privado – por elas adotado.
3. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva
A Constituição Federal consagrou a função ministerial de promover o
inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do
meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, com a correspondente previsão
dos deveres-poderes de notificação e requisição de informações e documentos para
instrução dos procedimentos administrativos de competência do parquet (artigo 129, III
47
REsp 151.097/SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª Turma, julgado em 09/02/1999,
DJ 29/03/1999, p. 165. REsp 148.780/SP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, 6ª Turma, julgado em
11/12/1997, DJ 02/02/1998, p. 158. REsp 708.087/PE, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em
26/08/2008, DJe 25/09/2008. REsp 445.851/RJ, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em
21/11/2002, DJ 24/02/2003, p. 284. REsp 226.340/MG, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma,
julgado em 07/05/2002, DJ 19/08/2002, p. 168. REsp 234.577/MG, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior,
4ª Turma, julgado em 04/12/2001, DJ 18/03/2002, p. 254. REsp 246.709/MG, Rel. Ministro Carlos
Alberto Menezes Direito, 3ª Turma, julgado em 26/10/2000, DJ 11/12/2000, p. 194.
48
José Eduardo Sabo Paes, no entanto, defende que é importante que o parquet vele também pela
consecução das finalidades da fundação pública de natureza jurídica de direito privado, não havendo
incompatibilidade entre a atuação ministerial e a supervisão ministerial. PAES, José Eduardo Sabo.
Fundações e entidades de interesse social – Aspectos jurídicos, administrativos, contábeis e tributários.
5. ed. rev. ampl. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2010, p. 237. Discorda-se desse entendimento quanto à
extensão do controle ministerial: o parquet não tem atribuição legal para velar (atividade de
acompanhamento sistemático e contínuo) as fundações públicas (há vedação legal nesse sentido: artigo 4º.
§3º, do Decreto-lei 200/67, na redação da Lei 7.596/98), mas pode sim apurar a consecução das
finalidades de determinada fundação pública ou eventuais irregularidades por ela praticadas por meio de
inquérito civil específico.
193
e VI).
Seguiu-se, em um breve período imediatamente após a promulgação
da Carta de 1988, ainda que de forma não concertada, a postura institucional ministerial
de prestigiar o ajuizamento de ações civis públicas para a promoção dos interesses
difusos e coletivos. Com o decorrer do tempo e a constante especialização de
promotorias de Justiça e ofícios do Ministério Público em todo país – nas áreas de
saúde, educação, cidadania e patrimônio público, entre outras – a instituição passou a
perceber as vantagens de se utilizar também as técnicas extraprocessuais de tutela
coletiva para concretizar direitos coletivos, sempre com o escopo de buscar a
efetividade da tutela coletiva.
Com efeito, o membro do Ministério Público deve avaliar o melhor
caminho a ser seguido em cada caso, mediante a ponderação das vantagens e
desvantagens em ajuizar ação civil pública ou utilizar os meios extrajudiciais para a
implementação de direitos coletivos. De qualquer forma, qualquer que seja a estratégia
adotada pelo parquet, o acesso ao judiciário é sempre garantido constitucionalmente aos
demais legitimados coletivos (artigo 5º, XXXV) que eventualmente discordem da
atuação ministerial.
Alexandre Amaral Gravonski demonstra que tanto as ações civis
públicas quanto as técnicas extraprocessuais de tutela coletiva possuem limitações
naturais que devem ser sopesadas pelo legitimado coletivo em cada caso concreto. A
solução mais adequada a ser adotada deve levar em conta a efetividade do instrumento
escolhido para cada situação específica, com base em critérios de qualidade, baixo
custo, resolutividade e satisfação dos envolvidos. 49
Não é o tema central deste trabalho examinar com profundidade todas
as técnicas extraprocessuais de tutela coletiva utilizadas pelo Ministério Público. Neste
capítulo são analisados o inquérito civil, a recomendação e o termo de ajustamento de
conduta, sob o enfoque do controle externo e efetivo do Terceiro Setor.
3.1 Inquérito civil
49
GRAVONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010, p. 296. O autor enumera alguns limites do uso das técnicas extraprocessuais,
como a impossibilidade de execução forçada, impossibilidade de afastar leis por inconstitucionalidade,
possibilidade de revisão judicial das soluções obtidas extraprocessualmente e restrições de eficácia em
face de lides individuais. Por outro lado, cita algumas limitações de efetividade do processo judicial:
tempo e custo, procedimento pericial moroso e complexo, resistência judicial ao questionamento de
políticas públicas e atos discricionários e o distanciamento do juiz da questão de fato. Op. cit., p. 157-176
e 231-260.
194
De nada adiantaria incumbir o Ministério Público da defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis sem
dotá-lo dos instrumentos necessários para o cumprimento de tão importante missão.
Nesse sentido, a consagração constitucional do inquérito civil e do poder requisitório foi
fundamental para o fortalecimento institucional do Ministério Público na promoção dos
interesses sociais e individuais indisponíveis. 50
O inquérito civil é procedimento administrativo inquisitório e
facultativo de titularidade exclusiva do parquet, que tem como objeto “apurar fato que
possa autorizar a tutela dos interesses ou direitos a cargo do Ministério Público nos
termos da legislação aplicável, servindo como preparação para o exercício das
atribuições inerentes às suas funções institucionais”.51 Desempenha relevante função
instrumental, destinando-se a coligir quaisquer elementos de convicção que possam
embasar a atuação do Ministério Público.
Possui a natureza jurídica de procedimento administrativo. Trata-se da
sucessão coordenada e formalizada de atos administrativos praticados pelo Ministério
Público na coleta de elementos probatórios para a promoção de interesses sociais e
individuais indisponíveis. Não é processo administrativo: não há litigantes ou acusados,
nem a possibilidade de se aplicar qualquer sanção aos investigados no âmbito do
inquérito civil (supra, III-4.1).
É inquisitório ou unilateral, eis que não tem partes, participantes ou
acusados, por isso não incidem as garantais constitucionais do contraditório e da ampla
defesa durante a instrução do inquérito civil. Nada impede e é até aconselhável, porém,
que o parquet realize a oitiva de todos os envolvidos para formar sua convicção,
adotando uma postura direcionada “à construção do consenso e de inequívoco interesse
para a efetividade da tutela coletiva, atentando aos princípios da máxima efetividade
possível e da concretização dos direitos e interesses coletivos por meio da construção
argumentativa do consenso”. 52
Se o Ministério Público possuir todos os dados necessários para
50
O inquérito civil foi inovação da Lei 7.347/85. Após a consagração na CF/88, o inquérito civil foi
positivado também nas seguintes leis: Lei 7.853/89, sobre a proteção de deficientes (artigo 6º); Lei
8.078/90, Código de Defesa do Consumidor (artigo 90); Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do
Adolescente (artigo 201, V); Lei 8.625/93, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (artigo 25, IV); e
Lei Complementar 75/93, Lei Orgânica do Ministério Público da União (artigos 6º; 38, I; 84, II; e 150, I).
51
Conforme artigo 1º da Resolução 23, de 17 de setembro de 2007, do Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP). Esta resolução regulamenta os artigos 6º, VII, e 7º, I, ambos da Lei
Complementar nº 75/93, e os artigos 25, IV, 26, I, da Lei 8.625/93, disciplinando, no âmbito do Ministério
Público, a instauração e tramitação do inquérito civil.
52
GRAVONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010, p. 301.
195
exercer suas funções, o inquérito civil será dispensável. Diz-se, assim, que é facultativo:
não é condição de procedibilidade para o ajuizamento das ações a cargo do Ministério
Público, nem para a realização das demais medidas de sua atribuição própria.53 Por
exemplo, se o Ministério Público receber uma representação devidamente instruída
sobre o direcionamento de determinada licitação para favorecer uma entidade do
Terceiro Setor, poderá ajuizar de imediato a ação civil pública para anular o certame,
não sendo necessária instauração do inquérito civil.
Não há formalidade restrita no inquérito civil, o que permite ampla
margem de liberdade para o membro do Ministério Público conduzir sua instrução.
Todas as provas permitidas pelo ordenamento jurídico podem ser colhidas para o
esclarecimento do fato objeto da investigação e juntadas nos autos do inquérito civil em
ordem cronológica de apresentação. 54
O inquérito civil é de regra público, com exceção dos casos em que
haja sigilo legal ou em que a publicidade possa acarretar prejuízo às investigações,
quando a decretação do sigilo legal deverá ser motivada. 55
As principais diligências instrutórias realizadas pelo Ministério
Público no inquérito civil são as seguintes: oitiva de testemunhas (que podem ser
requisitadas coercitivamente, caso, regularmente notificadas, ausentem-se seu
justificativa); requisição de informações, exames, perícias e documentos de autoridades
da Administração Pública direta ou indireta; requisição de informações e documentos a
entidades privadas; realização de inspeções; acesso a banco de dados de caráter público
ou relativo a serviço de relevância pública; e realização de audiências públicas e
reuniões.
53
Artigo 1º, parágrafo único, da Resolução 23/2007 do CNMP.
Artigo 6º, §2º da Resolução 23/2007 do CNMP.
55
Diz o artigo 7º da Resolução 23/2007 do CNMP: “Aplica-se ao inquérito civil o princípio da
publicidade dos atos, com exceção dos casos em que haja sigilo legal ou em que a publicidade possa
acarretar prejuízo às investigações, casos em que a decretação do sigilo legal deverá ser motivada. § 1º
Nos requerimentos que objetivam a obtenção de certidões ou extração de cópia de documentos constantes
nos autos sobre o inquérito civil, os interessados deverão fazer constar esclarecimentos relativos aos fins e
razões do pedido, nos termos da Lei 9.051/95. § 2º A publicidade consistirá: I - na divulgação oficial, com
o exclusivo fim de conhecimento público mediante publicação de extratos na imprensa oficial; II - na
divulgação em meios cibernéticos ou eletrônicos, dela devendo constar as portarias de III - na expedição
de certidão e na extração de cópias sobre os fatos investigados, mediante requerimento fundamentado e
por deferimento do presidente do inquérito civil; IV - na prestação de informações ao público em geral, a
critério do presidente do inquérito civil; V - na concessão de vistas dos autos, mediante requerimento
fundamentado do interessado ou de seu procurador legalmente constituído e por deferimento total ou
parcial do presidente do inquérito civil. § 3º As despesas decorrentes da extração de cópias correrão por
conta de quem as requereu. § 4º A restrição à publicidade deverá ser decretada em decisão motivada, para
fins do interesse público, e poderá ser, conforme o caso, limitada a determinadas pessoas, provas,
informações, dados, períodos ou fases, cessando quando extinta a causa que a motivou. § 5º Os
documentos resguardados por sigilo legal deverão ser autuados em apenso”.
54
196
Nos inquéritos civis instaurados para apurar irregularidades nas
parcerias estabelecidas entre o Poder Público e o Terceiro Setor, é recorrente a
requisição de cópias dos convênios, contratos de gestão e termos de parceria e das
respectivas prestações de contas. Registre-se que o Ministério Público Federal tem
acesso privilegiado ao SINCOV e que o concedente deverá comunicar ao Ministério
Público
competente
quando
detectados
indícios
de
crime
ou
improbidade
administrativa. 56
Citem-se alguns exemplos de inquéritos civis instaurados pelo
Ministério Público para investigar a correta aplicação de recursos públicos pelas
entidades do Terceiro Setor: apurar possíveis irregularidades envolvendo o uso de
verbas federais repassadas por meio do convênio firmado entre o Município de Duque
de Caxias – RJ e o Grupo Verde Mania (ONG), destinadas à implantação e execução do
Programa NAF – Núcleo de Apoio à Família – Plano Nacional de Segurança Pública;57
acompanhar os convênios firmados entre o Ministério do Turismo e a Associação
Brasileira de Transporte Aéreo – ABETAR;58 acompanhar a execução de termo de
parceria entre a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC e a Organização Brasileira
para o Desenvolvimento da Certificação Aeronáutica – DCA BR;59 averiguar a
regularidade na aplicação de verbas oriundas do Ministério da Educação e Cultura para
a execução do projeto denominado 'Escola Que Protege” por meio da ONG Hathor. 60
Outra linha de atuação muito comum é a instauração de inquérito civil
para apurar o respeito ao princípio da impessoalidade na realização de procedimento de
competição para escolha da entidade parceira do Poder Público, como ocorreu no
inquérito civil instaurado pela Procuradoria da República no Estado da Bahia com o
objetivo de verificar os critérios para a escolha da ONG “Avante, qualidade, educação e
vida” e do “Instituto Aliança com o Adolescente”, beneficiadas com recursos públicos
56
Artigos 71 e 87 da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011. Seria
interessante que os Ministérios Públicos Estaduais também tivessem o mesmo acesso privilegiado ao
SINCOV. Recentemente, o Ministério da Justiça compartilhou o Cadastro Nacional de Entidades de
Utilidade Pública (CNEs), cujo objetivo é dar transparência às atividades das entidades sociais sem fins
lucrativos, com o Ministério Público Federal, conforme notícia veiculada em <
http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2010/8/06/justica-e-mpf-vao-compartilhar-cadastros-deentidades-sociais>. Acesso em: 2 ago. 2011.
57
Inquérito civil MPF/PRM/SJM/nº 1.30.017.000190/2005-12, instaurado na Procuradoria da
República no Município de São João do Meriti – RJ.
58
Inquérito civil 1.34.014.000065/2008-28, instaurado na Procuradoria da República no Município de
São José dos Campos – SP.
59
Inquérito civil 1.34.014.000067/2008-17 (67/2008), instaurado na Procuradoria da República no
Município de São José dos Campos – SP.
60
Inquérito civil 1.00.000.001372/2005-01, instaurado na Procuradoria da República no Estado do
Rio Grande do Sul – RS.
197
do “programa primeiro emprego” do Governo Federal. 61
O inquérito civil pode ser também utilizado para apurar a correta
prestação de serviços de relevância pública pelo Terceiro Setor. É o que ocorreu na
instauração de inquérito civil pela Procuradoria da República no Estado do Rio Grande
do Sul para apurar a possível existência de um novo curso de medicina – sem
reconhecimento pelo Ministério da Educação – promovido pela Escola Superior de
Ciências Tradicionais e Ambientais – ESCAM, mantida pela ONG TerraBrazil. 62
Preventivamente, o inquérito civil deve ser instaurado para
acompanhar e fiscalizar as parcerias estabelecidas com o Terceiro Setor, verificando-se
a correta aplicação dos recursos públicos, em especial nos ajustes que envolverem
valores mais elevados. Nesse sentido, o Ministério Público Federal instaurou inquérito
civil com o objetivo de apurar a legalidade e a correta aplicação de recursos públicos
federais pelas Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público localizadas nos municípios abrangidos pela atribuição da Procuradoria da
República em Campinas – SP. 63
A Constituição Federal consagrou o poder requisitório do Ministério
Público (artigo 129, VI), inicialmente previsto na lei da ação civil pública. A Lei
Orgânica Nacional do Ministério Público e a Lei Orgânica do Ministério Público da
União disciplinam o exercício desse poder. 64
A requisição é uma prerrogativa constitucional que confere ao parquet
o poder jurídico de exigir a obtenção de elementos probatórios, seja qual for a pessoa
que deles disponha, para instruir o inquérito civil e os procedimentos administrativos de
61
Inquérito civil instaurado na Procuradoria da República no Estado da Bahia – BA por meio da
Portaria03/2007.
62
Inquérito civil 1.00.000.001372/2005-01, instaurado na Procuradoria da República no Estado do
Rio Grande do Sul – RS.
63
Inquérito Civil 1.34.004.000559/2011-27, instaurado na Procuradoria da República em Campinas –
SP.
