Língua estrangeira em vestibulares e Orientações Curriculares: algumas
reflexões a partir da política lingüística
Fernanda dos Santos Castelano Rodrigues (CL/ FFLCH/ USP)
Introdução: o vestibular como um instrumento da política lingüística
A oferta da língua espanhola nas escolas de ensino médio do país será
obrigatória somente a partir de 2010. No entanto, das 46 universidades federais cujo
registro encontra-se no site do Ministério da Educação (MEC), 39 já ofereceram a seus
candidatos a possibilidade de escolher o espanhol na prova de língua estrangeira nos
vestibulares de 2008.
É necessário esclarecer que o ponto de vista que adotamos é o da Política
Lingüística, considerada como
un conjunto de decisiones y acciones promovidas por el poder público, que tienen
por objeto principal una (o más) lengua(s) de su órbita, y están racionalmente
orientadas hacia objetivos que son tanto lingüísticos (esto es, determinado efecto
sobre el corpus de la lengua, su estatuto y/o su adquisición) como no lingüísticos
(VARELA)1.
Nesse sentido, desenvolveremos toda nossa reflexão considerando os
exames vestibulares como um instrumento da política lingüística. A partir dessa
perspectiva iremos trabalhar com nosso corpus, ou seja, com as provas e suas
questões, com os textos nelas presentes e até mesmo com as línguas que são
colocadas (ou excluídas) entre as opções para o acesso à Universidade por meio do
vestibular.
Partindo desse ponto de vista, não nos interessou fazer uma análise
“pretensamente generalizada” das instituições públicas e privadas nacionais que
2625
oferecem o espanhol como opção em seus exames vestibulares: trabalhamos
exclusivamente com as provas de universidades federais, dado que consideramos o
caráter público dessas instituições como fundamental para a criação, a implementação
e o estabelecimento de políticas lingüísticas que se referem à questão das línguas
estrangeiras, tanto no ensino superior quanto retroativamente no ensino médio.
Longe de pretender esgotar aqui o tema, o que este trabalho propõe é uma
reflexão (ou talvez o início de uma reflexão a partir de uma certa perspectiva) que
tenta articular alguns aspectos que, acreditamos, estão envolvidos nessa questão:
•
o primeiro deles, já referido, diz respeito à consideração do exame
vestibular como um instrumento da política lingüística (e, nesse sentido,
os demais aspectos estarão todos vinculados a este);
•
o segundo aspecto se refere à forma como esses exames avaliam o
desempenho na língua espanhola dos estudantes, ou seja, ao trabalho
que neles se dá centrado no “texto” — os vestibulares são vistos, de
maneira geral, como avaliadores conteudísticos do ensino médio;
porém, tal como pudemos comprovar com nossa análise, suas provas
se fundamentam quase exclusivamente na compreensão de leitura, que
é apenas uma das “competências” a serem desenvolvidas durante o
processo de aprendizagem do espanhol nesse nível escolar, de acordo
com as indicações para “Conhecimentos de Línguas Estrangeiras —
Espanhol” que compõem as Orientações Curriculares para o Ensino
Médio do Ministério da Educação (BRASIL, 2005);
•
e o terceiro e último aspecto que comentaremos nesta reflexão se
vincula
a
uma
hipótese
de
que
esses
exames
vestibulares
desempenham um papel “retroativo” no ensino médio, funcionando
2626
como potenciais definidores de programas e currículos escolares no
país.
Haveria possibilidade de intervenção diante desse panorama? Esse é um
dos pontos que pretendemos colocar em discussão com este trabalho.
Passaremos agora a explorar nossa primeira questão: os vestibulares como
instrumento da política lingüística que interfere na “relação entre as línguas”2 do
espaço escolar.
Línguas estrangeiras e vestibulares: alguns números que dizem muito
Um passo anterior ao de selecionar as provas que iríamos analisar neste
trabalho foi procurar algumas informações acerca de quais línguas estrangeiras estão
presentes (e, conseqüentemente, quais estão ausentes) nos exames vestibulares de
universidades federais brasileiras.
