Ano 1 — Volume 1 / Primavera de 2011
N° 47
TEORIA E PRÁTICA EM EDUCAÇÃO
PASSADO, PRESENTE
E FUTURO: RENASCE UMA
REVISTA DE EDUCAÇÃO
DOIS
PONTOS?
“PONTO SOBRE PONTO DÁ UM OLHO.
DOIS PONTOS PARALELOS, DOIS OLHOS.
OLHOS QUE NÃO PARAM, BUSCAM INFORMAÇÃO,
TRAZEM O MUNDO PRA DENTRO DA GENTE”.
Andrea Costa Gomes respondeu a pergunta acima, que deu origem à
arte da capa. Ela trabalha como designer e ilustradora. Adora olhar.
Diretora Executiva da Educação Básica:
MÔNICA FERREIRA
Editor chefe:
FERNANDO CARAMURU BASTOS FRAGA
Jornalista responsável:
JOÃO CARLOS FIRPE PENNA
(REG. PROF. MG 3362 JP)
Conselho Editorial:
ADÉLIA MARTINS DE AGUILAR, ADRIANA BATISTA GONÇALVES,
CORNÉLIA CRISTINA SAMPAIO BRANDÃO, FERNANDO CARAMURU
BASTOS FRAGA, JOÃO CARLOS FIRPE PENNA, LUANA FÉLIX DA SILVA
E LUCIANA TOGNOLLI
Produção Editorial:
LUANA FÉLIX DA SILVA E LUCIANA TOGNOLLI
Reportagem:
ELIARA SANTANA FERREIRA, JOÃO CARLOS FIRPE PENNA,
LUCIANA TOGNOLLI E RAQUEL ROSCÉLI
Revisão de textos:
CLAUDINE FIGUEIREDO ANDRADA, LÍLIAN DE OLIVEIRA, PRISCILA
TREVIZANI E RENILDA DOS SANTOS FIGUEIREDO
Charges e Ilustrações:
AFO, CHIQUINHA E BRUNO NUNES
Projeto Gráfico:
GRECO DESIGN
Criação, Arte e Editoração Eletrônica:
EDITORA ARTE DIGITAL E GRECO DESIGN
Revista Dois-Pontos é uma publicação da Rede Pitágoras destinada
a todos os educadores do Brasil. Editora Educacional © 2011
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UMA FÊNIX
RENASCIDA
A REVISTA DOIS-PONTOS ESTÁ DE VOLTA!
Nesta primavera de 2011, relembramos outra edição publicada em
meio a uma estação como esta nos idos de outubro de 1983. São duas
primaveras que se unem por uma mesma notícia: nasce a Revista Dois-Pontos. Mas como é possível nascer duas vezes?
Só para uma publicação do porte, da história, da importância e respeitabilidade da Revista Dois-Pontos fica concebível que seu curso seja
retomado como se nunca tivesse sido interrompido. E, em assim sendo
e por tudo que esta revista representou, representa e representará no
meio educacional brasileiro, eis que lhes apresento, na sequência do
último número publicado em 2000, o número 47.
Estamos de volta. Boa leitura!
Mônica Ferreira
Diretora da Educação Básica da Kroton Educacional
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
GENTE
O OLHAR DO CASEIRO 10
ALUÍSIO PIMENTA
ENTREVISTA
A EDUCAÇÃO BRASILEIRA
GUIOMAR NAMO DE MELLO 18
PASSA POR SEU NOME 44
REFLEXÕES
OS JOVENS E AS REDES
6 SEGREDOS DE PROFESSOR
SOCIAIS 24
PARA PROFESSOR POR PAULO
TWITTERATURA: NASCE UM
VOLKER 52
NOVO MEIO LITERÁRIO? 30
A EDUCAÇÃO É A CARA DO
FILHO: ESTORVO OU TROFÉU
POR PEDRO BORGES 36
PAÍS POR RITA ESPECHIT 60
BOA NOTÍCIA
RESENHA
CRESCE A LEITURA ENTRE
ESCOLA REFLEXIVA
OS JOVENS 66
E NOVA RACIONALIDADE 100
INSTITUIÇÃO EM DESTAQUE
HISTÓRIA
O COLÉGIO EMBRAER JUAREZ
DUAS OU TRÊS HISTÓRIAS
WANDERLEY 70
DO MESTRE DOS MESTRES:
COEDUCAÇÃO
PAULO FREIRE 104
O DIVÓRCIO DAS SIAMESAS
POR ALCIONE ARAÚJO 78
MÃE TIGRE VERSUS MÃE
QUEBRANDO PARADIGMAS...
EDUCADORA POR MARIA DO
DE ESCOLA E DE MUSEU 84
CARMO MANGELLI 110
INTERCÂMBIO
PEDAGOGIA “CRIATIVA” A
PARTIR DA CONDIÇÃO
HUMANA POR ANGÉLICA
SÁTIRO 90
APRESENTAÇÃO
O OLHAR
DO CASEIRO
POR FERNANDO CARAMURU
I
nicio dizendo que a gênese
da Revista Dois-Pontos ocorre como todas as gêneses de tudo
que é importante. No princípio, era
apenas uma ideia vaga que relampejava na cabeça de um visionário.
O visionário era um engenheiro
que se tornou educador e de um
educador que nunca deixou de ser
engenheiro, pois ambas as profissões carecem do engenhar para ser
exercida com maestria. Engenhar
começa por conceber imagens do
necessário e desejável, imagens
do sensível e do racional; continua
vislumbrando caminhos, empreendendo buscas, planejando projetos; e termina por realizar sonhos,
não sem antes ampliá-los. O visionário se chama Evando Neiva.
car por escassez e até por excesso,
incluindo no rol quem não mereceria ou excluindo alguém relevante.
Ademais, quando não se tem certeza da existência, ainda, do remédio
Regulador Xavier, o único capaz de
curar os males provocados por excesso e escassez, não é bom correr
o risco de promover males incuráveis. Tampouco se sabe se esse tipo
de fármaco serviria para as questões daquela natureza...
E os que existiam em geral não passavam, pela apresentação e pelos
projetos gráficos, de livros periodizados, com conteúdos acadêmicos e maçudos, editados pelas
universidades.
Não cairei na tentação perigosa de
citar mais nomes dos envolvidos na
criação da revista, pois poderei pe11
> ERA MUITO IMPORTANTE CRIAR UMA REVISTA DE
EDUCAÇÃO, UMA VEZ QUE NA ÉPOCA, AURORA DOS
ANOS 80, NÃO HAVIA LÁ TANTOS QUANTOS
NECESSÁRIOS PERIÓDICOS BRASILEIROS
VERSADOS NOS ASSUNTOS EDUCACIONAIS <
Compôs-se, então, um grupo de veteranos e neófitos professores e funcionários do Pitágoras. Na verdade, um seleto
grupo de profissionais competentes em diversas áreas da experiência e do conhecimento, menos em confecção e edição
de revistas de qualquer natureza, inclusive de educação. Vieram as reuniões, muito bem esquematizadas e orquestradas
por Evando Neiva. Nelas fazem-se brainstormings, jogam-se
fósforos acesos na palha seca das ideias, dos palpites, do humor e, também, das aspirações mais altaneiras à cata de criar
a melhor revista de educação nunca antes feita ou até imaginada. Procuram-se benchmarkings no Brasil e no exterior. A
vontade e o entusiasmo de cada participante afloravam com
veemência, deixando às vezes, escaparem mecanismos compensatórios de egos feridos e, também, carentes de afirmação. Vez por outra, distribuía-se capim para os egos famintos.
Afinal de contas, o processo de humano ser não nega no ser
humano o animal que também é, graças a Deus! Mas a batuta, firme e imponente na mão do maestro, evitava desafinações para baixo ou para cima, dando o tom e promovendo
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O olhar do caseiro
a harmonia. Montou-se o conselho editorial e foi contratada
uma empresa de jornalismo e comunicação para participar
das sistemáticas e produtivas reuniões.
Continuo resistente no propósito de não citar nomes!
Numa dessas reuniões, quando se discutia a necessidade
cuja satisfação se daria com a criação da revista, evidenciou-se, pela unanimidade dos partícipes, que o periódico se
nutriria da diversidade de experiências e teorias do próprio
Pitágoras. A comunhão de todas as conquistas pedagógicas e de administração da instituição dar-se-ia pela revista
para todos seus agentes e agências de educação. Conversa
vai, conversa vem e se estabeleceu que o periódico não temeria a controvérsia e que sua linha editorial estaria comprometida com as mudanças rápidas, constantes e ubíquas
ocorridas no mundo moderno e pós-moderno. Para que essas transformações se dessem de modo desejável, haveria
denúncias contra o que fosse deletério ao ser humano, à
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14
O olhar do caseiro
sociedade e à vida. E, em contrapartida, se anunciaria o que os
afirmasse e desenvolvesse.
E vieram os nomes para a revista.
Afinal, ter nome é, pelo menos, o
encetamento da existência, visto que tudo que tem nome existe, nem que seja na imaginação
de quem nomeia ou reconhece o
nome. Contudo, a não citação de
nomes por mim aqui não apaga a
história e a importância de todos
que compuseram nosso periódico. Entre os muitos nomes sugeridos, foi escolhido, como bem se
sabe até hoje e está fadado a assim ser por muito e muito tempo,
“Dois Pontos — Teoria e Prática em
Educação”.
Neste momento da exposição,
sou imperiosamente impelido, e
não me furtarei a fazê-lo, data
venia, a citar dois nomes de pessoas que contribuíram de modo
magistral e imprescindível para
a criação e sucesso da Dois Pontos nº 47. Faço-o pelo imperativo
de que elas foram transferidas
para outras esferas que não as
de nossos convívios e desejos —
passaram a existir somente na dimensão das crenças, da saudosa
memória e do reconhecimento
dos que as conheceram e ainda
não foram. São elas: Lívia Mara de
França, psicóloga, e Edméia Passos, jornalista.
Então se fez a Dois-Pontos nº 47.
House organ incipiente, mas desde
o nascimento descobriu-se world
organ, pois que o Pitágoras tinha
tentáculos de processo educacional mundo afora e adentro, formando cidadãos. Um periódico com capacidade de se autoproduzir sem,
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16
O olhar do caseiro
contudo, abster-se das interações com o meio externo, onde
quer que estivesse. Nasceu para ser uma revista que contemplasse a seriedade e a profundidade das acadêmicas com a
flexibilidade e a comunicação das noticiosas — um periódico
com artigos, reportagens, charges, cartuns, textos de humor,
molho. Com magia, razão, intersubjetividade. Desenvolveu-se do meu ponto de vista para a vista de todos os pontos de
onde se achavam os outros. E vice-versa.
Revista de teoria e prática e, sobretudo, de dois-pontos, um
sobre o outro, verticalizado. Não uma ou mais vírgulas, um
só ponto intermediário, final ou mesmo um ou vários pontos de interrogação. Nem mesmo três pontos horizontalizados. Isto, sim: dois-pontos que anunciam algo em aberto, nunca do nada, mas de alguma coisa estruturada antes,
com consequência e resistindo à análise. Não só dois pontos de dualidade, que se opõem maniqueisticamente entre
o certo e o errado, o bom e o ruim, o belo e o feio, o yin e o
yang, o sacro e o profano, o confessional e o laico, o científico e o vulgar... Mas dois-pontos que se abrem em janela,
mostrando que o mundo é assim, assado e de outros jeitos.
Dois pontos que questionam se um afirma sobre alguma
coisa e outro nega sobre a mesma coisa: além da afirmativa
e da negativa, que vocês têm a dizer sobre isso?
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Revista Dois-Pontos — Teoria e Prática em Educação, um periódico
com a chancela da respeitabilidade
cosmopolita do Grupo Pitágoras.
Ressurge de uma inanição de novas
edições de onze anos sem que tenha caído, em momento algum, no
ostracismo. Pelo contrário, foi força
sempre presente de sua presença
que nos presenteia agora com seu
retorno, sob os auspícios e as graças
da atual liderança da Kroton. Como
um clássico que é, permanece porque não foi datado e pelo fato de
ter sabido ser vanguarda.
Finalizo dizendo que tenho participado da Dois Pontos desde sua
concepção, das primícias ao consummatum est (estágios processuais que se repetiram na edição de
cada um de seus números), inicialmente como simples assessor da
Superintendência de Programas
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Especiais do Pitágoras e depois, na
função de editor. Pela continuidade
da Dois-Pontos e do editor, por ambas, sinto-me distinguido e imensamente gratificado.
Na qualidade de editor, sempre fui
e serei um caseiro, cujo posto nobiliárquico me deu o prazer e a honra
de cuidar do veículo de comunicação educacional, casa móvel que
é. Cuidar é tomar conta, adubar o
terreno, assentar as sementes (que
tinha o privilégio de também escolher), regar as plantas, espantar as
aves de rapina... E, depois, colher os
frutos e deleitar-me com a beleza
das flores.
Fernando Caramuru Bastos Fraga, o
caseiro.
ENTREVISTA / Guiomar Namo de Mello
“NOSSA
ESCOLA ESTÁ
AFASTADA DO
ALUNO”
POR LUCIANA TOGNOLLI
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EMPOSSADA NO ÚLTIMO MÊS DE AGOSTO COMO MEMBRO
DO CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DO ESTADO
DE SÃO PAULO, TEM NO CURRÍCULO A EXPERIÊNCIA DE
DEPUTADA ESTADUAL, SECRETÁRIA MUNICIPAL DE
EDUCAÇÃO, PESQUISADORA DA FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS
E CONSULTORA PARA PROJETOS DE INVESTIMENTO
EM EDUCAÇÃO. TOM FIRME, COMPROMETIMENTO
INDISCUTÍVEL E DISPOSIÇÃO PARA DEFENDER A
FORMAÇÃO DO PROFESSOR COMO CONDIÇÃO PARA O BRASIL
EXERCER DE FATO A DEMOCRACIA, GUIOMAR
NAMO DE MELLO FALOU À REVISTA DOIS-PONTOS SOBRE
JUVENTUDE, TECNOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS.
A sociedade contemporânea vive um cenário de muitas
e profundas mudanças, há vários modelos familiares,
novos espaços comunicativos trazidos pela Internet,
certa crise de valores entre os jovens. A escola está preparada para atuar nesse contexto?
A escola brasileira não está preparada. Para começar, o Brasil ainda apresenta uma grande desigualdade educacional
e a mudança de paradigma que está ocorrendo no mundo
inteiro envolve não apenas a educação de uma elite. Isso
implica que a grande massa das pessoas possa se apropriar
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do conhecimento e constituir competências básicas para
viver numa sociedade complexa, saturada de informação.
Mal a escola se universalizou no Brasil e estamos longe de ter
uma educação de qualidade. Nossa escola é afastada da realidade do aluno, tem um currículo enciclopédico, totalmente
abstrato, completamente desconectado da vida real na qual
há uma série de estímulos mais interessantes. Diante disso, a
escola é aborrecida. Hoje os jovens estão cada vez mais desinteressados da escola, e isso acontece em todas as classes
sociais. Alguns entendem que a escola é um mal necessário;
então, passam pela escola, mas ela não passa pela vida deles
de modo a fazer diferença. Entre os mais pobres, que constituem a maioria hoje, a distância entre seus interesses e capacidades e aquilo que a escola demanda é tão grande que
inevitavelmente se sentem excluídos, sem projeto de futuro.
Então, a escola não está preparada? Qual é o papel da
escola nesse contexto?
É muito difícil querer propor uma única fórmula, querer
uma única resposta, uma única solução para um problema tão complexo. Mas o que a escola deveria estar fazendo nesse contexto é transformar o conhecimento do qual
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Entrevista / Guiomar Namo de Mello
é depositária e tratá-lo na situação de aprendizagem de
modo a ser significativo para o jovem.
A senhora mencionou o desinteresse do jovem em geral, não só do jovem de escola pública. A razão disso é
somente o despreparo da escola?
> DO LADO DA ESCOLA, A DIFICULDADE É PROMOVER A
APRENDIZAGEM DE UM GRUPO ETÁRIO NATURALMENTE
DIFÍCIL, E CADA VEZ MAIS HETEROGÊNEO, EXIGINDO
TRATAMENTOS DIVERSIFICADOS PARA ALCANÇAR OS MESMOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM <
A juventude sempre foi uma etapa difícil do desenvolvimento
humano. O jovem está passando por uma série de mudanças,
tentando se entender como pessoa, definindo a sua identidade. Seus hormônios estão em uma grande revolução. Seu
aparato neurológico cognitivo está amadurecendo para o
exercício de operações mais complexas. Todos nós fomos jovens e adolescentes e sabemos o que é isso. Acontece que
é nessa fase crítica que o jovem precisa fazer escolhas que
talvez decidam sua vida dali em diante, escolhas que dizem
respeito ao uso do seu corpo, à escolha de uma profissão, ao
exercício de uma cidadania responsável, entre muitas outras.
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> DO PONTO DE VISTA PEDAGÓGICO, O ENSINO
MÉDIO EM NOSSO PAÍS É INDIGENTE. É CLARO
QUE HÁ BOAS ESCOLAS, HÁ GENTE FAZENDO
ESFORÇO, MAS, COMO REGRA GERAL,
A ESCOLA É MUITO RUIM <
Do lado da escola, a dificuldade é promover a aprendizagem
de um grupo etário naturalmente difícil, e cada vez mais heterogêneo, exigindo tratamentos diversificados para alcançar os mesmos objetivos de aprendizagem. Há um desencontro entre a escola e esse jovem, e esse desencontro hoje
é mais acentuado por várias razões. Primeiro, no caso brasileiro, porque a escola cresceu e perdeu qualidade, independentemente de o conhecimento ser próximo ou distante. Ela perdeu qualidade. Do ponto de vista pedagógico, o
Ensino Médio em nosso país é indigente. É claro que há boas
escolas, há gente fazendo esforço, mas, como regra geral, a
escola é muito ruim. Não tem instalações, não tem professores bem preparados. Hoje é muito mais difícil ser professor
do que há algumas décadas, mas nós não mudamos nada na
formação dos professores. Continuamos formando professores como se fazia no modelo dos anos 30.
Entrevista / Guiomar Namo de Mello
Divulgação
Tanta informação disponível que poderia ser uma aliada, de alguma
forma, compete com o professor?
É claro que compete, e essa competição é tanto mais desigual quanto menos preparado o professor estiver. É uma concorrência muito grande com
a escola e muito diferente da época em que ela era o único caminho para
se ter acesso à informação, ao conhecimento. Hoje, há muitos outros caminhos para se chegar ao conhecimento.
Temos um diagnóstico, o problema existe, a escola está repleta de alunos mas ainda se trabalha pelo básico. O que fazer?
Em primeiro lugar, é preciso dar qualidade ao trabalho desse professor.
Ele precisa dominar o conteúdo da disciplina que vai ensinar. E dominar a
ponto de saber conectar esse conhecimento com a vida real e com conhecimentos das demais disciplinas. Dominar a ponto de fazer do conteúdo
curricular uma experiência significativa para um alunado muito heterogêneo. Não é uma tarefa simples. Há o mito de que o professor se cria, se vira
sozinho, faz e acontece. Ele não faz e não acontece. Não por sua culpa mas
porque também não aprendeu.
Na escola particular, o professor tem muito mais acompanhamento. É melhor, entre outras coisas, porque o professor é sistematicamente observado, apoiado nas suas dificuldades. É verdade que na escola particular há
seleção do alunado, talvez outro tipo de família, mas também é verdadeiro
o fato de que, na escola particular o professor faz parte de algum projeto
pedagógico e tem metas a cumprir. Nossa escola pública nem sempre tem
um projeto e, quando tem, nem sempre ele é concretizado.
A formação é precária, os recursos didáticos escassos e não se consegue
ter um projeto conjunto.
Tudo isso mostra que, depois do professor, a coisa mais importante é o diretor ou qualquer outra liderança pedagógica existente na escola. O bom
diretor tem carisma, tem a heróica “pancada” para liderar um grupo e entusiasmá-lo. Educação tem de ser feita com entusiasmo, porque é trabalho
muito duro! É preciso dar atenção ao professor, de perto, e isso custa caro.
Hoje vemos vários projetos dando certo.
O que faz com que alguns projetos deem certo?
É aquilo que nós sabemos que funciona. É gestão, é ter um diretor presente, é ter acompanhamento, estímulo; é garantir melhor salário para
o professor, que ganha muito pouco. Sabemos que o salário apenas não
é solução, mas nada é solução isoladamente. O pagamento e reconhecimento satisfatório do professor fazem parte da “cesta básica”, dos fatores
que impactam a qualidade do ensino. Uma boa escola exige estar perto,
ajudando o professor, intervindo antes que o problema seja insuperável.
Se o aluno chegou ao Ensino Médio “pré-alfabético”, é urgente identificar
esse aluno, saber porque chegou a esse ponto e, se for preciso, alocar um
professor para acompanhar individualmente ou em pequenos grupos para
assistir e recuperar esse aluno.
Do ponto de vista pedagógico, é indispensável – considerando a qualidade da formação do professor no Brasil – disponibilizar material na mão do
professor estruturando seu trabalho na sala de aula. Sem querer ser simplista, é fazer na escola pública o que se faz na escola particular.
Em sua página na Internet, a senhora reúne material que considera
relevante para a educação desse início de século. Algumas coisas ali
foram escritas há vinte anos, mas se mantêm atuais. É um indício de
que os progressos nas últimas décadas foram poucos?
As últimas décadas foram importantes. Junto daquilo que eu disse, havia toda uma geração de gente como eu, dizendo coisas que inspiraram
mudanças. Nós influenciamos a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases,
demos o impulso inicial para uma importante reforma curricular. Infelizmente ela ficou pela metade durante a primeira década deste século, mas
agora está sendo retomada.
Por que ela ficou pela metade?
Por um erro estratégico, falta de visão ou de experiência de gestão estratégica da educação em países complexos, federativos e desiguais como o
Brasil. Também por falta de uma história nacional de gestão educacional
democrática. Não podemos nos esquecer de que a nossa democracia ainda não tem trinta anos. E, de repente, a democracia virou o aparelhamento
do Estado pelos grupos de interesses particulares, os sindicatos, as corporações. Isso talvez seja o preço que, infelizmente, tenhamos de pagar.
O lamentável é que as nossas lideranças políticas não tenham tido essa
visão. Alguns tiveram mais do que outros. O Paulo Renato foi um ministro
que deu uma contribuição enorme, mas muito do que ele fez precisava
ser continuado, avançado, sobretudo na área da organização e da gestão
pedagógica da escola.
E ainda há o agravante que se repete na esfera pública, que é o fato de
sucessores não darem continuidade a projetos já iniciados...
Isso é uma praga! (risos) E o que isso exige? Exige que se tenha liderança
política e respaldo da sociedade para colocar a educação como um assunto que não é apenas de governo, mas de interesse do Estado e da nação,
para que se tenha um mínimo de continuidade para as políticas. Ou, se for
o caso de terminar uma política para propor outra, é preciso que existam
avaliações visando partir do que já está pronto. Até aqui nós estamos sem-
pre começando da estaca zero, inventando a roda.
