JE SUIS CHARLIE – EU SOU CHARLIE Dois pontos de vistas 1. INTRODUÇÃO Paris, França, 7 de janeiro de 2015, mais precisamente na sede do jornal Charlie Hebdo às 11h33, dois homens dão início ao maior atentado terrorista depois do “11 de setembro”. Rapidamente os jornalistas do mundo todo noticiam o ocorrido nas mais variadas mídias e em pouco tempo o assunto torna-se o mais comentado do momento. E, é neste cenário que, aqui no Brasil, duas das maiores revistas nacionais – a VEJA e a ISTOÉ – destacam a chacina nas capas dos semanários do dia 14 do mesmo mês. O artigo a seguir visa analisar a luz da Análise do Discurso o mesmo atentado terrorista abordado por pontos de vistas diferentes. A análise foi dividida de acordo com o percurso gerativo de sentido defendido por José Luiz Fiorin, subdividido em nível fundamental, narrativo e discursivo. Como livro base foi adotado Os elementos de Análise do Discurso, São Paulo: Contexto, 2013 (15ª edição). (Capa da revista VEJA, n° 2, edição 2408, ano 48) 2. NÍVEL FUNDAMENTAL No texto apresentado pela revista VEJA os termos opostos são /tirania/ versus /democracia/, onde há explicitamente o convite aos cidadãos de todo o mundo ao combate violento dos terroristas islâmicos. A VEJA mostra num primeiro momento, a contrariedade entre a ideologia extremista e o dever da sociedade em se opor a esse tipo de pensamento. Depois, a oposição semântica dá-se pelo pânico e medo causado pelos terroristas e a falsa ofensa moral que as charges causavam. E, por fim, a repercussão midiática do fato e a exaltação do poder que as manifestações causaram ao redor do planeta. Abaixo seguem os elementos da superfície do discurso: 1. Motivo do atentado: “ideologia radical”, “leis religiosas medievais”, “vertente fundamentalista do Islã”, “terroristas treinados” e “extremistas”. 2. Desqualificação do motivo: “responsabilidade de combater as maçãs podres”, “desculpa para matar inocentes” e “bode expiatório”. 3. Repercussão: “combate frontal aos problemas”, “proteger a população”, “as caricaturas de Maomé continuarão sendo publicadas”, “não temos medo” e “eu sou Charlie”. Assim, o ponto de vista defendido pela revista é a valorização das manifestações de democracia como único meio de se viver harmoniosamente em uma sociedade a mercê da tirania imposta por atentados terroristas. (Capa da revista ISTOÉ, n° 2354, ano 38) Por outro lado, o mesmo fato reportado pela revista ISTOÉ apresenta a oposição ao nível fundamental entre /fanatismo/ versus / tolerância/ e apresenta ao leitor a reflexão de lidar com o terrorismo sem alimentar a xenofobia e a intolerância religiosa. Baseada em três pilares, a matéria trata na sua primeira parte o ato intolerante de tirar a vida de outra pessoa e a necessidade da união francesa frente a atos desta natureza. A segunda parte relata a ação dos terroristas através do tiroteio e a morte de reféns e a reação de solidariedade da população da França. E, encerra-se com a oposição criada entre os protestos xenofóbicos e a razão humana que explica que tais medidas somente alimentarão o ódio dos grupos radicais. Logo, percebe-se que a ISTOÉ desvaloriza o fanatismo que os terroristas exercem a qualquer custo e preserva a tolerância de convívio mediada pelo bom senso e bem comum. Seguem os elementos superficiais da reportagem da ISTOÉ: 1. Motivo do atentado: “livre expressão”, “intolerância religiosa” e “ações lamentáveis”. 2. Desqualificação do motivo: “refrear uma perigosa e crescente onda radical e xenofóbica”, “movimentos ultraconservadores europeus”, “evitar a divisão do país” e “educação para a tolerância”. 3. Repercussão: “defensor do direito irrestrito de satirizar”, “ataque de tamanha brutalidade”, “homenagens aos colegas mortos”, “luto nacional”, “comoção mundial” e “eu sou Charlie”. 3. NÍVEL NARRATIVO 3.1 Manipulação A revista VEJA, na esfera da manipulação, utiliza-se da provocação quando incita aos seus leitores à ação, expressando um juízo negativo em decorrência do fato. São exemplos de provocação: “a sociedade francesa não sucumbirá aos desígnios dos fundamentalistas”, “não se pode permitir que os extremistas imponham sua sacralidade aos que não compartilham sua religião”, “ser contra a tirania, é isso que faz todos nós sermos Charlie” e “às armas, cidadãos!”