Ano 1 — Volume 1 / Primavera de 2011 N° 47 TEORIA E PRÁTICA EM EDUCAÇÃO PASSADO, PRESENTE E FUTURO: RENASCE UMA REVISTA DE EDUCAÇÃO DOIS PONTOS? “PONTO SOBRE PONTO DÁ UM OLHO. DOIS PONTOS PARALELOS, DOIS OLHOS. OLHOS QUE NÃO PARAM, BUSCAM INFORMAÇÃO, TRAZEM O MUNDO PRA DENTRO DA GENTE”. Andrea Costa Gomes respondeu a pergunta acima, que deu origem à arte da capa. Ela trabalha como designer e ilustradora. Adora olhar. Diretora Executiva da Educação Básica: MÔNICA FERREIRA Editor chefe: FERNANDO CARAMURU BASTOS FRAGA Jornalista responsável: JOÃO CARLOS FIRPE PENNA (REG. PROF. MG 3362 JP) Conselho Editorial: ADÉLIA MARTINS DE AGUILAR, ADRIANA BATISTA GONÇALVES, CORNÉLIA CRISTINA SAMPAIO BRANDÃO, FERNANDO CARAMURU BASTOS FRAGA, JOÃO CARLOS FIRPE PENNA, LUANA FÉLIX DA SILVA E LUCIANA TOGNOLLI Produção Editorial: LUANA FÉLIX DA SILVA E LUCIANA TOGNOLLI Reportagem: ELIARA SANTANA FERREIRA, JOÃO CARLOS FIRPE PENNA, LUCIANA TOGNOLLI E RAQUEL ROSCÉLI Revisão de textos: CLAUDINE FIGUEIREDO ANDRADA, LÍLIAN DE OLIVEIRA, PRISCILA TREVIZANI E RENILDA DOS SANTOS FIGUEIREDO Charges e Ilustrações: AFO, CHIQUINHA E BRUNO NUNES Projeto Gráfico: GRECO DESIGN Criação, Arte e Editoração Eletrônica: EDITORA ARTE DIGITAL E GRECO DESIGN Revista Dois-Pontos é uma publicação da Rede Pitágoras destinada a todos os educadores do Brasil. Editora Educacional © 2011 Todos os direitos reservados. www.revistadoispontos.com.br [email protected] UMA FÊNIX RENASCIDA A REVISTA DOIS-PONTOS ESTÁ DE VOLTA! Nesta primavera de 2011, relembramos outra edição publicada em meio a uma estação como esta nos idos de outubro de 1983. São duas primaveras que se unem por uma mesma notícia: nasce a Revista Dois-Pontos. Mas como é possível nascer duas vezes? Só para uma publicação do porte, da história, da importância e respeitabilidade da Revista Dois-Pontos fica concebível que seu curso seja retomado como se nunca tivesse sido interrompido. E, em assim sendo e por tudo que esta revista representou, representa e representará no meio educacional brasileiro, eis que lhes apresento, na sequência do último número publicado em 2000, o número 47. Estamos de volta. Boa leitura! Mônica Ferreira Diretora da Educação Básica da Kroton Educacional SUMÁRIO APRESENTAÇÃO GENTE O OLHAR DO CASEIRO 10 ALUÍSIO PIMENTA ENTREVISTA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA GUIOMAR NAMO DE MELLO 18 PASSA POR SEU NOME 44 REFLEXÕES OS JOVENS E AS REDES 6 SEGREDOS DE PROFESSOR SOCIAIS 24 PARA PROFESSOR POR PAULO TWITTERATURA: NASCE UM VOLKER 52 NOVO MEIO LITERÁRIO? 30 A EDUCAÇÃO É A CARA DO FILHO: ESTORVO OU TROFÉU POR PEDRO BORGES 36 PAÍS POR RITA ESPECHIT 60 BOA NOTÍCIA RESENHA CRESCE A LEITURA ENTRE ESCOLA REFLEXIVA OS JOVENS 66 E NOVA RACIONALIDADE 100 INSTITUIÇÃO EM DESTAQUE HISTÓRIA O COLÉGIO EMBRAER JUAREZ DUAS OU TRÊS HISTÓRIAS WANDERLEY 70 DO MESTRE DOS MESTRES: COEDUCAÇÃO PAULO FREIRE 104 O DIVÓRCIO DAS SIAMESAS POR ALCIONE ARAÚJO 78 MÃE TIGRE VERSUS MÃE QUEBRANDO PARADIGMAS... EDUCADORA POR MARIA DO DE ESCOLA E DE MUSEU 84 CARMO MANGELLI 110 INTERCÂMBIO PEDAGOGIA “CRIATIVA” A PARTIR DA CONDIÇÃO HUMANA POR ANGÉLICA SÁTIRO 90 APRESENTAÇÃO O OLHAR DO CASEIRO POR FERNANDO CARAMURU I nicio dizendo que a gênese da Revista Dois-Pontos ocorre como todas as gêneses de tudo que é importante. No princípio, era apenas uma ideia vaga que relampejava na cabeça de um visionário. O visionário era um engenheiro que se tornou educador e de um educador que nunca deixou de ser engenheiro, pois ambas as profissões carecem do engenhar para ser exercida com maestria. Engenhar começa por conceber imagens do necessário e desejável, imagens do sensível e do racional; continua vislumbrando caminhos, empreendendo buscas, planejando projetos; e termina por realizar sonhos, não sem antes ampliá-los. O visionário se chama Evando Neiva. car por escassez e até por excesso, incluindo no rol quem não mereceria ou excluindo alguém relevante. Ademais, quando não se tem certeza da existência, ainda, do remédio Regulador Xavier, o único capaz de curar os males provocados por excesso e escassez, não é bom correr o risco de promover males incuráveis. Tampouco se sabe se esse tipo de fármaco serviria para as questões daquela natureza... E os que existiam em geral não passavam, pela apresentação e pelos projetos gráficos, de livros periodizados, com conteúdos acadêmicos e maçudos, editados pelas universidades. Não cairei na tentação perigosa de citar mais nomes dos envolvidos na criação da revista, pois poderei pe11 > ERA MUITO IMPORTANTE CRIAR UMA REVISTA DE EDUCAÇÃO, UMA VEZ QUE NA ÉPOCA, AURORA DOS ANOS 80, NÃO HAVIA LÁ TANTOS QUANTOS NECESSÁRIOS PERIÓDICOS BRASILEIROS VERSADOS NOS ASSUNTOS EDUCACIONAIS < Compôs-se, então, um grupo de veteranos e neófitos professores e funcionários do Pitágoras. Na verdade, um seleto grupo de profissionais competentes em diversas áreas da experiência e do conhecimento, menos em confecção e edição de revistas de qualquer natureza, inclusive de educação. Vieram as reuniões, muito bem esquematizadas e orquestradas por Evando Neiva. Nelas fazem-se brainstormings, jogam-se fósforos acesos na palha seca das ideias, dos palpites, do humor e, também, das aspirações mais altaneiras à cata de criar a melhor revista de educação nunca antes feita ou até imaginada. Procuram-se benchmarkings no Brasil e no exterior. A vontade e o entusiasmo de cada participante afloravam com veemência, deixando às vezes, escaparem mecanismos compensatórios de egos feridos e, também, carentes de afirmação. Vez por outra, distribuía-se capim para os egos famintos. Afinal de contas, o processo de humano ser não nega no ser humano o animal que também é, graças a Deus! Mas a batuta, firme e imponente na mão do maestro, evitava desafinações para baixo ou para cima, dando o tom e promovendo 12 O olhar do caseiro a harmonia. Montou-se o conselho editorial e foi contratada uma empresa de jornalismo e comunicação para participar das sistemáticas e produtivas reuniões. Continuo resistente no propósito de não citar nomes! Numa dessas reuniões, quando se discutia a necessidade cuja satisfação se daria com a criação da revista, evidenciou-se, pela unanimidade dos partícipes, que o periódico se nutriria da diversidade de experiências e teorias do próprio Pitágoras. A comunhão de todas as conquistas pedagógicas e de administração da instituição dar-se-ia pela revista para todos seus agentes e agências de educação. Conversa vai, conversa vem e se estabeleceu que o periódico não temeria a controvérsia e que sua linha editorial estaria comprometida com as mudanças rápidas, constantes e ubíquas ocorridas no mundo moderno e pós-moderno. Para que essas transformações se dessem de modo desejável, haveria denúncias contra o que fosse deletério ao ser humano, à 13 14 O olhar do caseiro sociedade e à vida. E, em contrapartida, se anunciaria o que os afirmasse e desenvolvesse. E vieram os nomes para a revista. Afinal, ter nome é, pelo menos, o encetamento da existência, visto que tudo que tem nome existe, nem que seja na imaginação de quem nomeia ou reconhece o nome. Contudo, a não citação de nomes por mim aqui não apaga a história e a importância de todos que compuseram nosso periódico. Entre os muitos nomes sugeridos, foi escolhido, como bem se sabe até hoje e está fadado a assim ser por muito e muito tempo, “Dois Pontos — Teoria e Prática em Educação”. Neste momento da exposição, sou imperiosamente impelido, e não me furtarei a fazê-lo, data venia, a citar dois nomes de pessoas que contribuíram de modo magistral e imprescindível para a criação e sucesso da Dois Pontos nº 47. Faço-o pelo imperativo de que elas foram transferidas para outras esferas que não as de nossos convívios e desejos — passaram a existir somente na dimensão das crenças, da saudosa memória e do reconhecimento dos que as conheceram e ainda não foram. São elas: Lívia Mara de França, psicóloga, e Edméia Passos, jornalista. Então se fez a Dois-Pontos nº 47. House organ incipiente, mas desde o nascimento descobriu-se world organ, pois que o Pitágoras tinha tentáculos de processo educacional mundo afora e adentro, formando cidadãos. Um periódico com capacidade de se autoproduzir sem, 15 16 O olhar do caseiro contudo, abster-se das interações com o meio externo, onde quer que estivesse. Nasceu para ser uma revista que contemplasse a seriedade e a profundidade das acadêmicas com a flexibilidade e a comunicação das noticiosas — um periódico com artigos, reportagens, charges, cartuns, textos de humor, molho. Com magia, razão, intersubjetividade. Desenvolveu-se do meu ponto de vista para a vista de todos os pontos de onde se achavam os outros. E vice-versa. Revista de teoria e prática e, sobretudo, de dois-pontos, um sobre o outro, verticalizado. Não uma ou mais vírgulas, um só ponto intermediário, final ou mesmo um ou vários pontos de interrogação. Nem mesmo três pontos horizontalizados. Isto, sim: dois-pontos que anunciam algo em aberto, nunca do nada, mas de alguma coisa estruturada antes, com consequência e resistindo à análise. Não só dois pontos de dualidade, que se opõem maniqueisticamente entre o certo e o errado, o bom e o ruim, o belo e o feio, o yin e o yang, o sacro e o profano, o confessional e o laico, o científico e o vulgar... Mas dois-pontos que se abrem em janela, mostrando que o mundo é assim, assado e de outros jeitos. Dois pontos que questionam se um afirma sobre alguma coisa e outro nega sobre a mesma coisa: além da afirmativa e da negativa, que vocês têm a dizer sobre isso? 17 Revista Dois-Pontos — Teoria e Prática em Educação, um periódico com a chancela da respeitabilidade cosmopolita do Grupo Pitágoras. Ressurge de uma inanição de novas edições de onze anos sem que tenha caído, em momento algum, no ostracismo. Pelo contrário, foi força sempre presente de sua presença que nos presenteia agora com seu retorno, sob os auspícios e as graças da atual liderança da Kroton. Como um clássico que é, permanece porque não foi datado e pelo fato de ter sabido ser vanguarda. Finalizo dizendo que tenho participado da Dois Pontos desde sua concepção, das primícias ao consummatum est (estágios processuais que se repetiram na edição de cada um de seus números), inicialmente como simples assessor da Superintendência de Programas 18 Especiais do Pitágoras e depois, na função de editor. Pela continuidade da Dois-Pontos e do editor, por ambas, sinto-me distinguido e imensamente gratificado. Na qualidade de editor, sempre fui e serei um caseiro, cujo posto nobiliárquico me deu o prazer e a honra de cuidar do veículo de comunicação educacional, casa móvel que é. Cuidar é tomar conta, adubar o terreno, assentar as sementes (que tinha o privilégio de também escolher), regar as plantas, espantar as aves de rapina... E, depois, colher os frutos e deleitar-me com a beleza das flores. Fernando Caramuru Bastos Fraga, o caseiro. ENTREVISTA / Guiomar Namo de Mello “NOSSA ESCOLA ESTÁ AFASTADA DO ALUNO” POR LUCIANA TOGNOLLI 19 EMPOSSADA NO ÚLTIMO MÊS DE AGOSTO COMO MEMBRO DO CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO, TEM NO CURRÍCULO A EXPERIÊNCIA DE DEPUTADA ESTADUAL, SECRETÁRIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, PESQUISADORA DA FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS E CONSULTORA PARA PROJETOS DE INVESTIMENTO EM EDUCAÇÃO. TOM FIRME, COMPROMETIMENTO INDISCUTÍVEL E DISPOSIÇÃO PARA DEFENDER A FORMAÇÃO DO PROFESSOR COMO CONDIÇÃO PARA O BRASIL EXERCER DE FATO A DEMOCRACIA, GUIOMAR NAMO DE MELLO FALOU À REVISTA DOIS-PONTOS SOBRE JUVENTUDE, TECNOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS. A sociedade contemporânea vive um cenário de muitas e profundas mudanças, há vários modelos familiares, novos espaços comunicativos trazidos pela Internet, certa crise de valores entre os jovens. A escola está preparada para atuar nesse contexto? A escola brasileira não está preparada. Para começar, o Brasil ainda apresenta uma grande desigualdade educacional e a mudança de paradigma que está ocorrendo no mundo inteiro envolve não apenas a educação de uma elite. Isso implica que a grande massa das pessoas possa se apropriar 20 do conhecimento e constituir competências básicas para viver numa sociedade complexa, saturada de informação. Mal a escola se universalizou no Brasil e estamos longe de ter uma educação de qualidade. Nossa escola é afastada da realidade do aluno, tem um currículo enciclopédico, totalmente abstrato, completamente desconectado da vida real na qual há uma série de estímulos mais interessantes. Diante disso, a escola é aborrecida. Hoje os jovens estão cada vez mais desinteressados da escola, e isso acontece em todas as classes sociais. Alguns entendem que a escola é um mal necessário; então, passam pela escola, mas ela não passa pela vida deles de modo a fazer diferença. Entre os mais pobres, que constituem a maioria hoje, a distância entre seus interesses e capacidades e aquilo que a escola demanda é tão grande que inevitavelmente se sentem excluídos, sem projeto de futuro. Então, a escola não está preparada? Qual é o papel da escola nesse contexto? É muito difícil querer propor uma única fórmula, querer uma única resposta, uma única solução para um problema tão complexo. Mas o que a escola deveria estar fazendo nesse contexto é transformar o conhecimento do qual 21 Entrevista / Guiomar Namo de Mello é depositária e tratá-lo na situação de aprendizagem de modo a ser significativo para o jovem. A senhora mencionou o desinteresse do jovem em geral, não só do jovem de escola pública. A razão disso é somente o despreparo da escola? > DO LADO DA ESCOLA, A DIFICULDADE É PROMOVER A APRENDIZAGEM DE UM GRUPO ETÁRIO NATURALMENTE DIFÍCIL, E CADA VEZ MAIS HETEROGÊNEO, EXIGINDO TRATAMENTOS DIVERSIFICADOS PARA ALCANÇAR OS MESMOS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM < A juventude sempre foi uma etapa difícil do desenvolvimento humano. O jovem está passando por uma série de mudanças, tentando se entender como pessoa, definindo a sua identidade. Seus hormônios estão em uma grande revolução. Seu aparato neurológico cognitivo está amadurecendo para o exercício de operações mais complexas. Todos nós fomos jovens e adolescentes e sabemos o que é isso. Acontece que é nessa fase crítica que o jovem precisa fazer escolhas que talvez decidam sua vida dali em diante, escolhas que dizem respeito ao uso do seu corpo, à escolha de uma profissão, ao exercício de uma cidadania responsável, entre muitas outras. 22 > DO PONTO DE VISTA PEDAGÓGICO, O ENSINO MÉDIO EM NOSSO PAÍS É INDIGENTE. É CLARO QUE HÁ BOAS ESCOLAS, HÁ GENTE FAZENDO ESFORÇO, MAS, COMO REGRA GERAL, A ESCOLA É MUITO RUIM < Do lado da escola, a dificuldade é promover a aprendizagem de um grupo etário naturalmente difícil, e cada vez mais heterogêneo, exigindo tratamentos diversificados para alcançar os mesmos objetivos de aprendizagem. Há um desencontro entre a escola e esse jovem, e esse desencontro hoje é mais acentuado por várias razões. Primeiro, no caso brasileiro, porque a escola cresceu e perdeu qualidade, independentemente de o conhecimento ser próximo ou distante. Ela perdeu qualidade. Do ponto de vista pedagógico, o Ensino Médio em nosso país é indigente. É claro que há boas escolas, há gente fazendo esforço, mas, como regra geral, a escola é muito ruim. Não tem instalações, não tem professores bem preparados. Hoje é muito mais difícil ser professor do que há algumas décadas, mas nós não mudamos nada na formação dos professores. Continuamos formando professores como se fazia no modelo dos anos 30. Entrevista / Guiomar Namo de Mello Divulgação Tanta informação disponível que poderia ser uma aliada, de alguma forma, compete com o professor? É claro que compete, e essa competição é tanto mais desigual quanto menos preparado o professor estiver. É uma concorrência muito grande com a escola e muito diferente da época em que ela era o único caminho para se ter acesso à informação, ao conhecimento. Hoje, há muitos outros caminhos para se chegar ao conhecimento. Temos um diagnóstico, o problema existe, a escola está repleta de alunos mas ainda se trabalha pelo básico. O que fazer? Em primeiro lugar, é preciso dar qualidade ao trabalho desse professor. Ele precisa dominar o conteúdo da disciplina que vai ensinar. E dominar a ponto de saber conectar esse conhecimento com a vida real e com conhecimentos das demais disciplinas. Dominar a ponto de fazer do conteúdo curricular uma experiência significativa para um alunado muito heterogêneo. Não é uma tarefa simples. Há o mito de que o professor se cria, se vira sozinho, faz e acontece. Ele não faz e não acontece. Não por sua culpa mas porque também não aprendeu. Na escola particular, o professor tem muito mais acompanhamento. É melhor, entre outras coisas, porque o professor é sistematicamente observado, apoiado nas suas dificuldades. É verdade que na escola particular há seleção do alunado, talvez outro tipo de família, mas também é verdadeiro o fato de que, na escola particular o professor faz parte de algum projeto pedagógico e tem metas a cumprir. Nossa escola pública nem sempre tem um projeto e, quando tem, nem sempre ele é concretizado. A formação é precária, os recursos didáticos escassos e não se consegue ter um projeto conjunto. Tudo isso mostra que, depois do professor, a coisa mais importante é o diretor ou qualquer outra liderança pedagógica existente na escola. O bom diretor tem carisma, tem a heróica “pancada” para liderar um grupo e entusiasmá-lo. Educação tem de ser feita com entusiasmo, porque é trabalho muito duro! É preciso dar atenção ao professor, de perto, e isso custa caro. Hoje vemos vários projetos dando certo. O que faz com que alguns projetos deem certo? É aquilo que nós sabemos que funciona. É gestão, é ter um diretor presente, é ter acompanhamento, estímulo; é garantir melhor salário para o professor, que ganha muito pouco. Sabemos que o salário apenas não é solução, mas nada é solução isoladamente. O pagamento e reconhecimento satisfatório do professor fazem parte da “cesta básica”, dos fatores que impactam a qualidade do ensino. Uma boa escola exige estar perto, ajudando o professor, intervindo antes que o problema seja insuperável. Se o aluno chegou ao Ensino Médio “pré-alfabético”, é urgente identificar esse aluno, saber porque chegou a esse ponto e, se for preciso, alocar um professor para acompanhar individualmente ou em pequenos grupos para assistir e recuperar esse aluno. Do ponto de vista pedagógico, é indispensável – considerando a qualidade da formação do professor no Brasil – disponibilizar material na mão do professor estruturando seu trabalho na sala de aula. Sem querer ser simplista, é fazer na escola pública o que se faz na escola particular. Em sua página na Internet, a senhora reúne material que considera relevante para a educação desse início de século. Algumas coisas ali foram escritas há vinte anos, mas se mantêm atuais. É um indício de que os progressos nas últimas décadas foram poucos? As últimas décadas foram importantes. Junto daquilo que eu disse, havia toda uma geração de gente como eu, dizendo coisas que inspiraram mudanças. Nós influenciamos a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases, demos o impulso inicial para uma importante reforma curricular. Infelizmente ela ficou pela metade durante a primeira década deste século, mas agora está sendo retomada. Por que ela ficou pela metade? Por um erro estratégico, falta de visão ou de experiência de gestão estratégica da educação em países complexos, federativos e desiguais como o Brasil. Também por falta de uma história nacional de gestão educacional democrática. Não podemos nos esquecer de que a nossa democracia ainda não tem trinta anos. E, de repente, a democracia virou o aparelhamento do Estado pelos grupos de interesses particulares, os sindicatos, as corporações. Isso talvez seja o preço que, infelizmente, tenhamos de pagar. O lamentável é que as nossas lideranças políticas não tenham tido essa visão. Alguns tiveram mais do que outros. O Paulo Renato foi um ministro que deu uma contribuição enorme, mas muito do que ele fez precisava ser continuado, avançado, sobretudo na área da organização e da gestão pedagógica da escola. E ainda há o agravante que se repete na esfera pública, que é o fato de sucessores não darem continuidade a projetos já iniciados... Isso é uma praga! (risos) E o que isso exige? Exige que se tenha liderança política e respaldo da sociedade para colocar a educação como um assunto que não é apenas de governo, mas de interesse do Estado e da nação, para que se tenha um mínimo de continuidade para as políticas. Ou, se for o caso de terminar uma política para propor outra, é preciso que existam avaliações visando partir do que já está pronto. Até aqui nós estamos sem- pre começando da estaca zero, inventando a roda. Cite exemplos de não continuidade de políticas públicas. Em 1998, foram aprovadas diretrizes curriculares para o Ensino Médio. Depois disso foram escritos dois ou três documentos oficiais em Brasília repetindo o que já estava nas diretrizes. No entanto, o que deveria ser feito pelos estados e municípios não ficou pactuado e só nesta década começou a ser feito. Veja que os Parâmetros e as Diretrizes curriculares são da segunda metade dos anos 1990. Só agora, nos últimos anos, é que os estados e os municípios começaram a estabelecer seus próprios currículos com conteúdos, com expectativa de aprendizagem, relacionados à capacitação de professores de acordo com as diretrizes. É preciso