64
Diz o artigo 8º, §1º, da Lei 7.347/85: “O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência,
inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames
ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.” O artigo 26, I, “b”
e II, estabelece as atribuições ministeriais de instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos
administrativos pertinentes e, para instruí-los requisitar informações, exames periciais e documentos de
autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta,
indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios; e requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou
processo em que oficie. Por fim, o artigo 8º, I e IV, da Lei Complementar 75/93, estabelece a atribuição
Ministerial de requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração
Pública direta ou indireta; requisitar informações e documentos a entidades privadas. No julgamento da
ADI 230/RJ, o STF entendeu que a Defensoria Pública não possui poder requisitório, sob pena de se
transformar em “superadvogado” com “superpoderes”. O julgamento ainda está pendente de publicação.
198
sua competência.65 Não cabe ao agente requisitado avaliar a conveniência e
oportunidade de atender à requisição ministerial: trata-se de ordem legal emanada do
parquet.
Caso a requisição não seja atendida, o Ministério Público poderá
impetrar mandado de segurança para obter as informações requisitadas. Além disso, a
sanção pelo descumprimento deliberado da requisição ministerial legitimamente
expedida consiste na responsabilização pelo crime de desobediência.66 A Lei 7.347/85,
por seu turno, tipifica como crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três)
anos, mais multa de 10 (dez) a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro
Nacional - ORTN, “a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos
indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público”
(artigo 10). Em casos mais extremos, o descumprimento reiterado de requisição
ministerial poderá ensejar prática de improbidade administrativa consistente em retardar
ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício (artigo 11, II, da Lei 8.429/92).
Questiona-se se o poder requisitório do Ministério Público encontra
limites nos dados protegidos por sigilo legal.
Diz o artigo 8º, §2º, da Lei Complementar 75/93, que “nenhuma
autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de
sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do
dado ou do documento que lhe seja fornecido”, aplicável subsidiariamente aos
Ministérios Públicos dos Estados de acordo com o artigo 80 da Lei 8.625/93.
Em relação ao sigilo bancário, a jurisprudência vem admitindo a
obtenção de informações diretas pelo Ministério Público, sem a necessidade de
autorização judicial, nos casos em que os dados referem-se a recursos públicos,
conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal no MS 21.729-DF, relatado pelo
Ministro Néri da Silveira.67 Nos demais casos, prevalece o entendimento de que o
parquet deve requerer judicialmente as informações bancárias necessárias para a
investigação, não se admitindo a quebra genérica do sigilo bancário. 68
Logo, conforme o entendimento dominante na jurisprudência, o
65
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005, p. 262.
66
O Código Penal, no artigo 330, tipifica o crime de desobediência: desobedecer a ordem legal de
funcionário público, com pena de detenção, de 15 (quinze) a 6 (seis) meses, e multa.
67
MS 21729, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Néri da Silveira, Tribunal
Pleno, julgado em 05/10/1995, DJ 19-10-2001 PP-00033 EMENT VOL-02048-01 PP-00067 RTJ VOL00179 PP-00225.
68
Como vem sendo decidido pelo STF: RE 318136 AgR, Relator(a): Min. Cezar Peluso, Segunda
Turma, julgado em 12/09/2006, DJ 06-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02250-04 PP-00800.
199
Ministério Público pode requisitar diretamente das instituições financeiras as
informações bancárias referentes aos recursos transferidos às entidades do Terceiro
Setor, já que tais recursos possuem a natureza de recursos públicos. Por exemplo, o
parquet pode ter acesso direto aos dados da conta bancária específica (artigo 10, §3º, I,
do Decreto 6.170/07) de convênio ou contrato de repasse firmado com o Terceiro Setor.
No que diz com o sigilo fiscal, o poder requisitório do Ministério
Público, em relação à situação econômico-financeira do investigado na Secretaria da
Receita Federal, encontra respaldo no art. 198, § 1º, II, do Código Tributário Nacional
(CTN), alterado pela Lei Complementar 104/2001.69 Registre-se que a Receita Federal
possui ato normativo interno determinado o fornecimento das informações alcançadas
pelo sigilo fiscal ao Ministério Público da União, independentemente de autorização
judicial. 70
Nos demais casos em que houver sigilo legal, as informações
requisitadas devem ser encaminhadas ao Ministério Público, ficando o membro do
parquet responsável civil e penalmente pelo uso indevido dos dados e documentos que
requisitar. A ação penal, na hipótese, poderá ser proposta também pelo ofendido,
subsidiariamente, na forma da lei processual penal. 71
Nem sempre o inquérito civil culminará na propositura de ação civil
pública. Na maioria das vezes, aliás, o inquérito civil é arquivado por outros motivos,
tais como o cumprimento integral de termo de ajustamento de conduta, o acatamento de
recomendação expedida, a correção de conduta irregular investigada ou a inexistência
69
Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da
Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação
econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios
ou atividades. (Redação dada pela Lei Complementar 104/01). § 1o Excetuam-se do disposto neste artigo,
além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: (Redação dada pela Lei Complementar 104/01) (...) II
– solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja
comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o
objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração
administrativa. (Incluído pela Lei Complementar 104/01). § 2o O intercâmbio de informação sigilosa, no
âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega
será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure
a preservação do sigilo. (Incluído pela Lei Complementar 104/01). § 3o Não é vedada a divulgação de
informações relativas a: (Incluído pela Lei Complementar 104/01) I – representações fiscais para fins
penais; (Incluído pela Lei Complementar 104/01) II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública;
(Incluído pela Lei Complementar 104/01) III – parcelamento ou moratória. (Incluído pela Lei
Complementar 104/01).
70
Conforme Nota Cosit nº 200, de 10 de julho de 2003, da, Coordenadoria-Geral de Tributação, cuja
conclusão é a seguinte: “a ordem jurídica vigente, mais que ampara, obriga a autoridade fiscal a fornecer
informações protegidas pelo sigilo referido no art. 198 do CTN, quando solicitadas pelo Ministério
Público Federal, sem prejuízo da observância das formalidades para intercâmbio de informações
estabelecidas pelo art. 198, § 2º, do CTN e disciplinadas pela Portaria SRF n. 580, de 12 de junho de
2001.”
71
Artigo 26, §2º, da Lei 8.625/93 e artigo 8º, §1º da Lei Complementar 75/93.
200
de fundamento para a propositura da ação civil pública. Quanto mais bem instruído for
o inquérito civil, mais eficiente será a atuação ministerial na via judicial ou
extrajudicial.
Nas palavras de Alexandre Amaral Gravonski, “serve o inquérito civil
de qualificado instrumento de informação e instrução, impedindo uma atuação açodada
ou superficial do Ministério Público e garantindo adequada identificação das reais
possibilidades do caso concreto”. 72
O referido autor cita duas formas diretas de efetividade do inquérito
civil no plano extraprocessual: o efeito de inibir, em alguns casos, a prática ou a
reiteração da conduta delitiva mediante a simples comunicação da instauração do
inquérito civil ao investigado e a possibilidade de construir uma solução consensual
para proteção e recuperação dos direitos e interesses difusos e coletivos.73
As contribuições indiretas do inquérito civil são também duas:
suspenção do prazo decadencial quanto ao direito de reclamação dos vícios constatados
em produtos ou serviços fornecidos no mercado de consumo (artigo 26, §2º, III, do
CDC) e utilização dos elementos colhidos no inquérito civil para responsabilização
criminal dos investigados.
3.2 Recomendação
Recomendar significa fazer ver, aconselhar, indicar.74 A principal
característica das recomendações expedidas pelo Ministério Público é a ausência de
coercibilidade: não se trata de ordem emanada do parquet, mas de admoestação com o
escopo de persuadir o órgão recomendado a corrigir conduta irregular ou adotar
providências cabíveis para a tutela dos interesses, direitos e bens sociais e individuais
indisponíveis. Possui a natureza jurídica de ato jurídico unilateral, eis que independe da
participação do destinatário para produzir efeitos.
A recomendação encontra fundamento constitucional na função
ministerial de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados na Constituição Federal, eis que é medida
necessária e eficiente para o desempenho dessa atribuição ministerial estabelecida no
72
GRAVONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010, p. 305.
73
Op. cit. p. 305-307.
74
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª
edição. Curitiba: Editora Positivo, 2004.
201
artigo 129, I, da Constituição de 1988. O instrumento foi inicialmente previsto na Lei
8.625/9375 e aperfeiçoado na Lei Complementar 75/93, que estabelece a atribuição
ministerial de “expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de
relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe
cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” (artigo
6º, XXII).
A Resolução 23/2007 do CNMP trata a recomendação como ato
fundamentado expedido nos autos do inquérito civil ou do procedimento preparatório
que objetiva à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como aos
demais interesses, direitos e bens cuja defesa caiba ao parquet promover (artigo 15). O
campo de abrangência da recomendação é amplíssimo, relacionado às atribuições
ministeriais previstas na Constituição.
Alexandre Amaral Gravonski define a recomendação como76
instrumento jurídico extraprocessual escrito por meio do qual,
fundamentadamente e sem coercibilidade, o Ministério Público, respeitadas
as regras de atribuição, antecipa oficialmente ao destinatário, pessoa física
ou jurídica, de natureza pública ou privada, o seu posicionamento
específico relacionado à melhoria de determinado serviço publico ou de
relevância pública ou a respeito de interesses, bens ou direitos que lhe cabe
promover, objetivando a correção de condutas ou adoção de providências
do destinatário, sem a necessidade de se recorrer à via judicial.
É, pois, ato administrativo unilateral expedido pelo parquet que
deverá ser bem fundamentado para que possa ser acolhido pelo recomendado. Com
efeito, a eficácia da recomendação para resolução extrajudicial do caso dependerá do
poder persuasivo dos argumentos apresentados no instrumento. Caso o destinatário opte
por não acolher a recomendação ministerial, por estar convencido da licitude de sua
conduta, poderá ser acionado judicialmente pelo Ministério Público para cumprir o que
havia sido recomendado.
A principal vantagem da recomendação é a possibilidade de seu
75
Art. 27. Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições
Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito: I - pelos poderes estaduais ou
municipais; II - pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta; III pelos concessionários e permissionários de serviço público estadual ou municipal; IV - por entidades que
exerçam outra função delegada do Estado ou do Município ou executem serviço de relevância pública.
Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre
outras providências: (...) IV - promover audiências públicas e emitir relatórios, anual ou especiais, e
recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas no caput deste artigo, requisitando ao
destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito. (grifos nossos).
76
GRAVONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010, p. 356 e 357.
202
pronto acatamento, o que levará à solução rápida e econômica da controvérsia sem a
necessidade de judicialização. Nesse sentido, configura eficiente método extrajudicial
de autocomposição por submissão do recomendado ao entendimento do parquet.
Não obstante, independentemente de seu cumprimento, tem o ato o
importante efeito de demonstrar ao recomendado a ilicitude do comportamento por ele
adotado, impossibilitando-o de alegar boa-fé a partir do momento em que tomou ciência
da recomendação. Emerson Garcia cita o exemplo do agente que, após receber
recomendação expedida pelo Ministério Público demonstrando a ilicitude de sua
conduta, continua a praticar atos de improbidade administrativa violadores dos
princípios regentes da atividade estatal: ao insistir na prática do ato de improbidade
administrativa, mesmo após a ciência da recomendação, o agente atua inequivocamente
com dolo. 77
Citem-se alguns exemplos de recomendações expedidas no exercício
do controle do Terceiro Setor pelo Ministério Público.
O Ministério Público do Estado de São Paulo expediu recomendação
para que os dirigentes da Fundação Pinhalense de Ensino, instituição sem fins lucrativos
sediada no Município de Espírito Santo do Pinhal, cessassem a ilegalidade consistente
na remuneração de seus dirigentes, em afronta expressa a disposição do estatuto social
da entidade. 78
Na Recomendação 03/2007-MS, o Ministério Público Federal em
Mato Grosso do Sul recomendou à Diretora do Programa Nacional de DST/AIDS, da
Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, que instaurasse
procedimento administrativo para apuração de danos ao patrimônio público causado por
entidade do Terceiro Setor, identificando o responsável e adotando as providências
cabíveis para a reparação do erário. 79
O Ministério Público Federal em Jales – SP recomendou ao prefeito
do Município de Fernandópolis – SP que suspendesse o termo de parceria celebrado
com a OSCIP Instituto de Saúde e Meio Ambiente – ISAMA e reassumisse a direção
77
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª edição, rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 379.
78
A recomendação foi expedida em 25.03.2010, nos autos do Inquérito Civil 009/2008. Como não foi
atendida, o Ministério Público ajuizou ação civil pública de destituição de dirigentes cumulada com
pedido de ressarcimento de danos materiais e morais, com pedido de antecipação de tutela, que tramita na
2ª Vara Cível da Comarca. Os dirigentes foram afastados liminarmente do cargo em decisão de 1ª
instância.<http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2285628/>. Acesso em: 5 ago. 2011.
79
A recomendação foi expedida no Procedimento Administrativo 1.21.000.000722/2007-63.
Detectou-se ausência de prestação de contas e indícios de improbidade administrativa no repasse de
recursos públicos à ONG.
203
estratégica e a gestão operacional dos serviços de saúde transferidos à OSCIP. 80
Se a recomendação não for acatada e a ilegalidade detectada persistir,
o Ministério Público adotará as providências cabíveis para a efetiva tutela do direito
difuso ou coletivo lesado. Nesse sentido, a Resolução 23/2007 do CNMP diz que é
vedada a expedição de recomendação como medida substitutiva ao compromisso de
ajustamento de conduta ou à ação civil pública (artigo 15, parágrafo único).
3.3 Termo de ajustamento de conduta
O termo de ajustamento de conduta ou, simplesmente, TAC, foi
introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (artigo 211 da Lei 8.069/90) e consagrado como instrumento extrajudicial
de tutela coletiva pelo Código de Defesa do Consumidor, que inseriu na Lei da Ação
Civil Pública o §6º do artigo 5º, com a seguinte redação: “os órgãos públicos
legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua
conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo
extrajudicial”.
Havia intenção de vetar o referido dispositivo quando da promulgação
do Código de Defesa do Consumidor, mas o artigo 113 do CDC, talvez por descuido na
revisão do texto legal, não foi explicitamente vetado. Dessa forma, entende-se que a
“referência ao veto ao artigo 113, quando vetados os artigos 82, § 3º, e 92, parágrafo
único, do CDC, não teve o condão de afetar a vigência do § 6º, do artigo 5º, da Lei
7.374/85, com a redação dada pelo artigo 113, do CDC, pois inviável a existência de
veto implícito”.81 A doutrina majoritária e a jurisprudência são uníssonas quanto à
validade legal do instrumento e seu uso vem colhendo bons frutos, demonstrando sua
eficiência como técnica de resolução célere de conflitos.
Os órgãos públicos legitimados para a propositura da ação civil
pública possuem atribuição para firmar o TAC. A Lei 7.347/85, nesse ponto, não
80
A Recomendação nº 91/2010, foi expedida em 24 de maio de 2010 no Procedimento Administrativo
1.34.030.000006/2010-76. No caso, o MPF verificou falhas no processo de seleção da OSCIP e relação de
parentesco entre funcionários da entidade e vereadores do município.
81
Trata-se de decisão do STJ: REsp 222.582/MG, Rel. Ministro Milton Luiz Pereira, 1ª Turma,
julgado em 12/03/2002, DJ 29/04/2002, p. 166. O STJ decidiu que o artigo 5º, §5º da Lei 7.347/85, que
admite litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos Estaduais e o Ministério Público da União
para defesa de interesses difusos e coletivos e que foi igualmente vetado, também encontra-se em pleno
vigor: REsp 382.659/RS, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, 1ª Turma, julgado em 02/12/2003,
DJ 19/12/2003, p. 322.
204
utilizou com precisão o conceito técnico de órgão consagrado na doutrina82, referindo-se
tanto a órgãos quanto a pessoas jurídicas de direito público.
Assim, possuem atribuição para celebrar TAC todos os legitimados
públicos à propositura da ação civil pública: Ministério Público, Defensoria Pública,
União, Estados, Distrito Federal, Municípios e autarquias e fundações públicas de
direito público (artigo 5º, I, II, III e IV). Outrossim, os órgãos públicos sem
personalidade jurídica e que se dediquem à defesa de interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos, como os Procons, também podem celebrar TACs.