Cite exemplos de não continuidade de políticas públicas.
Em 1998, foram aprovadas diretrizes curriculares para o Ensino Médio. Depois disso foram escritos dois ou três documentos oficiais em Brasília repetindo o que já estava nas diretrizes. No entanto, o que deveria ser feito pelos estados e municípios não ficou pactuado e só nesta década começou a
ser feito. Veja que os Parâmetros e as Diretrizes curriculares são da segunda
metade dos anos 1990. Só agora, nos últimos anos, é que os estados e os
municípios começaram a estabelecer seus próprios currículos com conteúdos, com expectativa de aprendizagem, relacionados à capacitação de
professores de acordo com as diretrizes. É preciso promover entendimentos para que cada governo novo não decida inventar a roda outra vez...
As inovações tecnológicas fazem parte da vida dos jovens, até dos jovens mais carentes. É fundamental para o professor aderir às tecnologias de informação e de comunicação, ou ele pode prescindir dessa
tecnologia?
Ele não pode prescindir, mas esse é um tema complexo, porque não basta
a alfabetização digital, embora ela seja importante. Sem que o professor
domine o conteúdo que o aluno precisa aprender, a tecnologia será como
uma nave espacial no meio de uma taba de índios. As TCIs são um recurso
precioso para aperfeiçoar o processo pedagógico e o trabalho com o conteúdo curricular. Mas é imprescindível que esse conteúdo exista!
Não podemos é achar que já resolvemos o problema de dominar o conteúdo e que agora só falta a tecnologia. Isso não é verdade. Mas agora nós
temos a oportunidade, veja só, não de fazer o professor dominar a tecnologia digital, mas de capacitá-lo na Matemática, na História ou na Biologia,
usando uma ferramenta digital para aprendizagem dele, professor. Usar a
tecnologia para que uma pessoa possa aprender é o primeiro passo para
que essa pessoa use a tecnologia para ensinar. Se nossos professores não
sabem aquilo que deveriam saber, porque não ensinar a eles esse conteúdo, usando pedagogicamente as TCIs?
Em seu artigo de 2001, a senhora considerou que o uso do computador pessoal precisaria de aperfeiçoamento e que isso estava longe de
ser concluído. Dez anos depois, o aperfeiçoamento obtido acompanhou o que demanda o processo de ensino e de aprendizagem?
A educação escolar é uma coisa muito grande e muito difícil de mudar.
Quando ela dá um passo, ela também faz um movimento e faz um barulho
grande, dado seu tamanho. É muito interessante acompanhar, por exemplo, o raciocínio do Bill Gates, que tem investido muito em educação, em
pesquisas sobre o professor. Outro dia ele publicou um artigo no jornal
The New York Times afirmando que nunca viu uma coisa tão difícil quanto
a educação escolar, e reconhece que quando começou a ocupar-se disso
ele desconhecia o nível de dificuldade de se fazer uma mudança e criar um
impacto de massa. Fazer uma escola boa é fácil. Fazer duzentas mil escolas
boas é que é difícil.
Isso é difícil por não haver investimento também na formação do
cidadão?
Claro! A formação, o apoio, os recursos disponíveis para o professor em sala
de aula. E não apenas de formação do ponto de vista de conhecimento,
mas do tipo de entusiasmo que você tem de injetar nesse professor para
que ele seja inspirador de seus alunos. Veja bem, a educação de qualidade
é cara. Basta ver quanto é a mensalidade das boas escolas particulares que
têm alunos selecionados, de origem econômica e cultural favorecida.
A educação de qualidade para um aluno que não teve nem tem as condições do aluno de classe média e alta, é ainda mais cara. É preciso focalizar o
financiamento e investir muito mais na aprendizagem de crianças e jovens
de baixa renda.
A cidadania está sempre presente nos programas escolares, mas de
que forma, efetivamente, as escolas podem formar cidadãos?
Quanto mais a escola propiciar a construção de um conhecimento signifi-
cativo que tenha sentido, com o qual o aluno saiba lidar, que ele consiga
usar na vida dele, mais haverá formação para a cidadania. A escola não
forma para cidadania como o partido, nem como a igreja. A escola forma
para a cidadania na constituição do conhecimento, das competências cognitivas e sociais. Esse é o papel da escola. Talvez no futuro seja diferente,
mas até agora esse é o papel dela. Então, quanto mais o aluno aprender
na escola e, partindo de lá, apoderar- se de um conhecimento que de fato
seja útil para a vida dele, da sua comunidade e da sua família, melhor ela
está formando um cidadão. Afinal, o que é um cidadão bem formado? É
aquele indivíduo que sabe tomar decisão, que tem autonomia, que respeita o coletivo, mas que não se dilui no coletivo, que é dono da sua própria
individualidade, que sabe estabelecer seu projeto de vida. O que é preciso
para isso? Dominar a língua, saber ler, ter um bom raciocínio quantitativo,
lógico e matemático, e entender como é a sociedade, e como funciona a
natureza.
Então, a formação do cidadão por meio da escola é mais eficiente se
ela permeia o currículo como um todo, e não sendo apenas um conceito presente no currículo...
A cidadania na escola não existe fora do currículo. Se você colocá-la fora
do currículo, ela vira uma alma penada. Ela começa a flutuar, e o único
meio de fazê-la aterrissar é tendo o domínio dos conteúdos curriculares.
O cidadão é formado por quanto mais ele dominar a história, quanto mais
ele entender o corpo dele. No dia em que ele for dono de si, capaz de dizer
o que ele vai fazer com o corpo dele, se ele vai fazer dieta, se não vai fazer
dieta, se ele vai fumar, se ele vai beber, se ele vai usar drogas, ou se ele
vai fazer sexo antes do casamento, estará decidindo como cidadão. Não
adianta a cidadania servir para entrar na faculdade. Antigamente, a família
dava conta disso, hoje não. A cidadania fora do currículo, no meu modo de
ver, é uma alma penada, ela vira um mantra.
No Conselho Estadual de Educação de São Paulo, com a sua vivência
formulando, propondo, estudando, há como priorizar necessidades?
A prioridade é: gestão da escola e do professor. A prioridade é ter um currículo que seja mais enxuto, não se pode ter um currículo que seja uma
árvore de natal. Se olharmos tudo o que foi emendado na Lei de Diretrizes
e Bases (LDB) criando disciplinas, vemos bem como é a cabeça do brasileiro. A LDB foi muito econômica no currículo, depois todo o mundo fez
uma emenda instituindo a disciplina de sua preferência como obrigatória:
a Sociologia, a Filosofia, os estudos afro-brasileiros, a educação indígena,
a música. A LDB nunca disse que a Língua Portuguesa é obrigatória e os
congressistas, com apoio do Conselho Nacional de Educação, fizeram a Sociologia e a filosofia obrigatórias.
Essas são ações para atender a interesses de mercado? Há outras razões aí que não ampliar o conhecimento?
Somos uma democracia jovem que não consegue ver o Estado como representante, em primeiro lugar, do bem coletivo. Então, o Estado é um aparelho para eu criar mais aulas para os professores. Do mesmo jeito que o
Estado é um aparelho para eu comprar voto. Há uma relação com o Estado
como se ele fosse interesse da propriedade privada. Menos que a economia de mercado, é a economia dos interesses corporativos que prejudica
a educação.
Os pontos que a senhora considera como negativos, ou, digamos, os
pontos a trabalhar, os imprescindíveis, a senhora deixa muito claros.
O enxugamento do currículo, dar ênfase para aquilo que é básico. A língua
portuguesa, a leitura, a matemática, os estudos da sociedade e os estudos
da ciência.
O que a senhora mencionaria como os maiores problemas da educação brasileira?
A formação do professor é o maior problema.
É o que a senhora destacaria como ponto positivo na educação
brasileira?
A primeira coisa é a conquista quantitativa. Nós conseguimos universalizar
o Ensino Fundamental, estamos caminhando para universalizar o Médio e
isso é uma conquista do povo brasileiro que demorou muito tempo. Acho
que esse é o primeiro ponto. O segundo é que nós temos um ordenamento legal, um sistema de financiamento, temos normas já estabelecidas.
Avançamos muito criando todo esse aparato normativo, que é fundamental para a educação num país democrático.
Há um caminho já percorrido que permite seguir em frente...
O balanço que eu faço hoje me diz que ainda tem muita coisa ruim. Então,
como é que nós poderemos avançar? Em vez de ficarmos o tempo inteiro
lamentando o que passou, é preciso dizer “eu caminhei até aqui, falta ir até
lá”.
REPORTAGEM
OS JOVENS
E AS REDES
SOCIAIS:
VIDA PÚBLICA
OU PRIVADA?
POR RAQUEL ROSCÉLI
D
ois bilhões. De acordo com
dados da ONU, esse é o número de pessoas que fazem uso
da internet ao redor do mundo.
No Brasil, 99% dos internautas dedicam parte do tempo na web conectados às redes sociais. Orkut,
Facebook e Twitter são as preferidas. Nesse espaço virtual, a vida
> MUITOS JOVENS
PARECEM TER ESQUECIDO
DE QUE A INTERNET
É UM ESPAÇO PÚBLICO <
social anda tão intensa, ou mais,
do que na “real”. Na maré da virtualidade das relações, como os
jovens estão lidando com essas
ferramentas? Nem sempre da melhor maneira. Fotos comprometedoras e declarações ofensivas
são parte do arsenal para as “saias
justas” que muitos adolescentes
vêm recebendo em função de
suas performances na rede. Um
problema que está intrigando alguns educadores é como proceder quando a “publicação online”
afeta a escola.
Muitos jovens parecem ter esquecido de que a internet é um espaço público. O que é postado na
rede pode se reproduzir de forma
viral. Vários episódios registrados
na mídia demonstram isso. Recentemente, por exemplo, em
uma escola de Osasco (SP), durante um intervalo, alguns alunos
decidiram se deitar em colchonetes que estavam no pátio para
uma aula de Educação Física. Um
deles tirou uma foto e postou no
Facebook sob a legenda: “Olha as
aulas que temos aqui”. Uma professora, que também faz parte da
rede social, alertou a direção da
37
escola. O estudante foi punido
e a foto retirada da internet, sob
alegação de ser prejudicial à imagem do colégio.
> ESTIMA-SE QUE, NO
BRASIL, O FACEBOOK
TENHA 19 MILHÕES DE
USUÁRIOS, E O ORKUT,
32 MILHÕES <
Para a filósofa, mestre em Educação, Tania Zagury, é preciso ter
cautela quando o assunto são redes sociais: “Essas novas formas de
comunicação são muito recentes.
Não dá pra falar em certo ou errado. Só teremos clareza a respeito
da maneira como elas afetam a
vida das pessoas, das famílias, das
escolas, ao longo do tempo”. Tania
acaba de lançar “Filhos: manual
de instruções”, livro que tem um
capítulo inteiramente dedicado à
orientação em relação ao assunto.
38
Para ela, a primeira coisa a se ponderar é que não se pode ignorar o
fenômeno. Estima-se que, no Brasil, o Facebook tenha 19 milhões
de usuários, e o Orkut, 32 milhões.
Um número significativo, que alçou o Brasil à terceira posição no
ranking dos países que mais acessam redes sociais.
No Rio de Janeiro, um colégio particular suspendeu uma aluna de
15 anos, após descobrir que ela
mantinha uma comunidade no
Facebook para compartilhar respostas dos deveres de casa. A direção da escola considerou a atitude como “cola virtual”. Além da
suspensão da estudante, os pais
dos 700 alunos que faziam parte
da comunidade foram notificados. A família da aluna suspensa
não concordou com a punição e
decidiu levar o caso à Justiça. Na
Redes socias
> DIANTE DA PRESENÇA
IRREVOGÁVEL DAS MÍDIAS
SOCIAIS NA VIDA DOS
JOVENS ESTUDANTES,
O ASSUNTO PRECISA
SER INSERIDO DENTRO
DE SALA DE AULA <
opinião de Tania Zagury, é importante que a escola não se omita
em relação ao comportamento
dos alunos nas redes sociais e
adote uma postura pedagógica.
“Esses jovens estão em formação.
Se tiverem uma atitude considerada antiética devem ser orientados. As escolas precisam começar
a criar seus critérios em relação
à maneira que vão atuar nisso”,
afirma.
vens estudantes, o assunto precisa ser inserido dentro da sala de
aula. Tania alerta para a necessidade do diálogo. Para ela, é papel
da escola conversar com os alunos
sobre os cuidados que se deve ter
com as mídias em geral. Discutir
essas formas de exposição é importante pra que os jovens não se
tornem vítimas das novas tecnologias. “Os meios de comunicação
não são ruins em si. O uso que se
faz deles que os torna uma coisa
positiva ou negativa”, resume.
Cautela, mas também abertura.
Diante da presença irrevogável
das mídias sociais na vida dos jo39
REPORTAGEM
TWITTERATURA:
NASCE UM NOVO MEIO
LITERÁRIO?
POR RAQUEL ROSCÉLLI
“L
ava carros o dia inteiro, com o único braço. Só sente falta do membro amputado
quando chega em casa, e abraça pela metade
a mulher amada”. Em 140 caracteres, o escritor
José Rezende Jr. escreveu este microconto. Há
muitos anos, Ernest Hemingway foi ainda mais
sucinto ao resumir em 26 letras uma tragédia
familiar: “Vende-se: sapatos de bebê. Sem uso”.
A modalidade literária vem ganhando adeptos no Twitter, é chamada de twitteratura.
Nela, a síntese e a criatividade andam juntas
para contar, e compartilhar, uma estória. Dessa forma, o microblog vem ganhando novos
usos, para além do vazio que geralmente se
credita às redes sociais. José Armando Valente, pesquisador do Núcleo de Informática
Aplicada à Educação (Nied), da Universidade
de Campinas (Unicamp), vê nessas novas tecnologias possibilidades de aprendizado. Para
ele, as escolas podem, e devem, integrar o uso
das redes sociais em seus currículos.
Uma pesquisa feita pelo Ibope Nielsen revelou que, em dezembro do ano passado, cerca
42
de 14% dos internautas brasileiros eram crianças de 2 a 11 anos.
Com os pequenos desde cedo antenados à rede, é natural que as
escolas façam o mesmo. No entanto, essa aproximação não deve
ser feita a esmo. “As redes sociais
devem ser utilizadas como ferramentas pedagógicas. O acesso
dentro da escola deve ser orientado, trabalhado dentro de uma
proposta curricular. De outra
forma se perde todo propósito”,
pontua Valente. Para ele, alguns
professores têm adotado pontualmente recursos da web em
sala de aula. No entanto, a maioria não explora as ferramentas de
forma satisfatória para o ensino.
“Alguns educadores, por iniciativa
própria, usam blogs de forma isolada. Por exemplo, para transmitir
conteúdos que estão dentro do
currículo, ou receber tarefas dos
alunos. Mas isso não é inovador.
É apenas transmissão de informação”, afirma.
> PARA SE APROXIMAR
DA LINGUAGEM E DOS
MECANISMOS DA INTERNET,
O EDUCADOR DEVE FAZER
UMA PARCERIA
COM OS ALUNOS <
Para otimizar o uso das redes sociais, é preciso fazer um trabalho
de integração mais profundo. “O
que acontece é que muitas vezes o professor domina o currícu> O QUE ACONTECE É QUE
lo, mas não domina a tecnologia,
MUITAS VEZES O PROFESSOR
de maneira que não consegue
DOMINA O CURRÍCULO, MAS
NÃO DOMINA A TECNOLOGIA < explorá-la da melhor forma den43
Twitteratura: nasce um novo meio literário?
tro do aspecto curricular”, explica
o pesquisador. Para se aproximar
da linguagem e dos mecanismos
da internet, o educador deve fazer uma parceria com os alunos.
“Essa molecada domina as redes.
Os professores precisam ouvir
e aprender com eles”, incentiva
Valente.
> O TWITTER
PODE AJUDAR O ALUNO
A ESCREVER DE FORMA
MENOS PROLIXA <
E como usar as redes sociais, na
prática, dentro de sala de aula?
Para o pesquisador, as possibilidades são inúmeras. O Twitter
pode ajudar o aluno a escrever de
forma menos prolixa. Quando trabalhado dentro do currículo de
Língua Portuguesa, pode ser uma
44
ferramenta para os alunos sintetizarem ideias. Já com o Facebook, o professor pode explorar a
convergência de texto e imagem.
“Muitas vezes o aluno posta uma
foto isoladamente, sem contextualizá-la. O uso integrado de texto,
vídeo e fotos pode enriquecer a
narrativa”, explica Valente.
Os governos Federal, Estaduais
e Municipais começam a colocar
em prática um projeto que pode
ajudar a mudar o método tradicional de ensino, o Programa “Um
Computador por Aluno”, o PROUCA. Desde meados de 2010, 300
escolas públicas estão recebendo
laptops para todos os alunos e professores. O objetivo é promover a
inclusão digital e disseminar a tecnologia. José Armando Valente
tem acompanhado a implantação
do projeto: “A aceitação dos alunos
> É PRECISO VALORIZAR
AULAS QUE SEJAM
CONDIZENTES COM A
ATUALIDADE, QUE SUPEREM
OS ABISMOS QUE A ESCOLA
TRADICIONAL TEM CRIADO
COM A MODERNIDADE <
é total. Estamos estudando como
complementar a atividade do lápis
e papel através dos computadores.
Ainda é cedo para falar em mudanças qualitativas, os professores estão sendo treinados para se apropriarem da tecnologia”, explica.
Com apoio da gestão da escola, capacitação e criatividade, os
professores poderão começar a
aplicar outros tipos de aula. Aulas que sejam condizentes com a
atualidade, que superem os abismos que a escola tradicional tem
criado com a modernidade.
45
Como conviver com as mídias de forma saudável
No tempo de seus avós não existiam.
Na infância de seus pais, começaram a aparecer com mais frequência —
especialmente nas classes A e B.
Na sua meninice pareciam fazer “parte da paisagem”, quer dizer, você nem
achava que era algo extraordinário que merecesse comentários ou comemoração— lhe parecia que sempre existiram...
Parece até aquela brincadeira “o que é o que é”... Basta, porém, pensar um
pouco para compreender que estou, obviamente, me referindo ao computador, à televisão, ao telefone celular, à internet rápida, ao DVD player,
ao GPS, ao cinema, à TV de alta definição e em 3D. E outras maravilhas da
tecnologia moderna.
Para quem nasceu com todas essas maravilhas dentro de casa, pode parecer engraçado ou até estranho ouvir alguém comentar e se maravilhar.
Provavelmente você deve estar pensando isso é coisa de “gente velha,
muuuuito velha”. Nem tanto assim!
As duas últimas décadas trouxeram mais progressos tecnológicos e científicos do que séculos anteriores inteirinhos... Portanto, não é coisa de muito
tempo não. Talvez de, no máximo, 50 anos.
46
E se você pensa assim, imagine como os seus filhos pensarão daqui a trinta
anos!
E olha que nem citei os consoles portáteis para jogos eletrônicos que deixam as crianças apaixonadas — PSP, DS, uma sigla nova a cada dia...
Até este livro chegar às livrarias com certeza terão surgido mais novidades
de última geração. Muitas mais!
O que hoje encanta e se torna objeto de desejo até de adultos, provavelmente já está sendo ou virá facilmente a ser parte integrante do dia a dia
de quem nasceu depois dos anos 1990, tal como o forno de micro-ondas,
os fogões com acendimento automático e as geladeiras com degelo automático: benesses que encantaram os seus pais (melhor dizendo, a sua mãe
— que não precisou mais descongelar a geladeira a cada dois meses), mas
que, para você, nem novidade mais eram.
Aliás, você sabia que as donas de casa tinham que desligar a geladeira a
cada mês, esperar o gelo descongelar todinho, a água escorrer, para depois limpar e poder ligar novamente? É, dava um trabalho... Mas isso só até
aparecer a tecnologia Frost Free, que dispensa descongelamento por todo
o sempre!
E que você, provavelmente, tem desde que montou sua casa; por isso, se-
47
quer imagina que existia algo menos que isso apenas quinze anos atrás...
E o que é que isso tudo tem a ver com a educação de meus filhos, com certeza, você deve estar se perguntando. E suando frio só de pensar que até
com essas coisas úteis e tão inofensivas eu vá dizer que os pais precisam
se preocupar.
Não. Não precisa se preocupar com todas as novas tecnologias — de forma
alguma.
Ufa! Alívio!
Com algumas delas, no entanto, sem dúvida há que se preocupar (e sem
choro, que não adianta nada. O importante é refletir, aprender a respeito
e AGIR).
Que cuidados ter? Com o DVD player, nenhum... Mas, com o conteúdo dos
filmes que seu filhote vai assistir a partir dele, sim. Os mesmos cuidados
que com relação aos programas de tevê, apenas isso. E exatamente também os mesmos em relação aos joguinhos eletrônicos:
• Preocupe-se com as mensagens: devem ser adequadas à idade; apenas
esse cuidado é suficiente.• A criança até sete anos, pelo menos, ainda não
está com sua capacidade de análise e julgamento críticos desenvolvidos.
48
• Em outras palavras, a formação de conceitos éticos ocorre paulatinamente e sob orientação, não nasce com a criança. Conceitos morais são aprendidos. E de preferência com os pais ou com alguém que ama e cuida da
criança. Seguramente não serão, nem a tevê nem o conteúdo de certos
jogos eletrônicos, os melhores orientadores...
• Se você lhe comprar o joguinho em que o objetivo é atropelar o maior
número possível de senhoras idosas, que coisa saudável ela estará
aprendendo?
• A preocupação básica deve ser: divertir, distrair, fazer rir e, sempre que
possível, ensinar alguma coisa, nem que seja pela mensagem que encerra.
Portanto, evite temas que instiguem a violência, o desrespeito, o medo, a
agressividade ou a ansiedade.
Mas será que faz mal mesmo? Tem especialista que critica, e outros que
afirmam não trazer problema algum.
Afinal, onde está a verdade? Difícil, não é? Mas vamos pensar juntas:
Você não questiona vacinar seu filho, questiona? Por quê? Porque a prevenção é, sem dúvida, o melhor que você pode lhe oferecer.
É a mesma coisa em relação aos jogos eletrônicos, tevê, internet e sites de
49
relacionamentos.
Existem estudos que apontam benefícios que as crianças podem desenvolver ao utilizar as maravilhas da tecnologia moderna. E isso é bom, sem
dúvida. Mas são benefícios de que teor? Raciocínio, agilidade mental,
cálculo, leitura, coordenação motora ampla ou fina. Perfeito. Concordo
plenamente.
Ocorre que tais benefícios podem, além do mais, ser acrescidos de conteúdo positivo. Por exemplo: salvar a cidade que está poluída; salvar a princesa que está presa na torre etc. Agora, atropelar vovozinhas... Por que não
escolher o adequado, se podemos?
Há controvérsias, sim, mas já se pode afirmar com certo grau de segurança
que:
Assistir tevê, jogar jogos eletrônicos e utilizar o computador — em
princípio — são atividades que não fazem mal às crianças.