promover entendimentos para que cada governo novo não decida inventar a roda outra vez... As inovações tecnológicas fazem parte da vida dos jovens, até dos jovens mais carentes. É fundamental para o professor aderir às tecnologias de informação e de comunicação, ou ele pode prescindir dessa tecnologia? Ele não pode prescindir, mas esse é um tema complexo, porque não basta a alfabetização digital, embora ela seja importante. Sem que o professor domine o conteúdo que o aluno precisa aprender, a tecnologia será como uma nave espacial no meio de uma taba de índios. As TCIs são um recurso precioso para aperfeiçoar o processo pedagógico e o trabalho com o conteúdo curricular. Mas é imprescindível que esse conteúdo exista! Não podemos é achar que já resolvemos o problema de dominar o conteúdo e que agora só falta a tecnologia. Isso não é verdade. Mas agora nós temos a oportunidade, veja só, não de fazer o professor dominar a tecnologia digital, mas de capacitá-lo na Matemática, na História ou na Biologia, usando uma ferramenta digital para aprendizagem dele, professor. Usar a tecnologia para que uma pessoa possa aprender é o primeiro passo para que essa pessoa use a tecnologia para ensinar. Se nossos professores não sabem aquilo que deveriam saber, porque não ensinar a eles esse conteúdo, usando pedagogicamente as TCIs? Em seu artigo de 2001, a senhora considerou que o uso do computador pessoal precisaria de aperfeiçoamento e que isso estava longe de ser concluído. Dez anos depois, o aperfeiçoamento obtido acompanhou o que demanda o processo de ensino e de aprendizagem? A educação escolar é uma coisa muito grande e muito difícil de mudar. Quando ela dá um passo, ela também faz um movimento e faz um barulho grande, dado seu tamanho. É muito interessante acompanhar, por exemplo, o raciocínio do Bill Gates, que tem investido muito em educação, em pesquisas sobre o professor. Outro dia ele publicou um artigo no jornal The New York Times afirmando que nunca viu uma coisa tão difícil quanto a educação escolar, e reconhece que quando começou a ocupar-se disso ele desconhecia o nível de dificuldade de se fazer uma mudança e criar um impacto de massa. Fazer uma escola boa é fácil. Fazer duzentas mil escolas boas é que é difícil. Isso é difícil por não haver investimento também na formação do cidadão? Claro! A formação, o apoio, os recursos disponíveis para o professor em sala de aula. E não apenas de formação do ponto de vista de conhecimento, mas do tipo de entusiasmo que você tem de injetar nesse professor para que ele seja inspirador de seus alunos. Veja bem, a educação de qualidade é cara. Basta ver quanto é a mensalidade das boas escolas particulares que têm alunos selecionados, de origem econômica e cultural favorecida. A educação de qualidade para um aluno que não teve nem tem as condições do aluno de classe média e alta, é ainda mais cara. É preciso focalizar o financiamento e investir muito mais na aprendizagem de crianças e jovens de baixa renda. A cidadania está sempre presente nos programas escolares, mas de que forma, efetivamente, as escolas podem formar cidadãos? Quanto mais a escola propiciar a construção de um conhecimento signifi- cativo que tenha sentido, com o qual o aluno saiba lidar, que ele consiga usar na vida dele, mais haverá formação para a cidadania. A escola não forma para cidadania como o partido, nem como a igreja. A escola forma para a cidadania na constituição do conhecimento, das competências cognitivas e sociais. Esse é o papel da escola. Talvez no futuro seja diferente, mas até agora esse é o papel dela. Então, quanto mais o aluno aprender na escola e, partindo de lá, apoderar- se de um conhecimento que de fato seja útil para a vida dele, da sua comunidade e da sua família, melhor ela está formando um cidadão. Afinal, o que é um cidadão bem formado? É aquele indivíduo que sabe tomar decisão, que tem autonomia, que respeita o coletivo, mas que não se dilui no coletivo, que é dono da sua própria individualidade, que sabe estabelecer seu projeto de vida. O que é preciso para isso? Dominar a língua, saber ler, ter um bom raciocínio quantitativo, lógico e matemático, e entender como é a sociedade, e como funciona a natureza. Então, a formação do cidadão por meio da escola é mais eficiente se ela permeia o currículo como um todo, e não sendo apenas um conceito presente no currículo... A cidadania na escola não existe fora do currículo. Se você colocá-la fora do currículo, ela vira uma alma penada. Ela começa a flutuar, e o único meio de fazê-la aterrissar é tendo o domínio dos conteúdos curriculares. O cidadão é formado por quanto mais ele dominar a história, quanto mais ele entender o corpo dele. No dia em que ele for dono de si, capaz de dizer o que ele vai fazer com o corpo dele, se ele vai fazer dieta, se não vai fazer dieta, se ele vai fumar, se ele vai beber, se ele vai usar drogas, ou se ele vai fazer sexo antes do casamento, estará decidindo como cidadão. Não adianta a cidadania servir para entrar na faculdade. Antigamente, a família dava conta disso, hoje não. A cidadania fora do currículo, no meu modo de ver, é uma alma penada, ela vira um mantra. No Conselho Estadual de Educação de São Paulo, com a sua vivência formulando, propondo, estudando, há como priorizar necessidades? A prioridade é: gestão da escola e do professor. A prioridade é ter um currículo que seja mais enxuto, não se pode ter um currículo que seja uma árvore de natal. Se olharmos tudo o que foi emendado na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) criando disciplinas, vemos bem como é a cabeça do brasileiro. A LDB foi muito econômica no currículo, depois todo o mundo fez uma emenda instituindo a disciplina de sua preferência como obrigatória: a Sociologia, a Filosofia, os estudos afro-brasileiros, a educação indígena, a música. A LDB nunca disse que a Língua Portuguesa é obrigatória e os congressistas, com apoio do Conselho Nacional de Educação, fizeram a Sociologia e a filosofia obrigatórias. Essas são ações para atender a interesses de mercado? Há outras razões aí que não ampliar o conhecimento? Somos uma democracia jovem que não consegue ver o Estado como representante, em primeiro lugar, do bem coletivo. Então, o Estado é um aparelho para eu criar mais aulas para os professores. Do mesmo jeito que o Estado é um aparelho para eu comprar voto. Há uma relação com o Estado como se ele fosse interesse da propriedade privada. Menos que a economia de mercado, é a economia dos interesses corporativos que prejudica a educação. Os pontos que a senhora considera como negativos, ou, digamos, os pontos a trabalhar, os imprescindíveis, a senhora deixa muito claros. O enxugamento do currículo, dar ênfase para aquilo que é básico. A língua portuguesa, a leitura, a matemática, os estudos da sociedade e os estudos da ciência. O que a senhora mencionaria como os maiores problemas da educação brasileira? A formação do professor é o maior problema. É o que a senhora destacaria como ponto positivo na educação brasileira? A primeira coisa é a conquista quantitativa. Nós conseguimos universalizar o Ensino Fundamental, estamos caminhando para universalizar o Médio e isso é uma conquista do povo brasileiro que demorou muito tempo. Acho que esse é o primeiro ponto. O segundo é que nós temos um ordenamento legal, um sistema de financiamento, temos normas já estabelecidas. Avançamos muito criando todo esse aparato normativo, que é fundamental para a educação num país democrático. Há um caminho já percorrido que permite seguir em frente... O balanço que eu faço hoje me diz que ainda tem muita coisa ruim. Então, como é que nós poderemos avançar? Em vez de ficarmos o tempo inteiro lamentando o que passou, é preciso dizer “eu caminhei até aqui, falta ir até lá”. REPORTAGEM OS JOVENS E AS REDES SOCIAIS: VIDA PÚBLICA OU PRIVADA? POR RAQUEL ROSCÉLI D ois bilhões. De acordo com dados da ONU, esse é o número de pessoas que fazem uso da internet ao redor do mundo. No Brasil, 99% dos internautas dedicam parte do tempo na web conectados às redes sociais. Orkut, Facebook e Twitter são as preferidas. Nesse espaço virtual, a vida > MUITOS JOVENS PARECEM TER ESQUECIDO DE QUE A INTERNET É UM ESPAÇO PÚBLICO < social anda tão intensa, ou mais, do que na “real”. Na maré da virtualidade das relações, como os jovens estão lidando com essas ferramentas? Nem sempre da melhor maneira. Fotos comprometedoras e declarações ofensivas são parte do arsenal para as “saias justas” que muitos adolescentes vêm recebendo em função de suas performances na rede. Um problema que está intrigando alguns educadores é como proceder quando a “publicação online” afeta a escola. Muitos jovens parecem ter esquecido de que a internet é um espaço público. O que é postado na rede pode se reproduzir de forma viral. Vários episódios registrados na mídia demonstram isso. Recentemente, por exemplo, em uma escola de Osasco (SP), durante um intervalo, alguns alunos decidiram se deitar em colchonetes que estavam no pátio para uma aula de Educação Física. Um deles tirou uma foto e postou no Facebook sob a legenda: “Olha as aulas que temos aqui”. Uma professora, que também faz parte da rede social, alertou a direção da 37 escola. O estudante foi punido e a foto retirada da internet, sob alegação de ser prejudicial à imagem do colégio. > ESTIMA-SE QUE, NO BRASIL, O FACEBOOK TENHA 19 MILHÕES DE USUÁRIOS, E O ORKUT, 32 MILHÕES < Para a filósofa, mestre em Educação, Tania Zagury, é preciso ter cautela quando o assunto são redes sociais: “Essas novas formas de comunicação são muito recentes. Não dá pra falar em certo ou errado. Só teremos clareza a respeito da maneira como elas afetam a vida das pessoas, das famílias, das escolas, ao longo do tempo”. Tania acaba de lançar “Filhos: manual de instruções”, livro que tem um capítulo inteiramente dedicado à orientação em relação ao assunto. 38 Para ela, a primeira coisa a se ponderar é que não se pode ignorar o fenômeno. Estima-se que, no Brasil, o Facebook tenha 19 milhões de usuários, e o Orkut, 32 milhões. Um número significativo, que alçou o Brasil à terceira posição no ranking dos países que mais acessam redes sociais. No Rio de Janeiro, um colégio particular suspendeu uma aluna de 15 anos, após descobrir que ela mantinha uma comunidade no Facebook para compartilhar respostas dos deveres de casa. A direção da escola considerou a atitude como “cola virtual”. Além da suspensão da estudante, os pais dos 700 alunos que faziam parte da comunidade foram notificados. A família da aluna suspensa não concordou com a punição e decidiu levar o caso à Justiça. Na Redes socias > DIANTE DA PRESENÇA IRREVOGÁVEL DAS MÍDIAS SOCIAIS NA VIDA DOS JOVENS ESTUDANTES, O ASSUNTO PRECISA SER INSERIDO DENTRO DE SALA DE AULA < opinião de Tania Zagury, é importante que a escola não se omita em relação ao comportamento dos alunos nas redes sociais e adote uma postura pedagógica. “Esses jovens estão em formação. Se tiverem uma atitude considerada antiética devem ser orientados. As escolas precisam começar a criar seus critérios em relação à maneira que vão atuar nisso”, afirma. vens estudantes, o assunto precisa ser inserido dentro da sala de aula. Tania alerta para a necessidade do diálogo. Para ela, é papel da escola conversar com os alunos sobre os cuidados que se deve ter com as mídias em geral. Discutir essas formas de exposição é importante pra que os jovens não se tornem vítimas das novas tecnologias. “Os meios de comunicação não são ruins em si. O uso que se faz deles que os torna uma coisa positiva ou negativa”, resume. Cautela, mas também abertura. Diante da presença irrevogável das mídias sociais na vida dos jo39 REPORTAGEM TWITTERATURA: NASCE UM NOVO MEIO LITERÁRIO? POR RAQUEL ROSCÉLLI “L ava carros o dia inteiro, com o único braço. Só sente falta do membro amputado quando chega em casa, e abraça pela metade a mulher amada”. Em 140 caracteres, o escritor José Rezende Jr. escreveu este microconto. Há muitos anos, Ernest Hemingway foi ainda mais sucinto ao resumir em 26 letras uma tragédia familiar: “Vende-se: sapatos de bebê. Sem uso”. A modalidade literária vem ganhando adeptos no Twitter, é chamada de twitteratura. Nela, a síntese e a criatividade andam juntas para contar, e compartilhar, uma estória. Dessa forma, o microblog vem ganhando novos usos, para além do vazio que geralmente se credita às redes sociais. José Armando Valente, pesquisador do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied), da Universidade de Campinas (Unicamp), vê nessas novas tecnologias possibilidades de aprendizado. Para ele, as escolas podem, e devem, integrar o uso das redes sociais em seus currículos. Uma pesquisa feita pelo Ibope Nielsen revelou que, em dezembro do ano passado, cerca 42 de 14% dos internautas brasileiros eram crianças de 2 a 11 anos. Com os pequenos desde cedo antenados à rede, é natural que as escolas façam o mesmo. No entanto, essa aproximação não deve ser feita a esmo. “As redes sociais devem ser utilizadas como ferramentas pedagógicas. O acesso dentro da escola deve ser orientado, trabalhado dentro de uma proposta curricular. De outra forma se perde todo propósito”, pontua Valente. Para ele, alguns professores têm adotado pontualmente recursos da web em sala de aula. No entanto, a maioria não explora as ferramentas de forma satisfatória para o ensino. “Alguns educadores, por iniciativa própria, usam blogs de forma isolada. Por exemplo, para transmitir conteúdos que estão dentro do currículo, ou receber tarefas dos alunos. Mas isso não é inovador. É apenas transmissão de informação”, afirma. > PARA SE APROXIMAR DA LINGUAGEM E DOS MECANISMOS DA INTERNET, O EDUCADOR DEVE FAZER UMA PARCERIA COM OS ALUNOS < Para otimizar o uso das redes sociais, é preciso fazer um trabalho de integração mais profundo. “O que acontece é que muitas vezes o professor domina o currícu> O QUE ACONTECE É QUE lo, mas não domina a tecnologia, MUITAS VEZES O PROFESSOR de maneira que não consegue DOMINA O CURRÍCULO, MAS NÃO DOMINA A TECNOLOGIA < explorá-la da melhor forma den43 Twitteratura: nasce um novo meio literário? tro do aspecto curricular”, explica o pesquisador. Para se aproximar da linguagem e dos mecanismos da internet, o educador deve fazer uma parceria com os alunos. “Essa molecada domina as redes. Os professores precisam ouvir e aprender com eles”, incentiva Valente. > O TWITTER PODE AJUDAR O ALUNO A ESCREVER DE FORMA MENOS PROLIXA < E como usar as redes sociais, na prática, dentro de sala de aula? Para o pesquisador, as possibilidades são inúmeras. O Twitter pode ajudar o aluno a escrever de forma menos prolixa. Quando trabalhado dentro do currículo de Língua Portuguesa, pode ser uma 44 ferramenta para os alunos sintetizarem ideias. Já com o Facebook, o professor pode explorar a convergência de texto e imagem. “Muitas vezes o aluno posta uma foto isoladamente, sem contextualizá-la. O uso integrado de texto, vídeo e fotos pode enriquecer a narrativa”, explica Valente. Os governos Federal, Estaduais e Municipais começam a colocar em prática um projeto que pode ajudar a mudar o método tradicional de ensino, o Programa “Um Computador por Aluno”, o PROUCA. Desde meados de 2010, 300 escolas públicas estão recebendo laptops para todos os alunos e professores. O objetivo é promover a inclusão digital e disseminar a tecnologia. José Armando Valente tem acompanhado a implantação do projeto: “A aceitação dos alunos > É PRECISO VALORIZAR AULAS QUE SEJAM CONDIZENTES COM A ATUALIDADE, QUE SUPEREM OS ABISMOS QUE A ESCOLA TRADICIONAL TEM CRIADO COM A MODERNIDADE < é total. Estamos estudando como complementar a atividade do lápis e papel através dos computadores. Ainda é cedo para falar em mudanças qualitativas, os professores estão sendo treinados para se apropriarem da tecnologia”, explica. Com apoio da gestão da escola, capacitação e criatividade, os professores poderão começar a aplicar outros tipos de aula. Aulas que sejam condizentes com a atualidade, que superem os abismos que a escola tradicional tem criado com a modernidade. 45 Como conviver com as mídias de forma saudável No tempo de seus avós não existiam. Na infância de seus pais, começaram a aparecer com mais frequência — especialmente nas classes A e B. Na sua meninice pareciam fazer “parte da paisagem”, quer dizer, você nem achava que era algo extraordinário que merecesse comentários ou comemoração— lhe parecia que sempre existiram... Parece até aquela brincadeira “o que é o que é”... Basta, porém, pensar um pouco para compreender que estou, obviamente, me referindo ao computador, à televisão, ao telefone celular, à internet rápida, ao DVD player, ao GPS, ao cinema, à TV de alta definição e em 3D. E outras maravilhas da tecnologia moderna. Para quem nasceu com todas essas maravilhas dentro de casa, pode parecer engraçado ou até estranho ouvir alguém comentar e se maravilhar. Provavelmente você deve estar pensando isso é coisa de “gente velha, muuuuito velha”. Nem tanto assim! As duas últimas décadas trouxeram mais progressos tecnológicos e científicos do que séculos anteriores inteirinhos... Portanto, não é coisa de muito tempo não. Talvez de, no máximo, 50 anos. 46 E se você pensa assim, imagine como os seus filhos pensarão daqui a trinta anos! E olha que nem citei os consoles portáteis para jogos eletrônicos que deixam as crianças apaixonadas — PSP, DS, uma sigla nova a cada dia... Até este livro chegar às livrarias com certeza terão surgido mais novidades de última geração. Muitas mais! O que hoje encanta e se torna objeto de desejo até de adultos, provavelmente já está sendo ou virá facilmente a ser parte integrante do dia a dia de quem nasceu depois dos anos 1990, tal como o forno de micro-ondas, os fogões com acendimento automático e as geladeiras com degelo automático: benesses que encantaram os seus pais (melhor dizendo, a sua mãe — que não precisou mais descongelar a geladeira a cada dois meses), mas que, para você, nem novidade mais eram. Aliás, você sabia que as donas de casa tinham que desligar a geladeira a cada mês, esperar o gelo descongelar todinho, a água escorrer, para depois limpar e poder ligar novamente? É, dava um trabalho... Mas isso só até aparecer a tecnologia Frost Free, que dispensa descongelamento por todo o sempre! E que você, provavelmente, tem desde que montou sua casa; por isso, se- 47 quer imagina que existia algo menos que isso apenas quinze anos atrás... E o que é que isso tudo tem a ver com a educação de meus filhos, com certeza, você deve estar se perguntando. E suando frio só de pensar que até com essas coisas úteis e tão inofensivas eu vá dizer que os pais precisam se preocupar. Não. Não precisa se preocupar com todas as novas tecnologias — de forma alguma. Ufa! Alívio! Com algumas delas, no entanto, sem dúvida há que se preocupar (e sem choro, que não adianta nada. O importante é refletir, aprender a respeito e AGIR). Que cuidados ter? Com o DVD player, nenhum... Mas, com o conteúdo dos filmes que seu filhote vai assistir a partir dele, sim. Os mesmos cuidados que com relação aos programas de tevê, apenas isso. E exatamente também os mesmos em relação aos joguinhos eletrônicos: • Preocupe-se com as mensagens: devem ser adequadas à idade; apenas esse cuidado é suficiente.• A criança até sete anos, pelo menos, ainda não está com sua capacidade de análise e julgamento críticos desenvolvidos. 48 • Em outras palavras, a formação de conceitos éticos ocorre paulatinamente e sob orientação, não nasce com a criança. Conceitos morais são aprendidos. E de preferência com os pais ou com alguém que ama e cuida da criança. Seguramente não serão, nem a tevê nem o conteúdo de certos jogos eletrônicos, os melhores orientadores... • Se você lhe comprar o joguinho em que o objetivo é atropelar o maior número possível de senhoras idosas, que coisa saudável ela estará aprendendo? • A preocupação básica deve ser: divertir, distrair, fazer rir e, sempre que possível, ensinar alguma coisa, nem que seja pela mensagem que encerra. Portanto, evite temas que instiguem a violência, o desrespeito, o medo, a agressividade ou a ansiedade. Mas será que faz mal mesmo? Tem especialista que critica, e outros que afirmam não trazer problema algum. Afinal, onde está a verdade? Difícil, não é? Mas vamos pensar juntas: Você não questiona vacinar seu filho, questiona? Por quê? Porque a prevenção é, sem dúvida, o melhor que você pode lhe oferecer. É a mesma coisa em relação aos jogos eletrônicos, tevê, internet e sites de 49 relacionamentos. Existem estudos que apontam benefícios que as crianças podem desenvolver ao utilizar as maravilhas da tecnologia moderna. E isso é bom, sem dúvida. Mas são benefícios de que teor? Raciocínio, agilidade mental, cálculo, leitura, coordenação motora ampla ou fina. Perfeito. Concordo plenamente. Ocorre que tais benefícios podem, além do mais, ser acrescidos de conteúdo positivo. Por exemplo: salvar a cidade que está poluída; salvar a princesa que está presa na torre etc. Agora, atropelar vovozinhas... Por que não escolher o adequado, se podemos? Há controvérsias, sim, mas já se pode afirmar com certo grau de segurança que: Assistir tevê, jogar jogos eletrônicos e utilizar o computador — em princípio — são atividades que não fazem mal às crianças. Puxa, que bom, vou liberar o Júnior, hoje mesmo, que sossego vou ter. É, parece ótimo. Mas, por favor, não libere o Júnior ainda não, porque tem um “porém” importantíssimo! 