Em relação às fundações públicas de direito privado, empresas
públicas e sociedades de economia mista, embora também legitimadas ao ajuizamento
de ação civil pública (artigo 5º, IV, da Lei 7.347/85), são pessoas jurídicas de direito
privado: somente as voltadas para a prestação de serviços públicos é que podem, em
tese, celebrar o TAC. Quando tais entidades se voltam para a exploração de atividade
econômica, não poderão tomar compromissos de ajustamento de conduta, pois nesse
caso não atuam exclusivamente na busca do interesse público primário, mas também na
consecução de interesses próprios ou de mercado. Essa circunstância as impede de
atuar, com a esperada isenção, na concretização de direitos transindividuais por meio do
TAC. 83
De qualquer forma, os órgãos públicos devem observar suas naturais
limitações territoriais e suas respectivas atribuições devem guardar pertinência temática
com o objeto do termo de ajustamento de conduta. Estados, Distrito Federal e
Municípios devem observar os limites das respectivas circunscrições. Já o IBAMA, por
exemplo, só poderá celebrar TACs em matéria ambiental. Somente em relação ao
Ministério Público não há necessidade de se verificar específica pertinência temática
para a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, já que o parquet possui
atribuição constitucional para tal fim. 84
82
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “órgãos são unidades abstratas que sintetizam os vários
círculos de atribuição do Estado”. O querer e agir dos agentes é imputado diretamente ao Estado; o órgão
público não tem personalidade jurídica. In: Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 144.
83
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19ª ed. rev. ampl. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2006, p. 364.
84
Alexandre Amaral Gravonski, contudo, entende que não há pertinência temática para atuação do
Ministério Público na defesa de interesses coletivos ou individuais homogêneos disponíveis de natureza
patrimonial e cita o exemplo de danos causados a 30 veículos importados de alto custo (Técnicas
extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 288, 389). O
exemplo citado, contudo, é caso de ausência de atribuição ministerial, não de análise de pertinência
temática. A tutela dos interesses disponíveis exclusivamente patrimoniais não se encontra inserida na
atribuição constitucional do parquet.
205
A lei não exige participação do Ministério Público nos compromissos
de ajustamento de conduta celebrados pelos demais órgãos públicos, apenas prevê a
obrigatoriedade da intervenção ministerial em juízo, no caso de ajuizamento da ação
civil pública por algum outro legitimado.
As associações civis, ainda que legitimadas à propositura da ação civil
pública (artigo 5º, V, da Lei 7.347/85), não possuem atribuição para celebrar o TAC, eis
que não são órgãos públicos. Da mesma forma, não possuem atribuição para tal fim as
Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Não
obstante, as associações civis podem ajuizar ação civil pública e propor, em juízo,
acordo para compor a lide.85 Nesse caso o ajuste será controlado pelo Ministério
Público – interveniente obrigatório na ação como fiscal da lei, nos termos do artigo 5º,
§1º da Lei 7.346/85 – e pelo juiz, que poderá ou não homologá-lo. Caso o parquet
discorde da proposta de acordo apresentada pela associação, caberá ao juiz a decisão
homologando-o ou determinando o prosseguimento do feito, restando às partes a
possibilidade de recorrer da decisão adotada.
Há basicamente duas correntes quanto à natureza jurídica do TAC.
A primeira entende que o instrumento possui a natureza jurídica de
transação especial: devido às limitações decorrentes da indisponibilidade ínsita aos
direitos transindividuais, há concessões mútuas no tocante ao prazo, modo e lugar para
adequação da conduta irregular do obrigado à legislação vigente. 86 A segunda defende
que o TAC é um ato ou negócio jurídico, não se tratando de transação devido à natureza
indisponível dos direitos difusos. 87
Com efeito, o traço característico da transação é justamente a
possibilidade das partes realizarem concessões mútuas (artigo 840 do Código Civil), o
que somente é permitido quanto aos direitos patrimoniais de caráter privado (artigo 841,
do Código Civil). Devido à indisponibilidade dos direitos tratados no TAC, não há como
considerá-lo como espécie de transação, ainda que qualificada como especial. Como
não há transação no que diz com os direitos indisponíveis, o TAC limita-se ao ajuste da
85
RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e
prática. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 236.
86
Geisa de Assis Rodrigues elenca os seguintes autores representantes desse entendimento: Rodolfo
de Camargo Mancuso, Edís Milaré, Nelson Nery Júnior, Paulo de Bessa Antunes, Fernando Grella Vieira,
Sérgio Shimura, José Marcelo Menezes Vigliar, Rita Tomasso, Marco Antônio Pereira, Celso Pacheco
Fiorillo, João Bosco Leopoldino da Fonseca, Carlyle Popp, Edson Vieira Abdala, Patrícia Miranda Pizzol
e Daniel Roberto Fink. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e prática. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 142.
87
Segundo Geisa de Assis Rodrigues (op. cit. p. 142), os autores Paulo Cezar Pinheiro Carneiro,
Francisco Sampaio, Hindemburgo Chateaubriand Filho, Maria Aparecida Gurgel, Isabella Franco Guerra
e Roberto Senise Lisboa entendem que o TAC possui a natureza jurídica de ato jurídico diverso.
206
conduta irregular ao integral cumprimento de todas as exigências legais, não havendo
qualquer possibilidade de se acordar o descumprimento da legislação. Além disso, não
há exata correspondência entre os legitimados a celebrar o TAC e os titulares do direito
material em questão, ao passo que a transação, nos termos da lei civil, somente
aproveita aos que nela intervieram (artigo 844 do Código Civil).
Na verdade, o termo de ajustamento de conduta é negócio jurídico
bilateral, uma vez que pressupõe a conjugação de vontades do obrigado e do órgão
público legitimado quanto às condições de prazo, modo e lugar necessárias à
concretização do direito transindividual.88 Esse também é o entendimento de Geisa de
Assis Rodrigues, in verbis: 89
Consideramos ser o ajustamento de conduta um negócio jurídico da
Administração e não um negócio jurídico administrativo, em que a
Administração esteja em uma posição superior ao administrado. Conforme já
verificamos, o ajustamento de conduta é meio de se garantir a prevenção do
dano ou sua reparação no âmbito civil, e por isso não tem sentido imaginar
que o legitimado ativo, pela sua natureza de órgão público, possa estar em
uma situação de superioridade desmedida. Há decerto, uma submissão do
obrigado, que ameaçava ou violava o direito transindividual ao cumprimento
de uma conduta definida pelo Órgão público, não por suas qualidades
intrínsecas, mas por estar este defendendo os direitos transindividuais.
É um negócio da Administração que também tem natureza de
equivalente jurisdicional, por ser um meio alternativo de solução de conflito.
Podemos concluir que o ajustamento de conduta é um acordo, um negócio
jurídico bilateral, que tem apenas o efeito de acertar a conduta do obrigado
às exigências legais. (grifo nosso).
Após a celebração do TAC pelo Ministério Público, o inquérito civil
prosseguirá para acompanhar o integral cumprimento do que fora acordado. Somente
depois de satisfeitas todas as disposições do compromisso de ajustamento de conduta é
que o inquérito civil poderá ser arquivado.
88
Nesse sentido, é a opinião de Alexandre Amaral Gravonksi. Técnicas extraprocessuais de tutela
coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 382. Em sentido contrário, José dos Santos
Carvalho Filho defende que o TAC é ato jurídico unilateral no qual o obrigado reconhece implicitamente
que sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo e assume o compromisso de eliminar a ofensa através
de adequação de seu comportamento às exigências legais. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação
civil pública. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 211-212. Para Hugo Nigro Mazzilli, tratase de “ato administrativo negocial por meio do qual só o causador do dano se compromete; o órgão
público que o toma, a nada se compromete, exceto, implicitamente, a não propor ação de conhecimento
para pedir aquilo que já está reconhecido no título.” MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses
difusos em juízo. 19ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 366. Emerson Garcia entende que
o TAC possui feição híbrida: no que diz respeito ao direito material, é mero ato de reconhecimento de
uma obrigação e quanto aos aspectos periféricos, é verdadeira transação. GARCIA, Emerson. Ministério
Público. 3ª edição, rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 292.
89
RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e
prática. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 158-159. Discorda-se da renomada autora somente quanto à
mencionada natureza de “equivalente jurisdicional” do ajustamento de conduta: o TAC é título executivo
extrajudicial que não é equivalente às formas jurisidicionais de promoção de direitos transindividuais,
embora ambos sejam formas de resolução de conflitos envolvendo direitos coletivos e difusos.
207
O termo de ajustamento de conduta alia todas as principais vantagens
dos mecanismos extraprocessuais de tutela coletiva – eficiência, celeridade e
informalidade – à vantagem de ter a eficácia de título executivo extrajudicial. Isso
significa que o órgão público que firmou o TAC pode promover a execução em juízo do
que fora acordado sem a necessidade de ajuizar prévia ação de conhecimento. Por isso,
é crucial que o TAC seja certo, líquido e exigível (artigo 586 do CPC), de forma a
permitir a identificação das partes envolvidas e a natureza da prestação ajustada.
Alexandre Amaral Gravonksi, alertando sobre a necessidade de
assegurar segurança jurídica para os envolvidos nos mecanismos de resolução
extrajudicial de conflitos transindividuais, defende que o TAC é mais do que uma
garantia mínima para a solução do caso concreto, constituindo-se na verdade como uma
das formas de solução justa para a concretização dos direitos e interesses coletivos
envolvidos. A consequência prática desse entendimento é que o legitimado coletivo que
não tiver participado da celebração do ajuste terá o ônus de demonstrar em juízo falhas
concretas do TAC firmado, bem como comprovar que a solução adotada no ajuste não
era uma das formas adequadas de concretizar os direitos em questão. Se não o fizer, não
terá interesse de agir para propositura da ação civil púbica versando sobre os mesmos
fatos objeto do TAC firmado. Nas suas palavras: 90
A principal distinção prática desse nosso entendimento ante a tese da
garantia mínima está no ônus processual que atribuímos ao legitimado
coletivo que pretenda obter solução jurídica diversa da alcançada no
compromisso de sustentar e demonstrar, especificamente, sob pena de ver
comprometido seu interesse de agir, a invalidade do compromisso ou de
alguma de suas cláusulas, a desproporcionalidade da respectiva solução ou a
sua omissão diante da lesão ou ameaça específica. Sob hipótese alguma o
compromisso pode ser ignorado como admitem os adeptos da tese da garantia
mínima.
O Ministério Público poderá firmar compromisso de ajustamento de
conduta, nos casos previstos em lei, com o responsável pela ameaça ou lesão aos
interesses ou direitos difusos ou coletivos, visando à reparação do dano, à adequação da
conduta às exigências legais ou normativas e, ainda, à compensação ou à indenização
pelos danos que não possam ser recuperados. 91
A utilização do TAC para controle do Terceiro Setor pelo Ministério
Público possui vasto campo de aplicação. Vejam-se alguns exemplos.
90
GRAVONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010, p. 411.
91
Artigo 14 da Resolução 23/2007 do CNMP.
208
O TAC costuma ser muito utilizado para assegurar o atendimento dos
princípios da impessoalidade e isonomia na escolha da entidade do Terceiro Setor que
será parceira do Poder Público. Nesse sentido, o Ministério Público do Estado de São
Paulo firmou compromisso de ajustamento de conduta com o Município de Américo
Brasiliense – SP e a INAB, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, no
qual se fixou prazo para que a municipalidade rompesse unilateralmente o contrato
estabelecido entre o município e a referida OSCIP, cujo objeto era a administração do
pronto socorro da cidade. No termo fixou-se prazo para realização de concurso de
projetos para a escolha da entidade parceira e execução de outro projeto de prestação de
serviços. 92 Por sua vez, o Ministério Público do Estado do Mato Grosso firmou TAC
com o Município de Vera – MT para assegurar a anulação do edital de concurso de
projetos e do contrato que havia sido firmado com a entidade civil vencedora, em face à
amplitude exagerada do objeto do processo de competição realizado, uma vez que o
edital não especificava quais serviços deveriam ser prestados pela entidade parceira.
93
O Ministério Público do Estado de Pernambuco firmou termo de
ajustamento de conduta com a Associação de Moradores do Conjunto Residencial
Juscelino Kubitschek no qual se convencionou prazos para que a entidade apresentasse
a prestação de contas de diversos convênios celebrados entre os anos de 2005 a 2010. 94
Nos exemplos acima citados, os ajustes se limitaram a fixar prazos
para regularização do processo de competição para escolha da entidade parceira e para o
cumprimento das obrigações legais de prestar contas.
Observe-se que se os fatos apurados configurarem atos de
improbidade administrativa, a lei veda expressamente a transação, acordo ou
conciliação (artigo 17, §1º, da Lei 8.429/92). Assim, é vedado ao parquet celebrar TAC
versando sobre a aplicação das sanções de perda da função pública, suspensão dos
direitos políticos, pagamento de multa e proibição de contratar com o Poder Público ou
dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. Por outro lado, a doutrina
admite a celebração extrajudicial do compromisso de ajustamento de conduta para
assegurar a reparação integral dos danos causados pelos atos de improbidade
92
O compromisso de ajustamento de conduta foi amplamente divulgado pela imprensa. Veja-se:
<http://eptv.globo.com/terradagente/NOT,0,0,316850,MP+pede+cancelamento+de+contrato+entre+prefei
tura+e+Oscip.aspx >. Acesso em: 07 ago. 2011.
93
Notícia publicada no sítio jusbrasil: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2504141/mp-firma-taccom-municipio-para-garantir-anulacao-de-edital>. Acesso em: 07 ago. 2011.
94
Além disso, constou do TAC que se houvesse comprovação de irregularidades na aplicação dos
recursos públicos recebidos, a entidade se comprometeria a restituir todo o valor aos cofres públicos. TAC
publicado em 25 de março de 2011 no Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Ano LXXXVIII, nº 55.
Notícia extraída da internet: < http://www.mp.pe.gov.br>. Acesso em: 07 ago. 2011.
209
administrativa. Contudo, verifica-se que há pouco interesse prático do agente em
celebrar o TAC para a reparação do dano causado ao erário, uma vez que a ação para a
aplicação das sanções por atos de improbidade administrativa será necessariamente
ajuizada pelo Ministério Público. 95
Em outros casos, porém, as entidades do Terceiro Setor participam de
termos de ajustamento de conduta não para adequarem condutas irregulares à legislação,
mas como parceiras do parquet na consecução do interesse público. Foi o que ocorreu
no TAC firmado pelo Ministério Público do Estado de Rondônia com o Município de
Costa Marques – RO e a ONG Aguapé, parceira do referido município, para a instalação
de doze sanitários ao longo do Rio Guaporé e a manutenção da higiene dos
equipamentos durante a realização de festival popular local. 96
4. Ação civil pública
A Constituição Federal dispõe expressamente sobre a legitimidade do
Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública (artigo 129, III, CF/88) e a
Lei 7.347/85 confere primazia ao parquet para o desempenho de tal mister, ao indicá-lo
como destinatário de peças para instruir a ação (artigo 7º), muni-lo do inquérito civil
(artigo 8º, §1º) e relacioná-lo como fiscal da lei interveniente em todas os feitos em que
não figurar como autor (artigo 5º, §1º). 97
O modelo institucional construído a partir da Constituição Federal de
1988, somado à tradição e à experiência dos membros do Ministério Público na defesa
dos interesses sociais e individuais indisponíveis, são fatores que contribuem para que o
parquet venha sendo o legitimado processual que mais tem proposto ações civis
públicas no país. Nesse sentido, é oportuna a ressalva feita por Geisa de Assis
Rodrigues quanto à necessidade de estruturação do Ministério Público para a promoção
dos direitos transindividuais: 98
95
Nesse sentido é a opinião de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves. In: GARCIA, Emerson;
ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 3ª ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, p. 614.
96
Notícia publicada em < http://www.rondoniaovivo.com.br/news.php?news=19957 >. Acesso em: 07
ago. 2011.
