UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO
REITOR:
Adriano Aparecido Silva
VICE-REITOR:
Dionei José da Silva
PRÓ-REITORIA DE ENSINO E GRADUAÇÃO:
Ana Maria Di Renzo
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO:
Áurea Regina Alves Ignácio
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA:
Vera Lúcia da Rocha Maquea
PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVOLVIMENTO INSTITUCIONAL:
Francisco Lledo dos Santos
PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO:
Valter Gustavo Danzer
PRÓ-REITORIA DE GESTÃO FINANCEIRA:
Ariel Lopes Torres
PRÓ-REITORIA DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL:
Celso Fanaia Teixeira
COORDENADOR DO CAMPUS DE TANGARÁ DA SERRA:
Sérgio Baldinotti
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS LITERÁRIOS
Coordenador: Aroldo José Abreu Pinto
Vice-Coordenador: Agnaldo Rodrigues da Silva
Avenida Tancredo Neves, 195 – Carvalhada - Cáceres - MT - 78200-000
ISSN 2176-1841 (digital)
ISSN 1984-0055 (impressa)
P ROGRAMA
DE
P ÓS -G RADUAÇÃO EM E STUDOS L ITERÁRIOS -PPGEL
N ÚCLEO DE P ESQUISA W LADEMIR D IAS -P INO
U NIVERSIDADE DO E STADO DE M ATO G ROSSO
ANO 06, V OL . 08, N. O 08, DEZ. 2013 – T ANGARÁ DA S ERRA /MT – P ERIODICIDADE SEMESTRAL
© copyright 2013 by autores
EDITORES:
Aroldo José Abreu Pinto
Hélvio Gomes Moraes Junior
ORGANIZADORES:
Walnice Aparecida Matos Vilalva
Tieko Yamaguchi Miyazaki
María Eugenia Flores Treviño
CONSELHO EDITORIAL:
Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT)
Antônio Manoel dos Santos Silva (UNESP)
Antônio Roberto Esteves (UNESP)
Dante Gatto (UNEMAT)
Diléa Zanotto Manfio (UNESP)
Diana Junkes Bueno Martha (UNESP/IBILCE)
Emerson da Cruz Inácio (USP)
Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT)
Frederico Góes Fernandes (UEL)
Gilvone Furtado Miguel (UFMT)
Graciela Sánchez Guevara (ENAH-Mx)
Josalba Fabiana dos Santos (UFS)
José Javier Villarreal Álvarez Tostado (UANL-Mx)
Julieta Haidar (ENAH-Mx)
Madalena Aparecida Machado (UNEMAT)
Manoel Mourivaldo Santiago Almeida (USP)
Manuel Cáceres (UGR-ES)
Marcos Siscar (UNICAMP)
Maria de Lourdes Netto Simões (UESC)
María Eugenia Flores Treviño (UANL-Mx)
Mário Lugarinho (USP)
Olga Maria Castrillon-Mendes (UNEMAT)
Susi Frank Sperber (UNICAMP)
Tânia Celestino Macedo (USP)
Tieko Yamaguchi Miyazaki (UNESP-UNEMAT)
Vera Lúcia Rodella Abriata (UNIFRAN)
Vima Lia de Rossi Martin (USP)
DIAGRAMAÇÃO, ARTE CAPA E MIOLO:
Walnice Aparecida Matos Vilalva (UNEMAT)
Aroldo José Abreu Pinto
REVISÃO (PORTUGUÊS):
Tieko Yamaguchi Miyazaki
TRADUÇÃO E REVISÃO (INGLÊS):
Hélvio Gomes M. Junior e Ricardo Marques Macedo
CORRESPONDÊNCIA:
UNEMAT - Secretaria de Pós-Graduação
Rodovia MT - 358, Km 07, Jardim Aeroporto
Tangará da Serra / MT - CEP: 78.300-000.
É proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização dos autores.
Revista Alere / Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários PPGEL - Núcleo Estudos da Literatura de Mato Grosso Wlademir DiasPino, Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitário
de Tangará da Serra - v. 08. n.08, dez. 2013 - Tangará da Serra:
Editora da Unemat, 2013.
Periodicidade semestral
ISSN 2176-1841 (digital)
ISSN 1984-0055 (impressa)
1.Linguística. 2. Letras. 3. Literatura. I. Universidade do Estado de
Mato Grosso
CDU 81
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DE
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Avenida Tancredo Neves, 195
– Carvalhada - Cáceres - MT
CEP: 78200-000
9
APRESENTAÇÃO
15
ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA EM
LITERATURA DO CENTRO OESTE
MEETING OF BRAZILIAN MIDWESTERN
RESEARCH GROUPS IN LITERATURE
Frederico Fernandes
ARTIGOS
23
A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL
EM NUEVO LEÓN - MÉXICO
THE FORMATION OF THE REGIONAL IDENTITY
IN NUEVO LEÓN – MEXICO
Víctor Barrera Enderle; Trad. Tieko Yamaguchi Miyazaki
39
DE LA ‘VERDAD HISTÓRICA’ A LA
‘VEROSIMILITUD NARRATIVA’ DEL TERROR:
LA FIESTA DEL CHIVO (VARGAS LLOSA)
FROM “HISTORICAL TRUTH” TO THE
“NARRATIVE VERISSIMILITUDE” OF TERROR:
LA FIESTA DEL CHIVO (VARGAS LLOSA)
Julieta Haidar
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5
Sumário
63
FICÇÃO E HISTÓRIA SOB O PENSAMENTO DE
WHITE
FICTION AND HISTORY UNDER OF WHITE’S
THOUGHT
João Batista Cardoso
83
MEMÓRIAS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO
BRASIL: UMA LEITURA DE NIHONJIN (2011),
DE OSCAR NAKASATO
MEMORIES OF JAPANESE IMMIGRATION IN
BRAZIL: A READING OF NIHONJIN (2011), BY
OSCAR NAKASATO
Antônio Roberto Esteves
101
O EXÍLIO, A MEMÓRIA E A RELAÇÃO ENTRE
ARTE E HISTÓRIA NA OBRA DE JORGE
SEMPRÚN
EXILE, MEMORY AND THE RELATION
BETWEEN ART AND HISTORY IN JORGE
SEMPRUN’S WORKS
Marcia Romero Marçal
127
A NARRATIVA PICTÓRICA COMO UMA
FRONTEIRA DESLIZANTE EM THE
MADONNA OF EXCELSIOR DE ZAKES MDA
THE PICTORIAL NARRATIVE AS A SHIFTING
BOUNDARY IN THE MADONNA OF EXCELSIOR
BY ZAKES MDA
Divanize Carbonieri
153
MUHURAIDA: ENTRE A ÉPICA E A
HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO
MUHARAIDA: BETWEEN EPIC AND HISTORY, A
LESSON OF NATIONALISM
Tânia Pêgo
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Sumário
177
A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO
DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O
BRASILEIRO VOADOR DE MÁRCIO SOUZA
PARODICDECONSTRUCTIONOFBIOGRAPHICALHISTORICALDISCOURSE IN O BRASILEIRO
VOADORBY MÁRCIO SOUZA
Cléber Luís Dungue
205
IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR: UMA
FICÇÃO TOPONÍMICA
IRACEMA, BY JOSÉ DE ALENCAR: A TOPONIMIC
FICTION
Suene Honorato
229
VIAGEM E EXPLORAÇÃO COLONIALISTA NA
UTOPIA INGLESA CLÁSSICA
VOYAGE AND COLONIALIST EXPLOITATION
IN CLASSICAL ENGLISH UTOPIA
Helvio Moraes
243
DEZESSEIS PALAVRAS QUE CHORAM: UMA
LEITURA DA (DES)CONSTRUÇÃO DA
LINGUAGEM NA CRÔNICA DE ROBERTO
POMPEU TOLEDO
SIXTEEN WORDS THAT CRY: AN
INTERPRETATION OF THE (DE)CONSTRUCTION
OF LANGUAGE IN A CHRONICLE OF ROBERTO
POMPEU TOLEDO
Ricardo Marques Macedo e Aroldo José Abreu Pinto
261
LA PRODUCCIÓN FICCIONAL DE LOS
HABITANTES DEL NORESTE DE MÉXICO: LA
SIMBÓLICA DE LAS DOCE VERDADES DEL
MUNDO
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7
Sumário
THE FICTIONAL PRODUCTION BY NORTHEASTERN
MEXICAN INHABITANTS: THE SYMBOLIC IN LAS
DOCE VERDADES DEL MUNDO
Gabriel Ignacio Verduzco Argüelles e María Eugenia
Flores Treviño
295
LA FUNCIÓN MITOPOÉTICA DEL ‘ÉL ES
DIOS’ DEL ACTO COMUNICATIVO EN LA
DANZA CONCHERA EN MÉXICO
THE MYTHOPOETIC FUNCTION IN EL ES DIOS
OF COMMUNICATIVE ACT IN CONCHERA
DANCE IN MEXICO
José Luis Valencia González
333
A PRÁTICA MIDIÁTICA E A HISTÓRIA: EM
FOCO, O SUJEITO INDÍGENA NO SÉCULO
XXI
THE MEDIATIC PRACTICE AND HISTORY: IN XXI
CENTURY” POR “IN THE 21ST CENTURY
Maria Luceli Faria Batistote e Caroline Hermínio
Maldonado
353
NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE
TRABALHOS
RULES FOR THE SUBMISSION OF ARTICLES TO
ALERE
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O número 08 da Revista Alere está dedicado ao tema Literatura
e História. Nele se reúnem colaboradores das seguintes universidades:
Escuela Nacional de Antropología e Historia (ENAH), México;da
Universidad Autónoma de Nuevo León (UANL), Monterrey,
México; Universidade de Lisboa (FLUL); Universidade Federal
de Goiás (UFG); Universidade Estadual de Londrina (UEL);
Universidade Estadual Paulista (UNESP); Ponfícia Universidade
Católica de São Paulo (PUCsp); Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT); Universidade Federal de Tocantins (UFT);
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e
Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT). Dentro do
amplo universo delimitado pelo dossiê, tanto os objetos quanto as
abordagens, em seu embasamento teórico e na metodologia aplicada,
apresentam uma gama bastante variada, conferindo a este número
da revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários,
da UNEMAT, uma abertura significativa de entendimento da relação
da Literatura com a História. Cremos oportuno que este número
se abra com a palestra proferida pelo professor Frederico
Fernandes, da UEL, por ocasião do encontro de Grupos de Pesquisa
em Literatura do Centro Oeste. Partindo da pergunta: “O que nos
leva a deixar nossas casas para vir para Tangará da Serra, a 240 km
de Cuiabá, para discutir possibilidades de convênio de pesquisa e
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Apresentação
formas de associativismo?”, encontra a resposta: “ [...] está no local
de onde falamos e também na nossa própria trajetória”. Para explicar
em que isso consiste, o professor faz um retrospecto da história da
pesquisa da literatura e da linguística no país, lembrando a criação
de associações como a Anpoll, Abralin, Abralic. E se vale de
Agamben para justificar não só a pesquisa como os grupos
acadêmicos que congregam especialistas de diferentes IES; segundo
o professor, para Agambem, amigo é aquele que age pelo
“consentir” e pelo “condividir”. O consentimento não é entendido
como uma autorização, no sentido de que eu autorizo você a fazer,
eu consinto, mas no sentido de “sentir com” e, se eu sinto com o
outro, torno-me capaz de compartilhar as angústias e prazeres, sou
capaz de dividir o que tenho de melhor.
Tomando como enlace essa visão histórica da pesquisa
acadêmica na atualidade, segue o artigo de Victor Barrera Enderle
que, embora falando do norte do México, pode muito bem servir
como norteador da leitura dos demais textos deste número da
revista. A literatura produzida no estado mexicano de Nuevo León
comparece nesse artigo cujo núcleo de preocupação se traduz na
pergunta sobre a propriedade e acerto em denominar-se a produção
literária nessa região como “Literatura do Norte”. Isto em vista das
transformações histórico-culturais , em que o Estado, enquanto o
patrocinador cultural por excelência, foi perdendo a hegemonia para
as indústrias culturais, para as editoras transnacionais.
Classificando-se como abordagens que privilegiam a relação
entre o discurso historiográfico e o literário, seguem-se os trabalhos
de Julieta Haidar, João Batista Cardoso, Antônio Roberto Esteves,
Márcia Romero Marçal, Tânia Pego, Divanize Carbonieri, Cléber
Luís Dungue, Suene Honorato, Helvio Moraes, Ricardo Marques
Macedo e Aroldo José Abreu Pinto.
Julieta Haidar focaliza o romance de Mário Vargas Llosa, La
fiesta del chivo, em que, segundo a autora, se entrelaçam o ficcional e
o histórico de forma tão estreita, o segundo parece superior ao
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Apresentação
primeiro, problematizando a fronteira entre eles. Fato que parece
dever-se ao próprio desenvolvimento da América Latina e do Caribe.
Aspectos fundamentais a examinar são, de um lado, “ el
funcionamiento de lo prohibido, de los tabúes, en la reconstrucción
de la memoria histórico-política del trujillismo”, e, de outro, a
repercussão que o romance teve em países com Santo Domingo,
Peru, Espanha.
Nas obras Meta-história: a imaginação histórica do século XIX
e Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, de Hayden
White, se inspira João Batista Cardoso, em seu artigo em que
aproxima Euclides da Cunha, de Os sertões, e Vargas Llosa, de A
guerra do fim do mundo, na análise de operações que possibilitam a
compreensão da relação de um texto de pretensão histórica e outro,
de cunho literário.
Segundo Antônio Roberto Esteves o livro premiado Nihonjin,
de Oscar Nakasato, ao retomar o tema da imigração japonesa ao
Brasil, não o faz numa orientação épica, “pouco apropriadas aos
tempos de globalização”, e a desloca para ponto de vista da
“aventura de se tornarem brasileiros.” Isso visto não pela perspectiva
de um imigrante mas de um filho e neto de imigrante que procura
recuperar pela lembrança o que ouvira de seus familiares e preencher
pela imaginação as lacunas do que teria sido essa saga. Em lugar de
privilegiar a luta propriamente dos primeiros imigrantes em terra
brasileira, como fizera Gaijin, de Tizuka Yamazaki, o livro focaliza
o drama de pequenos grupos frente ao dilema da recusa ou aceitação
da resultado da segunda Grande Guerra.
Em O exílio, a memória e a relação entre arte e história na obra de
Jorge Semprún, Márcia Romero Marçal focaliza a obra La escritura o la
vida (1994) desse escritor espanhol, bilíngüe, roteirista de filmes
como La guerre est finie, de Alain Resnais (1966) e Z, de Costa-Gravas
(1970). Semprún foi membro importante do partido comunista
espanhol. Mas nada mais marcante em sua história que Buchenwald.
Nessa obra, diz a autora “o narrador questiona seu regresso de
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Apresentação
Buchenwald ao mundo “civilizado”, através do uso especial do termo
“ressuscitado” ao invés de sobrevivente, ao mesmo tempo em que
concebe o espaço do lager como a pátria-origem enquanto que o
mundo como lugar de eterno exílio. Tal procedimento semântico
nos informa que não há retorno ou futuro para quem esteve nos
campos de concentração cuja catástrofe corresponde a uma perda
irrecuperável”.
The Madonna of Excelsior (2002), do sul-africano Zakes Mda, é
o objeto da artigo de Divanize Carbonieri, para a qual iniciar-se
cada capítulo desse romance pela descrição de pinturas é uma
estratégia para a criação de uma metaficção historiográfica, cujo
foco é o momento intervalar entre o período do apartheid e o seu
fim. O interesse da análise de Carbonieri é a possibilidade de ler-se
essa relação entre narrativas pictóricas e o todo da obra como
“fronteiras textuais e metafóricas e o deslizamento entre violência e
reconciliação.
Trabalhar a hipótese de que Muhuraida – normalmente
considerado um poema heroico - possa classificar-se como um
poema heroico-religioso é o que faz Tânia Pego, baseando-se na
religiosidade que nele se manifesta. Henrique João Wilkens recria
em sua obra um acontecimento de seu tempo, a pacificação da tribo
Mura, e nela “revela um certo sentimento patriótico, sustentado por
uma velada denúncia dos abusos cometidos pelos colonizadores e
missionários contra os índios”.
A relação entre o discurso historiográfico e o literário é
também o objeto de pesquisa de Cléber Luís Dungue; a literatura
aqui na forma de biografia como se tem escrito atualmente. A figura
escolhida é Santos Dumont e a obra, O brasileiro voador, de Márcio
de Souza. Segundo o autor do artigo, a livro se estrutura como uma
paródia, em que se desconstroi o mito nacional , livrando o inventor
da ossificação histórica.
“A leitura do romance, cotejada com textos críticos do
próprio Alencar, mostrará” – afirma Honorato em seu artigo sobre
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Apresentação
Iracema, “como a máscara assumida por esse personagem-narrador
parece condizente com o projeto alencariano de consolidação da
língua e literatura no Brasil, que pretendia a criação de novas formas
de expressão, de novos tipos literários, em conformidade com a
originalidade da natureza brasileira”.
Os primeiros escritos utópicos ingleses (Utopia de Morus e A
Nova Atlântida de Bacon) são estudados por Helvio Moraes,
comparando as concepções de um e outro quanto a colonização do
Novo Mundo, na construção idealizada do mundo outro; analisa
também relatos feitos pelos interlocutores do viajante em relação à
forma como são tratadas as populações nativas.
“Dezesseis palavras que choram”, crônica de Roberto Pompeu
Toledo, publicada na Revista Veja, toma como tema a reação
provocada pela fala do governador do Distrito Federal (2002), em
que ele incitaria a crime de preconceito racial, ao convocar a
população, numa manifestação/comício na cidade-satélite de
Brazlândia, a uma “salva de vaias” a um aposentado negro que se
encontrava próxima a uma faixa de protesto produzida por
militantes do Partido dos Trabalhadores. Ricardo Marques Macedo
e Aroldo José Abreu Pinto confrontam o texto do discurso e os
argumentos da defesa do Governador contra a imputação do crime.
Não só a literatura oficial comparece: manifestações de
minorias e em outros suportes são consideradas em textos de Gabriel
Ignacio Verduzco Argüelles e María Eugenia Flores Treviño, José
Luis Valencia González, Luceli Faria Batistote e Caroline Hermínio
Maldonado.
Gabriel Ignacio Verduzco Argüelles e María Eugenia Flores
Treviño se dedicam a pesquisar a tradição oral, o imaginário popular
que se manifesta em relatos carregados de imagens simbólicas.
Dentre eles, os autores escolhem Las doce verdades del mundo, do estado
mexicano de Coahuila. Trata-se de um ritual para aprisionar bruxas.
Partem os autores da hipótese de que a produção simbólica nesses
relatos está condicionada pelo contexto vital, cujos sinais se
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Apresentação
identificam na peculiaridade de cada relato, ou no apelo à consciência
religiosa do ouvinte.
É o mitopoético, manifesto nas funções comunicativas, que
interessa a José Luis Valencia González ao analisar o enunciado
discursivo “El es Dios”, pronunciado durante o ritual da dança
conchera mexicana. Segundo explica o autor, trata-se de uma dança
que se pratica em várias regiões do país, e tem origem em tempos
pré-colombianos. Nessa análise, Valencio se apoia Iuri Lotman, na
Semiótica da Cultura da Escola de Tartu, e em Roman Jakobson.
A prática midiática e a história: em foco, o sujeito indígena no século
XXI: numa abordagem semiótica, Maria Luceli Faria Batistote e
Caroline Hermínio Maldonado analisam um texto jornalístico
veiculado em 2009, pelo jornal Correio do Estado: uma foto montagem
em que a figura de um indígena, da tribo terena, aparece vestido, de
um lado, de terno e gravata e, de outro, de fibras de buriti,
acompanhadas de cocar, colares e com a parte do rosto pintado.
Priorizando os níveis textuais da tematização e figurativização, as
autoras buscam os efeitos de sentidos decorrentes do processo de
textualização, na construção de uma identidade.
TIEKO YAMAGUCHI MIYAZAKI
WALNICE APARECIDA MATOS VILALVA
MARÍA EUGENIA FLORES TREVIÑO
ORGANIZADORES
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ENCONTRO DE GRUPOS DE
PESQUISA EM LITERATURA
DO CENTRO OESTE
MEETING OF BRAZILIAN
MIDWESTERN RESEARCH
GROUPS IN LITERATURE
Frederico Fernandes
(UEL)1
O convite da professora Walnice Aparecida Matos Vilalva me
instigou a fazer a seguinte pergunta: o que nos leva a deixar nossas
casas para vir para Tangará da Serra, a 240 km de Cuiabá, para
discutir possibilidades de convênio de pesquisa e formas de
associativismo? O que há em comum entre pesquisadores de Vilhena,
Cuiabá, Três Lagoas, Londrina e Tangará da Serra que os move num
espírito de projeto comum? Penso que a resposta para estas questões
está no local de onde falamos e também na nossa própria trajetória:
fomos formados em universidades brasileiras classificadas entre as
1
Doutor em Literatura pela UNESP-Assis e pós-doutorado pela Brock University- Canadá. É
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina.
[email protected].
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ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA EM LITERATURA DO CENTRO OESTE
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top 500 do planeta (e paga a pena mencioná-las, pois tem sido delas
que têm saído, há mais de 3 décadas, as principais lideranças
intelectuais da pesquisa em Letras e Linguística do País: USP,
UNICAMP, UFRJ, UFMG, UNESP, UFRGS)2, fomos aprovados
em concursos públicos em instituições cuja pós-graduação se
encontra em fase de afirmação /consolidação, fizemos o exercício
de lideranças científicas em nossas IES, às vezes, assumindo cargos
de coordenadores de Grupos ou Comissões de Pesquisa, Grupos
de Trabalho junto a associações importantes como Abralic, Abralin
e Anpoll ou de Programas de Pós-Graduação. Em resumo,
protagonizamos um papel político da pesquisa no sentido em que
Gramsci o percebe, como o exercício do intelectual orgânico,
daquele intelectual que pesquisa e, na medida do possível, busca
fazer a gestão do conhecimento.
E é esse exercício que nos leva a querer pensar numa relação
associativa que não apenas nos legitime enquanto intelectuais de
instituições que não aparecem no ranking das 500 universidades mais
importantes do planeta, o ranking de Xangai, mas que anseiam por
ter voz no centro de decisões das políticas da área de Letras e
Linguística do País. E não é por acaso que a área tenha atualmente
como seu coordenador junto à CAPES um professor da UFPB após
uma longa tradição de uspianos, e haja três membros no comitê de
assessoramento do CNPq (entre 8) vindos de IES como UFS, UFPE
e PUC/RJ. Mas ainda é muito raro ver representantes de IES do
Paraná ou do Mato Grosso, e quem dirá de Rondônia, ocupando
representações, pois o “fora do eixo”, nesse caso, tem sido quando
muito representado pelo Nordeste.
Entendo que a hegemonia de docentes advindos das 6 IES
brasileiras (que não por acaso compõem o ranking de Xangai) à
frente da CAPES, do CNPq como também das 3 mais importantes
associações da nossa área no País (em que pese o fato de que a Abralic
esteja atualmente em Belém, assim como a Abralin, e a ANPOLL
na UFSC) é fruto de uma tradição associativa protagonizada por
intelectuais pesquisadores da área que não merece ser menosprezada
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ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA EM LITERATURA DO CENTRO OESTE
F REDERICO F ERNANDES
numa reunião como esta. Parece-me importante observar que a área
de Letras e Linguística desempenha um papel de pouca importância
para o rankeamento das 6 IES mencionadas, já que para este ranking
é levado, principalmente, em conta o fator de impacto de artigos
publicados – o fato H. E nós temos apenas 3 revistas brasileiras na
área de Letras e Linguística com fator de impacto, segundo
classificação do SJR de 2010: Revista Alea (classificada nas áreas de
Linguística e Língua e de Literatura e Teoria Literária), Delta (somente
na área de Linguística e Língua) e Revista de Letras Unesp (na área de
Litertaura e Teoria Literária). A leitura do Science Journal Reference
(SJR) me levou às seguintes observações à época, resumidas aqui
em 3 tópicos:
A área de Letras, Linguística e Artes apresenta indicadores
muito inferiores à Odontologia e Educação nos níveis nacional,
latino-americano e internacional.
Revistas conceituadas da nossa área não apresentam impacto
de citação internacional, não sendo sequer classificadas.
Esse impacto não é alcançado porque a nossa pós-graduação
é refratária ao diálogo com a comunidade internacional.
Voltando ao objetivo desta fala, se por um lado a nossa área
parece contribuir pouco, por outro, há nas 6 IES, classificadas pelo
ranking Xangai, uma tradição no fazer da pesquisa que capacita seus
pesquisadores a protagonizarem lideranças científicas na área de
Letras e Linguística do País. Assim, não se trata apenas de legitimar
um discurso do “fora do eixo”, se este “fora do eixo” representar
apenas a inserção do Nordeste na mesa já ocupada pelo Sudeste e
pelo Rio Grande do Sul. O discurso do fora do eixo não deve apenas
ter como argumento a difícil realidade em que vivemos, as enormes
dificuldades que enfrentamos para estarmos onde estamos, o fato
de que nos lamentamos em não protagonizar papeis políticos
importantes, mas deve (e aí ele começa a se tornar atrativo para
mim) pensar criticamente o nosso próprio fazer, a nossa prática de
pesquisa, a maneira como, a nosso modo, faremos parte da história
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ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA EM LITERATURA DO CENTRO OESTE
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da pesquisa em Letras e Linguística no País. Em outras palavras,
enquanto o discurso do “fora do eixo” tiver um tom disjuntivo (do
nós VS. o eles), pouco estaremos contribuindo para o crescimento
da área de Letras e Linguística no País e estaremos correndo o sério
risco de trocarmos 6 por meia dúzia. Para mim, pensando em Alberto
Moreiras e, também, em Giorgio Agamben, é somente na crítica da
amizade, na interlocução aberta, franca de igual para igual com o
outro, que se pavimenta o avanço benéfico a todos. É somente na
amizade, como diria Agamben, que podemos pensar o fazer político.
Se o que nos move é o desejo de sermos representantes no centro
das decisões por acharmos que somos “o de fora”, então começamos
nosso projeto da mesma maneira equivocada do que aqueles que
hoje questionamos, mas se nosso desejo for o de ter voz, for o de
apresentar-se para o debate, e se nossa atitude for a da amizade, aí
sim teremos uma chance de fazer a subsunção da pesquisa em Letras
e Linguística no País.
Volto para Tangará, estamos numa reunião, a meu ver, que
nos inspira a amizade. Não se trata da amizade íntima e pessoal que
muitos de nós demonstramos ter um com os outros devido aos
vários anos de convivência. Para explicá-la recorro mais uma vez a
Agamben: amigo é aquele que age pelo “consentir” e pelo
“condividir”. O consentimento não é entendido como uma
autorização, no sentido de que eu autorizo você a fazer, eu consinto,
mas no sentido de “sentir com” e se eu sinto com o outro, torno-me
capaz de compartilhar as angústias e prazeres, sou capaz de dividir
o que tenho de melhor. O condividir não é uma relação generosa,
não sou amigo porque sou bonzinho ao doar algo, mas porque
acredito que se eu compartilho fortaleço o espírito comum, do qual
também me beneficio. E prestem atenção nessas duas palavras:
espírito comum.
Lembro que Bachelard falava da diferença entre alma e
espírito, enquanto a primeira dizia respeito a uma essência, o segundo
dizia respeito a um modo de ser, uma forma de estar e agir no
mundo. Volto com a questão inicial, agora reconfigurada, qual é o
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nosso espírito comum aqui em Tangará nesse dia 06 de setembro?
Não é o ato de assinatura de um convênio. Concordo que ele
dará uma legitimidade institucional a nossas ações, mas ele não é o
espírito que buscamos. A pergunta que me faço é como podemos
criar espaços propícios para a condivisão? E vejam que a criação
destes espaços pode funcionar como uma estratégia para sair da
lógica perversa e competitiva que a CAPES/CNPq nos empurram.
Aí me parece que as redes colocam-se como uma possibilidade para
realização do espírito comum de que falo. Mas é necessário que,
para tanto, pensemos isso conjuntamente.
Para falar de rede, recorro a um biólogo aposentado da UEL,
o prof. Luiz Carlos Bruschi, que publicou um livro intitulado A rede
autopoiética, no qual busca uma compreensão da Biologia não a partir
de uma ordem evolucionista das espécies, mas como uma
colaboração entre elas. A seu ver, a variedade de seres é fundamental
para a trama da rede da vida porque o princípio de evolução não
reflete a adaptação da espécie apenas para a sobrevivência de si,
mas a da outra. Como ele observa: “A organização da vida é feita
em rede, não havendo organismos vivos que não mostrem formas
de associação interna e com o meio que os circunda; os organismos
vivos são sistemas abertos que trocam matéria e energia com o meio,
mantendo-se íntegros à custa do aumento da desordem térmica desse
último, e permanecem em constante autoconstrução.”
Fica subentendido na apresentação do livro do prof. Bruschi
que a rede vai se caracterizar pela amplitude, pela diferença e pela
interseção entre os seres nela envolvidos. No caso do conhecimento
científico, a constituição de redes não é algo inusitado e talvez as
duas iniciativas mais conhecidas do século atual sejam o acelerador
de partículas LHC, que ocupa 27 km de subterrâneo na fronteira
entre a França e a Suíça, e o Projeto Genoma. Sobre este último, ele
foi proposto no ano de 1987, após 15 anos de preparação, pelo
Departamento de Energia do Governo dos Estados Unidos. Teve
por principal objetivo detectar a composição química do DNA
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humano. A sequência do genoma humano foi declarada completa
em 2003. O projeto recebeu aporte de 3 bilhões de dólares durante
sua fase de implantação. Para tanto, foi criado um consórcio com o
Reino Unido, Austrália, Japão e França, envolvendo pesquisadores
geneticistas de outros países. (a respeito ver, DeLisi, Charles (1988).
The Human Genome Project. American Scientist 76: 488.)
Mas estas redes parecem ser muito distantes de nossa realidade
local e também de nossa área de conhecimento. Além de nunca
termos ouvido falar em projeto de 3 bilhões de dólares, há na
constituição delas um princípio contributivo (e vejam que não estou
falando de impostos), no qual é delineado um objetivo comum
responsável por envolver cientistas de várias partes do mundo. Desse
modo, a contribuição, por meio do trabalho de formiguinha de cada
um, vai levar ao cumprimento de uma meta que parece encerrar a
rede ao ser definida.
Nós, das Letras e Humanidades, ao contrário, constituímos
redes a partir de um princípio rizomático em que um tema se liga a
outro, e a outro e assim por diante. Não fiz o levantamento da média
de idade dos 42 GTs das ANPOLL, mas seria curioso saber disso,
pois os GTs são redes de pesquisadores que parecem ter longos
anos de vida. O qual participo, por exemplo, tem certamente mais
de 20 anos de duração, só eu sou filiado a ele há pelo menos 15
anos. O Atlas Linguístico do Brasil (ALIB), uma rede de
pesquisadores da variação lexical e linguística, possui mais de 10
anos de existência e é constituído por pesquisadores que revistam a
variação e promovem o mapeamento contínuo das variantes
regionais.
Outra característica de nossas redes, e aí estou trazendo o
debate para o Centro-Oeste, é que às vezes elas se constituem por
critérios geopolíticos, como por exemplo, a Rede CO3. O princípio
regional proposto pela CO3 é muito significativo se pensarmos o
debate inicial sobre estratégias de legitimação de pesquisas fora do
eixo. E me parece que a fala de seus participantes vai muito nesta
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direção. Ainda sobre a CO3, ela se abre para além da área de Letras
e Linguística e promove o debate inter e multidisciplinar.
A inter e multidisciplinaridade torna-se um grande entrave
quando a constituição de rede em nossa área é pensada a partir dos
Grupos de Trabalho da ANPOLL que, em seu regimento, inibe a
participação de filiados que não pertençam a programas de Letras e
Linguística.
Este é um grande problema enfrentado pelo GT de Literatura
Oral e Popular que, para superá-lo, criou a Rede Cartografia de
Poéticas Orais. Esta rede foi gestada por 4 anos antes de se tornar
um projeto. A rede Cartografia tem por objetivo colocar o
pesquisador da poética oral frente a diferentes correntes de
pensamento e também provocar o diálogo entre elas. Permite a ele
ter um olhar crítico sobre o seu próprio fazer de pesquisador, de
modo a pensar conceitos e formas de relacionamento com seu objeto
de pesquisa. Vista nesta perspectiva, uma abordagem cartográfica
acolhe diferentes olhares críticos em torno da poética oral e propicia
o debate regional em torno de ideias. A rede de pesquisadores é
nacional, constituída em torno do tema poéticas orais, em que cada
nó é formado para a compreensão teórico-crítica de textos poéticos
orais.
A rede possui vários produtos, entre eles, cabe mencionar a
Revista Boitatá e o Portal de Poéticas Orais.
Pensando em específico no Portal de Poéticas Orais, ele tem
por objetivos:
Sair do eixo criando espaços alternativos para produção e
circulação da cultura acadêmica voltada para a pesquisa em poéticas
orais. Isso implica esclarecer preconceitos sobre o objeto na própria
academia e enfrentar discursos que visam --deslegitimar a poesia
oral em meio ao texto poético impresso.
Promover o diálogo entre pesquisadores de diferentes
instituições, mediado pela crítica da amizade explicitada acima.
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Criar mecanismos para a integração e cooperações entre
pesquisadores em seus projetos de pesquisa. Isso é ainda o grande
desafio que se coloca para nossa rede.
Compartilhar e ajustar referenciais teóricos, bem como criar
um canal para disseminação e referência de busca de trabalhos de
pesquisa na área.
Fundamentar o saber produzido numa abordagem holística e
gerar produtos que atendam aos anseios das comunidades por nós
pesquisadas. Afinal, qual é a função última do pesquisador, apenas
escrever teses, dissertações e artigos?
Acredito que a Rede Cartografia de Poéticas Orais, ao colocar
em tela especificidades de um produção poética que ainda luta pela
sua legitimação nos meios acadêmicos na área de Letras, está também
constituindo uma forma de associação e de relacionamento com a
pesquisa específicos, isto é, diferente das formas mais tradicionais
de associação da qual somos herdeiros e que no melhor sentido
nietzschiano (se é que podemos chamá-lo de melhor) agimos para
superá-la.
Nota
2
Trata-se do ranking de Xangai, divulgado no último mês de agosto de 2013, que pode ser
acessado pelo endereço: http://www.shanghairanking.com/ARWU2013.html
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A FORMAÇÃO DA
IDENTIDADE REGIONAL EM
NUEVO LEÓN – MÉXICO
THE FORMATION OF THE
REGIONAL IDENTITY IN
NUEVO LEÓN – MEXICO
Victor Barrera Enderle
(UANL-Mx)1
Tradução: Tieko Yamaguchi Miyazaki
(UNEMAT)2
RESUMO: Este ensaio trata da recente elaboração de uma
categoria de classificação literária: a “Literatura do Norte”. A
literatura mexicana recente tem experimentado uma série de
transformações profundas. A hegemonia das indústrias culturais
tem promovido deslocamentos profundos no interior do campo
literário. A antiga centralização cultural se viu deslocada por no1
Docente de graduação e Pós-Graduação em Literatura e Ensino, da Faculdade de Filosofia e
Letras (FFyL) da Universidade Autônoma de Nuevo León (UANL), Monterrey, México.
[email protected]
2
Docente do Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato
Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. Mato Grosso.
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A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL EM NUEVO LEÓN - MÉXICO
VÍCTOR B ARRERA ENDERLE; TRAD . TIEKO YAMAGUCHI MIYAZAKI
vas formas de ordenação e difusão da literatura. O Estado, antigo
patrocinador cultural, perdeu seu lugar de protagonista para as
novas editoras transnacionais que reorganizaram a cartografia
das letras mexicanas sob critérios mercadológicos. Ao Norte
correspondeu uma narrativa centrada em alguns tópicos: fronteira,
narcotráfico, migração, deserto, etc. O presente ensaio aborda as
diferentes manifestações desse processo.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura mexicana. Literatura do
Norte. Indústrias culturais. Fronteira.
ABSTRACT: This essay reflects on the recent development of
what it seems to be a literary category:” Northern Literature”.
Recent Mexican literature has undergone a series of profound
transformations. The hegemony of cultural industries has produced deep movements into the literary field. Former cultural
centralization was displaced by new forms of organization and
dissemination of literature. The State, old cultural sponsor, lost
its leading role among the new transnational publishers that
reorganized the maps of Mexican literature under market
logics. In the North, the narrative had to be centered on a few
topics: borderland, drug trafficking, migration, desert, etc.. This
essay discusses the different expressions of this process.
KEYWORDS: Mexican literature; Northern Literature; Cultural
industries; Borderland.
Mas quando surge a identidade de Nuevo León? Melhor: como
se forma? Quais são as estratégias (políticas, sociais, culturais,
lingüísticas, literárias) idôneas para sua configuração? É evidente que
a identidade da região não nasce espontaneamente, de um dia para
outro; ainda que ela tenha se consolidado, em nosso caso, em um
período preciso: a independência. A emancipação política reavivou
na região uma antiga disputa sobre um assunto de capital
importância: a representação jurídica de seus habitantes. A
transferência da condição de súditos de uma monarquia longínqua e
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autoritária à de cidadãos de uma nação nova e com “futuro
venturoso” avivou os desejos de participação e discussão da
incipiente elite política local. Era preciso gestão de uma
representação favorável aos interesses da comunidade (públicos e
privados). Entretanto o problema de base era muito mais importante
e obedecia à necessidade de construir uma imagem, uma ideia, uma
experiência, uma identidade do espaço e da sociedade locais.
Ninguém melhor que frei Servando Teresa de Mier
compreendeu essa conjuntura: dele me ocuparei um pouco mais
adiante. O novo problema: a relação com o centro. Durante a
administração colonial, a região recebia um tratamento “legalmente”
subordinado às autoridades monárquicas e religiosas; agora as coisas
tinham mudado drasticamente. Existia a possibilidade de uma relação
menos vertical com os poderes representativos da nação.
Com relação a este assunto há algumas questões fundamentais
que é preciso definir, ainda que de maneira sucinta. Antes de mais
nada está uma palavra antiga que nesse momento ganhava um
significado novo: nação. A nação havia sido, nos tempos anteriores à
modernidade ocidental, uma designação regional; com o advento
da Ilustração e a elevação da razão como principal instrumento de
organização política, a nação havia adquirido uma designação
hegemônica, política: o suporte e a legitimação do Estado soberano.
Antes de prosseguir pelo sinuoso caminho da formação dos
estados modernos, vou me deter no termo nação e me valho da
definição que lhe dá o historiador inglês Eric Hobsbawn: “ A
característica básica da nação moderna e de tudo que se relaciona
com ela é a sua modernidade”. Antes da modernidade, nação
significava, como acabo de assinalar, o “conjunto” de habitantes ou
súditos de uma província, região, país ou reino. Foi o pensamento
moderno, isto é, a racionalização das novas funções públicas, que
configurou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, a acepção moderna
do termo: “Estado ou corpo político que reconhece um centro
comum supremo de governo.” (HOBSBAWN, 2000, p.23).
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A grande mudança: a união de governo e nação. Esta unidade
fortalece a elaboração de uma simbologia particular que fará seus
habitantes (governados e governantes) se reconhecerem em um
mesmo território discursivo. Na etapa pré-moderna, a nação, na
medida em que se referia a uma região ou território, dificilmente
constituía uma unidade política (fora das fronteiras estritamente
regionais), embora, isso sim, configurasse um espaço identitário que
se diferenciava de outros através de uma série de elementos básicos:
língua comum, raça, tradições etc, e esse aspecto é digno de ser
lembrado ao se refletir sobre a crítica e a literatura de alguma região.
A nação moderna, ao ser uma elaboração simbólica realizada
na esfera do Estado, tenderá a “eliminar” as características regionais
(fundamentos da antiga acepção do termo em questão) nas aras da
configuração d “o nacional”. Assim, um país, dotado de uma ou
várias nações dentro de seu território, se consolidará, em seu
processo de modernização, como um todo homogêneo, ou seja,
como um discurso coerente em que se articulem a memória histórica,
a língua hegemônica e o discurso político do governo em funções
públicas e sociais perfeitamente definíveis, tudo com a finalidade de
consolidar uma identidade coletiva sólida e garantia da nova vida
política do país.
Na América Latina o processo foi mais intenso. A formação
dos Estados-nacionais se viu precedida (e cimentada) pelas lutas de
emancipação. As independências colocaram as novas repúblicas na
necessidade de projetar um modelo de organização política que
garantirá a coesão entre os novos governantes e os novíssimos
cidadãos. O grande repto: a demonstração plena da capacidade
para o manejo dos assuntos públicos. Os novos problemas: a
formação cidadã de seus habitantes e a implementação dos modernos
sistemas políticos e econômicos. Porque devemos lembrar que o
período da emancipação de nossos países “coincide” com um
momento de expansão da economia capitalista, mais
especificamente, com o auge do imperialismo ocidental. O próprio
processo revolucionário hispano-americano foi projetado como uma
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possibilidade comercial para as novas potências do norte da Europa,
Inglaterra e França, ou pelo menos assim foi apresentado em Londres
pela primeira missão da Venezuela independente em 1810,
comandada por Simón Bolívar e Andrés Bello.