Puxa, que bom, vou liberar o Júnior, hoje mesmo, que sossego vou ter.
É, parece ótimo. Mas, por favor, não libere o Júnior ainda não, porque tem
um “porém” importantíssimo!
50
Agora você está pensando “ai, lá vem a Tania com os poréns!” Mas é que há
sempre algum porém, mesmo.
Não se deve, porém, liberar qualquer joguinho, filme ou programa de
tevê em qualquer idade e durante todo o tempo que a criança quiser.
E isso porque existem, sim, alguns perigos que você pode evitar:
PERIGO nº 1
As mídias começam a se tornar prejudiciais quando o número de horas de
uso aumenta a tal ponto que a criança deixa de sair de casa para brincar
e só se motiva frente às diversas telinhas (agora não é só a da televisão),
onde permanece hipnotizada, horas a fio. Só mexe os dedinhos; nem pisca
— os olhos ficam até secos, desidratados...
O que significa dizer, em outras palavras, que:
• A quantidade de horas e o conteúdo da programação ou dos jogos devem ser observados e supervisionados pelos pais.
Um estudo do Ibope, de 1997, mostrou que a criança brasileira ficava
3h57min, em média, frente à tevê. É bem provável que esse tempo já se tenha estendido hoje — afinal foram-se mais de treze anos. O tempo médio,
51
à época, já quase igualava o de horas diárias na escola. Não pode ser bom,
não acha? É muito. Sem contar o tempo gasto com os jogos eletrônicos e
o computador.
PERIGO nº 2
As mensagens subliminares que os anunciantes desejam que o espectador
absorva são habilmente colocadas, de forma que a criança provavelmente
se torna uma reprodutora inconsciente de conceitos que essas entidades
têm interesse em disseminar — evidentemente em seu favor, e não no das
necessidades das crianças. Quem assiste mais horas, dia após dia, desde
muito jovem, evidentemente tem mais possibilidade de incorporar tais
mensagens massivamente recebidas e pouco ou nada discutidas.
O consumismo — “comprar, comprar, comprar” —, que provoca tantos
problemas na família, pode perfeitamente ser uma das mensagens negativas introduzidas pela mídia eletrônica e incorporadas por muitas crianças,
adultos e jovens com pouco ou nenhum poder de crítica.
O que, em outras palavras, quer dizer que:
• A melhor forma de lidar com a telinha é cuidar para que a criança assista,
sim, tevê, mas um pouco, não horas e horas seguidas, e sempre programas
selecionados por você. Quanto menor a idade, mais supervisão.
52
Significa ainda que:
É importante e necessário discutir, trocar ideias e analisar com seu filho
— evidentemente de acordo com a possibilidade e o desenvolvimento intelectual de cada idade — significados e objetivos que permeiam as mensagens. Isto é, ajudá-lo a se tornar, pouco a pouco, espectador crítico e não
receptáculo passivo e obediente dos ditames da mídia.
PERIGO nº 3
Pela inexperiência e ingenuidade próprias da infância e da adolescência, os
jovens tornam-se alvo fácil de predadores sociais (pedófilos, traficantes de
drogas ou de pessoas, assaltantes e outros). São facilmente convencidos,
através dos múltiplos expedientes usados por adultos mal-intencionados,
a fornecer dados, informações pessoais e da família, os quais são utilizados
para atingir seus objetivos nefastos. Sem mencionar que, além disso, costumam induzi-los a mentir, disfarçar e ocultar fatos, principalmente para seus
pais, de forma a não serem descobertos, nem suas armadilhas abortadas.
A imprensa vem noticiando seguidamente vários — não apenas um ou
dois — casos de sequestro, assalto a residências, estupros ou desaparecimentos que começaram dessa forma.
53
Não é preciso falar de outros perigos, certo? Esses bastam e já são suficientemente assustadores.
Então, o que fazer?
•
Não ter em casa?
•
Não deixar usar, se você tem em casa?
•
Proibir de usar na casa de amiguinhos?
Não, nada disso funciona; e é quase como ser um novo Dom Quixote de La
Mancha, numa luta inglória e enlouquecida!
Proibir pura e simplesmente, ou não ter em casa, costuma apenas fragilizar a criança que fica com “água na boca” e acaba querendo aproveitar
qualquer oportunidade que surja para ver os programas e filmes, jogar os
joguinhos e usar o computador. Os amiguinhos que assistem, obviamente, comentam com riqueza de detalhes naescola, pracinhas e playgrounds,
tornando a proibiçãouma faca de dois gumes.
Combate-se esse tipo de perigo com algum sucesso através do SABER (que
seus filhos adquirirão aos poucos), do cuidado e supervisão dos pais.
54
Antes, no entanto, é preciso que os responsáveis analisem e decidam —
em conjunto — o que permitirão e o que não consideram positivo que os
filhos assistam. A idade das crianças também deve pesar e nortear essa
decisão, tanto em relação aos diferentes programas quanto aos veículos
de entretenimento.
É especialmente importante que ambos, pai e mãe, concordem sobre isso
e orientem os que cuidam dos filhos na sua ausência para agirem da mesma forma.
55
ARTIGO
FILHO:
ESTORVO
OU TROFÉU
PEDRO FARIA BORGES
S
e a sociedade espera que a
família seja a principal responsável pela educação dos filhos,
então é necessário que ela lhe dê
apoio para o desempenho dessa
missão. Assim como os profissionais da educação recebem formação específica para essa tarefa, os
pais também devem ser preparados para educar os filhos e precisam receber ajuda para desempenhar o papel de educadores.
Com o nascimento de uma criança, mulher e homem se tornam
pais, mas isso não significa que
estejam preparados para educar essa criança, principalmente
quando se vive em sociedades
tão complexas quanto a nossa.
Não há uma capacidade natural
de mães e pais para educar os filhos. A família, na maioria das vezes, não possui os conhecimentos
58
e as habilidades que a sociedade
supõe que ela tenha e, com muita frequência, não consegue ser
efetiva na educação dos filhos.
Transmitir a cultura de uma geração para outra é papel fundamental da educação. Nas sociedades
primitivas, o principal objetivo do
processo educacional é garantir a
imutabilidade das técnicas de que
elas dispõem, o que torna mais
fácil a tarefa dos pais, porque não
há mudanças. O pedreiro ensina
o filho a construir casas como ele
aprendeu com seu pai; o agricultor passa para o filho as técnicas
para cultivar a terra que ele adquiriu com os pais; os pais criam
(educam) os filhos como eles foram criados (educados). Em algumas regiões deste imenso país,
ainda continua sendo assim, mas
isso se torna, cada dia, mais raro.
> “SE, NAS SOCIEDADES
PRIMITIVAS, É POSSÍVEL
EDUCAR OS FILHOS TAL
COMO FOMOS EDUCADOS POR
NOSSOS PAIS, NAS
SOCIEDADES CIVILIZADAS,
É PRECISO EDUCAR-SE PARA
fomos educados por nossos pais,
nas sociedades civilizadas, é preciso educar-se para educar os filhos. Embora as perguntas sejam
quase sempre as mesmas, precisamos de respostas novas, mais
adequadas aos novos tempos.
EDUCAR OS FILHOS” <
Nas sociedades civilizadas, a educação é responsável não apenas
por transmitir a cultura; ela se
responsabiliza também pelo aprimoramento e pela correção das
técnicas de que dispõem essas
sociedades. É preciso que as pessoas estejam preparadas para enfrentar situações novas e processos de mudança. Elas necessitam
de novos conhecimentos, de novas habilidades e competências.
Se, nas sociedades primitivas, é
possível educar os filhos tal como
A sociedade brasileira passa por
muitas transformações, e é bem
provável que seja a família a instituição que mais venha sentindo os
impactos dessas mudanças. Tanto
que se ouve falar, com frequência,
de crise na família, e aqueles que
são mais trágicos falam até de seu
desaparecimento. Não são raros
os que atribuem todos os males
da atualidade à desestruturação
da família. Trata-se, no entanto,
de novas configurações familiares, e o que alguns chamam de
desestruturação é, na realidade,
novas formas de estruturação.
59
Filho: estorvo ou troféu
ENTRE 1999 E 2009:
O NÚMERO DE CASAIS SEM
FILHOS CRESCEU DE 13,3%
PARA 17% NO BRASIL,
SEGUNDO O IBGE
60
A PESQUISA DO IBGE
CONSTATOU TAMBÉM QUE
O PERCENTUAL DE CASAIS
COM FILHOS CAIU DE 55%
PARA 47%
61
Filho: estorvo ou troféu
Entre os fatores que dão origem
a novas formas e tipos de família,
os especialistas apontam como
principais: o incentivo à individualidade presente em nossos dias, a
inserção da mulher no mercado de
trabalho, o controle do tamanho
da família e do momento de procriação, as novas formas de união,
o grande número de separações
e divórcios e a maior liberdade
para novos arranjos familiares. Se
olharmos ao nosso redor, veremos
famílias menores, menor número
de crianças, crescente aumento do
número de idosos, crianças criadas
cada vez mais pelos avós do que
pelos pais, maior número de casais
sem filhos, maior número de famílias monoparentais, número crescente de famílias reconstituídas.
Dados do IBGE confirmam nossas observações. De 1999 para
2009, houve um aumento na proporção de casais sem filhos, de
13,3% para 17%, e, consequentemente, uma redução de casais
com filhos, passando de 55%
para 47%. Em 2000, havia 50 milhões de crianças; em 2010, 45
milhões. Em 2009, a taxa de fecundidade total (número médio
de filhos que uma mulher teria
ao final do seu período fértil) foi
de 1,94 filhos, valor que mostra
o resultado de um processo intenso e acelerado de declínio da
fecundidade ocorrido na sociedade brasileira nas últimas décadas. Entre 2000 e 2009, a taxa de
fecundidade passou de 2,39 para
1,94 filhos por mulher.
O mais interessante, no entanto,
apontado pelos dados do IBGE, é
que quanto mais as mulheres estudam, menos filhos têm. Mulheres
com até sete anos de escolaridade
têm quase o dobro de filhos do que
aquelas que têm oito anos ou mais
de estudos. A Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios – PNAD
2009 revela que mulheres com sete
ou menos anos de estudo têm filhos mais cedo – a maioria, entre 20
e 24 anos (37% do total). Entre as
adolescentes, de 15 a 19 anos, que
têm menos de sete anos de estudo,
20,3% são mães. O que se verifica
é que pessoas com menor renda e
escolaridade geralmente têm filhos
mais cedo e em maior número; pessoas com maior renda e mais anos
de estudo, quando têm filhos, elas
os tem em menor número e mais
tarde. No primeiro caso, o filho quase sempre é um estorvo; no segun-
do, na maioria das vezes, a criança
se transforma num troféu. As notícias sobre abandono de recém-nascidos, crianças colocadas em latas
de lixo, em portas de residências,
agredidas ou mortas pelos próprios
pais são frequentes em nossos dias.
São seres humanos que chegaram
no momento errado, que representam um impedimento, um obstáculo, um embaraço na vida de seus
pais. Quando não são descartadas,
essas crianças acabam sendo educadas pelos avós, porque os pais
não têm condições financeiras nem
emocionais para cuidar delas.
Por outro lado, são também frequentes as notícias de barbaridades cometidas por jovens que não
podem ser contrariados, que não
suportam frustrações, que não dão
conta de conviver com os menores
obstáculos, porque foram criados
63
tendo todas as suas vontades satisfeitas, sem que precisassem de
qualquer esforço para conseguir
o que queriam. Foram educados
como se fossem donos do mundo,
como sendo os mais bonitos, os
mais inteligentes, os melhores em
tudo. São apresentados aos parentes e aos amigos como um troféu.
São frutos de um projeto: os pais
procuraram primeiro a realização
profissional, preocuparam-se antes
em ter as condições materiais necessárias para que o filho pudesse
ter tudo (casa, carro, empregados,
escola, aulas de natação, tênis, línguas, viagens, intercâmbio...) que
eles não tiveram. Educados assim,
esperam de todos subserviência,
sem estarem dispostos a nenhuma
contrapartida. Esses, quando se deparam com a realidade, geralmente
só encontram refúgio nas drogas.
64
Os pais que abandonam seus filhos
à própria sorte são execrados pela
sociedade; aqueles que têm o filho
como o ápice de uma vitória sobre
as dificuldades da vida e o protegem como um objeto precioso não
devem ser odiados por nós, mas
precisam ser alertados, para não
causar prejuízos que, em alguns
casos, são mais danosos para a sociedade do que os provocados pelo
abandono.
Na nossa sociedade, a função dos
pais só se completa quando mulher
e homem, além de genitores, também se tornam educadores. Para
gerar um novo ser, basta o amadurecimento biológico que, em condições normais, é natural; para ser
educador, é preciso bem mais. Há
uma preocupação crescente da sociedade com a qualidade da educação, mas raramente se vê, em nos-
so país, alguma iniciativa que tenha
como foco a formação dos pais.
Aproximar família e escola, sem
que haja programas que aprimorem pais e educadores, na maioria
das vezes, só serve para criar mais
conflitos e tensões entre as instituições, sem resultados positivos para
o desempenho dos alunos.
Mais do que computadores em sala
de aula, mais do que laboratórios
ou praças de esporte, programas
que pudessem dar aos pais uma
formação que lhes permitisse serem efetivos na educação dos filhos teriam maior impacto na melhoria da educação. Não se trata de
transformar pais em professores.
Embora seja difícil, na atualidade,
definir o que cabe à família e o que
é de responsabilidade da escola na
educação das novas gerações, não
se pode eliminar a distinção entre o
papel dos professores e o dos pais,
mas tanto pais quanto professores
precisam ser pessoas com certo
grau de maturidade. Uma pessoa
madura afeta positivamente a vida
daqueles com quem ela convive.
Influencia a escolha de uma carreira, inspira uma postura de comprometimento e responsabilidade
diante da vida, fortalece a confiança e a autoestima da criança e do
jovem. Já uma pessoa mesquinha,
insegura, negativa, principalmente
convivendo com crianças e jovens,
pode matar sonhos, destruir vidas.
A ironia, a violência, o desrespeito,
a deslealdade, o jogo de poder, as
baixas expectativas e a infantilidade dos adultos contribuem muito
mais decisivamente para os fracassos da educação do que a falta de
recursos, do que as carências materiais da família ou da escola.
65
Os pais, mesmo os mais conscientes e interessados, gastam grande
parte de seu tempo na busca de
informações e de orientação para
a educação dos filhos. Muito pouco
de seus esforços são gastos no aprimoramento de suas habilidades
de convivência, de comunicação;
cuidam pouco de seu crescimento
pessoal. De modo geral, tanto as
famílias quanto as escolas preocupam-se mais com os conteúdos,
com os métodos, com as estratégias, com a infraestrutura do que
com as pessoas que estão envolvidas no processo educacional. Não
há investimento mais proveitoso
do que aquele que pais e educadores fazem no próprio crescimento. As atitudes do educador calam
mais fundo no coração das novas
gerações do que suas palavras. Há
ensinamentos que se transmitem
principalmente pelos exemplos.
66
Conviver com uma pessoa generosa nos educa mais do que discursos
sobre a generosidade.
Os pais precisam ser educadores e,
para isso, é necessário que recebam
uma formação adequada. Considerando o amor e a dedicação que
percebemos na maioria dos pais, é
possível dizer que a tarefa de educar os filhos, talvez, não seja difícil,
mas complexa. Por ser complexa
não se pode, satisfatoriamente,
dar conta dessa responsabilidade
apenas com amor e dedicação; ela
requer preparo. As necessidades e
as expectativas das famílias variam,
dependendo das condições sociais,
mas é possível criar um programa
de formação de pais até em escala
nacional. A falta de informação e
de conhecimentos básicos está na
origem de muitas das dificuldades
de um grande número de famílias
brasileiras para educar os filhos. Há
países que têm programas nacionais, para orientar os pais sobre aspectos de saúde, nutrição, desenvolvimento psicológico de crianças
e jovens. Em nosso país, até o momento, não há, em escala nacional,
nenhum programa de governo que
se preocupe com a formação dos
pais. Há iniciativas que buscam estreitar os laços entre família e escola, fortalecendo a participação dos
pais na educação das crianças e dos
adolescentes, na maioria das vezes
lideradas pela sociedade civil, mas
são raros os movimentos que têm
como foco a formação dos pais.
Na maioria das famílias brasileiras,
mães e pais sabem apenas intuitivamente sobre o desenvolvimento
psicológico da criança, conhecem
pouco das teorias sobre ensino e
aprendizagem, não sabem quais
são as intervenções mais adequadas e se sentem, na hora de educar,
perdidos, desorientados. Embora
sejam considerados desinteressados, percebe-se, quando se criam
oportunidades de formação, que
muitos se sentem felizes em ser
acolhidos, orientados e sempre
querem aprender mais sobre a educação de seus filhos. O que os pais
já não suportam mais é serem cobrados constantemente, sem que
alguém lhes ajude a encontrar soluções para os problemas que eles
veem, mas que não conseguem resolver sozinhos.
Criar programas de formação de
pais pode contribuir de modo significativo para a melhoria da educação. Atualmente, algumas escolas, cientes de suas necessidades e
responsabilidades, têm procurado
construir, quase sempre isolada-
67
mente, seu programa de formação de pais. Pode e, se possível, deve construí-lo com a cooperação dos pais. Se possível, também é conveniente criar
um programa em conjunto com outras escolas, pois o processo é mais rico
e menos oneroso. Criar um programa dessa natureza não é obrigação da
escola, mas pode torná-la especial.
Referências
BORGES, Pedro Faria. Queridos pais. Belo Horizonte: Vereda, 2011.
IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira
2010. Rio de Janeiro: IBGE. 2010.
IBGE.Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: PNAD. Rio de Janeiro:
IBGE, 2009.
68
GENTE
ALUÍSIO
PIMENTA
A EDUCAÇÃO BRASILEIRA
PASSA POR SEU NOME
> “DOIS-PONTOS”
CONVERSA COM ALUÍSIO
PIMENTA, NOSSO PRIMEIRO
ENTREVISTADO HÁ 28 ANOS,
NA EDIÇÃO NÚMERO ZERO
DA REVISTA <
P
oucos nomes são tão representativos para a educação
brasileira como o desse mineiro
de Peçanha, doutor em Química
Orgânica, que deixou um legado
de boas ideias e práticas para o desenvolvimento do saber em suas
passagens como reitor da Universidade Federal de Minas Gerais e
da Universidade do Estado Minas
Gerais. Para celebrar o retorno da
Dois-Pontos, retomou-se o primeiro entrevistado, professor Aluísio Pimenta. Passaram-se 28 anos
desde que aquele número zero
da revista foi publicado. De lá pra
cá, o socialismo sucumbiu à economia de mercado, o mundo se
globalizou e se virtualizou. Hoje,
um abalo na bolsa de Tóquio se
faz sentir pelo produtor rural dos
confins do Nordeste brasileiro. Telefone celular é item de sobrevivência e não se pode imaginar a
71
vida sem wireless. E na educação?
Como o Brasil trilhou essas quase
três décadas? Se em 1983 a grande charada era a informática e
seus desdobramentos no ensino,
quais são os grandes desafios do
novo século?
O educador está diante de um
grande volume de informação e
todo esse conhecimento vem circulando, na velocidade da luz, na
Internet. Quem nasceu antes dos
anos 90 deve se lembrar do lugar
de destaque que as enciclopédias
tinham nas estantes de qualquer
casa de família. Toda pesquisa
escolar era feita ali, através dos
limitados verbetes. Hoje, alunos
das séries mais iniciais já dominam a Internet e se aventuram
com desenvoltura nos milhões de
links disponíveis. Na opinião do
professor Aluísio Pimenta, é pre72
ciso treinar os professores para
lidar com essas plataformas da
nova geração. “Sem isso, cria-se
um abismo entre professor e aluno. Se bem treinado, o professor
poderá ser um importante filtro
para o que há de bom e de ruim
na rede”, afirma.
> QUEM NASCEU ANTES DOS
ANOS 90 DEVE SE LEMBRAR
DO LUGAR DE DESTAQUE QUE
AS ENCICLOPÉDIAS TINHAM
NAS ESTANTES DE QUALQUER
CASA DE FAMÍLIA <
Para Aluísio Pimenta, que é membro da Academia Mineira de Letras, preparar-se para o futuro implica em olhar para o presente, e
fazer um estudo minucioso sobre
o passado. “Nos anos 80, um dos
grandes problemas na educação
brasileira era a má remuneração
Aluísio Pimenta — A educação brasileira passa por seu nome
dos professores. Infelizmente,
não vejo grande avanço nesse
aspecto” diz, com a convicção de
quem atribuí à valorização dos
educadores um dos pilares para
uma educação de qualidade. “Invistam nos professores e terão
bons alunos. Do contrário, de
nada adianta ter toda tecnologia”,
ensina Aluísio.
Na era da diversidade, o professor
diz que já apostava suas fichas no
ensino individualizado décadas
atrás. Segundo ele, é fundamental que os professores tenham flexibilidade para adaptar os métodos de ensino a cada aluno. “Não
há espaço para currículos fechados, duros. O educador precisa
se relacionar com seus alunos de
uma maneira que consiga aproveitar os melhores atributos de
cada um, personalizar. Uma boa
> “SUGIRO QUE INVISTAM
NOS PROFESSORES E TERÃO
BONS ALUNOS. DO
CONTRÁRIO, DE NADA
ADIANTA TER TODA
TECNOLOGIA”, ENSINA
ALUÍSIO. <
prática continua sendo o estudo em pequenos grupos”, opina
Aluísio. Outra tendência que já
despontava nos anos 80 é a interdisciplinaridade. Com o mundo interligado por hipertextos, é
anacrônico pensar em um raciocínio linear dentro da sala de aula.
Para ele, ainda é um desafio para
o ensino brasileiro ir além da fragmentação do conhecimento. “Não
se pode compreender a realidade
atual sem pensar de forma complexa, relacionando assuntos. As
escolas e as universidades precisam superar os limites da disciplina”, categoriza.
73
74
Aluísio Pimenta — A educação brasileira passa por seu nome
Apesar de cada vez mais o local
estar dando lugar ao global, Aluísio Pimenta não mudou sua visão sobre a descentralização do
ensino. “Sempre acreditei que
a escola deve estar próxima do
município, da comunidade”, reitera. Segundo ele, só um currículo feito a partir da realidade pontual de uma comunidade pode
ser eficaz. “Por mais globalizado
que o mundo esteja, só o interior
de Minas sabe do que o interior
de Minas precisa”, justifica Aluísio,
que além de ser uma sumidade
na seara da química e da farmácia, é um expressivo contribuidor
para a evolução do ensino no
Brasil. Do alto da sua experiência,
ele preconiza: “Para o Brasil ter
um ensino moderno, ele precisa
correr atrás do beabá”.
49
REFLEXÕES
SEGREDOS
DE PROFESSOR
PARA PROFESSOR
PAULO VOLKER
“SOUBE-O: OS OLHOS DA
GENTE NÃO TÊM FIM. SÓ
ELES PARAVAM IMUTÁVEIS,
NO CENTRO DO SEGREDO.”