50 Agora você está pensando “ai, lá vem a Tania com os poréns!” Mas é que há sempre algum porém, mesmo. Não se deve, porém, liberar qualquer joguinho, filme ou programa de tevê em qualquer idade e durante todo o tempo que a criança quiser. E isso porque existem, sim, alguns perigos que você pode evitar: PERIGO nº 1 As mídias começam a se tornar prejudiciais quando o número de horas de uso aumenta a tal ponto que a criança deixa de sair de casa para brincar e só se motiva frente às diversas telinhas (agora não é só a da televisão), onde permanece hipnotizada, horas a fio. Só mexe os dedinhos; nem pisca — os olhos ficam até secos, desidratados... O que significa dizer, em outras palavras, que: • A quantidade de horas e o conteúdo da programação ou dos jogos devem ser observados e supervisionados pelos pais. Um estudo do Ibope, de 1997, mostrou que a criança brasileira ficava 3h57min, em média, frente à tevê. É bem provável que esse tempo já se tenha estendido hoje — afinal foram-se mais de treze anos. O tempo médio, 51 à época, já quase igualava o de horas diárias na escola. Não pode ser bom, não acha? É muito. Sem contar o tempo gasto com os jogos eletrônicos e o computador. PERIGO nº 2 As mensagens subliminares que os anunciantes desejam que o espectador absorva são habilmente colocadas, de forma que a criança provavelmente se torna uma reprodutora inconsciente de conceitos que essas entidades têm interesse em disseminar — evidentemente em seu favor, e não no das necessidades das crianças. Quem assiste mais horas, dia após dia, desde muito jovem, evidentemente tem mais possibilidade de incorporar tais mensagens massivamente recebidas e pouco ou nada discutidas. O consumismo — “comprar, comprar, comprar” —, que provoca tantos problemas na família, pode perfeitamente ser uma das mensagens negativas introduzidas pela mídia eletrônica e incorporadas por muitas crianças, adultos e jovens com pouco ou nenhum poder de crítica. O que, em outras palavras, quer dizer que: • A melhor forma de lidar com a telinha é cuidar para que a criança assista, sim, tevê, mas um pouco, não horas e horas seguidas, e sempre programas selecionados por você. Quanto menor a idade, mais supervisão. 52 Significa ainda que: É importante e necessário discutir, trocar ideias e analisar com seu filho — evidentemente de acordo com a possibilidade e o desenvolvimento intelectual de cada idade — significados e objetivos que permeiam as mensagens. Isto é, ajudá-lo a se tornar, pouco a pouco, espectador crítico e não receptáculo passivo e obediente dos ditames da mídia. PERIGO nº 3 Pela inexperiência e ingenuidade próprias da infância e da adolescência, os jovens tornam-se alvo fácil de predadores sociais (pedófilos, traficantes de drogas ou de pessoas, assaltantes e outros). São facilmente convencidos, através dos múltiplos expedientes usados por adultos mal-intencionados, a fornecer dados, informações pessoais e da família, os quais são utilizados para atingir seus objetivos nefastos. Sem mencionar que, além disso, costumam induzi-los a mentir, disfarçar e ocultar fatos, principalmente para seus pais, de forma a não serem descobertos, nem suas armadilhas abortadas. A imprensa vem noticiando seguidamente vários — não apenas um ou dois — casos de sequestro, assalto a residências, estupros ou desaparecimentos que começaram dessa forma. 53 Não é preciso falar de outros perigos, certo? Esses bastam e já são suficientemente assustadores. Então, o que fazer? • Não ter em casa? • Não deixar usar, se você tem em casa? • Proibir de usar na casa de amiguinhos? Não, nada disso funciona; e é quase como ser um novo Dom Quixote de La Mancha, numa luta inglória e enlouquecida! Proibir pura e simplesmente, ou não ter em casa, costuma apenas fragilizar a criança que fica com “água na boca” e acaba querendo aproveitar qualquer oportunidade que surja para ver os programas e filmes, jogar os joguinhos e usar o computador. Os amiguinhos que assistem, obviamente, comentam com riqueza de detalhes naescola, pracinhas e playgrounds, tornando a proibiçãouma faca de dois gumes. Combate-se esse tipo de perigo com algum sucesso através do SABER (que seus filhos adquirirão aos poucos), do cuidado e supervisão dos pais. 54 Antes, no entanto, é preciso que os responsáveis analisem e decidam — em conjunto — o que permitirão e o que não consideram positivo que os filhos assistam. A idade das crianças também deve pesar e nortear essa decisão, tanto em relação aos diferentes programas quanto aos veículos de entretenimento. É especialmente importante que ambos, pai e mãe, concordem sobre isso e orientem os que cuidam dos filhos na sua ausência para agirem da mesma forma. 55 ARTIGO FILHO: ESTORVO OU TROFÉU PEDRO FARIA BORGES S e a sociedade espera que a família seja a principal responsável pela educação dos filhos, então é necessário que ela lhe dê apoio para o desempenho dessa missão. Assim como os profissionais da educação recebem formação específica para essa tarefa, os pais também devem ser preparados para educar os filhos e precisam receber ajuda para desempenhar o papel de educadores. Com o nascimento de uma criança, mulher e homem se tornam pais, mas isso não significa que estejam preparados para educar essa criança, principalmente quando se vive em sociedades tão complexas quanto a nossa. Não há uma capacidade natural de mães e pais para educar os filhos. A família, na maioria das vezes, não possui os conhecimentos 58 e as habilidades que a sociedade supõe que ela tenha e, com muita frequência, não consegue ser efetiva na educação dos filhos. Transmitir a cultura de uma geração para outra é papel fundamental da educação. Nas sociedades primitivas, o principal objetivo do processo educacional é garantir a imutabilidade das técnicas de que elas dispõem, o que torna mais fácil a tarefa dos pais, porque não há mudanças. O pedreiro ensina o filho a construir casas como ele aprendeu com seu pai; o agricultor passa para o filho as técnicas para cultivar a terra que ele adquiriu com os pais; os pais criam (educam) os filhos como eles foram criados (educados). Em algumas regiões deste imenso país, ainda continua sendo assim, mas isso se torna, cada dia, mais raro. > “SE, NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS, É POSSÍVEL EDUCAR OS FILHOS TAL COMO FOMOS EDUCADOS POR NOSSOS PAIS, NAS SOCIEDADES CIVILIZADAS, É PRECISO EDUCAR-SE PARA fomos educados por nossos pais, nas sociedades civilizadas, é preciso educar-se para educar os filhos. Embora as perguntas sejam quase sempre as mesmas, precisamos de respostas novas, mais adequadas aos novos tempos. EDUCAR OS FILHOS” < Nas sociedades civilizadas, a educação é responsável não apenas por transmitir a cultura; ela se responsabiliza também pelo aprimoramento e pela correção das técnicas de que dispõem essas sociedades. É preciso que as pessoas estejam preparadas para enfrentar situações novas e processos de mudança. Elas necessitam de novos conhecimentos, de novas habilidades e competências. Se, nas sociedades primitivas, é possível educar os filhos tal como A sociedade brasileira passa por muitas transformações, e é bem provável que seja a família a instituição que mais venha sentindo os impactos dessas mudanças. Tanto que se ouve falar, com frequência, de crise na família, e aqueles que são mais trágicos falam até de seu desaparecimento. Não são raros os que atribuem todos os males da atualidade à desestruturação da família. Trata-se, no entanto, de novas configurações familiares, e o que alguns chamam de desestruturação é, na realidade, novas formas de estruturação. 59 Filho: estorvo ou troféu ENTRE 1999 E 2009: O NÚMERO DE CASAIS SEM FILHOS CRESCEU DE 13,3% PARA 17% NO BRASIL, SEGUNDO O IBGE 60 A PESQUISA DO IBGE CONSTATOU TAMBÉM QUE O PERCENTUAL DE CASAIS COM FILHOS CAIU DE 55% PARA 47% 61 Filho: estorvo ou troféu Entre os fatores que dão origem a novas formas e tipos de família, os especialistas apontam como principais: o incentivo à individualidade presente em nossos dias, a inserção da mulher no mercado de trabalho, o controle do tamanho da família e do momento de procriação, as novas formas de união, o grande número de separações e divórcios e a maior liberdade para novos arranjos familiares. Se olharmos ao nosso redor, veremos famílias menores, menor número de crianças, crescente aumento do número de idosos, crianças criadas cada vez mais pelos avós do que pelos pais, maior número de casais sem filhos, maior número de famílias monoparentais, número crescente de famílias reconstituídas. Dados do IBGE confirmam nossas observações. De 1999 para 2009, houve um aumento na proporção de casais sem filhos, de 13,3% para 17%, e, consequentemente, uma redução de casais com filhos, passando de 55% para 47%. Em 2000, havia 50 milhões de crianças; em 2010, 45 milhões. Em 2009, a taxa de fecundidade total (número médio de filhos que uma mulher teria ao final do seu período fértil) foi de 1,94 filhos, valor que mostra o resultado de um processo intenso e acelerado de declínio da fecundidade ocorrido na sociedade brasileira nas últimas décadas. Entre 2000 e 2009, a taxa de fecundidade passou de 2,39 para 1,94 filhos por mulher. O mais interessante, no entanto, apontado pelos dados do IBGE, é que quanto mais as mulheres estudam, menos filhos têm. Mulheres com até sete anos de escolaridade têm quase o dobro de filhos do que aquelas que têm oito anos ou mais de estudos. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2009 revela que mulheres com sete ou menos anos de estudo têm filhos mais cedo – a maioria, entre 20 e 24 anos (37% do total). Entre as adolescentes, de 15 a 19 anos, que têm menos de sete anos de estudo, 20,3% são mães. O que se verifica é que pessoas com menor renda e escolaridade geralmente têm filhos mais cedo e em maior número; pessoas com maior renda e mais anos de estudo, quando têm filhos, elas os tem em menor número e mais tarde. No primeiro caso, o filho quase sempre é um estorvo; no segun- do, na maioria das vezes, a criança se transforma num troféu. As notícias sobre abandono de recém-nascidos, crianças colocadas em latas de lixo, em portas de residências, agredidas ou mortas pelos próprios pais são frequentes em nossos dias. São seres humanos que chegaram no momento errado, que representam um impedimento, um obstáculo, um embaraço na vida de seus pais. Quando não são descartadas, essas crianças acabam sendo educadas pelos avós, porque os pais não têm condições financeiras nem emocionais para cuidar delas. Por outro lado, são também frequentes as notícias de barbaridades cometidas por jovens que não podem ser contrariados, que não suportam frustrações, que não dão conta de conviver com os menores obstáculos, porque foram criados 63 tendo todas as suas vontades satisfeitas, sem que precisassem de qualquer esforço para conseguir o que queriam. Foram educados como se fossem donos do mundo, como sendo os mais bonitos, os mais inteligentes, os melhores em tudo. São apresentados aos parentes e aos amigos como um troféu. São frutos de um projeto: os pais procuraram primeiro a realização profissional, preocuparam-se antes em ter as condições materiais necessárias para que o filho pudesse ter tudo (casa, carro, empregados, escola, aulas de natação, tênis, línguas, viagens, intercâmbio...) que eles não tiveram. Educados assim, esperam de todos subserviência, sem estarem dispostos a nenhuma contrapartida. Esses, quando se deparam com a realidade, geralmente só encontram refúgio nas drogas. 64 Os pais que abandonam seus filhos à própria sorte são execrados pela sociedade; aqueles que têm o filho como o ápice de uma vitória sobre as dificuldades da vida e o protegem como um objeto precioso não devem ser odiados por nós, mas precisam ser alertados, para não causar prejuízos que, em alguns casos, são mais danosos para a sociedade do que os provocados pelo abandono. Na nossa sociedade, a função dos pais só se completa quando mulher e homem, além de genitores, também se tornam educadores. Para gerar um novo ser, basta o amadurecimento biológico que, em condições normais, é natural; para ser educador, é preciso bem mais. Há uma preocupação crescente da sociedade com a qualidade da educação, mas raramente se vê, em nos- so país, alguma iniciativa que tenha como foco a formação dos pais. Aproximar família e escola, sem que haja programas que aprimorem pais e educadores, na maioria das vezes, só serve para criar mais conflitos e tensões entre as instituições, sem resultados positivos para o desempenho dos alunos. Mais do que computadores em sala de aula, mais do que laboratórios ou praças de esporte, programas que pudessem dar aos pais uma formação que lhes permitisse serem efetivos na educação dos filhos teriam maior impacto na melhoria da educação. Não se trata de transformar pais em professores. Embora seja difícil, na atualidade, definir o que cabe à família e o que é de responsabilidade da escola na educação das novas gerações, não se pode eliminar a distinção entre o papel dos professores e o dos pais, mas tanto pais quanto professores precisam ser pessoas com certo grau de maturidade. Uma pessoa madura afeta positivamente a vida daqueles com quem ela convive. Influencia a escolha de uma carreira, inspira uma postura de comprometimento e responsabilidade diante da vida, fortalece a confiança e a autoestima da criança e do jovem. Já uma pessoa mesquinha, insegura, negativa, principalmente convivendo com crianças e jovens, pode matar sonhos, destruir vidas. A ironia, a violência, o desrespeito, a deslealdade, o jogo de poder, as baixas expectativas e a infantilidade dos adultos contribuem muito mais decisivamente para os fracassos da educação do que a falta de recursos, do que as carências materiais da família ou da escola. 65 Os pais, mesmo os mais conscientes e interessados, gastam grande parte de seu tempo na busca de informações e de orientação para a educação dos filhos. Muito pouco de seus esforços são gastos no aprimoramento de suas habilidades de convivência, de comunicação; cuidam pouco de seu crescimento pessoal. De modo geral, tanto as famílias quanto as escolas preocupam-se mais com os conteúdos, com os métodos, com as estratégias, com a infraestrutura do que com as pessoas que estão envolvidas no processo educacional. Não há investimento mais proveitoso do que aquele que pais e educadores fazem no próprio crescimento. As atitudes do educador calam mais fundo no coração das novas gerações do que suas palavras. Há ensinamentos que se transmitem principalmente pelos exemplos. 66 Conviver com uma pessoa generosa nos educa mais do que discursos sobre a generosidade. Os pais precisam ser educadores e, para isso, é necessário que recebam uma formação adequada. Considerando o amor e a dedicação que percebemos na maioria dos pais, é possível dizer que a tarefa de educar os filhos, talvez, não seja difícil, mas complexa. Por ser complexa não se pode, satisfatoriamente, dar conta dessa responsabilidade apenas com amor e dedicação; ela requer preparo. As necessidades e as expectativas das famílias variam, dependendo das condições sociais, mas é possível criar um programa de formação de pais até em escala nacional. A falta de informação e de conhecimentos básicos está na origem de muitas das dificuldades de um grande número de famílias brasileiras para educar os filhos. Há países que têm programas nacionais, para orientar os pais sobre aspectos de saúde, nutrição, desenvolvimento psicológico de crianças e jovens. Em nosso país, até o momento, não há, em escala nacional, nenhum programa de governo que se preocupe com a formação dos pais. Há iniciativas que buscam estreitar os laços entre família e escola, fortalecendo a participação dos pais na educação das crianças e dos adolescentes, na maioria das vezes lideradas pela sociedade civil, mas são raros os movimentos que têm como foco a formação dos pais. Na maioria das famílias brasileiras, mães e pais sabem apenas intuitivamente sobre o desenvolvimento psicológico da criança, conhecem pouco das teorias sobre ensino e aprendizagem, não sabem quais são as intervenções mais adequadas e se sentem, na hora de educar, perdidos, desorientados. Embora sejam considerados desinteressados, percebe-se, quando se criam oportunidades de formação, que muitos se sentem felizes em ser acolhidos, orientados e sempre querem aprender mais sobre a educação de seus filhos. O que os pais já não suportam mais é serem cobrados constantemente, sem que alguém lhes ajude a encontrar soluções para os problemas que eles veem, mas que não conseguem resolver sozinhos. Criar programas de formação de pais pode contribuir de modo significativo para a melhoria da educação. Atualmente, algumas escolas, cientes de suas necessidades e responsabilidades, têm procurado construir, quase sempre isolada- 67 mente, seu programa de formação de pais. Pode e, se possível, deve construí-lo com a cooperação dos pais. Se possível, também é conveniente criar um programa em conjunto com outras escolas, pois o processo é mais rico e menos oneroso. Criar um programa dessa natureza não é obrigação da escola, mas pode torná-la especial. Referências BORGES, Pedro Faria. Queridos pais. Belo Horizonte: Vereda, 2011. IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2010. Rio de Janeiro: IBGE. 2010. IBGE.Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: PNAD. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. 68 GENTE ALUÍSIO PIMENTA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA PASSA POR SEU NOME > “DOIS-PONTOS” CONVERSA COM ALUÍSIO PIMENTA, NOSSO PRIMEIRO ENTREVISTADO HÁ 28 ANOS, NA EDIÇÃO NÚMERO ZERO DA REVISTA < P oucos nomes são tão representativos para a educação brasileira como o desse mineiro de Peçanha, doutor em Química Orgânica, que deixou um legado de boas ideias e práticas para o desenvolvimento do saber em suas passagens como reitor da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade do Estado Minas Gerais. Para celebrar o retorno da Dois-Pontos, retomou-se o primeiro entrevistado, professor Aluísio Pimenta. Passaram-se 28 anos desde que aquele número zero da revista foi publicado. De lá pra cá, o socialismo sucumbiu à economia de mercado, o mundo se globalizou e se virtualizou. Hoje, um abalo na bolsa de Tóquio se faz sentir pelo produtor rural dos confins do Nordeste brasileiro. Telefone celular é item de sobrevivência e não se pode imaginar a 71 vida sem wireless. E na educação? Como o Brasil trilhou essas quase três décadas? Se em 1983 a grande charada era a informática e seus desdobramentos no ensino, quais são os grandes desafios do novo século? O educador está diante de um grande volume de informação e todo esse conhecimento vem circulando, na velocidade da luz, na Internet. Quem nasceu antes dos anos 90 deve se lembrar do lugar de destaque que as enciclopédias tinham nas estantes de qualquer casa de família. Toda pesquisa escolar era feita ali, através dos limitados verbetes. Hoje, alunos das séries mais iniciais já dominam a Internet e se aventuram com desenvoltura nos milhões de links disponíveis. Na opinião do professor Aluísio Pimenta, é pre72 ciso treinar os professores para lidar com essas plataformas da nova geração. “Sem isso, cria-se um abismo entre professor e aluno. Se bem treinado, o professor poderá ser um importante filtro para o que há de bom e de ruim na rede”, afirma. > QUEM NASCEU ANTES DOS ANOS 90 DEVE SE LEMBRAR DO LUGAR DE DESTAQUE QUE AS ENCICLOPÉDIAS TINHAM NAS ESTANTES DE QUALQUER CASA DE FAMÍLIA < Para Aluísio Pimenta, que é membro da Academia Mineira de Letras, preparar-se para o futuro implica em olhar para o presente, e fazer um estudo minucioso sobre o passado. “Nos anos 80, um dos grandes problemas na educação brasileira era a má remuneração Aluísio Pimenta — A educação brasileira passa por seu nome dos professores. Infelizmente, não vejo grande avanço nesse aspecto” diz, com a convicção de quem atribuí à valorização dos educadores um dos pilares para uma educação de qualidade. “Invistam nos professores e terão bons alunos. Do contrário, de nada adianta ter toda tecnologia”, ensina Aluísio. Na era da diversidade, o professor diz que já apostava suas fichas no ensino individualizado décadas atrás. Segundo ele, é fundamental que os professores tenham flexibilidade para adaptar os métodos de ensino a cada aluno. “Não há espaço para currículos fechados, duros. O educador precisa se relacionar com seus alunos de uma maneira que consiga aproveitar os melhores atributos de cada um, personalizar. Uma boa > “SUGIRO QUE INVISTAM NOS PROFESSORES E TERÃO BONS ALUNOS. DO CONTRÁRIO, DE NADA ADIANTA TER TODA TECNOLOGIA”, ENSINA ALUÍSIO. < prática continua sendo o estudo em pequenos grupos”, opina Aluísio. Outra tendência que já despontava nos anos 80 é a interdisciplinaridade. Com o mundo interligado por hipertextos, é anacrônico pensar em um raciocínio linear dentro da sala de aula. Para ele, ainda é um desafio para o ensino brasileiro ir além da fragmentação do conhecimento. “Não se pode compreender a realidade atual sem pensar de forma complexa, relacionando assuntos. As escolas e as universidades precisam superar os limites da disciplina”, categoriza. 73 74 Aluísio Pimenta — A educação brasileira passa por seu nome Apesar de cada vez mais o local estar dando lugar ao global, Aluísio Pimenta não mudou sua visão sobre a descentralização do ensino. “Sempre acreditei que a escola deve estar próxima do município, da comunidade”, reitera. Segundo ele, só um currículo feito a partir da realidade pontual de uma comunidade pode ser eficaz. “Por mais globalizado que o mundo esteja, só o interior de Minas sabe do que o interior de Minas precisa”, justifica Aluísio, que além de ser uma sumidade na seara da química e da farmácia, é um expressivo contribuidor para a evolução do ensino no Brasil. Do alto da sua experiência, ele preconiza: “Para o Brasil ter um ensino moderno, ele precisa correr atrás do beabá”. 