A partir de pesquisa no site do MEC, encontramos 46 universidades
elencadas em maio de 2008, mas não pudemos ter acesso via internet a uma delas, a
UFAM (Amazonas), que teve de ser excluída de nosso corpus; em outra universidade,
a UFJF (Juiz de Fora), não há prova de língua estrangeira no exame vestibular (é a
única do país a seguir esse procedimento).
Portanto, os dados que apresentaremos a seguir sobre as línguas
estrangeiras que são oferecidas como opção aos candidatos de vestibular das
universidades federais brasileiras dizem respeito a um total de 44 universidades
federais distribuídas pelas cinco regiões do país.
Todas as universidades a que tivemos acesso, ou seja, 44, oferecem em
seus vestibulares a prova de inglês como língua estrangeira; destas, 39 também
2627
oferecem o espanhol como opção; o francês está presente em 30 universidades, o
italiano em 8 e o alemão em 7.
A partir desses poucos números, pode-se constatar que:
•
há 5 universidades que não oferecem o espanhol como opção para a
prova em língua estrangeira: Unifesp (São Paulo), Unifei (Itajubá),
UFRN (Natal), UFSCar (São Carlos) e Unirio (Rio de Janeiro);
•
o inglês aparece como única opção de prova de língua estrangeira em 3
universidades: Unifei (Itajubá), UFSCar (São Carlos) e Unirio (Rio de
Janeiro), nas demais universidades, o inglês sempre se combina com
outra(s) língua(s);
•
em 11 universidades, as opções de vestibular são inglês ou espanhol;
em apenas 2 — Unifesp e UFRN — as opções são inglês ou francês;
•
a opção de provas de italiano e alemão, presentes em vestibulares de 8
e 7 universidades respectivamente, concentra-se fundamentalmente
nas áreas em que essas línguas possuem uma forte presença graças a
sua manutenção como “línguas de imigração”, nos estados do Sul do
país e, no caso do italiano, também no Espírito Santo3; as exceções
estão na UFC (Ceará) e na UFPA (Pará), que possuem em suas provas
a opção por inglês, espanhol, francês, italiano ou alemão.
Várias são as questões que nos suscitam os dados que apresentamos
nesta bastante breve estatística. No entanto, dada a síntese necessária para este
trabalho, gostaríamos de referir-nos fundamentalmente à seguinte: existe um critério
para a escolha da(s) língua(s) estrangeira(s) que é/ são oferecida(s) nos vestibulares
das universidades federais brasileiras? Se sim, qual é ele? Se não, parece-nos
razoável discutir a possibilidade de adoção de uma política para essa escolha que siga
minimamente a política lingüística adotada pela legislação educacional vigente no
2628
país, política esta que leva em consideração as realidades regionais específicas e as
escolhas das comunidades com respeito à língua que deve ser ensina na escola4.
Por
considerarmos
que
os
exames
vestibulares
são
também
instrumentos da política lingüística desenvolvida pelo poder público, como já
afirmamos anteriormente, acreditamos ser necessário promover uma discussão em
diferentes esferas e instâncias envolvidas tanto no ensino médio como no superior
(MEC, secretarias de educação, conselhos de ensino, escolas, universidades etc.)
para que se estabeleçam também as bases de um modelo de política de línguas
estrangeiras a ser implementado nos exames de vestibular das universidades federais
do país (seria pelo menos saudável que essa discussão se estendesse também a
universidades estaduais e privadas, inclusive).
A seguir, passaremos à apresentação dos dados sobre as provas de
espanhol analisadas.
Os textos nas provas de espanhol dos vestibulares
Apresentaremos algumas considerações acerca dos exames de vestibular
de 10 universidades federais brasileiras que pudemos analisar. De maneira central,
pousaremos nosso foco de análise sobre os textos utilizados nesses vestibulares
como meio para avaliar “compreensão e interpretação de textos”.
O corpus de análise
Com a idéia de ter ao menos um breve panorama nacional das provas de
vestibular de universidades federais, construímos um corpus de análise formado por
10 exemplares desses exames, aplicados para o ingresso às universidades no ano de
2629
2008, sendo 2 de cada uma das cinco regiões brasileiras. As provas provêm das
seguintes universidades: UFAC (Acre), UniFAP (Amapá), UFMA (Maranhão), UFC
(Ceará), UnB (Brasília), UFG (Goiás), UFRRJ (Rural do Rio de Janeiro), UFMG (Minas
Gerais), UFSC (Santa Catarina), UFPel (Pelotas)/ Unipampa.