A América Latina começava, assim, o seu diálogo com o
mundo ocidental (suprimo aqui a relação com Espanha, não somente
por ser esta uma monarquia “pré-moderna”, mas também pela
hierarquia colonizadora que impôs em nossas regiões, tal imposição
subministrou uma infinidade de elementos – língua, cultura, religião,
formas de governo, literatura, artes; mas jamais promoveu um
diálogo equitativo entre as duas partes) em termos que se pensavam,
em um princípio, em harmonia. Para a intelectualidade hispanoamericana ( desde os jesuítas expulsos até os primeiros críticos
insurgentes) a América hispânica apresentava todas as vantagens para
a inversão e o desenvolvimento (claro, eles se sustentavam em
documentos europeus, como El Ensayo político del Reino de la Nueva
España, do barão Humboldt e outros: a literatura de viagens e em
especial a literatura sobre a América espanhola que ganhou desde o
século XVIII uma importância nada desdenhável. As economias
em expansão procuravam com afã novos mercados e novas fontes
de matérias primas e tinham agora o discurso científico – filho
preclaro da modernidade – como via para legitimar suas empresas
colonialistas e comerciais).
Com um futuro tão próspero ad portas, a intelectualidade
hispano-americana, debutando na discussão aberta dos assuntos
públicos (recordemos a luta inicial desses sujeitos críticos por impor
uma opinião pública, ou seja, um espaço discursivo liberado das
censuras oficiais e religiosas), tinha como principal repto a definição
de suas formas de governos. Era preciso e urgente demonstrar ante
o mundo uma liberação total, verificável em todas as ordens (do
econômico até o artístico).
Agora bem, nessas discussões “ fundamentais” (a criação das
novas repúblicas está em jogo, não menos que isso), há outro termo
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fundamental que requer nossa atenção: o de soberania. A soberania é
a garantia maior da existência jurídica do Estado-nação. A aparição
do sujeito soberano consolida o discurso da modernidade e o define
espacial e temporalmente. O ser humano deixa de ser uma abstração
e se converte em um sujeito consciente, dotado de uma autonomia de
pensamento e ação. Isto implica que os novos sistemas ou formas
de governar devem – ou deveriam, pois a realidade foi sempre outra
– sustentar-se em um diálogo mútuo entre governantes e governados.
A soberania se sustenta pela constituição que é um documento
moderno por excelência (excluo aqui as constituições monárquicas
que sustentavam a sua validade por contratos divinos ou metafísicos,
tornando seus reis ou imperadores vicários de deus ou de alguma
outra divindade), ali se estabelecem relações em termos de
representatividade.
O discurso jurídico do Estado-nação busca a
representatividade de todo o território sob a sua custódia. E a partir
dessa instância reelabora a idéia de nação e a “constroi” como uma
narração coerente e plena de significação. Tal plenitude inclui
certamente os campos artísticos, e muito significativamente o terreno
literário. A literatura transmite uma experiência (estética, ideológica,
crítica, ontológica ) única, mas compatível com outras experiências.
A ficção literária é, nesse momento de fundação, suporte para a
imaginação nacional (e regional, consequentemente). Porque a ficção
torna verossímil o discurso liberal configurado pelo pensamento
moderno; vai mais além das restrições da realidade grosseira. Uma
sociedade nova, imaginada através da escritura, se converte no tópico
principal desse momento formativo.
É certo, a nação moderna, no Ocidente, vai acompanhada
da letra impressa. Da reprodução mecânica da escritura, o que
provoca, no caso latino-americano, uma cisão profunda e ainda não
resolvida: a oposição entre oralidade e escritura. Eu disse não
resolvida porque a escritura ganhará em nossos territórios uma
significação não somente jurídica mas também social e fará das
expressões orais uma forma de marginalização. A escritura será a
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princípio manifestação hegemônica, propriedade das elites ilustradas
locais. Sua fórmula: a exclusão; sua garantia: o código compartilhado
por alguns poucos. Poder, em uma palavra. Mas também
acessibilidade. A grande mudança da era insurgente foi a discussão
pública das idéias, dos valores cívicos e dos paradigmas estéticos.
Uma vez desarticulado o monopólio do sistema colonial,
pôs-se em discussão o trato dos assuntos públicos das novas nações.
Quem se encarregaria agora do poder e do controle da
representação? Que tipo de nações seriam esses novos países? Na
introdução deste ensaio falei da fórmula herderiana que unia
discursivamente a nação com a língua específica e com uma tradição
bem configurada às necessidades do presente; pois bem, no caso
latino-americano, a fórmula calhava com perfeição, pois sua
aplicação supunha um forte grau de exclusão.
A situação era clara: torna-se claro um contundente processo
de diferenciação com relação ao exterior (em particular, com relação
à antiga metrópole) e um coerente processo de assimilação com
relação do interior. Diferenciação: porque era preciso demonstrar a
existência de uma civilização própria, de uma cultura autônoma,
possuidora de uma tradição, isto é, com um passado cheio de
significação simbólica. Assimilação: porque, ao contrário das
culturas metropolitanas (que contavam com uma “antiguidade
literária” legitimadora de suas produções atuais), as nações hispanoamericanas deviam construir seu passado de maneira heróica e
estética, fazer dos costumes locais uma fonte de inspiração artística
e a base da identidade nacional. O problema não era simples: como
dotar de literariedade uma língua que foi imposta pelo conquistador?
Isto é, como dotar de um caráter próprio um idioma herdado? Eis
aqui a principal tarefa no nascente campo literário hispano-americano.
E eis aqui também a sua estreita relação com os processos
discursivos dos novos projetos de nação.
Por isso é inevitável a contextualização no momento de ensaiar
uma interpretação crítica. É preciso, é quase uma necessidade
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imperiosa deixar momentaneamente de lado as noções herdadas e
impostas através de quase duas centúrias de preceptivas e modas
literárias. Atrevemo-nos a duvidar de tudo, como sugeria Pedro
Henríquez Ureña em seus Seis ensayos em busca de nuestra expresión.
Apontamentos sobre uma teoria crítica regional latinoamericana
O tema que me preocupa aqui é a possibilidade de consolidar
uma teoria crítica capaz de dar conta das preocupações literárias
nas regiões, isto é, nas periferias geográficas, políticas e estéticas da
já de per si marginalizada América Latina. Não estou falando, apressome a esclarecer, de configurar uma teoria literária de corte imanente
ou restrita ao campo literário, isso chocaria com a noção de região
e acabaria por diluir toda possibilidade de elaborar um discurso
crítico alternativo, relegando o estudioso ou estudiosa da literatura
(tanto no âmbito acadêmico como no público) a um simples
reprodutor das interpretações hegemônicas do fenômeno literário.
O que pretendo fazer é estabelecer e iluminar conexões entre as
produções literárias regionais e as nacionais (e, agora acrescento, as
“supra-nacionais”, sustentadas pela hegemonia das indústrias
culturais ocidentais e cuja intervenção – e manipulação – no
desenvolvimento da literatura latino-americana cresce dia a dia).
Como adquire uma obra o “caráter representativo” de um espaço
determinado? A representação costuma ser também um ato de
exclusão e de tergiversação, sublinho porque é necessário não
esquecer isso, sobretudo quando se embarca numa empresa como
esta. Por isso, utilizo o termo “teoria crítica”, partindo das noções
básicas estabelecidas pela Escola de Frankfurt ( isto é, um enfoque
interdisciplinar que deve ou pretende dar conta do marginal, do
outro silenciado nas nossas sociedades, para sua possível
transformação, tudo através de um pensamento crítico e reflexivo),
mas relacionando a problemáticas pontuais: os campos literários
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no interior da América Latina. Em poucas palavras: concentro-me
em tentar descrever as relações de poder estabelecidas dentro do
quadro das chamadas literaturas nacionais.
O tema é muito complicado porque leva a questionar outros
aspectos da vida literária, tais como o discurso e o ensino acadêmico,
entre outros. É preciso dizer que esta preocupação tem a ver com
nossa função em classe e em gabinete de pesquisa, refiro-me por
certo aos espaços marginais para o estudo das literaturas. Explico:
ao sugerir um “nós”, remeto a todos aqueles que trabalhamos com
assuntos literários a partir das periferias e não nos conformamos
com a reprodução dos manuais de ensino da outrora chamada
“literatura universal”. Como se vive a “experiência literária” nos
espaços não centrais? Sem dúvida, todos temos experimentado em
algum grau (incluso aqueles que trabalham nos centros) essa sensação
de “carência” (de ferramentas, de bibliografia) e de exclusão (da
história literária, do discurso crítico em voga etc.) que toda teoria
literária impõe de maneira sutil ou descarada.
Neste ponto, o problema toma uma nova direção: a do ensino
da literatura no espaço da universidade (ou crítica acadêmica) e a de
um novo contexto: o do auge das indústrias culturais. Já não é
somente a indiferença do discurso teórico, como também a
tergiversação das novas estratégias de mercado que fazem – ou
costumam fazer – das regiões um exotismo temático muito próximo
ao folclore pós-moderno (leia-se literatura do Norte, dos Pampas,
do Amazonas, da Costa, etc) ou uma globalidade suspeita (em que
não existem diferenças e a nova ordem econômica garante uma
falsa igualdade tecnológica e temática). É preciso, pois, um discurso
crítico que faça valer a autonomia de seu espaço de enunciação. Ação
complicada e perigosa mas urgente. Estes apontamentos vão nessa
direção, ainda que me apresse a reconhecer que a sua intenção está
mais próxima da cartografia, da descrição de um território ainda
desconhecido. Não é tampouco um ato de conquista mas uma
possibilidade. Elias Canetti (1994, p.73), em seu ensaio “Diálogo
com o interlocutor cruel”, definia os apontamentos (para distinguiR E V I S T A ALERE - P R O G R A M A
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los de outro gênero “menor”: o diário) como escritos que “são
espontâneos e contraditórios. Contêm idéias que às vezes brotam
de uma tensão insuportável, mas frequentemente também de grande
superficialidade . Um risco e uma ameaça: a contradição e a
superficialidade. Dois impulsos: a espontaneidade e a tensão. Eis
aqui os perigos e as possibilidades destas modestas anotações
minhas. O perigo seria a condição sempiterna de gérmen, de
semente de uma obra que talvez nunca chegue (penso inevitavelmente
nos Apuntes para la teoría literaria, de Alfanso Reyes), mas também
confio na alta probabilidade de que esse gênero (ou “subgênero)
possa manifestar ao menos a expressão de uma experiência (de novo
penso nos Apuntes... de Reyes).
Em primeira instância, seria necessário começar com os
primeiros problemas que enfrenta a crítica regional. O primeiro é
de ordem semântica: o que significa “crítica regional”? Um discurso
reflexivo que fala sobre uma região exclusivamente, ou um
pensamento crítico produzido em uma região qualquer? Inclino-me
pela segunda opção, mas esclarecendo que, embora a crítica regional
possa (e deva) abordar temas gerais (requer manter um diálogo
permanente) com o mesmo direito que a crítica metropolitana, uma
de suas funções primordiais consistirá em dar conta da produção
local não somente para tentar corrigir uma “literatura nacional”,
mas também para ajudar a ativar o campo literário regional. Como
podemos observar, sua função vem suprir uma carência: a falta de
atividade na vida literária. Sem crítica não há literatura, mas um
catálogo de obras publicadas, na maioria dos casos, por instituições
públicas (universidades, secretarias de educação ou de cultura) ou
por um grupo de amigos ou editores independentes. E, sem um
diálogo com a visão central, não há literatura nacional, mas literatura
homogênea.
A definição dessa atividade intelectual obriga a manter o
acento no caráter aberto e na ação de discutir e avaliar todos os
fatores para não cair na gíria chauvinista que faz da crítica regional
um panfleto da secretaria de turismo. Não; é preciso reconhecer as
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carências da produção literária caseira: seu “atraso” com relação às
obras escritas ou difundidas na capital, mas dando conta de seu
próprio desenvolvimento: quais têm sido as causas para que nossas
obras privilegiem gêneros específicos e descartem outros? Que tipo
de experiência têm tentado transmitir os autores marginalizados
geograficamente? Penso num amplo repertório que vai desde os
discursos nacionalistas das festas nacionais às produções poéticas
de corte neoclássico, e de descrições costumbristas a romances atuais,
povoadas, na sua maioria, de personagens que respondem mais a
uma visão estereotipada das regiões que a um processo interno de
criação literária.
Antes de mais nada é preciso ter em conta que estamos
trabalhando com uma carência, com um longo silêncio. Não
contamos com histórias regionais críticas, mas com catálogos de
obras e autores, no melhor dos casos. O século XIX representa um
verdadeiro território ignoto, em que a falta de imprensa em muitas
regiões e o descuido dos cronistas locais promoveram um
impressionante desconhecimento. Sem sentido da tradição e sem
uma vida literária sustentada pela recepção crítica, as literaturas
regionais ficam à mercê das prebendas outorgadas pelas capitais.
A teoria crítica deveria, pois, partir desse ponto: tentar iluminar
esse vazio, e tratar de mostrar que não é somente um espaço vazio,
mas um corpus sem integração. O questionamento deveria partir da
atividade cultural durante o período colonial (muitas regiões
cultivaram uma vida artística “secundária” durante esse período),
mas sobretudo é preciso enfatizar os momentos do início da vida
independente. Ali começam os debates entorno da futura relação
das periferias com o centro: discussões sobre a possível unidade
nacional ou sobre a suspeita independente organização federativa.
Em poucas palavras, tomamos a cargo a elaboração discursiva das
novas identidades coletivas.
Posteriormente, seria necessário deixar de lado as concepções
universalistas do fenômeno literário e começar a trabalhar a partir
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do contexto enunciativo. Estabelecer os “momentos decisivos” de
que falava Antonio Cândido em seu texto fundamental ( e pilar da
crítica regional latino-americana): A formação da literatura brasileira.
Requer-se um corte temporal para tentar um novo modelo de
periodização, base para uma futura historiografia literária. Agora
bem: que devemos entender por “momentos decisivos” e como
poderíamos estabelecê-los em nossas pesquisas? Primeiramente,
falaria de acontecimentos, criações e interpretações da comunidade
letrada. A dimensão temporal é em si mesma vasta e complexa, e
costuma ir mais além das criações literárias, mas toda produção está
inscrita no tempo: é, de fato, uma forma de interpretação do
temporal. Na realidade não falo do tempo no singular, mas de muitos
tempos, ritmos diversos que costumam dar prova da
heterogeneidade local.
Falo de temporalidades, porque uma saída fácil para a
classificação das produções literárias marginais tem sido relacionálas a escolas e movimentos literários centrais. Termos como
romantismo, parnasianismo e tantos outros se utilizam com
facilidade perigosa ao extremo. Tomar sem questionar tais
classificações significa anular de fato qualquer possibilidade de
sobrevivência para uma teoria crítica regional. A prioridade,
estabelecer um paradigma caseiro, trabalhar com ele e começar a
desbravar o terreno desconhecido (ou semi-desconhecido) das
literaturas regionais. Tal empresa significaria desde o começo um
enfrentamento direto com as estratégias de poder que têm
configurado nossos cânones estéticos e ideológicos. Sem dúvida,
neste ponto, a crítica de José Carlos Mariátegui representa um
antecedente fundador.
O choque passa por diversos níveis, mas quase todos eles têm
a ver com certos tipos de problemas de enfoque: como é possível
configurar uma literatura representativa de uma região sem passar
por ou ficar nos estereótipos fixados normalmente de fora dessa
zona de produção? Como conseguir incorporar as produções locais
ao cânone nacional, latino-americano ou global, sem que tais obras
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percam seu caráter peculiar? Mas sem tornar esse caráter peculiar
uma fórmula de venda ou propaganda barata? Ou mais recentemente:
como evitar a fixação mercantilista do regional propagada pelas
atuais indústrias culturais? Esses questionamentos antecedem e
prefiguram uma nova responsabilidade para a configuração de uma
teoria crítica com caráter regional: sua relação com a já mencionada
história literária, somada a um necessário vínculo com a crítica
pública ou midiática. Na medida em que se “conquiste” um espaço
maior nos meios de comunicação, poderão equilibrar-se os efeitos
nebulosos dos decretos estabelecidos pelas casas editoriais
transnacionais, da mesma forma será possível configurar, através
de uma dimensão crítica, um sistema literário mais horizontal.
Porque algo é certo, salvo evidentes exceções, a vida literária das
regiões na América é precária (refiro-me sobretudo a uma série de
aspectos que partem não precisamente da criação, mas da recepção,
difusão e discussão dos textos literários), e a criação literária como
tal ocupa um lugar marginalizado (sobre a crítica há pouco que
acrescentar: a margem de uma margem). Evidentemente nos
enfrentamos com um problema maior e o esforço requerido é –
deve ser – notável.
A teoria crítica regional, em si, deve questionar para quem
escreve e qual será o fim do conhecimento produzido por ela e como
afetará ele o sistema literário local. Paul de Man demonstrou
acertadamente que a dinâmica do ensino universitário da literatura
e sua reflexão escrita (leia-se crítica y teórica) requerem
invariavelmente uma série de fórmulas que garantam o espaço dos
estudos literários nas áreas humanísticas. As fórmulas funcionam
porque geralmente são imóveis e asseguram uma rotina pedagógica
(a reprodução de um conhecimento certificado). Mas também é certo
que todo esforço teórico deve basear-se (em algumas ocasiones de
maneira “negativa”) inevitavelmente em “considerações
pragmáticas”. Retomo Paul de Man (1990, p.13) : “Uma tomada
de posição geral sobre a teoria literária não deveria, em teoria,
partir de considerações pragmáticas. Deveria tratar de questões como
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a definição da literatura (que é a literatura?) e debater a distinção
entre os usos literários e não literários da linguagem...” Até aqui de
Man. Detenho-me agora numa frase aparentemente negativa, esse
não deveria. Não deveria basear-se a teoria em considerações
pragmáticas, e no entanto se baseia, sempre tem-se baseado (de Man
sabia disso; Roberto Fernández Retamar inclusive tinha advertido
isso antes que o crítico metropolitano). Essa “condenação” é – deve
ser – a grande possibilidade para a concreção de uma ou várias
teorias críticas regionais. A relação direta com o objeto, sua discussão
e diálogo com ele, a iluminação dos vasos comunicantes entre obra,
crítica e zona de recepção primária.
Isso enquanto atividade acadêmica. Com respeito à relação
da literatura e da crítica regionais com as indústrias culturais, somente
posso aventurar alguns rumos e algumas possibilidades. É vidente
que a dinâmica empresarial está afetando diretamente os campos
literários de América Latina. A “bem-aventurada” globalização
consolidou uma distribuição homogênea de títulos, formas, estilos
e autores. E o ingresso neste vasto mercado precisa de um “contrato”
que poderíamos definir como “unitário”; cobrir todos os requisitos
para o “êxito”. Os autores, os autores regionais já não requerem
realizar a famosa e instrutiva viagem ao centro. Se contam com um
agente hábil em tais tarefas, contarão com financiamento e difusão
sem ter que abandonar sua aldeia. Mas, apesar de tudo, isto só
representa uma parte (talvez a mais visível agora) do fenômeno
literário. Nem a globalização nem a mercantilização massiva obterão
o monopólio da literatura. A possibilidade maior, ou poderíamos
dizer: a salvação maior radica num ato de leitura: ler criticamente o
fenômeno e emitir um juízo. Um dever maior ainda: ampliar o
alcance do discurso crítico de tal juízo.
Mas, para donde se dirige uma empresa como esta (a possível
redação de uma teoria regional)? Avanço uma resposta como síntese
de conclusão destas anotações: para uma revisão contínua. A
sustentação: o olhar crítico, a leitura capaz de contemplar-se a si
mesma e dar conta do processo. Nossa teoria crítica deverá suspeitar
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da infalibilidade de todo discurso teórico, e questionar as instâncias
onde se produzem e distribuem as noções básicas do literário, do
nacional e do global. Mas sobretudo deverá levar seus agentes a um
compromisso com uma atitude pública , isto é, terá que fazer dos
críticos sujeitos responsáveis por seus juízos. Somente a partir dessa
atitude desafiante, nossos apontamentos terão a possibilidade de
deixar de ser um impulso “espontâneo e contraditório”, para
converter-se em uma prática concreta, precisa e necessária.
Referências
CANETTI, Elías: Diálogos con el interlocutor cruel. In La conciencia de
las palabras, tradução de Juan José del Solar, México: Fondo de Cultura
Económica, 1994.
HOBSBAWN, Eric. Naciones y nacionalismo desde 1780. Trad. Jordi
Beltrán. Barcelona: Crítica. 2000.
MAN, Paul de: La resistencia a la teoría, in: La resistencia a la teoría, edición
de Wlad Godzich y traducción de Elena Elorriaga y Oriol Francés, Madrid:
Visor, 1990.
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DE LA ‘VERDAD HISTÓRICA’ A
LA ‘VEROSIMILITUD
NARRATIVA’ DEL TERROR: LA
FIESTA DEL CHIVO (VARGAS
LLOSA)1
FROM “HISTORICAL TRUTH”
TO THE “NARRATIVE
VERISSIMILITUDE” OF
TERROR: LA FIESTA DEL
CHIVO (VARGAS LLOSA)
Julieta Haidar
(ENAH.Mx)2
1
Un versión resumida del presente trabajo fue publicada en el Diario Hoy ( 27 y 28 Noviembre
2002), Santo Domingo, República Dominicana
2
Brasileña. doctora en ciencias políticas por la Universidad Nacional Autónoma de México,
UNAM. Especialista en Análisis de Discurso y Semiótica de la Cultura, temas sobre los cuales
ha publicado varios libros y ensayos en revistas especializadas de diferentes países. Profesora e
investigadora titular de la Escuela Nacional de Antropología e Historia, ENAH, México.
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(VARGAS LLOSA)
JULIETA H AIDAR
Helena, amiga de siempre
Por su grandeza humana e intelectual.
Porque ha logrado caminar con los arco-iris.
RESUMEN: Vargas Llosa’s novel, La fiesta del chivo, focuses
on the ever complex relationship between reality and literature.
In this work, the fictional and the historical are interwoven in a
decisive way. Such a fragile bounf finds one of his supporters in
the very development of Latin America and the Caribbean, once
the real history often seems to belong and to overcome the fictional world. The work in question makes us rethink the problems concerning the typology of genres, the historical memory,
the mnemonic processes, the taboos in the construction of the
historical and political memory of the trujillismo
PALABRAS CLAVE: Vargas Llosa. La fiesta del chivo. Historia.
Ficción. Memoria
ABSTRACT: Vargas Llosa’s novel, La fiesta del chivo, resumes
always complex relationship between reality and literature. In this
work the Romanesque and history are interwoven in a
forceful way. This weakness of frontier finds one of
his supporters in the development of Latin America and the
Caribbean since often the real story seems to
belong and to overcome the fictional world. The work in
question does to rethink the problems concerning the typology
of gender, historical memory, the mnemonic processes, the taboos in the reconstruction of historical and political memory of
trujillismo, bringing the issue to the guideline of terror.
Introducción
La novela de Mario Vargas Llosa, La fiesta del chivo, hace
regresar de manera significativa, y con gran impacto, la relación
siempre tan compleja entre la realidad y la literatura, que se puede
abordar desde varios ángulos. En este discurso literario, lo novelesco
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y lo histórico se entremezclan de una manera contundente. Esta
debilidad de la frontera entre lo histórico y lo ficcional, a nuestro
juicio, encuentra uno de sus soportes en el desarrollo mismo de
América Latina y del Caribe, ya que en muchas ocasiones la historia
real parece pertenecer y hasta superar al mundo novelesco. La fiesta
del chivo, además, hace repensar los problemas relativos a la tipología
de este género, que adquieren relevancia en el caso de esta novela
histórico-política.
Una problemática nodal de este texto literario es que se sitúa
en los umbrales entre la historia y la literatura, tema siempre muy
estudiado justamente por presentar dificultades analíticas, que se
pueden sintetizar para nuestro caso específico en el contraste entre
la “verdad histórica” y la “verosimilitud histórica” del terror del
trujillismo, lo que constituye uno de los núcleos motivadores
principales de la lectura de la novela, tanto en República Dominicana,
como en otros países, Perú y España, por ejemplo. El problema se
instala de inmediato, porque al ser una novela histórico-política
muchos lectores suelen ubicarse sólo en esta dimensión, olvidándose
prácticamente de lo novelesco en los momentos de la recepción.
Una inquietud interesante se relaciona con el funcionamiento
diferenciado entre la memoria histórico-política y la memoria
ficcional literaria, ya que los acontecimientos pasan por
reconstrucciones diferentes que deben obedecer a reglas distintas,
como procuramos explicar más adelante. En otras palabras, los
procesos mnemotécnicos siguen funcionamientos distintos en lo
histórico-político y en lo literario. Además, en estos procesos operan
de modo significativo el problema de los olvidos y de la
conservación, desde la perspectiva fascinante que establece esta
dialéctica de la memoria. Otro aspecto importante para destacar,
es el funcionamiento de lo prohibido, de los tabúes, en la
reconstrucción de la memoria histórico-política del trujillismo, y
observar como éstos se pueden romper en la memoria literaria,
presente en esta novela.
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JULIETA H AIDAR
Por último, otro punto interesante para considerar y explicar
es el diferente impacto y alcance de los discursos histórico-políticos
sobre el trujillismo frente a los discursos literarios sobre esta era del
terror. Una de las explicaciones para estas diferencias es la siguiente:
los primeros se dirigen más a lo racional, a lo analítico, y los últimos
a la emoción, al componente pasional. Estas consideraciones explican
porque La fiesta del chivo mueve la memoria del pueblo dominicano,
en sus más entrañables heridas, y porque logra un impacto superior
a los discursos histórico-políticos, que sin duda cumplen otras
funciones importantes para explicar y entender porque fue posible
esta etapa del terror en República Dominicana, lo que no
corresponde al la novela, a lo literario.
La novela histórico-política: problemas de clasificación
La fiesta del chivo introduce, como decíamos, de manera
irremediable e ineludible el problema de la relación historialiteratura, lo que en el fondo toca las relaciones palabra-mundo,
semiosis-realidad, , discurso-extradiscurso. El isomorfismo (las
semejanzas formales y referenciales) entre el mundo de la historia y
el mundo novelesco, entre la realidad y lo ficcional plantea la
distinción entre dos series discursivas: el discurso histórico-político
y el literario.
Entre la semiosis y la realidad (HAIDAR, 1994) pueden existir
varios tipos de relación: de sustitución, de representación, de reflejo y
refracción, de indicación, de construcción, en las cuales podemos
destacar un funcionamiento causal o dialéctico entre las dos
dimensiones, que siempre continúan generando complejidades
analíticas. Si retomamos estas relaciones desde la literatura, como
producción de una semiosis estética, ésta construye su propia realidad,
premisa que introduce tensiones analíticas cuando tratamos una novela
histórico-política, como es La fiesta del chivo. Para Lotman (1979), la
literatura, como todas las artes, constituye una modelización de
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segundo grado en relación a las lenguas naturales. Este planteamiento
nos permite avanzar, porque no sólo abordamos la relación semiosisrealidad, sino también los procesos de intertextualidad que se dan
entre la serie histórico- política y la literaria.
Las categorías lotmanianas permiten reflexionar de una manera
dinámica y dialéctica sobre la frontera entre la historia y la literatura.
Sin embargo, esta propuesta es compleja porque en la modelización
de segundo grado, los funcionamientos semióticos de la historia, de
la política y de la literatura son diferentes y al mismo tiempo se
entrecruzan; las fronteras oscilantes permiten los continuums entre
las dos dimensiones; las supuestas líneas divisorias se desdibujan y lo
que el lector siente es que la historia invade constantemente el mundo
novelesco, en este subtipo de novela, que es la histórico-política.
A pesar de esta continua invasión, de esta quizás peligrosa
intromisión para el narrador, la historia no es literatura y vice-versa, por
varias diferencias que establecemos más adelante en este estudio. Esta
afirmación tiene una mayor validez sólo para un receptor no
dominicano, porque para varios tipos de lectores en República
Dominicana lo que se busca es la “verdad histórica”, por lo que varias
personas dicen , repiten y discuten: “ Así mismo fue, Así mismo era,
Esto no fue así, Esto no es verdad, Eso lo viví, Eso lo he leído, etc.”
Las condiciones de producción y recepción
De las ocho propuestas que hemos sintetizado
(HAIDAR,1998) para analizar las condiciones de producción y
recepción de cualquier discurso, seleccionamos las más apropiadas
para la novela histórico-política: a) la propuesta de Foucault (1970),
b) la de la intertextualidad, interdiscursividad (varios autores) y c)
la de la coyuntura (ROBIN, 1976).
Los procesos interdiscursivos se definen como constitutivos
de toda producción discursiva, en la cual están presentes en varias
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dimensiones, como la histórica, la política, la religiosa, entre otras;
mientras que los procesos intertextuales se refieren más
concretamente a las relaciones orgánicas entre los textos concretos.
En otras palabras, los procesos interdiscursivos tienen que ver con
las condiciones de producción y recepción del discurso, en una
dimensión macro, mientras que los procesos intertextuales se ubican
en una dimensión micro. Sintetizando lo planteado, tenemos:
Los procesos interdiscursivos de esta novela presentan dos
dimensiones fundamentales:
a) la primera remite a todos los discursos históricos, políticos,
económicos de la dictadura trujillista que la cruzan, de manera casi
siempre implícita pero también explícita
la segunda remite a los testimonios autobiográficos y a las
memorias sobre la denominada Era de Trujillo.
Los procesos intertextuales presentan tres dimensiones:
a) la primera se relaciona con las novelas sobre las dictaduras
y los dictadores en América Latina;
b) la segunda remite tanto a los discursos laudatorios sobre la
dictadura de Trujillo, como a los críticos;
c) la tercera abarca las novelas del mismo Mario Vargas Llosa,
aunque no las abordemos en este estudio.
De todo lo expuesto, deriva la complejidad del análisis de
una novela, cuando se considera que varios procesos interdiscursos
e interxtextuales la están constituyendo, lo que es un argumento
más que suficiente para invalidar el análisis inmanente de cualquier
discurso.
En las condiciones de producción, además, nos parece
importante considerar al sujeto del discurso, Mario Vargas Llosa,
novelista peruano, que tuvo que investigar durante años la historia
dominicana para poder escribir sobre una realidad, de cierto modo
lejana a él, pero principalmente para poder reconstruir y condensar
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la memoria histórica sobre el trujillismo. No podemos dejar de
reconocer los desafíos que enfrentó el novelista tanto en La historia
del fin del mundo (sobre un acontecimiento en Brasil), como en La
fiesta del chivo, porque, sin embargo, fue exitoso al lograr manejar
con destreza las características de la novela histórico-política,
alcanzando e impactando los lectores de ambas.
El análisis de las condiciones de recepción, entendidas también
en la dimensión coyuntural, conducen a interesantes respuestas,
dependiendo del país; para nuestros objetivos sólo consideramos
República Dominicana y tangencialmente Perú.
En República Dominicana, casi toda la recepción se mueve en
el eje de buscar en la novela la historia de la dictadura trujillista, que
se diferencia de acuerdo a cuatro tipos de receptores: 1. los que han
vivido directamente la dictadura ; 2. los que no la vivieron, pero han
heredado los lastres de la misma, como son los descendientes
directos de las familias involucradas con el aparato trujillista, así
como las familias de donde surgieron los opositores; 3. todo el
pueblo dominicano que revive en su memoria histórica esta tiranía y
4. los analistas político-históricos que han vivido o no la dictadura.
Por lo menos, son cuatro tipos de recepción complejas y diferentes,
que reconstruyen distintos sentidos, porque para muchos todavía
las heridas están abiertas, no se cierran a pesar de más de 40 años de
la muerte del dictador.
En efecto, los procesos de la memoria no logran borrar
todavía tan cruel tiranía, ni todos los efectos negativos que dejó en
la historia del pueblo dominicano, porque el neotrujillismo ha
logrado seguir en el poder por muchos años, de una u otra manera,
no obstante los esfuerzos y las innumerables luchas libradas por el
pueblo dominicano para superarlo, desplazarlo y construir un
verdadero sistema democrático, como fueron los momentos del
gobierno de Bosch, en 1963, así como la resistencia armada contra
las tropas de ocupación estadounidense en 1965, para señalar sólo
algunos de los eventos más importantes.
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En República Dominicana, las condiciones de recepción son
difíciles de despegarse de la historia trágica del trujillismo, porque,
como algunos autores mencionan, el terror todavía subsiste en la
memoria histórica del pueblo dominicano, como un tabú complejo
instalado en un funcionamiento subjetivo, colectivo e inconsciente
de cada dominicano (Cf. FOUCAULT, 1970 y ZAGLUL, 1977),
lo que de cierto modo explica los desvaríos de una supuesta libertad,
así como las dificultades para reconstruir valores que se subsumen
en la violencia y en la rebelión, no propiamente positivas.
Además, las condiciones de recepción no permiten que se
olvide la historia , porque en la novela aparecen los personajes
históricos con sus mismos nombres (creando el simulacro de la
realidad), junto con otros que son propiamente literarios. La
utilización del nombre histórico para los personajes de la novela
(recurso ya utilizado por Julia Álvarez en El tiempo de las mariposas y
por otros autores) constituye un artificio, una estrategia de doble
filo, porque primero jala al receptor a una lectura histórica y después
dificulta el despegue para que se pueda leer La fiesta del chivo, como
una novela, en donde se reconstruye de manera literaria la historia
real de esta era trágica del trujillismo.
En el ámbito de la recepción, se produce, por lo tanto, una
tensión entre la lectura desde la historia y la realizada desde la
literatura. En las dos lecturas, pasamos por procesos de recepción
en los cuales hay reconstrucciones diferentes, es decir, si la novela es
leída desde la historia produce efectos de sentido distintos de los
que se originan cuando es leída desde la literatura ( Cf. ECO, 1987 y
otros autores de la teoría de la recepción)
El análisis de las condiciones de producción y recepción de
esta novela, nos permite, además, considerar los siguientes
fenómenos de la producción literaria en República Dominicana:
1. Desde un orden cronológico, mientras vive Trujillo, primero
surge una producción discursiva laudatoria innumerable , como
plantea Andrés Mateo, y paralelamente en el exilio aparecen algunos
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libros de denuncia de José Almoína , Jesús de Galindez , Germán
Emilio Ornes y Juan Bosch , entre otros, así como muy escasas
novelas. Después de la muerte de Trujillo se producen en primer
lugar, con cierto retraso, los testimonios; posteriormente los análisis
histórico-políticos y por último las novelas sobre la dictadura
trujillista, desde diversos ángulos, fenómenos sin duda dignos de
una investigación más detenida.
En realidad, no encontramos todavía una explicación
suficiente y convincente de la aparición tardía de los análisis históricopolíticos y menos explicativa todavía es la casi ausencia de las novelas
sobre la dictadura de Trujillo. Una de las explicaciones podría ser la
continuidad de un fuerte neotrujillismo en el país, que ha traído
nuevos desequilibrios sociales y ha impuesto la necesidad de
superarlo, fenómeno que sin duda continua hasta el presente en
muchas dimensiones, aunque con menor fuerza.
2. La mayor producción de novelas sobre la dictadura de
Trujillo sólo aparece por la década del 80 y más profusamente en la
década del 90, hecho que puede obedecer a factores sociopolíticos
nuevos y a la superación de factores psicológicos y del inconsciente
en la generación de literatos y de cineastas posteriores a la muerte
de Trujillo.
Las estructuras narrativas y los sociogramas
Para el análisis de la dimensión intratextual, partimos de la
macro-operación de la narración, pasamos al problema del sujeto
narrador polifónico, para terminar con el análisis de la estructura
narrativa y de los percursos narrativos, configurados por la
construcción de diferentes sociogramas, en donde se materializan los
ejes espacio-temporales y se construyen los personajes y sus acciones.
I. En primer lugar, desde una perspectiva del análisis del
discurso, consideramos la narración como una macro-operación,
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tan importante como la argumentación, la demostración y la
descripción. La narración se desarrolla en el eje temporal, más que
en el espacial, propio de la descripción. Las teorías narrativas son
variadas y se originan primeramente ligadas a los análisis literarios,
para después aplicarse a los discursos míticos, históricos, entre otros
- para mayores detalles sobre esta operación discursiva, consultar
a Weinrich (1974), a Ricoeur (1995), entre otros. Como macrooperación discursiva, la narración presenta invariantes y variaciones
en los diferentes tipos y subtipos de discurso. Para ejemplificar,
consideramos el funcionamiento de la narración en el discurso
histórico y en el literario entre los cuales, como dijimos, existen
fronteras oscilantes:
A. En el discurso histórico, el autor es importante, por lo
menos en el institucionalizado (en la tradición y en la historia orales
aparecen sujetos anónimos y colectivos) y en el discurso literario
ya hace años que no tiene pertinencia considerar al autor, que
cede su lugar al sujeto narrador polifónico, categoría de mayor
validez explicativa. También recordamos, la diferencia ya clásica,
entre la narrativa en tercera persona del discurso histórico, frente
a la alternancia de la primera de la segunda, y de las tercera personas
en el literario.
B. En el discurso histórico, se hace la pregunta por la “verdad
histórica” (problema siempre muy complejo) y en el literario se
cuestiona su grado de verosimilitud, es decir, lo que parece como
verdadero. Como hemos mencionado en la introducción, existe la
relación y la diferencia supuestamente irrefutable entre la “verdad
histórica” del terror y la verosimilitud narrativa del terror del
trujillismo, presente en la novela que analizamos. Un aspecto
interesante ligado a lo anterior, se refiere al hecho de que en el discurso
histórico es obligatorio el uso de una bibliografía y de fuentes de
apoyo, mientras que en el literario este requisito nunca puede
aparecer de modo explícito, aunque el escritor haya realizado
múltiples investigaciones.
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C. En el discurso histórico, el autor con la narración procura
dar cuenta del hecho histórico, y en el discurso literario, el sujeto narrador
construye una trama narrativa ( el sujet en Lotman), sociogramas
con momentos de suspenso, de secreto, de revelación, estableciendo
a cada instante motivaciones y utilizando estrategias para cooptar al
lector en las redes de sentidos que quiere producir.
D. En el discurso histórico no tiene pertinencia hacer juegos
de tiempos y espacios y en el literario, los juegos espaciotemporales presentan una variedad infinita y constituyen un recurso
narrativo obligatorio, principalmente después del boom de la
narrativa latinoamericana.
E. Mientras en el discurso histórico se trabaja con “
supuestos” personajes concretos, en el discurso literario los
personajes son ficcionales, y lo que puede parecer una simple
tautología, contiene, sin embargo, varias dificultades. En efecto,
esta diferencia se basa en varios aspectos:
1) Los personajes históricos suelen ser descritos y narrados
desde un punto de vista exterior, mientras que en los literarios, más
que privilegiar el punto de vista exterior, se destaca el interior, lo
cual se homologa con lo que hemos planteado en el primer punto
de las diferencias;
2). El personaje histórico es un objeto de narración y
descripción, tanto en la dimensión del ser como del hacer, mientras
que los personajes literarios emergen como sujetos que narran, que
describen, que reflexionan, que modalizan su discurso, con todas las
posibilidades en el ámbito del ser, del hacer, del parecer y
3) los personajes históricos suelen parecer como individuales
y los literarios pueden ser individuales o colectivos (desde una
teoría objetiva del sujeto, y si aparecen en la dimensión individual
es para funcionar como estereotipos, como condensadores de
sentido. Por ejemplo, Johnny Abbes García es un torturador criminal,
un asesino verdugo, pero más allá de su individualidad en él se
condensan todos los torturadores).
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F. El discurso histórico se dirige a la razón, a las reflexiones
teórico-analíticas, mientras que el discurso literario despierta la
emoción, hace funcionar a plenitud el componente emocional. Esta
diferencia explica porque esta novela ha producido un mayor
impacto que los mejores estudios históricos sobre el trujjillismo.
Las diferencias planteadas, que pueden parecer simples en
un primer momento, adquieren una gran complejidad cuando
con el desarrollo del análisis del discurso se cambia el objeto
clásico de la historia y ésta pasa a ser entendida como discurso,
como escritura o como tradición oral discursiva. Este cambio
motiva que todas las diferencias, que parecían más o menos
evidentes, se trastoquen, y de cierta manera obliga a flexibilizar
las distancias entre los dos discursos canónicos - el histórico y el
literario- y reconocer que, en muchos casos, las diferencias deben
ser matizadas y repensadas, porque estos dos tipos de discursos
pueden aproximarse, pero conservan, a nuestro juicio sus
especificidades.
Como ejemplo de la necesidad de flexibilizar y asumir la
oscilación sin miedo, debemos detenernos en el problema de “la
verdad histórica”. En este sentido, es muy complicado cuando el
lector de una novela quiere preguntarse por la verdad histórica, como
ha ocurrido con La fiesta del chivo, lo que no tiene pertinencia porque
en el mismo discurso histórico la pregunta por la verdad es compleja.