49 REFLEXÕES SEGREDOS DE PROFESSOR PARA PROFESSOR PAULO VOLKER “SOUBE-O: OS OLHOS DA GENTE NÃO TÊM FIM. SÓ ELES PARAVAM IMUTÁVEIS, NO CENTRO DO SEGREDO.” Guimarães Rosa “CONFESSO-TE AGORA TUDO ISSO, SENHOR. LEIA-O QUEM QUISER, dos os segredos. Peço a sua discrição. Não os comente. Guarde aí, junto aos seus. Sei que parece contraditório falar de segredos em um artigo, mas as palavras da educação, para aqueles que lhes são distantes, passam como aqueles hieróglifos das paredes egípcias, aberrantes revelações de significado nenhum. INTERPRETE-O COMO A ORIGEM DOS SEGREDOS LHE APROUVER.” Santo Agostinho D izia Guimarães Rosa, “felicidade se acha é em horinhas de descuido”. Acho que assim vivi como professor e, por paradoxal que seja, foram exatamente nesses descuidos que nasceram meus maiores erros e, consequentemente, as mais profundas aprendizagens. Conto agora para você, professora e professor, com os lábios próximos aos seus ouvidos, que é como devem ser conta80 Descobri logo que ser professor não é uma tarefa trivial, não é fácil, nem espontânea. Diz o sentido da palavra: professor é aquele que professa, diz à frente dos outros, conta, afirma. De forma mais ampla, já no exercício da educação, é aquele “que coloca debaixo da vista”, “que protege”, “que orienta”, “que tutela” o outro para a aprendizagem. Esse outro, no âmbito da educação, é alguém que se prepara para um futuro. Seis Segredos — de professor para professor > “NO COMEÇO DA MINHA PROFISSÃO, APRENDI DE IMEDIATO UM PRESSUPOSTO BÁSICO DO SER PROFESSOR. DESCOBRI QUE ME TORNEI UM “VELHO”, INDEPENDENTEMENTE DA MINHA IDADE, POIS EU, O PROFESSOR, FUI TIDO COMO AQUELE QUE JÁ SABE E O OUTRO, O ALUNO, AQUELE QUE DEVERÁ APRENDER.” < No começo da minha profissão, aprendi de imediato um pressuposto básico do ser professor. Descobri que me tornei um “velho”, independentemente da minha idade, pois eu, o professor, fui tido como aquele que já sabe e o outro, o aluno, aquele que deverá aprender. Esse aluno, “o novo” (oi legoi), como dizia Arendt, é dono dessa condição de quem chega ao mundo e tem a tarefa de modificá-lo e inová-lo. É esse sujeito que vai aprender — sujeito da Paideia, como dizia Jaeger — a conviver no mundo, por meio do processo de socialização. Percebi assim, ainda jovem, a minha condição de “velho”, o que deve conduzir para a aprendizagem. Percebi essa condição de forma crítica e em crise, quando comecei a me questionar sobre o que seria isso, se queria mesmo isso e se daria conta disso. Ver o olhar de um “novo”, que busca em mim essa “condução” para a aprendizagem, foi assustador. Minha saída, vícios de formação, foi registrar cada fato importante do meu desenvolvimento e buscar nos livros algo parecido com o que vivi. São alguns desses registros que lhes trago, segredos que lhes abro, para poder me confortar. 81 82 Seis Segredos — de professor para professor Confesso agora tudo isto, colega professor. Comecei minha vida docente necessitando visceralmente de ser reconhecido. Inseguro, cheio de dúvidas e com medo, precisava de aluno, aluno que me chamasse de mestre, que me visse como alguém que conhecesse das coisas, que me desse, com seu olhar e sua atenção, a certeza que eu mesmo não encontrava dentro de mim. E, para ter isso, falei mais do que realmente eu era, contei mais que deveria, prometi o que não podia cumprir. Disse que sabia e que iria ensinar. Mas não foi bem assim. Sabia conteúdo, mas não sabia ensinar. Errei. Procurei saber quem também cometeu esse erro. Achei um profes- sor que assim também fez, pois era também um professor que não conseguia convencer nenhum aluno a segui-lo e aprender as artes que ele tanto achava que sabia. Lendo a história desse professor, descobri que, no fundo, esse professor queria mesmo, como eu, um “fiel escudeiro”. Afinal, na época desse professor, que errou como eu errei, lá pelas plagas de “La Mancha”, nos idos de 1600, era esse o conceito que se tinha de um aluno. Esse professor era conhecido como “Cavalheiro da Triste Figura” ou Don Quixote de La Mancha. Ele só consegue um aluno quando se empenha em “persuadir um lavrador seu vizinho, homem de bem (se tal título se pode dar a um pobre), mas de pouca inteligência, a sair consigo como escudeiro: tanto lhe martelou, que o pobre coita- 83 do concordou. Dizia-lhe, entre outras coisas, que deveria ir de bom grado, pois poderia ocorrer de ter a sorte de ganhar uma ilha, da qual poderia ser governador”. E lá se foi Sancho Pança, servir de exemplo para o mundo, como o aluno que é levado pelas promessas do professor e passa a acreditar que assim sendo, um dia, “será governador de uma ilha”. Pensei muito sobre isso. Procurei recordar quantas vezes prometi, o que prometi e se, prometendo, não seria eu também, como “El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha”, um professor que tem a sua frente, como alunos, pessoas iludidas por promessas. Confesso que já fiz assim. 84 E segui meu caminho, querendo me espelhar nesses renomados professores que o mundo registrou em livros e relatos. Encontrei então um exemplo inigualável, Rainer Maria Rilke. Sempre tive Rilke como poeta, do fantástico Elegias de Duíno, em que um verso pode resumir esta minha busca sobre a prática do ensino: “Quem, se eu gritasse, me ouviria entre as hierarquias dos Anjos?” e me ajudaria a ser professor — completo eu a ideia. Lembrei-me de Rilke ensinando a um jovem, algo estranho para um poeta tão solitário. Evidentemente, em se tratando de professor com alta sensibilidade poética, sua pos- tura de orientador é completamente diferente de todas. Rilke não se preocupa com os grandes momentos e ensinamentos que caracterizavam até então os grandes professores que buscava como exemplos. A sua postura é fundamentalmente diferente. Rilke, em suas Cartas a um jovem poeta, diz ao seu aluno: “Fuja dos grandes assuntos e aproveite os que o dia a dia lhe oferece. Diga as suas tristezas e os seus desejos, os pensamentos que o afloram, a sua fé na beleza. Diga tudo isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde. Utilize, para se exprimir, as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, os objetos das suas recordações. Se o quotidiano lhe parecer pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas” (Primeira Carta). Lendo as cartas, escritas para o seu aluno, aprendi com Rilke que as pequenas coisas, os fatos triviais, os detalhes guardam profundas oportunidades de aprendizagem, pelo menos para mim, professor perdido, em busca de uma identidade. No seu sábio conselho, o poeta de Praga diz ao aluno para dar conta do seu cotidiano e não se empolgar com os brilhos esporádicos de eventos. Com isso cria uma relação essencial e significativa entre professor e aluno, partindo da realidade que os rodeia, deixando o foco nas coisas práticas e caminhando para o trato de questões de princípio. Rilke, confesso, é um dos meus mestres. Ensinou-me a olhar meus alunos naquilo que eles expressam com simplicidade, no que fazem de forma espontânea, no que dizem 85 sobre suas vidas e o cotidiano. Rilke me fez ver que a singela vida de cada um carrega uma enorme carga de lições, que podem enriquecer uma aula e uma reflexão. Confesso que já fiz assim. De Rilke cheguei a Pedro Abelardo, talvez o professor mais paradoxal e emblemático de todos. Para mim, uma referência inesgotável de lições. Um representante típico dos anos 1000 na Europa, âmago da Idade Média francesa, quando conhecimentos mais inovadores começam a circular dentro da Igreja. Pedro Abelardo é um desses circuladores. Adepto da linha nominalista, um dialético poderoso, que 86 domina o conhecimento do seu tempo — naquela época isso era possível —, é um professor brilhante, com tanta fama, que lhe foi possível, naqueles tempos, ter mais de 5 mil alunos, que o acompanharam na sua trajetoria tortuosa. Como professor, ele se encanta pelas maravilhas intelectuais e estéticas da sua mais importante aluna, Heloisa, dando-lhe a sabedoria profunda da Filosofia, o domínio de línguas mortas e vivas e uma imensa paixão. Esse seu amor pela mais bela e nobre aluna o levou a jogar por terra todos os princípios de distanciamento e objetividade necessários a um professor, para se entregar a uma paixão arrebatadora . Aberlado foi incriminado, julgado, excomungado e, num ato de extre- ma violência e covardia, foi castrado pelos familiares de Heloisa. Tornou-se monge, foi de Nantes Roma andando, conseguiu perdão e assumiu um monastério que se tornou famoso em toda a Europa. Heloisa assumiu outro monastério, criou seu filho e recebeu mais tarde o corpo do seu amado, que foi enterrado onde trabalhava. Essa eterna aluna, quando morreu, finalmente foi enterrada ao lado do seu professor. Abelardo é um mestre para os professores por seus erros e acertos, por sua história espetacular, que virou um paradigma das venturas e desventuras dessa complexa relação professor-aluno (vale a pena ver o filme Em nome de Deus – The Magdalene Sisters, de Peter Mullan, sobre a história). Confesso agora tudo isso, colega professor, também amei, também fui arrebatado pelo encanto, também perdia a objetividade e o distanciamento necessários ao meu trabalho. E, paradoxalmente, minhas aulas ficaram melhores, porque queria ter excelência e brilhantismo na minha didática, nos conteúdos, na condução do meu programa. E, por ela, confesso, meu curso ficou ótimo; por ela, estudava e me preparava como nunca e, por ela, talvez, tenha dado o meu melhor curso. Mas, tímido, nunca lhe confessei esse amor e o semestre termina, todos os alunos me elogiam pelo curso e nunca mais encontro a “minha Heloisa”. 87 Logo ali, depois dos anos 1000, em 1300, há outra relação professor-aluno que se tornou clássica e referência para todos os estudiosos. Nesse caso, o aluno estava “nel mezzo del camin di nostra vita”, para os padrões da época, com 28 anos. Estava perdido em uma noite escura e no seu caminho cruza uma espécie de loba, que ele reconhece estar faminta e extremamente feroz. Vendo que sua vida corre perigo, desespera-se e começa a entender que será dilacerado pela fera. Surge, então, ao seu lado, uma voz calma que se apresenta. Ouvindo o relato de quem é, reconhece de imediato alguém que muito admira que lhe diz: 88 “Agora, por minha vontade eu te ajudo Levar-te-ei comigo, te guiarei Através do lugar de eterno sofrimento...” Esse é o verso 113 do Canto I da Divina Comédia, que, para mim, estabelece o marco do “renascimento” da relação professor-aluno, expresso no verso “che tu mi segui, e io sarò tua guida” – você me segue e eu te guio. Há aqui algo fundamental. O professor conhece, então vai à frente. O aluno (que estava perdido e em perigo) reconhece que o professor sabe o caminho e o toma como guia. Esse pressuposto é fundamental para que o resultado do ensino seja alcançado. Afinal, o que Dante e Virgílio encontram pela frente é um lugar perigoso. A tarefa de Virgílio como professor inicia então, na Divina Comédia, na travessia do inferno, depois no purgatório, até as portas do paraíso. Então, já em um lugar que não oferece perigo, Virgílio termina a sua tarefa. Esse é um fator importante. O professor só tem sentido e necessidade enquanto o aluno caminha por lugares que não conhece e para o qual precisa de ajuda. Quando o aluno chega a lugar seguro, o professor já se ausenta (“Ma Virgilio n’avea lasciati scemi”), porque não é mais necessário. E o aluno, tendo feito o seu papel de seguir o professor pelo caminho seguro, afirma a importância de Virgílio – “... a cui per mia salute die’mi” – aquele que o salvou é então reconhecido. Esse é o gesto final do acordo. Confesso agora tudo isso, colega professor, também eu, perdido na minha trajetória de me tornar um professor, no meio do caminho da minha vida, encontrei um guia, alguém me levou pelo caminho tortuoso do saber ensinar. Meu velho professor Bicalho me guia. Mostra como se faz, como se lê, como analizar, como interpretar, como apresentar. Nos momentos difíceis, apresenta a sua opinião, diz como já tinha superado problema parecido, sugere. Sua sabedoria, sua esperteza e, acima de tudo, sua experiência foram fundamentais num determinado tempo. Quando já não havia mais perigo, percebeu o fim do seu caminho, o fim da sua condução. Sábio, afastou-se devagar, “Ma Virgilio n’avea lasciati scemi”. 89 método peripatético (de peripatus – andar), que pressupunha lições ministradas enquanto professor e alunos andavam. Por tudo que li e estudei, entendi que o professor é diferente do pedagogo, do mestre e do orientador. O melhor exemplo é a relação entre Alexandre, o Grande, e o filósofo Aristóteles. Acho essa relação emblemática, porque Aristóteles foi professor, pedagogo, mestre e orientador e, na vida dele, cada uma dessas funções foi claramente diferente da outra. Como professor, obviamente, dava aulas, com metodologia e didática definidas, na sua escola, o Liceu. Ali, portanto, ele tinha um planejamento de lições teóricas e conceituais para ministrar – foi então professor. Foi pedagogo, quando inventou um método de dar aula e ensinar, o 90 Foi considerado mestre, porque foi um dos primeiros pensadores que conseguiu referendar seu conhecimento em vários pensadores antigos, organizando o passado do conhecimento e dominando a história da ciência da sua época (seu livro Metafísica é um compêndio de História da Filosofia, anterior ao conhecimento da sua época). Finalmente, como orientador, fez do seu Liceu uma escola de pesquisas e experimentações, que o tinha como referência. Mas, como tutor, fez ainda algo completamente diferente do que se praticava até então. Ele foi tutor de Alexandre durante quatro anos. Ainda como um pensador pouco conhecido, ele dá conselhos para a formação do futuro rei da Macedônia. Esse aconselhamento é do tipo vade mecum, fazer junto, estar junto. Diferentemente de todas as outras atividades que Aristóteles executou, nessa, especificamente, ele andou junto com Alexandre e mostrou a ele como se faz. Leu com ele a Ilíada, não ensinou, não orientou, não conduziu de um modo especial – leu junto. Essa leitura conjunta era anotada, discutida e, mais tarde, esse livro anotado por Aristóteles passou a ser chamado de Ilíada do Escrínio – um produto desse ensino, resultado do “fazer-junto”. Confesso agora tudo isso, colega professor, várias vezes, durante minha profissão, eu mesmo não sabia e, junto de alguns alunos, fizemos junto. Lembro, ainda, aprendi com alguns alunos a usar computador no ensino, quando os computadores ainda não tinham disco rígido; aprendi com alguns alunos a fazer pesquisa epidemiológica, usando técnica de pesquisa-ação, quando havia poucas traduções de Thiollent; aprendi a buscar recursos para projetos nas empresas, com alunos que conseguiam ver para além dos muros da escola e tinham ímpeto para realizar e empreender. Poderia ainda listar centenas de aprendizagens que tive com meus alunos, fazendo junto, porque ideias e ideais nos uniam. 91 famoso psiquiatra suíço Carl Jung, então com 56 anos. Essa forma de ensinar, como um “fazer junto” (vade mecum), é algo que determina a diferença entre vários tipos de relações pedagógicas. Veja o caso de Wolfgang Ernst Pauli, o famoso físico, prêmio Nobel em 1945, com sua teoria sobre o princípio de exclusão dos elétrons e um dos fundadores da Mecânica Quântica. Pauli foi um gênio, que, com 21 anos, apresentou uma pequena tese de doutorado de apenas 237 páginas para Einstein e recebeu dele um significativo elogio. Entretanto, depois de grandes feitos e grandes descobertas, com 31 anos, Pauli teve um colapso nervoso. Para tratamento, foi buscar ajuda no já 92 Jung encontra Pauli com um problema mental e necessitado de ajuda para se tratar. Começa então uma terapia que, para um físico, é absolutamente estranha e bizarra: a psicanálise, fundada na interpretação dos sonhos. A relação entre Pauli e Jung é tão fantástica que resulta num “modelo ideal” de relação entre professor e aluno. Num primeiro momento, Pauli se encontra em perigo (situação Dante) e busca o “fator Virgílio”, Jung. Por uma questão de fundamento científico, o método terapêutico aplicado por Jung (a psicanálise) estabelece uma relação de fazer-junto (vade mecum), afinal, Pauli deve contar seu sonho e Jung o conduz (“che tu mi segui, e io sarò tua guida”) para a interpretação. O processo se desenrola e, depois de mais ou menos 400 sonhos interpretados, a relação entre Pauli e Jung se inverte completamente. Pauli se cura e, com seu conhecimento da Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica, passa a ensinar Jung no entendimento das “sincronias” (coincidências significativas). Diz Jung: “apesar de eu não ser um matemático, me interesso pelos avanços da física moderna, que está cada vez mais se aproximando da natureza da psique, como tenho visto há muito tempo. Muitas vezes falei sobre isso com Pauli” (cartas Pauli-Jung). Pauli se cura e, por meio de cartas, fundamenta com as teorias da Física Moderna, as pesquisas e as experiências de Jung. Dessa relação surge, em 1952, o livro A interpretação da natureza e a psique, escrito em conjunto pelos dois. Confesso agora tudo isso, colega professor, na minha vida de professor, em algumas ocasiões, alunos que tive se tornaram meus professores. Lembro-me de um, Heitor, que sabia muito Estatística, me ensinou o uso correto das análises de regressão. Outro, Maurício, me ensinou a usar arco e flecha. Outra, Deise, me ensinou a entender e analisar o mundo da moda. Em todos esses casos, como aluno, sentia-me duplamente feliz. Por um lado, pela oportunidade de aprender assuntos que me interessavam e, por outro, por ter como professores meus alunos, pessoas da minha mais alta estima. 93 CONFESSO QUE APRENDI Depois de todas essas lembranças, lendo, buscando e tentando relembrar passagens das minhas relações professor-alunos, concluo que passei muito tempo guardando segredos. Em muitos casos, às vezes por puro preconceito, deixava que lembranças da minha vida profissional se perdessem, porque não as valorizava. Hoje, sinto-me próximo dos exemplos acima apresentados. lar, tem méritos históricos. Afinal, quem saberia de Sancho se não fosse a sua aventura ao lado do engenhoso fidalgo? Abelardo, esse professor arrebatado pela paixão, sábio e sacrificado, deixa sua história como ícone e alerta. Quem pode reprová-lo? De Virgílio tiramos essa “mão estendida” que deu a Dante, como algo realmente significativo > “CONFESSO AGORA TUDO ISSO, COLEGA PROFESSOR, NA MINHA VIDA DE PROFESSOR, Percebi o quanto me impressionava com cada um desses professores listados, com a competência, a sapiência, a dedicação e, acima de tudo, a capacidade de somar para a vida do aluno. EM ALGUMAS OCASIÕES, ALUNOS QUE TIVE SE TORNARAM MEUS PROFESSORES. LEMBRO-ME DE UM, HEITOR, QUE SABIA MUITO ESTATÍSTICA, ME ENSINOU O USO Dom Quixote, que precisa iludir Sancho para ter alguém para tute94 CORRETO DAS ANÁLISES DE REGRESSÃO.” < Seis Segredos — de professor para professor no professorado. Afinal, como pode o professor, em momentos de “perigo”, não ir à frente? Aristóteles nos deixa essa lógica vital do fazer-junto, algo tão simples e básico que se torna precondição para o exercício do professor. Finalmente, esse modelo Pauli-Jung, talvez a grande meta de todo professor, que mostra na prática aquela “3ª Tese sobre Feuerbach”, que determina que “o educador tem ele próprio de ser educado”. Afinal, não foi exatamente isso o que ocorreu com Jung? Não foi ele inicialmente o professor, que levou Pauli, através dos sonhos, para a cura e que depois teve de Pauli a “mão estendida” para solução dos seus problemas com a teoria da sincronicidade? professor, visionário como Quixote, que vê grandiosidade onde todos enxergam apenas moinhos; sensível como um Rilke, que chama o aluno para o encontro de si mesmo; apaixonado como Abelardo, que ensina pelo amor; confiável como Virgílio, que recebe a mão de quem precisa ser guiado; humilde como Aristóteles, que se dispõe a ler junto; lúcido como Jung, capaz de reconhecer no aluno o gênio que lhe ensinará. Confesso afinal, colega professor, que não fui inteiro em nada disso. De tudo, verdadeiramente, lembro apenas de um ex-aluno, que se tornou livre de mim, pleno de si, e teve condições de me dizer “che tu mi segui, e io sarò tua guida”. Descobri, afinal, confesso agora tudo isso, colega professor, que sempre sonhei ser esse tipo de 95 ARTIGO A EDUCAÇÃO É A CARA DO PAÍS RITA ESPESCHIT 96 “S ua mãe te deu educação? E a escola, deu bom conselho?” Educação e cultura são conceitos que gostam de andar embolados, farinha e fermento peneirados juntos na massa. Daí que, assim como a cultura, a educação é a cara do país. No Brasil, ela é uma morena-jambo de ancas largas e sorriso escancarado. Suba uns tantos paralelos no globo, e você conhece a educação canadense: uma lourinha de olhos puxados, vestindo sari indiano, comendo salada russa e falando árabe pelos cotovelos. Espalhe um punhado de diferenças em cima da mesa e elas logo se aglutinam em categorias. O grupo das óbvias, claro, é o mais barulhento, saltando aos olhos e dando gritinhos de “eu primeiro!” Esse é o grupo onde ficam, por exemplo, os programas canadenses de suporte à multidão de crianças imigrantes que constantemente desaguam nas salas de aula sem falar uma única palavra em inglês ou francês. Na mesma categoria vem o calendário escolar, que bota o começo do ano em setembro—ululante, quando a gente inverte as estações e pensa nas férias. 