97
No âmbito legislativo, a ação civil pública foi referida pela primeira vez na Lei Complementar
Federal 40/81, antiga Lei Orgânica do Ministério Público, que incluiu entre as funções ministeriais a
promoção da ação civil pública, na forma da lei (artigo 3º, III). A doutrina também costuma mencionar,
como exemplo de ação civil pública, a ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio
ambiente, prevista no artigo 14, §1º, da Lei 6.938/81.
98
RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e
prática. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 74.
210
Com efeito, não podemos esquecer a responsabilidade da instituição
ministerial, porque o sistema lhe reservou o papel de protagonista na defesa
desses direitos, atuando em todos os feitos judiciais nos quais os mesmos são
discutidos, quer os tenha intentado ou não, e franqueando uma série de
poderes e instrumentos de atuação extrajudicial que permitem a garantia dos
direitos transindividuais. Por isso, há muito o que fazer dentro do Parquet
para o reconhecimento da importância dessas atribuições e a estruturação de
uma atividade que seja o mais independente possível do valor individual de
cada um de seus membros.
Por meio da ação civil pública os legitimados ativos buscam em juízo
a responsabilização dos causadores de danos morais e materiais causados ao meioambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, por infração da
ordem econômica e da economia popular e à ordem urbanística.
Segundo o CDC, são interesses e direitos difusos os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por
circunstâncias de fato (artigo 81, parágrafo único, I). Exemplos: direito de respirar ar
puro, direito do consumidor de ser alvo de publicidade não enganosa e direito da
comunidade sobre a integralidade do patrimônio público em sentido amplo (erário,
patrimônio cultural, moral e ecológico). 99
Os interesses e direitos coletivos são os transindividuais de natureza
indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si com
a parte contrária por uma relação jurídica base (CDC, artigo 81, parágrafo único, II).
Diferem dos direitos difusos, basicamente, devido à necessidade de relação jurídica base
entre os membros do grupo ou entre esses e a parte contrária. Exemplo: aquisição, pelos
moradores da localidade, de produtos contaminados produzidos por indústria. 100
Já os interesses ou direitos individuais homogêneos são os decorrentes
de origem comum (CDC, artigo 81, parágrafo único, III) e essencialmente divisíveis, tal
como decorre da aquisição de veículos de uma determinada marca, ano e série com
defeitos de fabricação. 101
Não há dúvidas quanto à legitimidade do Ministério Público para o
ajuizamento de ação civil pública para proteção dos direitos e interesses difusos e
coletivos. Em relação aos direitos individuais homogêneos, tem havido muitas
99
Os exemplos são de Gregório Assagra de Almeida. In: ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito
processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 488.
100
O exemplo citado é de Emerson Garcia. GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª edição, rev.
amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 294.
101
O exemplo, mais uma vez, é de Gregório Assagra de Almeida. Ob. cit. p. 492-493.
211
divergências na doutrina e na jurisprudência.
O STF reconheceu a legitimidade ministerial para impugnar, em ação
civil pública, mensalidades escolares abusivas, por se tratar de tema ligado ao direito à
educação.102 O STJ vem reconhecendo a legitimidade do parquet para atuar na defesa
dos direitos individuais homogêneos indisponíveis ou com repercussão social, em casos
em que se tutelava, por exemplo, o direito à saúde, direitos do consumidor de telefonia
móvel, direitos previdenciários, liquidação extrajudicial de instituição financeira,
registro profissional no Conselho de Medicina Veterinária, interesse de menor, interesse
de deficientes físicos, sistema financeiro de habitação, direito à moradia, internação de
gestante e recém-nascido em hospital, fornecimento de medicamento a idoso,
consumidores de planos de capitalização e defesa de usuários de transporte coletivo. 103
Ora, nem mesmo a lei pode diminuir, sob qualquer pretexto, a
atribuição ministerial de defesa dos interesses sociais prevista na Constituição Federal
(artigo 127). Por isso, sempre que os direitos individuais homogêneos tiverem
repercussão social, o Ministério Público terá legitimidade para atuar em juízo. Além
disso, há casos em que legislação confere legitimidade expressa ao parquet para
defender direitos individuais homogêneos.104 Gregório Assagra de Almeida, com
precisão, captou a relevância da atuação ministerial na defesa desses direitos, em
palavras dignas de transcrição: 105
A legitimação do Ministério Público está expressa no texto constitucional
(art. 127, caput e art. 129, III). A mesma Lei Maior confere ao legislador
infraconstitucional poder para conceder ao Parquet outras funções
compatíveis com suas atribuições (art. 129, IX, da CF), e a legitimidade no
caso é institucional e está respaldada, como se vê, no texto constitucional. A
102
RE 163231, Relator(a): Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 26/02/1997, DJ 29-062001 PP-00055 EMENT VOL-02037-04 PP-00737.
103
REsp 855.181/SC, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em 01/09/2009, DJe 18/09/2009;
AgRg no AgRg no REsp 1167377/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em
26/04/2011, DJe 03/05/2011; REsp 1142630/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em
07/12/2010, DJe 01/02/2011; REsp 1220835/RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, 5ª
Turma, julgado em 01/03/2011, DJe 09/06/2011; REsp 909.459/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª
Turma, julgado em 06/05/2010, DJe 25/05/2010; AgRg no Ag 1156930/RJ, Rel. Ministro Humberto
Martins, 2ª Turma, julgado em 10/11/2009, DJe 20/11/2009; REsp 931.513/RS, Rel. Ministro Carlos
Fernando Mathias (juiz federal convocado do TRF 1ª REGIÃO), Rel. p/ Acórdão Ministro Herman
Benjamin, 1ª Seção, julgado em 25/11/2009, DJe 27/09/2010; REsp 1126708/PB, Rel. Ministra Eliana
Calmon, 2ª Turma, julgado em 17/09/2009, DJe 25/09/2009; REsp 950.473/MG, Rel. Ministro Herman
Benjamin, 2ª Turma, julgado em 25/08/2009, DJe 27/04/2011; REsp 899.820/RS, Rel. Ministro Teori
Albino Zavascki, 1ª Turma, julgado em 24/06/2008, DJe 01/07/2008; REsp 932.330/RS, Rel. Ministro
Teori Albino Zavascki, 1ª Turma, julgado em 04/09/2007, DJ 24/09/2007, p. 265; REsp 347.752/SP, Rel.
Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 08/05/2007, DJe 04/11/2009; REsp 183.798/SP, Rel.
Ministro Milton Luiz Pereira, 1ª Turma, julgado em 12/06/2001, DJ 11/03/2002, p. 175.
104
Artigo 25, IV, “a” da Lei 8.625/93 e artigo 6º, VII, “d” e XII da Lei Complementar 75/93.
105
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito
processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 578.
212
atuação é de interesse social, e sempre que houver a afirmação de direito
pertinente aos interesses ou direitos individuais homogêneos, o Ministério
Público poderá atuar, com o ajuizamento da respectiva ação coletiva. O que
ele defende não é o interesse de cada vítima ou de seus sucessores, mas o
interesse globalmente considerado que, no caso, é o interesse social,
justificado para evitar a proliferação de demandas individuais, a dispersão
das vítimas titulares dos direitos e o desequilíbrio jurídico decorrente da
possibilidade de decisões jurisdicionais contraditórias sobre o mesmo
assunto.
Os pedidos formulados na ação civil pública não se restringem à
condenação em dinheiro ou ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer (artigo
3º da Lei 7.347/85): aplica-se à defesa dos direitos e interesses difusos e coletivos o
disposto no artigo 83 do CDC, conforme artigo 21 da própria lei da ação civil pública.
Cabe, portanto, a formulação de pedido condenatório, meramente declaratório (positivo
ou negativo) ou constitutivo (negativo ou positivo) por meio da ação civil pública,
sempre levando-se em conta a adequação do pedido à efetiva tutela do direito coletivo
pleiteado. 106
A decisão mandamental em pedido de obrigação de fazer ou não fazer
possui nítido caráter preventivo na medida em que procura impedir a ocorrência do dano
ou obstar a continuidade da conduta ilegal praticada. Assim, a doutrina defende que a
ação civil pública possui caráter precipuamente cominatório: na maioria dos casos o
interesse público é voltado a obstar a agressão de direitos difusos ou obter a reparação
in natura do dano causado, ou seja, que conduza à recomposição do statu quo ante. 107
Nesse sentido, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará
providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento e,
somente em caráter subsidiário (quando não houver outros meios cabíveis para proteção
direta dos direitos difusos sub judice), concederá tutela indenizatória, nos termos do
artigo 84 do CDC.
Segundo Luiz Guilherme Marinoni, a mais importante das tutelas
específicas 108
é aquela que se destina a impedir ou remover o ato contrário ao direito. Tratase de tutela anterior ao dano, e que assim é capaz de dar efetiva proteção ao
direito, seja quando o ato contrário ao direito ainda não foi praticado (tutela
inibitória), seja quando o ato contrário ao direito já ocorreu, mas, diante de
sua eficácia continuada, é preciso removê-lo para evitar a produção de danos
106
ALMEIDA, Gregório Assagra, ob. cit. O referido autor denomina de princípio da máxima
amplitude da tutela jurisdicional coletiva comum a possibilidade de se ajuizar qualquer tipo de ação e
formular o pedido adequado para a correta e efetiva tutela do direito coletivo.
107
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública. 8ª ed. rev. atual. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002, p. 27-45.
108
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 118.
213
(tutela de remoção do ilícito).
A Lei 8.625/93 estabelece a atribuição ministerial de promover a ação
civil pública, na forma da lei, para a proteção, prevenção e reparação dos danos
causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e
individuais indisponíveis e homogêneos; e para a anulação ou declaração de nulidade de
atos lesivos ao patrimônio público ou à moralidade administrativa do Estado ou de
Município, de suas administrações indiretas ou fundacionais ou de entidades privadas
de que participem (artigo 25, IV, alíneas “a” e “b’). Por sua vez, a Lei Complementar
75/93 diz competir ao Ministério Público da União promover a ação civil pública para a
proteção dos seguintes bens e direitos: direitos constitucionais; patrimônio público e
social, do meio ambiente, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico; interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos,
relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às
minorias étnicas e ao consumidor; e outros interesses individuais indisponíveis,
homogêneos, sociais, difusos e coletivos (artigo 6º, VII).
Prevalece na doutrina o entendimento de que o Ministério Público
possui legitimidade extraordinária para ajuizar ação civil pública, pois o parquet age
em nome próprio na defesa dos interesses sociais. A legitimidade é também concorrente
– porque não impede a legitimidade de terceiros, nas mesmas hipóteses, conforme
previsto na Lei 7.347/85 (artigo 5º) e na Constituição Federal (artigo 129, §1º). 109
Ao lado do Ministério Público, figuram como legitimados ativos para
propor a ação principal e a ação cautelar a Defensoria Pública, a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de
economia mista e a associação que atenda aos requisitos legais. 110
São vários os exemplos de ações civis públicas ajuizadas pelo
Ministério Público questionando-se a ausência de procedimento de competição para
109
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª edição, rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 295. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005, p. 136.
110
Apesar de a lei mencionar somente as associações, as fundações criadas pelo setor privado, que
possuem finalidades de evidente caráter social (CC, artigo 62, parágrafo único), também possuem
legitimidade para ajuizar ação civil pública. Nesse sentido: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação
civil pública. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 144. Assim, as associações e fundações
privadas que compõem o Terceiro Setor, desde que constituídas há mais de um ano e que incluam entre
suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre
concorrência ou ao patrimônio artístico, estético histórico, turístico e paisagístico (artigo 5º, V, da Lei
7.347/85), possuem legitimidade ativa para o ajuizamento de ação civil pública.
214
escolha das entidades contratadas, com recursos públicos, pelo Terceiro Setor. É o que
ocorreu na ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em Ourinhos –
SP para determinar que a Santa Casa e o Município de Chavantes – SP realizassem
procedimento licitatório para contratação de serviços hospitalares, remunerados com
recursos púbicos, prestados por terceiros no referido hospital. 111
No desempenho da atribuição constitucional de zelar pelo respeito dos
serviços de relevância pública aos direitos constitucionais, o Ministério Público Federal
em Pernambuco ajuizou ação civil pública para determinar que a Universidade Federal
de Pernambuco e a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da referida universidade
não cobrassem quaisquer importâncias dos seus alunos como condição de inscrição e
frequência nos seus cursos de especialização. 112
Outra destacada atuação judicial do Ministério Público, por meio do
ajuizamento de ações civis públicas, é o combate de terceirizações ilegais de hospitais
por meio de organizações sociais e entidades do Terceiro Setor.
No Pará, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública, em
dezembro de 2005, questionando a transferência da administração do Hospital
Metropolitano para a Associação Cultural e Educacional do Pará – ACEPA. 113
Em abril de 2006, a Procuradoria da República no Estado de São
111
A ação foi ajuizada na 1ª Vara Federal de Ourinhos – SP, com base na representação n°
1.34.024.000133/2006-78 e tramitou sob o nº 0001908-50.2008.4.03.6125. O pedido foi julgado
improcedente e o MPF recorreu. Atualmente, o processo encontra-se no TRF da 3ª Região para
julgamento de apelação.
112
Ação civil pública nº 2003.83.00.014926-4, distribuída à 10ª Vara Federal de Pernambuco – PE,
instruída com base no Procedimento Administrativo nº 1.26.000.000915/2003-12.
113
A ação foi instruída com o Procedimento Administrativo nº 1.23.000.001945/2005-10 e tombada
sob o nº 2005.39.00.009955-0, tramitando na 1ª Vara Federal em Belém – PA. Foram formulados os
seguintes pedidos: declaração da nulidade do contrato celebrado; determinação para que o Estado do Pará
se abstivesse de conceder, por qualquer meio, a gerência do Hospital Metropolitano a pessoas jurídicas de
direito privado, ainda que sem fins lucrativos e qualificadas como organizações sociais; determinação
para que a União não transferisse recursos do Sistema Único de Saúde para pagamento de ações e
serviços de saúde realizados por pessoas jurídicas de direito privado que se encontrassem eventualmente
na administração do Hospital Metropolitano, bem como que fiscalizasse a verba federal repassada pelo
SUS ao Estado do Pará, evitando que a administração estadual a empregasse, mesmo que em parte, em tal
finalidade. O processo foi sentenciado em 20 de março de 2010, nos seguintes termos: “Ante o exposto:
a) não conheço do pedido de condenação do Estado do Pará a não conceder, por qualquer meio, a
gerência do Hospital Metropolitano a pessoas jurídicas de direito privado, ainda que sem fins lucrativos e
qualificadas como organizações sociais. b) não conheço do pedido de condenação da União a não
transferir recursos do Sistema Único de Saúde para pagamento de ações e serviços de saúde realizados
por pessoas jurídicas de direito privado que se encontrem eventualmente na administração do Hospital
Metropolitano, bem como a fiscalizar a verba federal repassada pelo SUS ao Estado do Pará. c) julgo
extinto o processo sem resolução do mérito em relação à UNIFESP, nos termos do art. 267, VI, do Código
de Processo Civil. d) no mais, julgo improcedentes os pedidos. Sem condenação em honorários, já que
não houve litigância temerária por parte do MPF. Custas ex lege. Oficie-se ao relator do agravo de
instrumento noticiado nos autos, comunicando-lhe a prolação da sentença”. O processo, distribuído ao
Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, encontra-se pendente de julgamento dos recursos
interpostos contra a sentença no TRF da 1ª Região.