Para concretar lo dicho tenemos varios ejemplos, pero sólo utilizamos
lo observado en los mismos testimonios históricos sobre la era de
Trujillo (subtipo del discurso histórico), en los cuales encontramos
relatos no sólo con matices diferentes sobre diversos aspectos del
trujillismo, sino hasta contradictorios, como es el caso de las
diferentes narraciones existentes sobre como se enfrentó Trujillo
frente al complot y a la muerte.
En consecuencia, como tanto en la historia y en la literatura
nos encontramos con reconstrucciones subjetivas peculiares y
distintas, sólo nos resta concluir que la petición de la verdad para
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los discursos históricos debe ser de otro orden, y que no tiene
pertinencia esta preocupación en la producción literaria.
II. El problema del sujeto narrador polifónico, como habíamos
mencionado en la introducción, plantea la necesidad de destacar las
peculiaridades de la polifonía en esta novela, ya que asumimos que
todo sujeto discursivo es polifónico, como una característica
constitutiva de la subjetividad (Cf. BAJTIN, 1982). El sujeto
narrador de esta novela es polifónico porque pasan por él todas las
voces seleccionadas (y también las no seleccionadas) para
reconstruir, literariamente, la estética del terror de una dictadura
paradigmática. En este sentido, el sujeto narrador polifónico
condensa una memoria histórica colectiva, institucional y no
institucionalizada, que logra reproducir ficcionalmente, de una
manera impactante, el terror del trujillismo.
Aunque en casi todo análisis literario no tiene pertinencia
remitirse al autor de la novela, en este caso, hay aspectos peculiares
que nos hacen regresar a esta categoría, que está planteada tan bien
por Foucault (1970): si el autor no fuera Vargas Llosa, seguramente
la circulación y la recepción de la novela tendrían alcances distintos.
Con este principio, el autor no es el individuo en si mismo, sino un
lugar subjetivo que da una coherencia al discurso, lo permite circular,
y está respaldado por las sociedades del discurso.
III. En este tercer y último ítem, analizamos los percursos3
narrativos y sus respectivos sociogramas, para deconstruir y
reconstruir la arquitectura narrativa de la novela. Los percursos
narrativos se relacionan con las rutas de los personajes que se
construyen, se reconstruyen y se resemantizan durante toda su acción
novelesca; esta categoría tomada de la semiótica narrativa
greimasiana, la utilizamos sólo como un punto de partida y de anclaje
para explicar los percursos de los personajes (GREIMAS y
COURTÉS, 1979).
Además, esta categoría puede articularse a la de sociograma,
y enriquecer nuestra propuesta analítica. La categoría de sociograma
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proviene de una tendencia opuesta a la greimasiana, que es la de la
sociocrítica, de cuyos exponentes destacamos a Claude Duchet (
1979, su fundador) y a Edmond Cros (1986). Esta tendencia se
propone buscar en el texto literario como se configuran los
funcionamientos de lo ideológico, lo social en forma de
preconstruidos implícitos y explícitos. La sociocrítica postula que,
por medio de la escritura, la realidad referencial sufre un proceso
de transformación semántica, por el cual se reorganizan y se
resemantizan las diferentes representaciones de lo vivido individual
y colectivamente.
La articulación de estas dos tendencias tan disímiles, nos parece
pertinente porque permite por un lado reconstruir los percursos
narrativos de la novela con más detalle y por el otro analizar los
diferentes sociogramas que van emergiendo en todo el desarrollo
de la trama. En este sentido, estas dos categorías son los pilares del
modelo operativo que utilizamos para el análisis intratextual, desde
una perspectiva transdiciplinaria.
En los sociogramas, están presentes representaciones parciales,
inestables y conflictivas que giran en torno a un núcleo narrativo, y
que se articulan entre si. Los sociogramas son esquemas
representativos del discurso social que se integran orgánicamente,
en conjuntos co-textuales dinámicos. Los textos reencuentran y
trabajan estos sociogramas. Sin embargo, Cros (1994) considera
importante la ampliación que plantean Angenot y Robin (1992),
según la cual para el análisis de los sociogramas es necesario
considerar lo pretextual y no sólo quedar en el texto, lo que a nuestro
juicio constituye un aporte teórico-metodológico fundamental para
complementar la propuesta de la sociocrítica, con la del análisis del
discurso.
Para analizar la estructura narrativa de la novela La fiesta del
chivo, destacamos los cuatro percursos narrativos fundamentales,
estableciendo su alternancia para visualizar la arquitectura narrativa,
en cuanto al tiempo, al espacio y a los personajes. El primer percurso
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narrativo se centra en Urania, el segundo en Trujillo, el tercero en el
Grupo de Complot y en la muerte de Trujillo, y el cuarto en la
persecución, las muertes y la caída del régimen trujillista.
De este modo, los sociogramas presentes en los percursos
narrativos permiten analizar la estructura del relato, los personajes,
los juegos espacio-temporales, que rompen la linealidad, entrelazando
el pasado, el presente, el futuro, rompiendo la supuesta continuidad
espacio-temporal de la realidad, lo que instaura el ritmo narrativo,
la construcción del sujet , que atrapa al lector de una manera peculiar,
estableciendo una dialéctica entre el terror y la emoción, entre la
tragedia y el dolor.
En la arquitectura narrativa de la obra, se destaca la estrategia
del suspenso establecido de un capítulo a otro, que incita al lector a
continuar con la lectura; este constituye un buen mecanismo de
interpelación narrativa, muy utilizado en la novela contemporánea.
El suspenso y algunas claves de la lectura están presentes desde el
primer capítulo, cuando surge de golpe Urania, un solo nombre, en
un solo sintagma que condensa tantos sentidos; al inicio aparece
suelta, desdibujada y es sólo con el desarrollo de su percurso
narrativo cuando se va definiendo, hasta aclarar todo el secreto en
los capítulos finales de la novela. El texto se inicia con Urania y
termina con Urania, en una estructura clásica de la narrativa cíclica.
En el desarrollo de la novela, en el percurso narrativo 3, del
Grupo del Complot, el narrador coloca el momento cumbre, la
muerte de Trujillo, justamente a la mitad del relato: esta colocación
permite separar la narrativa en dos partes. En la primera aparecen
percursos narrativos distintos y con sociogramas diferentes y en la
segunda algunos percursos continuan, pero en ésta predomina el
percurso 4, con sociogramas que se construyen en torno al terror, al
horror y a la disputa por el poder.
Otro elemento muy interesante es que la arquitectura narrativa
presenta un equilibrio estético, porque de los 24 capítulos que
componen la novela, los 12 primeros alternan simétricamente entre
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los tres percursos narrativos, y en la mitad, justamente en el capítulo
12 se da el ajusticiamiento del dictador. Después del capítulo 12,
vuelve la alternancia de los percursos narrativos en los capítulos 13,
14, 15, en el 16 sigue el percurso 1, y al final todos los capítulos,
con algunas excepciones pertenecen al percurso 4, exceptuando el
último, el capítulo 24, cuando se vuelve al percurso 1 ( al cual se
subordina el 2 referente a Trujillo), cuando Urania relata su
encuentro con el dictador, y se despide de la familia y del país.
Diagrama de los capítulos y los percursos narrativos
Cap.I- Percurso 1
Cap.XIII- Percurso 1
Cap.II-Percurso 2
Cap.XIV - Percurso 2
Cap.III-Percurso 3
Cap.XV - Percurso 3 y 4
Cap.IV- Percurso 1
Cap.XVI - Percurso 1
Cap. V- Percurso 2
Cap.XVII- Percurso 4
Cap.VI- Percurso 3
Cap.XVIII-Percurso 2
Cap.VII-Percurso 1
Cap. XIX- Percurso 4
Cap.VIII-Percurso 2
Cap. XX - Percurso 4
Cap. IX -Percurso 3
Cap. XXI- Percurso 4
Cap.X - Percurso 1
Cap. XXII-Percurso 4
Cap.XI - Percurso 2
Cap.XXIII-Percurso 4
Cap.XII - Percurso 3
Cap. XXIV-Percurso 1 y 2
Como podemos observar en este diagrama, la arquitectura
narrativa de la novela sigue una lógica estructural peculiar. En la
primera parte de la novela, como mencionamos, existe una rigurosa
alternancia de los tres percursos narrativos; en la segunda parte de
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la novela, después del magnicidio, hay alternancia de los percursos
narrativos, ya no con el mismo orden, introduciendo incluso dos
percursos en un mismo capítulo (en el XV y el XXIV), hasta
equilibrarse de nuevo la narrativa con el percurso 4 en los capítulos
XIX, XX, XXI, XXII, XXIII y terminar con el último capítulo XXIV,
cuando vuelve el percurso 1 (al cual se integra el percurso 2).
En el análisis de los ejes espacio-temporales de la novela,
partiendo de los percursos narrativos, encontramos el cruce de los
tiempos del relato, a partir de tres recursos: 1. la narración desde el
sujeto narrador, 2. el discurso indirecto libre de los personajes, que
evocan la memoria a corto, mediano y largo plazo, y 3. el discurso
directo de los personajes en innumerables diálogos.
Pero antes de proseguir, es importante detenernos en el análisis
de la dimensión temporal y su complejidad. Si partimos de la
lingüística, se afirma que el tiempo en la lengua no corresponde al
real histórico, y si a esto agregamos que en la literatura se trabaja
con dos tiempos, -denominados de distinto modo de acuerdo a
diversos autores: el del relato y el del discurso, el de la enunciación
y del enunciado, el tiempo comentado (mundo comentado) y el
tiempo narrado (mundo narrado)- nos encontramos con cuatro tipo
de relaciones temporales, que conforman una arquitectura del tiempo,
entre otras posibilidades.
En La fiesta del chivo, el juego temporal entre el presente, el
pasado y el futuro se realiza de múltiples formas, pero lo que
debemos resaltar es que todos estos tiempos pertenecen a capas
distintas, de acuerdo a los percursos narrativos y sus sociogramas
constitutivos, como procuramos ejemplicar, a seguir.
En el percurso 1, de Urania, encontramos el uso del presente
y del pasado en varias etapas, y capas temporales que van desde lo
más cercano, hasta lo más lejano, cuando sólo tenía 14 años, en 1961;
una densidad temporal que se va configurando en los diversos
capítulos de este percurso. En el último capítulo, se alternan el
presente/ el pasado de 1961, que termina con el presente narrativo
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de 1996, año de su regreso , indicado en la página 529, por primera
vez, de manera indirecta:
“De repente alzó el brazo y me miró con sus ojos rojos,
hinchados. Tengo cuarenta y nueve años y, de nuevo, vuelvo a temblar.
He estado temblando treinta y cinco años desde ese momento”, (se
refiere a su encuentro con Trujillo en 1961). El presente de Urania
de 1996, no es el presente de Trujillo y de Urania de 1961, cuando
esta tenía 14 años, son tiempos que pertenecen a capas distintas,
que se alternan sólo por las licencias del discurso literario.
Conclusiones
Terminamos con una reflexión inquietante. Con todo el análisis
desarrollado, percibimos que todavía la historia en República
Dominicana colinda con la ficción, todavía lo histórico parece
ficcional porque, de lo contrario, cómo podríamos entender que
todavía en el año 2000, con la compleja coyuntura internacional y
nacional dominicana, un candidato nonagenario, ciego, sin poder
sostenerse a sí mismo, Balaguer, no sólo se presente como candidato
a la presidencia de su país, sino que tuvo posibilidades de ganar.
Otra vez la realidad regresa con una fuerza novelesca que aturde a
cualquiera y nos hace recordar El otoño del patriarca, García Márquez,
con el tirano muerto-revivido, para seguir con la dominación.
Con La fiesta del chivo, Vargas Llosa logra poner en la mesa del
debate la dictadura de Trujillo, pero lo interesante es que lo realiza
literariamente, desde la ficción, ya que el personaje histórico de
Trujillo y su régimen dictatorial no han dejado de producir en estas
últimas cuatro décadas una especie de tensión que va de la fascinación
a la dura crítica para muchos dominicanos, la cual se expresa, entre
otros elementos, en la amplia producción bibliográfica, que incluye
la historia, la política, la economía , investigaciones y testimonios,
como son ejemplos: la producción de documentales
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cinematográficos, de René Fortunato, y las obras literarias sobre la
dictadura trujillista que abordan momentos trágicos y cruciales, El
masacre se pasa a pie, de Freddy Prestol Castillo, En el tiempo de las
mariposas, de Julia Alvarez, y en menor medida Galindez, de Manuel
Vázquez Montalban. Sin embargo, toda esta producción tuvo un
gran impacto, pero no había logrado despertar el interés masivo
del pueblo dominicano, como pasó con la novela de Vargas Llosa,
que repercutió en dar mayor relevancia a muchas producciones que
no tuvieran la circulación merecida.
En realidad, Trujillo y su régimen dictatorial no han constituido
un tabú, en toda la dimensión que esto significa, para una buena
parte del pueblo dominicano, el cual más bien ha sentido una
fascinación contradictoria por su inmenso poder, resumido en el
sintagma: Dios y Trujillo. El problema más bien se encuentra en la
ausencia significativa de la narrativa, de la ficción, aunque
paradójicamente con Trujillo, como ya mencionamos, lo histórico
se confunde y hasta llega a superar la ficción. Al respecto no deja de
ser curioso, que algunas de las novelas más importantes sobre la
tiranía hayan sido escritas, bien por extranjeros, como Vázquez
Montalban (Galindez), o por dominicanos que, como Julia Alvarez,
han vivido y se han formado fuera del país ( Con la excepción de El
masacre se pasa a pie, sobre la matanza de haitianos, obra escrita por
un dominicano del país).
Las explicaciones de esta ausencia, que ya se está superando,
pueden ser de varios órdenes:
1. Para la intelectualidad dominicana eran más importantes
los estudios e investigaciones histórico-políticas, así como los
testimonios, que la ficción;
2. La producción de un texto histórico o político depende de
una investigación y formación universitarias, mientras que la narrativa
implica una mayor dificultad, al tener el narrador que dominar todos
los avances de la literatura latinoamericana desde el boom de la década
de los 60, que no puede olvidarse como una intertextualidad
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fundante. En otras palabras, la formación de un historiador, de un
analista político es más tangible en menos tiempo, que la gestación
de narradores de talla a nivel nacional e internacional. A pesar de
estos intentos explicativos, quedan todavía muchas dudas sobre esta
ausencia, que por fortuna ya empieza a superarse con clara evidencia,
en la década del 90.
Vargas Llosa ha logrado con su novela un gran impacto, ha
logrado llegar al pueblo dominicano y producir toda una discusión
por varias razones: primero, por utilizar un lenguaje sencillo,
recuperando en cierta medida el lenguaje oral dominicano; segundo,
porque conser va algunas características de la narrativa
latinoamericana contemporánea, pero se distancia de sus
producciones más complejas anteriores, en términos narrativos; y
el tercero, porque la trama de la novela reconstruye la dictadura en
su totalidad, destacando los hechos, momentos, personajes y
características definitorias más importantes de esta tiranía única, con
toda la crueldad y la sumisión que produjo, al ultrajar por el espacio
de 31 años la dignidad del pueblo dominicano.
Por último, el gran reto que se presenta a los escritores
dominicanos es escribir una novela donde se rescate el papel de la
resistencia del pueblo dominicano contra la tiranía de Trujillo, y
muchos otros aspectos que no se han tratado. Este reto corresponde
a una tarea histórica ineludible para los escritores dominicanos, no
sólo para recoger todas las inquietudes que han surgido en varios
artículos sobre La fiesta del chivo, sino también para cumplir con la
función histórico-crítica que debe asumir cualquier escritor en su
producción literaria, como lo logra con la excelencia de un emérito,
Pedro Mir, en su poema inmortal Hay un país en el mundo.
A nuestro juicio, este es el reto que los escritores dominicanos deben
asumir, para ser creadores de un pensamiento crítico desde la
producción literaria. En realidad, el problema nodal de cualquier
obra de ficción es lograr la condensación de una sociedad, con una
postura crítica, en donde la historia no es la dimensión constitutiva
fundamental, ni la recepción debe ser realizada en estos términos,
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sino lo que debe operar es la fascinación del texto, en su materialidad
irrefutable frente al mundo concreto de nuestra compleja realidad.
La fiesta del chivo es una novela histórico-política, en donde la
tragedia del terror es un componente inevitable, al constituir su
objeto central la reconstrucción literaria de una ‘tiranía sin ejemplo’,
como lo ha señalado y analizado magistralmente, Juan Bosch. En
este texto literario, la lectura cumple con su función socio-cultural
de crear una reflexión crítica sobre la historia de las dictaduras, y de
intentar producir una conciencia frente al futuro, para que nunca
más surjan dictaduras, ni dictadores. Pero sólo puede lograr una
interpelación más eficaz para una postura crítica, porque la literatura
se dirige a la emoción, mueve el componente emocional de los
sujetos, al contrario de la historia que se orienta a la razón. Con esta
novela, quedan todavía pendientes muchas inquietudes, para superar
las trayectorias de un pueblo masacrado de modos diferentes por el
trujilllismo y el balaguerismo, como hemos señalado.
Para finalizar, la lectura de esta novela debe integrar la reflexión
de que la humanidad ya vive en el tercer milenio, en el siglo XXI, en
donde los principios de la ética deben orientarnos en la lucha continua
por la libertad y la justicia, para así lograr que los horizontes de la
historia se limpien y dejen aparecer muchos arco iris, llenos de
esperanza.
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(Artículo publicado en el libro colectivo en homenaje a Helena Beristáin)
Editoras: Tatiana Bubnowa y Luisa Puig, 2004, Encomio de Helena. UNAM, México.)
Nota
3
Categoría traducida del francés ‘parcours’, cuyo equivalente en español sería recorrido,
trayectoria, pero preferimos hacer una traducción literal, creando un neologismo, que ya se ha
hecho también en portugués.
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FICÇÃO E HISTÓRIA SOB O
PENSAMENTO DE WHITE
FICTION AND HISTORY
UNDER OF WHITE’S
THOUGHT
João Batista Cardoso
(UFG)1
RESUMO: O vislumbre do mundo a partir de um espaço
poético é feito tanto pelo historiador quanto pelo escritor de
obras literárias. Essas constatações podem ser exemplificadas
em autores de obras literárias, cujos textos são lidos pelos
estudiosos que buscam conhecimentos acerca da conduta social
e política de certo período. Inúmeras obras produzidas com o
objetivo de transmitir conhecimentos acerca de um momento
histórico apresentam esse momento de forma romanceada, tendo
o autor almejado produzir um texto que articula fato e fantasia,
o que tem gerado dificuldade para demarcar, em algumas obras,
o limite entre a ficção e a realidade. O historiador tem um
propósito que subjaz à sua narrativa. Da mesma forma que o
1
Mestrado em Estudos da Linguagem. Departamento de Letras. Universidade Federal de
Goiás (UFG). Câmpus Catalão. CEP: 75.704-020, Catalão, Goiás, Brasil.
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historiador elimina aqueles aspectos que não lhe interessam, cria
outros oriundos de sua interpretação dos fatos para tornar sua
narração coerente, agradável à recepção e vivaz. Essas operações
aproximam os historiadores dos autores de obras literárias, como
será demonstrado no presente artigo que tomou como fonte
para suas considerações o pensamento de White, expresso em
sua poética do discurso.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. História. Ficção. Realidade.
Abstract: The glimpse of the world from a poetic space is done
either by the historian or the writer of literary works. These findings can be exemplified by authors of literary texts whose are
read by scholars who seek knowledge about the social and political behavior of a certain period. Numerous works produced
with the aim of imparting knowledge about a historical period
present this moment in a romanticized form, its author being
concerned with producing a text which combines fact and fantasy, which has generated some difficulties in defining, in some
works, the boundary between fiction and reality. The historian
has a purpose that underlies his narrative. In the same manner
which the historian eliminates those aspects that do not interest
him, he creates others from his own interpretation of the facts,
to make his story consistent, pleasant to reception and vivacious.
These operations approach historians and authors of literary
works, as will be demonstrated in this article which took, as a
basis of reflection, White’s thought , expressed in his poetic of
the speech.
KEYWORDS: Literature. History. Fiction. Reality.
Os estudos literários ancoram-se nas disciplinas que abordam
o homem em suas interações sociais, históricas e antropológicas. A
história também contribui para o estudo do texto literário, não
somente porque há uma história da literatura, mas também porque
há uma articulação entre ambas, pois dividem métodos, formas de
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discurso, personagens e eventos. Cada qual com uma ênfase que as
diferencia e as coloca em campos opostos. A história afasta-se do
mito e se aproxima do conceito e da realidade, privilegiando a
objetividade, ao passo que na literatura prevalecem o mito e a
subjetividade. Os limites que estabelecem essas distinções tornamse muito vagos em certos textos literários ou historiográficos. Muitos
autores de obras literárias escrevem história quando pensam que
estão escrevendo ficção e muitos historiadores escrevem ficção em
seus textos historiográficos.
O vislumbre do mundo a partir de um olhar poético é feito
tanto pelo historiador quanto pelo escritor de obras literárias. Por
isso, a pesquisa histórica não pode prescindir do estudo dos textos
ficcionais nem a análise dos fatos pode ocorrer sem que se pesquise
o tipo de discurso empregado, tendo em vista que o modo poético
dominante, isto é, a visão das interações entre os elementos, auxilia
o estudioso na tarefa de entender a visão de mundo que fundamenta
seu discurso.
Essas constatações podem ser exemplificadas em autores de
obras literárias, cujos textos são lidos pelos estudiosos que buscam
conhecimentos acerca da conduta social e política de certo período.
As obras literárias não têm a função de documentar um momento da
história, fazem-no, entretanto, acidentalmente, porque há interlocução
entre o texto e o contexto. O encontro entre o historiador e o autor
de obras literárias ocorre, portanto, na fonte onde ambos buscam seu
material: o universo social onde o homem transita.
Inúmeras obras produzidas com o objetivo de transmitir
conhecimentos acerca de um momento histórico apresentam esse
momento de forma romanceada, tendo o autor almejado produzir
um texto que articula fato e fantasia, o que tem gerado dificuldade
para demarcar, em algumas obras, o limite entre a ficção e a
realidade. Se por um lado, a realidade humana, que é objeto da
história, está repleta de fantasia e mitos, por outro, o historiador
não tem sua tarefa completada quando registra os fatos. A conclusão
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da tarefa depende da análise dos dados colhidos e comentários. Estes
conduzem sua visão de mundo particular e suas crenças.
O historiador tem um propósito que subjaz à sua narrativa.
Inúmeros fatos que ele registra entram em colisão com esse propósito.
Assim, vários trechos de suas anotações são alijados, seja pela pouca
importância que ele lhes dá, seja porque apresentam ruptura com a
caracterização que ele pretende conferir ao seu enfoque ou ao mundo
que representa. Há, portanto, uma interpretação e todo ato
interpretativo é pessoal e carreia a subjetividade do interpretador.
Da mesma forma que o historiador elimina aqueles aspectos
que não lhe interessam, cria outros oriundos de sua interpretação
dos fatos para tornar sua narração coerente, agradável à recepção e
vivaz. Esse processo é eminentemente subjetivo e, quiçá, poético.
Nas obras históricas basilares, os personagens, mesmo sendo reais,
têm sua atuação identificável com algum dos gêneros
reconhecidamente literários.
Essas questões têm sido discutidas à luz de distintas teorias,
desenvolvidas há vários séculos, desde os clássicos gregos, em obras
como a Poética de Aristóteles, que apresentam conclusões aplicáveis
a textos literários em todos os tempos. O texto também evolui e se
transforma, porque a história oferece, em sua evolução, novos
anseios, novos conteúdos, fazendo com que evoluam também as
expectativas de recepção.
Da mesma forma que um texto produzido no final do século
XIX seria estranho à sociedade de Aristóteles, as conclusões desse
teórico são, isoladamente, insuficientes para um estudo acurado do
mesmo, sobretudo em se tratando de trabalhos que se situam no
limiar da história e da literatura, haja vista que Aristóteles especifica
em campos distintos a História e a Poesia. As conclusões de White
servem como fonte de explicação e análise para os textos dessa fase,
pois os métodos desse pesquisador aproveitam os ensinamentos
aristotélicos e as contribuições que se somaram a esses ensinamentos
ao longo dos séculos.
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Ainda que a teoria literária seja antiga, não pode, hoje,
prescindir das ideias geradas pelo racionalismo, pelo iluminismo e
por pensadores independentes que, articuladas às ideias dos mais
antigos, serviram de fonte para White construir sua teoria. Nesse
sentido, qualquer trabalho que aplique suas conclusões a textos
concretos apresenta contribuição para o progresso dos estudos
literários e históricos. Eis o escopo do presente artigo.
Duas obras literárias em que se pode testar essas postulações
são Os sertões, de Euclides da Cunha e A guerra do fim do mundo, de
Vargas Llosa. Euclides da Cunha foi a Canudos como repórter.
Seus textos seriam, portanto, documentais. Deles surgiu
inicialmente a obra Canudos: diário de uma expedição que serviu de
fonte para a obra Os sertões, cuja classificação tem gerado polêmica
entre os estudiosos. Para alguns, prevalece nela o elemento
sociológico; para outros, é literária e há os que sustentam seu
caráter híbrido.
A crítica que considerou Os sertões como texto literário teve
em vista, sobretudo, sua identidade com as características que
determinaram a classificação de várias obras como pré-modernistas;
isto é, obras que, carreando um viés nacionalista, ensejam uma análise
crítica de um aspecto da realidade brasileira, incluindo-o, dessa
forma, entre autores como Monteiro Lobato, Lima Barreto e Graça
Aranha. Vale ressaltar, como tributo à grande estudiosa de Euclides
da Cunha e, de resto, de toda a literatura brasileira, Walnice Nogueira
Galvão que a inserção de Euclides no pré-modernismo ocorre pela
falta de melhor categoria (GALVÃO, 2009, p. 28).
A guerra do fim do mundo de Vargas Llosa é outra obra no
limiar entre literatura, história e ensaio sociológico; resultou de
pesquisa de campo e articulou a concretude dos eventos relatados
à imaginação. O historiador também utiliza a imaginação, mas no
caso de Vargas Llosa assim como de Euclides da Cunha, esta foi
predominante. A imaginação, no entanto, não inibiu em Euclides
“um mapeamento de temas que se tornarão centrais na produção
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intelectual e artística do século XX, ao debruçar-se sobre o negro,
o índio, os pobres, os sertanejos, a condição colonizada, a
religiosidade popular, as insurreições, o subdesenvolvimento e a
dependência” (GALVÃO, 2009, p. 28).
É possível encontrar elementos da história e da sociologia em
obras literárias sem que estas desfigurem sua caracterização como
tais. Os sertões e A guerra do fim do mundo apresentam tais elementos de
forma muito acentuada. Mantidos os devidos limites contextuais e
estéticos, bem como a cosmovisão subjacente à produção dos textos,
é possível dizer que se trata de obras histórico-literárias, em que se
associou pesquisa histórica, construção do enredo e ação ou forma
como se deu a peripécia dos personagens. Enfim, Euclides da Cunha
e Vargas Llosa conduziram para a literatura um momento da
formação do Brasil.
A representação da realidade efetuada por Euclides da Cunha
e Vargas Llosa é realista. Mas a intensidade com que essa estética
aparece em suas obras é variável. O realismo euclideano constrói-se
sob os emblemas da estética clássica, ao passo que em Vargas Llosa
o realismo é menos denso. Considerando o realismo e o romantismo
em pontos equidistantes, Vargas Llosa ocuparia um ponto entre o
meio e o polo em que se situa o realismo, enquanto Euclides da
Cunha encontrar-se-ia mais à frente, mais perto do polo realista.
A obra literária é condicionada pelo contexto histórico que
participou de sua gestação. Alijando destas considerações os demais
fatores históricos, como a evolução do pensamento, e mantendo a
questão apenas no que diz respeito às relações humanas, conclui-se
que o elemento histórico que, neste aspecto, poderia marcar a visão
de mundo euclideana foi a escravidão.
Durante a vida de Euclides da Cunha (1866-1909) não houve,
no Brasil, a luta pelo controle da nação com base na opção pelas
armas ou pela ditadura. Havia um clima de normalidade em que o
imperador permaneceu no poder ao longo de quase meio século,
mantendo as liberdades individuais e libertando, aos poucos, os
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escravos através de sucessivas leis que culminaram na lei Áurea de
1888, assinada por sua filha, a princesa Isabel. Euclides assistiu à
Proclamação da República e até participou dela, mas o movimento
republicano não foi uma luta contra a opressão que, ainda que tenha
existido como trauma social oriundo das contradições sociais e
dramaticamente registrada em obras literárias, não tem sua existência
documentada pela historiografia de então, por isso, a transição de
um a outro regime ocorreu sem traumas.
Vargas Llosa, tendo nascido 27 anos depois da morte de
Euclides da Cunha, em Arequipa (Peru), a 28 de março de 1936,
não conheceu, em sua terra, um regime monárquico constitucional,
mas uma sucessão de governos militares que tomavam o poder pelas
armas e o mantinham por meio da opressão e da censura, com
notáveis e inquestionáveis exceções. Esses acontecimentos políticos
e esse ambiente ideológico contribuíram para motivar a sensibilidade
de Vargas Llosa em direção a uma literatura voltada à crítica social
e engajada na busca de um mundo mais justo para a América Latina.
Eu diria, utilizando ensinamentos de Antonio Candido acerca da
literatura empenhada e engajada, que a obra vargasllosana tem claro
engajamento na luta pela mudança, tendo em vista que Vargas Llosa
é um apologeta da liberdade. Ele vive uma história individual
subjacente à sua formação de escritor que o leva a produzir uma
literatura que alia arte e protesto, já que seu universo histórico-social
particular apresenta contradições que sugerem denúncia e
transformação.
Seria subestimar a preocupação de Euclides da Cunha em face
das populações marginalizadas do interior se não fizesse registro
semelhante acerca do Os sertões, entretanto, a relação entre a vida de
Vargas Llosa e sua obra é mais patente. Sobre esse aspecto em
Euclides da Cunha, há poucos estudos, apenas algumas conclusões
limitadas a poucas linhas sobre sua filiação ao positivismo e sua
apologia da forma republicana de governo. Euclides da Cunha
também era apaixonado pela mudança e angustiado com a condição
do homem, mas essa angústia e suas causas não são objetos de estudo,
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como o foram em Vargas Llosa. A mudança que ele postulava era
pela introdução da modernidade no universo social brasileiro, para
ele isso já havia se concretizado com a proclamação da República,
mas cedo descobriria que havia se enganado, já que os anacronismos
do regime anterior mantinham-se sob o novo sistema de governo.
O pensamento humano apreende o mundo, simultaneamente,
como uma entidade concreta e uma possibilidade. Essas duas formas
de apreensão — o que existe de fato e o que é possível existir —
estão na base das perguntas subjacentes à formação da Filosofia, da
Ciência e da Arte. A realidade concreta subjaz à realidade possível que
responde à visão de mundo da pessoa que a formula. Enquanto nos
contextos que valorizam o gosto realista as fronteiras que separam
as imagens do possível do mundo real são porosas, os momentos
comprometidos com o gosto romântico criam imagens fantásticas
que apresentam pouca sintonia com a vida concreta.
White (1995, p. 212) diz que a literatura utiliza o mundo das
possibilidades como seu objeto de representação, em oposição à
realidade concreta que é o objeto da História, cuja atuação privilegia
a revelação das forças reais presentes nas tentativas “de concretizar o
ideal [e] cartografar as reais possibilidades para o futuro de uma
sociedade”. Paul Ricoeur (1995, p. 10) entende que a oposição entre
as criações literárias e a narrativa histórica não se dão pela “atividade
estruturante investida nas estruturas narrativas enquanto tais, mas
sim a pretensão à verdade”, que predomina nos enredos das
narrativas históricas. Quer dizer que, na concepção de Ricoeur, a
organização e a sequência do enredo não são itens a considerar no
memento de diferenciar Ficção e História, essa tarefa é reservada
pela pesquisa da verdade que deve demarcar a ação do historiador.
A fronteira que separa o real do ideal é tênue e não raro escapa
à observação. No momento em que se cartografam as reais
possibilidades futuras de uma sociedade, a História opera no mundo
do possível e seu método de investigação adquire semelhança com
os métodos do autor de obras literárias, mas enquanto este
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simplesmente imagina e escreve sem se preocupar com o
atendimento do que prescrevem as convenções de veracidade, o
autor historiográfico prenuncia com base em sua pesquisa da verdade
assentada nos eventos passados ou presentes.
A arte clássica tende a representar o mundo privilegiando a
forma e a ordem em detrimento do caos que marca as produções
românticas. O elemento referencial é, portanto, mais pleno nos textos
clássicos. Da mesma forma que a arte clássica vê a ordem e não o
caos, as narrativas históricas representam a realidade, pois não
distorcem o modo como esta aparece. Mesmo que a realidade das
interações humanas se apresenta caótica, a historiografia tende a
colocá-la numa ordem que atenda a uma lógica com modo de
sequência identificável. Entre o artista e o historiador há, portanto,
pontos em comum; mas esses pontos não são capazes de transformar
um artista em historiador e vice-versa; este último vislumbra
acontecimentos e busca as ideias que estabelecem a ligação entre
eles, enquanto o artista enfatiza a forma e o equilíbrio — tomadas
também como fundo para representar a deformação e o
desequilíbrio.
Os acontecimentos históricos apresentam um conteúdo de
superfície — identificável como fenômeno da essência ou forma
visível dos conteúdos mais íntimos da realidade — e outro de
profundidade, que é o aspecto mais íntimo ou a forma essencial dos
acontecimentos. O conteúdo de superfície pode, ideologicamente,
ocultar os conteúdos mais íntimos do acontecimento histórico. Por
isso, o historiador deve ultrapassar esses conteúdos e penetrar o âmago,
onde os fatos se interpenetram, desnudando a sequência coerente
dos eventos. Cada aspecto de um acontecimento insere-se no
contexto global da História, mas a interação que ocorre entre eles
não é suficiente para formar um enredo, que só ocorre quando o
historiador recorre à literatura, onde busca os princípios que
orientam a colocação dos eventos num enredo. Essa interpretação
resulta de uma operação em que os acontecimentos em sua
particularidade são colados uns aos outros, resultando uma história
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que possa discernir os fatos em sua evolução temporal e em sua
convivência no espaço. Não deve haver tantos opositores a essa
formulação, pois a História, como o próprio nome indica é, sim,
uma sequência de acontecimentos que o historiador entretece entre
si, e disso resulta uma historiografia em que os acontecimentos
particulares se juntam num bloco com sentido.
Enfim, as narrativas ficcionais e os textos historiográficos
dividem entre si os princípios que fundamentam a junção dos
acontecimentos particulares num bloco com sentido, mas sempre
lembrando a ressalva feita acima por Ricoeur, quando falou sobre a
pretensão de verdade que é apanágio da história. Certos textos
literários são fontes de informação para o historiador, porque
oferecem uma visão dos fatos e indicam a cosmovisão predominante
em certa sociedade e período. A História é composta não só de
acontecimentos, mas de ideias que produzem os acontecimentos e
ideias que estes geram. Um acontecimento pode ser representado,
por exemplo, por meio de uma linguagem jornalística vazia de
poeticidade, pois o texto jornalístico compromete-se com a exatidão
das informações apresentadas, esgotando-se, dessa forma, no relato
e na maneira como esse relato recupera o acontecimento
referenciando-o para o receptor. Já as ideias têm na arte o meio
onde se corporificam, pois transcendem o elemento representado e
os insere no universo das imagens.
As postulações acima autorizam afirmar que os recursos
estilísticos do romance têm lugar também na historiografia, pois o
historiador, além de identificar o acontecimento, também formula,
cria e imagina sua sequência e a costura ou a tensão interna entre os
fatos, de modo a construir uma história particular — um enredo.
Nesse sentido, a História realiza-se como uma arte que só se difere
da arte literária porque esta recupera a realidade a partir da dialética
entre o possível e o impossível, enquanto aquela separa o real do
irreal, isto é, o compromisso com a verdade é sua característica
fundamental e a pesquisa desta é aspecto premente da ação dos
historiadores. A apresentação das situações históricas condicionaR E V I S T A ALERE - P R O G R A M A
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se à “sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica
de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais
deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma
operação literária, vale dizer, criadora de ficção” (WHITE, 1994, p.
102). Melhor seria dizer que se trata de um modelo de ação que
aproxima a historiografia da literatura, mas, ao contrário do texto
historiográfico, na literatura o resultado de tal processo redunda na
criação de ficção.
A filosofia desenvolveu-se com base na intuição. Os filósofos
intuem — pensam — o mundo e constroem um sistema de ideias
de onde buscam formular conclusões acerca do desenvolvimento
do homem. A ciência trabalha com conceitos. Seu critério de
abordagem do mundo é empírico. A filosofia questiona a
experimentação empregada pela ciência como forma de abordagem
do mundo.
A História é intuitiva, conceitual e estética, realizando-se, dessa
forma, simultaneamente, como filosofia, ciência e literatura. O
historiador pesquisa os acontecimentos e imagina, intuitivamente,
sua interpenetração. Não há contradição nessa operação, pois
intuição e imaginação são conceitos muito próximos. Os campos
semânticos de que fazem parte apresentam pontos comuns. A
própria forma como os documentos históricos afloram-se ao olhar
do historiador contribui para tanto, visto que há neles vazios e áreas
nebulosas que o estudioso esclarece conceitualmente. Além disso, o
conceito em si — o conteúdo do documento e sua parte nebulosa
— precisa ser analisado, criticado e posto como parte de uma
estrutura com nexo entre os segmentos. Ao atuar nesses níveis o
historiador passeia entre dois polos: ora é poeta e filósofo, quando
age intuitivamente, ora é apenas filósofo, quando age analiticamente
e do jogo dessas funções surge o texto histórico. Mas o lado poético
do historiador não pode aflorar ao ponto de comprometer a
verdade. Para tanto, a intuição e a análise submetem-se à crítica,
visto que todo historiador precisa interpretar os acontecimentos “a
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fim de construir o padrão que irá produzir as imagens em que deve
refletir-se a forma do processo histórico” (WHITE, 1994, p. 65).
Nem todos os elementos encontrados na cena histórica são
aproveitados, pois o propósito narrativo do historiador interfere
na produção do texto, ele retira os fatos irrelevantes ou que considera
como tais. Além disso, entre os documentos há lacunas que são
preenchidas com inferências ou especulações (WHITE, 1994, p. 65);
ambas as atitudes: a da retirada de fatos irrelevantes e o
preenchimento das lacunas são subjetivas. Ele imagina o que um
hipotético documento poderia ter informado sobre algum
acontecimento, ainda que o documento não esteja sob seus olhos
ou mesmo não exista, mas o resultado de sua imaginação deve
assentar-se em princípios lógicos tão rigorosos que não deixem
dúvida quanto à sua exatidão. Passado o momento da crítica dos
fatos em que o historiador decide quanto ao que deve ser omitido,
vem o momento poético, que consiste em recriar, “em sua vitalidade
e individualidade, a miscelânea de acontecimentos como se eles
estivessem diante dos olhos do leitor” (WHITE, 1995, p. 105). O
historiador articula, portanto, imaginação e observação. O resultado
é um tipo específico de enredo.
Cada campo histórico particular é único e os fenômenos que
se apresentam à percepção dos estudiosos são os mesmos.
Entretanto, os historiadores têm, à moda dos autores de romances,
um estilo individual e cada momento histórico apresenta um estilo
de época em consonância com os estilos de época literários; da
mesma maneira, há, conforme conclusões de White (1994, 1995),
tantas maneiras de elaboração de enredo para os textos literários
quanto para os textos historiográficos. Convém advertir, no entanto,
que a despeito de White acreditar dessa forma, a quantidade e a
qualidade de maneiras de elaboração de enredo para o autor de
obras literárias não conhece limite, ele submete apenas à sua vontade
as distintas formas de combinação dos elementos constantes de sua
narrativa. Já a pesquisa da verdade que deve governar a ação do
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autor de obras historiográficas deve limitar a quantidade e a
qualidade das maneiras de elaboração de enredo. Sendo assim, é
evidente que há uma maior quantidade de maneiras de elaboração
de enredo para os textos literários do que para os textos
historiográficos.
Tudo que aparece na História é provocado pela própria
História, é consequência de outro fato antecedente, ou motivado
por fatos concomitantes. Essa postura é, no entanto, contestada pela
História Nova, mas não é escopo do presente ensaio explicar em
que ela consiste. Preferimos manter neste estudo a concepção
tradicional de que a História é diacrônica e inúmeros estudiosos,
privilegiando o processo e a mudança. Se Euclides da Cunha fosse
autor de obras historiográficas, seria incluído entre os historiadores
que praticam esse tipo de historiografia. Os fatos históricos não
apenas se sucedem no tempo, eles convivem no espaço e influem
uns sobre os outros ou se condicionam mutuamente, formando uma
estrutura. Dessa forma, os acontecimentos históricos são
demarcados também sincronicamente. Se Vargas Llosa fosse autor
de obras historiográficas, seria incluído entre os historiadores que
praticam esse tipo de historiografia.