97 Bote na jogada a renda per capita, e o mesmo raciocínio “craro Creusa” vale para o desempenho brasileiro e canadense nos números que comparam a qualidade da educação pública pelo mundo afora. Nenhuma surpresa aqui: na lista da OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico), o bem de vida Canadá figura entre os dez melhores em Leitura, Matemática e Ciências. Nossos pupilos do hemisfério sul, por sua vez, colocam o Brasil dentro (ou bem pertinho) da turma dos dez piores. Mas se é verdade que riqueza põe a mesa, como explicar o deplorável 32.º lugar em Matemática dos Estados Unidos — o “aluno” mais rico do pedaço — numa lista com apenas 67 competidores? Aí desponta uma diferença interessante da educação canadense. Nos Estados Unidos, como no Brasil, o divisor entre a escola pública e a privada é relacionado à classe social. No Canadá, o pequeno percentual de alunos (6% do total) que frequenta a rede privada não está atrás da qualidade que o dinheiro pode comprar. Na esmagadora maioria dos casos, a escola particular canadense é a 98 A educação é a cara do país > “MAS SE É VERDADE QUE RIQUEZA PÕE A MESA, COMO EXPLICAR O DEPLORÁVEL 32º LUGAR EM MATEMÁTICA DOS ESTADOS UNIDOS — O “ALUNO” MAIS RICO DO PEDAÇO— NUMA LISTA COM APENAS 67 COMPETIDORES? AÍ DESPONTA UMA DIFERENÇA INTERESSANTE DA EDUCAÇÃO CANADENSE.” < 99 escolha dos que buscam um determinado tipo de educação religiosa: muçulmana, judaica, mormon, o escambau. Claro que tem a meia dúzia de gatas pingadas que são escolas de elite, para os mais ricos entre os ricos. Mas em geral, quando o assunto é qualidade, a rede pública dá de dez a zero nas particulares. > “PARA NÓS, NASCIDOS0 E CRIADOS NA BOLHA DA CULTURA BRASILEIRA, É DIFÍCIL ENGOLIR O GRAU DE AUTONOMIA QUE EXISTE DE UMA PROVÍNCIA PARA OUTRA NO CANADÁ. SABE AQUELA ESTRANHEZA QUE DÁ QUANDO A GENTE VÊ O BANDIDO DO FILME Reparou que “católica” ficou fora da lista de religiões citadas acima? Ponto pra você! A relação entre Estado e Igreja (católica) é uma das esquisitices mais exóticas da educação canadense. Trocentos anos atrás, quando a prole dos colonizadores ingleses (protestantes) e franceses (católicos) tiveram que chegar a um acordo para transformar o Canadá num país, o combinado foi que o governo sustentaria duas redes de ensino. Uma era a rede pública sem adjetivos, que serviria à população 100 AMERICANO “FUGIR” PARA O ESTADO QUE NÃO TEM PENA DE MORTE?” < A educação é a cara do país majoritária de cada região. A outra rede veio na forma de um artigo na constituição de 1867, que garantia ao grupo minoritário (católico ou protestante) em cada cidade o direito a escolas “separadas” para seus pimpolhos. Como os franceses são minoria em todas as províncias exceto no Quebec, na prática, a rede “separada” acabou virando sinônimo de rede católica. Resultado: até hoje, em várias províncias canadenses, escolas católicas recebem o mesmo quinhão de dinheiro público que o ensino laico. Várias — mas não todas. E a gente chega agora a outra diferença crucial da educação canadense em relação à nossa: a fragmentação do sistema entre as províncias. Para nós, nascidos e criados na bolha da cultura brasileira, é difícil engolir o grau de autonomia que existe de uma província para outra no Canadá. Sabe aquela estranheza que dá quando a gente vê o bandido do filme americano “fugir” para o Estado que não tem pena de morte? No Canadá, cada província tem seu próprio currículo, sistema de avaliação, carga horária, e por aí vai. Um exemplo: até não muito tempo atrás, estudantes na província de Ontário ficavam um ano a mais na escola do que o resto do país, com uma quarta série de high school (ensino médio) adicionada aos tradicionais 12 anos de escolaridade. Ontário também é a única que oferece dois anos gratuitos de ensino pré-escolar, enquanto a maioria das províncias abre as portas da escola somente para um ano de pré-escola, e algumas nem mesmo garantem esse direito aos alunos de cidadezinhas menores. Os currículos diferenciados são um complicador óbvio em várias frentes. A primeira que vêm à cabeça é a dos estudantes de mudança para outra província. Vai ver a criança já passou pelas lições básicas sobre eletricidade na quinta série, mas terá que repetir tudo ao chegar à sétima série da província nova. Pior ainda é a situação inversa, em que a escola pressupõe que a essa altura do campeonato o novo aluno teria obrigação de já saber tudo sobre elétrons e supercondutores. Essas são diferenças macroscópicas, dessas que a gente encontra em enciclopédia ou artigos de internet. No território do sutil, um planeta inteiro de diferenças povoa o cotidiano daqueles que vivem o sistema educacional no seu dia a dia. Algumas vêm na forma de palavras que são onipresentes em um dicionário — e totalmente ausentes no outro. A palavra bullying, por exemplo. O bully é aquele valentão da escola que a gente vê no cinema americano: o que toma o lanche dos pequenos, bate nos mais fracos sob o aplauso geral da nação, coisas desse tipo. É uma palavra sem tradução em português, o que por si só indica uma fissura geológica, uma cratera imensa entre as duas culturas. No mundo anglo-saxônico – Canadá incluído – a vivência e superação de problemas com um bully é uma espécie de ritual de passagem institucionalizado, uma situação “desagradável” que a sociedade aceita como um mal necessário, como algo que vai ensinar lições de vida para o infeliz recipiente da violência do colega. As palavras também nos ensinam sobre o poder quase sobrenatural da instituição “universidade” no imaginário local. No inglês canadense, usa-se teacher para o professor comum e mortal, aquele que ensina crianças e jovens no ensino fundamental e médio. Se o profes- sor ensina na universidade, a história é diferente. Na torre de marfim do terceiro grau, não existem teachers – só professors, paroxítonos e com “e” aberto. Palavras diferentes que falam de status diferentes. Chamar um professor de teacher é ofensa indesculpável. Esse mesmo elitismo transparece na noção de quem deve ou não ir para a universidade. Não é raro um professor virar para um estudante e dizer, na lata, que ele não é university material. Em outras palavras, que nem vale a pena tentar. Melhor virar aprendiz de marceneiro e pronto. Note-se que não estou falando, aqui, de um professor do ensino médio falando com um jovem formando de 17 anos. Essa conversa edificante acontece bem antes, com adolescentes de 13 ou 14 anos de idade prestes a entrar na high school. Por quê? Porque diferentemente do que acontece no Brasil, o currículo no ensino médio canadense é dividido em dois ou mais streams, dois ou mais caminhos que o estudante vai ter que optar logo de cara no primeiro ano. Como isso funciona? Veja o exemplo da matemática. Você entra na high school e pode cursar Math 100 ou Math 101 (ou outro código qualquer). Uma delas é difícil e teórica, a outra, mais pé-no-chão e voltada para aplicações práticas. No ano seguinte, quem fez Math 100 vai para Math 200, quem fez Math 101 vai para Math 202. Chega a formatura, o aluno com Math 300 no diploma pode usar a dita cuja para entrar na universidade. Math 303, nem pensar. A ideia de um professor aconselhando um aluno a não ir para a universidade soa estranho para nós—algo meio imoral, quase criminoso. Talvez a coisa seja diferente num país em que um marceneiro faz uma grana razoável, e onde até poucos anos atrás um diploma de high school era o ó do forrobodó, a última bolacha do pacote, algo para exibir com orgulho na parede. Como no resto do mundo, essa situação vem mudando a passos rápidos. O diploma na universidade passa a ser o mínimo, o de mestrado o desejável, melhor ainda um doutorado ou pós-doutorado. Entretanto, mentalidade é algo que muda devagar. A cultura anda sempre um pouco atrás da economia, não é? Assim como a educação. BOA NOTÍCIA APESAR DOS IPADS, GADGETS E PLAYSTATION... ...CRESCE A LEITURA ENTRE OS JOVENS A o lado do Playstation, uma estante com a coleção de livros. “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, é o preferido e tem lugar de destaque. Para o próximo Natal, a lista já está pronta. Um iPad e uma edição especial de “O Físico”, de Noah Gordon. Rodrigo Oliveira é um jovem de 15 anos, apaixonado por tecnologia, e que quer ter todos os gadgets que a indústria dos eletrônicos não para de lançar. O mesmo Rodrigo é capaz de passar horas distraído com uma boa leitura. Ele é um retrato de uma tendência que vem se firmando: crianças e adolescentes brasileiros têm lido mais. Uma excelente notícia em tempos de reinado de computadores e games. A boa nova é resultado de uma pesquisa realizada pela Câmara Brasileira do Livro. No ano passado, foram lançados 12 mil livros no país. Desse total, 2,5 mil eram títulos direcionados ao público infantojuvenil. O escritor minei> O LIVRO AMPLIA OS ESPAÇOS DE LIBERDADE < 107 ro e professor de Literatura, Ronald Claver, vê com entusiasmo o crescimento da leitura. Com mais de 30 livros publicados - 15 deles destinados a crianças e adolescentes o escritor acredita que a partir da leitura, desenvolvem-se outras áreas importantes como a escrita e a criatividade: “O livro amplia os espaços de liberdade. É importan- 107 Apesar dos iPads, gadgets e Playstation... te criar possibilidades para que o livro seja objeto de desejo, de descoberta, de promoção do ser humano”, pontua. O aquecimento no mercado de livros para jovens impulsionou o setor. As vendas de livros no Brasil cresceram 9,6% no ano passado. Como as crianças já estão começando a ser alfabetizadas no mundo digital, o mercado das editoras correu atrás da modernidade. A plataforma que promete alavancar o hábito de leitura entre os jovens são os e-books. No Brasil, o crescimento do segmento ainda é tímido. Mas o governo federal já desonerou os impostos sobre os livros eletrônicos, o que deve facilitar o acesso. No entanto, o maior obstáculo ainda são os leitores digitais, que permanecem distantes do poder aquisitivo de grande parte dos brasileiros. Seja qual for o formato, é importante incentivar os jovens a ter a leitura como hábito. Para Ronald Claver, a escola pode ser um fator determinante para aumentar os índices de leitura. Para isso, o professor também precisa ser incentivado. Um educador bem remunerado tem mais tempo e disposição para criar espaços alternativos para a leitura e incutir nos jovens, hipnotizados pela tecnologia, o encanto pela literatura. “Nas séries iniciais, o livro é uma festa. Uma alegria só. No ensino fundamental, a intimidade com os livros diminui. O que era festa vira obrigação. A leitura deixa de ser prazerosa, vira moeda para passar de ano. No colegial, o aluno aprende a desgostar do livro. Quase não se lê. A obrigatoriedade de passar no vestibular sepulta a criatividade e o prazer. Fazer o quê? Não deixar a festa acabar”, opina. 108 INSTITUIÇÃO EM DESTAQUE / Colégio Embraer Juarez Wanderley UMA ESCOLA REFERÊNCIA, ONDE ALUNOS TÊM ‘BRILHO NOS OLHOS’ Divulgação A provação total no vestibular. Esse é o sonho de qualquer escola que tenha Ensino Médio. O Colégio Embraer Juarez Wanderley conseguiu transformar tal meta em realidade com 100% dos alunos aprovados em universidades particulares. Mas um índice é ainda mais notável: 82% dos alunos aprovados em universidades públicas. A receita para esse desempenho se resume em uma palavra – investimento, nos alunos, nos professores e na escola. O diretor Welington Nunes assume o desafio: ‘’Quando se está no topo, é necessário que o principal plano de ação seja a manutenção diária das relações entre as pessoas, pois só desta forma os processos se renovam e se revigoram em novas iniciativas e, assim, novos objetivos vão sendo construídos Divulgação Divulgação e superados’’. Referência nacional em termos de qualidade de ensino, o Colégio Embraer é fruto de uma parceria entre o Instituto Embraer e o Pitágoras. Enquanto a Embraer entra com a parte de infraestrutura e coloca expectativas claras de excelência educacional, o Pitágoras faz a Gestão Educacional. > ENQUANTO A EMBRAER ENTRA COM A PARTE DE INFRAESTRUTURA E COLOCA Caçapava e Taubaté. Os candidatos passam por uma seleção criteriosa coordenada pela Vunesp, a mesma organização que faz o processo seletivo para os vestibulares da Universidade Estadual de São Paulo. Geralmente, a proporção candidato/vaga é de 20/01. A explicação para tamanha procura vai além da boa educação oferecida pelo Colégio Embraer. O ensino é gratuito e o aluno recebe alimentação, transporte e uniforme. EXPECTATIVAS CLARAS DE EXCELÊNCIA EDUCACIONAL, O PITÁGORAS FAZ A GESTÃO EDUCACIONAL < Para preencher uma das 200 vagas, destinadas ao primeiro ano do Ensino Médio, é pré-requisito ter cursado o Ensino Fundamental em escolas públicas da região de São José dos Campos, Jacareí, A chave para um ensino de resultados está na política educacional moderna adotada pelo Colégio. A carga horária diária é de dez horas-aula/dia. Outro diferencial é o Programa Preparatório para Universidades (PPU), iniciado ainda no primeiro ano, que ocupa oito horas-aula semanais na grade e é utilizada a ‘’metodologia ativa de 111 Uma escola referência, onde alunos têm ‘brilho nos olhos’ Divulgação 112 Uma escola referência, onde alunos têm ‘brilho nos olhos’ > OS PROFESSORES ATUAM COMO FACILITADORES QUE QUESTIONAM E MOTIVAM OS ALUNOS A CONSTRUÍREM “os professores atuam como facilitadores que questionam e motivam os alunos a construírem seus conhecimentos”. SEUS CONHECIMENTOS < aprendizagem, com ensino protagônico e contextualizado que tenha significado para o aluno’’. De acordo com Welington Nunes, Além do conteúdo básico de cada disciplina, o aluno recebe uma orientação especial de acordo com sua área de escolha profissional. Para auxiliar em cada direcionamento, o Co113 114 Uma escola referência, onde alunos têm ‘brilho nos olhos’ légio Embraer Juarez Wanderley conta com parceiros. Na preparação para as áreas de Exatas, a grade curricular foi desenvolvida pelo The Center for Occupational Research and Development (CORD), uma instituição americana dedicada ao estudo de ferramentas educacionais e programas inovadores para otimizar resultados. Além da elaboração do currículo, o CORD treina os professores para que eles desenvolvam as disciplinas dentro do Colégio. Para potencializar os estudos, foram montados quatro laboratórios específicos: Princípios de Tecnologia, Natureza das coisas, Eletroeletrônica e Informática. > FORAM MONTADOS LABORATÓRIOS DE COMUNICAÇÃO E MÍDIA; ARTES E OFÍCIOS, LÍNGUAS, EMPRESAS SIMULADAS < Os alunos que optam pela área Biomédica encontram parceiros e consultores junto ao Hospital Sírio Libanês, que auxilia no desenvolvimento de um programa específico com base na metodologia ativa de aprendizagem e se desenvolve em três laboratórios no colégio, que são: o Wet Lab (reações químicas e materiais microbiológicos); o Morfofuncional (estudo de modelos de sistemas, órgãos e lâminas); Laboratório técnico para preparação de práticas e o Laboratório de práticas e habilidades, que trabalham com análise de sinais vitais e simuladores. O Pitágoras guia o programa desenvolvido para as áreas de Humanas e Administração. Para potencializar os estudos, foram montados laboratórios de Comunicação e Mídia; Artes e Ofícios, Línguas, Empresas Simuladas. Com o objetivo de auxiliar na escolha da profissão, momento decisivo e muitas vezes turbulento para os jovens, a escola implantou o Programa de Orientação Profissional. A boa dinâmica escolar reflete em uma experiência saudável para os alunos. Muitos dos alunos já formados vêm sendo valorizados por terem passado por lá. A estudante Jade Simões, que hoje cursa Administração na Universidade Federal de Ouro Preto, lembra com saudade dos tempos de escola. Para ela o legado do Colégio já rende frutos na vida acadêmica: ela conquistou 116 o primeiro lugar em um disputado programa de bolsistas. “Talvez isso não fosse possível caso não tivesse a disciplina que aprendi a ter no Juarez, e meu comportamento que foi aprimorado durante os anos neste colégio”, reconhece Jade. Ela conta que os avaliadores do programa de bolsas se surpreenderam com a experiência da jovem. “Soube me comportar na entrevista porque me lembrei das lições da Empresa Simulada e dos conselhos dos professores do Pré-Humanas. A experiência nos projeto Alternativas Sustentáveis e Conexão também foram fatores determinantes”, relata, com gratidão. Os projetos citados por Jade fazem parte de uma série de projetos interdisciplinares promovidos pelo Colégio Embraer durante toda vida escolar. Um dos segmentos priorizados pelo Colégio é o ambiental. “Nesta área os alunos são levados a transformarem sua consciência e percepção de meio ambiente, e de homem integrado à natureza e a promoverem ações e projetos sustentáveis e de responsabilidade social”, explica o diretor. Além de fomentar a consciência ecológica, os projetos são considerados importantes para desenvolver a capacidade dos alunos de resolverem problemas e de trabalharem em equipe. Outra boa ideia que tem despertado a responsabilidade dos alunos é a realização do dia da “Autogestão”. Nesse dia, cada professor e funcionário é substituído por um aluno, que assume suas funções enquanto os professores e funcionários passam o dia em um treinamento. Outro método utilizado pelo colégio é a participação do aluno no planejamento estratégico de cada aula ou projeto desenvolvido dentro da escola. Isso permite que o aluno avalie e ajude a identificar formas de melhorar as atividades. Apesar de já estar à frente de muitas escolas brasileiras, o Colégio Embraer Juarez Wanderley corre atrás do futuro. Entre as prioridades estão o alinhamento com os recursos tecnológicos e o recorrente questionamento das práticas pedagógicas. No entanto, o trabalho de qualidade é resumido pelo diretor Welington com poucas palavras: “é preciso ter brilho nos olhos”. 117 COEDUCAÇÃO O DIVÓRCIO DAS SIAMESAS ALCIONE ARAÚJO S e o cérebro estiver numa das gêmeas siamesas e o coração na outra, o corpo compartilhado pode sobreviver se continuarem unidas. Se uma fraquejar, a outra carregará o vazio da perda, com comichões de amputado no oco do que foi extirpado. Apartadas, uma perde a razão, outra fica exangue, enquanto o corpo agoniza. Educação e cultura são inseparáveis como as irmãs siamesas. Racional e objetiva, uma domina a lógica da ciência, revela a ordem oculta da natureza, o metabolismo humano, a razão produtiva e econômica. Outra, sensível e subjetiva, comove-se com as obras da imaginação criadas pela arte. Se a racionalidade é essencial à compreensão do mundo, do homem e de sua história, a sensibilidade é essencial à percepção do universo simbólico e das emoções. O saber acumulado pela razão e as emoções da arte são frutos da árvore sagrada do conhecimento. A história identifica, na aliança da cultura e da educação, a primazia de criar sonhos e inventar meios de realizá-los. No Ocidente, o sonho da plenitude humana requer a união de educação e cultura. São distintas pedagogias de apreender o mundo. A educação, que se vê como ciência, cria métodos e processos para realizar a magia da transmissão do saber. Racionaliza conteúdos e dosa-os segundo a capacidade de apreensão. A cultura — aqui apenas a arte — aspira a educar a sensibilidade criando maneiras de olhar, ouvir, sentir e pensar, respeitando a percepção individual, sem, contudo, deixar de informá-la. Arte não progride nem evolui, transforma-se com o amadurecimento educacional, cultural, humano, econômico, político. Criação da subjetividade e de percepção subjetiva, a arte dialoga com as metáforas criadas pelo homem — filosofia, antropologia, sociologia, psicanálise, entre outras — para se entender, entender o mundo e se entender no mundo. Nessa amplitude, a educação atua como braço racional e sistematizado da cultura. > “HOJE, HÁ MÉDICOS QUE JAMAIS LERAM UM ROMANCE, ENGENHEIROS QUE NUNCA FORAM AO TEATRO, ADVOGADOS QUE NÃO VÃO AO CINEMA, DENTISTAS INCAPAZES DE SE EMOCIONAR DIANTE DE UM QUADRO.” < 120 O divórcio das siamesas > “O MAIS ALARMANTE, É QUE NEM OS EDUCADORES PARTICIPAM DA VIDA CULTURAL – COM BOAS RAZÕES, DA FALTA DE TEMPO À FALTA DE DINHEIRO, E ATÉ A FALTA DE COSTUME!” < Os sonhos são a primeira pátria do homem, que se move da fantasia para a realidade. A arte realiza o encantamento do mundo, e nos ajuda a entender a realidade afastando-nos dela. A esperança é de que, vivenciado o processo da educação — concluir o Ensino Superior, digamos —, o indivíduo esteja apto a equacionar as variáveis do saber específico e preparado para usufruir da arte, em qualquer das suas formas de expressão, humanizando-se com a percepção do belo, que gerações de artistas cuidaram de criar desde os ancestrais remotos. Hoje, há médicos que jamais leram um romance, engenheiros que nunca foram ao teatro, advogados que não vão ao cinema, dentistas incapazes de se emocionar diante de um quadro. O mais alarmante, é que nem os educadores participam da vida cultural – com boas razões, da falta de tempo à falta de dinheiro, e até a falta de costume! Entende-se que o fazem por terem sido formados na mesma educação, que não induz nem estimula a sensibilidade estética — registre-se, a esquizofrênica separação entre educação e cultura! 