215
Paulo ajuizou ação civil pública requerendo, dentre outros pedidos, que o Município de
São Paulo se abstivesse de qualificar entidades privadas como Organizações Sociais
para fins de atuação no SUS e se abstivesse de firmar contratos de gestão com essas
entidades para a prestação de serviços públicos de saúde. 114
Naquele mesmo ano, o Ministério Público Federal em São José dos
Campos – SP ajuizou ação civil pública questionando o Decreto Municipal 12.230, de
24 de julho de 2006, no qual o Poder Executivo do Município de São José dos Campos
qualificou como Organização Social a Associação Paulista para o Desenvolvimento da
Medicina (SPDM) e celebrou com a entidade contrato de gestão para a administração do
Hospital Municipal “Dr. José de Carvalho Florence”. 115
Mais recentemente, os Ministérios Públicos Federal (MPF), do
Trabalho (MPT) e Estadual (MPE-RJ) ajuizaram conjuntamente ação civil pública
contestando a terceirização do Hospital Alcides Carneiro, repassado pelo Município de
Petrópolis – RJ ao Serviço Social Autônomo Hospital Alcides Carneiro (SEHAC). 116
5. Ação de improbidade administrativa
A Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, é importante instrumento legal de
combate à corrupção no Brasil. Chamada de Lei da Improbidade Administrativa, prevê
graves sanções para a prática de atos que importam enriquecimento ilícito (artigo 9º),
causam prejuízo ao erário (artigo 10) ou atentam contra os princípios da administração
pública (artigo 11). A aplicação das sanções por atos de improbidade administrativa
114
Foram formulados também pedidos para que o Município reassumisse a prestação do serviço
público de saúde em todos os estabelecimentos próprios que foram objeto de repasse a Organizações
Sociais, se abstivesse de ceder servidores e bens públicos para tais entidades, bem como para que a União
controlasse e fiscalizasse a gestão do SUS no Município de São Paulo, notificando o Município a cessar
tal conduta e suspendendo o repasse de recursos ao Fundo Nacional de Saúde após o prazo de noventa
dias da notificação. A ação tramitou na 3ª Vara Federal em São Paulo sob o nº 000908781.2006.4.03.6100 e todos os pedidos formulados pelo MPF, com exceção do pedido de suspensão
imediata do repasse dos recursos do FNS para o Município de São Paulo, foram julgados procedentes.
Atualmente, o processo encontra-se pendente de julgamento no Tribunal Regional Federal da 3ª Região
(Processo nº 0009087-81.2006.4.03.6100).
115
Dentre os pedidos formulados, destacam-se a determinação para que o Município de São José dos
Campos reassumisse, em prazo certo, a gestão e a execução de ações e serviços de saúde e para que se
abstivesse de celebrar convênios, termos de parceria, ajustes, contratos de gestão e outros negócios
jurídicos ou atos administrativos congêneres que tivessem por objeto a transferência integral a pessoas
jurídicas de direito privado, qualificadas ou não como organizações sociais, da gestão e execução de
ações e serviços de saúde no referido hospital. O processo tramita na 1ª Vara Federal em São José dos
Campos – SP sob o nº 2006.61.03.006530-9. A liminar foi indeferida em 1ª instância. O agravo de
instrumento interposto pelo MPF foi improvido pelo TRF da 3ª Região (processo nº 2006.03.00.1189724). Ainda não houve sentença em primeira instância.
116
A ação civil pública foi ajuizada em 2010. O processo tramita na 2ª Vara Federal em Petrópolis –
RJ sob o nº 2010.5106001002-5. Foi concedida antecipação dos efeitos da tutela, determinando-se que o
Município de Petrópolis, em até três meses, retomasse a administração do hospital.
216
independe da efetiva ocorrência de dano patrimônio público, salvo quanto à pena de
ressarcimento, e da aprovação ou rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou
pelo Tribunal ou Conselho de Contas (artigo 21).
O Ministério Público possui a função constitucional de proteger o
patrimônio público e social (artigo 127, III). Nesse sentido, é uníssono o
reconhecimento jurisprudencial da atribuição do parquet em ajuizar ações de
improbidade administrativa. 117
Apesar de promulgada em época em que o Terceiro Setor ainda não
tinha o enorme desenvolvimento hoje observado no país, os dispositivos legais da
referida lei são suficientemente abrangentes para punir os atos de improbidade
administrativa praticados pelos agentes que se utilizam ilegalmente dos recursos
públicos repassados às entidades privadas.
De acordo com a Lei 8.429/92, as entidades que compõem o Terceiro
Setor podem ser atingidas pela prática de atos de improbidade administrativa em duas
situações diferentes.
A primeira ocorre quando o erário houver concorrido para a criação ou
custeio com mais de 50% do patrimônio ou da receita anual da entidade do Terceiro
Setor, na forma do caput do artigo 1º da Lei 8.429/92. A sanção patrimonial é ampla
nesse caso.
A segunda ocorre em relação aos atos praticados contra o patrimônio
de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão
público, bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou
concorra com menos de 50% do patrimônio ou da receita anual (artigo 1º, parágrafo
único, da Lei 8.429/92). Nessa segunda situação, a sanção patrimonial limita-se à
repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.
Segundo
Emerson
Garcia
e
Rogério
Pacheco
Alves,
a
responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa contra entidades
privadas pressupõe que os benefícios, incentivos e subvenções estejam associados à
consecução de determinado fim de interesse público, individualizado pelas
circunstâncias do caso concreto. 118
117
Precedente do STF: AI 545466 ED, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em
31/05/2011, DJe-117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011 EMENT VOL-02547-01 PP-00140.
Súmula 329 do STJ: O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do
patrimônio público.
118
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 3ª ed. rev. ampl. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 196. Os autores argumentam que, para fins de incidência da Lei
217
É justamente o que ocorre com o repasse de recursos públicos nas
parcerias estabelecidas com o Terceiro Setor, por meio de convênios, contratos de
repasse, contratos de gestão ou termos de parceria, os quais estão vinculados à prestação
de serviços de relevância pública. Com efeito, para a qualificação da entidade do
Terceiro Setor como sujeito passivo do ato de improbidade administrativa, importa
verificar, se, no caso concreto, houve a utilização de recursos públicos oriundos dos
meios econômicos de fomento: subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício,
de órgão público (infra, I-4). Nesses casos, as entidades do Terceiro Setor são
consideradas pela lei como sujeito passivo do ato de improbidade administrativa, ou
seja, são titulares do bem jurídico ameaçado ou violado pela conduta ilícita do agente.
A delimitação legal do sujeito ativo, ou seja, aquele que pratica o ato
ilícito qualificado como ato de improbidade administrativa, é ainda mais ampla e inclui
os funcionários e dirigentes das entidades do Terceiro Setor. De acordo com a norma de
extensão estabelecida na Lei de Improbidade, todo aquele que exercer, ainda que
transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação
ou qualquer outra forma de investimento ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou
função nas entidades mencionadas no artigo 1º da Lei 8.429/92, são considerados
agentes públicos. Citem-se, pela precisão dos argumentos, as palavras de Emerson
Garcia e Rogério Pacheco Alves: 119
Assim, coexistem lado a lado, estando sujeitos às sanções previstas na
Lei 8.429/92, os agentes que exerçam atividade junto à administração direta
ou indireta (perspectiva funcional), e aqueles que não possuam qualquer
vínculo com o Poder Público, exercendo atividade eminentemente privada
junto a entidades que, de qualquer modo, recebam numerário de origem
pública (perspectiva patrimonial). Como se vê, trata-se de conceito muito
mais amplo que o utilizado pelo artigo 327 do Código Penal.
Nesta linha, para os fins da Lei de Improbidade, tanto será agente
público o presidente de uma autarquia, como o proprietário de uma pequena
empresa do ramo de laticínios que tenha recebido incentivos, fiscais ou
creditícios, para desenvolver sua atividade.
Podem ser considerados agentes públicos tanto os dirigentes quanto os
funcionários, ainda que voluntários, das entidades do Terceiro Setor. Para a
responsabilização pela prática de atos ímprobos é imprescindível a condição de agente
público do funcionário do Terceiro Setor e a prática dolosa (ou culposa no caso dos atos
8.429/92, não basta que as subvenções tenham sido concedidas em caráter genérico. Se não fosse assim,
todas as microempresas e pessoas físicas isentas do imposto de renda seriam sujeitos passivos imediatos
dos atos de improbidade, o que não seria razoável e condizente com o sistema punitivo da Lei de
Improbidade.
119
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 3ª ed. rev. ampl. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 219.
218
que causam prejuízo ao erário) do ato em razão da especial condição de agente público.
Alguns exemplos ajudam a esclarecer a imputação de atos de
improbidade administrativa a funcionários das entidades do Terceiro Setor e à própria
pessoa jurídica beneficiada pelo ato.
O Ministério Público Federal em Jaú –SP ajuizou ação de improbidade
administrativa contra o Prefeito Municipal de Itapuí – SP e os dirigentes da OSCIP
Fênix do Brasil – Gestão e Desenvolvimento de Políticas Públicas e Sociais, em razão
de irregularidades constatadas na contratação e execução do termo de parceria firmado
para promoção, desenvolvimento, implantação e a execução do Programa de Saúde da
Família e Programa da Saúde Bucal no referido município.120 A representante legal e o
gestor da OSCIP foram considerados agentes públicos por exercerem atividades de
interesse público e gerenciaram parte do erário, figurando no pólo passivo da ação
proposta.
Em outro exemplo, os responsáveis pelo gerenciamento e execução do
Programa de Alfabetização Solidária perante a Faculdade Integrada de Santa Fé do Sul
(FISA/FUNEC) foram considerados agentes públicos nos termos do artigo 2º da Lei
8.429/92.121 Os agentes atuavam como longa manus da Associação de Apoio ao
Programa de Alfabetização Solidária (AAPAS), entidade privada de interesse público,
sem fins lucrativos, que ostentava o título de utilidade pública federal e possuía mais da
metade da receita anual oriunda de recursos públicos. O MPF demonstrou que os réus
atuavam, em nome da entidade privada, como gestores e responsáveis pelos pagamentos
realizados com os recursos públicos na execução do Programa de Albetização Solidária.
Quando a entidade do Terceiro Setor se beneficiar dos atos de
improbidade administrativa praticados por outrem, incorporando ao seu patrimônio bens
desviados pelo agente ímprobo, sujeitar-se-á também às sanções previstas na Lei
8.429/92 compatíveis com as suas peculiaridades.122 A pessoa jurídica poderá, assim,
120
A ação foi ajuizada com base no Procedimento Administrativo nº 1.34.022.000152/2008-86 e
tramita na 1ª Vara Federal em Jaú – SP sob o nº 0001850-03.2010.4.03.6117. Dentre as irregularidades
apontadas pelo MPF na ação, destacam-se as seguintes: a contratação da OSCIP sem a observância dos
princípios da publicidade e competitividade; constatação de que as equipes do Programa de Saúde da
Família estavam incompletas; ausência de prestação de contas; ausência de comprovante de despesa no
valor de R$ 532.194,46 (quinhentos e trinta e dois mil, cento e noventa e quatro reais e quarenta e seis
centavos).
121
A ação tramita na 1ª Vara Federal em Jales – SP sob o nº 0000368-38.2006.4.03.6124. O MPF
demonstrou que foram desviados, em proveito particular, recursos públicos que deveriam ser utilizados na
execução do programa, por meio do superfaturamento de notas fiscais de restaurantes e hotéis. Os
recursos desviados tinham origem em convênios firmados entre a AAPAS e o Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), sujeitos à posterior prestação de contas ao ente federal.
122
Diz o artigo 3º da Lei 8.429/92: “as disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que,
mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se
219
sofrer as penas de perda dos valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, multa civil,
proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais
ou creditícios, direta ou indiretamente, bem como ser obrigada a reparar os danos
causados.
Como exemplo, cite-se a ação de improbidade administrativa na qual
o Ministério Público Federal em São José dos Campos – SP imputou diretamente a
prática de atos de improbidade administrativa ao Centro de Gestão e Estudos
Estratégicos – CGEE, associação civil qualificada como Organização Social, e ao sócio
fundador da entidade. A pessoa jurídica foi beneficiária imediata do ato de improbidade,
não vítima deste, na medida em que foi a responsável direta pela decisão institucional
de subcontratação ilegal apontada pelo MPF na petição inicial. O pedido formulado
nessa ação contra a pessoa jurídica, porém, restringiu-se à aplicação de multa civil. 123
Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio
de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50 do Código Civil), poderá ser
desconsiderada a personalidade jurídica da entidade do Terceiro Setor para se buscar a
reparação dos prejuízos causados diretamente do patrimônio dos administradores da
associação ou fundação civil.
Uma última observação se faz necessária, quanto à prescrição. O
artigo 23 da Lei 8.429/92 estabelece o prazo prescricional de 5 anos para a propositura
de ação de improbidade administrativa contados do término do exercício do mandato,
de cargo em comissão ou de função de confiança (inciso I) ou então a propositura da
ação deve ocorrer dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas
disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício
de cargo efetivo ou emprego (inciso II).
O amplo conceito de agente público adotado no artigo 2º da Lei
8.429/92 não encontra perfeita simetria nas hipóteses de prescrição previstas no artigo
23 da mesma lei. Como se opera a prescrição de atos de improbidade administrativa
praticados por dirigente ou funcionário de entidade do Terceiro Setor?
A princípio, deve-se ter em mente que os dirigentes e funcionários do
Terceiro Setor são empregados celetistas, isto é, regidos pelas normas previstas na
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (Decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943).
Relembre-se que a lei permite a remuneração dos dirigentes das Organizações Sociais e
beneficie sob qualquer forma direta ou indireta” (destacou-se).
123
A ação foi proposta com base no Inquérito Civil nº 1.34.014.000059/2008-71 e tramita na 3ª Vara
Federal em São José dos Campos sob o nº 0008469-88.2010.4.03.6103. Ainda não houve sentença.
220
das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (mas limitadas ao valor bruto
da remuneração dos servidores do Poder Executivo Federal para o gozo de benefícios
fiscais, nos termos do artigo 34, parágrafo único da Lei 10.637/02), contudo veda a
remuneração dos cargos da diretoria, conselhos fiscais, deliberativos ou consultivos das
entidades declaradas de utilidade pública federal (artigo 1º, “c”, da Lei 91/35).
Pode haver, portanto, gerente ou funcionário de entidade do Terceiro
Setor ocupante de função de confiança na entidade, nos termos do artigo 62 da CLT124,
ou, ainda, regulamento específico de uma Organização Social ou OSCIP que preveja
prazos próprios para apuração e punição dos empregados das respectivas entidades.
Indiferentemente da ocorrência ou não dessas circunstâncias, sempre que o funcionário
do Terceiro Setor praticar o ato de improbidade administrativo em concurso com um
ocupante de cargo efetivo ou emprego público, sujeitar-se-á ao mesmo prescricional
aplicável ao servidor público que também praticou o ato.
Há, pois, uma regra geral para contagem do prazo prescricional para
punição dos agentes e da própria pessoa jurídica do Terceiro Setor beneficiada pela
prática de atos de improbidade administrativa: o particular, pessoa jurídica (art. 3º da
Lei 8.429/92) ou não que se relaciona com agentes públicos na prática de ilícitos
caracterizados como atos de improbidade administrativa se submete às regras de
prescrição a estes aplicáveis.125 Será aplicada, portanto, a regra prevista no inciso I ou II
do artigo 23 da Lei 8.429/92, conforme o caso concreto.
Em relação ao inciso II do artigo 23 da Lei de Improbidade, registrese que no âmbito federal o prazo de prescrição da falta disciplinar praticado por servidor
público começará a contar do dia em que o fato se tornou conhecido, aplicando-se os
prazos de prescrição da lei penal quando as infrações disciplinares forem capituladas
também como crime (artigo 142, §§1º e 2º da Lei 8.112/90). 126
Logo, se o ato de improbidade administrativa que causou prejuízo ao
124
De acordo com o artigo 62 da CLT, ocupam função de confiança os gerentes, assim considerados
os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto no referido artigo, os
diretores e chefes de departamento ou filial, quando o salário do cargo de confiança, compreendendo a
gratificação de função, se houver, for igual ou superior ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de
40% (quarenta por cento).
125
Há precedentes do STJ nesse sentido: REsp 965.340/AM, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª Turma,
julgado em 25/09/2007, DJ 08/10/2007, p. 256; REsp 1038762/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª
Turma, unânime, DJe de 31/08/2009; e REsp 1087855/PR, Rel. Ministro Francisco Falcão, 1ª Turma,
unânime, DJe de 11/03/2009.