Há, portanto, uma concepção da História como diacronia e
outra como sincronia. Essa assertiva é aceita por White (1995, p.
20), para quem certos historiadores sondam “o que há por trás dos
acontecimentos a fim de revelar as ‘leis’ ou os ‘princípios’ de que o
‘espírito’ de uma determinada época é apenas uma manifestação ou
forma fenomênica”. Para esses historiadores há uma relação mecânica
entre os fatos, na medida em que estes se integram numa relação de
parte com parte ou de causa e efeito. Os historiadores que veem os
acontecimentos em termos de convivência espacial devem conceber
“sua obra primordialmente como uma contribuição para a
iluminação de problemas e conflitos sociais existentes” (WHITE,
1995, p. 20), pois os fatos históricos estariam vinculados,
organicamente, como partes do todo.
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Os historiadores apresentam, esteticamente, os fatos históricos
como narrativas construídas com estrutura de enredo, na medida
em que selecionam “um paradigma de explicação que dê aos seus
argumentos uma forma, um impulso e um modo de articulação
específicos” (WHITE, 1995, p. 20). Para tanto, realizam uma análise
dos dados, operando epistemologicamente e adotando, portanto,
postura cognoscitiva. Essas decisões do historiador não são tomadas
aleatoriamente. Existem em função de uma postura ética que penetra
no campo da ideologia, porque conduz a uma apreensão crítica dos
problemas sociais.
O leitor já se apercebeu que, neste ponto do estudo estou
explicando as teses de White em sua formulação original como corpo
teórico para explorar a ação dos historiadores. A pretensão, no
entanto, é de transcender esses limites e adentrar o universo da arte
literária à luz dessas postulações.
White (1995, p. 11) afirma que o trabalho histórico “é uma
estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa. As
histórias [...] combinam certa quantidade de ‘dados’, conceitos
teóricos para ‘explicar’ esses dados e uma estrutura narrativa que os
apresenta como um ícone de conjuntos de eventos”. Dubois (1990,
p. 96) caracteriza o texto narrativo como aquele que apresenta
“oposição inicial resolvida no próprio relato, intriga presente,
mediação encontrada na intriga, nível objetivo”. Esta caracterização
de Dubois acrescenta dados novos à definição de White, pois este
falou em estrutura narrativa e Dubois listou as características atinentes
a essa estrutura. A formulação de White se dá a partir de uma base
historiográfica, a de Dubois assenta-se sobre bases literárias.
Lima (1983, p. 26) é de opinião que “o discurso literário existe
em si, constituindo uma função verbal diferenciada das outras”. Isso
é fato, mas os limites entre os outros discursos e o texto literário
podem ser mais ou menos porosos, conforme contenham em menor
ou maior grau as qualidades que a teoria literária confere à literatura.
Na obra literária de Euclides da Cunha, Os sertões, as marcas
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qualitativas da literatura estão reduzidas ao ato criativo, à maneira
subjetiva de abordar o universo do Conselheiro articulado a uma
reflexão do mundo e sobre o mundo. Euclides cria e imita, afastandose do método histórico de abordagem, quando transcende os limites
tracejados pela crônica dos acontecimentos e, posicionando-se além
desses limites, passa ao largo da fidelidade e da objetividade. O fato
que ele viu em cada cena teve a mera serventia de aguçar-lhe a
imaginação e recriar o conflito de Canudos como um drama literário.
Um drama cujo enredo atende aos requisitos da tragédia clássica.
Esta conclusão acerca de Euclides da Cunha assemelha-se, com
alguma variação, ao que White afirma sobre a atividade do
historiador em geral, pois defende a objetividade e a imparcialidade
como aspectos do método histórico, mas essa operação científica
de abordagem do evento realiza-se pela mediação da imaginação.
Enfim, a história é documento e a literatura é documento e criação,
mas se o historiador também cria e recria, então onde está a diferença?
Recomendo cautela, neste ponto, para não tomarmos acriticamente
as teses de White, pois se um historiador criar e recriar
excessivamente sobre a realidade histórica, o trabalho resultante será
literário; isto é, o historiador terá cometido o engano de ter feito
ficção quando pensava que fazia historiografia.
Para White (1995, p. 11), os textos históricos “comportam
um conteúdo estrutural profundo que é em geral poético e,
especificamente, lingüístico em sua natureza”, na medida em que o
historiador somente pode levantar suposições sobre as ocorrências
do processo histórico em sua dinâmica diacrônica, quando realizar
o ato poético de “prefigurar como objeto possível de conhecimento
o conjunto completo de eventos referidos nos documentos”
(WHITE, 1995, p. 45). A poeticidade de tal ato origina-se na
circunstância de ser ele “precognitivo e pré-crítico na economia da
própria consciência do historiador. É também poético na medida
em que é constitutivo da estrutura cuja imagem será
subsequentemente formada no modelo verbal oferecido pelo
historiador como representação e explicação daquilo ‘que realmente
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aconteceu’” (WHITE, 1995, p. 45). Mas não se pode esquecer que, a
despeito dessas considerações, a história é uma ciência, enquanto a
literatura é uma modalidade de arte.
Essas postulações implicam que é possível transformar a crítica
do texto histórico em um capítulo da crítica literária utilizando a
teoria tropológica do discurso, na medida em que essa teoria
proporciona “um meio de classificar diferentes tipos de discurso
mais por referência aos modos lingüísticos que predominam neles
do que por referência a supostos ‘conteúdos’ que sempre são
identificados de modo diferente por intérpretes diferentes”
(WHITE, 1994, p. 35). Os modos linguísticos — insiste-se — marcam
qualitativamente os textos poéticos. Neste artigo, o vocábulo poesia
e os vocábulos que deste derivam têm o sentido genérico da palavra
literatura e seus cognatos.
Nem todos os eventos que o historiador encontra na crônica
dos acontecimentos dão a completude dos fatos que ocorrem no
campo. Neste caso, ele imagina como seriam os eventos ausentes e
os acrescenta em sua historiografia, mas o faz seguindo rígidos
padrões lógicos de inferência.
Euclides da Cunha e Vargas Llosa não são historiadores, mas
literatos. Ambos recriaram a realidade. As mudanças efetivadas por
Euclides da Cunha se deram por meio de recursos hiperbólicos e
pela personificação do mundo natural e Vargas Llosa articulou fato
e ficção no mesmo contexto narrativo.
De acordo com Vargas Llosa, não apenas as tendências
realistas da literatura comportam a convicção de que a literatura
é uma variante da história ou a história é uma variante da
literatura, para ele, “la grandeza de la obra artística, de cualquier
género, sea pictórica musical o literaria, es que crea las claves
para la comprensión de la época en que el artista vivió”
(VARGAS LLOSA, 1989, p. 61). Demonstra essa afirmação,
exemplificando com “el romanticismo alemán de principios del
s. XIX, cuando los Fichte y los Heine, todos los de la gran
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literatura alemana romántica estaban creando e interpretando
a su pueblo, y dándole las claves de su propia identidad”
(VARGAS LLOSA, 1989, p. 61).
A revisão da realidade por meio da literatura é um processo
natural que ocorre sem intencionalidade por parte do autor. É
resultado da reação do autor em face do mundo. Seria o caso até de
admitir a intencionalidade, mas como produto da reação. White diz
algo semelhante quando fala da prefiguração poética do campo
histórico pelo historiador, visto considerar que é a primeira reação
deste diante do campo que determina a prefiguração em algum dos
modos linguísticos ou, sendo mais específico, a prefiguração é, em
tese, essa reação que, por sua vez, influirá no modo de explicação,
no modo de elaboração de enredo e no tipo de implicação
ideológica. Isso aponta, em tese, para o fato de que a obra literária
e, por extensão, a obra histórica, não é ideologicamente neutra. A
propósito, Lyra (1979, p. 140) é de opinião que “toda obra literária
tem um alcance político — sobretudo quando não explora problemas
especificamente políticos”. A própria insatisfação que qualifica a
visão de mundo do escritor é uma demonstração dessa vinculação
ideológica da obra literária e da obra historiográfica. No caso do
texto romântico, o sentimento de fuga que o caracteriza não pode
expressar uma alienação do poeta em face do mundo que o rodeia,
mas a manifestação de que, estando insatisfeito com seu mundo,
almeja outros.
O campo histórico, cuja crônica se apresenta ao historiador,
ou a realidade que se mostra ao poeta é único, mas pode ser tratado
de diferentes maneiras, implicando tipos distintos de história ou de
poesia, de acordo com a forma particular com que é referenciado
no texto. Dessa forma, a guerra de Canudos é um tema que, tratado
por Vargas Llosa e Euclides da Cunha, se bifurcou em dois temas
distintos, evoluindo para o romance em um e a tragédia em outro.
A maneira como o herói aparece e atua é fundamental para
se estabelecer os gêneros. Assim, na estória romanesca o herói em
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processo de redenção manifesta autoridade sobre a realidade
opressora; na tragédia ocorre uma falta ou falha grave que o herói
enfrenta; na comédia o que de início aparece como falta ou falha
grave evolui para aquela situação em que se apresenta um defeito
do herói, daí que ele labuta contra uma realidade com a qual se
reconcilia. O desfecho é alegre. A sátira caracteriza-se pela presença
de um herói que vislumbra o mundo com descrença e niilismo.
Para Lima (1983, p. 261), “as ideações a priori não implicam
que as obras empíricas as realizem em sua pureza — sua definição
corre por conta da centralidade da tensão. O dramático se atualiza
como trágico quando o autor radicaliza a pergunta sobre a razão
de ser de algo” e, citando Staiger, assevera que “o autor cômico
cria a tensão para desfazê-la” (1983, p. 116). Essa concepção indica
que não existe um gênero puro, tanto o trágico quanto o cômico
possuem em comum pelo menos a falha essencial e primeira que
desencadeia o conflito; da mesma forma, eles se impregnam de
lírica e épica.
No texto de Euclides da Cunha prevaleceram as interligações
entre os eventos tanto no tempo quando no espaço, já no de Vargas
Llosa o campo foi tomado como povoado por entidades dispersas.
Desta forma, Euclides da Cunha privilegiou o processo, sua obra é
diacrônica, apesar de sua permeabilidade, aqui e ali, à sincronia,
enquanto Vargas Llosa fundou sua preocupação na estrutura, seu
texto é sincrônico, a despeito de uma visão diacrônica pontual do
universo canudense.
O autor de obras literárias não é neutro em sua atividade. Ele
tem uma história individual da qual deriva sua visão de mundo e daí
uma maior ou menor crença nos homens e nas instituições. O mesmo
conjunto de fenômenos pode ser visto por ângulos distintos: aquilo
que um escritor vê por um ângulo, outro apreende de outro ponto
de vista que, por sua vez, determina a forma como apreende cada
evento no seio da sociedade ou na História, onde se ancora para
construir seu enredo. Para alguns, nem há eventos, mas um amplo
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contexto de que cada fenômeno é tão-somente um microcosmo.
Houvesse apenas uma visão, ou fosse a literatura uma ciência, haveria
uma só história contando o que se passou em Canudos. Conclui-se
que o conjunto de eventos e fenômenos realizados a partir da atuação
do homem num espaço há que ser poeticamente prefigurado, pois
nele há personagens agindo. Não há um nível de consciência padrão
à disposição de todos, mas tantas quantas forem as cosmovisões
que subjazem ao labor literário.
Um escritor pode ver os personagens agindo de forma
causalmente determinada. Outro pode entender que cada evento
constante do mesmo palco seja uma amostra do todo e que, na
medida em que os fatos estejam necessariamente integrados no
contexto, este pode ser apreendido a partir do entendimento de
cada fato isoladamente. Há, ainda, os que utilizam, como único
critério para a explicação dos fatos, a relação do homem com os
mitos. São os escritores que percebem a crônica dos
acontecimentos como determinada pela apreensão, por parte do
homem, das semelhanças e diferenças com um mundo
desconhecido, porque distante no tempo ou fora da realidade
sensível. Por último, há quem erige sistemas de pensamento e
conclusões a partir de todas as apreensões possíveis apenas para
questioná-las e duvidar de sua validade, pois não vê sentido algum
na ação dos personagens.
O sertanejo — que é o personagem central tanto em
Euclides da Cunha como em Vargas Llosa —, dado seu
isolamento, fazia parte de uma sociedade fatalista, à margem da
civilização como era conhecida, vivida e concebida no final do
século XIX; tendo, dessa forma, criado um modo de viver que
se marcou por crenças e superstições. A conquista de um lugar
no outro mundo, como ensinado pelo catolicismo e pela Bíblia,
se tornou sua meta primordial; a realidade sensível passou a ser
o elemento pelo qual ele pôde apreender todos os mitos
derivados de sua visão religiosa.
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Referências
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Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995.
DUBOIS, Jacques et al. Retórica da poesia: leitura linear, leitura tabular.
Trad. de Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Cultrix, Edusp, 1990.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Euclidiana: ensaios sobre Euclides da Cunha.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes.
Janeiro: Francisco Alves, 1983.
2.ed.
Rio de
LYRA, Pedro. Literatura e ideologia: ensaios de sociologia da arte.
Petrópolis: Vozes, 1979.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. de Marina Appenzeller. São
Paulo: Papirus, 1995.
VARGAS LLOSA, Vargas Llosa. A guerra do fim do mundo. Trad. de
Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1990.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Trad.
de José Laurênio de melo. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995.
_____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. de
Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 1994.
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MEMÓRIAS DA IMIGRAÇÃO
JAPONESA NO BRASIL: UMA
LEITURA DE NIHONJIN (2011),
DE OSCAR NAKASATO
MEMORIES OF JAPANESE
IMMIGRATION IN BRAZIL: A
READING
OF NIHONJIN (2011), BY
OSCAR NAKASATO
Antônio Roberto Esteves
(UNESP-Assis)1
RESUMO: A imigração japonesa é uma das mais importantes
do Brasil e o processo de construção de identidade dos
descendentes da diáspora nipônica talvez seja um dos mais
doloridos, por motivos variados. O paranaense Oscar Nakasato,
descendente dessa diáspora, escolhe o romance, com suas múltiplas
possibilidades, para abordar o tema. Fugindo das construções
1
Docente do departamento de Letras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis. [email protected]
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MEMÓRIAS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL: UMA LEITURA DE NIHONJIN (2011), DE OSCAR NAKASATO
A NTÔNIO R OBERTO E STEVES
épicas, pouco apropriadas aos tempos de globalização, ele relata
através da saga de três gerações o complexo processo de deixar
de ser japonês e passar a ser brasileiro. Seu romance Nihonjin (2011)
é um dos parcos exemplos que tratam da integração de imigrantes
japoneses à cultura brasileira. Ancorado no processo da memória,
esse romance histórico faz uma espécie de leitura a contrapelo do
processo de inserção dos nihonjin na cultura brasileira. Com uma
narrativa ao mesmo tempo ágil e suave, entrecruzando várias vozes
e pontos de vista, o romance tenta preencher as muitas lacunas
existentes no relato da épica familiar. Escorando-se em vozes
dissonantes, prefere construir, em lugar da saga dos emigrantes
japoneses e seu sofrimento ao abandonar a pátria, a aventura de se
tornarem brasileiros.
PALAVRAS CHAVE: Memória da imigração japonesa no
Brasil. Construção da identidade nipo-brasileira. Romance
histórico brasileiro. Oscar Nakasato. Nihonjin.
ABSTRACT: Japanese immigration is one of Brazil’s most important populational movements and the process of identity construction by the descendants of the Nipponese diaspora is perhaps one of the most painful, for various reasons. Oscar Nakasato,
descendant of this diaspora, chooses the novel, with its multiple
possibilities, to approach the theme. Evading epic construction,
almost inappropriate to the globalization era, he reports, through
the saga of three generations, the complex process of ceasing to
be Japanese and becoming Brazilian. His novel Nihonjin (2011) is
one of the few examples related to the integration of Japanese
immigrants to Brazilian culture. Anchored in the memory process,
this historical novel is a kind of reading in a contrary direction of
the process of insertion of the nihonjin in Brazilian culture. With a
narrative at once agile and gentle, intersecting multiple voices and
points of view, the novel tries to fill the many gaps in the history
of the family epic. By yielding on dissenting voices, the author
prefers to build, instead of the saga of Japanese emigrants, as well
as their suffering for abandoning their country, the adventure they
experience in becoming Brazilians.
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MEMÓRIAS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL: UMA LEITURA DE NIHONJIN (2011), DE OSCAR NAKASATO
A NTÔNIO R OBERTO E STEVES
KEYWORDS: Memory of Japanese immigration in Brazil.
Construction of Japanese-Brazilian identity. Brazilian historical
novel. Oscar Nakasato. Nihonjin.
Nihonjin, nissei, nipo-brasileiro, nipônico, Nikkei e ni sei o que,
assim nós, os descendentes dos pioneiros que vieram do outro lado
do mundo, fomos chamados ao longo das décadas.”
Jorge Nagae
Uma porta que se abre...
É quase um lugar comum abordar a saga das grandes massas
imigratórias que cruzaram oceanos em busca de uma terra que
oferecesse condições de vida que essas pessoas não tinham em suas
terras de origem, particularmente na transição do século XIX para
o XX. Muitos japoneses, expulsos de suas terras pela reorganização
econômica causada pela industrialização, optaram por vir para o
Brasil, uma das terras da promissão. Na mentalidade de boa parte
desses emigrantes, no entanto, o deslocamento seria provisório e
deveria durar apenas o suficiente para acumular algum capital na
nova terra e poder retornar. Na maior parte dos casos, porém, a
separação foi definitiva e eles tiveram que se integrar à terra adotiva,
tratando de assimilar a cultura local, ao mesmo tempo em que eram
assimilados por ela.
O trauma da não concretização do desejo inicial e o confronto
com a realidade posterior costumam estar no centro dos relatos
dessas comunidades que passaram a enriquecer o processo de mistura
que deu origem a essa entidade multicultural que chamamos de Brasil.
A construção da nova identidade é demorada e traumática. Há o
confronto da identidade antiga, construção discursiva que trata de
se manter viva na memória daqueles que abandonaram sua terra,
com o desejo das novas gerações de deixarem de ser diferentes e se
transformarem em brasileiros.
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A imigração japonesa foi uma das mais importantes do Brasil:
representou o quinto contingente, no período de 1819 a 1939, depois
de italianos, portugueses, espanhóis e alemães (ALVIM, 1998, p.
233). E o processo de construção de identidade dos descendentes
da diáspora nipônica talvez seja um dos mais doloridos, por motivos
variados. Em geral, a primeira geração nascida no Brasil, ainda
imbuída da esperança dos pais, acalentou o desejo de regressar ao
Japão. Mesmo tendo se integrado relativamente à cultura brasileira,
cultivou muitos valores ancestrais preparados para se reintegrar à
velha pátria quando fosse necessário. Mantiveram a língua japonesa
não apenas em situação familiar e principalmente aqueles que foram
educados antes do governo brasileiro proibir, nos anos trinta, as
escolas em língua estrangeira, aprenderam a ler e escrever nessa
língua, além de serem alfabetizados em português.
Nesse contexto, a chamada colônia japonesa em nosso país
foi uma das mais conservadoras, se pensamos em projetos de
integração ao país de adoção. Mesmo quando se esvaeceram as
possibilidades reais do retorno à terra dos antepassados,
especialmente depois da derrota do Japão na Segunda Guerra, essa
colônia criou um discurso especial de manutenção e exaltação de
sua cultura. Praticamente integrados à cultura dos Estados em que
se fixaram, especialmente os Estados do centro-sul do país, os nipobrasileiros marcaram profundamente a economia dessas regiões,
sobretudo graças às inovações por eles introduzidas na agricultura.
Da mesma forma, tais inovações agrícolas acabaram por impor
também uma série de hábitos alimentares e gastronômicos. Em
termos gerais, também na cultura pode ser notado o rasto de sua
presença.
Além disso, edificaram e alimentaram uma construção
simbólica: o nipo-brasileiro é bem educado, sério e responsável. A
família é bem estruturada, seguindo os valores nipônicos que
colocam a coletividade em primeiro plano, restando pouco espaço
para manifestações da individualidade. Os mais velhos são
respeitados e dos jovens se exige, além do respeito àqueles, seriedade
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nos estudos e no âmbito profissional. Devem ocupar os primeiros
lugares, tanto nos estudos, quanto no trabalho. Seria uma forma de
se integrarem na nova cultura ocupando um espaço normalmente
negado aos estrangeiros (NAKASATO, 2008). Com todos esses
estereótipos, os descendentes da diáspora nipônica no Brasil têm
que lutar arduamente em seu dia a dia, na construção de sua
identidade brasileira.
Nihonjin ou a árdua luta para se tornar brasileiro
Publicado em 2011, Nihonjin, o primeiro romance do
paranaense Oscar Nakasato, anteriormente conhecido e laureado
como contista, já nasceu premiado: foi o vencedor do Primeiro Prêmio
Benvirá de Literatura concorrendo com quase dois mil participantes.
Em 2012 receberia o tradicional Prêmio Jabuti em sua categoria. A
obra traça a trajetória de três gerações de uma família de imigrantes
japonese e suas peripécias no processo de adoção da nova terra.
A história é narrada por um neto de Hideo Inabata, uma
espécie de protótipo do imigrante orgulhoso de sua condição
nipônica, que desembarca no Brasil nos anos 20 acalentando o sonho
de conseguir dinheiro suficiente para voltar à terra natal o mais breve
possível. Ao longo da vida ele enfrenta o árduo trabalho rural, a
difícil adaptação em uma terra desconhecida e o conflito com
diversos membros da família pouco dispostos a seguirem suas estritas
normas de conduta, baseadas em regras ancestrais de um Japão
tradicional, pouco adequadas à realidade que o rodeia.
Em sete capítulos, com narrativa em primeira pessoa, na voz
de Noboru, neto do patriarca, o romance alterna um “estilo ora
objetivo ora poético” (NAGAO, 2012). A memória pessoal se junta
à memória familiar e a imaginação preenche as muitas lacunas que
vão surgindo entre os relatos dos mais velhos. As duas pontas do
arco narrativo, que conta a história das três gerações familiares, marcam
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o período situado entre a saída do Japão do patriarca Hideo, em um
dia indeterminado dos anos 20, para concluir, em outro dia também
indeterminado, talvez nos anos 90. É quando o narrador, que
reconstrói minuciosamente a saga familiar, faz uma visita final ao avô,
poucos antes de empreender a viagem de volta, à procura de um
homem antigo, rural, talvez o avô, mas também ele próprio, em um
Japão pós-moderno, com o pretexto de seu trabalho como dekassegui.
A temporalidade é escorregadia como a memória: há poucas
datas no romance. Uma delas marca o dia em que Hideo foi preso:
06 de abril de 1943 (NAKASATO, 2011, p. 83). Acontecimentos
históricos servem como marco cronológico: a Segunda Guerra
Mundial e a derrota japonesa ou a ditadura militar brasileira dos
anos 60-80, entre outros. Em geral, no entanto, o tempo flui com os
acontecimentos cotidianos, recuperados pela rede de memória
familiar, seja a do próprio narrador, seja a dos demais membros do
clã. O próprio narrador apresenta sua definição de tempo: “O tempo
só existe porque se fazem coisas, umas após as outras, e elas, quando
são evocadas, surgem em uma nova realidade, e então não são as
mesmas. [...] O tempo é atemporal.” (NAKASATO, 2011, p. 174).
E todo o relato que constitui o romance, reconstituição da
memória individual, do narrador e de sua família, por metonímia
da própria imigração japonesa no Brasil, é for mado pela
superposição de um passado, resultado da fusão de fragmentos da
memória que se juntam para formar a totalidade construída pelo
narrador. Aí, passado e presente se fundem: o presente reelabora o
passado que dá sentido ao presente: “O passado agora habitava
outro espaço, surgia para justificar o presente, era reconstruído, e
não se necessitava ter restauradores, que eles são rigorosos,
preocupam-se com milímetros e cores exatas”. (NAKASATO, 2011,
p. 174).
Nessa reelaboração, o silêncio adquire papel essencial, uma
vez que é “uma ausência necessária para que as lembranças e as
aflições pudessem povoar os nossos desvãos.” (NAKASATO, 2011,
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p. 175). Tais desvãos são preenchidos de várias formas: através dos
relatos dos vários membros da família ou principalmente através
da imaginação do narrador, que cria uma teia de vozes em mise en
abyme para ocupar tais espaços antes vazios. “Tio Hanashiro me
contou alguma coisa dela que o vovô havia lhe dito muito tempo
atrás, coisas de que o próprio ojiichan se esquecera [...]”
(NAKASATO, 2011, p. 10).
Fragmentos de fotografias e relatos dos mais velhos são os
vestígios através dos quais os ausentes adquirem vida e povoam o
presente da narrativa. As fotos antigas e as histórias explicando e
identificando cada uma daquelas imagens amareladas pelo tempo
são o elo que estabelece a ligação entre fiapos da memória familiar
e que permite criar a história daqueles imigrantes embrutecidos pela
dureza da vida nos cafezais. São as reminiscências a que se refere
Benjamin (1985, p. 224), que precisam ser apropriadas para poderem
significar. É a forma através da qual a imagem do passado perpassa,
veloz, para deixar-se fixar como “imagem que relampeja irreversível,
no momento em que é reconhecido”. (BENJAMIN, 1985, p. 224).
Muitas são as histórias que se perdem, indivíduos que são
apagados pelo esquecimento, natural ou proposital. É contra esse
apagamento que se ergue a voz do narrador, tratando de extrair do
fundo das gavetas ou de obscuros rincões da memória, resquícios
convertidos em cacos de memória que serão cuidadosamente colados
para reconstruir figuras desconhecidas ou olvidadas.
Se a fotografia é um importante resquício desse passado
perdido, o jogo do olhar ocupa um papel fundamental no relato. É
através dele que antigas imagens borradas readquirem novos
significados e contam outras histórias, até então apagadas e/ou
esquecidas. O olhar do narrador incorpora o olhar do outro
presentificando-o em seu relato. “Depois, quando o navio chegou
ao porto de Santos, vi Kimie se espremendo em meio aos homens e
mulheres maiores que ela, procurando um espaço na amurada.”
(NAKASATO, 2011, p. 17).
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Pode-se dizer que o romance de Nakasato realiza, a partir das
bordas, com o foco em personagens ex-cêntricos (HUTCHEON,
1991), uma leitura da saga da imigração, desmitificando o modelo
tradicional, centrado na epopeia heroica com o objetivo de louvar
o sacrifício dos imigrantes que, mesmo em condições adversas
lutaram para manter de pé os valores, em geral ultrapassados, racistas
e preconceituosos, daquilo que consideravam ser o pilar da cultura
japonesa. De alguma forma, essa leitura dessacralizadora já tinha
sido feita, em 1980, pelo filme Gaijin, de Tizuka Yamasaki, com o
qual Nihonjin dialoga de modo claro.
Desse modo, a saga de Hideo Inabata é contada enfocando
três personagens silenciados pela tradição familiar, que são
recuperados pelo relato do narrador. Cada qual a seu modo e com
sua atuação particular, esses personagens ajudam a corroer o louvado
modelo tradicional do imigrante nipônico. Dois deles são mulheres,
já per se pouco consideradas numa sociedade patriarcal e
falogocêntrica (CEIA, 2013) como a cultura japonesa de fortes
marcas rurais do século XIX. Apontar a mulher como elemento
secundário na cultura japonesa tradicional é quase um lugar comum.
Cabia à mulher, naquela sociedade agraria e rural, um papel
secundário de mero coadjuvante do homem, com a função de esposa
obediente e trabalhadora e mãe zelosa. Duas das três mulheres que
ocupam o protagonismo do romance fogem a esse papel e são
extirpadas do núcleo familiar sofrendo seu desprezo. O terceiro
protagonista ousa a enfrentar o feroz nacionalismo nipônico e pagará
com a vida o desejo de integrar-se à sociedade brasileira.
Cronologicamente, e também no relato, uma vez que abre o
romance, o primeiro desses personagens ex-cêntricos é Kimie, a
primeira esposa de Hideo. Dela pouco se sabe. “Há uma fotografia
dela em preto e branco [...], as bordas cortadas em pequenas ondas
pontudas, amarelada [...]. Quem se lembra dela?” (NAKASATO,
2011, p. 9). No momento do desembarque, o narrador a vê “se
espremendo em meio a homens e mulheres maiores que ela,
procurando um espaço na amurada.” (NAKASATO, 2011, p. 17)
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Frágil e sonhadora, estará sempre procurando um espaço próprio,
mas não conseguirá vencer as adversidades. Acaba por morrer de
tristeza, por não adaptar-se à nova terra nem ao rigor do marido.
Antes de morrer, não sem muita crise de consciência, ela tem uma
aventura extraconjugal com Jintaro, o agregado da família, sensível
e poeta, homem oposto a Hideo. Ela morre sonhando ver a neve
caindo nos cafezais paulistas. Dela resta apenas uma fotografia
apagada e alguns fragmentos narrativos.
No entanto, é ela, sempre “calada, cabisbaixa, encaramujada”,
como corresponde a uma mulher japonesa de seu tempo, quem
primeiro estenderá a mão rumo à integração à nova terra e à sua
gente. Apesar de não se adaptar à vida bruta da fazenda de café, ela
estabelece amizade com Maria, negra “altiva, sorridente e bela”
(NAKASATO, 2011, p. 17), que vem lhes dar as boas vindas por
ocasião de sua chegada à colônia de café. Apesar da oposição do
marido, Kimie mantém sua amizade com Maria, conhecedora de
chás e ervas que a curam várias vezes, mas que não são suficientes
para salvá-la.
Evidentemente, tal personagem deveria ser banido da memória
gloriosa da imigração nipônica. Pode ser um exagero de Nakasato
concentrar em Kimie uma série de características indesejáveis na
construção idealizada do imigrante japonês: mulher; frágil;
inadaptada ao trabalho duro da lavoura; apaixonada pelo agregado
familiar que cultiva as letras e é sensível; amiga de uma negra,
contrariando as ordens do marido e, principalmente, incapaz de
gerar filhos para seu marido rude e autoritário.
Com a partida de Jintaro, agregado ao casal para atender às
exigências das autoridades migratórias brasileiras de três enxadas
por família; e com a morte de Kimie, Hideo teve que se juntar,
agora como agregado, a outra família. Acaba se casando com uma
das filhas e então constitui sua própria família. A nova esposa é o
que se espera de uma japonesa: trabalhadeira, obediente, calada.
Nascem e crescem os filhos e como normalmente ocorre com os
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imigrantes, a família abandona a fazenda de café e arrenda um sítio,
onde se dedica à agricultura e à pecuária. Mais tarde se dirigem para
a cidade, fixando-se como comerciantes no bairro da Liberdade,
em São Paulo. A educação da prole segue o padrão da colônia: a
escola brasileira visando dar aos filhos conhecimentos básicos de
língua portuguesa e ao mesmo tempo a rigorosa escola japonesa.
É nesse contexto que começam, já de criança, os problemas
com Haruo, o segundo filho, o “diferente que queria ser igual”, que
não hesita em contrariar os ensinamentos paternos em seu afã de
tornar-se um brasileiro. Ele é o núcleo do segundo foco ex-cêntrico
do romance. Desde criança nega-se a aceitar a identidade de nihonjin,
preferindo aproximar-se dos gaijin. Os conflitos com o pai serão
inúmeros, mas o preço maior de sua opção integracionista é seu
assassinato pelos kachigumes da Shindo Renmei, a Liga do Caminho
dos Súditos, logo após a Segunda Guerra mundial. Sua morte, nos
braços do pai, que era militante da Liga, imprime uma marca
dolorida no caráter de Hideo, que não deixa, no entanto, de ser um
homem extremamente rigoroso. No âmbito privado, ele sofre a
morte do filho, mas o final do romance mostra um ancião que,
embora atormentado pela morte do filho, se dedica com mãos firmes
à técnica do bonsai, modelando com arame e alicate, as formas da
planta.
O episódio da Shindo Renmei talvez seja a parte mais
controversa da história da imigração japonesa no Brasil. Por um
lado, costuma ser usado pelos nacionalistas brasileiros para denegrir
a imagem desses imigrantes e dos nipo-brasileiros. Os idealizadores
da saga heroica da imigração japonesa, por sua vez, durante muito
tempo preferiram passar de modo superficial e rápido pelo episódio.
Vista com desconfiança pelo grosso dos brasileiros devido a
seu caráter fechado, a colônia japonesa foi bastante atingida durante
a ditadura nacionalista de Getúlio Vargas. Entre outras coisas, o
regime de Vargas proibiu a educação em língua estrangeira no país,
além da circulação de publicações em língua estrangeira. Com a
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entrada do Brasil na Guerra, os japoneses passaram a ser vigiados
de perto, ficando praticamente confinados e isolados.
Nesse contexto, em 1942, como resultado da reação a ataques
violentos contra japoneses em Marília, um grupo de nacionalistas
japoneses fundou a Shindo Renmei, Liga do Caminho dos Súditos,
em japonês. Com a derrota do Eixo na Guerra, a colônia japonesa
dividiu-se em dois grupos: aqueles que se negavam a aceitar a derrota
do Japão, conhecidos como kachigumis e os que aceitaram a derrota,
normalmente mais propensos à integração ao país, conhecidos como
makegumis, os “corações sujos”. Estes últimos, em geral pessoas mais
cultas, mais esclarecidas, que ocupavam o topo da sociedade nipobrasileira, passaram a ser perseguidos pelos tokkotais, membros das
“Unidades Especiais de ataque por choque corporal” (DEZEM,
2000, p. 69), braço armado da Liga, sendo muitas vezes executados.
Capítulo pouco lembrado pela historiografia oficial da
imigração, esse episódio merece destaque especial no romance, com
o relato da morte de Haruo e suas ressonâncias na família. O capítulo
6 começa com a frase “LAVE A SUA GARGANTA, TRAIDOR”
(NAKASATO, 2011, p. 131). Trata-se da frase escrita em japonês
no muro da casa de Haruo, texto com que normalmente começavam
as cartas com a sentença de morte ditada aos makegumis.
O intertexto, neste caso, é o conhecido livro de Fernando
Moraes, quem após rigorosa pesquisa sobre o tema, relata o episódio
dos conflitos entre kachigumis e makegumis em Corações sujos, de 2000,
onde também apresenta um bom panorama da história da imigração
japonesa no Brasil. Do mesmo ano, decorrente da abertura dos
arquivos do antigo DEOPS e do inventário de seu conteúdo, é o
estudo de Rogério Dezem, Shindô-Renmei: terrorismo e repressão, que
provavelmente também foi utilizado nas pesquisas de Nakasato, uma
vez que várias informações ali constantes aparecem no romance.
Assim, ao trazer para o centro de seu romance essa “página
negra da História da imigração japonesa no Brasil” (DEZEM, 2000,
p. 28), Nakasato, de acordo com os princípios norteadores do
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romance histórico contemporâneo, trata de trazer o episódio para o
centro das discussões, contribuindo para superar o tabu que havia
relegado ao esquecimento tal episódio. Assim, parece que Nakasato,
ao retomar a questão, da forma como a apresenta em Nihonjin, não
apenas indica a necessidade de evitar o esquecimento, mas também
sinaliza para a necessidade de uma memória apaziguada, uma memória
reconciliada, enfim, uma memória feliz. (RICOEUR, 2007, p. 504)
O foco principal do romance, no entanto, é a história de Sumie,
também filha de Hideo e mãe do narrador, que abandona o marido
e os filhos pequenos para viver um grande amor com o brasileiro
Fernando. Embora a narrativa sinalize para o perdão, parece que
ninguém na família a perdoou, com exceção de sua mãe Shizue. O
capítulo 5 começa com a frase “Às vezes penso em ir vê-la”
(NAKASATO, 2011, p. 99), mas fica a impressão de que o rancor
pesa mais que o amor e o narrador, embora tenha em seus olhos sua
imagem, não consegue superar o trauma de ter sido privado da
presença materna em sua infância. E tampouco ele toma a iniciativa
de ir vê-la, ainda que sofra ao antecipar sua possível morte...
Esse é o drama da família que, de alguma forma, humaniza e
enlaça os dois protagonistas básicos do romance. O velho patriarca,
imigrante japonês, faz um balanço de sua vida no qual parecem
constar mais derrotas que vitórias. Sua pretensa retidão, sempre
seguindo os preceitos de um código rígido, fundado em valores
arcaicos, parece ruir diante de tantos dissabores. Seu esforço parece
ter sido em vão: não conseguiu voltar à sua terra natal e não conseguiu
forjar seus descendentes de acordo com seus valores.
O último capítulo do romance, nesse sentido, oferece uma
leitura aberta (até mesmo dúbia). Por um lado, Hideo reconhece
que perdeu a oportunidade de compreender os próprios erros,
reconhecendo-os diante do filho Haruo, executado pelos tokkotais
da Liga. Ao mesmo tempo em que sinaliza que “não conseguira
compreender a tempo que vivia uma grande ilusão” (NAKASATO,
2011, p. 171), referindo-se a sua postura intransigente com relação
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ao Japão, ele é apresentado no jardim, podando com golpes firmes
seus bonsais. Essa comunhão entre a natureza e as mãos humanas
produz belas flores, sinalizando simbolicamente, e paradoxalmente,
se pensamos que as mãos são de um ancião, o ciclo vital da primavera.
Por outro lado, no entanto, reitera o controle da tesoura firme que
poda galhos e dirige os brotos de acordo com o desejo humano.
Do mesmo modo, o velho japonês vê com ceticismo a ideia
de o neto ir ao Japão e lhe diz com palavras nuas que o Brasil é a sua
terra. A imagem final, aberta, aponta o narrador despedindo-se do
avô, e também da história, e dirigindo-se ao portão. Simbolicamente,
o portão representa uma zona de transição, uma travessia, um
entrelugar (SANTIAGO, 1978).
Desta vez, como se a roda da vida girasse ciclicamente, a
partida se faz em sentido inverso. O velho japonês, que veio para o
Brasil com a ideia de permanecer pouco tempo e nunca mais
regressou, fica no jardim, uma vez que já não vê nenhum sentido na
pátria antiga. O neto, que se considera brasileiro, e que conhece os
mecanismos da história, pois é historiador, fará o caminho inverso,
talvez tentando reencontrar a terra abandonada pelo avô. Como
historiador ele trata de reconstruir através de um relato, não
histórico, mas ficcional, a saga familiar. A reconciliação necessária
com a mãe, no entanto, fica pendente. Pode-se associar, neste caso,
a mãe com a terra, com as origens. Apesar de não voltarem a vê-la,
nem o avô, nem o neto, ambos sabem que ela está ali, na memória
de ambos, talvez esperando a reconciliação necessária para que a
primavera possa ter o sentido de vida que se recicla...
Seguir em direção ao portão (aberto)...
Apesar da ruptura com a tradicional saga da migração, o
romance de Nakasato mantém alguns lugares comuns dos relatos
que tratam do tema. A família se encaixa perfeitamente no caminho
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seguido pelos imigrantes. Ao chegar ao Brasil, Hideo fixa-se no
campo, inicialmente na lavoura de café, para depois dedicar-se a um
sítio, antes de imigrar para a cidade, onde monta um estabelecimento
comercial no bairro paulistano da Liberdade. Seus filhos serão
comerciantes ou prestadores de serviços. Netos e bisnetos irão à
Universidade, já integrados à cultura brasileira. Um bisneto treina
“numa escolinha de futebol com um ex-jogador do Palmeiras”
(NAKASATO, 2011, p. 167). O tripé valorizado pelos imigrantes
japoneses e seus descendentes: família, educação e trabalho
(NAKASATO, 2008) é mantido firmemente. Isso explica as fraturas
ocorridas, no caso das mulheres que escapam do tacão do
patriarcalismo exacerbado.
O romance, entretanto, faz uma releitura dessacralizadora da
saga da imigração japonesa. Mais que a saga do imigrante japonês
em terras estrangeiras, temos a aventura da integração do nihonjin ao
novo país e à nova cultura. Mesmo o retorno em busca das possíveis
raízes efetuado pelo dekassegi, ao final do relato, reveste-se mais de
constatação da diferença que de busca da identidade. O avô, na
despedida, afirma que é o Brasil, não o Japão, a terra do neto.
Nessa leitura desmistificadora o foco está no próprio relato,
tentativa de reconstrução da memória a partir do preenchimento
das lacunas apagadas pelo esquecimento. Trata-se, portanto, de uma
metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991) que evidencia
claramente o construto discursivo como eixo da narrativa. Há um
narrador que reúne relatos dos mais velhos tentando entender o
porquê de certos apagamentos na memória familiar. Ao mesmo
tempo, ele vai articulando fragmentos de memórias próprias e alheias
e, a partir delas, constrói outra versão para a saga familiar.
Nesse transcurso, as fotografias, reminiscências do passado
que se atualizam no presente, tem um papel importante. O espaço
entre o instante passado perpetuado no papel e sua significação no
presente vai sendo preenchido pelo relato que, a cada instante, negocia
e renegocia significados. Nesse processo as verdades consolidadas,
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pela voz do patriarca, pela tradição do discurso heroico da saga do
imigrante, pelo discurso estereotipado sobre os nipo-brasileiros,
entre outras, vão se dispersando, dando lugar a verdades negociadas,
relativas; versões que surgem da polifonia de vozes que ressoam a
cada instante. Cabe, ao leitor, responsável pelo processamento dessas
versões, reconstruir e/ou acatar aquela que mais lhe interesse, aquela
mais esteja de acordo com seu desejo.