Guimarães Rosa
“CONFESSO-TE AGORA
TUDO ISSO, SENHOR.
LEIA-O QUEM QUISER,
dos os segredos. Peço a sua discrição.
Não os comente. Guarde aí, junto
aos seus. Sei que parece contraditório falar de segredos em um artigo,
mas as palavras da educação, para
aqueles que lhes são distantes, passam como aqueles hieróglifos das
paredes egípcias, aberrantes revelações de significado nenhum.
INTERPRETE-O COMO
A ORIGEM DOS SEGREDOS
LHE APROUVER.”
Santo Agostinho
D
izia Guimarães Rosa, “felicidade
se acha é em horinhas de descuido”. Acho que assim vivi como
professor e, por paradoxal que seja,
foram exatamente nesses descuidos
que nasceram meus maiores erros
e, consequentemente, as mais profundas aprendizagens. Conto agora para você, professora e professor,
com os lábios próximos aos seus ouvidos, que é como devem ser conta80
Descobri logo que ser professor não
é uma tarefa trivial, não é fácil, nem
espontânea. Diz o sentido da palavra: professor é aquele que professa,
diz à frente dos outros, conta, afirma.
De forma mais ampla, já no exercício da educação, é aquele “que coloca debaixo da vista”, “que protege”,
“que orienta”, “que tutela” o outro
para a aprendizagem. Esse outro, no
âmbito da educação, é alguém que
se prepara para um futuro.
Seis Segredos — de professor para professor
> “NO COMEÇO DA MINHA PROFISSÃO, APRENDI DE IMEDIATO UM PRESSUPOSTO BÁSICO DO SER PROFESSOR.
DESCOBRI QUE ME TORNEI UM “VELHO”, INDEPENDENTEMENTE DA MINHA IDADE, POIS EU, O PROFESSOR, FUI
TIDO COMO AQUELE QUE JÁ SABE E O OUTRO, O ALUNO,
AQUELE QUE DEVERÁ APRENDER.” <
No começo da minha profissão,
aprendi de imediato um pressuposto básico do ser professor.
Descobri que me tornei um “velho”, independentemente da minha idade, pois eu, o professor, fui
tido como aquele que já sabe e o
outro, o aluno, aquele que deverá
aprender. Esse aluno, “o novo” (oi
legoi), como dizia Arendt, é dono
dessa condição de quem chega ao
mundo e tem a tarefa de modificá-lo e inová-lo. É esse sujeito que
vai aprender — sujeito da Paideia,
como dizia Jaeger — a conviver
no mundo, por meio do processo
de socialização.
Percebi assim, ainda jovem, a minha condição de “velho”, o que deve
conduzir para a aprendizagem. Percebi essa condição de forma crítica
e em crise, quando comecei a me
questionar sobre o que seria isso, se
queria mesmo isso e se daria conta
disso. Ver o olhar de um “novo”, que
busca em mim essa “condução” para
a aprendizagem, foi assustador. Minha saída, vícios de formação, foi
registrar cada fato importante do
meu desenvolvimento e buscar nos
livros algo parecido com o que vivi.
São alguns desses registros que
lhes trago, segredos que lhes abro,
para poder me confortar.
81
82
Seis Segredos — de professor para professor
Confesso agora tudo isto, colega
professor. Comecei minha vida docente necessitando visceralmente
de ser reconhecido. Inseguro, cheio
de dúvidas e com medo, precisava
de aluno, aluno que me chamasse
de mestre, que me visse como alguém que conhecesse das coisas,
que me desse, com seu olhar e sua
atenção, a certeza que eu mesmo
não encontrava dentro de mim. E,
para ter isso, falei mais do que realmente eu era, contei mais que
deveria, prometi o que não podia
cumprir. Disse que sabia e que iria
ensinar. Mas não foi bem assim. Sabia conteúdo, mas não sabia ensinar. Errei.
Procurei saber quem também cometeu esse erro. Achei um profes-
sor que assim também fez, pois
era também um professor que não
conseguia convencer nenhum aluno a segui-lo e aprender as artes
que ele tanto achava que sabia.
Lendo a história desse professor,
descobri que, no fundo, esse professor queria mesmo, como eu, um
“fiel escudeiro”.
Afinal, na época desse professor,
que errou como eu errei, lá pelas
plagas de “La Mancha”, nos idos de
1600, era esse o conceito que se
tinha de um aluno. Esse professor
era conhecido como “Cavalheiro da
Triste Figura” ou Don Quixote de La
Mancha. Ele só consegue um aluno
quando se empenha em “persuadir
um lavrador seu vizinho, homem de
bem (se tal título se pode dar a um
pobre), mas de pouca inteligência,
a sair consigo como escudeiro: tanto lhe martelou, que o pobre coita-
83
do concordou. Dizia-lhe, entre outras coisas, que deveria ir de bom
grado, pois poderia ocorrer de ter a
sorte de ganhar uma ilha, da qual
poderia ser governador”. E lá se foi
Sancho Pança, servir de exemplo
para o mundo, como o aluno que
é levado pelas promessas do professor e passa a acreditar que assim
sendo, um dia, “será governador de
uma ilha”.
Pensei muito sobre isso. Procurei
recordar quantas vezes prometi,
o que prometi e se, prometendo,
não seria eu também, como “El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de
La Mancha”, um professor que tem
a sua frente, como alunos, pessoas
iludidas por promessas.
Confesso que já fiz assim.
84
E segui meu caminho, querendo
me espelhar nesses renomados
professores que o mundo registrou
em livros e relatos. Encontrei então um exemplo inigualável, Rainer
Maria Rilke.
Sempre tive Rilke como poeta, do
fantástico Elegias de Duíno, em que
um verso pode resumir esta minha
busca sobre a prática do ensino:
“Quem, se eu gritasse, me ouviria
entre as hierarquias dos Anjos?” e
me ajudaria a ser professor — completo eu a ideia.
Lembrei-me de Rilke ensinando a
um jovem, algo estranho para um
poeta tão solitário. Evidentemente,
em se tratando de professor com
alta sensibilidade poética, sua pos-
tura de orientador é completamente diferente de todas. Rilke não se
preocupa com os grandes momentos e ensinamentos que caracterizavam até então os grandes professores que buscava como exemplos.
A sua postura é fundamentalmente
diferente. Rilke, em suas Cartas a
um jovem poeta, diz ao seu aluno:
“Fuja dos grandes assuntos e aproveite os que o dia a dia lhe oferece.
Diga as suas tristezas e os seus desejos, os pensamentos que o afloram, a sua fé na beleza. Diga tudo
isto com uma sinceridade íntima,
calma e humilde. Utilize, para se exprimir, as coisas que o rodeiam, as
imagens dos seus sonhos, os objetos das suas recordações. Se o quotidiano lhe parecer pobre, não o
acuse: acuse-se a si próprio de não
ser bastante poeta para conseguir
apropriar-se das suas riquezas” (Primeira Carta).
Lendo as cartas, escritas para o seu
aluno, aprendi com Rilke que as
pequenas coisas, os fatos triviais,
os detalhes guardam profundas
oportunidades de aprendizagem,
pelo menos para mim, professor
perdido, em busca de uma identidade. No seu sábio conselho, o
poeta de Praga diz ao aluno para
dar conta do seu cotidiano e não se
empolgar com os brilhos esporádicos de eventos. Com isso cria uma
relação essencial e significativa entre professor e aluno, partindo da
realidade que os rodeia, deixando
o foco nas coisas práticas e caminhando para o trato de questões
de princípio.
Rilke, confesso, é um dos meus
mestres. Ensinou-me a olhar meus
alunos naquilo que eles expressam
com simplicidade, no que fazem de
forma espontânea, no que dizem
85
sobre suas vidas e o cotidiano. Rilke me fez ver que a singela vida de
cada um carrega uma enorme carga de lições, que podem enriquecer uma aula e uma reflexão.
Confesso que já fiz assim.
De Rilke cheguei a Pedro Abelardo,
talvez o professor mais paradoxal e
emblemático de todos. Para mim,
uma referência inesgotável de lições. Um representante típico dos
anos 1000 na Europa, âmago da
Idade Média francesa, quando conhecimentos mais inovadores começam a circular dentro da Igreja.
Pedro Abelardo é um desses circuladores. Adepto da linha nominalista, um dialético poderoso, que
86
domina o conhecimento do seu
tempo — naquela época isso era
possível —, é um professor brilhante, com tanta fama, que lhe foi possível, naqueles tempos, ter mais de
5 mil alunos, que o acompanharam
na sua trajetoria tortuosa.
Como professor, ele se encanta pelas maravilhas intelectuais e estéticas da sua mais importante aluna,
Heloisa, dando-lhe a sabedoria
profunda da Filosofia, o domínio
de línguas mortas e vivas e uma
imensa paixão. Esse seu amor pela
mais bela e nobre aluna o levou a
jogar por terra todos os princípios
de distanciamento e objetividade
necessários a um professor, para se
entregar a uma paixão arrebatadora .
Aberlado foi incriminado, julgado,
excomungado e, num ato de extre-
ma violência e covardia, foi castrado pelos familiares de Heloisa. Tornou-se monge, foi de Nantes Roma andando, conseguiu perdão e assumiu um
monastério que se tornou famoso em toda a Europa.
Heloisa assumiu outro monastério, criou seu filho e recebeu mais tarde o
corpo do seu amado, que foi enterrado onde trabalhava. Essa eterna aluna,
quando morreu, finalmente foi enterrada ao lado do seu professor.
Abelardo é um mestre para os professores por seus erros e acertos, por sua
história espetacular, que virou um paradigma das venturas e desventuras
dessa complexa relação professor-aluno (vale a pena ver o filme Em nome
de Deus – The Magdalene Sisters, de Peter Mullan, sobre a história).
Confesso agora tudo isso, colega professor, também amei, também fui arrebatado pelo encanto, também perdia a objetividade e o distanciamento necessários ao meu trabalho. E, paradoxalmente, minhas aulas ficaram
melhores, porque queria ter excelência e brilhantismo na minha didática,
nos conteúdos, na condução do meu programa. E, por ela, confesso, meu
curso ficou ótimo; por ela, estudava e me preparava como nunca e, por ela,
talvez, tenha dado o meu melhor curso. Mas, tímido, nunca lhe confessei
esse amor e o semestre termina, todos os alunos me elogiam pelo curso e
nunca mais encontro a “minha Heloisa”.
87
Logo ali, depois dos anos 1000, em
1300, há outra relação professor-aluno que se tornou clássica e referência para todos os estudiosos.
Nesse caso, o aluno estava “nel mezzo del camin di nostra vita”, para
os padrões da época, com 28 anos.
Estava perdido em uma noite escura e no seu caminho cruza uma
espécie de loba, que ele reconhece
estar faminta e extremamente feroz. Vendo que sua vida corre perigo, desespera-se e começa a entender que será dilacerado pela fera.
Surge, então, ao seu lado, uma voz
calma que se apresenta. Ouvindo
o relato de quem é, reconhece de
imediato alguém que muito admira
que lhe diz:
88
“Agora, por minha vontade eu te
ajudo
Levar-te-ei comigo, te guiarei
Através do lugar de eterno
sofrimento...”
Esse é o verso 113 do Canto I da Divina Comédia, que, para mim, estabelece o marco do “renascimento”
da relação professor-aluno, expresso no verso “che tu mi segui, e io
sarò tua guida” – você me segue e
eu te guio.
Há aqui algo fundamental. O professor conhece, então vai à frente.
O aluno (que estava perdido e em
perigo) reconhece que o professor
sabe o caminho e o toma como
guia. Esse pressuposto é fundamental para que o resultado do
ensino seja alcançado. Afinal, o que
Dante e Virgílio encontram pela
frente é um lugar perigoso.
A tarefa de Virgílio como professor inicia então, na Divina Comédia, na travessia do inferno, depois no purgatório, até as portas do paraíso. Então, já
em um lugar que não oferece perigo, Virgílio termina a sua tarefa.
Esse é um fator importante. O professor só tem sentido e necessidade enquanto o aluno caminha por lugares que não conhece e para o qual precisa de ajuda. Quando o aluno chega a lugar seguro, o professor já se ausenta (“Ma Virgilio n’avea lasciati scemi”), porque não é mais necessário. E o
aluno, tendo feito o seu papel de seguir o professor pelo caminho seguro,
afirma a importância de Virgílio – “... a cui per mia salute die’mi” – aquele
que o salvou é então reconhecido. Esse é o gesto final do acordo.
Confesso agora tudo isso, colega professor, também eu, perdido na minha trajetória de me tornar um professor, no meio do caminho da minha
vida, encontrei um guia, alguém me levou pelo caminho tortuoso do saber
ensinar.
Meu velho professor Bicalho me guia. Mostra como se faz, como se lê, como
analizar, como interpretar, como apresentar. Nos momentos difíceis, apresenta a sua opinião, diz como já tinha superado problema parecido, sugere. Sua sabedoria, sua esperteza e, acima de tudo, sua experiência foram
fundamentais num determinado tempo. Quando já não havia mais perigo,
percebeu o fim do seu caminho, o fim da sua condução. Sábio, afastou-se
devagar, “Ma Virgilio n’avea lasciati scemi”.
89
método peripatético (de peripatus
– andar), que pressupunha lições
ministradas enquanto professor e
alunos andavam.
Por tudo que li e estudei, entendi
que o professor é diferente do pedagogo, do mestre e do orientador.
O melhor exemplo é a relação entre Alexandre, o Grande, e o filósofo Aristóteles. Acho essa relação
emblemática, porque Aristóteles
foi professor, pedagogo, mestre
e orientador e, na vida dele, cada
uma dessas funções foi claramente
diferente da outra.
Como professor, obviamente, dava
aulas, com metodologia e didática
definidas, na sua escola, o Liceu. Ali,
portanto, ele tinha um planejamento de lições teóricas e conceituais
para ministrar – foi então professor.
Foi pedagogo, quando inventou
um método de dar aula e ensinar, o
90
Foi considerado mestre, porque
foi um dos primeiros pensadores
que conseguiu referendar seu conhecimento em vários pensadores
antigos, organizando o passado do
conhecimento e dominando a história da ciência da sua época (seu
livro Metafísica é um compêndio
de História da Filosofia, anterior ao
conhecimento da sua época).
Finalmente, como orientador, fez
do seu Liceu uma escola de pesquisas e experimentações, que o tinha
como referência.
Mas, como tutor, fez ainda algo
completamente diferente do que
se praticava até então. Ele foi tutor
de Alexandre durante quatro anos. Ainda como um pensador pouco conhecido, ele dá conselhos para a formação do futuro rei da Macedônia.
Esse aconselhamento é do tipo vade mecum, fazer junto, estar junto.
Diferentemente de todas as outras atividades que Aristóteles executou,
nessa, especificamente, ele andou junto com Alexandre e mostrou a ele
como se faz. Leu com ele a Ilíada, não ensinou, não orientou, não conduziu
de um modo especial – leu junto. Essa leitura conjunta era anotada, discutida e, mais tarde, esse livro anotado por Aristóteles passou a ser chamado
de Ilíada do Escrínio – um produto desse ensino, resultado do “fazer-junto”.
Confesso agora tudo isso, colega professor, várias vezes, durante minha
profissão, eu mesmo não sabia e, junto de alguns alunos, fizemos junto.
Lembro, ainda, aprendi com alguns alunos a usar computador no ensino,
quando os computadores ainda não tinham disco rígido; aprendi com alguns alunos a fazer pesquisa epidemiológica, usando técnica de pesquisa-ação, quando havia poucas traduções de Thiollent; aprendi a buscar recursos para projetos nas empresas, com alunos que conseguiam ver para
além dos muros da escola e tinham ímpeto para realizar e empreender.
Poderia ainda listar centenas de aprendizagens que tive com meus alunos,
fazendo junto, porque ideias e ideais nos uniam.
91
famoso psiquiatra suíço Carl Jung,
então com 56 anos.
Essa forma de ensinar, como um
“fazer junto” (vade mecum), é algo
que determina a diferença entre
vários tipos de relações pedagógicas. Veja o caso de Wolfgang Ernst
Pauli, o famoso físico, prêmio Nobel
em 1945, com sua teoria sobre o
princípio de exclusão dos elétrons
e um dos fundadores da Mecânica
Quântica.
Pauli foi um gênio, que, com 21
anos, apresentou uma pequena
tese de doutorado de apenas 237
páginas para Einstein e recebeu
dele um significativo elogio. Entretanto, depois de grandes feitos e
grandes descobertas, com 31 anos,
Pauli teve um colapso nervoso. Para
tratamento, foi buscar ajuda no já
92
Jung encontra Pauli com um problema mental e necessitado de
ajuda para se tratar. Começa então
uma terapia que, para um físico, é
absolutamente estranha e bizarra:
a psicanálise, fundada na interpretação dos sonhos. A relação entre
Pauli e Jung é tão fantástica que
resulta num “modelo ideal” de relação entre professor e aluno.
Num primeiro momento, Pauli se
encontra em perigo (situação Dante) e busca o “fator Virgílio”, Jung.
Por uma questão de fundamento
científico, o método terapêutico
aplicado por Jung (a psicanálise)
estabelece uma relação de fazer-junto (vade mecum), afinal, Pauli deve contar seu sonho e Jung o
conduz (“che tu mi segui, e io sarò
tua guida”) para a interpretação.
O processo se desenrola e, depois de mais ou menos 400 sonhos interpretados, a relação entre Pauli e Jung se inverte completamente. Pauli se cura
e, com seu conhecimento da Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica, passa a ensinar Jung no entendimento das “sincronias” (coincidências
significativas). Diz Jung: “apesar de eu não ser um matemático, me interesso pelos avanços da física moderna, que está cada vez mais se aproximando da natureza da psique, como tenho visto há muito tempo. Muitas vezes
falei sobre isso com Pauli” (cartas Pauli-Jung).
Pauli se cura e, por meio de cartas, fundamenta com as teorias da Física
Moderna, as pesquisas e as experiências de Jung. Dessa relação surge, em
1952, o livro A interpretação da natureza e a psique, escrito em conjunto
pelos dois.
Confesso agora tudo isso, colega professor, na minha vida de professor, em
algumas ocasiões, alunos que tive se tornaram meus professores. Lembro-me de um, Heitor, que sabia muito Estatística, me ensinou o uso correto
das análises de regressão. Outro, Maurício, me ensinou a usar arco e flecha.
Outra, Deise, me ensinou a entender e analisar o mundo da moda. Em todos esses casos, como aluno, sentia-me duplamente feliz. Por um lado, pela
oportunidade de aprender assuntos que me interessavam e, por outro, por
ter como professores meus alunos, pessoas da minha mais alta estima.
93
CONFESSO QUE APRENDI
Depois de todas essas lembranças, lendo, buscando e tentando
relembrar passagens das minhas
relações professor-alunos, concluo que passei muito tempo
guardando segredos. Em muitos
casos, às vezes por puro preconceito, deixava que lembranças da
minha vida profissional se perdessem, porque não as valorizava. Hoje, sinto-me próximo dos
exemplos acima apresentados.
lar, tem méritos históricos. Afinal,
quem saberia de Sancho se não
fosse a sua aventura ao lado do engenhoso fidalgo? Abelardo, esse
professor arrebatado pela paixão,
sábio e sacrificado, deixa sua história como ícone e alerta. Quem pode
reprová-lo? De Virgílio tiramos essa
“mão estendida” que deu a Dante,
como algo realmente significativo
> “CONFESSO AGORA
TUDO ISSO, COLEGA
PROFESSOR, NA MINHA
VIDA DE PROFESSOR,
Percebi o quanto me impressionava com cada um desses professores listados, com a competência,
a sapiência, a dedicação e, acima
de tudo, a capacidade de somar
para a vida do aluno.
EM ALGUMAS OCASIÕES,
ALUNOS QUE TIVE
SE TORNARAM MEUS
PROFESSORES. LEMBRO-ME
DE UM, HEITOR, QUE
SABIA MUITO ESTATÍSTICA,
ME ENSINOU O USO
Dom Quixote, que precisa iludir
Sancho para ter alguém para tute94
CORRETO DAS ANÁLISES
DE REGRESSÃO.” <
Seis Segredos — de professor para professor
no professorado. Afinal, como pode
o professor, em momentos de “perigo”, não ir à frente? Aristóteles nos
deixa essa lógica vital do fazer-junto, algo tão simples e básico que se
torna precondição para o exercício
do professor. Finalmente, esse modelo Pauli-Jung, talvez a grande
meta de todo professor, que mostra na prática aquela “3ª Tese sobre
Feuerbach”, que determina que “o
educador tem ele próprio de ser
educado”. Afinal, não foi exatamente isso o que ocorreu com Jung?
Não foi ele inicialmente o professor,
que levou Pauli, através dos sonhos,
para a cura e que depois teve de
Pauli a “mão estendida” para solução dos seus problemas com a teoria da sincronicidade?
professor, visionário como Quixote, que vê grandiosidade onde
todos enxergam apenas moinhos;
sensível como um Rilke, que chama o aluno para o encontro de si
mesmo; apaixonado como Abelardo, que ensina pelo amor; confiável como Virgílio, que recebe a
mão de quem precisa ser guiado;
humilde como Aristóteles, que se
dispõe a ler junto; lúcido como
Jung, capaz de reconhecer no aluno o gênio que lhe ensinará.
Confesso afinal, colega professor,
que não fui inteiro em nada disso.
De tudo, verdadeiramente, lembro apenas de um ex-aluno, que
se tornou livre de mim, pleno de si,
e teve condições de me dizer “che
tu mi segui, e io sarò tua guida”.
Descobri, afinal, confesso agora
tudo isso, colega professor, que
sempre sonhei ser esse tipo de
95
ARTIGO
A EDUCAÇÃO
É A CARA
DO PAÍS
RITA ESPESCHIT
96
“S
ua mãe te deu educação? E a escola, deu
bom conselho?” Educação e cultura são
conceitos que gostam de andar embolados, farinha e fermento peneirados juntos na massa.
Daí que, assim como a cultura, a educação é a
cara do país. No Brasil, ela é uma morena-jambo de ancas largas e sorriso escancarado. Suba
uns tantos paralelos no globo, e você conhece
a educação canadense: uma lourinha de olhos
puxados, vestindo sari indiano, comendo salada russa e falando árabe pelos cotovelos.
Espalhe um punhado de diferenças em cima da
mesa e elas logo se aglutinam em categorias.
O grupo das óbvias, claro, é o mais barulhento,
saltando aos olhos e dando gritinhos de “eu primeiro!” Esse é o grupo onde ficam, por exemplo,
os programas canadenses de suporte à multidão de crianças imigrantes que constantemente desaguam nas salas de aula sem falar uma
única palavra em inglês ou francês. Na mesma
categoria vem o calendário escolar, que bota o
começo do ano em setembro—ululante, quando a gente inverte as estações e pensa nas férias.