126
Há diversos precedentes do STJ nesse sentido: MS 10.075/DF, Rel. Ministro Paulo Medina,
Terceira Seção, julgado em 11/05/2005, DJ 01/08/2005, p. 317; REsp 1106657/SC, Rel. Ministro Mauro
Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 17/08/2010, DJe 20/09/2010; MS 8.817/DF, Rel. Ministro
Paulo Gallotti, Rel. p/ Acórdão Ministro Paulo Medina, 3ª Seção, julgado em 13/12/2004, DJ 22/05/2006,
p. 145 .
221
erário federal for também tipificado como peculato, por exemplo, o prazo de prescrição
para ajuizamento da ação de improbidade será de 16 anos, contado da data de ciência do
fato, conforme interpretação sistemática do artigo 23, II, da Lei 8.429/92, artigo 142, §§
1º e 2º da Lei 8.112/90 e artigos 312 e 109, II, ambos do Código Penal. Esse mesmo
prazo prescricional será aplicado também ao funcionário da entidade do Terceiro Setor
co-autor do ato improbidade ou à própria pessoa jurídica beneficiada pelo ato ímprobo.
Nos casos em que não houver coparticipação de servidores públicos
nos atos de improbidade administrativa praticados por funcionários de entidades do
Terceiro Setor, deverá ser aplicada, por analogia, a regra do artigo 23, II, da Lei
8.429/92, preenchendo-se a moldura legal mediante a aplicação do prazo prescricional
previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão de acordo
com o regime jurídico dos servidores públicos do correspondente ente da administração
direta (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) que repassou os recursos
públicos à entidade privada sem fins lucrativos. 127
Cite-se o exemplo do dirigente de uma OSCIP parceira da União, que
receba propina de terceiro como condição prévia para celebrar contrato de prestação de
serviços com determinada empresa privada, sem que haja qualquer participação de
servidor público em tal fato. Como a conduta praticada configura tanto ato de
improbidade (artigo 9º, I, da Lei 8.429/92) quanto crime de corrupção ativa (artigo 317
do Código Penal), aplicar-se-á o prazo prescricional de 16 anos previsto na lei penal,
conforme interpretação sistemática do artigo 23, II, da Lei 8.429/92, artigo 142, §2º da
Lei 8.112/90 e artigos 317 e 109, II, ambos do Código Penal. Perceba-se: o estatuto dos
servidores públicos federais foi aplicado no referido exemplo, para o cálculo da
prescrição, porque a parceria foi estabelecida com a União.
Se, no exemplo acima, a parceria tivesse sido estabelecida com o
Estado de São Paulo, a prescrição igualmente ocorreria no prazo em abstrato da pena
criminal, conforme o artigo 261, III, da Lei Estadual 10.261, de 28 de outubro de 1968,
na redação dada pelo art. 1°, III da Lei Complementar n. 942, de 6.6.2003. Mas nesse
exemplo aplicar-se-ia o estatuto dos servidores públicos do Estado de São Paulo, ente
que estabeleceu a parceria com o Terceiro Setor.
127
Em sentido semelhante, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves defendem a aplicação do artigo
23, II, da Lei 8.429/92 àqueles agentes que mantém vínculo empregatício com o sujeito passivo do ato de
improbidade, utilizando-se a normatização do regime jurídico dos servidores públicos da correspondente
administração direta, estendendo tal raciocínio também aos empregados das empresas públicas e
sociedades de economia mista (Improbidade administrativa. 3ª ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 206).
222
Importa, pois, verificar o regime jurídico dos servidores públicos da
Administração Direta que fomentou a atividade da entidade do Terceiro Setor para o
cálculo do prazo prescricional para ajuizamento da ação contra o funcionário ou
dirigente privado que praticou o ato de improbidade administrativa, nos termos do
artigo 23, II, da Lei 8.429/92.
Por fim, diante do disposto no artigo 37, §5º da Constituição Federal,
as ações de ressarcimento dos danos causados ao erário são imprescritíveis, conforme
vem acertadamente decidindo o Supremo Tribunal Federal.128 Boa parte da doutrina
também acolhe a tese da imprescritibilidade dessas ações. 129
6. Ação penal e crimes relacionados ao Terceiro Setor
Frequentemente, dirigentes e funcionários de entidades do Terceiro
Setor são acusados de praticar diversos crimes contra a Administração Pública, em
especial, o crime de desviar, em proveito próprio, recursos públicos recebidos das
parcerias estabelecidas com o Poder Público (peculato – artigo 312 do Código Penal).
Com efeito, os funcionários e dirigentes das entidades do Terceiro
Setor podem ser considerados funcionários públicos para fins penais, nos termos do
artigo 327 do Código Penal:
Funcionário público
Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem,
embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou
função pública.
§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou
função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de
128
Diz a Constituição Federal que a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados
por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de
ressarcimento. Há precedentes do STF favoráveis à tese da imprescritibilidade dessas ações: RE 608831
AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 08/06/2010, DJe-116 DIVULG 24-062010 PUBLIC 25-06-2010 EMENT VOL-02407-06 PP-01245; MS 26210, Relator(a): Min. Ricardo
Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2008, DJe-192 DIVULG 09-10-2008 PUBLIC 10-102008 EMENT VOL-02336-01 PP-00170 RTJ VOL-00207-02 PP-00634 RT v. 98, n. 879, 2009, p. 170176 RF v. 104, n. 400, 2008, p. 351-358 LEXSTF v. 31, n. 361, 2009, p. 148-159. Contudo, a questão
ainda não se pacificou na jurisprudência pátria.
129
Por todos, vide: RAMOS, André de Carvalho (coordenador). A imprescritibilidade da ação de
ressarcimento por danos ao erário. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2011. Na
obra são citados os seguintes autores favoráveis à tese da imprescritibidade: José Afonso da Silva, Maria
Sylvia Zanella di Pietro, Celso Antônio Bandeira de Mello, Sérgio Monteiro Medeiros, Wallace Paiva
Martins Júnior, Marcelo Figueiredo, José Adércio Leite Sampaio, José Jairo Gomes, Edilson Pereira
Nobre Júnior, Waldo Fazzio Júnior, Diógenes Gasparini, Celso Bastos, Alexandre de Moraes, Emerson
Garcia e Rogério Pacheco Alves e Fábio Medina Osório. A favor da prescritibilidade, são citados Ada
Pellegrini Grinover, Rita Andréa Rehem Almeida Tourinho, Clito Fornaciari Júnior e Elody Nassar.
Atualmente, Bandeira de Mello defende a tese da prescritibilidade no prazo de cinco anos, quando não
houver má-fé, e dez anos no caso de má-fé. Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 1081.
223
serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da
Administração Pública. (Incluído pela Lei 9.983/2000).
§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes
previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de
função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta,
sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo
poder público. (Incluído pela Lei 6.799/80). (Destacou-se)
O ponto de partida para a correta interpretação desse artigo é o
significado de entidade paraestatal para fins penais, embora, registre-se, não haja
definição legal nem consenso na doutrina administrativa quanto ao alcance dessa
expressão no direito brasileiro.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello e Marçal Justen Filho, entidade
paraestatal significa o conjunto de entidades associativas encarregadas do desempenho
de serviços sociais autônomos, tais como o Serviço Social da Indústria (SESI), o
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Serviço Social do Comércio
(SESC). 130
José dos Santos Carvalho Filho, por outro lado, entende que as
entidades paraestatais são aquelas pessoa jurídicas que atuam ao lado e em colaboração
com o Estado: as pessoas da administração indireta e os serviços sociais autônomos. O
autor critica a utilização da expressão no artigo 327, § 1º do Código Penal, em razão da
completa ausência de precisão desse conceito. 131
Hely Lopes Meirelles considera como entidades paraestatais as
pessoas jurídicas de Direito Privado que, por lei, são autorizadas a prestar serviços ou
realizar atividades de interesse coletivo ou público, mas não exclusivos do Estado,
como os serviços sociais autônomos e as organizações sociais. 132
Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende que a expressão entidade
paraestatal contida no artigo 327, §1º, do Código Penal, deve abranger as entidades de
direito privado que integram a Administração Indireta (empresas estatais de todos os
tipos e fundações de direito privado), bem como os serviços sociais autônomos, as
Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
A partir da interpretação sistemática do próprio artigo 327, vê-se que o
Código Penal adotou, para fins penais, a concepção ampla de entidade paraestatal,
130
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 163. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª ed. rev. e atual.
Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 291.
131
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. 360-361.
132
MEIRELLES, Hely Lopes. Direto Administrativo Brasileiro. 26ª edição, São Paulo: Malheiros,
2001, p. 61-62.
224
englobando os serviços sociais autônomos e os entes da Administração Indireta. É que o
§2º do dispositivo estabeleceu causa específica de aumento de pena quando os autores
dos crimes forem ocupantes de cargos em comissão ou função de direção ou
assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista,
empresa pública ou fundação instituída pelo poder público, ou seja, expressamente
considerou funcionário público para fins penais quem trabalha nessas entidades. Nesse
sentido é a lição de Alberto Silva Franco e Rui Stocco, in verbis133:
O acréscimo do §2º ao art. 327 tem o mérito de pôr fim a antiga
dissensão jurisprudencial em torno da definição de funcionário público para
fins penais.
Com o advento da Lei 6.799/80, consideram-se funcionários públicos,
enquanto sujeitos ativos de crimes, não só as pessoas jurídicas pertencentes à
Administração Direta e às autarquias, mas, também, os funcionários de
entidades paraestatais, de que são espécies as empresas públicas, as
sociedades de economia mista, os serviços sociais autônomos e as fundações
não instituídas pelo Poder Público (privadas).
A ausência de definição legal da expressão e a absoluta falta de
consenso doutrinário quanto ao seu alcance demonstram o equívoco da utilização do
conceito de entidade paraestatal pelo Código Penal. A doutrina administrativa, como
visto, vem admitindo a inclusão das entidades do Terceiro Setor, em especial as
Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, no
conceito de entidade paraestatal. Mas as entidades do Terceiro Setor devem ser
consideradas entidades paraestatais?
Ora, mesmo se adotada a interpretação mais alargada da expressão
entidade paraestatal, utilizada pelo Código Penal – que engloba os serviços sociais
autônomos, as sociedades de economia mista, as empresas públicas e as fundações
instituídas pelo Poder Público – não há como se enquadrar as entidades do Terceiro
Setor nesse conceito, para fins penais, por pelo menos duas razões.
Primeira: o regime jurídico das entidades do Terceiro Setor (supra, IV4.3), embora se assemelhe ligeiramente ao dos serviços sociais autônomos, difere por
completo do das demais entidades da Administração Indireta, também consideradas
paraestatais. Se já não é adequada a utilização da expressão para agrupar, sob o mesmo
rótulo, os serviços sociais autônomos e as entidades da Administração Indireta, seria
ainda mais equivocado inserir também o Terceiro Setor nessa classificação. São
completamente diferentes os regimes jurídicos, por exemplo, do SESI e de uma empresa
133
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação: doutrina e
jurisprudência. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 1530.
225
pública, e ainda mais dissonantes das normas que regem uma OSCIP ou uma entidade
sem fins lucrativos conveniada com o Poder Público. Ou seja: não há qualquer utilidade
e somente causaria mais confusão a inclusão das entidades do Terceiro Setor sob o
conceito de entidades paraestatais. 134
Segunda: a lei penal prevê expressamente a equiparação dos
funcionários do Terceiro Setor a servidores púbicos ao se referir a quem trabalha para
empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade
típica da Administração Pública (artigo 327, §2º, CP). Perceba-se: na época de
promulgação da Lei 9.983/2000, que alterou o artigo 327 do Código Penal, já existiam
as leis das Organizações Sociais e das OSCIPs, que não foram expressamente tratadas
pela novel lei penal. Assim, o legislador se referiu ao Terceiro Setor quando mencionou
as prestadoras de serviço contratadas ou conveniadas para execução de atividade típica
da Administração e não quando utilizou o signo entidade paraestatal. Explica-se.
A utilização pela lei penal da expressão empresa refere-se às pessoas
jurídicas de direito privado com e sem finalidades lucrativas, abrangendo inclusive as
associações e fundações que compõem o Terceiro Setor. Não se trata, aqui, de emprego
da analogia in malam partem no Direito Penal: quando da promulgação da Lei 9.983,
em 14 de julho de 2000, estava em vigor o Código Civil de 1916, que se utilizava da
mesma denominação de sociedade para qualificar tanto as que possuíam finalidades
civis (religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade
pública e as fundações) quanto as sociedades mercantis (artigo 16, I e II, do CC/1916).
Não há dúvida, portanto, que o emprego da expressão empresa, no
artigo 327, §2º, do Código Penal, refere-se também às pessoas jurídicas sem fins
lucrativos.
Ademais,
perceba-se:
não
seria
razoável,
por
exemplo,
responsabilizar-se penalmente o dirigente de um hospital particular ou de um hospital
publico – ambos considerados funcionários públicos para fins penais – pelo desvio de
recursos públicos (tipificado como crime de peculato, artigo 312 do CP), e, nas mesmas
condições, não se considerar como funcionário público o dirigente de uma Organização
Social que preste exatamente os mesmos serviços de saúde.
134
Nesse sentido é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “um nomem juris só pode
corresponder a um signo breve para nominar coisas juridicamente equiparáveis pelos princípios e normas
que os regulem. Por isso é inaceitável colocar sob um divisor comum, entidades da administração indireta
de par com sujeitos alheios a ela.” In: Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 163.
226
Relembre-se a noção de Terceiro Setor exposta neste trabalho:
conjunto de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, beneficiadas pela
atividade administrativa de fomento, que prestam serviços de relevância pública. Ora, os
serviços de relevância pública constituem-se evidentemente em atividades típicas da
Administração Pública, uma vez que podem ser prestados diretamente pelo Poder
Público no regime jurídico dos serviços públicos. Além disso, os convênios, contratos
de repasse, contratos de gestão e termos de parceria possuem natureza convenial.
O enquadramento legal dos funcionários do Terceiro Setor como
funcionários públicos, para fins penais, é perfeito: ainda que não se admita a
interpretação proposta quanto ao alcance da expressão empresa utilizada pela lei penal
ou mesmo quando a entidade privada não for contratada ou conveniada da
Administração, em todos os casos de prestação de serviços de relevância pública haverá
o desempenho de verdadeira função pública pelos funcionários do Terceiro Setor, os
quais serão considerados funcionários públicos pelo próprio caput do artigo 327 do
Código Penal.
A correta exegese do referido dispositivo legal indicará ao intérprete
os casos em que os funcionários das entidades privadas sem fins lucrativos serão
qualificados como funcionários públicos para fins penais. A consequência jurídica é que
os funcionários das entidades do Terceiro Setor qualificados como funcionários públicos
podem ser responsabilizados como sujeitos ativos dos crimes previstos no Título XI do
Código Penal, que trata dos crimes contra a Administração Pública (artigos 312 a 326).
Passa-se, agora, à rápida análise de alguns dos crimes mais comuns
praticados pelos dirigentes e empregados de entidades do Terceiro Setor.
Pratica o crime de peculato o funcionário da entidade do Terceiro
Setor que se apropriar ou desviar em proveito próprio ou alheio os recursos públicos
recebidos para a realização de atividades de relevância pública (artigo 312 do Código
Penal). O verbo núcleo apropriar deve ser entendido no sentido de tomar como
propriedade, tomar para si, apodera-se indevidamente dos recursos públicos. Aqui, o
agente inverte o título da posse, agindo como se fosse dono do dinheiro ou bem móvel
recebido, valendo-se da liberdade desvigiada que possuía sobre a coisa em virtude da
parceria estabelecida com o Poder Público.135 É a hipótese mais comum desse crime,
diversas vezes praticado por funcionários do Terceiro Setor que gerenciam recursos
públicos e se aproveitam das deficiências na fiscalização para praticar a conduta descrita
135
GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 4ª ed. Niterói, RJ: Editora Impetus, 2010, p. 818-819.
227
no tipo penal. Já no desvio dos recursos públicos o agente não atua com animus rem sibi
habendi, mas desvia o dinheiro ou bem em proveito próprio ou alheio.