121 O Brasil tem hoje 190 milhões de habitantes. Desses, 62 milhões estão no mundo da educação — professores e estudantes de todos os níveis. Há mais pessoas na educação brasileira do que a população da França! Cotejar tais números com os da produção artística desnuda o país. A tiragem média de um romance são três mil cópias; a ocupação média do teatro é 18% dos ingressos oferecidos. Em crise, as gravadoras estão falindo e a média de ingressos de filme nacional é de 140 mil. Nem os 62 milhões ligados à educação participam da produção artística: educação sem cultura, produção cultural sem público! 122 O divórcio das siamesas > “UMA EDUCAÇÃO QUE NÃO FORMA O CIDADÃO, NEM O HOMEM, SE RESIGNA À PRECÁRIA FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL. MAS É O QUE DELA ESPERA UMA SOCIEDADE, QUE NÃO TEM A EDUCAÇÃO COMO VALOR” < Prática não assimilada na idade adequada raramente vira costume. Sem assistir a filmes, espetáculos de dança e teatro, shows e concertos; sem ir a exposições e museus de arte; sem ler romance e poesia, a imaginação embota, os sonhos empobrecem, as aspirações se intimidam, os desejos afetivos se desvanecem. Se a educação não inclui sensibilizar o estudante, essencial ao amadurecimento, mais tarde o trabalho solicitará a razão produtiva do profissional. À falha da formação se somará a falta de tempo. E o despreparo da sensibilidade não se limita à percepção da arte. Vai ao extremo de se ter vergonha das próprias emoções e dificuldade para expressar afetividade, fundante do humano, e que retarda a maturidade da vida amorosa. Uma educação que não forma o cidadão, nem o homem, se resigna à precária formação do profissional. Mas é o que dela espera uma sociedade que não tem a educação como valor. Se ontem supervalorizava o diploma, hoje é o emprego, com boas razões. Sem minimizar a importância do emprego, reduzir horizontes torna a educação formação de recurso humano ou preparação de mão de obra, reforça o ensino em vez de educar, nega a educação como processo de aquisição de conhecimento para a vida, o que inclui poesia, fantasia, devaneio, arte e emoção. Nosso primeiro projeto educacional foi o dos jesuítas, que chegaram no séc. 16 com a missão de educar os índios. Os religiosos ofereceram uma visão do homem e do mundo erigida à luz da Igreja. Os nativos conheciam a natureza, tinham crenças e rituais de cultura milenar e ágrafa. Educá-los foi impor-lhes uma fé, deveres, hierarquias e obediências. Os índios dispersaram, os jesuítas desistiram, um fracasso. Quando vieram os negros, os jesuítas desanimados evitaram nova aventura. De cultura poderosa, para os negros educar era ensinar a olhar o mundo, a cuidar do corpo, amar a natureza e os animais, a memória, as crenças e as artes. E os jesuítas descobriram os imigrantes. Europeus educavam europeus, em solo brasileiro. Daí os colégios confessionais que formaram a elite 124 nacional na obediência às normas e respeito aos valores humanistas da cultura clássica. A explosão de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki deu a vitória aos aliados na 2ª Guerra Mundial, e os EUA viraram potência. Ciência e tecnologia foram estratégicas na construção de hegemonias internacionais; armas de destruição em massa criaram impérios. Vindos de rápida industrialização, os EUA moldaram a educação em ciência/ tecnologia, modelo que correu mundo. A matriz pedagógica brasileira deu adeus ao humanismo europeu, de origem greco-romana, tradição renascentista e iluminista. Abandonou o ideal aristotélico do homem integral, e cruzou o Atlântico para abraçar o novo modelo. Logo, os currículos, sobrecarregados com as urgentes e necessárias disciplinas de iniciação científica, eliminaram as de Humanidades, voltadas ao sentir — artes/cultura — e ao pensar — filosofia/antropologia/ sociologia, etc. Os cursos estreitaram abrangência, adotando o pragmático objetivo, de aplicação prática. Era oportuno qualificar alunos em ciência, e a força de trabalho em tecnologia, esperança de emprego num país que se urbanizava rapidamente. O passado evidencia que educação e cultura ficaram restritas ao europeu e sua descendência. A maioria da população urbana, negra e miscigenada, construiu sua expressão cultural sob discriminação e repressão. A produção popular ficou no extremo oposto à cultura tradicional. No gap entre elas e be- neficiando-se de ambas, irrompeu a indústria cultural, hoje consolidada, hegemônica e irreversível. Assiste-se agora à dupla submissão, da cultura tradicional e da cultura popular à onipresente indústria de entretenimento. Cabe perguntar “Afinal, o que é a arte, para que serve?” É impossível definir a arte. Diz a boutade de Jean Cocteau. “A arte é indispensável; se, ao menos, soubéssemos para quê!” Uma possibilidade refere-se à incompletude humana: vivemos insatisfeitos na moldura de nossa vida pessoal, curta e única. E gostaríamos de ser mais, de ser vários. A arte pode proporcionar outras vidas: ao ler um romance, assistir a um filme ou peça de teatro, o processo de identificação agrega as façanhas, os sofrimentos e as vitórias das personagens à sua curta e única 125 vida. Com isso, multiplica sua experiência de estar no mundo, adicionando vivências do que não viveu, nem viverá, e que, magicamente, passam a ser suas também. Se você pode ser vários, está ampliando sua vida. A arte enseja a completude que não temos. Eu não sou outros, mas, pela identificação com os personagens, tenho outros em mim. Quanto mais elas contribuem para eu ser mais do que sou, e quando sou mais do que sou, eu me torno mais semelhante ao outro. Algo que era dele vem para mim. É a metáfora da antropofagia: se devoro um pedaço dele, suas virtudes vêm para mim. Assim como devoro, metabolizo a arte, trago-a para mim, passo a ser mais do que sou. “Ser mais do que sou” dá uma dimensão mágica ao romance, ao filme e à peça. Educação apartada da cultura é trajetória de adestramento para a produção. Educar não é qualificar para o emprego, nem a arte é adorno para aguçar a sensibilidade. Há uma dimensão humana que, sem educação e cultura, nada agrega como experiência coletiva, nem alcança a plenitude como experiência individual, com consciência para discernir, liberdade para escolher e capacidade para agir. E, sem isso, não podemos dizer que somos realmente humanos. Apartadas, educação e cultura são como irmãs siamesas, uma perde a razão, outra fica exangue, enquanto o corpo agoniza. 126 COEDUCAÇÃO QUEBRANDO PARADIGMAS... ...DE ESCOLA E DE MUSEU POR JOÃO CARLOS FIRPE PENNA O grupo de estudantes passou pela imponente porta de ferro fundido daquele prédio que há muito faz parte da história da cidade e agora virou museu. Eles compraram ingresso e fizeram o tour por todas as salas e andares. Observaram tudo que estava exposto, interagiram com várias instalações, colheram informações, absorveram novos saberes. Em uma sala, deram “de cara” com grandes tubos verticais vindos do teto, cada um representando um metal da tabela periódica e seus conteúdos. Depois, “desceram” centenas de Foto: Acervo do MMM metros por um elevador, ao lado de Dom Pedro II, sem saírem do lugar. Participaram, ainda, de uma experiência na qual foram escaneados da cabeça aos pés para a máquina dizer quantos quilos de metal cada um tinha no corpo. Ao final de uma hora e meia de visita, na saída, um deles não resistiu e exclamou: “Mas, afinal, onde está o museu? Isso nem parece museu!”. O prédio visitado pelo grupo está situado na Praça da Liberdade, em área nobre de Belo Horizonte, onde já funcionou a Secretaria de Estado de Educação e que, há pouco mais de um ano, abriga o Museu das Minas e do Metal (MMM). Ele conta com um importante acervo sobre mineração e metalurgia, documentando duas das principais atividades econômicas de Minas Gerais. O Museu utiliza, de forma lúdica e criativa, tecnologia de ponta para mostrar o universo das rochas, os processos de transformação dos minérios e a importância deles para a vida humana e o desenvolvimento social, econômico e cultural. Foto: Acervo do MMM 129 Quebrando paradigmas... de escola e de museu A história dos alunos descrita anteriormente poderia ter passado despercebida, mas foi registrada e narrada – com satisfação – por Helena Mourão, diretora-executiva da instituição. Afinal, um dos seus objetivos frente ao MMM é um desafio para qualquer educador comprometido com a transmissão do conhecimento de forma eficaz. Ela explica: “Queremos fazer com que este espaço quebre os paradigmas de museu e de escola”. Foto: Acervo do MMM 130 Educadora com mais de 30 anos de experiência, Helena tem clareza sobre o projeto pelo qual é responsável. Junto a sua equipe de profissionais, ela sabe que um museu como o MMM está na vanguarda da relação ensino-aprendizagem. ESPAÇO NÃO FORMAL DE EDUCAÇÃO FACILITA RETENÇÃO DO CONHECIMENTO Segundo ela, pesquisas indicam que o conhecimento adquirido em espaços de educação não formal, como um museu, perdura muito mais Foto: Acervo do MMM 131 Quebrando paradigmas... de escola e de museu Foto: Acervo do MMM na memória das pessoas – especialmente dos jovens – do que o saber absorvido de forma tradicional, dentro de uma sala de aula. “Ao contrário da escola, o museu não tem tempo determinado para a aprendizagem, assim como não tem um objeto determinado de estudo e, menos ainda, um prazo para conhecer o que se passa ali”, explica ela. E este é o grande desafio desse museu que não parece museu: fazer com que, naquele espaço, possa ser construída, na prática, uma escola, utilizando todos os recursos de um equipamento cultural. Tomando como referência o universo da mineração, o Museu é um espaço contemporâneo onde se discute quase tudo que se passa no mundo. O recente tsunami que atingiu o Japão, por exemplo, foi motivo de reflexões de especialistas. Diante do enorme interesse gerado pelo tema, a Curadoria de Geociência do museu convidou um especialista no tema para falar sobre os aspectos da radioatividade envolvidos no grande acidente. A procura foi enorme. Foto: Acervo do MMM 133 Foto: Acervo do MMM Nas dezenas de salas do Museu, há espaços para se refletir sobre temas relacionados a diversas áreas do conhecimento, como Arte, Química, Física, Biologia, Matemática, História, Geografia, Língua Portuguesa, Engenharia Ambiental, Arquitetura e Restauração, entre outras, como explica Anna Paula Costa, coordenadora-educativa do MMM, responsável pela interação da instituição com escolas de todo o país. Hoje, o Museu já pode ser considerado um grande centro difusor das ciências. Seu trabalho tem recebido tamanha acolhida que os números surpreendem. Com apenas um ano de existência – comemorado com vários eventos em junho de 2011 –, o Museu das Minas e do Metal já acolheu mais de 60 mil visitantes, além dos quase 130 mil acessos no site da instituição. 134 Em ambientes virtuais, os visitantes podem interagir com os espaços criados para permitir intensa vivência pelo mundo dos metais. O edifício foi totalmente restaurado e adequado com projeto arquitetônico de Paulo Mendes da Rocha e projeto museográfico de Marcello Dantas. O espaço incorporou o acervo do Museu de Mineralogia Djalma Guimarães e tem patrocínio do Grupo EBX. Ele foi concebido e implantado em pouco mais de dois anos – entre 2008 e 2010. Foto: Acervo do MMM 135 Desde o início, a estratégia é: ‘foco total’ nos professores As educadoras Helena e Anna Paula são unânimes em destacar a determinação mais estratégica do Museu para que ele se torne centro de difusão do conhecimento e, ao mesmo tempo, um espaço não formal de educação. Desde o seu primeiro dia de funcionamento, o MMM não abre mão de promover visitas prévias dos professores antes da visita dos alunos. Segundo Helena, havia certa resistência por parte dos professores – afinal, pesquisas indicam que, até pouco tempo, quase 70% dos professores do país nunca tinham entrado em um museu. “Nós nos propomos a capacitar esses professores para ampliar ao máximo a forma de eles explorarem os recursos do Museu como ferramentas didáticas. Percebemos que tem havido muito mais que um interesse por parte deles. Hoje, já chegamos a sentir certo encantamento da parte deles por tudo que temos aqui”, destaca Helena. Projeto Educativo é destaque na estratégia de ação do MMM Uma das iniciativas que faz o MMM ser diferente de um museu tradicional – e até chegar a parecer mais uma escola –, é o seu Projeto Educativo. Por meio dele, a instituição garante um serviço diferenciado para o seu público, uma vez que as ações educativas se tornam prioridade. Adriana Costa é a curadora do Projeto Educativo do museu e contribuiu de forma decisiva para a formação dos educadores do MMM. Ela desenvolveu também os conteúdos do site e presta consultoria na área de Mídias Sociais, ao lado de Ana Gaspar, que foi a ativadora da Rede MMM 136 na Internet. Um dos projetos mais importantes de formação dos educadores do museu ocorreu ao longo de quase dois meses, entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011. No período, foram realizadas inúmeras atividades, como palestras, discussões de textos, debates e visitas monitoradas. Um dos temas transversais de todas as ações foi a questão da aprendizagem em espaço não formal de educação. Alguns dos palestrantes convidados foram Marcello Dantas (museógrafo), Pedro Mendes da Rocha (arquiteto), Maria Regina Reis (restauradora de elementos artísticos) e a própria Adriana Costa. Dos ‘gabinetes de curiosidades’ às redes sociais da Internet Se o mundo em geral passa por rápi- das transformações, diante dos avanços tecnológicos do século 21, com os museus isso não é diferente. Quando surgiram, eles eram denominados “gabinetes de curiosidades”, onde as pessoas expunham objetos e coisas que por algum motivo resolviam colecionar. Dezenas de séculos depois, nos dias de hoje, os museus já usam as chamadas redes sociais na Internet – como Facebook e Twitter – para interagir com os milhões de novos “curiosos”. O Museu das Minas e do Metal não perde a oportunidade de usar essas ferramentas, incluindo o próprio site. Educadores e colaboradores já utilizam os espaços virtuais para debater ideias, trocar experiências e interagir de diversas formas. Já passam de 130 mil os acessos à rede em pouco mais 137 de um ano de existência do Museu. De acordo com Helena Mourão, os meios virtuais criam possibilidades infinitas de ampliação dessa rede de interação. “Nós não estamos mais em Belo Horizonte, em Minas Gerais ou no Brasil; nós estamos com as propostas deste Museu abertas para todo o mundo!”, constata ela. Museu oferece três roteiros para facilitar a visitação Visitantes podem escolher entre três roteiros para visitação. Eles foram criados para facilitar as conexões com os conteúdos de sala de aula, de forma articulada com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte, Ciências, Geografia e História. Mas nada impede que o visitante crie seu próprio roteiro. Confira a seguir as características dos três roteiros atualmente oferecidos. Um quarto roteiro está em construção e será fruto de uma construção coletiva de professores e alunos. Mama África: do processo de formação dos continentes à herança africana no Brasil. Participações especiais de Chica da Silva e de Luzia, a primeira brasileira. Viajeiros: um jardim imaginário onde se encontram viajeiros que trilharam a história do Brasil. São personagens de diferentes épocas, de Debret e Dom Pedro II a Burle Marx. Horizonte Secreto: explorar códigos antigos e belos que sempre intrigaram o homem, desvendar os novos mistérios do mundo, o macro e o micro inteligíveis de Djalma Guimarães e Eliezer Batista. 138 INTERCÂMBIO PEDAGOGIA “CRIATIVA” A PARTIR DA CONDIÇÃO HUMANA EM TEMPOS DE “EXCELÊNCIA” NA EDUCAÇÃO ANGÉLICA SÁTIRO Traduzido por Renilda S. Figueiredo > “TRATA-SE DE UMA REFLEXÃO SOBRE UMA PEDAGOGIA QUE TEM COMO PONTO DE PARTIDA A CONDIÇÃO HUMANA COM SEUS LIMITES E POSSIBILIDADES, EM UM MOMENTO EDUCATIVO EM QUE O DISCURSO SOBRE A “EXCELÊNCIA” PODERIA DISTANCIAR ESTA VISÃO DO DEBATE SOBRE OS FINS E OS MÉTODOS E TODOS OS DEMAIS ELEMENTOS EDUCATIVOS. RELACIONA ASPECTOS DA EDUCAÇÃO LENTA COM ESTA REFLEXÃO.” < Palavras-chave: Educação lenta. Condição humana. Criatividade. Educação significativa. Wabi-sabi. Excelência. Metodologias de projeto, de processo e de diálogo. 140 A EXCELÊNCIA E A CONDIÇÃO HUMANA E xiste algo de errado em se desejar a excelência? Claro que não! Como nos informa a Real Academia Espanhola, a palavra excelência vem do latim excellentia e significa “Superior qualidade ou bondade que faz algo ser digno de singular apreço e estima”. Ou seja, desejar a excelência é desejar o melhor possível, o excepcional, o destacável. Então, não existe equívoco em se desejar isso, ao contrário... se desejamos a excelência, é porque queremos melhorar, evoluir, alcançar melhor qualidade, superar a mediocridade. E isso tem a ver com a nossa condição humana de ser “desejoso” e de ser “esperançoso”. O problema se dá quando, em nome dessa busca pela excelência, nós 141 Pedagogia “criativa” a partir da condição humana 142 143 Pedagogia “criativa” a partir da condição humana afastamos dela. É um paradoxo ao qual estamos sujeitos. E por que é assim? Talvez pela inadequação de estratégias ou equívocos de enfoques. Às vezes o problema está no quê, outras vezes está no como, ou em outros aspectos que respondem ao quando, ao porquê, ao para quê, ao com quem... O discurso da qualidade total, que surgiu no campo empresarial de um Japão de pós-guerra e de uns Estados Unidos com necessidades imperialistas tem como pressuposto um conceito de excelência que exige matizes ao ser aplicado na educação. Provavelmente não se trata de desmerecer o que pode existir de valor nesse pressuposto, mas sim de refletir um pouco mais a fundo sobre as finalidades da educação e sobre como poderíamos pensar a excelência aplicada 144 a ela. Por exemplo, no campo empresarial “fazer mais com menos” e alcançar a excelência ao mesmo tempo pode ter muito sentido, mas... e em educação, teria o mesmo sentido? Uma das consequências deste “fazer mais com menos e alcançar a excelência ao mesmo tempo” são a pressa e a pressão aí impostas para que o resultado apareça. Este “ser excelente fazendo mais com menos” joga com uma concepção de tempo quantitativa e tecnicista. Será que com essa concepção poderemos chegar a ser excelentes pessoas e excelentes cidadãos? Essa reflexão se relaciona com o conteúdo desta revista, que incide sobre a necessidade de uma educação lenta, que respeite os ritmos (mais humanos) do aprender. Outro aspecto de consideração: é claro que a educação ganha quando aprende as ferramentas de gestão da qualidade que busca a excelência. Mas, será que educar é só administrar estabelecimentos de ensino? Essas ferramentas de administração são igualmente interessantes para organizar as relações entre o conhecimento e as pessoas que o aprendem e/ou o constroem na sala de aula? Estas perguntas me fazem lembrar uma história antiga: Conta-se que uma pobre mulher com seu bebê passou em frente à entrada de uma caverna e escutou uma voz misteriosa que dizia: “Pode entrar e pegar tudo o que quiser, mas não se esqueça do principal!”. A mulher, curiosa, aproximou-se um pouco mais e escutou outra vez a mesma frase e algo mais: “Depois que sair da caverna, a porta se fe- chará para sempre, portanto não se esqueça do principal”. A mulher entrou na caverna e encontrou muitas riquezas e pensou que jamais voltaria a ser pobre e a passar fome. Fascinada com tanto ouro e joias, colocou seu bebê bem ajeitado num canto e começou a recolher todo o ouro que podia. A voz misteriosa voltou a dizer: “Depressa! Depressa! A porta da caverna já vai se fechar! Depressa!”. A mulher, com muita pressa, saiu correndo da caverna com os braços cheios de ouro e joias e escutou o forte barulho da porta se fechando atrás de si. Porém... deu-se conta de que seu bebê havia ficado lá dentro. E para sempre! O tempo passou, a riqueza recolhida na caverna acabou rápido, mas seu desespero de mãe durou muito... Sua consciência sempre a fazia se perguntar: “Por que eu me esqueci do principal?” Podemos fazer uma analogia entre a reflexão anterior e esse conto. A educação é a encarregada, como a mãe do conto, das novas gerações. Trata-se de sua tarefa principal, e, para realizá-la, precisa entender a fundo a condição humana e como fazer para melhorá-la e para fazê-la chegar a ser excelente (se for o caso!). Nos últimos anos, a educação está passando diante da caverna da “excelência da qualidade total”, escuta sua voz que a convida a recolher “ferramentas e conceitos” que podem enriquecê-la. A única coisa que não deve esquecer é o principal... Será que cuidamos do nosso “principal” quando fomentamos somente a cultura do “sucesso”? Para ser excelente é necessário ser bem-sucedido... E quem define os parâmetros desse “sucesso” e dessa “excelência?” 