97
Bote na jogada a renda per capita, e o mesmo
raciocínio “craro Creusa” vale para o desempenho brasileiro e canadense nos números que
comparam a qualidade da educação pública
pelo mundo afora. Nenhuma surpresa aqui: na
lista da OCDE (Organização de Cooperação e de
Desenvolvimento Econômico), o bem de vida
Canadá figura entre os dez melhores em Leitura,
Matemática e Ciências. Nossos pupilos do hemisfério sul, por sua vez, colocam o Brasil dentro
(ou bem pertinho) da turma dos dez piores.
Mas se é verdade que riqueza põe a mesa, como
explicar o deplorável 32.º lugar em Matemática
dos Estados Unidos — o “aluno” mais rico do pedaço — numa lista com apenas 67 competidores?
Aí desponta uma diferença interessante da educação canadense. Nos Estados Unidos, como no
Brasil, o divisor entre a escola pública e a privada é
relacionado à classe social. No Canadá, o pequeno
percentual de alunos (6% do total) que frequenta a rede privada não está atrás da qualidade que
o dinheiro pode comprar. Na esmagadora maioria dos casos, a escola particular canadense é a
98
A educação é a cara do país
> “MAS SE É VERDADE QUE
RIQUEZA PÕE A MESA, COMO
EXPLICAR O DEPLORÁVEL 32º
LUGAR EM MATEMÁTICA DOS
ESTADOS UNIDOS — O “ALUNO”
MAIS RICO DO PEDAÇO— NUMA
LISTA COM APENAS 67
COMPETIDORES? AÍ DESPONTA
UMA DIFERENÇA INTERESSANTE
DA EDUCAÇÃO CANADENSE.” <
99
escolha dos que buscam um determinado tipo de educação religiosa:
muçulmana, judaica, mormon, o escambau. Claro que tem a meia dúzia
de gatas pingadas que são escolas
de elite, para os mais ricos entre os
ricos. Mas em geral, quando o assunto é qualidade, a rede pública dá de
dez a zero nas particulares.
> “PARA NÓS, NASCIDOS0
E CRIADOS NA BOLHA DA
CULTURA BRASILEIRA,
É DIFÍCIL ENGOLIR O GRAU
DE AUTONOMIA QUE EXISTE
DE UMA PROVÍNCIA PARA
OUTRA NO CANADÁ. SABE
AQUELA ESTRANHEZA QUE
DÁ QUANDO A GENTE VÊ
O BANDIDO DO FILME
Reparou que “católica” ficou fora da
lista de religiões citadas acima? Ponto pra você! A relação entre Estado
e Igreja (católica) é uma das esquisitices mais exóticas da educação
canadense. Trocentos anos atrás,
quando a prole dos colonizadores
ingleses (protestantes) e franceses
(católicos) tiveram que chegar a um
acordo para transformar o Canadá
num país, o combinado foi que o
governo sustentaria duas redes de
ensino. Uma era a rede pública sem
adjetivos, que serviria à população
100
AMERICANO “FUGIR” PARA
O ESTADO QUE NÃO TEM
PENA DE MORTE?” <
A educação é a cara do país
majoritária de cada região. A outra rede veio na
forma de um artigo na constituição de 1867, que
garantia ao grupo minoritário (católico ou protestante) em cada cidade o direito a escolas “separadas” para seus pimpolhos. Como os franceses são minoria em todas as províncias exceto no
Quebec, na prática, a rede “separada” acabou virando sinônimo de rede católica. Resultado: até
hoje, em várias províncias canadenses, escolas
católicas recebem o mesmo quinhão de dinheiro
público que o ensino laico. Várias — mas não todas. E a gente chega agora a outra diferença crucial da educação canadense em relação à nossa:
a fragmentação do sistema entre as províncias.
Para nós, nascidos e criados na bolha da cultura brasileira, é difícil engolir o grau de autonomia que existe de uma província para outra
no Canadá. Sabe aquela estranheza que dá
quando a gente vê o bandido do filme americano “fugir” para o Estado que não tem pena
de morte? No Canadá, cada província tem seu
próprio currículo, sistema de avaliação, carga
horária, e por aí vai.
Um exemplo: até não muito tempo
atrás, estudantes na província de
Ontário ficavam um ano a mais na
escola do que o resto do país, com
uma quarta série de high school
(ensino médio) adicionada aos tradicionais 12 anos de escolaridade.
Ontário também é a única que oferece dois anos gratuitos de ensino
pré-escolar, enquanto a maioria
das províncias abre as portas da escola somente para um ano de pré-escola, e algumas nem mesmo garantem esse direito aos alunos de
cidadezinhas menores.
Os currículos diferenciados são um
complicador óbvio em várias frentes. A primeira que vêm à cabeça é
a dos estudantes de mudança para
outra província. Vai ver a criança já
passou pelas lições básicas sobre
eletricidade na quinta série, mas
terá que repetir tudo ao chegar à
sétima série da província nova. Pior
ainda é a situação inversa, em que a
escola pressupõe que a essa altura
do campeonato o novo aluno teria
obrigação de já saber tudo sobre
elétrons e supercondutores.
Essas são diferenças macroscópicas, dessas que a gente encontra
em enciclopédia ou artigos de internet. No território do sutil, um
planeta inteiro de diferenças povoa
o cotidiano daqueles que vivem o
sistema educacional no seu dia a
dia. Algumas vêm na forma de palavras que são onipresentes em um
dicionário — e totalmente ausentes no outro. A palavra bullying, por
exemplo.
O bully é aquele valentão da escola
que a gente vê no cinema americano: o que toma o lanche dos pequenos, bate nos mais fracos sob o
aplauso geral da nação, coisas desse tipo. É uma palavra sem tradução
em português, o que por si só indica uma fissura geológica, uma cratera imensa entre as duas culturas.
No mundo anglo-saxônico – Canadá incluído – a vivência e superação
de problemas com um bully é uma
espécie de ritual de passagem institucionalizado, uma situação “desagradável” que a sociedade aceita como um mal necessário, como
algo que vai ensinar lições de vida
para o infeliz recipiente da violência do colega.
As palavras também nos ensinam
sobre o poder quase sobrenatural da instituição “universidade” no
imaginário local. No inglês canadense, usa-se teacher para o professor comum e mortal, aquele que
ensina crianças e jovens no ensino
fundamental e médio. Se o profes-
sor ensina na universidade, a história é diferente. Na torre de marfim
do terceiro grau, não existem teachers – só professors, paroxítonos
e com “e” aberto. Palavras diferentes que falam de status diferentes.
Chamar um professor de teacher é
ofensa indesculpável.
Esse mesmo elitismo transparece
na noção de quem deve ou não ir
para a universidade. Não é raro um
professor virar para um estudante e
dizer, na lata, que ele não é university material. Em outras palavras,
que nem vale a pena tentar. Melhor virar aprendiz de marceneiro
e pronto. Note-se que não estou
falando, aqui, de um professor do
ensino médio falando com um jovem formando de 17 anos. Essa
conversa edificante acontece bem
antes, com adolescentes de 13 ou
14 anos de idade prestes a entrar
na high school. Por quê? Porque diferentemente do que acontece no Brasil,
o currículo no ensino médio canadense é dividido em dois ou mais streams, dois ou mais caminhos que o estudante vai ter que optar logo de cara
no primeiro ano.
Como isso funciona? Veja o exemplo da matemática. Você entra na high
school e pode cursar Math 100 ou Math 101 (ou outro código qualquer).
Uma delas é difícil e teórica, a outra, mais pé-no-chão e voltada para aplicações práticas. No ano seguinte, quem fez Math 100 vai para Math 200,
quem fez Math 101 vai para Math 202. Chega a formatura, o aluno com
Math 300 no diploma pode usar a dita cuja para entrar na universidade.
Math 303, nem pensar.
A ideia de um professor aconselhando um aluno a não ir para a universidade soa estranho para nós—algo meio imoral, quase criminoso. Talvez a
coisa seja diferente num país em que um marceneiro faz uma grana razoável, e onde até poucos anos atrás um diploma de high school era o ó do
forrobodó, a última bolacha do pacote, algo para exibir com orgulho na
parede. Como no resto do mundo, essa situação vem mudando a passos
rápidos. O diploma na universidade passa a ser o mínimo, o de mestrado
o desejável, melhor ainda um doutorado ou pós-doutorado. Entretanto,
mentalidade é algo que muda devagar. A cultura anda sempre um pouco
atrás da economia, não é? Assim como a educação.
BOA NOTÍCIA
APESAR
DOS IPADS,
GADGETS
E PLAYSTATION...
...CRESCE A LEITURA
ENTRE OS JOVENS
A
o lado do Playstation, uma
estante com a coleção de livros. “Capitães da Areia”, de Jorge
Amado, é o preferido e tem lugar
de destaque. Para o próximo Natal, a lista já está pronta. Um iPad e
uma edição especial de “O Físico”,
de Noah Gordon. Rodrigo Oliveira
é um jovem de 15 anos, apaixonado por tecnologia, e que quer ter
todos os gadgets que a indústria
dos eletrônicos não para de lançar.
O mesmo Rodrigo é capaz de passar horas distraído com uma boa
leitura. Ele é um retrato de uma
tendência que vem se firmando:
crianças e adolescentes brasileiros têm lido mais. Uma excelente
notícia em tempos de reinado de
computadores e games.
A boa nova é resultado de uma
pesquisa realizada pela Câmara
Brasileira do Livro. No ano passado, foram lançados 12 mil livros
no país. Desse total, 2,5 mil eram
títulos direcionados ao público
infantojuvenil. O escritor minei> O LIVRO AMPLIA OS
ESPAÇOS DE LIBERDADE <
107
ro e professor de Literatura, Ronald Claver, vê com entusiasmo o
crescimento da leitura. Com mais
de 30 livros publicados - 15 deles
destinados a crianças e adolescentes o escritor acredita que a partir
da leitura, desenvolvem-se outras
áreas importantes como a escrita
e a criatividade: “O livro amplia os
espaços de liberdade. É importan-
107
Apesar dos iPads, gadgets e Playstation...
te criar possibilidades para que
o livro seja objeto de desejo, de
descoberta, de promoção do ser
humano”, pontua. O aquecimento
no mercado de livros para jovens
impulsionou o setor. As vendas de
livros no Brasil cresceram 9,6% no
ano passado.
Como as crianças já estão começando a ser alfabetizadas no mundo digital, o mercado das editoras correu
atrás da modernidade. A plataforma que promete alavancar o hábito de leitura entre os jovens são os
e-books. No Brasil, o crescimento
do segmento ainda é tímido. Mas
o governo federal já desonerou os
impostos sobre os livros eletrônicos,
o que deve facilitar o acesso. No entanto, o maior obstáculo ainda são
os leitores digitais, que permanecem distantes do poder aquisitivo
de grande parte dos brasileiros.
Seja qual for o formato, é importante incentivar os jovens a ter a leitura
como hábito. Para Ronald Claver, a
escola pode ser um fator determinante para aumentar os índices de
leitura. Para isso, o professor também precisa ser incentivado. Um
educador bem remunerado tem
mais tempo e disposição para criar
espaços alternativos para a leitura
e incutir nos jovens, hipnotizados
pela tecnologia, o encanto pela literatura. “Nas séries iniciais, o livro é
uma festa. Uma alegria só. No ensino fundamental, a intimidade com
os livros diminui. O que era festa
vira obrigação. A leitura deixa de ser
prazerosa, vira moeda para passar
de ano. No colegial, o aluno aprende a desgostar do livro. Quase não
se lê. A obrigatoriedade de passar
no vestibular sepulta a criatividade
e o prazer. Fazer o quê? Não deixar
a festa acabar”, opina.
108
INSTITUIÇÃO EM DESTAQUE / Colégio Embraer Juarez Wanderley
UMA ESCOLA
REFERÊNCIA,
ONDE ALUNOS
TÊM ‘BRILHO
NOS OLHOS’
Divulgação
A
provação total no vestibular.
Esse é o sonho de qualquer
escola que tenha Ensino Médio.
O Colégio Embraer Juarez Wanderley conseguiu transformar tal
meta em realidade com 100% dos
alunos aprovados em universidades particulares. Mas um índice é
ainda mais notável: 82% dos alunos aprovados em universidades
públicas. A receita para esse desempenho se resume em uma palavra – investimento, nos alunos,
nos professores e na escola.
O diretor Welington Nunes assume o desafio: ‘’Quando se está no
topo, é necessário que o principal
plano de ação seja a manutenção
diária das relações entre as pessoas, pois só desta forma os processos se renovam e se revigoram em
novas iniciativas e, assim, novos
objetivos vão sendo construídos
Divulgação
Divulgação
e superados’’. Referência nacional
em termos de qualidade de ensino,
o Colégio Embraer é fruto de uma
parceria entre o Instituto Embraer
e o Pitágoras. Enquanto a Embraer
entra com a parte de infraestrutura e coloca expectativas claras de
excelência educacional, o Pitágoras faz a Gestão Educacional.
> ENQUANTO A EMBRAER
ENTRA COM A PARTE DE
INFRAESTRUTURA E COLOCA
Caçapava e Taubaté. Os candidatos passam por uma seleção criteriosa coordenada pela Vunesp,
a mesma organização que faz o
processo seletivo para os vestibulares da Universidade Estadual de
São Paulo. Geralmente, a proporção candidato/vaga é de 20/01. A
explicação para tamanha procura
vai além da boa educação oferecida pelo Colégio Embraer. O ensino é gratuito e o aluno recebe alimentação, transporte e uniforme.
EXPECTATIVAS CLARAS DE
EXCELÊNCIA EDUCACIONAL,
O PITÁGORAS FAZ A GESTÃO
EDUCACIONAL <
Para preencher uma das 200 vagas, destinadas ao primeiro ano
do Ensino Médio, é pré-requisito
ter cursado o Ensino Fundamental em escolas públicas da região
de São José dos Campos, Jacareí,
A chave para um ensino de resultados está na política educacional
moderna adotada pelo Colégio. A
carga horária diária é de dez horas-aula/dia. Outro diferencial é o
Programa Preparatório para Universidades (PPU), iniciado ainda
no primeiro ano, que ocupa oito
horas-aula semanais na grade e é
utilizada a ‘’metodologia ativa de
111
Uma escola referência, onde alunos têm ‘brilho nos olhos’
Divulgação
112
Uma escola referência, onde alunos têm ‘brilho nos olhos’
> OS PROFESSORES ATUAM
COMO FACILITADORES QUE
QUESTIONAM E MOTIVAM OS
ALUNOS A CONSTRUÍREM
“os professores atuam como facilitadores que questionam e motivam os alunos a construírem seus
conhecimentos”.
SEUS CONHECIMENTOS <
aprendizagem, com ensino protagônico e contextualizado que
tenha significado para o aluno’’.
De acordo com Welington Nunes,
Além do conteúdo básico de cada
disciplina, o aluno recebe uma orientação especial de acordo com sua
área de escolha profissional. Para auxiliar em cada direcionamento, o Co113
114
Uma escola referência, onde alunos têm ‘brilho nos olhos’
légio Embraer Juarez Wanderley conta com parceiros. Na preparação para
as áreas de Exatas, a grade curricular
foi desenvolvida pelo The Center for
Occupational Research and Development (CORD), uma instituição americana dedicada ao estudo de ferramentas educacionais e programas
inovadores para otimizar resultados.
Além da elaboração do currículo, o
CORD treina os professores para que
eles desenvolvam as disciplinas dentro do Colégio. Para potencializar os
estudos, foram montados quatro laboratórios específicos: Princípios de
Tecnologia, Natureza das coisas, Eletroeletrônica e Informática.
> FORAM MONTADOS
LABORATÓRIOS DE
COMUNICAÇÃO E MÍDIA;
ARTES E OFÍCIOS,
LÍNGUAS, EMPRESAS
SIMULADAS <
Os alunos que optam pela área
Biomédica encontram parceiros e
consultores junto ao Hospital Sírio
Libanês, que auxilia no desenvolvimento de um programa específico
com base na metodologia ativa de
aprendizagem e se desenvolve em
três laboratórios no colégio, que são:
o Wet Lab (reações químicas e materiais microbiológicos); o Morfofuncional (estudo de modelos de sistemas, órgãos e lâminas); Laboratório
técnico para preparação de práticas
e o Laboratório de práticas e habilidades, que trabalham com análise
de sinais vitais e simuladores.
O Pitágoras guia o programa desenvolvido para as áreas de Humanas e Administração. Para potencializar os estudos, foram montados
laboratórios de Comunicação e
Mídia; Artes e Ofícios, Línguas, Empresas Simuladas. Com o objetivo
de auxiliar na escolha da profissão,
momento decisivo e muitas vezes
turbulento para os jovens, a escola
implantou o Programa de Orientação Profissional.
A boa dinâmica escolar reflete em
uma experiência saudável para os
alunos. Muitos dos alunos já formados vêm sendo valorizados por
terem passado por lá. A estudante
Jade Simões, que hoje cursa Administração na Universidade Federal
de Ouro Preto, lembra com saudade dos tempos de escola. Para ela
o legado do Colégio já rende frutos
na vida acadêmica: ela conquistou
116
o primeiro lugar em um disputado
programa de bolsistas.
“Talvez isso não fosse possível caso
não tivesse a disciplina que aprendi a ter no Juarez, e meu comportamento que foi aprimorado durante
os anos neste colégio”, reconhece
Jade. Ela conta que os avaliadores
do programa de bolsas se surpreenderam com a experiência da jovem.
“Soube me comportar na entrevista porque me lembrei das lições da
Empresa Simulada e dos conselhos
dos professores do Pré-Humanas.
A experiência nos projeto Alternativas Sustentáveis e Conexão também foram fatores determinantes”,
relata, com gratidão.
Os projetos citados por Jade fazem
parte de uma série de projetos interdisciplinares promovidos pelo
Colégio Embraer durante toda vida
escolar. Um dos segmentos priorizados pelo Colégio é o ambiental. “Nesta
área os alunos são levados a transformarem sua consciência e percepção
de meio ambiente, e de homem integrado à natureza e a promoverem
ações e projetos sustentáveis e de responsabilidade social”, explica o diretor. Além de fomentar a consciência ecológica, os projetos são considerados importantes para desenvolver a capacidade dos alunos de resolverem
problemas e de trabalharem em equipe.
Outra boa ideia que tem despertado a responsabilidade dos alunos é a
realização do dia da “Autogestão”. Nesse dia, cada professor e funcionário
é substituído por um aluno, que assume suas funções enquanto os professores e funcionários passam o dia em um treinamento. Outro método utilizado pelo colégio é a participação do aluno no planejamento estratégico
de cada aula ou projeto desenvolvido dentro da escola. Isso permite que o
aluno avalie e ajude a identificar formas de melhorar as atividades.
Apesar de já estar à frente de muitas escolas brasileiras, o Colégio Embraer
Juarez Wanderley corre atrás do futuro. Entre as prioridades estão o alinhamento com os recursos tecnológicos e o recorrente questionamento
das práticas pedagógicas. No entanto, o trabalho de qualidade é resumido pelo diretor Welington com poucas palavras: “é preciso ter brilho nos
olhos”.
117
COEDUCAÇÃO
O
DIVÓRCIO
DAS
SIAMESAS
ALCIONE ARAÚJO
S
e o cérebro estiver numa das
gêmeas siamesas e o coração na outra, o corpo compartilhado pode sobreviver se continuarem unidas. Se uma fraquejar,
a outra carregará o vazio da perda,
com comichões de amputado no
oco do que foi extirpado. Apartadas, uma perde a razão, outra fica
exangue, enquanto o corpo agoniza. Educação e cultura são inseparáveis como as irmãs siamesas.
Racional e objetiva, uma domina
a lógica da ciência, revela a ordem oculta da natureza, o metabolismo humano, a razão produtiva e econômica. Outra, sensível
e subjetiva, comove-se com as
obras da imaginação criadas pela
arte. Se a racionalidade é essencial à compreensão do mundo, do
homem e de sua história, a sensibilidade é essencial à percepção
do universo simbólico e das emoções. O saber acumulado pela razão
e as emoções da arte são frutos da árvore sagrada do conhecimento. A
história identifica, na aliança da cultura e da educação, a primazia de
criar sonhos e inventar meios de realizá-los. No Ocidente, o sonho da
plenitude humana requer a união de educação e cultura.
São distintas pedagogias de apreender o mundo. A educação, que se vê
como ciência, cria métodos e processos para realizar a magia da transmissão do saber. Racionaliza conteúdos e dosa-os segundo a capacidade de apreensão. A cultura — aqui apenas a arte — aspira a educar a
sensibilidade criando maneiras de olhar, ouvir, sentir e pensar, respeitando a percepção individual, sem, contudo, deixar de informá-la. Arte
não progride nem evolui, transforma-se com o amadurecimento educacional, cultural, humano, econômico, político. Criação da subjetividade
e de percepção subjetiva, a arte dialoga com as metáforas criadas pelo
homem — filosofia, antropologia, sociologia, psicanálise, entre outras
— para se entender, entender o mundo e se entender no mundo. Nessa
amplitude, a educação atua como braço racional e sistematizado da
cultura.
> “HOJE, HÁ MÉDICOS QUE JAMAIS LERAM UM ROMANCE,
ENGENHEIROS QUE NUNCA FORAM AO TEATRO, ADVOGADOS
QUE NÃO VÃO AO CINEMA, DENTISTAS INCAPAZES DE SE
EMOCIONAR DIANTE DE UM QUADRO.” <
120
O divórcio das siamesas
> “O MAIS ALARMANTE, É QUE NEM OS EDUCADORES
PARTICIPAM DA VIDA CULTURAL – COM BOAS RAZÕES,
DA FALTA DE TEMPO À FALTA DE DINHEIRO, E ATÉ
A FALTA DE COSTUME!” <
Os sonhos são a primeira pátria do homem, que se move da fantasia
para a realidade. A arte realiza o encantamento do mundo, e nos ajuda
a entender a realidade afastando-nos dela. A esperança é de que, vivenciado o processo da educação — concluir o Ensino Superior, digamos —, o indivíduo esteja apto a equacionar as variáveis do saber específico e preparado para usufruir da arte, em qualquer das suas formas
de expressão, humanizando-se com a percepção do belo, que gerações
de artistas cuidaram de criar desde os ancestrais remotos.
Hoje, há médicos que jamais leram um romance, engenheiros que nunca foram ao teatro, advogados que não vão ao cinema, dentistas incapazes de se emocionar diante de um quadro. O mais alarmante, é que
nem os educadores participam da vida cultural – com boas razões, da
falta de tempo à falta de dinheiro, e até a falta de costume! Entende-se
que o fazem por terem sido formados na mesma educação, que não
induz nem estimula a sensibilidade estética — registre-se, a esquizofrênica separação entre educação e cultura!
121
O Brasil tem hoje 190 milhões de habitantes. Desses, 62 milhões estão
no mundo da educação — professores e estudantes de todos os níveis.
Há mais pessoas na educação brasileira do que a população da França!
Cotejar tais números com os da produção artística desnuda o país. A
tiragem média de um romance são três mil cópias; a ocupação média
do teatro é 18% dos ingressos oferecidos. Em crise, as gravadoras estão
falindo e a média de ingressos de filme nacional é de 140 mil. Nem os
62 milhões ligados à educação participam da produção artística: educação sem cultura, produção cultural sem público!