A ausência de realização de procedimento de competição para escolha
das empresas contratadas pelo Terceiro Setor, com dinheiro público, pode dar azo a que
funcionários inescrupulosos pratiquem o crime de corrupção passiva (CP, artigo 327),
solicitando ou recebendo propina de empresários em troca da contratação de
determinada entidade privada. No caso, o enquadramento típico se dá quando o
funcionário da entidade do Terceiro Setor solicita ou recebe vantagem indevida, para si
ou para outrem, direta ou indiretamente, em razão da função pública exercida, ou aceita
promessa de tal vantagem.
Na medida em que o controle da execução e prestação de contas dos
convênios, contratos de repasse, contratos de gestão e termos de parceria passe a ser
realizado através da inserção de dados no Sistema de Gestão de Convênios e Contratos
de Repasse – SINCOV (artigo 13 do Decreto 6.170/2007), os funcionários e dirigentes
das entidades do Terceiro Setor poderão ser responsabilizados pelo crime de inserção de
dados falsos em sistema de informações, previsto no artigo 313-A do Código Penal.
Com efeito, o SINCOV é um sistema informatizado e o funcionário da
entidade com atribuição para operá-lo considerado funcionário autorizado para fins
penais. Pense-se, por exemplo, no lançamento de dados falsos no sistema que
permitissem a aprovação, indevida, da prestação de contas de determinado convênio, e
consequentemente, a celebração de um novo convênio com o Poder Público no
exercício seguinte. Se as contas não tivessem sido aprovadas, o novo convênio não
poderia ter sido celebrado136: a inserção de dados falsos, no exemplo, permitiu a
obtenção de vantagem indevida, configurando o crime previsto no artigo 313-A do
Código Penal.
Ocorre o crime de atentado contra a segurança ou funcionamento de
serviço de utilidade pública, previsto no artigo 265 do Código Penal, quando a conduta
praticada atingir serviços de relevância pública prestados pelas entidades do Terceiro
Setor?
Diz a lei que comete o crime quem atentar contra a segurança ou o
funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade
136
Diz o artigo 10, IV, da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011
que é vedada a celebração de convênios e contratos de repasse com órgão ou entidade, de direito público
ou privado, que esteja em mora, inadimplente com outros convênios ou contratos de repasse
celebrados com órgãos ou entidades da Administração Pública Federal, ou irregular em qualquer das
exigências da referida Portaria.
228
pública. Comentado o artigo 265 do Código Penal, Júlio Fabbrini Mirabete sustenta que
os serviços de gás, limpeza pública e assistência hospitalar também são serviços de
utilidade pública.137 Há decisão jurisprudencial reconhecendo a configuração do crime
contra o atendimento do INSS, pela prática das condutas de furar a fila de distribuição
de senhas e arrancá-las das mãos da funcionária que as estavam distribuindo,
impedindo, assim, que as pessoas necessitadas e que já estavam na fila há algum tempo
conseguissem obtê-las. 138
Ora, como o legislador penal utilizou a interpretação analógica para o
preenchimento do tipo penal, não há duvidas de que ocorrerá o crime quando o atentado
ocorrer contra serviços de relevância pública prestados pelas entidades do Terceiro
Setor, tais como assistência médica, hospitalar e social a adolescentes carentes e idosos,
eis que tratam-se de serviços de inegável utilidade pública.
Registre-se ainda que para a doutrina majoritária o crime em comento
é de perigo abstrato, ou seja, “o delito se consuma mesmo que no caso concreto não se
tenha verificado qualquer perigo para o bem jurídico tutelado (incolumidade pública),
sendo suficiente a simples comprovação de uma atividade finalista”. 139
O Código Eleitoral estabelece que o serviço de qualquer repartição,
federal, estadual, municipal, autarquia, fundação do Estado, sociedade de economia
mista, entidade mantida ou subvencionada pelo poder público, ou que realiza contrato
com este, inclusive o respectivo prédio e suas dependências não poderá ser utilizado
para beneficiar partido ou organização de caráter político, sobe pena de detenção de até
seis meses e pagamento de 30 a 60 dias-multa (artigos 346 e 377 da Lei 4.737/65).
Nesse tipo penal, a norma realça a preocupação do legislador em impedir a utilização
das entidades do Terceiro Setor para fins eleitoreiros.
Dentre os inúmeros exemplos de crimes praticados por funcionários
de entidades do Terceiro Setor, cite-se somente o ocorrido durante o período final de
redação desta dissertação. Trata-se da denominada “Operação Voucher”, deflagrada pela
Polícia Federal, que desarticulou suposto esquema de desvio de recursos públicos do
Ministério do Turismo por meio de um convênio de R$ 4,45 milhões celebrado com o
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento de Infraestrutura Sustentável (IBRASI),
organização sem fins lucrativos. A finalidade legítima do convênio era qualificar 1,9 mil
137
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 1686.
Apelação Crime Nº 70011262623, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul – RS, Relator: José Eugênio Tedesco, Julgado em 14/07/2005.
139
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação: doutrina e
jurisprudência. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 1276.
138
229
profissionais de turismo no Amapá, mas os recursos públicos foram repassados pelo
IBRASI a empresas de fachada e desviados em proveito particular. As investigações
apontaram a prática de crimes de formação de quadrilha, fraude em licitações e
peculato. 140
O problema de apropriação e desvio criminosos dos recursos
repassados ao Terceiro Setor é gravíssimo e vem sendo objeto de preocupação da
Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA,
criada em 2003, como forma de contribuir para o combate sistemático à lavagem de
dinheiro e corrupção no Brasil.
A ENCCLA consiste na articulação de diversos órgãos dos três
poderes da República, Ministérios Públicos e da sociedade civil que atuam, direta ou
indiretamente, na prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, com o
objetivo de identificar e propor ajustes aos pontos falhos do sistema antilavagem e
anticorrupção.
Dentre as metas traçadas pelo ENCCLA em 2010, destacam-se as
ações 16 e 19, que tratam, respectivamente, da análise da corrupção associada a serviços
terceirizados no âmbito estadual e da análise dos pontos de fragilidade e
vulnerabilidades nas transferências voluntárias de recursos públicos. 141
Ainda há um longo caminho a ser percorrido no fortalecimento do
controle dos recursos públicos repassados ao Terceiro Setor. A percepção da existência e
da dimensão do problema é apenas o primeiro passo, embora muito importante, para o
combate efetivo da corrupção que assalta os recursos públicos repassados à iniciativa
privada.
140
Foram apuradas diversas irregularidades: direcionamento de contratações para empresas que
faziam parte do esquema, ausência de preços de referência, não execução ou execução parcial dos
serviços, pagamentos antecipados, fraudes nos comprovantes de despesas e falhas na fiscalização do
convênio.
Conforme
amplamente
divulgado
na
imprensa:
<
http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/08/entenda-operacao-voucher-da-pf-que-prendeu-o-numero-2do-turismo.html# >. Acesso em: 20 ago. 2011.
141
As metas do ENCCLA podem ser conferidas no site do Ministério da Justiça.
<http://portal.mj.gov.br >. Acesso em: 20 ago. 2011.
230
CONCLUSÕES
Capítulo I – O Terceiro Setor no Brasil
1. A análise da Constituição de 1988 permite identificar o regime
jurídico próprio das entidades sem fins lucrativos que prestam serviços de relevância
pública em colaboração com o Estado, o que basta para justificar a utilização da
expressão “Terceiro Setor”, já consagrada pela doutrina majoritária. As atividades
desenvolvidas pelo Terceiro Setor, embora não possuam finalidade lucrativa, estão
inseridas no campo do setor econômico lato sensu.
1.2 A partir da moldura constitucional é possível extrair o seguinte
conceito de Terceiro Setor: conjunto de pessoas jurídicas de direito privado sem fins
lucrativos, beneficiadas pela atividade administrativa de fomento, que prestam serviços
de relevância pública.
1.3 Não integram o Terceiro Setor: os sindicatos, as cooperativas, os
partidos políticos, os cultos religiosos e igrejas e os serviços sociais autônomos. Podem
integrá-lo: as associações e fundações civis denominadas de organizações não
governamentais (ONGs), as “fundações de apoio” e as pessoas jurídicas que ostentem
os títulos jurídicos de utilidade pública federal (Lei 91/35), de organização social (Lei
9.637/98) e de organização da sociedade civil de interesse público (Lei 9.790/99), bem
como as que possuam o certificado de entidade beneficente de assistência social (Lei
12.101/09) ou o cadastro nacional de entidade ambientalista (Resolução CONAMA
292/02).
1.4 Serviço de relevância pública é a atividade de prestação de
serviços relacionados aos direitos sociais (artigo 6º, da Constituição), desenvolvida pela
iniciativa privada e submetida a regulamentação, fiscalização e controle do Poder
Público. Apesar de inserido no campo da atividade econômica lato sensu, o serviço de
relevância pública possui regime jurídico especial ou misto, eis que diferenciado do
regime jurídico que rege a exploração econômica de produtos e serviços no mercado de
consumo.
1.5 A atividade administrativa de fomento difere-se do poder de
polícia e do serviço público. No fomento, há apenas estímulo, incentivo, forma de
persuadir o particular a buscar, por si próprio, o interesse público. A atividade
administrativa de fomento do Terceiro Setor é forma de intervenção estatal indireta na
ordem social, regida pelos princípios da subsidiariedade e complementaridade.
231
As transferências voluntárias de recursos públicos para o Terceiro
Setor devem ser destinadas a entidades que complementam de forma adequada os
serviços já prestados diretamente pelo setor público, não se prestando, pois, à
terceirização de serviços públicos.
1.6 De acordo com a Constituição Federal de 1988, a implementação
dos direitos sociais, vinculados diretamente ao princípio da dignidade da pessoa
humana, é sempre protagonizada na seara estatal, seja pela prestação direta dos serviços
públicos sociais, seja pela atividade subsidiária de fomento ou, ainda, seja pelo intenso
controle público sobre os serviços de relevância pública prestados pelos particulares. O
Estado é o verdadeiro protagonista da concretização dos direitos sociais no Brasil, não
havendo que se falar em Estado mínimo.
1.7 Os atores privados não possuem uma tradição institucional de
servir o interesse público e, muitas vezes, o Poder Público é refém de interesses
privados organizados. Apesar do processo atual e acrítico de “globalização ideológica
do discurso sobre a bondade da participação privada na governação pública”, não é
necessário recorrer-se à iniciativa privada para a prestação de serviços sociais, pois a
própria Administração Pública, regida pelo princípio da eficiência, deve prestar esses
serviços de forma adequada, respeitando-se a Constituição e o princípio da legalidade.
Capítulo II – Os títulos jurídicos do Terceiro Setor
2. As entidades do Terceiro Setor são associações ou fundações
constituídas nos termos da lei civil e as denominações especiais – como entidade de
utilidade pública federal, organização social e organização da sociedade civil de
interesse público – não traduzem uma forma de pessoa jurídica privada, mas apenas
significam que a entidade ostenta determinado título jurídico. Os títulos jurídicos
indicam, de antemão, a intensidade da atividade de fomento que incidirá sobre a
entidade do Terceiro Setor e a menor ou maior derrogação do regime privado por
normas publicísticas.
2.1 O título de utilidade pública, previsto na Lei 91/355, é concedido
às entidades constituídas com o fim exclusivo de servirem desinteressadamente a
coletividade, desde que os cargos de sua diretoria, conselhos fiscais, deliberativos ou
consultivos não sejam remunerados.
2.2 O Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social –
CEBAS é concedido às entidades sem fins lucrativos que perseguem interesses sociais
232
nas áreas de saúde, educação e assistência social.
2.3 Os meios de fomento decorrentes do título de utilidade pública
federal e do CEBAS amoldam-se aos limites constitucionais da atividade administrativa
de fomento.
2.4 A Lei 9.637/98 confere o título de Organização Social às pessoas
jurídicas de direito privado sem fins lucrativos cujas atividades se dirijam ao ensino, à
pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção do meio ambiente, à
cultura e à saúde, atendidos os demais requisitos previstos na lei.
O modelo legal das OS desborda completamente do espaço
constitucional destinado à atividade de fomento dos serviços de relevância pública,
delineado pelo princípio da subsidiariedade, na medida em que pretende a substituição
dos serviços públicos sociais prestados pelo Estado pelos serviços de relevância pública
prestados pelo Terceiro Setor, o que não é permitido pela Constituição Federal.
2.5 A Lei 9.637/97 apresenta graves inconstitucionalidades:
participação de servidores públicos no Conselho de Administração da entidade;
discricionariedade da autoridade administrativa para conceder ou não o título de OS;
possibilidade de cessão de servidores públicos para trabalhar na entidade; ausência de
previsão de realização de seleção objetiva para contratação de obras, serviços, compras
e alienações pela OS, utilizando-se recursos públicos; e ausência de procedimento de
competição para seleção da OS que celebrará contrato de gestão com o Poder Público.
2.6 A Lei 9.790/99 prevê doze finalidades diferentes que as entidades
privadas sem fins lucrativos devem perseguir para obterem o título jurídico de
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP e traz um rol de treze
entidades que não podem se qualificar como OSCIP.
A lei federal das OSCIPs procurou evitar as inconstitucionalidades da
Lei 9.637/98, tentando respeitar os legítimos espaços de atuação do Terceiro Setor
demarcados na Constituição Federal, em consonância com o princípio da
complementaridade e com o caráter subsidiário da atividade administrativa de fomento.
Na prática, contudo, o uso da OSCIP vem sendo distorcido de diversas maneiras.
Capítulo III – O controle do Terceiro Setor
3. Deve haver efetivo controle dos recursos públicos transferidos ao
Terceiro Setor para se evitar o desperdício, reprimir-se o enriquecimento ilícito e a
corrupção e legitimar-se a atuação eficaz do Terceiro Setor. O Estado deve punir as
233
instituições privadas que utilizarem criminosamente os recursos recebidos, ao mesmo
tempo em que deve fortalecer as parcerias com as entidades do Terceiro Setor que
respeitam a legislação.
3.1 Os instrumentos jurídicos de repasse de recursos públicos para as
entidades do Terceiro Setor – convênio, contrato de repasse, contrato de gestão e termo
de parceria – possuem natureza convenial: são acordos firmados entre entidades
públicas e entidades privadas, para a realização de interesses comuns dos partícipes, nos
quais as vantagens patrimoniais obtidas não correspondem às desvantagens da outra
parte.
3.2 Em razão da complementaridade e da subsidiariedade da atividade
de fomento, os recursos públicos transferidos ao Terceiro Setor jamais devem se
constituir na única fonte de renda da entidade privada e não devem ser utilizados como
forma de financiamento da terceirização ilegal de serviços públicos.
3.3 Por serem entidades privadas e não integrarem a Administração
direta e indireta, as entidades do Terceiro Setor não precisam realizar licitação para
realizar contratações utilizando-se dos recursos públicos recebidos, pois não são
abrangidas pelo artigo 1º da Lei 8.666/93, mas devem sempre realizar prévio
procedimento objetivo baseado nos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade, economicidade e eficiência para tal fim.
3.4 As entidades do Terceiro Setor são submetidas a tríplice forma de
controle: controle dos meios, referente à correta aplicação dos bens e recursos públicos
recebidos; controle dos resultados, que diz com o cumprimento das metas pactuadas nos
instrumentos de parceria (contrato de gestão, termo de parceria, convênio ou contrato de
repasse) e à qualidade dos serviços prestados à população; e o controle do poder, para
assegurar a ausência de intervenção estatal no funcionamento da entidade e para impedir
o financiamento público como forma exclusiva de manutenção da entidade privada.
3.5 Devem ser observados os seguintes vetores no exercício do
controle das entidades do Terceiro Setor: vinculação ao instrumento negocial (convênio,
contrato de repasse, contrato de gestão ou termo de parceria) para verificar os resultados
obtidos – em especial quanto à qualidade da prestação de serviços de relevância pública
ao cidadão cliente; adequada utilização de bens e recursos públicos (artigo 70,
parágrafo único da Constituição e artigo 13, “c” do Decreto-lei 200/67); e vedação de
interferência estatal no funcionamento e financiamento da entidade privada.