Como romance histórico, gênero híbrido por natureza, a
narrativa de Nakasato incorpora procedimentos tanto da ficção
quanto da história, em especial o “desejo de selecionar, construir e
proporcionar auto-suficiência” (HUTCHEON, 1991, p. 146). E
principalmente o objetivo de duvidar das verdades consolidadas e
hegemônicas, de corroer as versões impostas pelo poder patriarcal,
assentado em versões homogêneas que desconsideram o diferente,
o particular. Daí a importância da mudança do foco, trazendo para
o centro da narrativa o ponto de vista dos ex-cêntricos, dos apagados,
dos esquecidos, dos silenciados. A metáfora do bonsai com que se
fecha a história é significativa: modela-se o passado de acordo com
o presente. Mesmo que o narrador de Nihonjin seja masculino, o
relato trata de tirar do anonimato as vozes femininas reprimidas.
Nesse processo, uma técnica narrativa característica do
romance histórico pós-moderno articula a construção de Nihonjin:
o diálogo intertextual. Ao reescrever em seu romance a saga da
imigração japonesa no Brasil, Nakasato faz uma leitura a contrapelo
da saga da imigração. Seu romance é uma espécie de paródia da
épica da imigração que normalmente se repete no imaginário do
discurso heroicizante da imigração.
As páginas do romance de Nakasato, nesse sentido, dialogam, às
vezes diretamente, às vezes indiretamente, com uma biblioteca virtual,
uma espécie de “memoria literária” (SAMOYAULT, 2008, p. 75) que
reúne um repertório literário e cultural vivo, sobre a imigração japonesa
no Brasil. Dessa biblioteca, talvez a presença mais evidente, notada desde
o título, seja o filme de Tizuca Yamasaki, de 1980, que de alguma forma,
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embora ainda mantivesse um tom heroico, já apresentava importantes
inversões na saga do imigrante, principalmente ao colocar a mulher no
centro da epopeia e ao defender a integração do japonês à cultura
brasileira. A saga da imigração é pintada em Nihonjin com cores muito
similares àquelas que apareciam nas imagens de Gaijin. Isso evidencia
não uma simples leitura, mas uma homenagem da narrativa de Nakasato
ao filme de Yamasaki.
Tanto Gaijin quanto Nihonjin dialogam com a matriz tradicional
do relato épico da imigração, tratando de dessacralizá-la. Em ambas
as obras, o ponto de vista deixa de ser patriarcal e localiza-se na
mulher que trata de romper a estrutura imposta por uma cultura
assentada no poder do macho castrador. Se em Gaijin, de um modo
idealizado, a narrativa conclui apontado para a difícil, mas possível
integração do imigrante ao novo país e para a libertação das amarras
que prendiam a mulher, em Nihonjin, mais realista, ocorre a
recuperação dessas vozes que pagaram com a vida ou com a solidão
a ousadia de sua transgressão.
Assim, ao se estruturar no enredamento entre ficção e história,
entre realidade e fantasia, estilhaçando o tempo linear e rompendo
com o documentalismo essencialista, com o localismo restritivo e
com a visão plana da história, o romance de Oscar Nakasato
descontrói lugares comuns da historiografia da imigração japonesa
no Brasil, do pensamento excessivamente exaltador e muitas vezes
doentio de um falogocentrismo exacerbado. E nas gretas dessa
desconstrução faz brotar novas possibilidades de leitura da saga
dessa imigração, entre as quais o drama da integração do nipobrasileiro à cultura brasileira e, por contiguidade, desse enorme
palimpsesto a que damos o nome de cultura brasileira.
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O EXÍLIO, A MEMÓRIA E A
RELAÇÃO ENTRE ARTE E
HISTÓRIA NA OBRA DE
JORGE SEMPRÚN
EXILE, MEMORY AND THE
RELATION BETWEEN ART
AND HISTORY IN JORGE
SEMPRUN’S WORKS
Marcia Romero Marçal
(UFMT)1
RESUMO: Esse artigo tem a finalidade de apresentar e analisar
algumas perspectivas da fortuna crítica do escritor Jorge Semprún
sobre temas importantes de sua obra, como o exílio, a memória
e a relação entre arte e história, e tecer algumas considerações
sobre a visão dialética do autor a respeito da relação entre ficção
e realidade que permeia seu fazer literário.
1
Professora Doutora do Departamento de Letras-Espanhol da UFMT. [email protected]
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O EXÍLIO, A MEMÓRIA E A RELAÇÃO ENTRE ARTE E HISTÓRIA NA OBRA DE JORGE SEMPRÚN
MARCIA ROMERO M ARÇAL
PALAVRAS-CHAVE: Jorge Semprún. Exílio. Memória. Ficção
e realidade. Literatura de testemunho
ABSTRACT: The purpose of this article is to present and review some perspectives from the critical fortune of Jorge
Semprún about key topics of his work such as the exile, the
memory and the relationship between art and history, and make
some considerations about the author’s dialetical view regarding
the relationship between fiction and reality, which permeates his
literary creation.
KEYWORDS: Jorge Semprún. Exile. Memory. Fiction and
reality. Literary testimony
Escritor espanhol bilíngue, roteirista de La guerre est finiede
Alain Resnais (1966), de Z (1970) de Costa-Gavras, autor de ensaios
sobre história e geopolítica, reunidos em Pensar en Europa (2006),
dirigente do PCE (Partido Comunista Espanhol), ministro da
Cultura (1981-1983) – várias facetas caracterizam a atuação política
e intelectual de Jorge Semprún. Há, no entanto, uma experiência em
sua história de vida que determina a dimensão humana e humanista
de seu pensamento: Buchenwald.
Semprún nasce em Madri, em 1923, no seio de uma família
republicana e burguesa, aficionada às artes e à poesia. Após a vitória
de Franco e o falecimento da mãe, exilam-se na França. Em Paris,
em 1941, o jovem abandona os estudos de filosofia da Sorbonne e
ingressa na Resistência francesa para lutar contra as forças
nazifascistas. Em janeiro de 1943, depois de capturado e torturado
pela Gestapo, é deportado ao campo de concentração de
Buchenwald, onde participa do aparelho comunista clandestino. Com
a libertação do campo, em abril de 1945, o sobrevivente entrega-se
à militância partidária clandestina. Expulso em 1964 do PCE por
divergências políticas e críticas aos expurgos e crimes cometidos
pelo regime totalitário stalinista, somente após dezoito anos de
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silêncio Semprún consegue enfrentar a memória traumática de
Buchenwald, através da escrita, com seu primeiro testemunho
literário, Le Gran Voyage (1963).
Sem dúvida, o campo de concentração deixa profundas
cicatrizes neste intelectual engajado que, a partir de então, conceberá
sua identidade pessoal e histórica, sua atividade política e literária,
inextricavelmente interligadas, fruto desta experiência muitas vezes
reconhecida por ele como eterno exílio. Se, por um lado, ele
vivenciou grandes catástrofes do século xx - a Guerra Civil
Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, o campo de concentração, a
ditadura franquista - por outro, procurou denunciá-las e transformálas em temas de reflexão e expressão literária, forma para ele
privilegiada de transmitir o indizível.
Os textos críticos que se debruçam sobre a obra do escritor
madrileno analisam seus temas, estilo, concepções, influências
literárias, experiências de vida, valores e ideologia sob perspectivas
diferentes ainda que coincidentes em alguns aspectos. Em geral, a
crítica costuma apontar uma relação direta entre experiências
pessoais e históricas do escritor e temas de sua poética, de modo a
gerar ciclos, identificados segundo a experiência prevalecente no
texto, e formas textuais diversas tais como a autobiografia, o
romance, o testemunho, as memórias, etc. Assim, ela tende a
classificar os temas de sua obra em função das fases de sua vida e a
selecionar um em detrimento de outros conforme a importância
atribuída ao mesmo em determinada obra, ciclo ou na evolução do
conjunto das obras do escritor. A memória, o testemunho do campo
de concentração, a relação entre arte e vida, a militância clandestina
e o exílio são os temas mais abordados por sua fortuna crítica.
O exílio, por exemplo, é considerado por Ofélia Ferrán (1998,
p. 109) a experiência que explica a relação do autor com o mundo e
a literatura. Segundo Ferrán, o primeiro exílio do escritor, o político,
ocorre com o desastre da Guerra Civil Espanhola; o segundo, o do
Holocausto, a experiência mais radical de exílio por ele vivenciada,
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corresponde à deportação a Buchenwald, que o leva à beira da morte
e atormenta incessantemente sua memória; o último, o da língua,
ligado ao bilinguismo, deriva “de la incapacidad de diferentes naciones de
saber incorporar plenamente a alguien que ha cruzado tantas barreras de tantos
tipos en su vida.” (FERRÁN, 1988, p. 109). Conforme a crítica, os
romances do autor buscam não somente representar esses diferentes
exílios, mas também superá-los ao construir um terreno ao qual possa
se sentir pertencer como uma pátria: a linguagem; paradoxalmente,
fazer da linguagem sua única pátria implica por princípio uma
instabilidade permanente, já que a escrita exige um constante
processo de (re)criação. Quando Semprún explica que escrever em
francês é transformar o exílio em uma pátria, expressa que a invenção
linguística assemelha-se ao exílio na medida em que está em
permanente reelaboração e ressignificação. Esta, sem dúvida, é uma
precária positividade fundamentada na contínua necessidade de
reacomodar-se. A crítica ainda afirma que o exílio dos sobreviventes
prossegue quando libertos, pois “pasan [...] a un exilio que continuarán
sufriendo mientras su recuerdo les siga ‘deportando’ al universo concentracionario
que no logran, fácilmente, dejar atrás.” (FERRÁN, 1998, p. 107)
Em nosso estudo sobre La escritura o la vida (1994),
observamos como o narrador questiona seu regresso de Buchenwald
ao mundo “civilizado”, através do uso especial do termo
“ressuscitado” ao invés de sobrevivente, ao mesmo tempo em que
concebe o espaço do lager como a pátria-origem enquanto que o
mundo como lugar de eterno exílio. Tal procedimento semântico
nos informa que não há retorno ou futuro para quem esteve nos
campos de concentração cuja catástrofe corresponde a uma perda
irrecuperável. A incerteza de ter regressado, a sensação de eterno
exílio, o sentimento de não possuir uma pátria, de desenraizamento
total, acentuam o desamparo, a impossibilidade de luto e a rara
percepção de não poder acordar para a vida depois do campo, que
se lhe apresenta tragicamente envolta em uma atmosfera de
irrealidade, em um sonho. O excesso de realidade do campo causou
ao sobrevivente um distúrbio no princípio de realidade.
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Em La escritura o la vida, Semprún justifica a escolha do francês
como sua nova língua originária por ser para ele a antítese da noção
oficial de pátria e origem; defende, portanto, que sua segunda língua
se torne, contraditoriamente, sua língua materna na medida em que
é sua língua do exílio, já que “había hecho del exilio una patria”. Notamos
que a dialética entre pátria e exílio está condicionada ao sentido da
transformação radical vivenciada em Buchenwald.
A Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a
militância clandestina no PCE, o campo de concentração, a Resistência
na França e o franquismo são os temas identificados, por exemplo,
por Domingo Pérez Minik (1979) em seu breve artigo sobre El
desvanecimiento (1967). Nenhum tema dominante é apontado pelo crítico
que, contudo, se centra na descrição do tipo de memória que atua e se
articula aos procedimentos cinematográficos empregados na obra.
O fundamental desta leitura reside no fato de Minik (1979)
elevar o elemento memorialista a princípio organizador e
estruturante do texto, submetendo a ele os temas de modo não
hierárquico. Minik (1979) analisa o modo ambíguo e contraditório
como esta memória funciona em El desvanecimento (1967),
configurando uma luta da lucidez contra a confusão, da consciência
versus a inconsciência, entre a realidade e o sonho; uma luta, ao fim
e ao cabo, da memória contra o esquecimento.
Em efeito, a memória aparece na crítica de Semprún como
um elemento ao mesmo tempo problemático e revelador, posto
que se refere a acepções distintas de sua obra. A exemplo disso, José
Ortega (1976), que se detém na interpretação de La segunda muerte de
Ramón Mercader (1969), nota que a memória na obra do escritor
radicado na França corresponde a uma memória de, mais
precisamente à memória do exílio (da Guerra Civil Espanhola), a
da perda de identidade pessoal e política, da qual o autor se serve
para objetivar sua visão crítica das ideologias esquerdistas partidárias
e do contexto histórico-social representados pelo enredo e
personagens no romance mencionado.
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A memória também é sublinhada por Felipe Nieto (2003) um
fator problemático da escrita sempruniana, cujos temas principais
levantados são o exílio, a deportação e a militância, e cujo fato pessoal
e histórico determinante é a deportação a Buchenwald.
Conforme Felipe Nieto (2003), a memória da experiência da
deportação em Semprún representa um trauma que torna a
sobrevivência do ex-prisioneiro precária, dividida em um dilema:
contar e escrever, o que o remete à morte de antanho, à dor
insuportável de recordá-la, ou calar e esquecer, recurso para
conservar-se com vida. Este dilema, acrescentado ao conflito interior
de sentir-se culpado de ter sobrevivido, quando os companheiros
não tiveram o mesmo destino, e o imperativo ético de falar do mal
perpetrado, denunciar as atrocidades em nome e no lugar da voz
dos companheiros desaparecidos, constitui o tema fundamental de
La escritura o la vida. Desta maneira, o crítico classifica o livro de
Semprún e os demais pertencentes ao ciclo de Buchenwald - El largo
viaje (1963), Aquel domingo (1980), Viviré con su nombre, morirá com el
mío(2001) - uma escrita memorialista na qual o estatuto de ressuscitado,
estratégia do sobrevivente para mover-se em um mundo estranho,
que se encontra entre duas mortes, assume um caráter literário.
Segundo Felipe Nieto (2003), a memória do ressuscitado Semprún,
uma das poucas testemunhas que restaram nesse estranho mundo,
para tornar-se verossímil, deve ser imortal. O inesgotável da memória
da testemunha se liga, portanto, a um recurso da imaginação literária
encontrado para transmitir a visão de quem sente ter vivenciado a
morte e ter como tarefa manter o mais viva possível a recordação
do mal como forma de luta a favor da liberdade e dignidade
humanas.
Na formulação de Enric Bou (2005), quem toma Autobiografía
de Federico Sánchez (1978) como objeto de estudo, a memória do
exílio e da experiência das ditaduras no século xx constitui um
elemento de tensão para a construção da forma autobiográfica: no
caso de Semprún, a memória do exílio impingido pelo franquismo
sofre um conflito entre o plano individual e o coletivo, procedente
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M ARCIA R OMERO M ARÇAL
da situação histórica de desterrado e/ou de luta clandestina contra
a ditadura. Na exposição de Bou (2005), a situação do escritor
exilado, dentro ou fora de seu país de origem, condiciona uma
contradição entre a memória pessoal de sua experiência e aquela
propagada pelas instituições oficiais da sociedade em que se insere.
Ao fundamentar seu argumento, o crítico emprega as concepções
de Paul Ricoeur sobre a relação entre memória coletiva e individual,
segundo a qual a subjetividade necessita da dimensão coletiva para
formar uma unidade coerente e manifestar-se. Seguindo tal linha de
raciocínio, ele conclui que a autobiográfica do exílio pressupõe uma
impossibilidade de constituir-se uma forma literária pura. Dito de
outra maneira, a condição do exílio acentua de tal modo as
contradições da autobiografia, uma vez que nesta situação falta ao
escritor o substrato coletivo para sedimentar sua rememoração
individual, que não é possível considerar tais textos (muitas vezes
auto intitulados) autobiográficos a não ser como um esforço irônico
de legitimação de uma verdade individual frente a uma ficção/
mentira coletiva.
A reflexão de Enric Bou (2005), em primeira instância,
contribui para pensar a relação entre ficção e verdade, memória
coletiva institucionalizada e memória individual deslocada, na
literatura de testemunho e de exílio, mas principalmente para
defender a possibilidade de representação literária da catástrofe. A
respeito dessa polêmica, Jorge Semprún ironiza sua posição de mal
testigo, testigo molesto, ao questionar a hipótese de existência de uma
testemunha ideal postulada por uma linha do saber e discursiva sobre
a shoah na qual esta corresponderia aos que não sobreviveram, à
testemunha integral. Esta vertente teórica tem como consequência
radical negar a possibilidade de se contar a verdade da experiência
da catástrofe e representar artisticamente o inominável do horror,
posto que não vivido. Semprún se opõe a este pensamento e
reivindica o direito a transformar uma vivência atroz em experiência
transmissível através do artifício e da mediação da literatura. Em
certo sentido, sua reivindicação significa uma luta pela liberdade de
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expressão e de elaboração da memória individual novamente
sufocada pelas ideologias e saberes produtores de uma memória
coletiva homogênea, excludente, mistificadora e monopolista.
A crítica de Karsten Garscha (2003), que inclui El
desvanecimiento (1967) no ciclo de relatos literários sobre a experiência
da deportação a Buchenwald, busca mostrar a transformação pela
qual passa Viviré con su nombre, morirá com el mio (2001) sobre o tema,
no que concerne ao modo de descrever e narrar a passagem por
Buchenwald. Garscha (2003) afirma que, à diferença de outras
narrativas sobre o campo de Semprún, esta logra penetrar no
presente, no interior dos sofrimentos cotidianos do campo, podendo
assim relembrar a morte dos companheiros e a sua própria.
Decorre dessa ideia que a memória traumatizada ou a memória
do trauma pôde ser superada mediante a atividade literária crítica e
reflexiva, obtida graças ao distanciamento temporal em relação ao
ocorrido em Buchenwald.
Outra questão assinalada pela a crítica se refere a como a
reflexão do relembrado e narrado está em tensão com as divagações
sobre as recordações, registradas pela combinação de iterações e
variações. Para Garscha (2003), as repetições, levadas a cabo pelo
discurso iterativo do narrador, indicam a impossibilidade de
transmitir em sua totalidade a vivência em Buchenwald; a memória
da catástrofe, por sua vez, aparece em seu duplo aspecto: como
elemento estruturador do texto, substrato inesgotável que permite
que o sobrevivente testemunhe escrevendo e reescrevendo uma
história interminável, mas também como matéria indomável,
resistente à reflexão, que se impõe por meio de imagens que serão
aceitas ou rechaçadas pelo sobrevivente em função de seu poder de
aguentá-las, descrevê-las e narrá-las.
A singularidade da interpretação de Karsten Garscha (2003)
consiste em conceber a presença de citações literárias na escrita de
Semprún como um recurso consciente de entrada da memória
individual na memória coletiva. O que ela denomina proceso de
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literaturización de lo real corresponde a uma saída que permite que
experiências traumáticas possam ser descritas e propiciem ao leitor,
mas também ao próprio autor escritor, a apreensão e o conhecimento
do que está contido em uma memória problemática.
Tendo em vista as análises de Garscha e de Enric Bou neste
ponto, podemos pensar que a literaturización de lo real na poética de
Semprún funciona como um meio ideológico e político de legitimar
sua versão da realidade, de reclamar a participação de sua memória
individual na memória coletiva, através da transgressão dos códigos
culturais e científicos que estabelecem a definição e a fronteira entre
o real/a verdade e a ficção/o falso.
A crítica de J. Sinnigen (1982), centrada na obra Autobiografía
de Federico Sánchez (1978), ressalta a consciência que o escritor bilíngue
tem da importância da linguagem e dos discursos na fabricação da
memória coletiva e da visão de mundo. Sinnigen (1982) sublinha o
caráter político e crítico da escrita de Semprún ao mostrar que para
o toda memória está carregada de ideologia e que ela assume uma
função distinta na vida social, segundo a linguagem que se utiliza
para construí-la e expressá-la. Conforme o crítico, a escrita literária
de Semprún empreende uma luta contra o esquecimento sistemático
na medida em que reflete e duvida das fronteiras entre o fictício e o
real, o romanesco e o testemunhal, na medida em que a memória
ideológica penetra e condiciona as formas da tradição literária. A
exemplo disso, Autobiografía de Federico Sánchez revela a Sinnigen (1982)
como a intenção política de fazer relembrar, questionar e denunciar
se encontra indissociável da forma do texto.
A questão da memória na escrita do intelectual espanhol, mais
especificamente em Aquel domingo (1981), é indagada por
AntoniMunné (1981) mediante um enfoque que favorece seu papel
em detrimento da experiência. A partir da diferença entre memória
e experiência, o crítico desdobra outra distinção, no plano das formas
narrativas, entre forma memorialista e/ou autobiográfica e literatura
de testemunho. Munné (1981) defende que, tratando-se de
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autobiografia ou de memórias, os limites entre o discurso da ficção
e o da vida real se confundem na obra de Semprún, dificultando sua
inserção nos modelos usuais destas formas literárias. Mas ao referirse ao que ele designa el apartado genérico de la literatura testimonial, o
crítico afirma que a obra de Semprún não deve ser afiliada a tal
forma, pois sua atitude literária sobrepuja o interesse na realidade
histórica.
Na realidade, a crítica de Munné (1981) insiste na ideia de que
a memória da vida do sobrevivente não somente se constitui no
suporte fundamental de sua obra, mas que também as formas
literárias tradicionais, que lhe são atribuídas pela crítica - as
memórias, a autobiografia ou ainda o testemunho - não
proporcionam paradigmas suficientes para pensar seu trabalho
literário. Isso porque, de acordo com Munné (1981), cada obra de
Semprún conforma um enfoque diferente sobre a memória de sua
vida que, assim, é esmiuçada em biografias distintas, correspondentes
ao extenso amálgama de vivências do escritor, e convertidas em
experiências pela própria reflexão literária sobre sua memória. Na
opinião do crítico, o aspecto inacabável dos relatos, derivado do
tratamento literário que o escritor dá à sua memória, confirma a
hipótese de que esta com seu funcionamento descontínuo e sem fim
conforma o sistema de estruturação de suas obras.
Em suma, Munné (1981) parece querer retirar a escrita de
Semprún de todas as possíveis classificações que possam encaixá-la
em formas definidas pela tradição literária, atribuindo-lhe um lugar
independente no leque da teoria contemporânea das formas literárias.
Embora o texto crítico de Munné (1981) não tenha conhecido
La escritura o la vida (1994) e a posterior produção literária de
Semprún, entendemos que a concepção de testemunho literário que
se desprende de seu estudo não é adequada. De fato, como
fundamenta Valeria De Marco (2004), a realidade histórica
vivenciada pelo escritor testemunha enquanto violência do Estado
moderno é fator determinante da forma testemunhal. No entanto,
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o tratamento literário da mesma não implica a negação de sua
verdade histórica, em outras palavras, o testemunho de uma realidade
histórica pode ser transformado em ficção literária sem prejuízo de
sua condição de verdade ao mesmo tempo em que não anula sua
natureza literária e artística.
Semprún elabora esta questão no prólogo de Seguir
viviendo(2008) de Ruth Klügerda seguinte maneira: há dois tipos de
testemunho, um com mais elaboração literária e outro com menos,
o que significaria que elaboração estética e verdade histórica não
são para ele inconciliáveis, não representam oposições excludentes.
Inclusive o autor pensa que somente a ficcionalização do horror
vivenciado nos campos nazis é capaz de aproximar o leitor/ouvinte
de uma verdade cuja compreensão racional é tão difícil.
Munné (1981), de certo modo, segue os rastros de Minik (1979)
ao recusar as fases da vida do escritor como chave interpretativa
das obras ou dos ciclos a que possam pertencer e ao privilegiar o
trabalho especial que Semprún realiza sobre o funcionamento da
memória como alicerce e princípio organizador de seus textos,
minando assim as tentativas da crítica de classificá-los segundo
formas afiliadas à escritura de la vida.
O estudo teórico e crítico de Alicia Molero de laIglesia (2000)
define a desilusão ideológica, o exílio, a morte, a deportação e a
relação entre arte e verdade como temas da obra sempruniana. Salvo
o último, podemos notar como os demais se originam das
experiências de vida de Semprún, das quais a crítica destaca a da
morte, a da clandestinidade e a do exílio. A partir destas experiências,
Molero de laIglesia (2000) distingue dois grandes ciclos na narrativa
sempruniana: o da experiência da morte em Buchenwald e o do
desalojamento da consciência comunista.
À diferença de Minik (1979) ou de Munné (1981), a crítica
acrecita que não é a memória que se constitui no elemento
estruturador da narrativa de Semprún; ao contrário é a temática
cultural que estrutura a memória e o modo de narrar do escritor.
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Na compreensão de Molero de laIglesia (2000), o processo
associativo de imagens literárias e culturais e o uso iterativo de fatossignos de natureza simbólica (como o branco da neve associado à
morte em Buchenwald e ao tempo do esquecimento e ao papel
branco referente ao não registro escrito desta morte) consistem em
recursos da imaginação criativa do escritor que proporcionam
estabilidade à memória e operam como argumento e fio condutor
de sua narrativa.
Dentro de uma escala que situa as obras de Semprún entre um
grau mais alto de invenção e outro mais elevado de valor
testemunhal, o texto crítico de Molero de laIglesia (2000) propõe
uma gama variada de nomenclaturas para explica-las e classificá-las.
Nela encontramos textos autobiográficos - Federico Sánchez se despide
de ustedes(1993), La escritura o la vida (1994), Adiós, luz de veranos(1998)
-, textos romanceados como Autobiografía de Federico Sánchez (1978),
textos de referencialidade mediatizada por formas de
desdobramento do eu - El largo viaje (1963), El desvanecimento (1967),
La montañablanca(1999)- ou por uma máscara alegórica como La
algarabía(1981). Em qualquer caso, a crítica exalta o fundo comum
sobre o qual se assentam tais obras: a reescrita contínua do eu de
Jorge Semprún.
Molero de laIglesia (2000) concebe a tarefa de o autor contar
renovadamente as experiências de vida em função de uma revisão
auto expressiva e da linguagem como o princípio organizador de
suas obras; sua escrita, uma auto ficção cujos processos reiterados
de construção da identidade fragmentada geram diversos
personagens, diferentes histórias e obras, atravessadas pelas
recorrências de fatos, dados, motivos e paralelismos de uma mesma
vida. Para ela, a própria concepção sempruniana da relação entre
vida e arte, tema presente em todas suas obras, é responsável por
esta diversidade formal de auto narração. Naspalavras de Semprún,
citadas por Molero de la Iglesia, “un poco de artificio nos aproxima al
arte, por tanto a la verdad del mismo modo que su exceso nos separa de ella”
(MOLERO DE LA IGLESIA, 2000, 349).
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Na constelação dessa proposição, a estudiosa descreve a
ocorrência de um mimetismo existencial entre personagens e autor
e indica a relação entre a abdicação à escrita depois de Buchenwald,
o tempo de militância clandestina no PCE e o desdobramento da
identidade nas obras do escritor. Isto é, conforme a crítica, as
experiências históricas e políticas variadas e radicais deste escritor
engajado, cindido entre a experiência do nazismo e a forte influência
da dialética marxista, constituem o motor propulsor dos
desdobramentos do eu em suas obras. Molero de laIglesia (2000)
deixa entrever que, se a autor narração é retomada por diversas
afluências e se mistura a seu cultismo, é porque há um exercício
permanente de reflexão deste escritor intelectual sobre a
interpenetração entre vida e literatura que redunda na reescrita
renovada de sua vida (e, acrescentamos, de sua obra). Os vários
papéis que ele assume e as transformações radicais pelas quais sua
identidade passa na vida fazem as vezes de personagens para suas
histórias assim como as várias histórias lidas contribuem para a
reflexão, ação e intervenção na realidade concreta.
A perspectiva de Molero de laIglesia (2000) nos leva a perceber
que ela sugere que a reflexão do escritor sobre a relação entre arte e
verdade, baseada em um vasto e rico acúmulo de vivências históricas
radicais e em sua experiência como leitor e homem erudito,
corresponde à causa de uma produção literária recheada de dados
autobiográficos, mas não restrita a modelos tradicionais da escrita
de si mesmo – a ausência de cronologia biográfica e de linearidade
nas suas obras o comprova.
Como vimos, o olhar de OfeliaFerrán (2001) nos oferece uma
visão diversa da relação entre realidade e ficção na escrita
sempruniana. As fases da vida do escritor, definidas como tipos de
exílio, correlatos a essas múltiplas identidades, se unificam na
identidade de eterno estrangeiro, uma experiência que linda com a
sensação de permanente irrealidade da existência. Para Ferrán (2001),
a experiência da morte e do horror inimagináveis dos campos nazis
é a que funda sua maneira particular de encarar a relação entre arte e
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vida real, refletida em todas suas obras. Desse modo, a invenção
linguística em Semprún se coloca a serviço de narrar fatos históricos,
como o de sua própria morte que ultrapassa a compreensão humana,
e que, consequentemente, só poderiam ser comunicados por um
modo de contar que transmita a irrealidade dessa experiência real,
mediante o que ele chama de artifício literário.
Como mencionamos anteriormente, Ferrán (2001) nos sugere
que se em Semprún história e historiografia se entrelaçam com a
ficção, isso é fruto de uma forma de existência quase virtual, a de
não ter uma pátria estável e precisar criá-la permanentemente. A
declaração que Semprún faz de ser um expatriado por definição,
um bilingüe por desterrado, de ter como pátria não uma ou duas línguas,
senão a linguagem, corrobora tal argumento. A literatura para
Semprún, reforça a crítica, se transforma em sua pátria virtual e
universal, um solo, não obstante suas próprias leis, composto da
imaginação da linguagem, principalmente no modo encontrado para
dar conta da experiência fundamental de sua vida, Buchenwald.
A noção de matéria inesgotável, inacabável, de reescrita
continuamente renovada, enunciada pelos narradores/personagens
das obras de Semprún, é examinada por Ferrán (2001) como uma
faceta de sua condição de eterno estrangeiro, jamais superada. A
tarefa da testemunha da catástrofe é assumida como eterna por
Semprún porque comporta uma experiência insuperável por
completo.
Nosso estudo analítico de La escritura o la vida (MARÇAL,
2009) é devedor das premissas de Ferrán (2001). Exemplo de um
modo de representação presente em outras obras do autor como
em Aquel domingo, tal romance apresenta uma relação entre o fictício
e o real sustentada por uma visão dialética desenvolvida pelo
narrador: o imaginário da ficção em uma relação contraditória com
o inimaginável da realidade.
O texto de Ana María Amar Sánchez (1990) aborda
diretamente este problema teórico que está longe de ser resolvido
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no que se refere à forma testemunhal, já que em torno de seu processo
de canonização existe atualmente um confronto de discursos críticos
e teóricos cujas filiações ideológicas não são menos controvertidas
que suas ideias.
Amar Sánchez (1990) trata a literatura de testemunho por
relatos de no-ficción e busca investigar de perto os problemas teóricos
que eles albergam quanto à relação entre o real e a ficção, o
testemunhal e sua construção narrativa. Sua tese defende que os
relatos de não-ficção possuem um paradoxo que lhes é constitutivo:
por uma parte, não são ficções, posto que os fatos a que se referem
aconteceram e, por outra, não traduzem fielmente, como espelhos,
esses fatos, pois a linguagem literária, enquanto outra realidade que
possui suas próprias leis, transforma o real, recortando-o,
expandindo-o, organizando-o, enfim, ficcionalizando-o. A crítica
adiciona que o relato de não-ficção, ao submeter seu material
proveniente de testemunhos, gravações, documentos a uma lógica
interna, se afasta do realismo ingênuo e da pretensa objetividade de
alguns discursos, como o jornalístico, tendo como consequência o
questionamento da representação fiel e imparcial da realidade ao
mesmo tempo em que destrói a ilusão ficcional alimentando-a.
Para Amar Sánchez (1990), do choque e da destruição dos
limites entre os discursos testemunhal e fictício surge uma zona
intersticial que constitui a nova forma da não-ficção; uma zona
fraturada, desmistificadora da linguagem como pura transparência,
se desenha nas margens das formas, do literário e do político, do
imaginário e do real, trabalhando e resolvendo, em cada obra de
maneira singular, a contradição entre o testemunhal e a invenção
literária.
A crítica identifica dois elementos nos relatos de não-ficção
que caracterizam esta zona intersticial conflituosa: 1º) a
ficcionalização das figuras humanas oriundas do real com sua
consequente transformação em narradores e personagens; 2º) a
unidade da escrita do autor-testemunha. O primeiro supõe o lugar
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onde a fronteira entre os campos real e ficcional sofrem uma ruptura.
Os sujeitos do texto são simultaneamente pessoas reais do mundo
exterior e personagens ou narradores virtuais do mundo interior ao
texto. De acordo com a Amar Sánchez (1990), não ocorre uma
alternância entre ponto de vista interior e exterior, mas sim uma
sobreposição coincidente entre eles que conduz à transformação
narrativa. O segundo dispõe uma intertextualidade entre as obras
de um mesmo autor determinada por uma interdependência
orgânica entre seus textos, criando assim um campo diferencial entre
os mesmos e os demais de não-ficção de outros autores.
A crítica toma quatro exemplos de autores de literatura de
testemunho a fim de confirmar suas observações: Jorge Semprún,
E. Poniatowska, Rodolfo Walsh y Vicente Leñero. O texto de
Semprún a que se atém é Autobiografía de Federico Sánchez. O
desdobramento do eu do autor em narrador e personagem e o
diálogo estabelecido entre ambos exemplificam o processo de
subjetivação que determina a transformação do material histórico
real em ficcional.
Amar Sánchez (1990) ainda nota como os vários códigos (o
testemunhal, o romanesco, o autobiográfico) presentes na obra de
Semprún atuam como um meio encontrado pelo autor para
solucionar a contradição entre o ficcional e o testemunhal; um modo
de representá-la através do qual se estabelecem as formas e se violam
os limites entre as mesmas simultaneamente, questionando, assim, o
contrato do discurso não-ficcional.
A crítica parece partir de uma noção dialética dos textos
testemunhais literários, designados por não-ficção, notadamente
quando emprega os termos luta e contradição à descrição do espaço
fronteiriço no qual os discursos testemunhal e ficcional, originários
de instâncias tradicionalmente concebidas como opostas, se
encontram e se movem em direção a um território de
entrecruzamento (um entrecruzamento de duas impossibilidades,
ou seja, um entrecruzamento impossível). No desenvolver de sua
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argumentação, aplica fundamentos teóricos do estruturalismo, do
estudo das formas e dos estilos autorais a fim de definir a
especificidade de uma forma em processo de canonização que,
segundo Amar Sánchez (1990), a crítica em geral não consegue
compreender, pois esbarra no seguinte problema:
presa en este vaivén que mantiene la vieja distinción entre forma y
contenido – técnicas y material testimonial -, no puede pensar el espacio
de la no-ficción como un campo donde se contituye una diferencia, y
sólo atina a describirla y clasificarla. (AMAR SÁNCHEZ, 1990, p. 449)
Apesar de um sinuoso movimento conceitual, os dois
elementos, situados dentro do âmbito formal, promovidos a
definidores do específico do processo de ficcionalização do
testemunho por Amar Sánchez (1990), se nos apresentam discutíveis.
Em primeiro lugar, não somente as pessoas, pertencentes ao
real histórico, mas também outras dimensões, igualmente
identificáveis no mundo real, se ficcionalizam e continuam existindo
nos dois universos, o real e o fictício. Também os lugares reais se
transformam em espaços narrativos, referências e componentes de
cenas narrativas; cumprem muitas vezes uma função simbólica no
texto e são descritos sob uma percepção subjetiva. Os dados
cronológicos, as datas nas quais se registraram os fatos, são
convertidos no tempo da ficção, elemento fundamental da narrativa
e que, na poética de Semprún, passa por uma operação sofisticada
estética através da qual os planos temporais se sobrepõem e se
entrelaçam, formando um complicado jogo que exige a presença
de um leitor atento e crítico. Poderíamos falar dos enredos
construídos para organizar os acontecimentos reais dentro de uma
sequência cuja lógica interna, inclusive destacada por Amar Sánchez
(1990), altera a percepção de sua natural realidade, e conforme uma
perspectiva particular e subjetiva, a do narrador-testemunha, que
geralmente se apresenta em primeira pessoa.
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Não atinamos, por conseguinte, a razão por que selecionar o
processo de construção das personagens como eixo definidor deste
espaço intersticial conflituoso. Ademais, o fato de que os espaços se
sobreponham no eixo de cruzamento entre pessoa e personagem,
de que haja um encontro simultâneo, sem alternância ou
preponderância do ponto de vista externo-pessoa ou do ponto de
vista interno-personagem, não retrata exatamente uma relação
contraditória resolvida e superada entre os dois campos.
De fato, na literatura de testemunho podemos observar a
tensão existente entre o discurso referencial e o figurado como uma
característica que manifesta a tensão entre o real e o fictício na mesma.
As formas narrativas que os textos testemunhais literários assumem
são diversas e, claro, trazem as tendências estilísticas e
experimentações formais de cada autor.
A expensas de descobrir a singularidade na forma testemunhal
literária, Amar Sánchez (1990) esquece o conteúdo do material
histórico que se transforma nos assuntos e temas de seus relatos. A
situação e a condição concreta da testemunha-escritor, transposta
ao texto como narrador/personagem, protagonista, personagem
ou transcritor organizador do texto que cede a voz ao outro não
letrado (no caso do contexto do testemunho literário na América
Latina), é que podem dar pistas para uma compreensão da relação
problemática entre o real e o fictício nesta forma literária.
A ideia de uma relação contraditória entre um discurso que se
pretende objetivo, científico ou neutro, como o do jornalismo oficial,
o da historiografia ou outro qualquer pertencente às instâncias
produtoras de um saber socialmente legitimado como verdade, e
um discurso subjetivo, pessoal, ligado às falhas da memória
individual, que, não obstante, não descarta seu compromisso com a
realidade histórica objetiva, nos parece mais produtiva para pensar
a tensão entre o real e o fictício na literatura de testemunho. Em
efeito, o testemunho literário se elabora em uma zona fronteiriça:
não é pura ficção, nem pura historiografia. A mimesis que ele realiza
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dos atos, acontecimentos, pessoas, espaços e referências temporais
recordados é livre mesmo que não seja infiel, que não comprometa
sua veracidade.
O processo de criação do testemunho literário passa
fundamentalmente pelo ato discursivo da testemunha-escritor. São
a situação, a condição, a proposta, o projeto de escrita e a consciência
deste sujeito que nos podem elucidar a relação problemática entre
o real e o ficcional nesta forma.
O sujeito da escrita testemunhal enfrenta uma convenção
sociocultural que separa e distingue o histórico e os discursos
estabelecidos e legitimados socialmente para produzir um saber
sobre ele do fictício e suas formas e tipos discursivos que, por sua
vez, têm a autoridade e a legitimidade para manejá-lo. Daí as normas
e convenções tradicionais literárias terem determinado que na prosa
de ficção literária só caibam a invenção e a imaginação sobre o real,
enquanto o discurso historiográfico, por exemplo, se encarrega da
realidade histórica objetiva.
Tal dissociação excludente e estanque entre estas duas
dimensões conceituais, produtoras de saber e verdades, nas quais
também está em jogo a relação não menos problemática entre forma
e conteúdo, se torna objeto problemático do projeto de escrita do
escritor-testemunha. Este, mais ou menos consciente destas
determinações históricas e ideológicas sobre a produção e a disputa
pelo espaço de enunciação da verdade, na tentativa de conquistar
um espaço discursivo (por convenção próprio da invenção
imaginária do conteúdo e da forma) onde caiba sua versão subjetiva
da verdade histórica objetiva, busca derrubar as muralhas que
separam as duas instâncias discursivas.
O território fronteiriço problemático do testemunho literário
constitui uma zona de conflito em que as verdades objetiva e subjetiva
se enfrentam na consciência do escritor-testemunha e que ele tem
que atravessar para instaurar o lugar de enunciação de sua verdade.
O escritor-testemunha, por um lado, não abdica pertencer a uma
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realidade histórica, ter vivenciado uma situação injusta de violência
do Estado moderno, ter um compromisso ético com os
companheiros que compartilharam com ele toda essa dor, enfim,
tem como objetivo denunciar as atrocidades sofridas às quais
sobreviveu. Por outro lado, sabe que a memória de sua vivência é
falível, sua percepção da realidade vivenciada corre riscos de
deformação, seu julgamento se confunde com os ressentimentos
derivados da humilhação sofrida, sua razão e lucidez podem estar
contaminadas de perplexidade, hiatos e paralisação. Sua verdade é
subjetiva, em crise e, não obstante, clama a autoridade de verdade
histórica objetiva, ainda que em uma instância que, por tradição,
não lhe seja própria.