A escolha das 10 provas se deu considerando um aspecto fundamental:
todas deveriam ser de múltipla escolha ou V/ F. Algumas variáveis como a facilidade
de acesso on-line aos exames e a qualidade da visualização do mesmo também
tiveram de ser consideradas.
As provas e seus textos: quantidades, procedências e gêneros
Nossa análise não pretende detalhar os modelos de questões aplicados
nesses vestibulares, nem mesmo elaborar porcentagens das questões de gramática
ou as “verdadeiramente de compreensão” nessas provas — outros trabalhos já o
fizeram de forma bastante eficiente. Desejamos, isso sim, ressaltar uma certa
implicação sobre o uso de determinados textos: sua procedência, ou seja, o país ou
região no qual foram produzidos e divulgados.
Também queremos discutir o papel da leitura no processo de ensino/
aprendizagem do espanhol no ensino médio, articulando em nossas reflexões tanto o
modo como se utiliza dessa competência nessas provas quanto algumas
considerações sobre as Orientações Curriculares para essa língua estrangeira (Op.
cit., 2005).
Mesmo correndo os riscos que toda generalização nos traz, vamos colocar
esquematicamente os principais aspectos que nos ajudam a definir a configuração dos
10 exames vestibulares no aspecto que nos interessa:
•
Número de textos em cada prova: de 1 a 4 textos;
2630
•
Número total de textos das 10 provas: 22 textos;
•
Número de questões de cada prova: de 4 a 10 questões;
•
Número total de questões das 10 provas: 72 questões;
•
País/ região de procedência dos textos: Espanha (9), Argentina (4),
México (2), Brasil (3), “América Latina” (1), Sem referência (3).
Algumas considerações sobre a leitura nos vestibulares e as Orientações
Curriculares para o espanhol
Em primeiro lugar, gostaríamos de comentar a relação entre a procedência
dos textos utilizados nos exames vestibulares das universidades federais que
analisamos e as indicações das já mencionadas Orientações Curriculares do MEC
para o espanhol. Se consideramos relevante a tarefa de “substituir o discurso
hegemônico pela pluralidade lingüística e cultural do universo hispano-falante” (Op.
cit., p. 134), é necessário insistir na pluralidade de fontes e procedências para a
extração de textos a serem compreendidos e interpretados, tanto na escola como nos
vestibulares. Com as facilidades que a internet nos proporciona e com sua utilização já
bastante generalizada no Brasil, não se pode usar como escusa para essa presença
tão massivamente majoritária de textos procedentes da Espanha a falta de acesso à
produção textual latino-americana, seja ela jornalística, literária, científica, acadêmica
ou de qualquer outro gênero textual.
Em segundo lugar é importante mencionar que pudemos detectar em nossa
análise que essas provas operam, em geral, na superficialidade da materialidade da
língua, sem considerar, na maioria das vezes, seu funcionamento no discurso. Isso
quando elas realmente trabalham com a compreensão do texto porque, como também
verificamos, há um razoável número de questões para as quais o texto é apenas um
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pretexto para a aferição de conhecimentos gramaticais de diversa ordem (ortográfica,
morfológica ou sintática)5.
Considerando tudo o que até aqui expusemos, acreditamos que, se por um
lado, as Orientações Curriculares do MEC insistem em que “o foco de ensino não
pode estar, ao menos de modo exclusivo e predominante, na preparação para o
trabalho ou para a superação de provas seletivas, como o vestibular” (Idem, p. 147),
não se pode também descartar o papel que esses exames desempenham na vida de
um estudante em vias de terminar seu ensino médio — um jovem que, cada vez mais,
tem sido incentivado a ingressar no ensino superior, também como efeito de uma certa
política pública de expansão desse nível de ensino que vem sendo desenvolvida com
empenho pelo Governo Federal nos últimos 10 anos.