3.6 Tendo como referencial o momento de celebração do instrumento
234
negocial (convênio, contrato de repasse, contrato de gestão ou termo de parceria), o
controle estatal das entidades do Terceiro Setor pode ser classificado como prévio
(preventivo ou a priori), concomitante ou sucessivo e subsequente ou corretivo (a
posteriori).
3.7 Sempre que houver possibilidade de disputa entre entidades do
Terceiro Setor, o Poder Público deve realizar procedimento prévio e objetivo de
competição para seleção da entidade privada que será escolhida como sua parceira.
O certame não precisa necessariamente seguir as modalidades
específicas da Lei 8.666/93: deve ser realizado chamamento público para celebração de
convênios e contratos de repasse, concurso de projetos para ajustar termos de parceria
com OSCIPs e uma modalidade objetiva de procedimento seletivo para celebração de
contratos de gestão com Organizações Sociais.
3.8 Na fase do controle prévio devem ser verificadas a qualificação
técnica da entidade privada e se ela possui patrimônio próprio. Se o Estado se cercar
desses cuidados básicos antes de escolher seus parceiros, a probabilidade de desvio de
finalidade e de recursos públicos diminuirá consideravelmente.
3.9 O objetivo principal do controle concomitante é verificar se as
metas fixadas no convênio, contrato de repasse, contrato de gestão ou termo de parceria
estão sendo cumpridas a contento, respeitando-se o cronograma previamente fixado.
Devido à natureza convenial dos contratos de gestão e dos termos de
parceria, aplicam-se-lhes subsidiariamente as normas do Decreto 6.170/07 e da Portaria
Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011, relativas ao controle
da utilização de recursos públicos, com destaque para a realização de vistorias in loco
pelo órgão fiscalizador e para a necessidade de identificação dos beneficiários finais dos
pagamentos realizados com dinheiro público.
3.10 O controle posterior objetiva revisar os atos já praticados,
confirmando-os ou corrigindo-os e se dá, precipuamente, pela análise da prestação de
contas apresentada pelas entidades que gerenciam recursos públicos.
A competência para apreciação dessas contas é atribuída legalmente
aos órgãos de controle interno, ou seja, ao órgão descentralizador (convênios e contratos
de repasse), à entidade supervisora (contratos de gestão, OS) e ao órgão estatal parceiro
(termos de parceria, OSCIPs). Paralelamente ao controle interno, porém, o TCU e o
Ministério Público, no exercício de suas respectivas funções constitucionais, podem
exercer o controle externo do Terceiro Setor.
235
Capítulo IV – A proteção do cidadão cliente do Terceiro Setor
4. Cada vez mais os cidadãos dependem dos serviços de relevância
pública prestados pelas entidades do Terceiro Setor, principalmente nas áreas de
educação e saúde, o que torna fundamental o efetivo controle sobre a qualidade desses
serviços.
A legislação prevê os meios de proteção do cidadão que usufrui os
serviços de relevância pública prestados pelas entidades privadas sem fins lucrativos: há
um regime jurídico diferenciado para a tutela do cidadão cliente do Terceiro Setor, que
não se confunde com o regime jurídico do usuário dos serviços públicos ou do
consumidor de produtos e serviços.
4.1 Autonomia privada e personalidade coletiva são os princípios
gerais do regime jurídico do Terceiro Setor, que, no entanto, sofre limitações de ordem
pública relacionadas à prestação de serviços de relevância pública, bem como
derrogações parciais decorrentes da atividade administrativa de fomento.
4.2 A relação jurídica estabelecida entre o prestador do serviço de
relevância pública e o cidadão por meio da cobrança de contraprestação configura
relação de consumo (fornecedor, consumidor e serviço remunerado) nos termos
previstos no Código de Defesa do Consumidor.
Há aplicação plena do CDC para tutelar os direitos do consumidor dos
serviços de relevância pública. A responsabilidade civil em face dos danos causados a
terceiros pelos prestadores privados de serviços remunerados de relevância pública é
objetiva pelo fato do produto ou do serviço, com fundamento no artigo 14 do CDC.
4.3 Enquanto não promulgada a lei federal de proteção ao usuário, a
legislação consumerista deve ser aplicada no âmbito dos serviços públicos federais
sempre que se configurar relação de consumo nos termos do CDC, o que ocorre nas
atividades remuneradas por taxa ou tarifa. Se houver pontos de incompatibilidade entre
o regime jurídico consumerista e o regime jurídico dos serviços públicos, prevalecerá
este último. Caso o serviço público seja prestado gratuitamente, não se configurará
relação de consumo, mas serão a ele aplicáveis o artigo 22 e as normas processuais do
CDC.
4.4 Os serviços públicos prestados por particulares no regime de
concessão ou permissão (remunerados por tarifa), são regidos precipuamente por
normas de Direito Público, em especial pela Lei 8.987/95, mas há incidência também do
236
CDC, por determinação do artigo 7º da referida lei, para proteção do usuário, também
qualificado como consumidor.
4.5 A responsabilidade civil decorrente de atos comissivos praticados
por pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado prestadoras de serviços
públicos é objetiva, com fundamento no artigo 37, §6º da Constituição Federal. Em
ambos os casos, há ampla proteção processual do usuário lesado, por meio de ações
individuais ou coletivas, nos termos do parágrafo único do artigo 22 do CDC c/c artigos
81 a 104 do CDC.
4.6 O cidadão que utiliza gratuitamente os serviços prestados pelas
entidades do Terceiro Setor é denominado cidadão cliente, nos termos do artigo 20, I da
Lei 9.637/98.
O regime jurídico do cidadão cliente – que não se confunde com o do
consumidor de produtos ou serviços nem com o do usuário de serviços públicos – é
caracterizado pelo parâmetro legal qualitativo dos serviços de relevância pública (artigo
22 do CDC), pelos direitos básicos do cidadão cliente, pelos instrumentos legais de
defesa em juízo e pela forma de responsabilidade civil das entidades do Terceiro Setor.
4.7 O artigo 22 do CDC deve ser aplicado a todos os casos em que as
entidades do Terceiro Setor sejam beneficiadas por meios de fomento reais e
econômicos em sentido estrito, instrumentalizados por contrato de gestão, termo de
parceria, convênio ou contrato de repasse. Essas parcerias configuram forma de
empreendimento dos órgãos públicos, o que atrai a aplicação do artigo 22 às entidades
do Terceiro Setor. Em consequência, os serviços gratuitos de relevância pública devem
ser adequados, eficientes, seguros, e, quanto aos essenciais, contínuos.
4.8 Da incidência do parágrafo único do artigo 22 do CDC decorrem a
responsabilização objetiva das entidades do Terceiro Setor, nos termos do artigo 14 do
CDC, bem como a aplicação de todas as normas processuais do CDC (artigos 81 a
104) para a tutela do cidadão cliente.
Somente quando não houver atividade administrativa de fomento real
(bens públicos) ou econômica em sentido estrito (recursos públicos), a responsabilidade
das entidades do Terceiro Setor por atos praticados contra terceiros será subjetiva, nos
termos do Código Civil, se os serviços forem prestados gratuitamente. Se houver
remuneração pelos serviços prestados, haverá configuração de relação de consumo e a
responsabilidade será objetiva pelo fato do serviço, aplicando-se integralmente o CDC.
237
4.9 Sempre que as
entidades do Terceiro Setor exigirem
contraprestação do cidadão pelos seus serviços, sob qualquer título (taxa, tarifa, preço,
mensalidade, plano de saúde, etc.), estará configurada relação de consumo nos termos
do CDC e, consequentemente, haverá aplicação integral das normas de proteção ao
consumidor.
4.10 Os danos causados pelo Terceiro Setor ao cidadão cliente, ainda
que durante a execução de parceria fomentada com recursos e bens públicos, não geram
responsabilidade civil do Estado. Há duas exceções: quando o dano decorrer da omissão
estatal no dever de fiscalizar a atividade fomentada, caso em que a responsabilidade
estatal será subsidiária, se presentes os pressupostos da responsabilidade subjetiva; e
quando a atividade de fomento ultrapassar os limites fixados constitucionalmente,
configurando terceirização ilícita da prestação de serviços públicos sociais, caso em que
a responsabilidade do Estado será objetiva em razão dos atos comissivos praticados pela
entidade civil e subjetiva pelos seus atos omissivos.
Capítulo V – O Ministério Público e o controle do Terceiro Setor
5. A Constituição Federal fortaleceu o Ministério Público como
instituição independente, assegurando-lhe autonomia administrativa e financeira,
vedando-lhe a representatividade judicial e a consultoria das entidades públicas e
consagrando-lhe o princípio da independência funcional, essencial para a atuação isenta
e proativa de seus membros.
Além da já tradicional função acusatória, a Constituição alçou o
Ministério Público à condição de principal defensor dos interesses difusos e coletivos da
sociedade, outorgando-lhe a função de promover o inquérito civil e a ação civil pública
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos.
5.1 A atribuição constitucional para o exercício do controle externo do
Terceiro Setor pelo Ministério Público decorre dos artigos 129, II e III e 129, IX, c/c
artigo 127, que tratam, respectivamente, das funções de zelar pelo efetivo respeito dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promover o
inquérito civil e a ação civil pública para proteção do patrimônio público e social e
proteger os interesses sociais e individuais indisponíveis.
A legislação ordinária igualmente prevê a atribuição ministerial de
fiscalizar o Terceiro Setor e a jurisprudência do STF e do STJ vem reconhecendo a
238
legitimidade ministerial para desempenhar essa importante função.
5.2 A fiscalização ministerial das associações que compõem o
Terceiro Setor é voltada às entidades que prestam serviços de relevância pública ou
recebem recursos ou bens públicos mediante qualquer tipo de ajuste com o Poder
Público, não possuindo a mesma amplitude do velamento das fundações privadas.
No âmbito extrajudicial, o Ministério Público pode instaurar inquérito
civil para acompanhar os serviços de relevância pública prestados pelas associações
integrantes do Terceiro Setor, bem como exercer a fiscalização contábil, financeira e
finalística dessas entidades, com o objetivo de zelar pela regularidade da aplicação dos
recursos públicos recebidos e pela qualidade das atividades sociais desenvolvidas.
5.3 O velamento das fundações civis consiste no acompanhamento
sistemático e contínuo dessas entidades pelo Ministério Público, desde os atos
preparatórios do nascimento da entidade até sua eventual extinção.
Essa atribuição ministerial é praticada por meio de diversos atos, tais
como a aprovação do estatuto de constituição da fundação, a apreciação das
modificações estatuárias posteriores, a apreciação quanto à alienação ou aquisição de
bens de significativo valor, a análise prévia das atas das reuniões dos órgãos de direção,
a realização de inspeções periódicas e programadas in loco e o acompanhamento ou
promoção da extinção da fundação.
No âmbito judicial, o Ministério Público deve ser intimado em todos
os processos em que as fundações civis figurem como parte, sob pena de nulidade
absoluta (artigo 82, II, CPC).
5.4 O Ministério Público não possui atribuição legal para velar pelas
fundações públicas de direito privado, pois a elas não se aplica o artigo 66 do Código
Civil, conforme artigo 4º, §3º, do Decreto-lei 200/67, na redação da Lei 7.596/98.
Em relação às “fundações públicas de direito público” não há que se
falar em velamento do Ministério Público na medida em que tais entidades possuem a
mesma natureza e regime jurídico das autarquias, submetendo-se ao controle
administrativo exercido diretamente pela entidade que as instituiu.
Não obstante, a supervisão ministerial não impede o exercício das
atribuições constitucionais do Ministério Público de investigar irregularidades
envolvendo as fundações públicas, sejam elas de “direito público” ou privado.
5.5 O Ministério Público vela pelas denominadas “fundações de
apoio” instituídas com a finalidade de dar apoio a projetos de ensino, pesquisa e
239
extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico, nos termos da Lei
8.959/94, com as modificações realizadas pela Lei 12.349/10.
5.6 No controle do Terceiro Setor, o inquérito civil vem sendo
utilizado pelo parquet para investigar a correta aplicação de recursos públicos pelas
entidades privadas sem fins lucrativos, apurar o respeito ao princípio da impessoalidade
na realização de procedimento de competição para escolha da parceira do Poder Público
e verificar a qualidade da prestação de serviços de relevância pública.
A efetividade do inquérito civil se dá por duas principais formas:
inibição da prática ou reiteração da conduta mediante a ciência, pelo investigado, de sua
instauração; coleta de dados para a construção de uma solução consensual para o
conflito.
5.7 A recomendação é ato administrativo unilateral expedido pelo
parquet com o escopo de persuadir o órgão recomendado a corrigir conduta irregular ou
adotar providências cabíveis para a tutela dos interesses, direitos e bens sociais e
individuais indisponíveis. Não possui coercibilidade e seu principal efeito é a
possibilidade de pronto acatamento, o que levará à solução rápida e econômica da
controvérsia, sem a necessidade de judicialização. Configura eficiente método
extrajudicial de autocomposição por submissão do recomendado ao entendimento do
parquet.
5.8 O termo de ajustamento de conduta possui natureza jurídica de
negócio jurídico bilateral: pressupõe a conjugação de vontades do obrigado e do órgão
público legitimado, em relação às condições de prazo, modo e lugar necessárias à
concretização do direito transindividual.
O termo de ajustamento de conduta é firmado com o responsável pela
ameaça ou lesão aos interesses ou direitos difusos ou coletivos visando à reparação do
dano, à adequação da conduta às exigências legais ou normativas e, ainda, à
compensação ou à indenização pelos danos que não possam ser recuperados. Configura
mecanismo de autocomposição por negociação que alia todas as principais vantagens
dos mecanismos extraprocessuais de tutela coletiva – eficiência, celeridade e
informalidade – ao fato de possuir eficácia de título executivo extrajudicial.
5.9 Em relação aos direitos individuais homogêneos, o Ministério
Público sempre terá legitimidade para atuar em juízo quando o caso tiver repercussão
social ou quando possuir atribuição legal específica para a defesa desses direitos.
5.10 A ação civil pública permite a formulação dos pedidos adequados
240
para tutelar eficazmente o direito lesado e costuma ser utilizada, no controle do Terceiro
Setor, para combater terceirizações ilegais de serviços públicos, assegurar a isonomia e
moralidade nos processos de competição para escolha da entidade parceira do Poder
Público e garantir o respeito dos serviços de relevância pública aos direitos
constitucionais.
5.11 As entidades que compõem o Terceiro Setor podem ser sujeito
passivo da prática de atos de improbidade administrativa, na medida em que o erário
houver concorrido para a criação ou custeio do seu patrimônio ou receita anual. Os
funcionários e dirigentes das entidades do Terceiro Setor, independentemente de
exercerem trabalho voluntário ou mediante remuneração, podem ser considerados
sujeitos ativos de atos de improbidade administrativa.
5.12 Em relação à prescrição de atos de improbidade administrativa
praticados por funcionários ou dirigentes de entidade do Terceiro Setor, sempre que o
agente estranho ao serviço público praticar o ato de improbidade administrativa em
concurso com ocupante de cargo efetivo ou emprego público, sujeitar-se-á ao mesmo
prescricional aplicável ao servidor ou empregado público coautor do ato.
Nos demais casos, aplica-se por analogia a regra do artigo 23, II, da
Lei 8.429/92, utilizando-se o prazo prescricional previsto para faltas disciplinares
puníveis com demissão, nos termos do regime jurídico dos servidores públicos do ente
da administração direta (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) que tiver
repassado recursos públicos à entidade privada sem fins lucrativos.
5.13 Os dirigentes e funcionários das entidades do Terceiro Setor,
voluntários ou assalariados, podem ser considerados funcionários públicos para fins
penais, nos termos do artigo 327 do Código Penal, pois desempenham verdadeira
função pública.
Ademais, o Código Penal prevê o enquadramento como funcionário
público para fins penais de quem trabalha em entidade privada prestadora de serviço
contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública
(CP, artigo 327, § 2º).
241
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