O escritor-testemunha busca penetrar com sua memória
individual na memória coletiva, transformar sua vivência em
experiência, seu sofrimento e ressentimento em compreensão de si,
da realidade em que esteve imerso, fala em nome dos que no podem
falar, quer substituir o esquecimento institucional e social pelas
lembranças pessoais. Seu discurso reivindica a força de uma
autoridade diferenciada: vem de dentro, do inframundo sombrio
da degradação humana no contexto histórico das ditaduras e
totalitarismos do século xx, traz consigo as feridas incuráveis dessa
história, as obsessões e os traumas insuperáveis na memória e no
corpo, a desilusão e a perda definitiva de confiança no mundo, a
experiência de não ter sido escutado pela sociedade quando
confinado por um Estado racionalmente administrado, a sensação
de vertigem das sucessivas quedas no submundo de si e do humano,
o conhecimento da ausência completa de liberdade e dignidade
perpetrada por uma opressão sem limites. Sua linguagem se viu
sacudida, afásica, censurada pela língua do inimigo e algoz, pela
imposição do silêncio e esgotamento das forças, pelo declínio das
faculdades de pensar. Sua consciência foi estreitada e sua identidade,
desintegrada e anulada. A narração para ele significa uma saída dessa
condição, a retomada do poder da palavra, o contato com a dura
memória da ofensa, a ampliação da consciência do vivido, a
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recuperação do pertencimento à espécie humana, à sociedade dos
direitos humanitários.
O escritor-testemunha é o objeto de uma realidade histórica
objetiva que requer ao mundo ser sujeito, falar dela, em nome dela e
dirigido a ela, mediante um saber, contudo, subjetivo. O saber e a
experiência vivida do escritor-testemunha, ou seja, sua verdade, por
mais distanciada, reflexiva, crítica e objetiva que se mostre no relato
construído por ele, não pode negar sua natureza subjetiva, que é a
substância de sua matéria.
As histórias testemunhadas configuram um processo de
construção de sentido para uma realidade histórica objetiva,
vivenciada subjetivamente, muitas vezes desprovida de sentido para
o sujeito desse processo. A verdade construída a partir da experiência
transformada em testemunho literário pertence a dois deuses que
haviam pactuado delimitar seus territórios de produção e enunciação
de duas verdades distintas: uma, real histórica e objetiva; outra,
imaginária subjetiva mediatizada pelo tratamento formal literário
da linguagem mesmo quando assumisse a primeira como matéria
bruta.
Por um lado, a verdade do testemunho remete a uma realidade
histórica objetiva, que não pode nem quer negar, mas se apresenta
como uma versão subjetiva da mesma, isto é, reclama para a condição
de enunciação de sua verdade a necessidade da existência de um
discurso subjetivo para dar conta da objetividade de uma realidade
histórica. Por outro lado, sua situação de testemunho a partir de um
ponto de vista subjetivo, que tampouco pode nem quer negar,
condiciona-lhe, muitas vezes, formas com parentesco e originárias
da prosa de ficção literária. Além disso, o escritor- testemunha é um
indivíduo inserido na cultura de seu tempo e herdeiro das formas
de sua tradição literária.
Muitos relatos testemunhais se apresentam modestos, sem
pretensões estéticas, muito menos de caráter ficcional, como é o
caso de Primo Levi. Entretanto, o resultado é inegável: a crítica
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tem que dar conta de uma nova forma que invade os modelos da
ficção literária, reivindicando, porém, uma verdade não
fantasiosa. O escritor- testemunha pode ter maior ou menor
consciência desta invasão assim como maior ou menor domínio
e habilidade da linguagem e das formas literárias. Essa consciência
e esse conhecimento constituem um fator que determina a forma
que seu relato assume. De qualquer maneira, a presença de sua
escrita mina as convenções literárias, representando assim um
problema teórico para a crítica e para a lógica que fixa as normas
dos gêneros discursivos. A zona de confronto em que se instala
sua verdade subjetiva e objetiva ao mesmo tempo exprime a
fenda do saber normativo que delineia seus limites. A escrita
testemunhal literária é um discurso intrusivo sobre a verdade
histórica objetiva que se apropria dela e irrompe no espaço
discursivo por definição fictício, corroendo os sedimentos de
sua normatização crítica e teórica.
O realismo desse discurso é problemático, porque carrega a
contradição entre o objetivo e o subjetivo. O sujeito que vivenciou
a catástrofe e quer narrar essa experiência da maneira mais fiel ao
que ocorreu se volta sobre uma matéria resistente, árdua, dura à
apreensão e representação. Para ser fiel ao vivenciado, em geral o
narrador-testemunha adota a perspectiva em primeira pessoa do
sujeito na situação passada como um presente fictício. O
estreitamento da distância estética constitui a técnica comum quanto
à perspectiva narrativa aos textos testemunhais literários. É ele que
representa a condição precária de um sujeito em situação, na situação
iminente de morte e de perda total do poder de ação.
Em La escritura o la vida, a relação entre arte e verdade histórica
atravessa o texto não só como um dos temas de reflexão do
narrador, mas também como um elemento problemático na estrutura
da obra. Semprún evidencia ter consciência da quebra transgressora
que o discurso de não-ficção exerce sobre o contrato de ilusão do
discurso ficcional. O autor declara a intenção de seu projeto de
escrita: criar um romance com a matéria da experiência vivenciada
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em Buchenwald. O motivo: o artifício literário tem o poder de
aproximar o leitor à essência do mal radical, uma experiência
inalcançável. Problemas: converter uma realidade inverossímil em
verossímil e entrar em contato com a memória da morte sem
suicidar-se, sobreviver a ela.
Os problemas são de duas ordens: o primeiro passa pela
questão da relação entre forma e conteúdo e o segundo, à primeira
vista, se refere ao âmbito existencial e psicológico do sujeito da
escrita. Semprún articula os dois transformando o segundo na
matéria do romance. Como assinala Valeria De Marco, o enredo do
romance está estruturado pela história de sua própria composição
(DE MARCO, 2009). O autor põe deste modo em perspectiva a
experiência primeira de sobreviver a Buchenwald, alçando ao
primeiro plano do enredo romanesco a segunda sobrevivência, falsa
e verdadeiramente diferente da primeira, a de sobreviver à
sobrevivência a Buchenwald. Esse processo de imaginação
encontrado, uma imaginação sem dúvida sobre a forma e o conteúdo,
conquistou imprimir verossimilhança ao inverossímil da matéria? A
verossimilhança da experiência é um falso problema que expressa
outra dificuldade, a de achar um modelo arquetípico irônico, um
esquema mítico, fonte histórica da narrativa oral tradicional, para
deslocar e estruturar os acontecimentos reais?
RaúlIllescas (2004) problematiza o estatuto de romance do
livro e se detém na presença da literatura nele. Para Illescas (2004),
as vozes de poetas e pensadores permitem ao narrador uma reflexão
sobre a experiência, a possibilidade e o modo de narrá-la.
Os problemas confluem a um mesmo ponto, o ponto nuclear
do testemunho, o de construir um sentido com os acontecimentos
vivenciados. O processo de construção de sentido na narrativa
moderna é historicamente problemático. Nos termos de Walter
Benjamin, como transformar uma vivência pobre em experiência
em uma matéria narrativa social e culturalmente transmissível? Como
suportar vivências que arruínam o desejo e a possibilidade de seguir
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vivendo e acumulando experiências na vida? Parafraseando Adorno,
como fazer poesia após Auschwitz?
Podemos pensar a relação conflituosa entre o real e o fictício
na literatura de testemunho na medida em que integrarmos os
aspectos da forma e do conteúdo na figura historicamente
determinada do narrador-testemunha. O narrador do testemunho
é um sujeito historicamente problemático que, mais ou menos
consciente dos limites que dividem os campos de forças discursivos
que disputam o direito à enunciação e à produção das verdades da
história real objetiva e da literatura ficcional subjetiva, emerge neles
com uma voz e uma história incômodas, intrusivas, tensionando-os.
Onde enquadrar sua voz e sua história? Como classificá-las? Se elas
tendem aos dois campos, se elas transgridem as normas que os
separam, se o histórico objetivo desemboca na ficção literária e esta
o devolve ao histórico objetivo, é porque o sujeito narrador do
testemunho, em seu processo de construção de sentido
intrinsecamente ideológico, acaba por abrir um espaço de enunciação
para verter sua verdade memorialista em uma voz audível, que
manifesta a precariedade e a arbitrariedade do mundo que lhe coube
viver, narrar e representar mediante a própria exibição da
insuficiência das normas e convenções que o regem.
Na obra de Semprún, isso fica claro. O escritor- testemunha
transforma seu testemunho em um romance. Em seu projeto de
escrita, o romance não negaria seu valor de testemunho, nem o
testemunho negaria o caráter romanesco da experiência histórica.
Se a crítica se debate em classificá-lo –romance ou ensaio ou
autobiografia ou memórias ou testemunho, dentro ou fora da ficção
ou da literatura – é porque a nova forma traz imanente, de maneira
radical, o problema constitutivo do contexto histórico do qual ela é
fruto: como construir um sentido a tal vivência histórica, sem
sentido, pobre em experiência, em um mundo em que o sentido
imanente do mundo se dissociou das formas artísticas que o
representavam?
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COMO UMA FRONTEIRA
DESLIZANTE EM THE
MADONNA OF EXCELSIOR DE
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THE PICTORIAL NARRATIVE
AS A SHIFTING BOUNDARY IN
THE MADONNA OF
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Divanize Carbonieri
(UFMT)1
RESUMO: No romance The Madonna of Excelsior (2002), o sulafricano Zakes Mda insere a descrição de pinturas no início de
cada capítulo, criando um espaço de trânsito para o leitor antes
dos eventos ficcionais. Essa estratégia dá um novo sentido à
1
Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo.
Professora-adjunta do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagem, Instituto de Linguagens, Universidade Federal de Mato Grosso, CEP 78060
900, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Email: [email protected]
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criação de uma metaficção historiográfica particular, que retrata
um momento nevrálgico da história da África do Sul: justamente
a travessia entre o período do apartheid e aquele que caracterizou
o seu fim. O objetivo deste artigo é analisar a relação entre a
representação dessas narrativas pictóricas como fronteiras textuais
e metafóricas e o deslizamento entre violência e reconciliação
realizado pelo todo da obra.
PALAVRAS-CHAVE: narrativas pictóricas, fronteiras,
metaficção historiográfica, África do Sul, Zakes Mda
ABSTRACT: In The Madonna of Excelsior (2002), South-African
Zakes Mda includes the description of paintings at the beginning
of each chapter, creating a transitional space for the reader before
fictional events. This strategy gives a new meaning to the creation
of a particular historiographic metafiction, which depicts a neuralgic point in South Africa’s history: precisely the transition between
apartheid and its end. The aim of this paper is to analyze the
relationship between the representation of these pictorial narratives as textual and metaphorical boundaries and the drifting between violence and reconciliation that the work performs.
KEYWORDS: pictorial narratives, boundaries, historiographic
metafiction, South Africa, Zakes Mda
Introdução
No romance The Madonna of Excelsior, publicado pela primeira
vez em 2002, o sul-africano Zakes Mda examina alguns importantes
momentos da história recente de seu país. Acompanhando a trajetória
de uma mulher negra, Niki, e seus filhos, ele percorre diversas
molduras temporais que vão desde o período sombrio do apartheid
até a sua completa desarticulação, passando pelos decisivos instantes
da resistência organizada pelo Movimento Negro, com a sinalização,
ao final, de um possível futuro mais igualitário para a África do Sul.
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Ainda que não se furte a representar a traumática violência sofrida
pela população negra e mais pobre durante a vigência do racismo
institucionalizado, Mda apresenta seus personagens derradeiramente
se reconciliando com o passado, apontando, assim, o caminho para
a cura individual e coletiva em sua narrativa. Sua obra pode ser
considerada uma metaficção historiográfica, tal como é definida por
Linda Hutcheon (1991), não apenas por sua investigação de fatos
históricos, mas principalmente por um intenso caráter autorreflexivo,
possibilitado, sobretudo, pela constituição de uma voz narrativa
coletiva, um “nós”, que corresponde à comunidade negra sulafricana, instada a refletir sobre suas ações e inércias nesses pontos
nevrálgicos da jornada coletiva rumo à libertação.
Uma outra característica fundamental desse reexame histórico
metaficcional realizado por Mda surge na escolha de uma
configuração espacial para o desenrolar dos eventos ficcionais. A
história nacional não é analisada a partir de seu centro principal, de
suas mais importantes cidades e agentes, mas sim tendo como foco
uma pequena cidade da zona rural sul-africana, Excelsior, com seus
extensos campos de girassóis e desconhecidos fazendeiros africâneres
e trabalhadores negros. Isso parece contribuir para a elaboração de
uma visão mais heterogênea do discurso histórico, questionando a
exclusividade de uma única verdade central, conformada pela grande
narrativa oficial, e apresentando, em seu lugar, a possibilidade de
outras verdades, mais periféricas, mas ainda assim importantes para
a compreensão do processo de desenvolvimento do país.
Assemelhando-se à cidade colonial descrita por Frantz Fanon
(1990), Excelsior também é dividida em compartimentos. De um
lado, assomam as sólidas moradias dos patrões africâneres, cópias
das residências dos antigos colonizadores ingleses, embora
caracterizadas por uma embaraçosa (e dispendiosa) deselegância:
A casa era uma cópia imperfeita de um chalé inglês. Mas era mais
exuberante do que um chalé inglês. [...] Duas janelas salientes adornadas
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com vitrais coloridos a cada lado da porta dupla de cor marrom, que
também tinha vidros pintados. Colunas de cor roxa apoiando a arquitrave
também roxa. Pilares cujos capitéis ficavam a meio caminho entre o
estilo jônico e o coríntio. O telhado era verde. Era feito de folhas de
metal corrugado ao invés de telhas. [...] Chaminés verdes e brancas de
lados opostos, uma com uma cobertura e a outra com uma antena de
TV atrelada a ela. A televisão tinha apenas alguns meses de vida na
África do Sul. A casa, contudo, pertencia a um homem que não apenas
tinha dinheiro para essas novidades como também estava determinado
a lançar moda (MDA, 2007, p. 6-7, tradução nossa).
De outro lado, apresenta-se o bairro negro, Mahlatswetsa
Location, composto de instáveis barracos de madeira, dos quais
aquele em que Niki vai morar com seu marido Pule é um bom
exemplo, com seu espaço interno reduzido e mobília improvisada
(cujo mal gosto ironicamente se assemelha àquele encontrado nas
casas dos mais abastados, como se a vulgaridade fosse uma
característica comum entre as classes e etnias apartadas da cidade):
Pule estava sentado na cama, sem se mexer, encarando a porta. Como
um gato selvagem aguardando para se lançar sobre a presa. Sua cabeça
quase tocava o teto porque a cama havia sido erguida com latões de
tinta cheios de terra para torná-la mais imponente do que realmente era.
E para abrir espaço suficiente debaixo dela para duas malas cheias de
roupas e lençóis. A cama dupla, com uma cabeceira encapada com
pelúcia, dominava o cômodo, fazendo uma mesa verde dobrável e três
cadeiras se apertarem num canto e um pequeno armário de madeira,
com pratos, vasilhas e utensílios, se agachar no outro (MDA, 2007, p.
32, tradução nossa).
O bairro negro é entendido como um apêndice excrescente
daquilo que é considerado a cidade propriamente dita, que é, na
verdade, apenas o compartimento dos brancos africâneres, no qual
os negros só podem entrar a trabalho. De qualquer forma, essas
duas locações principais serão perpassadas por diferentes tempos
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no decorrer da narrativa. Alterações são introduzidas em ambas e a
compartimentação, em certa medida, se enfraquece. Essa fusão entre
espaço e tempo permite que as caracterizemos como cronotopos
menores a compor o cronotopo maior representado pela cidade de
Excelsior e, por extensão, por toda a África do Sul, do apartheid
até a era democrática.
Contudo, esses talvez não sejam os únicos ou mesmo os mais
importantes cronotopos da trama. Os eixos espacial e temporal
também parecem se unir num nível mais textual. Isso ocorre porque
Mda introduz, no início de cada capítulo do romance, a descrição
de um quadro do padre Frans Claerhout, um famoso pintor de
origem belga a viver e produzir sua arte na África do Sul. Essas
descrições são feitas com sentenças curtas, frequentemente no tempo
presente e com uma ênfase na cor ao invés de qualquer outro atributo.
Uma cena supercolorida é apresentada, então, ao leitor, antes que
os eventos ficcionais envolvendo Niki e/ou os outros personagens
sejam narrados. Ainda que as figuras que povoam essas telas estejam
congeladas num presente estático, sua vibração colorida sinaliza uma
potencialidade de ação, o que, mais do que simples descrições, pode
caracterizar esses fragmentos iniciais como verdadeiras narrativas
pictóricas. Parecem realizar afinal uma espécie de transição entre
espaços e tempos, funcionando como cronotopos diferenciados,
verdadeiras fronteiras entre a atualidade da leitura e o passado dos
eventos que estão sendo recontados. Como são a transposição, para
a tessitura do romance, de pinturas que o leitor pode ver com seus
próprios olhos, esses trechos interconectam o espaço da vida, o
espaço pictórico com suas especificidades e o espaço da narrativa.
Eles também deslizam entre o tempo do leitor e os tempos narrados,
passado e presente da África do Sul.
Dessa forma, as pinturas de Claerhout servem como gatilhos
que, uma vez acionados, dão início ao mundo ficcional encerrado
pelos limites desse romance. Assim, não é à toa que ele é chamado
de trindade na obra, por ser ao mesmo tempo padre, artista e
homem. Mas também por ser uma entidade criadora, responsável
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pela ignição que proporcionou a Mda a criação dessa metaficção
historiográfica. E não é menos importante o fato de Mda parecer
deslocar a autoria artística, de si mesmo para um colega artista2,
numa espécie de homenagem3, que nos remete inclusive à tradição
das artes visuais, em que diversos artistas se reuniam em ateliês para
realizar, em conjunto, trabalhos que posteriormente receberiam
apenas a assinatura de um mestre. Bem de acordo com as estratégias
da metaficção historiográfica, esse procedimento enfatiza o caráter
provisional do relato, enfraquecendo a noção de uma fonte única
original e reforçando uma perspectiva mais plural e aberta.
A própria gênese também parece transformada. “No início
era a imagem”, parece ser a ideia nova proposta. Uma imagem vista
por Mda e seus conterrâneos que influenciou de alguma forma a sua
criação, sendo traduzida por ele em palavras. Essa transformação
da imagem numa narrativa pictórica a funcionar como fronteira entre
espaços e tempos relaciona-se com a condição atual da literatura
pós-colonial, que se volta principalmente para as produções de
situações fronteiriças, sejam elas geográficas, sociais ou metafóricas.
O objetivo deste artigo é analisar a relação entre essas narrativas
pictóricas que surgem no limiar de cada episódio do romance e o
deslizamento efetuado pelo todo da obra entre violência e
reconciliação no contexto da África do Sul contemporânea. Para
tanto, parece ser necessária inicialmente uma discussão a respeito
da conceituação das fronteiras dentro dos estudos pós-coloniais.
Fronteiras, travessias e pós-colonialidade
A metáfora da fronteira está imbricada na constelação
metafórica da diáspora. Aquilo que as pessoas comuns normalmente
tomam por diáspora origina-se da narrativa bíblica ou histórica
tradicional, implicando a narração de um deslocamento forçado de
um grande contingente de pessoas, movendo-se ao mesmo tempo.
Essa imagem é, no entanto, um tipo possível de diáspora, embora
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não o único. Ainda que a noção de diáspora invariavelmente remeta
a um fluxo coletivo, não necessariamente as pessoas devem se mover
num bloco compacto ou exclusivamente de forma involuntária.
Sucessivos deslocamentos de membros de um grupo social ou
étnico, realizados em diversos momentos históricos e por diferentes
razões, constituem uma diáspora, reunindo em si também as
jornadas individuais voluntárias, aparentemente desconectadas do
grande fluxo, mas que, na realidade, ajudam a compô-lo.
Avtar Brah (1996) entende a diáspora da seguinte forma:
[n]o coração da noção de diáspora está a imagem de uma jornada.
Porém, nem toda jornada pode ser entendida como diáspora. As
diásporas não são o mesmo que viagens casuais. Elas também não se
referem normativamente a estadas temporárias. De uma forma
paradoxal, as jornadas diaspóricas são essencialmente a respeito de
estabelecer-se, de fixar raízes em “alguma outra parte” (BRAH, 1996, p.
182, tradução nossa).
Nessa definição, estão presentes a ideia da jornada ou
deslocamento, que deve pressupor a permanência num novo
contexto, e o conceito de um “lar”. O lar tanto pode ser o local do
qual se partiu quanto a locação onde outras raízes serão assentadas.
Pode ser ainda que nenhuma dessas instâncias seja reconhecida como
tal, uma vez que muitas vezes o que se tem na memória ou no campo
imaginário da esperança como o lar não corresponde ao que se
vivencia na realidade. Brah enfatiza mais a relação entre ambas do
que a substituição de uma pela outra. Essa intersecção relacional é
chamada por ela de espaço diaspórico, entendido como algo
“habitado não apenas pelos que imigraram e seus descendentes, mas
igualmente por aqueles que são construídos e representados como
nativos” (BRAH, 1996, p. 181, tradução nossa).
Na verdade, o espaço diaspórico de Brah é constituído por
uma confluência de narrativas, combinando as histórias da dispersão
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com os relatos da permanência. É nesse sentido que uma
multiplicidade de metáforas ou símbolos pode surgir dessas
experiências diferenciadas que se interconectam na diáspora. O
importante é buscar compreender suas significações, atentando para
seus contextos específicos, mas também para as justaposições,
intersecções e contrapontos possíveis com outros loci de enunciação
ou focos de onde surgem as narrativas.
Roland Walter (2009) intensifica o dinamismo do espaço
relacional diaspórico de Brah ao afirmar que:
[a]tualmente, com o aumento de culturas migratórias e hifenizadas, o
conceito [de diáspora] significa menos um estado/vida entre lugares
geográficos, conotando, de maneira mais abrangente (e talvez de forma
menos concreta), um vaivém entre lugares, tempos, culturas e epistemes
(WALTER, 2009, p. 43).
O “vaivém” de Walter, de alguma forma, enfraquece a
oposição entre dispersão e permanência que ainda existia em Brah,
tornando a relação entre elas bem mais fluida e provisional, o que
condiz com os tempos em que vivemos. Ainda que Brah tenha se
esforçado para enfatizar a relação entre esses polos e não exatamente
a existência única de cada um deles, o simples delineamento dessa
oposição parece mais próximo de uma época em que as
possibilidades de mobilidade e trânsito não eram tão abundantes e
facilitadas pelos desenvolvimentos tecnológicos e pela organização
geopolítica do mundo globalizado. Na contemporaneidade, a
intensificação do fluxo de deslocamentos pode tornar as raízes
lançadas em qualquer parte menos profundas, e não é incomum que
as pessoas fixem residência em diversos lugares durante suas vidas.
O retorno aos locais de origem pode inclusive ocorrer inúmeras
vezes, o que contribui para minar aquela nostalgia inerente às
concepções mais tradicionais de diáspora.
No entanto, Walter nos alerta para o risco de privilegiarmos
o deslocamento em detrimento da permanência ou continuidade,
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que ainda continua sendo a escolha de muitas pessoas. Ele retoma o
trabalho seminal de Paul Gilroy (2001), que estabelece a metáfora
do Atlântico Negro para compreender a movimentação das
populações negras entre os continentes banhados por esse oceano.
Faz parte do Atlântico Negro de Gilroy a grande diáspora negra
ocasionada pela escravidão, mas também todos os outros
deslocamentos posteriores de povos negros em inúmeras direções,
dentro desse contexto, por razões políticas, econômicas, sociais,
pessoais, etc. Gilroy propõe a experiência da diáspora como “uma
alternativa à metafísica da ‘raça’, da nação e de uma cultura territorial
fechada, codificada no corpo”, uma vez que ela “é um conceito que
ativamente perturba a mecânica cultural e histórica do
pertencimento” (GILROY, 2001, p. 18). Walter louva Gilroy por
mudar a percepção paradigmática das culturas negras de raça para
diáspora, ou seja, de uma relação fixa e supostamente essencial para
um compartilhamento de experiências comuns em sucessivos
deslocamentos, mas o critica por ainda insistir numa preferência de
rotas sobre raízes, o que, segundo ele, conteria o risco de se incorrer
num novo essencialismo.4
Para Walter, Stuart Hall apresentaria uma visão livre desse
perigo ao propor a seguinte conceituação:
[...] a experiência da diáspora é definida, não por essência ou pureza,
mas pelo reconhecimento de uma heterogeneidade e diversidade
necessária; por uma concepção de ‘identidade’ que vive não apesar, mas
com e através da diferença; por hibridismo. As identidades diaspóricas
são aquelas que constantemente se produzem e reproduzem de novo
por meio de transformação e diferença (HALL apud WALTER, 2009,
p. 48).
Diferença e hibridismo são as palavras-chave no
entendimento de Hall sobre a diáspora. Assim, não haveria sentido
em se pensar em identidades diaspóricas essenciais ou excludentes.
De forma semelhante, Walter percebe a diáspora negra como sendo
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composta simultaneamente pelas histórias dos que permaneceram,
dos que foram escravizados, dos que fugiram ou se rebelaram e
também dos que colaboraram com o sistema opressivo. O
entrecruzamento dessas experiências diferenciadas faz com que a
configuração do Atlântico Negro seja marcada por uma constante
negociação tensa entre elas, por um hibridismo, que impede que se
forme qualquer imagem homogênea do fenômeno. Ao invés da
predominância de uma dessas narrativas sobre as demais, o que é
importante, segundo Walter, “no entendimento e na análise do
holocausto do Atlântico Negro, é a inter-relação entre os seus
elementos e as suas cores constituintes” (WALTER, 2009, p. 48).
A importância da diáspora para os estudos pós-coloniais se
dá na pulverização que realiza na configuração dos territórios
circunscritos por limites fixos. No seu início, a crítica pós-colonial
se voltou para o exame das relações conflituosas entre metrópoles e
colônias, o que equivale a dizer que manteve o foco nas interações
entre dois tipos definidos de nações: as imperialistas e as colonizadas.
As primeiras produções literárias a receber o nome de pós-coloniais
foram aquelas que se originaram das lutas pela descolonização, cujo
principal veículo ideológico de resistência foi o nacionalismo.
Contudo, a partir da década de 1990, o surgimento das cartografias
diaspóricas representou uma alteração radical de paradigma crítico.
A diáspora transfere, como vimos, o foco de interesse, da nação,
para bases transnacionais ou antinacionais, do território delimitado,
para a desterritorialização, e, das existências únicas ou exclusivas,
para a inter-relação entre diversos elementos díspares. Entendendo
as diásporas sobretudo como espaços relacionais entre grupamentos
humanos, a crítica pós-colonial passou a investigar as manifestações
literárias dos oprimidos ou excluídos em seus diversos
posicionamentos pelo globo e em suas interações e contrapontos
com outros povos. Essa mudança de perspectiva fez com que
ocorresse uma revitalização na crítica pós-colonial, que continuou
sendo capaz de realizar análises efetivas mesmo depois de tanto
tempo desde o período histórico das descolonizações.
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Homi Bhabha (2001), ao refletir a respeito dos estudos
literários na atualidade, afirma que:
O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as
culturas se reconhecem através de suas projeções de ‘alteridade’. Talvez
possamos agora sugerir que histórias transnacionais de migrantes, colonizados
ou refugiados políticos – essas condições de fronteira e divisas – possam
ser o terreno da literatura mundial, em lugar da transmissão de tradições
nacionais, antes o tema central da literatura mundial. O centro de tal estudo
não seria nem a ‘soberania’ de culturas nacionais nem o universalismo da
cultura humana, mas um foco sobre aqueles “deslocamentos sociais e culturais
anômalos” [...] (BHABHA, 2001, p. 33).
Bhabha entende a situação contemporânea/pós-colonial como
a condição de se viver na esfera do “além”, numa espécie de fronteira
deslizante entre algo que já ocorreu e algo que ainda não se deu,
algo que ainda não está totalmente delineado. Para ele, o “pós”
presente em termos como pós-modernidade, pós-colonialismo e
pós-feminismo aponta invariavelmente para esse além, mas só
poderá de fato se imbuir de sua energia revisionária e libertadora se
ocupar o presente, transformando-o em uma vivência passível de
transformação e de empoderamento de grupos historicamente
oprimidos. Bhabha ainda ressalta que, na atualidade, as histórias que
estão sendo trazidas para o primeiro plano, no palco das discussões
internacionais, são as narrativas da migração, da diáspora, do exílio,
das situações fronteiriças. Dessa forma, “a fronteira se torna o lugar
a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento
não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além”
(BHABHA, 2001, p. 24). Localizar-se na fronteira é, então, ocupar
esse espaço liminar, intersticial, esse entre-lugar, esse terceiro espaço,
dado pela tensão, pela negociação, pela tradução de valores entre
um sistema familiar, conhecido, e um sistema ainda inexplorado,
ainda não tateado. E é essa tradução difícil, constante, instável, tensa
que cria o novo, a nova possibilidade, a nova condição.
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Em contrapartida, Walter visualiza a fronteira como o espaço
em que a diferença é vista paradoxalmente como separação ou como
relação. Isso porque a fronteira, enquanto linha divisória de
diferenciação espacial, temporal, política ou cultural, separa as
identidades que estão do lado de cá daquelas que estão do lado de
lá. Porém, na qualidade de um espaço compartilhado e atravessado,
ela representa a possibilidade de se transgredir a separação,
interconectando e colocando em negociação identidades
diferenciadas. Em outras palavras, as fronteiras “constituem lugares
tanto de poder do Estado repressivo e normalizador, quanto de
transgressivas funções e práticas transnacionais e transculturais”
(WALTER, 2009, p. 49).
De forma semelhante, Néstor García Canclini (2013)
compreende as “fronteiras entre países e as grandes cidades como
contextos que condicionam os formatos, os estilos e as contradições
específicos da hibridação” (CANCLINI, 2013, p. xxix, grifo no
original). Nesse sentido, ele também vislumbra o potencial
transgressivo da travessia das fronteiras, que se torna inclusive
inevitável, uma vez que mesmo “[a]s fronteiras rígidas estabelecidas
pelos Estados modernos se tornaram porosas” (CANCLINI, 2013,
p. xxix). O hibridismo ou hibridação, como prefere Canclini, é o
resultado desses trânsitos, atravessamentos, negociações, permitindo
a geração de estruturas, valores e práticas renovadas.
É essa noção da fronteira enquanto travessia que nos interessa
particularmente aqui. As narrativas pictóricas presentes em The
Madonna of Excelsior constituem fronteiras textuais e metafóricas que,
ao serem atravessadas, emprestam novos sentidos às narrativas que
surgem em seguida. Ignorar as potencialidades desses trânsitos talvez
não comprometesse a compreensão do enredo, mas certamente
tornaria a leitura do romance mais pobre. A partir da configuração
dessas fronteiras de palavras e da experiência de se deslizar por elas
até se atingir os eventos ali imbricados, Mda propõe ao leitor uma
nova possibilidade de adentrar o universo ficcional. O leitor é levado
a estabelecer relações entre as imagens e cores traduzidas em palavras
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e as cenas que se desenrolam a partir delas. São algumas dessas
relações que pretendemos discutir a seguir.
Fronteiras pictóricas deslizantes
Para facilitar a análise, escolhemos alguns poucos trechos que
parecem marcar momentos extremamente importantes no
desenrolar da narrativa:
Um homem de calças azuis, blusa azul e boina vermelha está em pé
sobre o telhado negro de uma casa retorcida numa noite azul. [...] Cabeças
com olhos abertos aparecem no céu azul, branco e amarelo. Olhos
branco-leitosos com pupilas negras como piche encaram o homem.
Penetrando na casa com seu olhar maravilhado. [...]
Olhos brilhantes no céu veem tudo. Veem um bebê recém-nascido
envolto em linho branco. Uma estrela de Belém intrusa se esgueirou
por uma das janelas contorcidas e brilha sobre o corpo do bebê. Enche
o quarto de uma luz amarela. Os humanos se ajoelham de cada lado do
bebê adormecido, com as mãos reunidas em oração. Um deles é um
homem de terno azul e boina azul. O outro é uma mulher num hábito
azul de freira. A grande estrela de Belém se ergue acima do traseiro
dela.
Não havia sido fácil para Niki, embora esse tivesse sido seu segundo
parto. A bolsa havia rompido. As contrações haviam inundado seu corpo.
[...] Deveria ter sido mais suave. Mas o bebê tinha outras ideias. Deu às
parteiras as suas costas e permaneceu preso na passagem da vida (MDA,
2007, p. 57, tradução nossa).
O que há de comum entre a narrativa pictórica e a cena a seguir,
envolvendo a protagonista Niki, é o tema de um nascimento. Na
pintura, há o que parece ser a retomada do nascimento do Cristo ou
de algum bebê de origem divina, já que a luz da estrela brilha sobre
ele e os humanos se ajoelham ao seu lado. Na segunda cena, quem
está nascendo é o segundo bebê de Niki, uma menina coloured, que,
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no inglês sul-africano, indica uma criança miscigenada, um mestiço
entre branco e negro. Seria essa criança, de alguma forma, também
divina? Não exatamente, mas se pensarmos na gênese do universo
ficcional que está sendo realizada, parece evidente que sua
aproximação com a cena pictórica anterior sinaliza o papel
importante que terá no desenvolvimento da trama. Ela própria
parece ter um início incomum, nascendo de costas e ficando presa
no canal vaginal. Nascimentos incomuns muitas vezes caracterizam
as crianças especiais das narrativas mitológicas sobre a criação do
mundo. Contudo, não é possível deixar de observar que o caráter
incomum ou especial presente no seu nascimento tem a ver com um
inegável sofrimento, com uma entrada dificultosa no mundo, ao
contrário da figura na cena anterior, envolvida numa aura iluminada
e pacífica.
Outra característica importante a conectar ambas as cenas é a
questão da cor. Na pintura, praticamente todos os elementos
recebem uma cor. E, na narrativa do romance, apenas a filha de
Niki e outras pessoas como ela serão chamadas de coloured, num
universo povoado praticamente apenas por brancos e negros. As
cores da pintura parecem ser luminosas e radiantes, o que poderia
indicar que assim também deveriam ser encaradas as pessoas às quais
são atribuídas cores na África do Sul. Mas Niki dá à luz sua filha
miscigenada em 1971, quando o regime do apartheid estava em vigor
e as relações sexuais entre brancos e negros eram consideradas crime,
com as crianças frutos dessas uniões sendo tomadas como provas
da contravenção de seus pais. O bebê miscigenado de Niki recebe o
nome de Popi, que significa “boneca” em sesotho, a língua de sua
mãe. A razão do nome tem a ver com sua beleza diferenciada,
associada de alguma forma à pele mais clara, uma vez que “as
parteiras disseram que o bebê se parecia com uma boneca de
porcelana” (MDA, 2007, p. 58, tradução nossa). Mas também aponta
o seu status de “não pessoa” em sua sociedade, já que é negra demais
para ser considerada africâner e branca demais para ser aceita como
igual na comunidade negra. Bhabha descreve o coloured sul-africano
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como um indivíduo que “representa um hibridismo, uma diferença
‘interior’, um sujeito que habita a borda de uma realidade ‘intervalar’”
(BHABHA, 2001, p. 35). Nesse caso, Popi ocupa permanentemente
a fronteira entre uma identidade e outra, incorporando em si mesma
a condição do além mencionada pelo mesmo teórico.
O modo como Popi foi concebida representa o coroamento
de uma série de relações violentas entre gêneros, classes e etnias na
África do Sul. Não é uma concepção pelo amor, mas pela violência.
Niki é introduzida nesse mundo por suas amigas Mmampe e Maria,
que, talvez por dinheiro, “a conduziram de propósito até uma
armadilha” (MDA, 2007, p. 17, tradução nossa). A armadilha se
chamava Johannes Smit, que após lhe oferecer dinheiro, ao qual ela
aceitou quase que automaticamente, “agarrou Niki pelo braço e a
arrastou para o campo de girassóis” (MDA, 2007, p. 16, tradução
nossa). Niki é instada por suas companheiras a se conformar com o
estupro, em primeiro lugar, porque o fato de ter aceitado o dinheiro
faria a polícia acreditar que a relação teria sido consentida, abrindo
margem para que fosse acusada de violar o Ato de Imoralidade.5
Em segundo lugar, porque Johannes seria incapaz de manter uma
relação sexual até a penetração, o que tornaria as coisas inofensivas
para ela. E Niki acaba fazendo o que lhe mandam, não porque
concorde ou tenha algum interesse material, mas porque nada mais
parece poder ser feito: “[a] cada ocasião, nos campos amarelos, ela
apenas se deitava ali para se tornar um instrumento de masturbação.
[...] Para a surpresa dele, um dia ele a penetrou, rompendo sua
virgindade e fazendo-a sangrar” (MDA, 2007, p. 18-19, tradução
nossa).
Nesse sinistro ritual de iniciação envolvendo Niki, podemos
perceber a complexidade no delineamento dos papéis de vítimas e
vilões existentes no romance. É claro que, para Johannes Smit, não
parece haver nenhum tipo de redenção, mas ele não teria conseguido
realizar seus intentos sem a valiosa ajuda de Maria e Mmampe. Porém,
o conhecimento a respeito da dinâmica das relações sexuais com ele
indica que ambas já estiveram na mesma posição que Niki. Nesse
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caso, por que não é possível um elo de solidariedade entre elas e
Niki, algo que poderia ter evitado que a última tivesse o mesmo
destino das primeiras? A situação da própria Niki não é, sem dúvida,
das mais fáceis, mas talvez ela pudesse seguir seus impulsos iniciais e
se rebelar contra o que lhe estava acontecendo. Assim, de uma forma
bastante corajosa, Mda, antes de lançar a totalidade da culpa sobre
os africâneres, examina a responsabilidade dos negros no que lhes
sucedia. Uma estranha espécie de inércia parece pairar sobre a
população de Mahlatswetsa Location, minando qualquer
possibilidade de reação e bloqueando as consciências de classe,
gênero e etnia.
Johannes Smit não será o pai da filha miscigenada de Niki. Ele
apenas abre caminho para um outro homem que se considera o
verdadeiro possuidor dos direitos sobre seu corpo, seu patrão na
loja de carnes, Stephanus Cronje: “_ Droga, Niki – ele disse
freneticamente – é comigo que você deveria estar fazendo essas
coisas, não com Johannes Smit” (MDA, 2007, p. 50, tradução nossa).
Após o fracasso de seu casamento com Pule, Niki cede às investidas
de Stephanus, mas apenas porque deseja vingar-se da esposa dele,
Cornelia, que a havia humilhado, fazendo-a despir-se completamente
na frente dos outros empregados do açougue para verificar se não
estava portando um pedaço de carne roubada: “Ela não via um
patrão ou amante. Ela via o marido de Madame Cornelia. [...] E ela
o tinha inteiramente em seu poder” (MDA, 2007, p. 50, tradução
nossa). Contudo, a “vingança” de Niki não passa de um expediente
ingênuo. Não é possível para ela ter Stephanus realmente sob seu
controle. Ainda que fossem consideradas ilegais, as relações sexuais
entre brancos e negros, do modo como são retratadas no romance,
não subvertem as relações de poder. Na verdade, esses
relacionamentos desiguais entre africâneres ricos e jovens negras
pobres apenas mantêm o status quo na sociedade sul-africana durante
o apartheid. Ainda que o leitor se solidarize com a situação de Niki,
é impossível não perceber seu grau de responsabilidade em seu
próprio enredamento.
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O resultado é o nascimento de Popi e a prisão por transgredir
o Ato de Imoralidade:
Aqueles eram dias em que os campos de girassóis haviam perdido seu
amarelo e assumido um profundo tom marrom. Dias em que a paleta
da trindade se tornara quente e sombria. Dominada por sienas e tons
queimados.
Niki e Popi brincavam nos espaços abertos que a trindade criava para
todos os que amavam os espaços abertos. Aqueles que apreciavam os
grandes céus que se fundiam com a terra. Eliminando horizontes.
Tornando impossível determinar em que ponto a terra terminava e o
céu começava. Era uma visão arrebatadora. Popi, verdadeiramente
colorida em vermelho e pedaços azuis, correndo por entre os girassóis
marrons. As pétalas estavam murchas e haviam perdido a cor amarela.
Popi, nua e desigualmente colorida. Ainda não madura o suficiente para
engatinhar. Ainda não madura o suficiente para caminhar. Porém,
brincando e correndo no campo marrom. Niki, nua e livre, correndo
atrás dela. [...] Até que mulher e criança se fundiram no cinza escuro. E
se tornaram unas com ele. Desaparecendo nas pinceladas da trindade e
se tornando parte da compaixão que elas evocavam.
Ninguém jamais as encontraria.
O tilintar das chaves e o som metálico das vasilhas de mingau de milho
sem açúcar sendo empurradas pelo chão de concreto as encontraram.
E as arrancaram sob protestos das pinceladas. Elas não haviam
submergido completamente. [...] Elas foram encontradas e trazidas de
volta para o mundo de nervosismo e perplexidade. De mulheres
maliciosas e bebês que não paravam de chorar.
Niki estava vivendo com eles na cela lotada (MDA, 2007, p. 69-70,
tradução nossa).