122
O divórcio das siamesas
> “UMA EDUCAÇÃO QUE NÃO FORMA O CIDADÃO, NEM O HOMEM, SE RESIGNA À PRECÁRIA FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL. MAS É O QUE DELA ESPERA UMA SOCIEDADE, QUE
NÃO TEM A EDUCAÇÃO COMO VALOR” <
Prática não assimilada na idade adequada raramente vira costume. Sem assistir a filmes, espetáculos de dança e teatro, shows e concertos; sem ir a exposições e museus de arte; sem ler romance e poesia, a imaginação embota,
os sonhos empobrecem, as aspirações se intimidam, os desejos afetivos se
desvanecem. Se a educação não inclui sensibilizar o estudante, essencial ao
amadurecimento, mais tarde o trabalho solicitará a razão produtiva do profissional. À falha da formação se somará a falta de tempo. E o despreparo
da sensibilidade não se limita à percepção da arte. Vai ao extremo de se ter
vergonha das próprias emoções e dificuldade para expressar afetividade,
fundante do humano, e que retarda a maturidade da vida amorosa.
Uma educação que não forma o cidadão, nem o homem, se resigna à precária formação do profissional. Mas é o que dela espera uma sociedade
que não tem a educação como valor. Se ontem supervalorizava o diploma,
hoje é o emprego, com boas razões. Sem minimizar a importância do emprego, reduzir horizontes torna a educação formação de recurso humano
ou preparação de mão de obra, reforça o ensino em vez de educar, nega
a educação como processo de aquisição de conhecimento para a vida, o
que inclui poesia, fantasia, devaneio, arte e emoção.
Nosso primeiro projeto educacional foi o dos jesuítas, que chegaram
no séc. 16 com a missão de educar
os índios. Os religiosos ofereceram
uma visão do homem e do mundo erigida à luz da Igreja. Os nativos conheciam a natureza, tinham
crenças e rituais de cultura milenar
e ágrafa. Educá-los foi impor-lhes
uma fé, deveres, hierarquias e obediências. Os índios dispersaram, os
jesuítas desistiram, um fracasso.
Quando vieram os negros, os jesuítas desanimados evitaram nova
aventura. De cultura poderosa,
para os negros educar era ensinar
a olhar o mundo, a cuidar do corpo, amar a natureza e os animais,
a memória, as crenças e as artes. E
os jesuítas descobriram os imigrantes. Europeus educavam europeus,
em solo brasileiro. Daí os colégios
confessionais que formaram a elite
124
nacional na obediência às normas
e respeito aos valores humanistas
da cultura clássica.
A explosão de bombas atômicas em
Hiroshima e Nagasaki deu a vitória
aos aliados na 2ª Guerra Mundial,
e os EUA viraram potência. Ciência
e tecnologia foram estratégicas na
construção de hegemonias internacionais; armas de destruição em
massa criaram impérios. Vindos
de rápida industrialização, os EUA
moldaram a educação em ciência/
tecnologia, modelo que correu
mundo.
A matriz pedagógica brasileira deu
adeus ao humanismo europeu, de
origem greco-romana, tradição renascentista e iluminista. Abandonou o ideal aristotélico do homem
integral, e cruzou o Atlântico para
abraçar o novo modelo. Logo, os
currículos, sobrecarregados com as
urgentes e necessárias disciplinas
de iniciação científica, eliminaram
as de Humanidades, voltadas ao
sentir — artes/cultura — e ao pensar — filosofia/antropologia/ sociologia, etc. Os cursos estreitaram
abrangência, adotando o pragmático objetivo, de aplicação prática.
Era oportuno qualificar alunos em
ciência, e a força de trabalho em
tecnologia, esperança de emprego num país que se urbanizava
rapidamente.
O passado evidencia que educação
e cultura ficaram restritas ao europeu e sua descendência. A maioria da população urbana, negra
e miscigenada, construiu sua expressão cultural sob discriminação
e repressão. A produção popular
ficou no extremo oposto à cultura
tradicional. No gap entre elas e be-
neficiando-se de ambas, irrompeu
a indústria cultural, hoje consolidada, hegemônica e irreversível. Assiste-se agora à dupla submissão,
da cultura tradicional e da cultura
popular à onipresente indústria de
entretenimento.
Cabe perguntar “Afinal, o que é a
arte, para que serve?” É impossível
definir a arte. Diz a boutade de Jean
Cocteau. “A arte é indispensável;
se, ao menos, soubéssemos para
quê!” Uma possibilidade refere-se
à incompletude humana: vivemos
insatisfeitos na moldura de nossa
vida pessoal, curta e única. E gostaríamos de ser mais, de ser vários.
A arte pode proporcionar outras
vidas: ao ler um romance, assistir a
um filme ou peça de teatro, o processo de identificação agrega as façanhas, os sofrimentos e as vitórias
das personagens à sua curta e única
125
vida. Com isso, multiplica sua experiência de estar no mundo, adicionando
vivências do que não viveu, nem viverá, e que, magicamente, passam a ser
suas também. Se você pode ser vários, está ampliando sua vida.
A arte enseja a completude que não temos. Eu não sou outros, mas, pela
identificação com os personagens, tenho outros em mim. Quanto mais elas
contribuem para eu ser mais do que sou, e quando sou mais do que sou,
eu me torno mais semelhante ao outro. Algo que era dele vem para mim. É
a metáfora da antropofagia: se devoro um pedaço dele, suas virtudes vêm
para mim. Assim como devoro, metabolizo a arte, trago-a para mim, passo
a ser mais do que sou. “Ser mais do que sou” dá uma dimensão mágica ao
romance, ao filme e à peça.
Educação apartada da cultura é trajetória de adestramento para a produção. Educar não é qualificar para o emprego, nem a arte é adorno para
aguçar a sensibilidade. Há uma dimensão humana que, sem educação e
cultura, nada agrega como experiência coletiva, nem alcança a plenitude
como experiência individual, com consciência para discernir, liberdade
para escolher e capacidade para agir. E, sem isso, não podemos dizer que
somos realmente humanos. Apartadas, educação e cultura são como irmãs siamesas, uma perde a razão, outra fica exangue, enquanto o corpo
agoniza.
126
COEDUCAÇÃO
QUEBRANDO
PARADIGMAS...
...DE ESCOLA
E DE MUSEU
POR JOÃO CARLOS FIRPE PENNA
O
grupo de estudantes passou pela imponente porta de ferro fundido daquele
prédio que há muito faz parte da história da
cidade e agora virou museu. Eles compraram
ingresso e fizeram o tour por todas as salas e
andares. Observaram tudo que estava exposto, interagiram com várias instalações, colheram informações, absorveram novos saberes.
Em uma sala, deram “de cara” com grandes tubos verticais vindos do teto, cada um representando um metal da tabela periódica e seus
conteúdos. Depois, “desceram” centenas de
Foto: Acervo do MMM
metros por um elevador, ao lado de Dom Pedro II, sem saírem do lugar. Participaram, ainda,
de uma experiência na qual foram escaneados
da cabeça aos pés para a máquina dizer quantos quilos de metal cada um tinha no corpo.
Ao final de uma hora e meia de visita, na saída,
um deles não resistiu e exclamou: “Mas, afinal,
onde está o museu? Isso nem parece museu!”.
O prédio visitado pelo grupo está situado na
Praça da Liberdade, em área nobre de Belo Horizonte, onde já funcionou a Secretaria de Estado
de Educação e que, há pouco mais de um ano,
abriga o Museu das Minas e do Metal (MMM). Ele
conta com um importante acervo sobre mineração e metalurgia, documentando duas das principais atividades econômicas de Minas Gerais.
O Museu utiliza, de forma lúdica e criativa, tecnologia de ponta para mostrar o universo das rochas, os processos de transformação dos minérios e a importância deles para a vida humana e
o desenvolvimento social, econômico e cultural.
Foto: Acervo do MMM
129
Quebrando paradigmas... de escola e de museu
A história dos alunos
descrita anteriormente
poderia ter passado despercebida, mas foi registrada e narrada – com
satisfação – por Helena
Mourão, diretora-executiva da instituição.
Afinal, um dos seus objetivos frente ao MMM
é um desafio para qualquer educador comprometido com a transmissão do conhecimento de
forma eficaz. Ela explica:
“Queremos fazer com
que este espaço quebre
os paradigmas de museu e de escola”.
Foto: Acervo do MMM
130
Educadora com mais de 30 anos de experiência, Helena tem clareza
sobre o projeto pelo qual é responsável. Junto a sua equipe de profissionais, ela sabe que um museu como o MMM está na vanguarda da
relação ensino-aprendizagem.
ESPAÇO NÃO FORMAL DE EDUCAÇÃO FACILITA
RETENÇÃO DO CONHECIMENTO
Segundo ela, pesquisas indicam que o conhecimento adquirido em espaços de educação não formal, como um museu, perdura muito mais
Foto: Acervo do MMM
131
Quebrando paradigmas... de escola e de museu
Foto: Acervo do MMM
na memória das pessoas – especialmente dos jovens – do que o saber
absorvido de forma tradicional, dentro de uma sala de aula. “Ao contrário da escola, o museu não tem tempo determinado para a aprendizagem, assim como não tem um objeto determinado de estudo e, menos
ainda, um prazo para conhecer o que se passa ali”, explica ela.
E este é o grande desafio desse museu que não parece museu: fazer com
que, naquele espaço, possa ser construída, na prática, uma escola, utilizando todos os recursos de um equipamento cultural. Tomando como referência o universo da mineração, o Museu é um espaço contemporâneo
onde se discute quase tudo que se passa no mundo. O recente tsunami
que atingiu o Japão, por exemplo, foi motivo de reflexões de especialistas.
Diante do enorme interesse gerado pelo tema, a Curadoria de Geociência
do museu convidou um especialista no tema para falar sobre os aspectos
da radioatividade envolvidos no grande acidente. A procura foi enorme.
Foto: Acervo do MMM
133
Foto: Acervo do MMM
Nas dezenas de salas do Museu, há espaços para se refletir sobre temas
relacionados a diversas áreas do conhecimento, como Arte, Química, Física, Biologia, Matemática, História, Geografia, Língua Portuguesa, Engenharia Ambiental, Arquitetura e Restauração, entre outras, como explica Anna Paula Costa, coordenadora-educativa do MMM, responsável
pela interação da instituição com escolas de todo o país. Hoje, o Museu
já pode ser considerado um grande centro difusor das ciências. Seu trabalho tem recebido tamanha acolhida que os números surpreendem.
Com apenas um ano de existência – comemorado com vários eventos
em junho de 2011 –, o Museu das Minas e do Metal já acolheu mais de
60 mil visitantes, além dos quase 130 mil acessos no site da instituição.
134
Em ambientes virtuais, os visitantes podem interagir com os espaços
criados para permitir intensa vivência pelo mundo dos metais. O edifício foi totalmente restaurado e adequado com projeto arquitetônico de
Paulo Mendes da Rocha e projeto museográfico de Marcello Dantas. O
espaço incorporou o acervo do Museu de Mineralogia Djalma Guimarães e tem patrocínio do Grupo EBX. Ele foi concebido e implantado em
pouco mais de dois anos – entre 2008 e 2010.
Foto: Acervo do MMM
135
Desde o início, a estratégia é: ‘foco total’ nos professores As educadoras
Helena e Anna Paula são unânimes em destacar a determinação mais
estratégica do Museu para que ele se torne centro de difusão do conhecimento e, ao mesmo tempo, um espaço não formal de educação.
Desde o seu primeiro dia de funcionamento, o MMM não abre mão de
promover visitas prévias dos professores antes da visita dos alunos.
Segundo Helena, havia certa resistência por parte dos professores – afinal, pesquisas indicam que, até pouco tempo, quase 70% dos professores do país nunca tinham entrado em um museu. “Nós nos propomos a
capacitar esses professores para ampliar ao máximo a forma de eles explorarem os recursos do Museu como ferramentas didáticas. Percebemos que tem havido muito mais que um interesse por parte deles. Hoje,
já chegamos a sentir certo encantamento da parte deles por tudo que
temos aqui”, destaca Helena. Projeto Educativo é destaque na estratégia de ação do MMM Uma das iniciativas que faz o MMM ser diferente de
um museu tradicional – e até chegar a parecer mais uma escola –, é o seu
Projeto Educativo. Por meio dele, a instituição garante um serviço diferenciado para o seu público, uma vez que as ações educativas se tornam
prioridade.
Adriana Costa é a curadora do Projeto Educativo do museu e contribuiu
de forma decisiva para a formação dos educadores do MMM. Ela desenvolveu também os conteúdos do site e presta consultoria na área de
Mídias Sociais, ao lado de Ana Gaspar, que foi a ativadora da Rede MMM
136
na Internet. Um dos projetos mais
importantes de formação dos
educadores do museu ocorreu ao
longo de quase dois meses, entre
dezembro de 2010 e janeiro de
2011. No período, foram realizadas inúmeras atividades, como
palestras, discussões de textos,
debates e visitas monitoradas.
Um dos temas transversais de
todas as ações foi a questão da
aprendizagem em espaço não
formal de educação. Alguns dos
palestrantes convidados foram
Marcello Dantas (museógrafo),
Pedro Mendes da Rocha (arquiteto), Maria Regina Reis (restauradora de elementos artísticos) e a
própria Adriana Costa.
Dos ‘gabinetes de curiosidades’
às redes sociais da Internet Se o
mundo em geral passa por rápi-
das transformações, diante dos
avanços tecnológicos do século 21, com os museus isso não é
diferente. Quando surgiram, eles
eram denominados “gabinetes de
curiosidades”, onde as pessoas expunham objetos e coisas que por
algum motivo resolviam colecionar. Dezenas de séculos depois,
nos dias de hoje, os museus já
usam as chamadas redes sociais
na Internet – como Facebook e
Twitter – para interagir com os
milhões de novos “curiosos”.
O Museu das Minas e do Metal
não perde a oportunidade de
usar essas ferramentas, incluindo
o próprio site. Educadores e colaboradores já utilizam os espaços
virtuais para debater ideias, trocar
experiências e interagir de diversas formas. Já passam de 130 mil
os acessos à rede em pouco mais
137
de um ano de existência do Museu. De acordo com Helena Mourão, os
meios virtuais criam possibilidades infinitas de ampliação dessa rede de
interação. “Nós não estamos mais em Belo Horizonte, em Minas Gerais
ou no Brasil; nós estamos com as propostas deste Museu abertas para
todo o mundo!”, constata ela. Museu oferece três roteiros para facilitar
a visitação Visitantes podem escolher entre três roteiros para visitação.
Eles foram criados para facilitar as conexões com os conteúdos de sala
de aula, de forma articulada com os Parâmetros Curriculares Nacionais
de Arte, Ciências, Geografia e História. Mas nada impede que o visitante
crie seu próprio roteiro. Confira a seguir as características dos três roteiros atualmente oferecidos. Um quarto roteiro está em construção e será
fruto de uma construção coletiva de professores e alunos.
Mama África: do processo de formação dos continentes à herança africana no Brasil. Participações especiais de Chica da Silva e de Luzia, a
primeira brasileira.
Viajeiros: um jardim imaginário onde se encontram viajeiros que trilharam a história do Brasil. São personagens de diferentes épocas, de
Debret e Dom Pedro II a Burle Marx.
Horizonte Secreto: explorar códigos antigos e belos que sempre intrigaram o homem, desvendar os novos mistérios do mundo, o macro e o
micro inteligíveis de Djalma Guimarães e Eliezer Batista.
138
INTERCÂMBIO
PEDAGOGIA
“CRIATIVA”
A PARTIR
DA CONDIÇÃO
HUMANA
EM TEMPOS DE
“EXCELÊNCIA”
NA EDUCAÇÃO
ANGÉLICA SÁTIRO
Traduzido por Renilda S. Figueiredo
> “TRATA-SE DE UMA REFLEXÃO SOBRE
UMA PEDAGOGIA QUE TEM COMO PONTO
DE PARTIDA A CONDIÇÃO HUMANA COM
SEUS LIMITES E POSSIBILIDADES,
EM UM MOMENTO EDUCATIVO EM QUE
O DISCURSO SOBRE A “EXCELÊNCIA”
PODERIA DISTANCIAR ESTA VISÃO
DO DEBATE SOBRE OS FINS E OS
MÉTODOS E TODOS OS DEMAIS
ELEMENTOS EDUCATIVOS. RELACIONA
ASPECTOS DA EDUCAÇÃO LENTA COM
ESTA REFLEXÃO.” <
Palavras-chave: Educação lenta. Condição
humana. Criatividade. Educação significativa.
Wabi-sabi. Excelência. Metodologias de
projeto, de processo e de diálogo.
140
A EXCELÊNCIA E A
CONDIÇÃO HUMANA
E
xiste algo de errado em se
desejar a excelência? Claro que não! Como nos informa a
Real Academia Espanhola, a palavra excelência vem do latim excellentia e significa “Superior qualidade ou bondade que faz algo
ser digno de singular apreço e estima”. Ou seja, desejar a excelência é desejar o melhor possível, o
excepcional, o destacável. Então,
não existe equívoco em se desejar
isso, ao contrário... se desejamos
a excelência, é porque queremos
melhorar, evoluir, alcançar melhor
qualidade, superar a mediocridade. E isso tem a ver com a nossa
condição humana de ser “desejoso” e de ser “esperançoso”. O problema se dá quando, em nome
dessa busca pela excelência, nós
141
Pedagogia “criativa” a partir da condição humana
142
143
Pedagogia “criativa” a partir da condição humana
afastamos dela. É um paradoxo ao
qual estamos sujeitos. E por que
é assim? Talvez pela inadequação
de estratégias ou equívocos de
enfoques. Às vezes o problema
está no quê, outras vezes está no
como, ou em outros aspectos que
respondem ao quando, ao porquê,
ao para quê, ao com quem...
O discurso da qualidade total, que
surgiu no campo empresarial de
um Japão de pós-guerra e de uns
Estados Unidos com necessidades
imperialistas tem como pressuposto um conceito de excelência
que exige matizes ao ser aplicado
na educação. Provavelmente não
se trata de desmerecer o que pode
existir de valor nesse pressuposto,
mas sim de refletir um pouco mais
a fundo sobre as finalidades da
educação e sobre como poderíamos pensar a excelência aplicada
144
a ela. Por exemplo, no campo empresarial “fazer mais com menos”
e alcançar a excelência ao mesmo
tempo pode ter muito sentido,
mas... e em educação, teria o mesmo sentido? Uma das consequências deste “fazer mais com menos
e alcançar a excelência ao mesmo
tempo” são a pressa e a pressão
aí impostas para que o resultado
apareça. Este “ser excelente fazendo mais com menos” joga com
uma concepção de tempo quantitativa e tecnicista. Será que com
essa concepção poderemos chegar a ser excelentes pessoas e excelentes cidadãos? Essa reflexão
se relaciona com o conteúdo desta revista, que incide sobre a necessidade de uma educação lenta,
que respeite os ritmos (mais humanos) do aprender. Outro aspecto de consideração: é claro que a
educação ganha quando aprende
as ferramentas de gestão da qualidade que busca a excelência. Mas,
será que educar é só administrar
estabelecimentos de ensino? Essas ferramentas de administração são igualmente interessantes
para organizar as relações entre
o conhecimento e as pessoas que
o aprendem e/ou o constroem na
sala de aula?
Estas perguntas me fazem lembrar
uma história antiga:
Conta-se que uma pobre mulher
com seu bebê passou em frente à
entrada de uma caverna e escutou
uma voz misteriosa que dizia: “Pode
entrar e pegar tudo o que quiser,
mas não se esqueça do principal!”. A
mulher, curiosa, aproximou-se um
pouco mais e escutou outra vez a
mesma frase e algo mais: “Depois
que sair da caverna, a porta se fe-
chará para sempre, portanto não
se esqueça do principal”. A mulher
entrou na caverna e encontrou
muitas riquezas e pensou que jamais voltaria a ser pobre e a passar
fome. Fascinada com tanto ouro e
joias, colocou seu bebê bem ajeitado num canto e começou a recolher todo o ouro que podia. A voz
misteriosa voltou a dizer: “Depressa! Depressa! A porta da caverna já
vai se fechar! Depressa!”. A mulher,
com muita pressa, saiu correndo da
caverna com os braços cheios de
ouro e joias e escutou o forte barulho da porta se fechando atrás de
si. Porém... deu-se conta de que seu
bebê havia ficado lá dentro. E para
sempre! O tempo passou, a riqueza
recolhida na caverna acabou rápido,
mas seu desespero de mãe durou
muito... Sua consciência sempre a
fazia se perguntar: “Por que eu me
esqueci do principal?”
Podemos fazer uma analogia entre a reflexão anterior e esse conto. A educação é a encarregada,
como a mãe do conto, das novas
gerações. Trata-se de sua tarefa
principal, e, para realizá-la, precisa entender a fundo a condição humana e como fazer para
melhorá-la e para fazê-la chegar a
ser excelente (se for o caso!). Nos
últimos anos, a educação está
passando diante da caverna da
“excelência da qualidade total”,
escuta sua voz que a convida a recolher “ferramentas e conceitos”
que podem enriquecê-la. A única coisa que não deve esquecer
é o principal... Será que cuidamos
do nosso “principal” quando fomentamos somente a cultura do
“sucesso”? Para ser excelente é
necessário ser bem-sucedido... E
quem define os parâmetros desse “sucesso” e dessa “excelência?”
146
Esses parâmetros serão “excludentes” ou poderão gerar desenvolvimento, inclusão social, etc.?
Esses parâmetros permitem educar os humanos que virão depois
de nós conduzindo este planeta
a um porto seguro? Existe perigo de que sejam parâmetros que
formem gente excessivamente
competitiva que podem chegar a
níveis de arrogância que lhes faça
se esquecer do principal em nome
de uma excelência “estrangeira”?
Entre estes parâmetros existe algum que nos diga ao ouvido: “sic
transit gloria mundi ” (a glória do
mundo é transitória)?
Para ser excelente é necessário ser bem-sucedido... E quem
define os parâmetros desse
“sucesso” e dessa “excelência?”
Esses parâmetros serão “excludentes” ou poderão gerar de-
senvolvimento, inclusão social,
etc.?
A condição humana como ponto de partida da educação
O que é a condição humana? A
condição humana é aquilo que
nos caracteriza como humanos e
nos diferencia das demais formas
de vida do planeta, é algo que
nos define independentemente
da cultura na qual nascemos, do
gênero, da idade, da classe social,
etc. Ou seja, são os pequenos aspectos que nos unem e que nos
identificam como humanos. Por
que entender a condição humana como ponto de partida para
a educação? Porque temos que
considerar nossas raízes humanas
para avançarmos a partir delas.
Porque se partimos daquilo que
nos caracteriza como os seres que
somos podemos avançar e crescer a partir daquilo que respeita
a quem somos como seres neste
planeta.