146 Esses parâmetros serão “excludentes” ou poderão gerar desenvolvimento, inclusão social, etc.? Esses parâmetros permitem educar os humanos que virão depois de nós conduzindo este planeta a um porto seguro? Existe perigo de que sejam parâmetros que formem gente excessivamente competitiva que podem chegar a níveis de arrogância que lhes faça se esquecer do principal em nome de uma excelência “estrangeira”? Entre estes parâmetros existe algum que nos diga ao ouvido: “sic transit gloria mundi ” (a glória do mundo é transitória)? Para ser excelente é necessário ser bem-sucedido... E quem define os parâmetros desse “sucesso” e dessa “excelência?” Esses parâmetros serão “excludentes” ou poderão gerar de- senvolvimento, inclusão social, etc.? A condição humana como ponto de partida da educação O que é a condição humana? A condição humana é aquilo que nos caracteriza como humanos e nos diferencia das demais formas de vida do planeta, é algo que nos define independentemente da cultura na qual nascemos, do gênero, da idade, da classe social, etc. Ou seja, são os pequenos aspectos que nos unem e que nos identificam como humanos. Por que entender a condição humana como ponto de partida para a educação? Porque temos que considerar nossas raízes humanas para avançarmos a partir delas. Porque se partimos daquilo que nos caracteriza como os seres que somos podemos avançar e crescer a partir daquilo que respeita a quem somos como seres neste planeta. Existem várias maneiras de partir da condição humana. E um exemplo pode ser Paulo Freire e sua proposta de alfabetização, na qual propunha partir das palavras geradoras. Essas palavras são aquelas significativas no contexto de quem aprende a ler. Com isso, a meta é conseguir ler e escrever, mas o ponto de partida é a leitura de mundo que o aprendiz faz “antes” de ler um texto. Assim, ter a condição humana como ponto de partida é considerar tudo aquilo que nos caracteriza como somos “antes de...” para, a partir daí, a partir de nossa liberdade e possibilidade, chegar ao que pretendemos alcançar como meta, como 147 sonho. Quando olhamos do ponto de vista da excelência, temos como ponto de partida aonde queremos chegar. Essa perspectiva pode distanciar-nos ou não da condição humana, dependerá de como a enfoquemos. Aproxima-nos da condição humana quando nos oferece um horizonte, uma meta, um sonho, e isso tem a ver com nossa dimensão de liberdade e de vontade. Consequentemente, isso tem a ver com nossa dimensão criativa. O humano é um ser que pode se projetar, não é somente resultado dos determinismos biológicos, sociais, etc. Mas... em se tratando de educação, além de levar em conta as metas e os sonhos, há que se considerar outros elementos. Entre eles, o de que somos tempo, ou seja, a maneira como vivemos / usamos o tempo define quem so- 148 mos e como somos. O humano é um ser que pode se projetar, não é somente resultado dos determinismos biológicos, sociais, etc. Mas... em se tratando de educação, além de levar em conta as metas e os sonhos, há que se considerar outros elementos. Entre eles, o de que somos tempo, ou seja, a maneira como vivemos / usamos o tempo define quem somos e como somos. A condição humana e o “wabi-sabi pedagógico” Wabi-sabi é uma corrente de pensamento japonesa que compreende o mundo a partir de sua fugacidade e inconstância. Várias fontes relacionam aspectos dessa corrente com visões budistas. Essa ética-estética japonesa ocupa no Oriente a mesma função que os ideais gregos do “bem”: bondade, verdade e beleza (perfeição) ocupam no Ocidente. Ou seja, essa ética-estética tem uma grande influência na maneira de pensar oriental. Para os objetivos desse artigo, não é tão importante fundamentar as raízes do wabi-sabi. Neste caso, o mais importante é entender sua visão ético-estética, porque o que se pretende é estabelecer relações possíveis com uma pedagogia que parte da condição humana. A palavra wabi significa “simplicidade rústica, quietude”. Essas qualidades podem ser aplicadas tanto a objetos naturais como a feitos e objetos originados dos humanos. Essa simplicidade rústica revela superfícies imperfeitas e incompletas. A palavra sabi sig- nifica “beleza que aparece com a idade, com o desgaste provocado com o passar do tempo”. Significa a serenidade que surge da inconstância e da finitude. Essa filosofia, além de apresentar uma visão de mundo (ética), inclui uma produção estética que se expressa em várias linguagens conhecidas no Ocidente: Teatro-No, cerimônia do chá, poesia haiku, ikebanas (arranjos florais), jardim zen, etc. Todas essas expressões estéticas compartilham uma visão do mundo que tem como base que nada dura, nada está completo, nada é perfeito. Wabi-sabi é uma corrente de pensamento japonesa que compreende o mundo a partir de sua fugacidade e inconstância. Esta “base” é interessante para 149 pensar sobre a condição humana. Nós, humanos, independentemente de etnia, gênero, idade ou classe social, somos seres finitos (nada dura), somos uma obra incompleta (nada está completo) e somos imperfeitos (nada é perfeito). Nossa finitude, nossa imperfeição e nossa incompletude nos caracterizam, isto é, fazem parte da nossa condição como humanos. Qual pedagogia assume isso tudo como ponto de partida? Qual pedagogia parte dessa condição de ser finito, incompleto e imperfeito? Pode parecer niilista: “nada” dura, “nada” está completo, “nada” é perfeito. Sabe-se que é muito difícil educar se pensamos o mundo (e a vida) de forma niilista, porque se tudo é nada, não há nada que fazer... Mas esta “base filosófica wabi-sabi “não tem por que conduzir forçosamente ao niilismo. E 150 essa é a provocação deste artigo, talvez não pudéssemos nem devêssemos educar justamente porque nada dura, nada é completo e nada é perfeito. A questão é “partir de...”, quer dizer, considerar de onde se deve começar um processo educativo. Se começamos entendendo que somos finitos, talvez se pudesse dar mais valor à vida por ser ela um bem com data de validade. Se começamos sabendo que somos imperfeitos, poderemos utilizar a nosso favor os erros, os equívocos e entender que nossa tarefa, como educadores, é ajudar nos processos de melhorias dessa situação de imperfeição. Se começamos considerando que somos incompletos, poderemos aprender, haverá espaço para criar, para gerar o “novo”, para continuar pesquisando. A questão é que se partimos da condição humana, poderemos considerar os humanos reais (imperfeitos, incompletos e finitos) para conseguir que, por meio de um processo educativo, possam superar-se a si mesmos, projetar-se como pessoas melhores. Evidentemente falamos de um ponto de partida com um horizonte como meta e um caminho como método. Essa reflexão segue com algumas possíveis consequências pedagógicas deste “wabi-sabi educativo”. Para pensar essas possíveis consequências utilizaremos algumas categorias pedagógicas: • Epistemologia (conteúdos, habilidades, atitudes, competências): é a dimensão do conhecimento (conteúdos) e nosso “aparelho interior” para processar este conhecimento (habilidades, atitudes e competências). • Metodologia: é a dimensão dos métodos, das maneiras de aprender e de ensinar. • Papel do educador: é o perfil e a função do educador. • Papel do estudante: é o perfil e a função do estudante. • Valores: é a base ética em nome da qual se formarão as pessoas envolvidas. Nada dura (finitude) Por que ter obsessão por conseguir resultados sem ter certeza de que eles são os resultados de que necessitamos de verdade? Por que aceitar ritmos frenéticos na educação, um campo em que os resultados mais profundos só aparecem em médio e longo prazo? “Casca oca, a cigarra cantou-se 151 toda”. Este haiku de Matsuo Bashô (1644-1964) fala de uma cigarra cuja existência consiste em cantar até explodir-se em seu canto. Lembra que o sentido de sua existência está também em sua finitude e se a empregamos como analogia, serve-nos para assumir o caráter “natural” de nossa “condição de inconstância”. Ou seja, nós, seres naturais, somos finitos. Nós, seres humanos, somos tempo, somos enquanto estamos sendo. Parece um paradoxo falar de ter (ou não ter) tempo quando afirmamos que nossa condição humana é ser finita, quer dizer, ser um tempo limitado. Quando entendemos a vida como valor e sabemos que ela é curta, é ilógico perdermos tempo com currículos sobrecarregados, aprendizagens forçadas, agendas excessivamente lotadas, colocarmos e aceitar- 152 mos que nos coloquem pressão para “fazer mais com menos” e sermos excelentes em aspectos que nos distanciam de nossa humanidade. Por que ter obsessão por conseguir resultados sem ter certeza de que eles são os resultados de que necessitamos de verdade? Por que aceitar ritmos frenéticos na educação, um campo em que os resultados mais profundos só aparecem em médio e longo prazo? Por que aceitar o discurso da “falta de tempo” para fazer o que de verdade é significativo para a comunidade educativa? As conseqüências pedagógicas dessa visão são que precisamos de uma epistemologia significativa. Se somos finitos, não podemos perder esse pouco tempo de vida com conhecimentos que não têm sentido, não podemos ficar de- senvolvendo habilidades, atitudes e competências insignificantes. O conhecimento veiculado nas escolas e a maneira de aprendê-los e de aprender a aprender necessita ser significativa. A metodologia de projetos é uma, entre outras, que favorece uma aprendizagem significativa. As crianças e os jovens, partindo de seus centros de interesses, podem gerar todo um processo de busca de sentido desse conhecimento e o educador ser o guia desse processo que não se limita em aprender um conteúdo, mas sim que ajuda a desenvolver valores mais profundos de compromisso com a vida, consigo mesmo, com o outro, com a atitude proativa que não se limita a responder de forma reativa (e com pressa!) ao que vem de fora. Se somos finitos, não podemos perder esse pouco tempo de vida com conhecimentos que não têm sentido, não podemos ficar desenvolvendo habilidades, atitudes e competências insignificantes. Epistemologia (conteúdos, habilidades, atitudes, competências) Metodologia Papel do educador Papel do estudante Valores Significativa Projetos Conduzir para a vida Encontrar o sentido Proatividade, compromisso consigo mesmo, com o outro, com a vida (que é curta e que merece ser vivida sem pressas absurdas!) 153 Se cada um de nós é um ser humano incompleto, então a epistemologia necessária é de caráter intersubjetivo. Ou seja, cada um tem uma parte do conhecimento que se completa com o conhecimento que o outro tem. Nada é completo (incompletude) “Quando acreditávamos que tínhamos todas as respostas, de repente, mudaram-se todas as perguntas.” Este aforismo de Mario Benedetti nos faz lembrar este aspecto incompleto de nossa condição humana: quando completamos algo, nos damos conta de outras incompletudes... Se cada um de nós é um ser humano incompleto, então a epis- 154 temologia necessária é de caráter intersubjetivo. Ou seja, cada um tem uma parte do conhecimento que se completa com o conhecimento que o outro tem. Por isso é importante dominar metodologias de processo que permitam pesquisas, descobertas, origens, produções e inovações. Para isso, é necessário um educador que saiba facilitar esses processos para que o estudante seja quem descubra, pesquise, produza e inove. Os valores base para que isso ocorra são o respeito mútuo e a reciprocidade. E é claro que o tempo de aprendizagem não pode estar organizado com foco somente na “produtividade” se se trata de valorizar o processo. Também não se trata de esquecer-se dos produtos em nome dos processos. É importante levar em conta um compromisso final, mas não se pode corromper o sentido de educar, em nome desse produto final. Para que um aprendiz pesquise, descubra, tenha ideias e concretize tudo isso em algo precisa de tempo. Esse tempo é o que a educação lenta reivindica. Epistemologia (conteúdos, habilidades, atitudes, competências) Metodologia Papel do educador Papel do estudante Valores Significativa De processos (investigativos, heurísticos, criativos) Facilitar processos Pesquisar, descobrir, produzir, inovar e poder projetar-se como pessoa, como cidadão... Respeito mútuo, reciprocidade. Nada é perfeito (imperfeição) «Hoy el rocío borrará lo escrito en mi sombrero» (haiku de Matsuo Bashô, con traducción de Octavio Paz) – “Hoje o orvalho apagará o escrito do meu chapéu”. Se nada é perfeito, então não há uma verdade única e não há um conhecimento absoluto, também não haverá habilidades, competências e atitudes absolutas, por isso a epistemologia necessita ser relativa, contrastada, flexível, humilde (sabedora do seu caráter provisório). Todo conhecimento é válido até que o processo constante de descoberta, 155 invenção e pesquisa o relativize. Uma epistemologia assim estimula e parte de valores como: flexibilidade, humildade, autorregulação e autocorreção. O estudante é um aprendiz constante do processo de conhecimento humano. A metodologia tem que ser compartilhada para produzir suficientes critérios dialógicos para favorecer a legitimidade convergente do conhecimento e os processos de aprendizagem dos estudantes. Para conseguir legitimidade convergente é necessário dialogar, estar em grupos de aprendizagem, de pesquisa e de diálogo. Para autorregular-se e autocorrigir-se é necessário o tempo da aprendizagem da autonomia intelectual e moral que se dá em companhia dos demais, compartilhando processos reflexivos. Relativizar os conhecimentos não tem nada a ver com perder-se ou confundir-se e/ou voltar ao niilismo, por falta de fundamentação, por mediocridade e/ou pela cultura do fracasso. Isso seria uma saída fácil... Entender que partimos de nossa imperfeição para ir melhorando o que podemos enquanto aproveitamos a vida é o que nos caracteriza como “aprendizes constantes”. É repensar o que chamamos de fracasso e o que chamamos de sucesso. Sucesso é expor nos exames nacionais o que se memorizou das informações dos conteúdos ensinados? Se o conhecimento humano é algo em constante evolução, pode-se mudar na próxima rodada o tempo no mundo?... Então pode ser que fracassamos quando acreditamos que somos bem-sucedidos ao focarmos o sucesso por memorizarmos algo transitório e tratá-lo como se ele fosse permanente. São os mesmos paradoxos de se partir de outro ponto senão da própria condição humana . 156 Epistemologia (conteúdos, habilidades, atitudes, competências) Relativa, contrastada. Metodologia Dialógica. Papel do educador Papel do estudante Facilitar diálogos. Aprender constantemente. Flexibilidade, humildade, autorregulação, autocorreção. Valores Para autorregular-se e autocorrigir-se é necessário o tempo da aprendizagem da autonomia intelectual e moral que se da em companhia dos demais, compartilhando processos reflexivos. Deixando a porta aberta: este artigo é uma fenda Este artigo é uma reflexão mais cheia de perguntas que de respostas. Não se trata de uma autoajuda pedagógica, mas de uma boa problemática das respostas que temos. A porta está aberta e não se fechará rapidamente como aquela da caverna do conto, porque é uma oportunidade de “fazer uma pausa” no caminho. Pode-se entrar sem pressa e permitir-se o tempo de reflexão, de silêncio, de contemplação, de meditação sobre quem somos e como podemos evoluir. Podemos questionar se queremos chegar a ser “excelentes” educadores, oferecer uma “excelente educação” e como entendemos que se chega a isso a partir da nossa humanidade e melhorá-la. Essa porta aberta faz suas as pa- 157 lavras de Wittgenstein: “A saudação entre os filósofos deveria ser: dê tempo a você mesmo!”. Assim, leitor, faça um exercício filosófico, não tenha pressa em estar ou não de acordo com o que se afirma aqui. Também não tenha pressa em responder às perguntas apresentadas. São somente provocações para que você se dê tempo e se dedique ao que de verdade importa na sua própria vida. “Perca seu tempo pensando”. “A regra principal da educação, a mais importante e mais útil, não é ganhar tempo, mas sim perdê-lo!”, disse Rousseau. Ao mesmo tempo, este artigo é uma porta aberta para refletir sobre esta pedagogia apresentada. É criativa porque entende que o processo de aprender é um jogo entre a luz do conhecimento e a escuridão da nossa ignorância. É criativa porque parte da condição humana, que é algo que “pede” novas ideias. Se somos seres incompletos, podemos criar. Se somos imperfeitos, podemos criar. Se somos finitos, devemos criar. É criativa esta pedagogia que parte da condição humana, que é incompleta, imperfeita e finita, porque convida a cada um a fazer da própria vida uma obra de arte significativa, intersubjetiva, contrastada e relativizada pela própria condição humana. É criativa porque convida a ver a humanidade e a sociedade como um projeto coletivo que pode ser melhorado a partir da sua imperfeição, da sua incompletude, da sua finitude. Leonard Cohen, um dos autores ocidentais que fala de wabi-sabi, tem uma frase que oferece a imagem com a qual fechamos este artigo: “Há uma fenda, uma fenda em todas as coisas. É por ela que entra a luz”. 158 Tratamos de: EDUCAÇÃO LENTA. FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO. INFÂNCIA E QUALIDADE DE VIDA. Notas * Diretora da Casa Creativa (www.lacasacreativa.net), da associação Crermundos (www.crearmundos.net/asociación) e do projeto Noria (www.proyectonoria.crearmundos.net). Angélica Sátiro La Casa Creativa. Barcelona [email protected] Este artigo foi solicitado a partir da SALA DE AULA DE INOVAÇÃO EDUCATIVA (AULA DE INNOVACIÓN EDUCATIVA) em março de 2010 e aceito em abril de 2010 para publicação. Aula de Innovación Educativa • núm. 193-194 • julio-agosto 2010 1. Frase que alguns escravos sussurravam ao ouvido dos imperadores durante os triunfos romanos. 2. Neologismo inventado pela autora do artigo 159 Pedagogia “criativa” a partir da condição humana > “A EXCELÊNCIA É DESEJAR O MELHOR POSSÍVEL, O EXCEPCIONAL, O DESTACÁVEL. ENTÃO, NÃO EXISTE EQUÍVOCO EM SE DESEJAR ISSO, AO CONTRÁRIO... SE DESEJAMOS A EXCELÊNCIA, É PORQUE QUEREMOS MELHORAR, EVOLUIR, ALCANÇAR MELHOR QUALIDADE, SUPERAR A MEDIOCRIDADE.” < RESENHA ESCOLA REFLEXIVA E NOVA RACIONALIDADE CORNÉLIA CRISTINA SAMPAIO BRANDÃO Divulgação P or analogia com o conceito de professor reflexivo, explicitado no famoso livro de Donald Schön, Isabel Alarcão (organizadora) e mais outros pesquisadores brasileiros e portugueses classificam como escola reflexiva uma organização escolar que continuadamente pensa em si própria, na sua missão social e na sua organização, e se confronta com o desenrolar da sua atividade em um processo simultaneamente avaliativo e formativo. vem da sua constatação de que “a escola é um lugar, um edifício circundado, espera-se, por alguns espaços abertos.” Todavia, questiona se “os edifícios escolares não estarão defasados em relação às concepções de formação, às formas de gestão curriculares e às exigências do relacionamento interpessoal neste início de milênio.” A partir de um decálogo, Isabel aponta caminhos para a uma escola de “cara mudada”: 1) A IMPORTÂNCIA DOS Isabel Alarcão, vice-diretora da Universidade de Aveiro, em Portugal, está presente com três artigos e, em um deles, afirma que a mudança de que a escola precisa é uma mudança paradigmática. Porém, para mudá-la, é preciso mudar o pensamento sobre ela. A primeira proposta de mudança RECURSOS HUMANOS 2) O DESENVOLVIMENTO ORIENTADO POR UMA VISÃO PROSPECTIVA E UM PROJETO DE AÇÃO 3) A COLABORAÇÃO DIALOGANTE 163 Em parceria com José Tavares, também como ela, professor de Aveiro, Alarcão evidencia rupturas e continuidades entre a educação tradicional e a pós-moderna, levantando paradigmas e abordando as características de uma “sociedade emergente”, onde há intensificação do questionamento das verdades científicas e o conhecimento é produzido na multi e transdisciplinaridade. 4) A ARTICULAÇÃO SISTÊMICA 5) A VIVÊNCIA DOS VALORES 6) O PROFISSIONALISMO ASSUMIDO 7) A FORMAÇÃO NA AÇÃO E PARA A AÇÃO 8) A INVESTIGAÇÃO SOBRE AS PRÁTICAS 9) A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO SOBRE A ORGANIZAÇÃO 10) A MONITORIZAÇÃO E A AVALIAÇÃO DE PROCESSOS E RESULTADOS 164 Iria Brzezinski, professora da Universidade Católica de Goiás, trata dos fundamentos sociológicos, das funções sociais e políticas da escola reflexiva. Idália Sá-Chaves, professora da Universidade de Aveiro, analisa a relação entre a sociedade e o conhecimento, os desafios da modernidade e a formação de profissionais. Maria do Céu Roldão, do Instituto Politécnico de Santarém, Escola reflexiva e nova racionalidade discute um paradigma de escola em ruptura. Um tema que perpassa por quase todos os textos são as novas tendências que podem ser observadas nos paradigmas de formação; de organização e gestão curriculares; e de investigação; de exercício profissional e nas mudanças nos paradigmas organizacionais. A nova escola de que todos falam se pensa e se avalia em relação ao projeto pedagógico e à missão social, constituindo-se uma organização aprendente, que qualifica não só os que nela aprendem, mas também os que nela ensinam. A resenha acima foi construída a partir do livro Escola Reflexiva e Nova Racionalidade. A obra foi organizada por Isabel Alarcão Páginas: 144 ISBN: 9788573078619 Artmed Editora — Ano: 2011 VEJA O SUMÁRIO DO LIVRO: • A Escola Reflexiva - Isabel Alarcão; • Relações Interpessoais em uma Escola Reflexiva - José Tavares; • Fundamentos Sociológicos, Funções Sociais e Políticas da Escola Reflexiva e Emancipadora: Algumas Aproximações Iria Brzezinski; • Informação, Formação e Globalização: Novos ou Velhos Paradigmas? - Idália Sá-Chaves; • Paradigmas de Formação e Investigação no Ensino Superior para o Terceiro Milênio - José Tavares e Isabel Alarcão; • A Mudança Anunciada da Escola ou um Paradigma de Escola em Ruptura? Maria do Céu Roldão; • Novas Tendências nos Paradigmas de Investigação em Educação Isabel Alarcão “Quando eu tinha 14 anos, meu pai era um completo idiota. Aos 18,fiquei impressionado com quanta coisa ele aprendeu em apenas quatro anos.” (Atribuída a Mark Twain indicada por José Paulo Tupinambá, jornalista e pai de adolescentes.) “Dar é jogar pedrinhas no meio do lago. Receber é ganhar beijinhos de onda na ponta dos pés. Só ganha beijinhos quem joga pedrinhas.” (Patrícia Gebrim, citada por Patrícia Pierazoli Guerra, publicitária e mãe de duas crianças.) “Escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida.” (Confúcio, indicada por Fábio Freitas, professor.) “É preciso coragem para crescer 166 e tornar-se o que você realmente é.”