. No outro oposto, a ISTOÉ manipula através da sedução ao expor um juízo positivo sobre a competência do manipulado. Eis alguns exemplos: “O Estado tem de oferecer toda a proteção necessária a grupos muçulmanos para evitar a violência”, “é necessário construir uma educação para a tolerância”, “a xenofobia aumenta os grupos radicais” e “a liberdade resiste”. 3.2 Competência Na fase da competência, a primeira revista aponta que os cidadãos, sobretudo os franceses, são dotados de um saber e/ou poder fazer. Na notícia relatada eles vão para as ruas com a finalidade de protestar e lutar pela defesa dos seus direitos de livre-expressão. As manifestações são, portanto, o poder de defender seus ideais. A outra revista, por sua vez, mostra que, embora os cidadãos também tenham o saber fazer das manifestações, eles são levados a reflexão pelo não dever fazer tendo em vista as consequências. A iminência do caos e o agravamento que a aversão ao fato pode trazer são ponderados com cuidado. A primeira revista apresenta o poder de mudar a história e utiliza-se do objeto-valor /manifestação/ e o objeto modal /poder agir/ e a segunda pondera o poder de evitar a violência e relaciona o objeto-valor /manifestação/, mas completa com o seu objeto modal /poder refletir/. 3.3 Performance No que diz respeito à performance, tanto a VEJA quanto a ISTOÉ apresentam-se em disjunção ao ataque terrorista ao jornal francês Charlie Hebdo. O que diverge é que aquela está em conjunção com a /intolerância/, ou em outras palavras, descreve todo o fato levando o leitor a fim de que não perca a oportunidade do momento “agora” para ir à luta e não tolerar mais comportamentos como os atentados terroristas de um modo geral. E, em contrapartida, esta entra em conjunção com a /tolerância/ quando trás para o leitor, ao longo do texto, outros panoramas que devem ser analisados antes de se tomar uma decisão. 3.4 Sanção Abaixo o desfecho proposto pela VEJA: Querer: responder aos ataques. Dever: responder aos ataques. A ISTOÉ apresenta a seguinte conclusão: Querer: responder aos ataques. Dever: agir com cautela. Nota-se, portanto, que os dois semanários têm por sua finalidade o querer de responder os ataques, mas a ISTOÉ trás o adicional da reflexão antes de tomar qualquer providência. 4. NÍVEL DISCURSIVO E, finalmente, no nível discursivo, as análises das duas revistas apresentam a mesma forma, ou seja, fazem menção a uma nova crise mundial. O mesmo tipo discursivo poderia ser facilmente encontrado na descrição do início de qualquer guerra do continente africano ou europeu nos últimos dois séculos. As personagens e figuras estão revestidas por situações contemporâneas pertinentes ao fato decorrido, mas é exatamente a mesma descrição de um cenário de pré-guerra. Logo, o fator comum nestes textos é a intolerância perante fatos de diferenças políticas, sociais ou religiosas. A falta de diálogo em questões onde se vê um cenário já desgastado por conflitos de tal natureza, tem a tendência história de abrir duas vertentes ideológicas tão bem combativas pelas revistas em análise: os contra a presença do diálogo e os que são a favor. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme visto, as duas reportagens trazem dois pontos de vistas bem diferentes (na verdade, antagônicos) sobre o mesmo fato. A primeira defende um posicionamento mais agressivo, combativo, aguerrido, enquanto a outra apresenta uma visão mais amena e compreensiva perante os fatos. Cada uma apresenta uma forma discursiva própria, desde as escolhas das palavras e suas disposições no texto, passando pelos tipos de orações produzidas até a intertextualidade que é depreendida do discurso. Assim, quando confrontamo-las em uma análise mais apurada, temos a liberdade de opção em tomar posicionamento perante os fatos e percebemos que é justamente sobre isto em que a notícia relatada dialoga: a liberdade de expressão. Por fim, das inferências dos textos produzidos pelas revistas de grande vinculação e apelo nacional, fica evidente a comparação com a nossa pátria. Intrinsecamente, a VEJA e a ISTOÉ mostram que não é só na França que deve haver liberdade de expressão, mas que no Brasil também deve vigorar esse direito do cidadão cabendo aos leitores o livre-arbítrio de fazer suas escolhas independentemente da religião, raça, idioma. Afinal, o mais correto não seria dizer “Eu sou Charlie”, mas, sim “Nós somos Charlie!” Sílvio Antônio de Oliveira Júnior – 2ALEN, 2015