Existem várias maneiras de partir da condição humana. E um
exemplo pode ser Paulo Freire e
sua proposta de alfabetização,
na qual propunha partir das palavras geradoras. Essas palavras são
aquelas significativas no contexto
de quem aprende a ler. Com isso,
a meta é conseguir ler e escrever,
mas o ponto de partida é a leitura
de mundo que o aprendiz faz “antes” de ler um texto. Assim, ter a
condição humana como ponto de
partida é considerar tudo aquilo
que nos caracteriza como somos
“antes de...” para, a partir daí, a
partir de nossa liberdade e possibilidade, chegar ao que pretendemos alcançar como meta, como
147
sonho. Quando olhamos do ponto de vista da excelência, temos
como ponto de partida aonde
queremos chegar. Essa perspectiva pode distanciar-nos ou não da
condição humana, dependerá de
como a enfoquemos. Aproxima-nos da condição humana quando nos oferece um horizonte,
uma meta, um sonho, e isso tem a
ver com nossa dimensão de liberdade e de vontade. Consequentemente, isso tem a ver com nossa
dimensão criativa. O humano é
um ser que pode se projetar, não
é somente resultado dos determinismos biológicos, sociais, etc.
Mas... em se tratando de educação, além de levar em conta as
metas e os sonhos, há que se considerar outros elementos. Entre
eles, o de que somos tempo, ou
seja, a maneira como vivemos /
usamos o tempo define quem so-
148
mos e como somos.
O humano é um ser que pode se
projetar, não é somente resultado dos determinismos biológicos, sociais, etc. Mas... em se
tratando de educação, além de
levar em conta as metas e os
sonhos, há que se considerar
outros elementos. Entre eles, o
de que somos tempo, ou seja,
a maneira como vivemos / usamos o tempo define quem somos e como somos.
A condição humana e o “wabi-sabi pedagógico”
Wabi-sabi é uma corrente de
pensamento japonesa que compreende o mundo a partir de sua
fugacidade e inconstância. Várias
fontes relacionam aspectos dessa corrente com visões budistas.
Essa ética-estética japonesa ocupa no Oriente a mesma função
que os ideais gregos do “bem”:
bondade, verdade e beleza (perfeição) ocupam no Ocidente. Ou
seja, essa ética-estética tem uma
grande influência na maneira
de pensar oriental. Para os objetivos desse artigo, não é tão importante fundamentar as raízes
do wabi-sabi. Neste caso, o mais
importante é entender sua visão
ético-estética, porque o que se
pretende é estabelecer relações
possíveis com uma pedagogia
que parte da condição humana.
A palavra wabi significa “simplicidade rústica, quietude”. Essas
qualidades podem ser aplicadas
tanto a objetos naturais como a
feitos e objetos originados dos
humanos. Essa simplicidade rústica revela superfícies imperfeitas
e incompletas. A palavra sabi sig-
nifica “beleza que aparece com a
idade, com o desgaste provocado
com o passar do tempo”. Significa
a serenidade que surge da inconstância e da finitude. Essa filosofia,
além de apresentar uma visão de
mundo (ética), inclui uma produção estética que se expressa em
várias linguagens conhecidas no
Ocidente: Teatro-No, cerimônia
do chá, poesia haiku, ikebanas
(arranjos florais), jardim zen, etc.
Todas essas expressões estéticas
compartilham uma visão do mundo que tem como base que nada
dura, nada está completo, nada é
perfeito.
Wabi-sabi é uma corrente de
pensamento japonesa que compreende o mundo a partir de
sua fugacidade e inconstância.
Esta “base” é interessante para
149
pensar sobre a condição humana. Nós, humanos, independentemente de etnia, gênero, idade ou
classe social, somos seres finitos
(nada dura), somos uma obra incompleta (nada está completo) e
somos imperfeitos (nada é perfeito). Nossa finitude, nossa imperfeição e nossa incompletude nos
caracterizam, isto é, fazem parte
da nossa condição como humanos. Qual pedagogia assume isso
tudo como ponto de partida? Qual
pedagogia parte dessa condição
de ser finito, incompleto e imperfeito? Pode parecer niilista: “nada”
dura, “nada” está completo, “nada”
é perfeito. Sabe-se que é muito difícil educar se pensamos o mundo
(e a vida) de forma niilista, porque
se tudo é nada, não há nada que
fazer... Mas esta “base filosófica
wabi-sabi “não tem por que conduzir forçosamente ao niilismo. E
150
essa é a provocação deste artigo,
talvez não pudéssemos nem devêssemos educar justamente porque nada dura, nada é completo
e nada é perfeito. A questão é
“partir de...”, quer dizer, considerar
de onde se deve começar um processo educativo. Se começamos
entendendo que somos finitos,
talvez se pudesse dar mais valor
à vida por ser ela um bem com
data de validade. Se começamos
sabendo que somos imperfeitos,
poderemos utilizar a nosso favor
os erros, os equívocos e entender que nossa tarefa, como educadores, é ajudar nos processos
de melhorias dessa situação de
imperfeição. Se começamos considerando que somos incompletos, poderemos aprender, haverá
espaço para criar, para gerar o
“novo”, para continuar pesquisando. A questão é que se partimos
da condição humana, poderemos
considerar os humanos reais (imperfeitos, incompletos e finitos)
para conseguir que, por meio de
um processo educativo, possam
superar-se a si mesmos, projetar-se como pessoas melhores. Evidentemente falamos de um ponto de partida com um horizonte
como meta e um caminho como
método. Essa reflexão segue com
algumas possíveis consequências
pedagógicas deste “wabi-sabi
educativo”. Para pensar essas possíveis consequências utilizaremos
algumas categorias pedagógicas:
•
Epistemologia (conteúdos,
habilidades, atitudes, competências): é a dimensão do conhecimento (conteúdos) e nosso “aparelho interior” para processar este
conhecimento (habilidades, atitudes e competências).
•
Metodologia: é a dimensão dos métodos, das maneiras de aprender e de ensinar.
•
Papel do educador: é o
perfil e a função do educador.
•
Papel do estudante: é o
perfil e a função do estudante.
•
Valores: é a base ética em
nome da qual se formarão as pessoas envolvidas.
Nada dura (finitude)
Por que ter obsessão por conseguir resultados sem ter certeza
de que eles são os resultados de
que necessitamos de verdade?
Por que aceitar ritmos frenéticos na educação, um campo em
que os resultados mais profundos só aparecem em médio e
longo prazo?
“Casca oca, a cigarra cantou-se
151
toda”. Este haiku de Matsuo Bashô
(1644-1964) fala de uma cigarra
cuja existência consiste em cantar até explodir-se em seu canto. Lembra que o sentido de sua
existência está também em sua
finitude e se a empregamos como
analogia, serve-nos para assumir
o caráter “natural” de nossa “condição de inconstância”. Ou seja,
nós, seres naturais, somos finitos. Nós, seres humanos, somos
tempo, somos enquanto estamos
sendo. Parece um paradoxo falar
de ter (ou não ter) tempo quando
afirmamos que nossa condição
humana é ser finita, quer dizer,
ser um tempo limitado. Quando
entendemos a vida como valor e
sabemos que ela é curta, é ilógico
perdermos tempo com currículos
sobrecarregados, aprendizagens
forçadas, agendas excessivamente lotadas, colocarmos e aceitar-
152
mos que nos coloquem pressão
para “fazer mais com menos” e sermos excelentes em aspectos que
nos distanciam de nossa humanidade. Por que ter obsessão por
conseguir resultados sem ter certeza de que eles são os resultados
de que necessitamos de verdade?
Por que aceitar ritmos frenéticos
na educação, um campo em que
os resultados mais profundos só
aparecem em médio e longo prazo? Por que aceitar o discurso da
“falta de tempo” para fazer o que
de verdade é significativo para a
comunidade educativa? As conseqüências pedagógicas dessa
visão são que precisamos de uma
epistemologia significativa.
Se somos finitos, não podemos
perder esse pouco tempo de vida
com conhecimentos que não têm
sentido, não podemos ficar de-
senvolvendo habilidades, atitudes e competências insignificantes. O
conhecimento veiculado nas escolas e a maneira de aprendê-los e de
aprender a aprender necessita ser significativa. A metodologia de projetos é uma, entre outras, que favorece uma aprendizagem significativa.
As crianças e os jovens, partindo de seus centros de interesses, podem
gerar todo um processo de busca de sentido desse conhecimento e o
educador ser o guia desse processo que não se limita em aprender um
conteúdo, mas sim que ajuda a desenvolver valores mais profundos de
compromisso com a vida, consigo mesmo, com o outro, com a atitude
proativa que não se limita a responder de forma reativa (e com pressa!)
ao que vem de fora.
Se somos finitos, não podemos perder esse pouco tempo de vida com
conhecimentos que não têm sentido, não podemos ficar desenvolvendo habilidades, atitudes e competências insignificantes.
Epistemologia (conteúdos, habilidades,
atitudes, competências)
Metodologia
Papel do educador
Papel do estudante
Valores
Significativa
Projetos
Conduzir para a vida
Encontrar o sentido
Proatividade, compromisso consigo
mesmo, com o outro, com a vida (que
é curta e que merece ser vivida sem
pressas absurdas!)
153
Se cada um de nós é um ser humano incompleto, então a epistemologia necessária é de caráter intersubjetivo. Ou seja, cada
um tem uma parte do conhecimento que se completa com o
conhecimento que o outro tem.
Nada é completo (incompletude)
“Quando acreditávamos que tínhamos todas as respostas, de
repente, mudaram-se todas as
perguntas.”
Este aforismo de Mario Benedetti nos faz lembrar este aspecto
incompleto de nossa condição
humana: quando completamos
algo, nos damos conta de outras
incompletudes...
Se cada um de nós é um ser humano incompleto, então a epis-
154
temologia necessária é de caráter
intersubjetivo. Ou seja, cada um
tem uma parte do conhecimento
que se completa com o conhecimento que o outro tem. Por isso
é importante dominar metodologias de processo que permitam
pesquisas, descobertas, origens,
produções e inovações. Para isso,
é necessário um educador que
saiba facilitar esses processos
para que o estudante seja quem
descubra, pesquise, produza e
inove. Os valores base para que
isso ocorra são o respeito mútuo
e a reciprocidade. E é claro que
o tempo de aprendizagem não
pode estar organizado com foco
somente na “produtividade” se se
trata de valorizar o processo. Também não se trata de esquecer-se
dos produtos em nome dos processos. É importante levar em
conta um compromisso final, mas
não se pode corromper o sentido de educar, em nome desse produto
final. Para que um aprendiz pesquise, descubra, tenha ideias e concretize tudo isso em algo precisa de tempo. Esse tempo é o que a educação
lenta reivindica.
Epistemologia (conteúdos, habilidades,
atitudes, competências)
Metodologia
Papel do educador
Papel do estudante
Valores
Significativa
De processos (investigativos,
heurísticos, criativos)
Facilitar processos
Pesquisar, descobrir, produzir, inovar e
poder projetar-se como pessoa, como
cidadão...
Respeito mútuo, reciprocidade.
Nada é perfeito (imperfeição)
«Hoy el rocío borrará lo escrito en mi sombrero» (haiku de Matsuo
Bashô, con traducción de Octavio Paz) – “Hoje o orvalho apagará o escrito do meu chapéu”.
Se nada é perfeito, então não há uma verdade única e não há um conhecimento absoluto, também não haverá habilidades, competências e
atitudes absolutas, por isso a epistemologia necessita ser relativa, contrastada, flexível, humilde (sabedora do seu caráter provisório). Todo
conhecimento é válido até que o processo constante de descoberta,
155
invenção e pesquisa o relativize. Uma epistemologia assim estimula e
parte de valores como: flexibilidade, humildade, autorregulação e autocorreção. O estudante é um aprendiz constante do processo de conhecimento humano. A metodologia tem que ser compartilhada para
produzir suficientes critérios dialógicos para favorecer a legitimidade
convergente do conhecimento e os processos de aprendizagem dos estudantes. Para conseguir legitimidade convergente é necessário dialogar, estar em grupos de aprendizagem, de pesquisa e de diálogo. Para
autorregular-se e autocorrigir-se é necessário o tempo da aprendizagem
da autonomia intelectual e moral que se dá em companhia dos demais,
compartilhando processos reflexivos. Relativizar os conhecimentos não
tem nada a ver com perder-se ou confundir-se e/ou voltar ao niilismo,
por falta de fundamentação, por mediocridade e/ou pela cultura do fracasso. Isso seria uma saída fácil... Entender que partimos de nossa imperfeição para ir melhorando o que podemos enquanto aproveitamos
a vida é o que nos caracteriza como “aprendizes constantes”. É repensar
o que chamamos de fracasso e o que chamamos de sucesso. Sucesso é
expor nos exames nacionais o que se memorizou das informações dos
conteúdos ensinados? Se o conhecimento humano é algo em constante evolução, pode-se mudar na próxima rodada o tempo no mundo?...
Então pode ser que fracassamos quando acreditamos que somos bem-sucedidos ao focarmos o sucesso por memorizarmos algo transitório e
tratá-lo como se ele fosse permanente. São os mesmos paradoxos de se
partir de outro ponto senão da própria condição humana .
156
Epistemologia (conteúdos, habilidades,
atitudes, competências)
Relativa, contrastada.
Metodologia
Dialógica.
Papel do educador
Papel do estudante
Facilitar diálogos.
Aprender constantemente.
Flexibilidade, humildade,
autorregulação, autocorreção.
Valores
Para autorregular-se e autocorrigir-se é necessário o tempo da
aprendizagem da autonomia intelectual e moral que se da em companhia dos demais, compartilhando processos reflexivos.
Deixando a porta aberta: este artigo é uma fenda
Este artigo é uma reflexão mais cheia de perguntas que de respostas.
Não se trata de uma autoajuda pedagógica, mas de uma boa problemática das respostas que temos. A porta está aberta e não se fechará
rapidamente como aquela da caverna do conto, porque é uma oportunidade de “fazer uma pausa” no caminho. Pode-se entrar sem pressa e
permitir-se o tempo de reflexão, de silêncio, de contemplação, de meditação sobre quem somos e como podemos evoluir. Podemos questionar se queremos chegar a ser “excelentes” educadores, oferecer uma
“excelente educação” e como entendemos que se chega a isso a partir
da nossa humanidade e melhorá-la. Essa porta aberta faz suas as pa-
157
lavras de Wittgenstein: “A saudação entre os filósofos deveria ser: dê
tempo a você mesmo!”. Assim, leitor, faça um exercício filosófico, não
tenha pressa em estar ou não de acordo com o que se afirma aqui. Também não tenha pressa em responder às perguntas apresentadas. São
somente provocações para que você se dê tempo e se dedique ao que
de verdade importa na sua própria vida. “Perca seu tempo pensando”.
“A regra principal da educação, a mais importante e mais útil, não é ganhar tempo, mas sim perdê-lo!”, disse Rousseau. Ao mesmo tempo, este
artigo é uma porta aberta para refletir sobre esta pedagogia apresentada. É criativa porque entende que o processo de aprender é um jogo
entre a luz do conhecimento e a escuridão da nossa ignorância. É criativa porque parte da condição humana, que é algo que “pede” novas
ideias. Se somos seres incompletos, podemos criar. Se somos imperfeitos, podemos criar. Se somos finitos, devemos criar. É criativa esta pedagogia que parte da condição humana, que é incompleta, imperfeita
e finita, porque convida a cada um a fazer da própria vida uma obra de
arte significativa, intersubjetiva, contrastada e relativizada pela própria
condição humana. É criativa porque convida a ver a humanidade e a
sociedade como um projeto coletivo que pode ser melhorado a partir
da sua imperfeição, da sua incompletude, da sua finitude. Leonard Cohen, um dos autores ocidentais que fala de wabi-sabi, tem uma frase
que oferece a imagem com a qual fechamos este artigo: “Há uma fenda,
uma fenda em todas as coisas. É por ela que entra a luz”.
158
Tratamos de:
EDUCAÇÃO LENTA.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO.
INFÂNCIA E QUALIDADE DE VIDA.
Notas
* Diretora da Casa Creativa (www.lacasacreativa.net), da associação Crermundos (www.crearmundos.net/asociación) e do projeto Noria (www.proyectonoria.crearmundos.net).
Angélica Sátiro
La Casa Creativa. Barcelona
[email protected]
Este artigo foi solicitado a partir da SALA DE AULA DE INOVAÇÃO EDUCATIVA
(AULA DE INNOVACIÓN EDUCATIVA) em março de 2010 e aceito em abril de
2010 para publicação.
Aula de Innovación Educativa • núm. 193-194 • julio-agosto 2010
1. Frase que alguns escravos sussurravam ao ouvido dos imperadores durante os triunfos romanos.
2. Neologismo inventado pela autora do artigo
159
Pedagogia “criativa” a partir da condição humana
> “A EXCELÊNCIA É DESEJAR
O MELHOR POSSÍVEL, O EXCEPCIONAL,
O DESTACÁVEL. ENTÃO, NÃO EXISTE
EQUÍVOCO EM SE DESEJAR ISSO, AO
CONTRÁRIO... SE DESEJAMOS A
EXCELÊNCIA,
É PORQUE QUEREMOS MELHORAR,
EVOLUIR, ALCANÇAR MELHOR
QUALIDADE, SUPERAR A
MEDIOCRIDADE.” <
RESENHA
ESCOLA
REFLEXIVA
E NOVA
RACIONALIDADE
CORNÉLIA CRISTINA SAMPAIO BRANDÃO
Divulgação
P
or analogia com o conceito
de professor reflexivo, explicitado no famoso livro de Donald
Schön, Isabel Alarcão (organizadora) e mais outros pesquisadores brasileiros e portugueses classificam como escola reflexiva uma
organização escolar que continuadamente pensa em si própria, na
sua missão social e na sua organização, e se confronta com o desenrolar da sua atividade em um
processo simultaneamente avaliativo e formativo.
vem da sua constatação de que
“a escola é um lugar, um edifício
circundado, espera-se, por alguns
espaços abertos.” Todavia, questiona se “os edifícios escolares
não estarão defasados em relação às concepções de formação,
às formas de gestão curriculares e
às exigências do relacionamento
interpessoal neste início de milênio.” A partir de um decálogo, Isabel aponta caminhos para a uma
escola de “cara mudada”:
1) A IMPORTÂNCIA DOS
Isabel Alarcão, vice-diretora da
Universidade de Aveiro, em Portugal, está presente com três artigos e, em um deles, afirma que a
mudança de que a escola precisa
é uma mudança paradigmática.
Porém, para mudá-la, é preciso
mudar o pensamento sobre ela.
A primeira proposta de mudança
RECURSOS HUMANOS
2) O DESENVOLVIMENTO
ORIENTADO POR UMA
VISÃO PROSPECTIVA
E UM PROJETO DE AÇÃO
3) A COLABORAÇÃO
DIALOGANTE
163
Em parceria com José Tavares,
também como ela, professor de
Aveiro, Alarcão evidencia rupturas e continuidades entre a educação tradicional e a pós-moderna,
levantando paradigmas e abordando as características de uma
“sociedade emergente”, onde há
intensificação do questionamento das verdades científicas e o conhecimento é produzido na multi
e transdisciplinaridade.
4) A ARTICULAÇÃO
SISTÊMICA
5) A VIVÊNCIA DOS
VALORES
6) O PROFISSIONALISMO
ASSUMIDO
7) A FORMAÇÃO NA
AÇÃO E PARA A AÇÃO
8) A INVESTIGAÇÃO
SOBRE AS PRÁTICAS
9) A CONSTRUÇÃO DE
CONHECIMENTO SOBRE
A ORGANIZAÇÃO
10) A MONITORIZAÇÃO
E A AVALIAÇÃO DE
PROCESSOS E RESULTADOS
164
Iria Brzezinski, professora da Universidade Católica de Goiás, trata
dos fundamentos sociológicos, das
funções sociais e políticas da escola reflexiva. Idália Sá-Chaves, professora da Universidade de Aveiro,
analisa a relação entre a sociedade
e o conhecimento, os desafios da
modernidade e a formação de profissionais. Maria do Céu Roldão, do
Instituto Politécnico de Santarém,
Escola reflexiva e nova racionalidade
discute um paradigma de escola
em ruptura. Um tema que perpassa por quase todos os textos
são as novas tendências que podem ser observadas nos paradigmas de formação; de organização
e gestão curriculares; e de investigação; de exercício profissional
e nas mudanças nos paradigmas
organizacionais.
A nova escola de que todos falam
se pensa e se avalia em relação ao
projeto pedagógico e à missão
social, constituindo-se uma organização aprendente, que qualifica
não só os que nela aprendem, mas
também os que nela ensinam.
A resenha acima foi construída a
partir do livro Escola Reflexiva e Nova
Racionalidade. A obra foi organizada
por Isabel Alarcão
Páginas: 144
ISBN: 9788573078619
Artmed Editora — Ano: 2011
VEJA O SUMÁRIO DO LIVRO:
• A Escola Reflexiva - Isabel Alarcão;
• Relações Interpessoais em uma Escola
Reflexiva - José Tavares;
• Fundamentos Sociológicos, Funções
Sociais e Políticas da Escola Reflexiva e
Emancipadora: Algumas Aproximações Iria Brzezinski;
• Informação, Formação e Globalização:
Novos ou Velhos Paradigmas? - Idália
Sá-Chaves;
• Paradigmas de Formação e
Investigação no Ensino Superior para o
Terceiro Milênio - José Tavares e Isabel
Alarcão;
• A Mudança Anunciada da Escola ou
um Paradigma de Escola em Ruptura? Maria do Céu Roldão;
• Novas Tendências nos Paradigmas
de Investigação em Educação Isabel Alarcão
“Quando eu tinha 14 anos, meu
pai era um completo idiota. Aos
18,fiquei impressionado com
quanta coisa ele aprendeu em
apenas quatro anos.” (Atribuída
a Mark Twain indicada por José
Paulo Tupinambá, jornalista e pai
de adolescentes.)
“Dar é jogar pedrinhas no meio do
lago. Receber é ganhar beijinhos
de onda na ponta dos pés. Só ganha beijinhos quem joga pedrinhas.” (Patrícia Gebrim, citada por
Patrícia Pierazoli Guerra, publicitária e mãe de duas crianças.)
“Escolhe um trabalho de que
gostes e não terás que trabalhar
nem um dia na tua vida.” (Confúcio, indicada por Fábio Freitas,
professor.)
“É preciso coragem para crescer
166
e tornar-se o que você realmente
é.”(E. E.Cumming,indicada por Roberto Márcio Pimenta, escritor.)
“O valor supremo da vida consiste em fazer mais valiosa a vida do
outro: esse é o verdadeiro dom divino do humano.”(Nádia Bossa, citada por Maria Dolores Fortes Alves, psicopedagoga e escritora.)
“A vida é uma peça de teatro
que não permite ensaios. Por
isso, cante, chore, dance, ria e
viva intensamente, antes que
a cortina se feche e a peça termine
sem
aplausos”(Charles
Chaplin;indicada por Fátima Alves, fonoaudióloga, psicomotricista e escritora.)