Nossa análise aponta, portanto, para o que avaliamos como algo que pode
se constituir numa certa contradição a ser ao menos discutida até 2010 — e, se
possível, revertida quanto antes — no funcionamento do ensino de língua espanhola
como língua estrangeira nas escolas médias do país: se, por um lado, as OCs afirmam
ter como objetivo apenas “sinalizar os rumos que esse ensino deve seguir, o que faz
com que tenham um caráter minimamente regulador” (Idem, p. 127), por outro lado, as
escolas e os professores que atuam no processo de ensino-aprendizagem sentem-se
órfãos de um documento que, de alguma maneira, sirva como pauta, mesmo que
mínima, de conteúdos a serem desenvolvidos ao longo dos anos em que a disciplina é
oferecida. É nesse sentido que gostaríamos de colocar em discussão a pertinência ou
a necessidade da elaboração de “Orientações Curriculares” mais específicas com
relação a temas e conteúdos a serem abordados no ensino médio, bem como a
necessidade de discussão de uma política para as provas de vestibular, tal como já
colocamos anteriormente. Sabemos que nosso sistema de ensino muitas vezes
privilegia o bom desempenho dos estudantes nesse tipo de exame, e não a “formação
do cidadão” ou “sua inclusão” na sociedade contemporânea, tal como preconizam as
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Orientações Curriculares de modo geral, e, em particular, a parte que trata dos
“Conhecimentos de Línguas Estrangeiras — Espanhol”.
Referências
BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio. Linguagens, códigos e suas
tecnologias. Brasília: MEC, 2005.
______. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: MEC, 1996.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acesso em: 09 ago.
2008.
FERNÁNDEZ, Gretel E.; KANASHIRO, Daniela S. K. Leitura em língua estrangeira:
entre o ensino médio e o vestibular. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n.
2, 2006.
GUIMARÃES, Eduardo. Enciclopédia das línguas no Brasil. Disponível em:
<http://www.labeurb.unicamp.br/elb/portugues/relacoes_linguas.htm>. Acesso em: 28
jan. 2008.
KANASHIRO, Daniela S. K. Do ensino médio ao superior: que ponte os une? Um
estudo de provas de vestibular de língua espanhola. (Dissertação de Mestrado) —
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
PAYER, Onice. Educação popular e linguagem. Reprodução, confrontos e
deslocamentos de sentidos. 2. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1995.
2633
______. Memória da língua. Imigração e nacionalidade. São Paulo: Escuta, 2006.
VARELA, Lía. Política lingüística: ¿qué está pasando en Argentina? In: GETINO, O.
(Coord.). Indicadores culturales, n. 6. Buenos Aires: UNTREF, 2008. No prelo.
Notas
1
Varela utiliza pela primeira vez esta definição de “política lingüística” em sua tese de
doutorado La politique linguistique extérieure de la France et ses effets en Argentine.
Contribution à une théorie de la politique linguistique. Paris: EHESS, 2005. A citação em
espanhol que aqui fazemos foi extraída do texto que consta das referências deste trabalho,
ainda no prelo.
2
O conceito de “relação entre línguas” que aqui utilizo é o que aparece fundamentalmente em
Guimarães (2003); em nossa pesquisa de doutorado estamos retrabalhando esse conceito, no
sentido de ampliá-lo e especificá-lo ao mesmo tempo.
3
Para mais detalhes sobre línguas de imigração e, em particular, do caso da língua italiana no
Espírito Santo, cf. Payer (1995, 2006).
4
Enfatizamos aqui o fato de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 ter optado
por deixar, ao menos em sua escrita jurídica, a escolha da língua estrangeira nas mãos da
“comunidade escolar” envolvida no processo educacional; reconhecemos, no entanto, a
hegemonia da língua inglesa que, na prática, já há pelo menos meio século vem sendo a língua
estrangeira da escola brasileira (e não apenas uma língua possível de ser escolhida). Nesse
sentido, vale lembrar que a Lei 11.161, sancionada em agosto de 2005, exerce um importante
papel no aumento da oferta de línguas estrangeiras na rede oficial de ensino do país.
5
Para mais detalhes sobre os modelos de questão de vestibular e a freqüência, em
porcentagem, de cada um, cf. Fernández e Kanashiro (2006) e Kanashiro (2007).
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2625 Língua estrangeira em vestibulares e Orientações Curriculares