Diferentemente do que acontecia no trecho anterior, aqui não
parece haver a descrição de uma tela específica, mas antes de uma
mudança mais sombria nas cores e tons empregados por Claerhout,
talvez numa determinada fase de sua carreira, que, na narrativa,
corresponde ao período de aprisionamento de Niki e outras
mulheres negras com seus filhos, todas acusadas de manter
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relacionamentos proibidos com homens brancos. Mda retoma, nesse
ponto, um fato realmente ocorrido em Excelsior em 1971 que ficou
famoso após ser divulgado pelos jornais do país: o julgamento de
dezenove cidadãos, homens africâneres e mulheres negras, pelo
descumprimento da legislação em torno do comportamento sexual.
Mas ele o reescreve, preenchendo-o com personagens e eventos
fictícios. No romance, provavelmente em consonância com o que
deve ter acontecido na realidade, apenas as mulheres são
encarceradas. Os homens africâneres respondem ao processo em
liberdade.
Além de a alteração nas cores da pintura, de mais radiosas
para mais sombrias, realizar a transição para um período ainda mais
difícil na vida de Niki, uma outra fronteira parece ter sido atravessada
nesse trecho. O espaço pictórico parece confluir com o espaço dos
sonhos das personagens, no qual elas podem se movimentar
livremente e até correr, ao contrário do confinamento a que estão
condenadas na vida de vigília e para o qual são arrastadas de volta
pelos barulhos metálicos da distribuição da refeição matinal na
cadeia. Niki e Popi brincam pelos campos abertos criados pelas
pinceladas de Claerhout numa espécie de prefiguração do que
ocorrerá meses mais tarde, quando, sem conseguir trabalho nas casas
das famílias, justamente por seu envolvimento no caso, Niki começa
a posar para o padre em troca de dinheiro, juntamente com sua
filha, servindo ambas de modelos para as madonas e crianças que
ele pinta. Mda, então, estabelece uma intersecção entre suas
personagens e a pessoa de carne e osso que é o padre e que ele
transportou da realidade para as páginas de seu romance. A trindade
assume, além da função de entidade insufladora do universo
ficcional, o papel de salvador da vida de Niki e Popi, proporcionando
a elas os meios necessários para sua subsistência num momento em
que a mais ninguém interessava ajudá-las.
A perseguição contra os contraventores do Ato de Imoralidade
torna-se uma febre no país:
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Era a Época Dourada da Imoralidade no Estado Livre. A Imoralidade
era um passatempo. Sempre havia sido popular, até mesmo antes que
leis fossem promulgadas no Parlamento para contê-la. Tornou-se um
passatempo no primeiro dia em que os navios dos exploradores
lançaram âncora na Península do Cabo séculos atrás, e em que eles
viram as partes amarelas dos corpos das mulheres khoikhoi. Mas o
que nós estávamos vendo durante essa Época Dourada era como
uma praga. Em várias remotas cidades do interior, magistrados
africâneres estavam sentados em seus bancos, ouvindo os detalhes
picantes e escondendo dolorosas ereções embaixo de suas túnicas
magistrais. Africâneres processando companheiros africâneres com zelo
canibalístico. Africâneres enviando companheiros africâneres para
cumprir sentenças de prisão. Tudo por causa de partes de corpos
negros (MDA, 2007, p. 93-4, tradução nossa).
Assumindo um tom irônico, a voz narrativa que Mda elege
para contar sua história emprega a palavra “Imoralidade” para se
referir às relações sexuais entre brancos e negros, exatamente como
os legisladores africâneres que as transformaram em crime. A ironia
continua ao defini-la como um passatempo, existente desde o início
da história da África do Sul, quando os primeiros europeus
desembarcaram por ali e começaram a se relacionar com as mulheres
locais. O questionamento levantado nesse trecho parece ser bem
claro: sendo um costume sexual tão difundido e tão imbricado no
passado do país, faz algum sentido considerá-lo imoral? Ou ainda,
faz algum sentido considerar o sexo entre seres humanos imoral de
qualquer forma?
A atribuição da cor amarela aos corpos das mulheres khoikhoi
também parece se revestir de uma importante significação numa
obra em que as cores desempenham um papel tão fundamental. Os
khoikhoi foram nomeados pelos discursos colonialistas britânicos
como Bushmen, homens da mata ou bosquímanos, sendo
considerados pelos mesmos discursos um dos grupos mais
“primitivos” entre os “primitivos”, em virtude de seu estilo de vida
extremamente frugal, que aos europeus do período se afigurava
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como um atraso cultural. Comparados a outros grupos africanos,
os khoikhoi normalmente apresentam a pele mais clara, num tom
amarelado. Porém, na narrativa de Mda, essa menção à cor de seus
corpos não é apenas descritiva. Ela parece assinalar a diferença, a
alteridade, considerada pelo discurso oficial sul-africano um atributo
da inferiorização.
No século XIX, algumas mulheres khoikhoi foram levadas
para a Europa e exibidas em exposições e feiras em razão de
características anatômicas relacionadas à herança genética de seu
grupo: a presença de culotes e quadris bastante salientes. Se esses
traços físicos faziam com que parecessem anormais aos europeus
vitorianos, a ponto de serem exibidas como animais, também é
verdade que os mesmos atributos despertavam fascínio e desejo em
seus observadores. Um eco dessa relação conflituosa aparece na
reação dos magistrados africâneres descrita no trecho em questão,
que, ao ouvir os relatos sobre as relações interétnicas que deveriam
punir, mal conseguem disfarçar sua excitação.
Mda revela a hipocrisia que havia por trás do Ato de
Imoralidade, demonstrando toda a dinâmica de seu mecanismo
autoconsumidor. O “zelo canibalístico” que lançava africâneres ao
encalço de outros africâneres não parecia ser, afinal, tão intenso,
uma vez que desde o princípio o tratamento dispensado às mulheres
negras acusadas de crime sexual era bem pior do que aquele oferecido
aos seus amantes. De qualquer forma, era uma febre destinada a
passar em breve, uma vez que um grupo privilegiado não seria capaz
de trazer, por sua própria conta, a mais completa destruição sobre
si mesmo, ainda mais em decorrência de atos que seus membros
estavam acostumados a realizar.
Mas Mda também põe a descoberto a complacência da
comunidade negra diante dos fatos. A inércia, como uma espécie de
névoa compacta a cobrir a tudo e a todos, parece ter bloqueado o
campo de visão das pessoas: “[e]sses pecados de nossas mães
aconteceram diante de nossos olhos. Então, alguns de nós se
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tornaram cegos. E permaneceram assim até os dias de hoje” (MDA,
2007, p. 74, tradução nossa). Mda retorna, nesse ponto, ao emprego
da ironia, não só por designar o que estava ocorrendo como
“pecado”, o que é ainda mais forte do que crime, mas também por
circunscrever esse pecado apenas às mulheres negras, “nossas mães”,
o que correspondia à visão do senso comum africâner da época,
que as acusava de seduzir os homens e os induzir ao crime/pecado.
Assim, ele demonstra que a cegueira coletiva, além de parecer ter
sido uma escolha diante da extrema dificuldade de se poder alterar
as coisas, na verdade, implica também uma adoção do ponto de
vista alheio, uma visão negativa e redutora em relação ao próprio
grupo.
De qualquer forma, como as mulheres de Excelsior aceitam
não apresentar evidências contra seus parceiros, elas são liberadas
da cadeia, e Niki pode finalmente voltar para casa. A partir daí, o
papel de protagonista é transferido gradativamente para Popi, e nós
somos capazes de acompanhar o desenvolvimento da menina em
diversos momentos:
Quem é essa menininha em pé diante de um céu polvilhado de azul
com flores cor-de-rosa como estrelas? Um céu grande e um cosmo
rosa embaixo de seus pés descalços como se fossem papel de parede.
Quem é essa menininha numa bata branca como a neve de mangas
compridas? Cobrindo suas pernas até seus calcanhares. [...] Quem é essa
menininha com cachos compridos e grandes olhos brilhantes e lábios
finos? Cabelo pintado de preto. Raízes mostrando que sua cor natural é
castanho claro. Quase loiro. [...]
A menininha era Popi, na última vez que ela se sentou para posar para a
trindade. Ficou de pé para posar para a trindade, para ser exato. Adeus,
dinheiro ganho com esse trabalho. Ela não era de fato uma menininha,
embora parecesse uma. Tinha quatorze anos. E odiava o espelho. Ele
expunha para ela mesma quem na realidade era. Uma menina boesman.
Uma menina hotnot. Morwa towe! Sua bosquímana! Ou, quando os bons
vizinhos queriam ser educados, uma menina coloured (MDA, 2007, p.
113, tradução nossa, grifos nossos).
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Nesse trecho, mais uma vez temos uma variação na
configuração das narrativas pictóricas. Popi está plenamente
transformada numa das figuras que povoam o universo das telas de
Claerhout, mas ela não parece estar representando uma criança divina
em alguma manjedoura. Ao contrário, representa a si mesma, com
suas próprias cores e características. Isso se coaduna com o aumento
de importância que passará a ter a partir de então. Dessa forma, a
fronteira deslizante caracterizada pela narrativa pictórica no início
do fragmento nos prepara para a passagem do foco principal de
Niki para sua filha. O excerto também chama a atenção para as
características físicas da garota.
Um dos grandes problemas de Popi é que ela não aceita sua
aparência miscigenada: seus olhos azulados, seus cabelos longos e
castanhos, sua pele dourada. E parece ter razões para isso, uma vez
que, durante toda a infância, tem que aguentar uma série de ataques:
[q]uando as outras crianças a viam na rua, elas gritavam: “‘Boesman!
Boesman!’. E, então, corriam, dando risadas” (MDA, 2007, p. 110,
tradução nossa, grifos nossos). Boesman é a palavra africâner para
bosquímano. Popi é chamada assim não apenas por ter a pele mais
clara, como as pessoas desse grupo. Se a questão fosse apenas essa,
não haveria motivo para as crianças rirem e para ela se ofender. Na
verdade, está implícito nessas “ofensas” que a comunidade negra
adotava a mesma visão dos colonialistas brancos a respeito dos
khoikhoi, considerando-os também como atrasados e inferiores.
Além de não apresentarem solidariedade em relação a esse grupo
irmão, os moradores de Mahlatswetsa Location também não
conseguem se solidarizar com Popi. Ela é tão oprimida pelos
africâneres quanto eles, mas seus conterrâneos a veem a partir da
perspectiva com que também são vistos por seus opressores.
Aos quatorze anos, esse é um momento de passagem para
Popi, não apenas porque vai assumindo aos poucos o centro dos
acontecimentos, mas também porque é a fase em que entra na
puberdade, o que, para ela, além de tornar-se uma mulher, também
significa ver pelos começarem a crescer em suas pernas. E isso é
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mais um sinal da sua diferença: “[o]utras meninas negras da sua idade
não tinham pelos nas pernas” (MDA, 2007, p. 118, tradução nossa).
A não aceitação da herança genética miscigenada também se reflete
no fato de Popi não saber o que fazer com os pelos: “[e]la apenas
deixou estar. [...] Popi temia que, se raspasse as pernas alguma vez,
elas se tornariam ainda mais peludas” (MDA, 2007, p. 119, tradução
nossa).
O desenvolvimento de Popi, de uma menina insegura que só
se esconde para alguém que vai assumir um papel ativo em sua
comunidade, assemelha-se à trajetória da população negra da África
do Sul, que vai reagindo cada vez mais às agressões até conquistar o
fim do regime que a oprime. Viliki, o irmão mais velho de Popi,
filho de Niki com seu marido Pule, é o primeiro a ingressar no
Movimento Negro: “[e]le havia se unido aos guerrilheiros, aqueles
que estavam lutando para liberar a África do Sul da opressão dos
bôeres” (MDA, 2007, p. 125, tradução nossa). Após ser ferida pela
polícia durante uma manifestação em 1993, da qual não estava
participando, Popi decide ter uma participação mais intensa no
Movimento, o que vai culminar com ambos os irmãos sendo eleitos
como representantes da cidade quando o apartheid termina: “[p]ela
primeira vez na história de Excelsior, o conselho da cidade tinha
membros negros. E eles eram maioria” (MDA, 2007, p. 164,
tradução nossa). Assim, os habitantes de Mahlatswetsa Location
abandonam a inércia que os consumia.
Um dos primeiros atos de Popi como conselheira municipal é
propor a adoção de uma outra língua para os trabalhos do conselho,
realizados ainda em africâner: o inglês. “_ Ninguém fala inglês em
Excelsior [...]. _ Bem, então, teremos que aprendê-lo – disse Popi,
com finalidade” (MDA, 2007, p. 178-179, tradução nossa). A viajante
da fronteira, a verdadeira in-between que é Popi propõe, assim, uma
língua de negociação no conselho, onde agora todos têm que ter
uma voz. Continuar a empregar o africâner ou simplesmente
substituí-lo por sesotho ou alguma outra língua africana correria o
risco de alimentar possíveis radicalismos ou unilateralidades. O inglês,
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sendo a língua do grupo que dominou tanto bôeres quanto africanos,
ainda assim tem um status de língua neutra nesse contexto porque é
um estranho para ambos os grupos em Excelsior. Com a sua
aprendizagem, eles serão capazes de atravessar suas diferenças rumo
à reconciliação necessária, mesmo que seja através de uma
negociação constante e difícil. No caso de Popi, sua cura individual
se dá pela reconciliação com suas origens e com a aceitação de sua
aparência: “[u]ltimamente Popi passava todas as manhãs olhando
para si mesma no espelho, admirando seus olhos azuis e escovando
seu longo cabelo marrom dourado” (MDA, 2007, p. 266, tradução
nossa). Mesmo os pelos não são mais problema: “[e]la não era
nenhuma boneca Barbie: não iria raspar as pernas peludas. Seus
braços peludos. Mesmo as axilas. Ela se regozijava com seus cabelos
e pelos” (MDA, 2007, p. 266, tradução nossa). Assim, o romance
de Mda realiza a travessia da violência, do trauma e da mágoa para
um momento em que as diferenças podem ser finalmente respeitadas
e admiradas.
Considerações finais
Qual é a importância da fronteira para o entendimento de uma
obra que se volta para um enclave rural num país africano como a
África do Sul? Muitos poderiam objetar contra essa possível
significância, afirmando que Mda não está afinal representando os
africanos que vivem na diáspora, fora de seus países de origem, como
fazem outros escritores pós-coloniais. Os personagens de The
Madonna of Excelsior não realizam grandes deslocamentos físicos e
não chegam nem mesmo a mudar de cidade. No entanto, a fronteira
que vivenciam inicialmente se refere às separações entre brancos e
negros impetradas pelo apartheid. É uma fronteira racial, social,
política, jurídica e até mesmo sexual, delimitada pela força e pela
violência. Talvez o mais irônico é que o atravessamento dessa
fronteira se dá a princípio pela própria violência, como é o caso do
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nascimento das pessoas coloured, surgidas no romance como resultado
de relações desiguais, e também das ações de guerrilha do
Movimento Negro. De qualquer forma, essa fronteira vai sendo
minada gradativamente durante a narrativa, não de forma pacífica
ou tranquila, mas sempre através de uma dura luta de interesses.
A fronteira pictórica existente no nível textual da tessitura do
romance nada mais é do que uma metáfora desse atravessamento.
Afinal, ela é também uma fronteira de cor ou de cores. A diferença
é que, desde o princípio, ela não se estabelece como separação
propriamente dita, mas como relação, interconectando espaços e
tempos, imagens e significados. A sua simples existência torna mais
esperançosa a vivência das personagens, mesmo nos momentos mais
difíceis do enredo, estabelecendo uma relação heterotópica com o
espaço opressivo de suas vidas. O mundo das telas de Claerhout é
sempre mais aberto, povoado de grandes céus e grandes campos de
cor, onde personagens transformadas em figuras podem correr
livremente, mesmo na fase mais sombria. Assim, o trabalho de cura
coletiva e individual é iniciado pelas obras da trindade,
reinterpretadas e traduzidas por Mda para o seu universo ficcional,
e finalizado com a maior conscientização que as personagens vão
adquirindo.
Referências
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2001.
BRAH, A. Cartographies of diaspora. London; New York: Routledge,
1996.
CANCLINI, N. Culturas híbridas. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2013.
FANON, F. The wretched of the earth. London: Penguin Books, 1990.
GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro:
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Universidade Cândido Mendes, 2001.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção.
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
MDA, Z. The Madonna of Excelsior. Cape Town: Oxford University
Press, 2007.
WALTER, R. Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das
Américas. Recife: Bagaço, 2009.
Notas
2
O próprio Mda, além de escritor, é também artista plástico.
A ideia de homenagem é corroborada pela própria dedicatória do romance, feita para Claerhout:
“Em 10 de maio de 2000, juntamente com uma facção das minhas filhas, visitei o Padre Frans
Claerhout em seu estúdio em Tweespruit, no Estado Livre. Sempre quis conhecê-lo. Ele havia
sido o mentor de alguns artistas amigos meus, de James Dorothy, em particular. Claerhout me
presenteou com um livro sobre sua obra escrito por Dirk and Dominique Schwager. Mas
primeiro ele pintou um pássaro dourado na contracapa preta e assinou seu nome. Dedico este
romance ao pássaro” (MDA, 2007, dedicatória, tradução nossa).
4
Gilroy brinca com a semelhança de som entre as palavras do inglês, routes (rotas) e roots (raízes),
privilegiando as primeiras em detrimento das segundas, principalmente ao eleger “a imagem de
navios em movimento pelos espaços entre Europa, América, África e o Caribe como um
símbolo organizador central para este empreendimento [de estabelecer a metáfora do Atlântico
Negro] e como [seu] ponto de partida” (GILROY, 2001, p. 38).
5
Era chamada dessa forma a legislação em torno da proibição das relações sexuais entre brancos
e negros.
3
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MUHURAIDA: ENTRE ÉPICA E
A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE
NACIONALISMO
MUHARAIDA: BETWEEN EPIC
AND HISTORY, A LESSON OF
NATIONALISM
Tânia Pêgo
(FLUL )1
RESUMO: O poema que serve de objeto de estudo a este
trabalho – Muhuraida – recria um acontecimento histórico,
contemporâneo ao seu autor, Henrique João Wilkens, ocorrido
na Amazônia. A narrativa gira em torno da pacificação e
conversão dos bárbaros índios Mura, considerados um empecilho
para o desenvolvimento econômico e social da região adjacente
ao rio Madeira. A pacificação dos Mura ora é vista como um
milagre efetuado pela fé cristã, ora é atribuída aos esforços dos
agentes do Governo, dividindo-se entre a apologia do
Cristianismo e do “Diretório dos Índios”. A Muhuraida é
1
Mestre em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – FLUL.
Investigadora no CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da FLUL),
Linha 3 – Multiculturalismo e Lusofonia. [email protected]
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MUHURAIDA: ENTRE A ÉPICA E A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO
T ÂNIA P ÊGO
apresentada pelo seu autor como um poema heroico. Entretanto,
os fortes indicadores de religiosidade presentes no texto
permitem que este possa ser considerado um poema heroicoreligioso. Wilkens vai buscar inspiração na épica moderna. Assim,
o seu texto, além de privilegiar a verossimilhança e o maravilhoso
cristão, vai apresentar uma inovadora trilogia de heróis.
Sem o prestígio conseguido por outros épicos brasileiros do
seu tempo, o certo é que a Muhuraida, além de dar um precioso
contributo para a reconstrução de uma página da história
amazonense, também revela um certo sentimento patriótico,
sustentado por uma velada denúncia dos abusos cometidos pelos
colonizadores e missionários contra os índios.
PALAVRAS-CHAVE: Mura. Poética. Flagelo. Redenção
ABSTRACT: The poem we study in this paper - Muhuraida –
recreates a historical event, which is to contemporary to the
author, Henrique João Wilkens. The narrative is about the pacification and conversion of the barbarian Indians Mura, considered as an impediment to the social and economic development
of the area surrounding the Madeira river. The pacification of
the Mura is seen either as a miracle performed by the Christian
faith or credited to the Government’s agents efforts, between
the apology to Christianity and to the “Diretório dos Índios”.
Muhuraida is presented by its author as a heroic poem. However, the strong religious indicators presented in the text allow it
to be considered a heroic religious poem. Wilkens was inspired
by the modern epic. Thus, his text, besides privileging the verisimilitude and the marvelous Christian, introduced an innovative
trilogy of heroes. Although it didn’t achieve the prestige of other
Brazilian epics of its time, Muhuraida made a precious contribution to the reconstruction of the Amazonian historical page
and it also reveals some patriotic feelings, sustained by a veiled
accusation of the abuses perpetrated by the settlers and the missionaries against the Indians.
KEYWORDS: Mura. Scourge. Redemption
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MUHURAIDA: ENTRE A ÉPICA E A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO
T ÂNIA P ÊGO
A Muhuraida ou O Triunfo da Fé Na bem fundada Esperança da
enteira Converção, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra,
poema composto em 1785 por Henrique João Wilkens, oficial
português a prestar serviço na Amazônia, foi publicado em Lisboa
em 1819, pelas mãos do Pe Cypriano Pereira Alho. Numa altura em
que as atenções encontravam-se já voltadas para a nova tendência
literária que começava a instalar-se na Europa – o Romantismo – é
natural que tão grande atraso na sua publicação possa ter sido
responsável para que a Muhuraida não tivesse divulgação no Brasil
do Século XIX, ficando excluída das principais obras de referência
sobre a literatura produzida no Brasil durante o período colonial,
como a de Manuel de Oliveira Lima (s/d) ou a de Varnhagen (1845),
dentre outras, não obtendo a mesma repercussão que os seus pares
brasileiros, O Uraguai, de Basílio da Gama (1769), e Caramuru, de
Frei José de Santa Rita Durão (1781).
Seria preciso passar mais de um século para que um primeiro
estudo crítico sobre o poema fosse apresentado no Brasil, por Mario
Ypiranga Monteiro (1976). Contudo, tal estudo, inserido no leque
de obras referentes à literatura desenvolvida na e sobre a Amazônia,
nega à Muhuraida o seu valor literário, valorizando unicamente o seu
contributo para a reconstrução da história amazonense.
A descoberta do manuscrito 2 da Muhuraida conduziu à
publicação de uma nova edição do poema, em 19933, primeira no
Brasil. Contribuiu também para elucidar alguns equívocos que se
formaram em torno da sua autoria e da língua em que foi escrito.
Sem acesso ao manuscrito e, provavelmente, fundamentando as suas
observações nas exíguas biografias de Wilkens e do Pe Alho, Mário
Ypiranga Monteiro incorre num erro que pode ser facilmente
esclarecido com uma consulta ao manuscrito quando afirma que a
Muhuraida havia sido escrita “originalmente em linguagem mura pelo
oficial de milicias Enrique João Wilkens, não se sabe vazado em que
combinação poética [e, posteriormente,] traduzido em oitavas
camoneanas pelo padre português Cipriano Pereira Alho e publicado
em Portugal” (1976, p. 23).
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MUHURAIDA: ENTRE A ÉPICA E A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO
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Ainda mais curiosa e equivocada é a afirmação feita pelo
historiador Artur César Ferreira Reis (s/d) de que “um vigário de
Moura escreveu a «Muraida», em que cantava, em tom heróico, o
episódio da pacificação dos índios Mura4”. Equívoco inexplicável,
já que não deixa de constar na folha de rosto da edição impressa em
1819 que o poema foi “composto por H. J. Wilkens” e “dado a’
luz” pelo “Pe Cypriano Pereira Alho”.
A leitura do manuscrito vem também pôr em evidência mais
uma particularidade da Muhuraida. Importantes alterações,
dissimuladas sob o véu de uma simples revisão, foram efetuadas
pelo seu editor, o Pe Alho, o que faz com que o manuscrito de Wilkens
e a edição impressa em 1819 não possam ser tratados como um
texto único.
A “pretenção” do Pe Alho em não tratar o texto com o
distanciamento próprio de um revisor/editor fica logo patente nos
paratextos, quando edifica o trabalho do editor igualando-o ao do autor,
citando, para tanto, o seguinte trecho da Carta X de Antonio Ferreira:
Igualmente direi sempre ditoso,
Ou quem fez cousas dignas de memoria,
Ou quem poz em memoria o proveitoso. (Pe ALHO, p. 174)
Longe de restringir-se às suas competências enquanto revisor
e editor, o Pe Alho adota uma postura nada comum, apropriandose do texto e introduzindo alterações que o percorrem, passando
por uma abreviação do título, pela substituição da dedicatória e da
introdução e pela eliminação, alteração e acréscimo de algumas notas.
As modificações efetuadas pelo Pe Alho estenderam-se ao
estilo e à ideologia do texto, provocando uma nítida mudança de
enfoque no poema, que resultou numa suavização da imagem dos
Mura e na corroboração dos métodos aplicados pela política
administrativa local quanto à questão dos índios. Aparentemente,
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MUHURAIDA: ENTRE A ÉPICA E A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO
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esse procedimento pode ser lido como pretexto para a construção
de uma figura mais mítica do indígena. Ignorando a crescente
animosidade provocada pelos constantes desentendimentos que
marcaram as relações entre o índio e o português, o Pe Alho faz
realçar as características do homem natural, cultivando a semente
que já desabrochava no Arcadismo e que mais tarde viria a dar lugar
a um dos modelos do herói romântico brasileiro – o índio.
Embora possamos considerar a hipótese de que essa tentativa
do P Alho tenha tido como objetivo a divulgação do poema e a
sua aceitação no universo literário, é sobre o manuscrito e as dúvidas
que pairam sobre a sua epicidade e literariedade que nos pretendemos
debruçar, numa tentativa de esclarecer certas dualidades que
atravessam o poema, que vêm acompanhadas de alguma inovação,
merecedororas de uma análise mais atenta.
e
A Muhuraida é hoje considerada como o primeiro poema
produzido na Amazônia que trata de um assunto local de conteúdo
histórico. Contudo, Monteiro a restringe a uma “página de história
reduzida à técnica metriforme” (1976, p. 24) e afirma que o poema
traduz “uma preocupação indianista de circunstância, não de ‘escola’
ou de movimento” (1976, p.206). Lida sem qualquer outra referência
que não seja a de uma simples obra literária, sem procurar estabelecer
uma ligação fundamentada a um qualquer movimento estético,
percebe-se que a Muhuraida deixa emergir o desabrochar de um
espírito patriótico e indigenista através da preocupação com a defesa
do território e com o estabelecimento da paz com os índios e da
“natureza do colonialismo português em relação aos povos
indígenas” (BARROS, 1993, p.9).
Apresentada pelo seu autor como um poema heroico, a sua
estrutura externa assim o atesta, desenvolvendo-se ao longo de mil
e setenta e dois versos que se encontram distribuídos por cento e
trinta e quatro estrofes, reunidas em seis cantos.
As estrofes, construídas em oitavas heroicas, como estipulado
pela tradicional fórmula para assuntos de caráter épico, não
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apresentam nenhuma irregularidade a acentuar no seu conjunto.
Wilkens adota o modelo camoniano de rimas alternadas nos seis
primeiros versos e emparelhadas nos dois últimos. Na sua quase
totalidade, o acento principal recai na sexta e na décima sílabas, o
que impõe um ritmo vigoroso e grave ao poema.
A brevidade dos cantos, que segue naturalmente a dimensão
do assunto, não incorre em nenhuma quebra dos princípios ou
normas da poética épica, que sobre essa matéria ainda não encontrou
conformidade, tendo os autores, como já afirmava Joseph Freire
(1759), uma certa liberdade regrada. Contudo, distingue-se, em
extensão, dos principais poemas épicos que tiveram projeção no
passado, como Os Lusíadas, de Camões; A Eneida, de Virgílio; Gofredo,
de Tasso ou A Ilíada, de Homero, que são bem mais longos,
contando com dez ou mais cantos. Nesse aspecto, aproxima-se do
seu contemporâneo, O Uraguai, de Basílio da Gama, que possui
apenas cinco cantos, num total de mil, trezentos e setenta e sete versos.
Seguindo os seus princípios essenciais, a Muhuraida apresenta
as quatro componentes típicas obrigatórias da epopeia clássica:
Título, Proposição, Invocação e Narração. Porém, nem sempre elas
estarão em conformidade com os preceitos coligidos por Joseph
Freire e apresentados na sua Arte Poética.
O título do poema – Muhuraida – não se refere nem ao lugar
nem ao herói da ação, como de costume entre os clássicos, mas sim
ao antagonista: os índios Mura. Estes, por sua vez, vêm a ser a
personagem de maior impacto na narrativa. Ao referir-se com maior
ênfase ao índio, o autor parece pretender não só valorizar a ação de
pacificação, ocorrida em 1784, que tão importante foi para a
manutenção do sistema mercantil estabelecido na região, como
também salientar a necessidade de se ter os índios como aliados na
defesa e manutenção das fronteiras definidas pelo Tratado de Santo
Ildefonso, assinado em 1777.
Independentemente das suas motivações, o certo é que Wilkens
procurou dar ao título de sua obra a majestade buscada pelos antigos.
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A simplicidade e força conseguidas com a união de um substantivo,
MUHURA, com um sufixo designador de ação, IDA, são, contudo,
quebradas com o acréscimo de um longo desdobramento: “ou o
Triunfo da Fé Na bem fundada Esperança da enteira Converção, e
reconciliação da Grande e feróz Nação do Gentio Muhúra”. Com
essa extensão, Wilkens antecipa o assunto e o desfecho do poema,
ao mesmo tempo que reforça a importância que é dada ao índio.
Essa antecipação também vai surgir no início de cada canto, com a
apresentação de uma estrofe que resume o assunto do mesmo.
Wilkens constrói a Proposição da Muhuraida num estilo
simples. Nos seus versos iniciais utiliza expressões que coroam o
êxito da empresa, novamente chamando a atenção do leitor para
um final feliz:
Canto o Successo fausto, inopinádo,
Que as faces banha em lagrimas de gosto;
Depois de ver n’hum Seculo passádo,
Correr só pranto, em abattido rosto,
(WILKENS,1993, p.99)
Incorre, assim, segundo as anotações de Joseph Freire, no erro
de prenunciar o fim da ação, já inicialmente referido no
desdobramento do Título. Nos versos que dão seguimento à sua
proposição, Wilkens, rende graças à Providência –
Canto o Successo, que fáz celebrádo
Tudo o que a Providência tem disposto,
Nos impensádos meyos admiráveis,
Que os altos fims confirmão inscrutáveis.
(WILKENS,1993, p.99)
–, deixando mais uma vez claro que é o milagre da
pacificação que se evidencia na narrativa. Afastando-se das musas
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e das divindades pagãs, prática comum nas epopeias clássicas,
Wilkens vai buscar inspiração na Luz, fonte de verdade que
clarifica o raciocínio e indica o caminho mais certo e seguro,
invocando-a:
Mandai rayo da Luz, que communica
A entendimento, acerto verdadeiro,
Espirito da Páz! que vivifica
A frouxa idea, e serve de roteiro
No Pelago das Trévas em que fica
O misero mortal, que em captiveiro
Da Culpa, e da Ignorancia navegando
Sem voz, he certo, incauto hir naufragando.
Invoco aquella Luz, que diffundida
Nos coraçoens; nas Almas obstinádas,
Faz conhecer os erros; e a perdida
Graça adquirir; ficar justificadas;
A Luz resplandecente, appetecida
Dos Justos; das Naçoens dezenganádas
Da pompa; da vaidade do Inimigo,
Que ao eterno condúz final perigo.
(WILKENS,1993, p.99-101)
A Invocação traduz um dualismo que se repete em muitas
passagens do texto. A “Luz” em que Wilkens se apoia e a que recorre
para lhe conceder a inspiração tanto pode referir-se ao Iluminismo,
tendência dominante no século XVIII e que se apresenta no poema
através da sua simplicidade formal, como ao Cristianismo, numa
aceitação à prática religiosa vigente.
É só muito mais adiante, no Canto 5.º, numa passagem que
pode ser considerada como uma segunda Invocação, outra
irreverência de Wilkens, quando o poeta dirige-se à Deus para
agradecer a sua intervenção na difícil pacificação dos Mura, que a
força da fé, já referida no título, é realçada:
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Oh Tu Supremo Author da Natureza!
Que fundas na equidade o teu Juízo;
Protector da innocencia indefféza;
Que ao Insecto não faltas co’o precizo,
Oh Tu! Que aos coraçoens, Alma e feréza,
Illustras, e mitigas; No concizo,
Prescripto espaço pondo os Elementos;
De tudo regulando os Movimentos.
Tu foste, que o feróz, barbaro peito,
Do indomito Muhúra mitigando,
Tão docil; tão contente, e satisfeito,
Fizeste a Sociedade se hir chegando.
Dos que te amando, co’o maior respeito,
A Victima nas Aras immolando,
Propiciatorio tem, no medianeiro,
Páz, Alimento; Pai, Deos verdadeiro.
(WILKENS,1993, p.147)
Tal invocação parece servir de pretexto para que o poeta, na
estrofe seguinte, valorize a importância dessa pacificação, largamente
noticiada no Estado do Grão-Pará e também em Portugal. Por ter
sido motivo de grande regozijo, a pacificação dos Mura justifica a
sua imortalização através da composição do poema:
Faz Epocca o Successo memorável,
Nos Annaes do Pará; Da Luza Gente;
Pois fáz. Que assumpto sempre lamentável,
Do maior gosto seja transcendente.
Admiração não cauza ver domável
O Tigre ser; Manso o Leão; Serpente
Domesticar se; quando o feróz Muhra,
Dezeja a Páz; Socégo so procura.
(WILKENS,1993, p.147)
A Dedicatória da Muhuraida é feita fora do poema, por meio
de uma carta, onde o autor oferece a sua obra ao Governador e
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Capitão General do Estado do Grão-Pará, “Sua Exª o Senhor João
Pereira Caldas”. Wilkens considera ser esta
“huma Offerta, que [tem] toda a apparencia de Tributo, [...] affecto,
veneração, e respeito, que [consagra] á Illustre Pessoa” do referido
Governador, visto ter sido este não só um “méro spectador, mas sim,
depois de Deos, o primeiro Motor, e Agente dos opportunos meyos,
que este fim interessante [, ou seja, a pacificação dos Mura,] ao Serviço
de Deos e da Soberana, [conseguiu] completamente”.
( WILKENS,1993, p. 89)
Quanto à Narração, ao ser analisada sob os princípios básicos
da épica moderna, ou renascentista, é de se esperar que o texto
apresente as características principais deste gênero, ou seja, uma ação
inspirada num acontecimento da história nacional, centrada na figura
de um herói – mais humano e generoso, de elevada grandeza moral
e digno representante dos ideais coletivos de um povo –, e que
privilegia a verossimilhança e o maravilhoso cristão.
Girando em torno da pacificação e da conversão do bárbaro
e indomável gentio Mura, “Inconstante, e feroz, qual outro Scytha”
(WILKENS,1993, p.101), que é conseguida após várias décadas de
esforços para o seu controle, a ação da Muhuraida decorre num espaço
de tempo relativamente curto –
Mais de dez Lustros eram já passados
(WILKENS, 1993, p.101)
–, período que, segundo os documentos consultados,
compreende três fases: a primeira, em que os Mura assolavam a
extensa região do rio Madeira e as povoações vizinhas impedindo o
desenvolvimento econômico e social naquela zona –
[…] Espreitando
Nas margens lá do Rio, e Lagos fundos,
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O incauto Navegante,
(WILKENS, 1993, p.105)
–, a segunda, descrevendo as várias e infrutíferas tentativas
do Estado e da Igreja para a sua redução, as dificuldades em levar a
bom termo o processo de catequese –
Não se cançáva o Zelo, e a piedáde,
De meyos procurar mais adequádos,
A Conversão de tal Gentilidáde,
Mas sempre os lamentáva então frustrádos.
Mil vézes, co-o fervor da Caridáde,
Das Religioens os Filhos, animádos
Entre perigos mil, e amesma Morte,
Se esforçávão buscarlhes milhor sorte.
(WILKENS, 1993, p.113)
– e, finalmente, a terceira, quando se dá o milagre da rendição
e conversão dos Mura:
Também lá no Madeira a excellencia
Da Graça diffundindo, os attrahia,
A procurar a Páz interessante,
(WILKENS, 1993, p.159)
A ação, narrada in media res, apresenta um relato misto que
conjuga a fala do narrador com a das personagens principais. A
épica exige uma imparcialidade e um distanciamento do narrador
da matéria que relata, que o atiram para um plano secundário e não
participativo. Entretanto, o narrador mantém a sua onisciência,
revelando-se em alguns lugares dentro da narrativa, como na
Proposição, na Invocação, na Dedicatória e no Epílogo.
Com exceção da Dedicatória, que na Muhuraida encontra-se
fora do corpo do poema, Wilkens faz uso das outras três posições,
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libertando o sujeito poético, apresentando-se ao leitor na primeira
pessoa, respectivamente:
Canto o successo fausto, inopinádo,
[...]
Canto o Successo, que fáz celebrado (Wilkens, p.99)
Invoco aquella Luz, que diffundida
Nos coraçoens; nas Almas obstinádas, (Wilkens, p.99)
Sempre os progressos a Cantar disposto
Aqui suspendo a Vóz; A Lira encosto.
(WILKENS,1993, p.169)
De um modo geral, Wilkens procura manter no seu poema o
distanciamento exigido pela épica, quer nos momentos em que
assume o discurso – como narrador –, quer quando delega a palavra
às personagens. Há, contudo, algumas passagens em que a
impessoalidade do poeta é substituída por um discurso direto. A
sua estreita ligação com as personagens que descreve e o profundo
conhecimento e proximidade dos fatos que narra levam-no a incluirse no grupo dos portugueses que desejam a paz e a propagação da
fé cristã. Esta inclusão é marcada pelo uso da primeira pessoa do
plural, que se encontra nas seguintes passagens:
Os Templos entre os nossos Luzitános,
Mais que nunca, se hir devem frequentando;
(WILKENS,1993, p.149)
Não menos memoráveis nos ficárão
Os dias venturózos de Janeiro;
Pois nelles nos deo Páz, felicidade
O Author da Vida; A Fonte da Verdade.
(WILKENS,1993, p.149)
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Tal inserção faz-se também notar quando o narrador revela a
sua onipresença, o que acontece quando se coloca no grupo dos
que presenciaram a integração dos Mura –
Héra do Sexto Méz, o nono dia,
E quarto neste Pôvo de festejo,
(WILKENS, 1993, p.167)
–, ou no lugar dos viajantes que percorriam os rios infestados
por esses índios. Dessa forma, transporta o leitor para o interior da
narrativa, guiando-o pelos mesmos caminhos aterradores, tão seus
conhecidos, e reconstituindo todo o horror dessa arriscada jornada:
D’aqui de agudas flechas hum chuveiro
(WILKENS, 1993,p.107)
Esse processo de construção do discurso funciona como um
reforço da noção de verossimilhança pretendida pelo autor. O
conhecimento dos fatos é adquirido através da participação direta
na ação. É esse saber que se repete e se reafirma no momento em
que os Mura chegam à aldeia de Santo Antonio do Imaripi –
Alvoroçado estáva o Povo enteiro
De ali o Parente; Aqui o filho perdido,
Ao Pai; a Irmãos; a Amigos encontrando,
(WILKENS,1993, p.139)
–, e que dá credibilidade ao relato do narrador.
Como militar, Wilkens tem o compromisso em apresentar a
“verdade histórica”, não raras vezes vividas em primeira pessoa ou
ouvidas e descritas nos seus relatórios. Por conta desse dever moral,
a ação da Muhuraida é enriquecida por breves episódios que se
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encontram diretamente ligados à trama e que contribuem para
redesenhar a história dos Mura, vítima da traição de alguns
colonizadores, que é lembrada por um velho Mura, memória viva
do seu povo, veículo que exterioriza a verdade vista pelo lado do
índio:
Já não lembra o agrávo, a falsidáde,
Que contra nos os Brancos maquinárão?
Os Authóres não forão da crueldáde?
Elles, que aos infelices a ensinárão?
Debaixo de pretextos de Amizáde,
Alguns mattando, outros maneatárão,
Levando-os para hum triste Captiveiro,
Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro.
Grilhões, Ferros, Algémas, Gargalheira,
Açoutes, Fomes, Dezampáro, e Morte,
Da ingratidão foi sempre a derradeira
Retribuição, que teve a nossa sorte.
Desse Madeira a exploração primeira,
Impedio, por ventura, o Muhura forte?
Suas Canoas vimos navegando,
Diz; fômos, por ventura, os maltractando?
(WILKENS,1993, p.131)
Nesse aspecto, o poema cumpre duas exigências da épica
moderna: a valorização dos episódios nacionais e a modernização
do tema, resgatando uma das máximas da poesia épica, ou seja, a
imortalização da história de um povo.
A epicidade do poema pode ser posta em causa pela ausência
de confrontos bélicos e de um episódio lírico. Em verdade, a
excessiva proximidade e envolvimento de Wilkens com os fatos
relatados, aliados à falta de distanciamento temporal da ação narrada,
não permitem que sejam incluídos na Muhuraida, pois, de outra
forma o texto perderia toda a sua credibilidade histórica.