“A maneira mais inteligente de
ser inteligente é criar dignidade
humana e tê-la como um projeto
supremo.” (José Antonio Marina,
indicada por Angélica Sátiro, filósofa, pedagoga e escritora.)
“Para o triunfo do mal, basta que
os bons não façam nada.” (Edmund Burke,indicada por Teuler Reis, psicólogo,psicanalista e
escritor.)
“O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e
depois desinquieta.
nossa importante função social e
auxiliar o trabalho de superação
da desigualdade e da ignorância,
em prol de um mundo mais justo, igualitário e inclusivo.” (João
Beauclair, citado por Fernandinho
Berg, filósofo.)
Trecho do livro: BEAUCLAIR, João.
Ensinar é acreditar. Rio de Janeiro:
Editora WAK, 2008.v. 1. (Ensinantes do Presente)
O que ela quer da gente é
coragem.”(Guimarães Rosa, indicada por Renata Gazzinelli, psicopedagoga e mãe de adolescente.)
“Me pergunta por que compro
arroz e flores? Compro arroz para
viver e flores para ter algo por que
viver.” (Confúcio, indicada por Camila Moraes Berg, estudante do
penúltimo período do curso superior de Enfermagem.)
“Ensinar é acreditar, pois é na nossa postura como ensinantes do
presente que podemos exercer
“De perto, ninguém é normal.”
(Caetano Veloso, indicada por Rita
Espeschit, escritora e mãe.)
167
HISTÓRIA
Foto: Sérgio Tomisaki/Folhapress
DUAS OU TRÊS
HISTÓRIAS
DO MESTRE
DOS MESTRES:
PAULO FREIRE, QUE
COMPLETARIA 90 ANOS EM 2011
POR JOÃO CARLOS FIRPE PENNA
ESTE ARTIGO É UMA HOMENAGEM A UM DOS MAIORES
EDUCADORES DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA. NÃO SE TEM
A PRETENSÃO, PORTANTO, DE FALAR DE PAULO FREIRE
PARA EDUCADORES. VAMOS MOSTRAR AQUI DUAS OU TRÊS
HISTÓRIAS INÉDITAS QUE NOS AJUDAM A LEMBRAR-NOS
DELE. OU MELHOR, A NÃO ESQUECÊ-LO JAMAIS...
169
Um a um, os alunos vão chegando. Sete da noite, sete e quinze.
Chega Tarcísio, o rapaz que trabalha com o pai na venda; chega
dona Geralda, que faz faxina na
escola do bairro; chega Seu Pedro,
que ganha a vida como pintor de
paredes; chega Lurdes, doméstica
na Zona Sul. Ao todo, são 12 matriculados, mas nunca aparecem
mais que uns oito. A vida dura no
trabalho não permite ir à aula todas as segundas, quartas e sextas,
como acontece naquela “escola”.
As carteiras de madeira foram
doadas por um colégio particular onde eu dava aulas. Para alegria da meninada do bairro, elas
chegaram no caminhão de um
morador local que distribuía refrigerante. Ele não cobrou frete e
ainda deu uma caixa de guaraná
para quem ajudou a carregar os
móveis para o barraco de quarto
170
e sala que virou escola ali no aglomerado da Ressaca, Zona Norte
de BH, na divisa com Contagem.
O ano era 1980. O país vivia o
fim da ditadura militar e ensaiava o retorno à democracia. Muitas personalidades começavam
a voltar do exílio, com a Anistia
Ampla, Geral e Irrestrita que acabara de virar lei em 1979. Naquele
barraco, um grupo de estudantes
universitários da UFMG dedicava
> O ANO ERA 1980. O PAÍS
VIVIA O FIM DA DITADURA
MILITAR E ENSAIAVA O
RETORNO À DEMOCRACIA <
parte de seu tempo livre para dar
aulas de alfabetização para adultos. Eles não seguiam o método
do Mobral (Movimento Brasileiro
de Alfabetização), difundido pela
Duas ou três histórias do mestre dos Mestres
> TÍNHAMOS EM COMUM
O SONHO DE AJUDAR
A CONSTRUIR UMA
SOCIEDADE MAIS JUSTA
E IGUALITÁRIA <
ditadura, mas outro, muito mais
comprometido com a história de
vida e a realidade de cada aluno –
o método Paulo Freire.
Naquela noite, a formação de palavras em estudo tinha como base
o nh. Aos poucos, os alunos vão
se soltando, entre um riso e outro.
Dona Geralda se lembra do almoço de domingo e dispara: galinha!
Seu Pedro pensa no seu dia a dia
e arrisca: vizinho!
Tarcísio, mais jovem e mais articulado diz, com segurança: nhassa!
Ouço a palavra. Como professor,
fico em dúvida entre a aprovação
ou a correção. Oriundo de outra
realidade social e econômica, eu
já tinha aprendido, com os ensinamentos de Paulo Freire, a respeitar a cultura local. Sugiro, então: “E aí, Tarcísio, use sua palavra
para formar uma frase pra gente”.
O rapaz não titubeia e diz: “Professor, vou juntar o que todo mundo
disse: a gente pega a galinha do
vizinho e nhassa ela!”
Eu e mais três colegas que dávamos aula no Ressaca fazíamos parte de um grupo maior, espalhado
em várias “escolas” da cidade. Tínhamos em comum o sonho de
ajudar a construir uma sociedade
mais justa e igualitária. Não fazíamos parte de nenhum partido
político (até porque eles não existiam de verdade no país, naquele
171
momento), mas sabíamos muito
bem de que lado estávamos ao
optarmos pelos despossuídos.
Eu ouvira falar de Paulo Freire ainda
menino, quando perguntei ao meu
pai, possivelmente após ler alguma
notícia no jornal: “Pai, o que é método Paulo Freire?”. A resposta veio
simples, porém completa, e foi mais
ou menos assim: “É um método de
alfabetização de adultos que leva
em conta a realidade de quem está
aprendendo. Nada a ver com ‘vovó
viu a uva’. Se o aluno aprende, por
exemplo, a escrever a palavra tijolo,
aquilo precisa ter um significado na
vida dele, que vai além do t+i, ti; j+o,
jo; l+o, lo. Para que serve o tijolo?,
deve indagar o professor. E, mais do
que isso: por que aquele operário
que faz uma parede de tijolos não
vai morar no apartamento que está
construindo?”
172
Noutra noite, na sala de aula, a lição era simples. Vamos falar e escrever sobre o nosso dia a dia, a
realidade do trabalho, a vida com
a família. Cada aluno começa a
passar para o caderno suas ideias,
num esforço físico que ficava visível na força com que o grafite sulcava o papel em branco, comandado por uma ferramenta de cinco
dedos. Lurdes escreve: “Para ir ao
trabalho, eu pego um ônibus para
o centro da sidade”. No final da
leitura das frases, eu digo: Lurdes,
seu texto está correto, mas cidade escreve-se com C. “Tudo bem”,
aceita ela, sem deixar, contudo, de
questionar com uma grande coerência: “mas por que não posso escrever cidade com S?”.
O grupo de estudantes que dava
aula pelo método Paulo Freire em
BH, naquele começo da década
Duas ou três histórias do mestre dos Mestres
> NA AULA, SEU PEDRO
LOGO SE INTERESSOU PELA
MATEMÁTICA, COM
INCENTIVO MEU. AFINAL,
COMO PINTOR, VALIA A
PENA TER NOÇÕES DE
GEOMETRIA, ESPAÇO, METRO
QUADRADO E,
PRINCIPALMENTE, O VALOR
DE SEU TRABALHO EM
FUNÇÃO DA ÁREA PINTADA <
de 1980, reunia-se todos os sábados no Centro Popular de Cultura,
em uma casa no bairro da Serra,
para trocar ideias, relatar casos
de sala de aula, rever conceitos e,
principalmente, refletir sobre os
escritos de Paulo Freire. De mão
em mão, circulava uma edição
de “Pedagogia do Oprimido”, mais
surrada que papel usado para
embrulhar pão. Mas, entre aquele
grupo de uns 40 estudantes, nem
tudo era trabalho aos sábados.
No final da tarde, sobrava tempo
para os namoros, as cervejas e as
poesias...
Na aula, Seu Pedro logo se interessou pela Matemática, com incentivo meu. Afinal, como pintor,
valia a pena ter noções de geometria, espaço, metro quadrado
e, principalmente, do valor de seu
trabalho em função da área pintada. Com muita dificuldade, ele
desenhava os números na folha
de caderno. Mais difícil ainda era
o raciocínio. Como ensinar multiplicação para um homem que vivera 50 anos sem essa abstração?
“O senhor vai pintar esses quatro
metros três vezes seguidas. Se fizer assim, quantas vezes um metro terá pintado?”
Ele começou: “Quatro, mais quatro, mais quatro, ou quatro vezes o
três...”. Quando ele disse, com toda cautela, “do-ze?”, perguntando mais
que respondendo, todos na sala bateram palmas. Nas minhas mãos em
movimento, respingaram, despercebidas, algumas lágrimas.
************
Naquele sábado, a notícia chegou na velocidade de um raio ao nosso grupo de estudantes-alfabetizadores. Alguém do Centro Popular de
Cultura havia falado a um educador, que acabara de chegar de volta do
exílio ao Brasil, sobre o trabalho daqueles jovens em BH. Ao ouvir isso,
ele imediatamente demonstrou interesse em ir à capital mineira para
socializar com o grupo sua experiência. Seu nome era Paulo Freire... Só
havia uma condição para a vinda: nenhuma divulgação na mídia, no
meio político ou educacional. Ele estava chegando ao Brasil e precisava
ser discreto – até para sentir o clima político em relação ao seu retorno.
************
Na aula seguinte, chego decidido a fazer Seu Pedro avançar na Matemática. Proponho novos exercícios, mas noto que ele está desanimado.
Pergunto o que foi. Ele reluta, mas acaba falando, com os olhos fundos
e tristes, mirando um horizonte que parecia cada vez mais inatingível
para ele: “O cara que contrata meus serviços lá na obra disse que, se eu
174
continuar a aprender a fazer essas contas, ele vai me mandar embora...”. A frase caiu como uma bomba em mim. Primeiro, uma sensação de
pena. Depois, de muita revolta. Mas entendi ali, na prática, algo que já
havia lido em Paulo Freire: a ameaça que o conhecimento representa,
uma vez apropriado por aqueles que, até então, só tinham a oferecer
sua força física para o trabalho. Ficou mais forte em mim a convicção de
que era preciso seguir em frente. Ensinar Seu Pedro a multiplicar 4 por
12, depois 12 por 36 e assim por diante.
************
Duas semanas se passaram. No meio da rodinha de sempre, no encontro de sábado, havia mais alguém presente. Não dava para acreditar.
Um velhinho quase careca, de barba branca e muito comprida. Paulo
Freire estava ali, sentado no banquinho, como todos nós... Não consegui fugir de um pensamento, que me fez rir sozinho, olhando para ele,
de pertinho: “então foi esse cara que politizou o tijolo!”. Na verdade,
eu sabia que a frase correta não era aquela. O que ele queria mesmo
era politizar o pedreiro (ou os alunos), com seu ensinamento maior: o
cidadão só vai absorver o conhecimento se esse conhecimento estiver
inserido em sua realidade de tal modo que ele possa se apropriar politicamente desse novo saber para interferir nessa realidade. Somente
assim ele vai se tornar um novo homem, mais livre e mais consciente de
que é o agente transformador de sua própria história!
175
************
Saber tudo isso era fundamental para entender Paulo Freire, principalmente com a lembrança da última frase do Seu Pedro retumbando na
minha memória.
************
Como em toda aula que se preza, chegou a hora de fazer as perguntas.
Eram muitas para pouco tempo e para um só Mestre. Perguntei a Paulo Freire sobre o “nhassa” e a “sidade”. O que fazer diante dessas construções tão genuínas e lógicas? Minha pergunta já parecia conduzir à
resposta. Ele coçou a barba com a mão direita, sorriu levemente, como
um sábio que já tinha a resposta havia séculos, e disse, com uma simplicidade inesquecível: “Não corrige, não. Não tente convencê-los de
nada. Deixe eles escreverem errado até começarem a perceber que não
está certo. Quando isso ocorrer, quer dizer que estão vivenciando o processo de letramento – a partir daí, não erram mais”. Os colegas fizeram
várias perguntas para nosso convidado, até que chegou de novo minha
vez. Contei a história do Seu Pedro e não perguntei nada, esperando
apenas um comentário. Paulo Freire advertiu que aquele caso tinha, obviamente, uma dimensão diferente da discussão da cidade com C ou S.
Com o otimismo que caracteriza os grandes personagens da história,
ele falou: “haverá um dia em que todos os pintores de parede saberão
176
calcular os metros quadrados de sua produção. Então, mais nenhum
será mandado embora por causa disso”.
************
O nosso curso de alfabetização continuou pelo resto do ano, até que
nossos alunos “se formaram”, com direito a festinha e tudo. Seu Pedro
evoluiu muito na Matemática, para o provável desespero do seu chefe!
Naquele dia, o “teste final” para receber o “diploma” era a leitura de um
texto inédito. Muita alegria marcou aquela despedida.
***********
Três ou quatro anos depois, reencontro Paulo Freire. Não mais naquela
rodinha aconchegante de sábado à tarde. Dessa vez, ele não tem como
saber da minha existência. Sou um pontinho branco (de camiseta Hering...) no meio de uma multidão de estudantes, educadores e interessados em geral que lotam – lotam mesmo – o auditório da Faculdade
de Direito da UFMG, na Praça Afonso Arinos, no centro de BH. Todos
foram assistir a uma palestra de Paulo Freire. Tudo que ele conseguira
evitar naquele encontro secreto acontece agora. A mídia está toda presente, e a repercussão da visita dele a BH é enorme. Na mesa, alguém
anuncia, sem saber que cometia um equívoco histórico: “tenho a honra
de anunciar a presença do mestre Paulo Freire, pela primeira vez em BH
177
após o exílio...”.
Foram vários minutos de aplausos. Vejo o educador de longe e não consigo deixar de lembrar do tijolo, da galinha que a gente “nhassa”, da “sidade” e do três vezes quatro, entre tantas outras lições que aprendi nas
aulas de alfabetização. No final de sua fala, surgem muitas perguntas.
Até que vem a derradeira. Alguém toma o microfone e indaga:
- Paulo Freire, você deve uma explicação para todos nós que te admiramos tanto. Como você pode ser, ao mesmo tempo, um marxista
tão convicto e coerente – com ensinamentos baseados no materialismo
histórico – e um cristão tão fraterno, com base nas palavras de Deus?
A plateia fez um silêncio mortal. Ele apoio o queixo nas mãos, pensou um pouco e disparou: “Puxa, pessoal, deixa o velhinho ter suas
contradições!!!”
178
ARTIGO
MÃE TIGRE
VERSUS MÃE
EDUCADORA
MARIA DO CARMO MANGELLI
> COMO PENSAR A
RESPEITO DE UMA MÃE
QUE DEFENDE O DIREITO
DE CHAMAR SUA FILHA DE
LIXO, E ESTA CONDUTA
SER UM FATOR DE
CRESCIMENTO E
EDUCAÇÃO, SOB A QUAL
OS FILHOS NÃO TERÃO A
MÍNINA POSSIBILIDADE
DE ESCOLHAS E OS SEUS
DESEJOS FICAM
EMBOTADOS DIANTE DA
COBRANÇA DE SUCESSO? <
O tigre, símbolo vivo de força e
poder, geralmente inspira medo e
respeito. Assim começa o livro de
Amy Chua, “Battle hymn of the tiger mother”, em português “Grito
de Guerra da Mãe Tigre”(Penguin
Press)1 mãe que defende a educação rigorosa para que os filhos
possam obter sucesso.
180
Como pensar a respeito de uma
mãe que defende o direito de
chamar sua filha de lixo, e esta
conduta ser um fator de crescimento e educação, sob a qual os
filhos não terão a mínina possibilidade de escolhas e os seus desejos ficam embotados diante da
cobrança de sucesso? Ao começar
a ler o livro de Amy Chua, já me
remeti a uma série de questionamentos que me fizeram refletir
em como seriam meus filhos agora, caso tivessem tido uma educação aos moldes daquela apregoada por essa autora.
Ter e lidar com filhos obedientes
é extremamente fácil. Ter filhos
questionadores é bem mais trabalhoso e instigante. Ouvir do
filho que você está errada, vê-lo
questionar sua posição é também
fazer você pensar e refletir sobre
Mãe tigre versus mãe educadora
sua própria conduta, colocá-la
em xeque e realizar mudanças em
seu modo de agir.
Crescemos e amadurecemos com
os nossos filhos. Eles é que nos darão o feedback para que possamos
continuar a educá-los. Educação é
troca, escuta, compartilhamento.
ção de valores e de autonomia da
criança.
> OS PAIS, NO
IMAGINÁRIO DAS
CRIANÇAS, SÃO OS QUE
OFERECEM MEDIAÇÃO
ENTRE ELAS E O MUNDO,
SÃO QUEM ACOLHE, DÁ
Temos que levar em consideração
a carga afetiva imposta ao aprendiz, seja ele seu filho ou seu aluno,
no caso de educação em sala de
aula2. A carga afetiva em situações de pressão poderá ser mais
devastadora que o fato de cometer algum tipo de erro ou de não
ser tão bem sucedido como querem os pais. Pais ou professores
que agem como uma representação de si no filho/aluno, sobretudo no que diz respeito ao êxito
escolar, põem em risco a constru-
SEGURANÇA,E
SIGNIFICADO AO QUE FOI
APRENDIDO <
Os pais, no imaginário das crianças, são os que oferecem mediação entre elas e o mundo, são
quem acolhe, dá segurança, e significado ao que foi aprendido. Fazer deste ato de educar um ato de
pressão é no mínimo devastador.
Podemos passar da educação
dada pelos pais à educação ofe181
recida pelas escolas. Crianças que
introjetam uma mãe extremamente castradora, rígida, que interrompe os desejos dos filhos em
função dos próprios, poderão levar esta imagem para o professor,
que também é figura de autoridade, e ficarem congeladas nessa
imagem autoritária. O efeito será
sempre o de uma criança acuada
diante de qualquer pressão que
se possa exercer sobre ela.
Se levarmos em consideração que o
aluno aprende com os pais em primeiro lugar e depois com o professor e que o processo educativo não
se resume na acumulação de dados
e de informações, que só visam ao
sucesso profissional, diremos que a
Mãe Tigre pecou por dar uma educação baseada no acúmulo de pretensos sucessos em detrimento do
verdadeiro desejo de aprender.
182
> A MÃE TIGRE É UMA MÃE
DOTADA SE SABERES,
INCLUINDO A CERTEZA DE
SABER SOBRE O DESEJO DO
OUTRO, SEM MESMO QUESTIONAR
ESSE OUTRO SOBRE O SEU
VERDADEIRO DESEJO <
A Mãe Tigre é uma mãe dotada se
saberes, incluindo a certeza de saber sobre o desejo do outro, sem
mesmo questionar esse outro sobre o seu verdadeiro desejo.
Na educação, as antíteses são várias, a começar pelo bem e o mau,
o bom e o ruim, o que sabe e o
que não sabe. A mãe chinesa acha
que é o que é bom.
Se o educador se acha o dono da
verdade, ocupa o lugar da certeza de que o bom para o filho, ou
para o aluno, no caso do professor,
Mãe tigre versus mãe educadora
é o que é bom para ele, já começa
incorrendo no erro de subestimar
a capacidade de julgamento do
aprendiz. A Mãe Tigre, ela tinha a
certeza de que o bom para as filhas era ter sucesso, aprender piano e violino, serem as primeiras
da classe e estudar nas melhores
universidades do mundo, mesmo que a qualquer preço, mesmo com o sacrifício extremo que
incluía horas e horas de estudos
e treinos rigorosos. Aliás, não era
só a certeza; assim se exigia das
filhas, não sendo admitida qualquer outra forma de vida.
> SE O EDUCADOR SE
ACHA O DONO DA
VERDADE, OCUPA O LUGAR
DA CERTEZA DE QUE O
BOM PARA O FILHO, OU
PARA O ALUNO <
Mas sabemos que nada disso é
garantia de sucesso, se não contarmos com o empenho do outro
e o verdadeiro desejo deste de ser
como se espera que seja.
Assim, ela pôde talvez, contar
com a sorte de ter duas filhas que
se enquadraram dentro do perfil
desejado por ela, e que, aparentemente, conseguiram sair ilesas
dessa maratona de sucessos e
pressões. Mas é preciso ter em
mente que essa fórmula não é
necessariamente a do sucesso
para todas as crianças. Hoje há
toda uma geração de crianças e
adolescentes questionadores e
prontos para dizer “não” quando
há exageros em relação à exigência dos adultos, e nossa cultura
valoriza de forma especial este
tipo de conduta.
“Os pais chineses sempre sabem
o que é bom para o filho, e por
isto podem substituir as preferências e desejos dos filhos”1,
pois estes nunca podem fazer
qualquer coisa que não seja ir à
escola para estudar, ao contrário
dos pais ocidentais que permitem ao filho atividades extraescolares e preocupam-se com suas
questões emocionais, acreditam
na escolha individual, valorizam
a independência, a criatividade
e o questionar a autoridade. Assim foram criados os meus filhos:
acreditando e valorizando sua independência, suas escolhas. Hoje
são pessoas bem sucedidas, talvez com alguns arranhões, acredito, pois ninguém sai ileso de uma
educação, mas livre.
As dicotomias na educação existem não só no núcleo familiar,
184
mas também na escola. Há muitas instituições e também muitos professores que estão sempre
marcando a eficiência do bom
aluno, daquele que é o mais inteligente, esquecendo-se de que
existem crianças esforçadas, que
estão no limite de suas capacidades, mas não conseguem alcançar
a excelência.
Como poderemos exigir dessas
crianças um limiar acima de suas
capacidades? Não seria melhor
respeitar o tempo da criança e
deixá-la seguir de acordo com sua
capacidade? Afinal, não caberiam
todas em Yale ou Harvard.
Podemos, a partir deste ponto,
fazer uma reflexão a respeito do
quanto nossa sociedade tem cobrado de nossos jovens em termos de rendimento. Com o siste-
ma de consumo acelerado, os grandes tigres asiáticos se gabando do
sucesso e alta produtividade, sinal de riqueza e sucesso, corremos o
risco de num futuro próximo começarmos a nos aproximar dessa imagem da Mãe Tigre e exigir de nossos jovens além do que nossa cultura
suporta.
Tanto os familiares quanto a escola têm o dever de valorizar o bem-estar e a felicidade de nossas crianças e jovens, estimulando e apoiando
suas escolhas, respeitando seus desejos e aspirações, respeitando-os
como pessoas e, antes de tudo, amando-os verdadeiramente.
1- Cua, Amy. Battle Hymn of the Tiger Mother. New York: The Penguin
Press, 2011.
2- Filho, J.B.M. Ensinar: do mal entendido ao inesperado da transmissão.In: A psicanálise escuta a educação. Eliane Marta Teixeira Lopes, organizadora. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
3- Postic, M. O imaginário na relação pedagógica. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993.
185
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passado, presente e futuro: renasce uma revista de educação