(E. E.Cumming,indicada por Roberto Márcio Pimenta, escritor.) “O valor supremo da vida consiste em fazer mais valiosa a vida do outro: esse é o verdadeiro dom divino do humano.”(Nádia Bossa, citada por Maria Dolores Fortes Alves, psicopedagoga e escritora.) “A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos”(Charles Chaplin;indicada por Fátima Alves, fonoaudióloga, psicomotricista e escritora.) “A maneira mais inteligente de ser inteligente é criar dignidade humana e tê-la como um projeto supremo.” (José Antonio Marina, indicada por Angélica Sátiro, filósofa, pedagoga e escritora.) “Para o triunfo do mal, basta que os bons não façam nada.” (Edmund Burke,indicada por Teuler Reis, psicólogo,psicanalista e escritor.) “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. nossa importante função social e auxiliar o trabalho de superação da desigualdade e da ignorância, em prol de um mundo mais justo, igualitário e inclusivo.” (João Beauclair, citado por Fernandinho Berg, filósofo.) Trecho do livro: BEAUCLAIR, João. Ensinar é acreditar. Rio de Janeiro: Editora WAK, 2008.v. 1. (Ensinantes do Presente) O que ela quer da gente é coragem.”(Guimarães Rosa, indicada por Renata Gazzinelli, psicopedagoga e mãe de adolescente.) “Me pergunta por que compro arroz e flores? Compro arroz para viver e flores para ter algo por que viver.” (Confúcio, indicada por Camila Moraes Berg, estudante do penúltimo período do curso superior de Enfermagem.) “Ensinar é acreditar, pois é na nossa postura como ensinantes do presente que podemos exercer “De perto, ninguém é normal.” (Caetano Veloso, indicada por Rita Espeschit, escritora e mãe.) 167 HISTÓRIA Foto: Sérgio Tomisaki/Folhapress DUAS OU TRÊS HISTÓRIAS DO MESTRE DOS MESTRES: PAULO FREIRE, QUE COMPLETARIA 90 ANOS EM 2011 POR JOÃO CARLOS FIRPE PENNA ESTE ARTIGO É UMA HOMENAGEM A UM DOS MAIORES EDUCADORES DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA. NÃO SE TEM A PRETENSÃO, PORTANTO, DE FALAR DE PAULO FREIRE PARA EDUCADORES. VAMOS MOSTRAR AQUI DUAS OU TRÊS HISTÓRIAS INÉDITAS QUE NOS AJUDAM A LEMBRAR-NOS DELE. OU MELHOR, A NÃO ESQUECÊ-LO JAMAIS... 169 Um a um, os alunos vão chegando. Sete da noite, sete e quinze. Chega Tarcísio, o rapaz que trabalha com o pai na venda; chega dona Geralda, que faz faxina na escola do bairro; chega Seu Pedro, que ganha a vida como pintor de paredes; chega Lurdes, doméstica na Zona Sul. Ao todo, são 12 matriculados, mas nunca aparecem mais que uns oito. A vida dura no trabalho não permite ir à aula todas as segundas, quartas e sextas, como acontece naquela “escola”. As carteiras de madeira foram doadas por um colégio particular onde eu dava aulas. Para alegria da meninada do bairro, elas chegaram no caminhão de um morador local que distribuía refrigerante. Ele não cobrou frete e ainda deu uma caixa de guaraná para quem ajudou a carregar os móveis para o barraco de quarto 170 e sala que virou escola ali no aglomerado da Ressaca, Zona Norte de BH, na divisa com Contagem. O ano era 1980. O país vivia o fim da ditadura militar e ensaiava o retorno à democracia. Muitas personalidades começavam a voltar do exílio, com a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita que acabara de virar lei em 1979. Naquele barraco, um grupo de estudantes universitários da UFMG dedicava > O ANO ERA 1980. O PAÍS VIVIA O FIM DA DITADURA MILITAR E ENSAIAVA O RETORNO À DEMOCRACIA < parte de seu tempo livre para dar aulas de alfabetização para adultos. Eles não seguiam o método do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), difundido pela Duas ou três histórias do mestre dos Mestres > TÍNHAMOS EM COMUM O SONHO DE AJUDAR A CONSTRUIR UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA E IGUALITÁRIA < ditadura, mas outro, muito mais comprometido com a história de vida e a realidade de cada aluno – o método Paulo Freire. Naquela noite, a formação de palavras em estudo tinha como base o nh. Aos poucos, os alunos vão se soltando, entre um riso e outro. Dona Geralda se lembra do almoço de domingo e dispara: galinha! Seu Pedro pensa no seu dia a dia e arrisca: vizinho! Tarcísio, mais jovem e mais articulado diz, com segurança: nhassa! Ouço a palavra. Como professor, fico em dúvida entre a aprovação ou a correção. Oriundo de outra realidade social e econômica, eu já tinha aprendido, com os ensinamentos de Paulo Freire, a respeitar a cultura local. Sugiro, então: “E aí, Tarcísio, use sua palavra para formar uma frase pra gente”. O rapaz não titubeia e diz: “Professor, vou juntar o que todo mundo disse: a gente pega a galinha do vizinho e nhassa ela!” Eu e mais três colegas que dávamos aula no Ressaca fazíamos parte de um grupo maior, espalhado em várias “escolas” da cidade. Tínhamos em comum o sonho de ajudar a construir uma sociedade mais justa e igualitária. Não fazíamos parte de nenhum partido político (até porque eles não existiam de verdade no país, naquele 171 momento), mas sabíamos muito bem de que lado estávamos ao optarmos pelos despossuídos. Eu ouvira falar de Paulo Freire ainda menino, quando perguntei ao meu pai, possivelmente após ler alguma notícia no jornal: “Pai, o que é método Paulo Freire?”. A resposta veio simples, porém completa, e foi mais ou menos assim: “É um método de alfabetização de adultos que leva em conta a realidade de quem está aprendendo. Nada a ver com ‘vovó viu a uva’. Se o aluno aprende, por exemplo, a escrever a palavra tijolo, aquilo precisa ter um significado na vida dele, que vai além do t+i, ti; j+o, jo; l+o, lo. Para que serve o tijolo?, deve indagar o professor. E, mais do que isso: por que aquele operário que faz uma parede de tijolos não vai morar no apartamento que está construindo?” 172 Noutra noite, na sala de aula, a lição era simples. Vamos falar e escrever sobre o nosso dia a dia, a realidade do trabalho, a vida com a família. Cada aluno começa a passar para o caderno suas ideias, num esforço físico que ficava visível na força com que o grafite sulcava o papel em branco, comandado por uma ferramenta de cinco dedos. Lurdes escreve: “Para ir ao trabalho, eu pego um ônibus para o centro da sidade”. No final da leitura das frases, eu digo: Lurdes, seu texto está correto, mas cidade escreve-se com C. “Tudo bem”, aceita ela, sem deixar, contudo, de questionar com uma grande coerência: “mas por que não posso escrever cidade com S?”. O grupo de estudantes que dava aula pelo método Paulo Freire em BH, naquele começo da década Duas ou três histórias do mestre dos Mestres > NA AULA, SEU PEDRO LOGO SE INTERESSOU PELA MATEMÁTICA, COM INCENTIVO MEU. AFINAL, COMO PINTOR, VALIA A PENA TER NOÇÕES DE GEOMETRIA, ESPAÇO, METRO QUADRADO E, PRINCIPALMENTE, O VALOR DE SEU TRABALHO EM FUNÇÃO DA ÁREA PINTADA < de 1980, reunia-se todos os sábados no Centro Popular de Cultura, em uma casa no bairro da Serra, para trocar ideias, relatar casos de sala de aula, rever conceitos e, principalmente, refletir sobre os escritos de Paulo Freire. De mão em mão, circulava uma edição de “Pedagogia do Oprimido”, mais surrada que papel usado para embrulhar pão. Mas, entre aquele grupo de uns 40 estudantes, nem tudo era trabalho aos sábados. No final da tarde, sobrava tempo para os namoros, as cervejas e as poesias... Na aula, Seu Pedro logo se interessou pela Matemática, com incentivo meu. Afinal, como pintor, valia a pena ter noções de geometria, espaço, metro quadrado e, principalmente, do valor de seu trabalho em função da área pintada. Com muita dificuldade, ele desenhava os números na folha de caderno. Mais difícil ainda era o raciocínio. Como ensinar multiplicação para um homem que vivera 50 anos sem essa abstração? “O senhor vai pintar esses quatro metros três vezes seguidas. Se fizer assim, quantas vezes um metro terá pintado?” Ele começou: “Quatro, mais quatro, mais quatro, ou quatro vezes o três...”. Quando ele disse, com toda cautela, “do-ze?”, perguntando mais que respondendo, todos na sala bateram palmas. Nas minhas mãos em movimento, respingaram, despercebidas, algumas lágrimas. ************ Naquele sábado, a notícia chegou na velocidade de um raio ao nosso grupo de estudantes-alfabetizadores. Alguém do Centro Popular de Cultura havia falado a um educador, que acabara de chegar de volta do exílio ao Brasil, sobre o trabalho daqueles jovens em BH. Ao ouvir isso, ele imediatamente demonstrou interesse em ir à capital mineira para socializar com o grupo sua experiência. Seu nome era Paulo Freire... Só havia uma condição para a vinda: nenhuma divulgação na mídia, no meio político ou educacional. Ele estava chegando ao Brasil e precisava ser discreto – até para sentir o clima político em relação ao seu retorno. ************ Na aula seguinte, chego decidido a fazer Seu Pedro avançar na Matemática. Proponho novos exercícios, mas noto que ele está desanimado. Pergunto o que foi. Ele reluta, mas acaba falando, com os olhos fundos e tristes, mirando um horizonte que parecia cada vez mais inatingível para ele: “O cara que contrata meus serviços lá na obra disse que, se eu 174 continuar a aprender a fazer essas contas, ele vai me mandar embora...”. A frase caiu como uma bomba em mim. Primeiro, uma sensação de pena. Depois, de muita revolta. Mas entendi ali, na prática, algo que já havia lido em Paulo Freire: a ameaça que o conhecimento representa, uma vez apropriado por aqueles que, até então, só tinham a oferecer sua força física para o trabalho. Ficou mais forte em mim a convicção de que era preciso seguir em frente. Ensinar Seu Pedro a multiplicar 4 por 12, depois 12 por 36 e assim por diante. ************ Duas semanas se passaram. No meio da rodinha de sempre, no encontro de sábado, havia mais alguém presente. Não dava para acreditar. Um velhinho quase careca, de barba branca e muito comprida. Paulo Freire estava ali, sentado no banquinho, como todos nós... Não consegui fugir de um pensamento, que me fez rir sozinho, olhando para ele, de pertinho: “então foi esse cara que politizou o tijolo!”. Na verdade, eu sabia que a frase correta não era aquela. O que ele queria mesmo era politizar o pedreiro (ou os alunos), com seu ensinamento maior: o cidadão só vai absorver o conhecimento se esse conhecimento estiver inserido em sua realidade de tal modo que ele possa se apropriar politicamente desse novo saber para interferir nessa realidade. Somente assim ele vai se tornar um novo homem, mais livre e mais consciente de que é o agente transformador de sua própria história! 175 ************ Saber tudo isso era fundamental para entender Paulo Freire, principalmente com a lembrança da última frase do Seu Pedro retumbando na minha memória. ************ Como em toda aula que se preza, chegou a hora de fazer as perguntas. Eram muitas para pouco tempo e para um só Mestre. Perguntei a Paulo Freire sobre o “nhassa” e a “sidade”. O que fazer diante dessas construções tão genuínas e lógicas? Minha pergunta já parecia conduzir à resposta. Ele coçou a barba com a mão direita, sorriu levemente, como um sábio que já tinha a resposta havia séculos, e disse, com uma simplicidade inesquecível: “Não corrige, não. Não tente convencê-los de nada. Deixe eles escreverem errado até começarem a perceber que não está certo. Quando isso ocorrer, quer dizer que estão vivenciando o processo de letramento – a partir daí, não erram mais”. Os colegas fizeram várias perguntas para nosso convidado, até que chegou de novo minha vez. Contei a história do Seu Pedro e não perguntei nada, esperando apenas um comentário. Paulo Freire advertiu que aquele caso tinha, obviamente, uma dimensão diferente da discussão da cidade com C ou S. Com o otimismo que caracteriza os grandes personagens da história, ele falou: “haverá um dia em que todos os pintores de parede saberão 176 calcular os metros quadrados de sua produção. Então, mais nenhum será mandado embora por causa disso”. ************ O nosso curso de alfabetização continuou pelo resto do ano, até que nossos alunos “se formaram”, com direito a festinha e tudo. Seu Pedro evoluiu muito na Matemática, para o provável desespero do seu chefe! Naquele dia, o “teste final” para receber o “diploma” era a leitura de um texto inédito. Muita alegria marcou aquela despedida. *********** Três ou quatro anos depois, reencontro Paulo Freire. Não mais naquela rodinha aconchegante de sábado à tarde. Dessa vez, ele não tem como saber da minha existência. Sou um pontinho branco (de camiseta Hering...) no meio de uma multidão de estudantes, educadores e interessados em geral que lotam – lotam mesmo – o auditório da Faculdade de Direito da UFMG, na Praça Afonso Arinos, no centro de BH. Todos foram assistir a uma palestra de Paulo Freire. Tudo que ele conseguira evitar naquele encontro secreto acontece agora. A mídia está toda presente, e a repercussão da visita dele a BH é enorme. Na mesa, alguém anuncia, sem saber que cometia um equívoco histórico: “tenho a honra de anunciar a presença do mestre Paulo Freire, pela primeira vez em BH 177 após o exílio...”. Foram vários minutos de aplausos. Vejo o educador de longe e não consigo deixar de lembrar do tijolo, da galinha que a gente “nhassa”, da “sidade” e do três vezes quatro, entre tantas outras lições que aprendi nas aulas de alfabetização. No final de sua fala, surgem muitas perguntas. Até que vem a derradeira. Alguém toma o microfone e indaga: - Paulo Freire, você deve uma explicação para todos nós que te admiramos tanto. Como você pode ser, ao mesmo tempo, um marxista tão convicto e coerente – com ensinamentos baseados no materialismo histórico – e um cristão tão fraterno, com base nas palavras de Deus? A plateia fez um silêncio mortal. Ele apoio o queixo nas mãos, pensou um pouco e disparou: “Puxa, pessoal, deixa o velhinho ter suas contradições!!!” 178 ARTIGO MÃE TIGRE VERSUS MÃE EDUCADORA MARIA DO CARMO MANGELLI > COMO PENSAR A RESPEITO DE UMA MÃE QUE DEFENDE O DIREITO DE CHAMAR SUA FILHA DE LIXO, E ESTA CONDUTA SER UM FATOR DE CRESCIMENTO E EDUCAÇÃO, SOB A QUAL OS FILHOS NÃO TERÃO A MÍNINA POSSIBILIDADE DE ESCOLHAS E OS SEUS DESEJOS FICAM EMBOTADOS DIANTE DA COBRANÇA DE SUCESSO? < O tigre, símbolo vivo de força e poder, geralmente inspira medo e respeito. Assim começa o livro de Amy Chua, “Battle hymn of the tiger mother”, em português “Grito de Guerra da Mãe Tigre”(Penguin Press)1 mãe que defende a educação rigorosa para que os filhos possam obter sucesso. 180 Como pensar a respeito de uma mãe que defende o direito de chamar sua filha de lixo, e esta conduta ser um fator de crescimento e educação, sob a qual os filhos não terão a mínina possibilidade de escolhas e os seus desejos ficam embotados diante da cobrança de sucesso? Ao começar a ler o livro de Amy Chua, já me remeti a uma série de questionamentos que me fizeram refletir em como seriam meus filhos agora, caso tivessem tido uma educação aos moldes daquela apregoada por essa autora. Ter e lidar com filhos obedientes é extremamente fácil. Ter filhos questionadores é bem mais trabalhoso e instigante. Ouvir do filho que você está errada, vê-lo questionar sua posição é também fazer você pensar e refletir sobre Mãe tigre versus mãe educadora sua própria conduta, colocá-la em xeque e realizar mudanças em seu modo de agir. Crescemos e amadurecemos com os nossos filhos. Eles é que nos darão o feedback para que possamos continuar a educá-los. Educação é troca, escuta, compartilhamento. ção de valores e de autonomia da criança. > OS PAIS, NO IMAGINÁRIO DAS CRIANÇAS, SÃO OS QUE OFERECEM MEDIAÇÃO ENTRE ELAS E O MUNDO, SÃO QUEM ACOLHE, DÁ Temos que levar em consideração a carga afetiva imposta ao aprendiz, seja ele seu filho ou seu aluno, no caso de educação em sala de aula2. A carga afetiva em situações de pressão poderá ser mais devastadora que o fato de cometer algum tipo de erro ou de não ser tão bem sucedido como querem os pais. Pais ou professores que agem como uma representação de si no filho/aluno, sobretudo no que diz respeito ao êxito escolar, põem em risco a constru- SEGURANÇA,E SIGNIFICADO AO QUE FOI APRENDIDO < Os pais, no imaginário das crianças, são os que oferecem mediação entre elas e o mundo, são quem acolhe, dá segurança, e significado ao que foi aprendido. Fazer deste ato de educar um ato de pressão é no mínimo devastador. Podemos passar da educação dada pelos pais à educação ofe181 recida pelas escolas. Crianças que introjetam uma mãe extremamente castradora, rígida, que interrompe os desejos dos filhos em função dos próprios, poderão levar esta imagem para o professor, que também é figura de autoridade, e ficarem congeladas nessa imagem autoritária. O efeito será sempre o de uma criança acuada diante de qualquer pressão que se possa exercer sobre ela. Se levarmos em consideração que o aluno aprende com os pais em primeiro lugar e depois com o professor e que o processo educativo não se resume na acumulação de dados e de informações, que só visam ao sucesso profissional, diremos que a Mãe Tigre pecou por dar uma educação baseada no acúmulo de pretensos sucessos em detrimento do verdadeiro desejo de aprender. 182 > A MÃE TIGRE É UMA MÃE DOTADA SE SABERES, INCLUINDO A CERTEZA DE SABER SOBRE O DESEJO DO OUTRO, SEM MESMO QUESTIONAR ESSE OUTRO SOBRE O SEU VERDADEIRO DESEJO < A Mãe Tigre é uma mãe dotada se saberes, incluindo a certeza de saber sobre o desejo do outro, sem mesmo questionar esse outro sobre o seu verdadeiro desejo. Na educação, as antíteses são várias, a começar pelo bem e o mau, o bom e o ruim, o que sabe e o que não sabe. A mãe chinesa acha que é o que é bom. Se o educador se acha o dono da verdade, ocupa o lugar da certeza de que o bom para o filho, ou para o aluno, no caso do professor, Mãe tigre versus mãe educadora é o que é bom para ele, já começa incorrendo no erro de subestimar a capacidade de julgamento do aprendiz. A Mãe Tigre, ela tinha a certeza de que o bom para as filhas era ter sucesso, aprender piano e violino, serem as primeiras da classe e estudar nas melhores universidades do mundo, mesmo que a qualquer preço, mesmo com o sacrifício extremo que incluía horas e horas de estudos e treinos rigorosos. Aliás, não era só a certeza; assim se exigia das filhas, não sendo admitida qualquer outra forma de vida. > SE O EDUCADOR SE ACHA O DONO DA VERDADE, OCUPA O LUGAR DA CERTEZA DE QUE O BOM PARA O FILHO, OU PARA O ALUNO < Mas sabemos que nada disso é garantia de sucesso, se não contarmos com o empenho do outro e o verdadeiro desejo deste de ser como se espera que seja. Assim, ela pôde talvez, contar com a sorte de ter duas filhas que se enquadraram dentro do perfil desejado por ela, e que, aparentemente, conseguiram sair ilesas dessa maratona de sucessos e pressões. Mas é preciso ter em mente que essa fórmula não é necessariamente a do sucesso para todas as crianças. Hoje há toda uma geração de crianças e adolescentes questionadores e prontos para dizer “não” quando há exageros em relação à exigência dos adultos, e nossa cultura valoriza de forma especial este tipo de conduta. “Os pais chineses sempre sabem o que é bom para o filho, e por isto podem substituir as preferências e desejos dos filhos”1, pois estes nunca podem fazer qualquer coisa que não seja ir à escola para estudar, ao contrário dos pais ocidentais que permitem ao filho atividades extraescolares e preocupam-se com suas questões emocionais, acreditam na escolha individual, valorizam a independência, a criatividade e o questionar a autoridade. Assim foram criados os meus filhos: acreditando e valorizando sua independência, suas escolhas. Hoje são pessoas bem sucedidas, talvez com alguns arranhões, acredito, pois ninguém sai ileso de uma educação, mas livre. As dicotomias na educação existem não só no núcleo familiar, 184 mas também na escola. Há muitas instituições e também muitos professores que estão sempre marcando a eficiência do bom aluno, daquele que é o mais inteligente, esquecendo-se de que existem crianças esforçadas, que estão no limite de suas capacidades, mas não conseguem alcançar a excelência. Como poderemos exigir dessas crianças um limiar acima de suas capacidades? Não seria melhor respeitar o tempo da criança e deixá-la seguir de acordo com sua capacidade? Afinal, não caberiam todas em Yale ou Harvard. Podemos, a partir deste ponto, fazer uma reflexão a respeito do quanto nossa sociedade tem cobrado de nossos jovens em termos de rendimento. Com o siste- ma de consumo acelerado, os grandes tigres asiáticos se gabando do sucesso e alta produtividade, sinal de riqueza e sucesso, corremos o risco de num futuro próximo começarmos a nos aproximar dessa imagem da Mãe Tigre e exigir de nossos jovens além do que nossa cultura suporta. Tanto os familiares quanto a escola têm o dever de valorizar o bem-estar e a felicidade de nossas crianças e jovens, estimulando e apoiando suas escolhas, respeitando seus desejos e aspirações, respeitando-os como pessoas e, antes de tudo, amando-os verdadeiramente. 1- Cua, Amy. Battle Hymn of the Tiger Mother. New York: The Penguin Press, 2011. 2- Filho, J.B.M. Ensinar: do mal entendido ao inesperado da transmissão.In: A psicanálise escuta a educação. Eliane Marta Teixeira Lopes, organizadora. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. 3- Postic, M. O imaginário na relação pedagógica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 185