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Não se pode refutar o fato de que os textos épicos constituem
uma rica e complexa fonte de pesquisa histórica, servindo de canteiro
para a reconstrução do memorial histórico de um povo. Criar uma
obra que mereça crédito, ganhando através da verossimilhança a
legitimidade do discurso narrativo é a função do poeta épico. Assim,
a historicidade, dentro do poema épico, não é a finalidade do
discurso, mas um instrumento para a sua tessitura, assegurando ao
tecido verbal a veracidade artística. O autor se vale dos fatos
históricos para criar a trama narrativa, que vai ganhando autonomia
e caracteres de arte dramática através da construção de imagens
grandiosas ou fantásticas, atirando os fatos históricos para um plano
secundário.
E o que não falta na Muhuraida são elementos que emergem
do texto e que conduzem o leitor para uma leitura metafórica,
conferindo ao poema um evidente valor artístico. Na Muhuraida, o
processo de fabulação faz-se presente a partir do instante em que o
maravilhoso entrelaça-se com o discurso narrativo e extrapola os
limites do real. É o caso da passagem que relata a aparição do Anjo
pacificador –
Mas lá desde o Divino Consistorio,
Do Eterno, Immutável, Sabio, Justo,
Omnipotente Ser; Desse alto Imporio
Desce velóz o Mensageiro Augusto;
(WILKENS,1993, p.115)
– e o da interferência do Príncipe das Trevas, que age nas
sombras, espalhando o mal, com o intuito de dissuadir os Mura de
estabelecer a paz com os colonos:
Mas lá na Habitação do eterno dánno,
O Principe das Trévas; Monstro informe,
[...] Deo o enorme
Sinal acostumádo,
(WILKENS, 1993, p.159)
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Temivel, larga, ignifera Torrente;
No transito impetuózo quanto appanha
As cinzas reduzindo; indifferente,
A dura penha, a flor, Jardim vistózo,
Casal humilde, ou Povo numerózo.
(WILKENS, 1993, p.161)
Essa incursão no ‘maravilhoso’, que encaminha o texto para
uma leitura poética, não foge ao racionalismo ditado pelo
pensamento iluminista do Século XVIII e que caracteriza toda a ação.
A interposição do imaginário se processa de maneira nítida, dotada
de minuciosa lógica. E é dessa forma insólita que Wilkens resolve o
problema do confronto entre as forças opositoras. A habilidade
oratória, que se apoia na astúcia e no respeito imposto, não deixa de
ser um enfrentamento tão arriscado quanto o físico. É o mundo
civilizado que se apresenta e que encontra a ordem, reintegrando os
valores da sociedade cristã.
A alegoria do confronto entre as forças do Bem e do Mal,
entre a Luz e as Trevas realiza-se para mostrar, de forma subjacente,
uma crítica à opressão a que os índios estão sujeitos pela sociedade
exploradora e escravagista e que é preciso fortalecer o papel dos
agentes pacificadores, último recurso para introduzir os Mura no
seio da comunidade cristã. Dessa forma, os Mura abandonam o
papel de antagonista e passam ao de vítima daqueles que só visam
os lucros da colonização.
Os indicadores da literariedade vão também passar pela
construção das personagens, sobretudo a do herói, elemento
principal dentro da estrutura épica e que determina os rumos da
narrativa. Estabelecer o herói dentro da complexa estrutura
ideológica da Muhuraida põe-nos diante de uma grande interrogação
– quem é o herói? Quem conseguiu transformar o “feróz,
indomável” (WILKENS,1993, p.91) gentio Mura num índio “Tão
docil; tão contente, e satisfeito” (WILKENS,1993, p.147)? A ação
de pacificação e de conversão dos índios Mura apresenta mais de
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uma figura que se destaca no papel de herói, o que pode ser
considerado como mais um ponto de negação da epicidade do
poema. Ora é vista como um milagre, fruto da providencial
intervenção divina manifestada através da figura de um Anjo, ora é
atribuída aos pressurosos esforços dos agentes do Governo, ora é
entendida com o resultado da vontade dos próprios Mura.
Três são as figuras que partilham o papel de herói dentro do
poema. O primeiro é um “Anjo humanado”, emissário da palavra
de Deus que, servindo-se de um disfarce, sopra no ouvido do jovem
Mura, sensibilizando-o, humanizando-o e mudando a sua concepção
sobre o homem branco:
Que fazes? Meu Irmão! / lhe diz seréno /
De Inimigos se teme novo insulto?
Quando eu cuidára, que Regato Ameno,
Banhando te acharia, e dando indulto
Aos lassos Membros; Vejo, que o terréno,
De frutas; plantas, produções inculto,
Coberto está de flechas; de instrumentos,
Que indicão todos belicosos intentos!
(WILKENS,1993, p.117)
E para que conheças a verdáde
De tudo, que eu relato, vai correndo,
Vai logo; Ajunta os teus, com brevidade,
Veras, se he certo, o que te estou dizendo;
(WILKENS,1993, p.125)
O segundo é um Mura jovem, que se deixa seduzir pelo Anjo
e incita o seu povo a desarmar-se e estabelecer a paz com os colonos:
Levantai-vos! Parentes meus amados!
Dispertai, de lethargo tão profundo!
Olhai, que para empréza sois chamádos,
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Que nome vos dará, já em todo o Mundo.
Temidos, atheagora, respeitados,
So fômos em Dezertos, Bosque immundo.
Mas já o destino quer, a nossa sorte,
Que o Mundo todo admire ao Muhura forte.
(WILKENS,1993, p.127)
O terceiro herói é Mathias Fernandes, agente local do Governo
português, que atua diretamente no terreno do conflito:
A todos precedendo, vai primeiro
[...], já dos Muhuras conhecido;
A quem por Director, e por guerreiro
Seguindo; respeitávão destemido.
(WILKENS,1993, p.139)
Se considerarmos que o herói da Muhuraida é aquele que
consegue o milagre da redenção de um povo temido por sua
ferocidade e selvajeria, torna-se impossível analisar a atuação de cada
um dos três elementos independentemente. Mathias Fernandes não
teria conseguido o intento do Governo português sem a intervenção
do Anjo sobre o jovem Mura e deste sobre o seu povo. A
heroicidade, aqui, não se resume à ação isolada de um indivíduo
dotado de valores e capacidades superiores. Três são os elementos
que se cruzam e interagem, construindo, verso a verso, o conjunto
de ações grandiosas que conduzem à realização de um feito valoroso,
ditado pelo espírito épico e perpetuado pela história nacional.
A trilogia no plano narrativo da Muhuraida retoma o espírito
da épica religiosa e destaca o maravilhoso cristão, remetendo à
Trindade formada pelo Pai-Filho-Espírito Santo. Sob essa ótica,
concebemos a figura do diretor Mathias Fernandes, na qualidade de
agente do Governo e representante da força e da soberania do
colonizador, como uma representação simbólica do Criador – o
Pai. O jovem Mura, que se converte e espalha a mensagem de Deus
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entre o seu povo, é o Filho. E o Anjo, instrumento da redenção,
mensageiro que anuncia os milagres e as intenções de Deus e que
zela pela paz entre os homens, é o Espírito Santo.
As três presenças heroicas – a força militar, que atuava na
região, protegida pelo Diretório do Índios, a fé, obra do incansável
e incessante trabalho dos missionários das diferentes Ordens
Religiosas, e as necessidades do próprio Mura, na altura em guerra
com os índios Mundurucus – revelam o conflito político-ideológico
resultante da aplicação da política indigenista oficial e da preservação
do domínio religioso na esfera da questão indígena. As frequentes
alterações das leis, ora atribuindo a tutela dos índios à Igreja, ora ao
Estado, só servem para mostrar como a questão do índio estava
ainda mal resolvida.
Por outro lado, a passagem do Mura de selvagem irracional,
retrato de uma bestialidade demoníaca, para a de um povo
cooperante, disposto a aceitar a sua assimilação no projeto
desenvolvimentista de colonização, deixa transparecer, em primeiro
lugar, a opressão sofrida pelos Mura nas mãos do poder colonial
português, que num determinado momento da narrativa assume o
papel de antagonista e, em segundo, o efeito da religiosidade sobre
o coração humano – é o ser primitivo, irracional, animalizado que
se humaniza através da fé, trazida pela civilização ocidental.
Nesse ponto da narrativa, a teoria rousseauniana do ‘bom
selvagem’, que fundamenta a produção do Arcadismo, encontra
berço, elevando o texto de Wilkens ao mesmo nível de O Uraguai e
Caramuru, que também defendem, à sua maneira, a inocência e o
direito natural dos índios. Protegido dos seus agressores, os Mura
podem ouvir a voz de Deus. O poder da fé não é, assim, algo para
ser colocado em segundo plano dentro da narrativa. Ela se sobrepõe
até mesmo à voz da experiência. O diálogo entre o Mura jovem e o
Mura velho, já aqui isoladamente reproduzido, revela com grande
eficácia a força da religiosidade. Como um jogo entre a razão e a
emoção, o velho tenta, inutilmente, chamar à consciência o jovem
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Mura, alertando-o para a falsidade e traição do homem branco.
Contudo, a fé penetrou no coração do jovem índio que, humanizado,
traz agora o espírito aberto, limpo, puro, pronto para perdoar o
passado e acreditar num futuro de paz, onde brancos e índios possam
conviver em harmonia, dividindo o mesmo território, numa proposta
de unificação.
E é esse Mura convertido pelo poder do Espírito Santo – o
novo Mura –, que consegue conduzir o seu povo à redenção. Numa
parábola bíblica, é o Filho que vem aos homens para ‘tirar os
pecados do mundo’, constituindo o elemento intermédio do
processo de pacificação, que se faz através da redenção espiritual.
Para consolidar esse processo é necessário um elemento que guie os
recém convertidos pelos caminhos da Luz. Esse guia é o Pai, que
através da sua autoridade e do respeito que impõe, evita que as suas
ovelhas se desgarrem.
Nessa leitura, deve-se à religião católica e às leis do Estado os
louros da vitória, sendo o resultado dessa comunhão o início, o
meio e o fim do processo. Através da religiosidade e da autoridade,
Mathias Fernandes consegue firmar a paz entre os dois povos. Temos,
então, a presença ativa e valorosa de três elementos que,
entrelaçando-se, complementam-se, tornam-se ‘uno’, configurando
a imagem do herói que, dotado de exemplar sentido de
oportunidade e conveniência, concilia forças com o próprio inimigo
para conquistar o equilíbrio necessário à preservação da paz.
O herói da Muhuraida, menos idealizado e, portanto, mais
humano, despe-se de vaidade, dispensando a glória pessoal e o
reconhecimento público, e reveste-se de toda a grandiosidade que
lhe é consagrada pelo espírito épico moderno, trabalhando em prol
do bem coletivo.
Não se pode negar que a simplicidade estrutural e uma certa
objetividade e brevidade descritivas condicionam a narrativa do
poema. Tal simplicidade formal tem como objetivo manter o
equilíbrio entre razão e emoção, preservando a ‘verdade’ da
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narrativa. Assim, a ausência de descrição de um combate físico ao
longo do poema, apontado como um dos fatores que restringem a
sua característica épica, não é de todo relevante, já que faz todo o
sentido que o poeta não o introduza, uma vez que parece ser sua
intenção destacar o estado quase animalesco e a irracionalidade dos
índios Mura, sem, contudo, despertar demasiada atenção para a
inadequação dos colonos portugueses, quer ao meio, quer à forma
de conduzir a sua relação com o indígena. As admiráveis qualidades
guerreiras dos índios são realçadas não como um elogio à sua figura,
mas para lembrar a falta que tão formidável exército faz nas colunas
portuguesas.
Ignorar os elementos factuais do texto de Wilkens em função
da busca de indícios literários contradiz o realismo imanente em
todos os géneros literários da época. A própria filosofia do ‘Século
das Luzes’, primando pela razão, prezava a riqueza da informação
geográfica e histórica, naturalista e antropológica em detrimento
do rebuscamento das formas e subjetividade temática. Assim, a
Muhuraida, longe de ser uma narrativa idealizada que promova a
evasão da realidade, transforma-a em extrato de ficção, como
clamava o “homem setecentista, interessado por aspectos exóticos
e desconhecidos da realidade humana e física” (DURÃO, p.11).
Nessa ordem, a composição descritiva da Munuraida encaixase perfeitamente no lema inutilia truncat que visava eliminar os
exageros, o rebuscamento e a extravagância característicos do
Barroco, submetendo a poesia ao império da razão, segundo os
moldes estéticos do racionalismo francês. Seguindo os modelos
antigos, inclusive renascentitas, Wilkens mantém um equilíbrio entre
a razão e o sentimento, a realidade e a fantasia, a informação e a
invenção, ao construir a história da pacificação dos gentios Mura,
numa simplicidade próxima da objetividade do mundo burguês.
Dessa forma, o poema de Wilkens aproxima-se, em todos os
aspectos, dos mais renomados poemas Setecentistas brasileiros: do
tratamento do tema à estrutura formal, passando pela construção
do herói até a discussão dos ideais burgueses.
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Assim, não parece despropositado dizer que se percebe na
Muhuraida a presença de um espírito nacionalista. É evidente que
não se trata de um nacionalismo resultante do espírito nativista
que começava a desabrochar em várias regiões do Brasil,
relacionado com os movimentos de insurreição, como o da
Incofidência Mineira, e de independência, e que mais tarde se
consolidaria nas produções do Romantismo. O nacionalismo de
que falamos está condicionado ao meio ao qual o autor da
Muhuraida está veiculado, ou seja, a uma vivência passada ao serviço
do Estado, numa região inóspita, cuja integridade territorial era
preciso defender dos avanços espanhóis e da rebeldia de algumas
tribos menos cooperantes. Trata-se de um nacionalismo que se
traduz pela necessidade de se formar uma aliança com os Mura,
protegendo-os, fortalecendo-os e disciplinando-os, para que estes
pudessem garantir a fixação das fronteiras na Amazônia. As
intenções políticas, naquele momento e naquela região, são,
portanto, de preservação e de manutenção da unidade política,
administrativa e territorial.
Servindo-se do rigor histórico que está presente em todo o
poema, Wilkens confronta o leitor com a triste questão do índio.
A Muhuraida não trata o índio de forma idealizada, quase
europeizada, como os que se apresentam em O Uraguai e Caramuru.
O índio da Muhuraida é autêntico, quer na sua selvajeria – ao
enfrentar o português, que em muitas ocasiões se revelou um
invasor furtivo, traiçoeiro e predador –, quer na sua inocência –
quando acredita na mudança de intenções desse mesmo português
e que uma aliança com os colonos só lhe trará vantagens. Percebese, assim, uma velada preocupação do autor em fazer a denúncia
da exploração e do massacre dos índios – processo desencadeado
pelos colonizadores –, e da sua aculturação, manipulada pelos
missionários. Disputado pela Igreja e pelo Estado, o índio perdeu
a sua identidade natural e é agora um esboço, um fantasma que
pouco tem a ver com aquele que Pedro Álvares Cabral um dia
encontrou na “Ilha de Vera Cruz” – o Brasil.
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Sem preencher de forma total e satisfatória os requisitos
definidos pela crítica literária e necessários para o seu enquadramento
num modelo épico específico e sem ser suficientemente inovador,
impondo um novo estilo, a Muhuraida foi afastada das páginas das
histórias da literatura brasileira. Contudo, é certo que a Muhuraida,
além de dar um precioso contributo para a reconstrução de uma
das páginas da história amazonense, também revela um certo
sentimento patriótico, sustentado por uma velada denúncia dos
abusos cometidos pelos colonizadores e missionários contra os
índios. Ao reunir em suas páginas a verossimilhança e o maravilhoso
cristão, a Muhuraida vai desenhando em seus versos o Brasil selvagem
e primitivo, revelando uma reflexão sobre os problemas locais,
refletindo, de forma clara, o espírito da literatura ilustrada.
Referências
BARROS, Marcus Luiz Barroso. Apresentação. In: WILKENS, Henrique João.
Muhuraida ou o triunfo da fé, 1785. Manaus: Biblioteca Nacional/UFAM/
Governo do Estado do Amazonas, 1993.
DURÃO, Frei José de Santa Rita. Caramuru. Rio de Janeiro: Agir, 1957
[1769].
FREIRE, Francisco Joseph. Arte Poética, ou Régras da verdadeira poesia
em geral, e de todas as suas especies principais, tratadas com juizo critico. 2.ª
edição, Tomo II, Lisboa: Offic. Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759.
GAMA, José Basílio da. O Uraguai. Rio de Janeiro: Publicação da Academia
Brasileira, 1941 [1769].
Grande enciclopédia portuguesa e brasileira. v. 36, Lisboa, Rio de Janeiro,
1989 [195-].
LIMA. Manuel de Oliveira. Aspectos da literatura colonial brasileira. Rio
de Janeiro: INL, s/d.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fatos da literatura amazonense. Manaus:
Universidade do Amazonas, 1976.
REIS, Artur César Ferreira. A Língua Portuguesa e a sua imposição na
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MUHURAIDA: ENTRE A ÉPICA E A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO
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Amazônia. Revista de Portugal, Série A: Língua Portuguesa, v. XXIII, Lisboa,
1958.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Épicos brasileiros. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1845.
WILKENS, Henrique João. Muhuraida ou o triunfo da fé na bem fundada
esperança da enteira converção, e reconciliação da grande e feróz nação
do gentio muhúra. 1785. (manuscrito)
______. A Muhuraida, ou a conversão, e reconciliação do gentio-muhra.
Lisboa: Impressão Regia, 1819.
______. Muhuraida ou o triunfo da fé, 1785. In ANAIS DA
BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, v. 109, 1989. Rio de
Janeiro, 1993, p. 79-275.
______. Muhuraida ou o triunfo da fé, 1785. Manaus: Biblioteca Nacional/
UFAM/Governo do Estado do Amazonas, 1993.
Notas
2
O manuscrito encontra-se depositado na Torre do Tombo sob o códice: Mss. Brasil. C. 16
E.147 P. 6. Ficheiro 36, Avulsos: 3, n.º 24. Foi localizado e divulgado pelo antropólogo Carlos
de Araújo Moreira Neto.
3
Esta edição deveu-se a uma iniciativa conjunta entre a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
e a Universidade do Amazonas. As citações da Muhuraida aqui empregadas foram retiradas da
edição publicada em livro em Manaus, dado que ela reúne o manuscrito (cujas páginas não se
encontram numeradas) e a primeira edição portuguesa de 1819. Para facilitar a identificação
das mesmas, abriremos aqui uma exceção e usaremos apenas o nome do autor ou do revisor
seguido do número da página.
4
Convém referir que o nome da tribo aparece quase sempre referenciado no singular, ao
contrário de outras grandes nações, como os Mundurucus, os Tapuias, os Guaranis etc, o que
nos leva a supor que os Mura criaram uma sociedade onde o coletivo impera sobre o indivíduo,
fruto de uma coesão em massa.
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A DESCONSTRUÇÃO
PARÓDICA DO DISCURSO
HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM
O BRASILEIRO VOADOR DE
MÁRCIO SOUZA
PARODIC DECONSTRUCTION
OFBIOGRAPHICAL HISTORICAL DISCOURSE IN O
BRASILEIRO VOADOR BY
MÁRCIO SOUZA
Cléber Luís Dungue
(PUC/SP)1
RESUMO: A vida e a história de Santos-Dumont já foi tema
de mais de uma centena de biografias, muitas delas escritas
segundo um modelo tradicional que procura enformar,
1
Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
CEP: 05014-901
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A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O BRASILEIRO VOADOR DE
MÁRCIO SOUZA
CLÉBER LUÍS DUNGUE
engrandecer e perpetuar a figura heroica do aviador. Em O
brasileiro voador, Márcio Souza propõe um projeto de
desconstrução desse mito nacional por meio da paródia, que se
configura como uma estratégia de deformação e reinvenção da
realidade de maneira crítica. A partir da leitura desse livro, é
possível perceber a desmontagem de aspectos ideológicos que
contribuíram para o propósito de tornar Santos-Dumont um
heroi nacional. No romance, a sátira que faz rir é também
potencialmente aquela que questiona verdades canônicas. Ela
permite tanto levantar o véu que encobre as contradições e
desventuras do patrono da aviação brasileira, como também
desconstruir o convencionalismo da história oficial.Uma das
medidas tomadas por Márcio Souza para livrar Santos-Dumont
do engessamento histórico e da seriedade inócua é compará-lo
a personagens burlescas. Nesse sentido, a ironia, a caricatura, o
burlesco e o deboche são estratégias eficazes para instigar o
posicionamento crítico do leitor diante do texto.
PALAVRAS-CHAVE: Biografia. Santos-Dumont. História
official. Desconstrução. Paródia.
ABSTRACT: The life and history of Santos-Dumont was the
subject of more than one hundred biographies. Many of them
were written according to a traditional model that try to frame,
exalt, and perpetuate the heroic figure of the aviator. In O brasileiro
voador, Marcio Souza proposes a project of deconstructing this
national myth through parody, which constitutes a strategy of
deformation and reinvention of the reality in a critical manner.
From the reading of this book, it is possible to notice how the
author dismantles the ideological aspects that contributed to make
Santos-Dumont a national hero. In the novel, the satiric aspects
that make one laugh can also raise questions to the canonical
truths. The satire allows us to lift the veil concealing the contradictions and misadventures of the patron of Brazilian aviation
as well as to deconstruct the conventionality of the official history. One of the strategies used by Márcio Souza is comparing
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A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O BRASILEIRO VOADOR DE
MÁRCIO SOUZA
CLÉBER LUÍS DUNGUE
Santos-Dumont to burlesque characters – by doing this it is possible to free him from his historic cage and from the innocuous
seriousness he is interpreted with. In this sense, irony, caricature,
burlesque comparisons and debauchery are effective strategies
to engage the reader in a critical positioning.
KEYWORDS:Biography. Santos-Dumont. Official history.
Deconstruction. Parody.
O desmistificador não está acima e a salvo dessa geléia geral da
cultura de massa; está dentro dela, procurando apenas ter uma
visão mais crítica do que a do simples consumidor. A arma do
desmistificador não é o anátema ou a censura, mas o humor; foice
(e não martelo) cuja função é limpar o terreno, abrir caminho
(ROLAND BARTHES: o saber com sabor, Leyla Perrone-Moisés).
O brasileiro voador começa a ser elaborado em 1979 pelo escritor
amazonense, Márcio Souza,a partir de uma solicitação feita
porTizukaYamazaki. O objetivo inicial não era o de produzir um
livro, mas sim escrever o argumento que, posteriormente, seria
convertido em roteiro do filme que a cineasta pretendia fazer sobre
a vida de Santos-Dumont. O projeto, no entanto, não foi
concretizado. Em 1986, Souza publica o romance quenão chegou a
ser transformado em filme. Ainda assim, quer pelas sugestões epelo
apoio dados pela cineasta, quer pela incorporação das técnicas
narrativas aprimoradas a partir do próprio trânsito do autor pela
sétima arte, o cinema está no cerne da elaboração deste livro.
Questionada sobre a possibilidade de ainda transformá-lo no roteiro
a ser filmado, a diretora de vários filmes do cinema brasileirose
mostra desestimulada:
Havia desistido uma vez, pois consegui a coprodução com a França e
não consegui a parte brasileira.
Na época, soube de um comentário, por parte de um general, segundo
o qual eu seria comunista!!! Os militares podem ter criado resistência,
com medo de que uma “comunista” fizesse do patrono da aeronáutica
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A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O BRASILEIRO VOADOR DE
MÁRCIO SOUZA
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um herói ”veado” e suicida.
Engavetei o projeto.
Anos depois, com o advento da “Lei de Incentivo”, acreditei que o
projeto poderia cativar grandes empreendedores. Refiz o projeto,
consegui aprovação e o coloquei no mercado. Nada! Nem um investidor.
Desisti de vez. (YAMAZAKI, 2011)2.
Nos agradecimentos, ao final do livro, Márcio Souza diz que
deve muito ao exaustivo levantamento sobre a vida e as invenções
de Santos-Dumont feito por Henrique Lins de Barros, por meio do
qual teve condições de elaborar o romance.Barros chegou a viajar a
Paris, custeado pelo CNPq, com a finalidade de aprofundar a
pesquisa sobre Santos-Dumont, que já desenvolvia há tempos no
Brasil. O referido pesquisador do CBPF — Centro Brasileiro de
Pesquisas Físicas — é autor, entre outros, dos livros Santos Dumont:
o homem voa! (2000), Santos-Dumont e a invenção do voo (2003), Desafio
de voar(2006). Segundo Barros,o seu trabalho em torno da vida e das
criações de Santos-Dumont foi motivado inicialmente pelo fascínio
que tem por aviões3. O autor de Santos-Dumont e a invenção do voofaz
interessantes considerações, ressaltando a importância do aeronauta
brasileiro no progresso da aviação:
Sempre gostei de aviões. Gosto de ver aviões e faço pequenos modelos
em escala. Ao se debruçar sobre a história da aviação, o nome de SantosDumont aparece de forma estranha. Ele é apagado da história que a
gente lê, mas é o nome de maior destaque no início do século, sempre
tratado com enorme respeito. Numa ocasião estava em SP e vi a réplica
do “Demoiselle20” no Ibirapuera. Resolvi fazer o modelo e comecei a
buscar informações do aparelho. Para minha surpresa, não existiam
informações. Somente em textos de época era possível achar alguma
coisa. Aí encasquetei e comecei a levantar informações sobre SantosDumont. E isso é como uma bola de neve. Comecei a receber material
e informação. Foi aí que conheci Tizuka. Já tinha uma boa quantidade
de informação e tinha descoberto Santos-Dumont, não como um herói
acima de qualquer suspeita, o Pai da aviação, mas como uma pessoa
genial e geniosa. (BARROS, 2011).
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A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O BRASILEIRO VOADOR DE
MÁRCIO SOUZA
CLÉBER LUÍS DUNGUE
Já havia uma preocupação por parte de Henrique Lins de
Barros em mostrar por meio de sua pesquisa uma imagem mais
realista do inventor, menos idealizada. O pesquisador não compactua
com a imagem mítica criada pelas biografias encomiásticas sobre
Santos-Dumont. Barros explica, na entrevista já mencionada,o seu
ponto de vista a respeito daheroificação do aviador da seguinte
forma: “de fato, um ponto que me chamava a atenção era de como
se construiu a imagem de herói e de como esta construção levou ao
desgaste do próprio herói.” Apesar da perspectiva crítica quanto a
isso, o autor de Santos-Dumont e a invenção do vôo não pensa na
possibilidade nem na eficácia da desconstrução desse herói, sua
estratégia é outra, mais relacionada com demarcar a devida dimensão
criativa e a importância histórico-científica das realizações do
aviador, até então esquecidas, apagadas ou relegadas a segundo plano
nos anais da ciência.
Por isso, faz questão de deixar claro seu descompasso com o
projeto de TizukaYamazaki e Márcio Souza. Segundo Barros
(2011),a cineasta queria fazer um filme leve, tipo comédia Vaudeville
da Belle Époque. O pesquisador começou a escrever o argumento
para a elaboração do roteiro, mas abandonou o trabalho em função
da perspectiva menos séria que a cineasta queria dar ao seu filme,
achava que seria muito difícil abordar o tema nessa ótica tendo como
protagonista Santos-Dumont.
Márcio Souza (2009, p. 301) diz nos agradecimentos de O
brasileiro voador que também tinha objeções quanto ao projeto de
TizukaYamazaki, pois “não tinha muita simpatia pelo protagonista”
(2009, p. 9). Convencido pela cineasta, que soube dirimir a aversão
do escritor, assume o desafio de usar os dados históricos como base
para recriar, com total liberdade ficcional, a figura de Santos-Dumont.
Seria um enfoque completamente diferente da perspectiva adotada
por Barros. Sobre o papel do material histórico, no processo de
construção de O brasileiro voador, o autor amazonense faz o seguinte
esclarecimento: “escrevi o romance com total liberdade ficcional, é
romance, não biografia ou ensaio histórico. Por isso, esqueça a
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A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O BRASILEIRO VOADOR DE
MÁRCIO SOUZA
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documentação e tudo mais, que só foi levantada para dar base ao
filme, especialmente na parte de reconstrução de época e veracidade
nas máquinas voadoras”(SOUZA, 2011)4. Tendo em vista essa
discussão sobre se o referido livro é romance ou biografia, talvez seja
melhor analisá-lo em função da fusão dos dois gêneros, ou seja, como
romance-biográfico, no qual a narrativaé conduzida pela paródia.
A enunciação paródica
É preciso ressaltar, quanto a um possível julgamento estético
de O brasileiro voador, que em nenhum momento Márcio Souza se
propõe a fazer “alta literatura”, mas sim o que ele mesmo chama de
“romance mais-leve-que-o-ar e novela de entretenimento, contada
com discreta inflação de sentimentos” (SOUZA, 2009, p. 05). Ainda
assim, por trás da aparente facilidade de uma estrutura narrativa
que remete amiúde à cultura de massa, emerge uma constante ironia.
Ao longo do livro, o mito construído pelos biógrafos mais
tradicionais será desconstruído pelo autor amazonense, tendo em
vista o desmascaramento da suposta objetividade que sustenta os
relatos biográficos oficiais. Já na nota introdutória, valendo-se do
recurso metalinguístico, o narrador/autor critica a configuração
oficial dada ao aeronauta brasileiro:
Ao ser apropriado pelo culto militar, Santos Dumont se transformou
numa figura insossa, símbolo de um patriotismo medíocre e ressentido,
tipicamente brasileiro, uma espécie de semideus franzino e amarelinho,
injustiçado apenas por ter nascido nesta terra de carnaval e boemia.
Enfim, uma daquelas histórias exemplares que sempre estão a nos enfiar
na cabeça, apenas para confirmar que nascemos para ganhar e não levar.
(SOUZA, 2009, p. 09).
Ao questionar a organização linear e objetiva da vida e dos
feitos deSantos-Dumont, apresentadasegundo o ponto de vista dos
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biógrafos tradicionais, o autor coloca sob suspeita as conclusões
simplistas a respeito da suposta verdade biográfica. Com isso, lança
sobre a certeza e a ordem dos fatos a dúvida e o deboche, os quais
são reiterados durante todo romance. A voz narrativa passa a
desordenar a bíos de Santos-Dumont, a explorar as ações, os vazios,
as contradições, as confusões, os detalhes de somenos importância.
Esse aspecto emerge em O brasileiro voador5 quando o narrador (o
ente ficcional que sustenta ou organiza o suposto relato biográfico)
começa por satirizar não só a imagem de Santos-Dumont, como a
própria história que tentou transformá-lo em herói. Assim,
desestabiliza o peso da verdade histórico-biográfica, apresentando
ao leitor uma figura caricaturada, que se aproxima algumas vezes da
loucura, do grotesco, do bestializado e dos personagens de contos
de fadas, como se percebe nas seguintes passagens:
Ficou o janotinha enfezado das fotografias e o tipo ambíguo das
biografias pernósticas. Um excêntrico sob a lupa da psiquiatria
lombrosiana.
[...]
Mas já podiam perceber [dois empregados de Santos-Dumont] que, se
houvesse em Paris um concurso de excentricidade, o tampinha sulamericano ganharia folgado o primeiro lugar. [...] O mordomo apeou
da charrete e aproximou-se do rapaz [o próprio Santos-Dumont] que
mais parecia um felpudo cão pequinês naquele casaco de marta.
[...]
Deutsch adorou a sagacidade daquele pequeno polegar de bigodes
encerados.
[...]
O brasileiro agia como um caramujo. [...] Sorte que Paris adora
escargot, sempre dizia Goursat.
[...]
E naquela manhã, quando observava [conde D’Eu] da janela a chegada
daquele ridículo gnomotropical, confirmara mais uma vez o quanto
eram hipócritas os brasileiros. O gnomo de fraque ostentava uma gravata
vermelha...
[...]
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A turma do Aeroclube torce o nariz pela falta de critérios desse
pernóstico liliputiano. (BV, p. 17, 49,55, 57, 64, 70, grifos nossos).
José Alonso Torres Freire (2004), no artigo “Um diálogo
explosivo”, analisa a relevância da sátira e da paródia em outra obra
de Márcio Souza (1981), A resistível ascensão do Boto Tucuxi. Segundo
o referido pesquisador, uma das principais características da sátira
é a redução ou transformação do personagem a ser satirizado em
uma caricatura. Em O brasileiro voador, esse processo se dá por
comparações e metáforas, como se percebe nos fragmentos acima
citados. Ao longo do texto, Santos-Dumont é quase sempre
transformando em figura cômica, ora atrapalhada e desajeitada, ora
ordinária ou grotesca, por exemplo, quando é comparado a
“janotinha enfezado”, a “tampinha”, a “cão pequinês”, a “gnomo”
e a “caramujo”. Como bem observa José Alonso Torres Freire (2004,
p. 199), é por meio desses “artifícios degradantes que o satirista
busca o apoio do leitor para a crítica que pretende empreender no
intuito de rebaixar a figura histórica, alvo da narrativa”.
A sátira é um dos recursos explorados ao longo do romance,
dando forma às passagens mais interessantes, tendo em vista o
projeto de desconstrução do herói da aviação. É usada para
ridicularizar, além da imagem de Santos-Dumont, instituições,
costumes, textos pré-existentes e ideais ufanistas. Junto com a ironia
(por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender),
a caricatura (que permite deformar o texto e as imagens), o burlesco
e o deboche, a sátira funciona aqui como suplemento da paródia.
Não há uma relação de complementaridade entre esses termos, pois
podem predominar na enunciação de um texto independente um
do outro, mas tambémnão seexcluem mutuamente. Por isso, seria
possível pensar que tais termos sustentam um jogo suplementar,
como se fossem elementos a mais, servindo dessa forma à
organização paródica do romance em questão. Asátira, a caricatura,
a ironia, o burlesco e o deboche são, portanto, excessos solicitados
estrategicamente pelo paródico. Por excederem um ao outro e,
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aomesmo tempo, não se fecharem semanticamente, esses
conceitosaparecem confundidos em algunsestudos, ora abordados
como sinônimos, ora apresentados em função de diferenças. Em O
brasileiro voador,percebe-se que todos eles desembocam na enunciação
paródica, enriquecendo-a e potencializando o seu efeito profanador
sobre as biografias tradicionais e sobre o sujeito biografado.
Nesse contexto, a paródiapode ser pensada, em um sentido
amplo, como um “canto paralelo”, como a deformação, por
diferentes estratégias discursivas, do texto preexistente. Essa
perspectiva fica mais clara quando a paródia é entendida a partir da
sua etimologia, tal como o fez Genette ao procurar sua raiz semântica,
ampliando-a assim como figura literária:
Primeiramente, a etimologia: ôdè, que é o canto; para, “ao longo de”,
“ao lado”; parôdein, daí parôdia, que seria (portanto?) o fato de cantar ao
lado, de cantar fora do tom, ou numa outra voz, em contracanto – em
contraponto –, ou ainda, cantar num outro tom: deformar, portanto,
ou transpor uma melodia. (GENETTE, 2010, p. 24, 25).
Voltando ao contexto satírico da obra, cabe lembrar o destaque
dado aos personagens bufões, representados principalmente pelos
dois ajudantes de oficina,Lachambre e Machuron, que auxiliam
Santos-Dumont durante a execução de projetos, quase sempre
considerados absurdos pelos seus contemporâneos. As passagens
apresentadas a seguir são exemplos do tom burlesco que Márcio
Souza dá à obra a partir dos personagens bufos:
Lachambre, como era sentimental, tremeu nas bases ao ver o jovem
brasileiro entrar na oficina com um projeto de balão. Machuron, com
seu espírito prático, pegou um lápis e um bloco de papel, e pôs-se a
fazer seus cálculos. O rapaz olhava os velhos baloneiros com uma
autoconfiança irritante.
Você está louco, gritou Machuron, quebrando o lápis. Onde já se viu
um balão com invólucro tão leve e cem metros de cubagem?
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[...]
Lachambre dava tapas na cabeça e levantava as mãos aos céus.
[...]
Machuron agora morde o bloco de papel. (BV, p. 47).
O Nº I subiu a favor do vento e foi chocar-se contra as árvores do
jardim, destroçando-se inteiramente.
Com as roupas rasgadas e vários cortes pelo corpo, o lunático sulamericano foi retirado do meio dos destroços esbravejando contra
Lachambre, Machuron e Aimé.
Idiotas, gritava o maluco. A culpa é de vocês que me obrigaram a largar
a favor do vento. Incompetentes...
Os cortes sangravam e o rosto estava deformado por uma equimose
escura. Mas o homenzinho não parava de distribuir insultos.
Foi levado ao hospital, onde um médico de maus bofes acalmou o
exaltado. (BV, p. 53).
As figuras dos bufões ajudam a compor um cenário cômico,
no qual Santos-Dumont vai sendo alterado, ao se retirar sua aura
mítica, até tornar-setambém uma figura burlesca. Ao longo do livroé
dado destaque às excentricidades do aviador. Principalmente por
querer inventar máquinas de voar, é visto pela sociedade da época
como inconsequente, e é cognominado no livro, seja pelo narrador,
seja pelo discurso direto de algum personagem, por adjetivos como
“alucinado inventor”, alguém que “padecia de destelhamento do
juízo”, “abilolado”, “jovem desmiolado”, “insano”, “o louco do
ChampsElysées”, “maluco”, “insanidade alada”. Até mesmo as
personagens Machuron e Lachambre, apresentados na narrativa
como ajudantes bufões, achavam que não só o aeronauta era
excêntrico e esquisito, mas também consideravam, indutivamente,
que todos os brasileiros também eram dados a extravagâncias e
imprudências. Numa perspectiva típica dos preconceitos sustentados
pelo senso comum, julgavam o todo pela parte:
Os dois já sabiam que todo brasileiro era meio maluco. Machuron,
porque o sócio lhe contara. Lachambre, por já ter estado no Brasil a
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serviço de um outro alucinado, o deputado Augusto Severo, que
pretendia construir um dirigível gigantesco para fazer a rota Rio-Paris,
transportando carga e passageiros. (BV, p. 51).
Essa perspectiva preconceituosa figura em outros momentos
do relato. Fazendo uso do recurso metonímico, por meio do qual
se toma a parte pelo todo, típico do olhar estrangeiro sobre os
brasileiros (segundo o qual o Brasil é país do futebol e do carnaval),
o autor/narrador apresenta de forma irônica nomes de figuras
conhecidas mundialmente, como se elas representassem todo
brasileiro, ou como se a identidade nacional fosse sustentada em
função de ídolos da massa. É o que se observa na leitura do capítulo
“Tecnologia de ponta”:
De vez em quando o Brasil se confunde com uma pessoa. Nos campos
da Suécia um negrinho mineiro se transformou no Brasil. Até mesmo
um garçom de Hanói passou a saber quem é Pelé. E sabendo de Pelé,
pensava saber do Brasil. Antes dele, uma cachopa elétrica encarnou o
Brasil. Até mesmo um lavrador do Alabama sabia quem era Carmem
Miranda. E sabendo dela, pensava que sabia do Brasil. Antes dela, um
moreno rapaz de Minas representou o Brasil. Até mesmo um escriturário
de Zanzibar sabia quem era Santos Dumont. E sabendo de Santos
Dumont, pensava que sabia do Brasil.
Neste século o Brasil, então, foi um atleta, uma cantora e um aviador.
Três magistrais inventores: dois mineiros e uma portuguesa.
O atleta fez sua fama usando chuteiras.
A cantora e o aviador usavam sapatos de plataforma. (BV, p. 249).
O narrador, como se estivesse utilizando os recursos de uma
câmera, focaliza as personalidades por meio dos recursos de zoom e
plongée, próprios da linguagem cinematográfica, mas também da
publicitária. Nesse movimento, o olhar do leitor vai afunilando-se
do geral para o específico, de cima para baixo, até chegar ao plano
detalhe no qual as botinhas de plataforma, que deixavam o aviador
alguns centímetros mais alto, ganham status de personagem da cena.
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Em uma relação de contiguidade ou em um processo de coisificação,
as figuras passam a ser representadas por calçados: Pelé, por
chuteiras, Carmem Miranda e Santos-Dumont, pelos sapatos de
plataforma. Entra em questão, nessa passagem, a influência dos mass
media na sociedade contemporânea do espetáculo e do show.
Produtos da indústria cultural, o atleta, a cantora e o aviador
são exemplos da cultura do entretenimento. Pelé consolida sua
notoriedade ao se tornar o único jogador de futebol a sagrar-se três
vezes campeão do mundo como atleta, conquistou tamanha fama
que veio a ser chamado de o esportista do século. Muitos dos seus
gols e jogadas foram filmadas e reproduzidas pela televisão e cinema,
o que contribui sobremaneira para fortalecer, no imaginário popular,
o seu status de ídolo. Já Carmem Miranda— nasceu em Portugal,
mas veio com a família morar no Rio de Janeiro antes de completar
um ano de vida — depois de consagrada no Brasil, tornou-se, entre
os anos de 1930 e 1940, personalidade muito popular nos Estados
Unidos, onde foi apelidada the Brazilian bombshell. Nesse país, atua
na Broadwaye em vários filmes hollywoodianos. No meio midiático
brasileiro, passou a ser chamada de “pequena notável”. Também o
inventor brasileiro, quer de forma carinhosa, quer pejorativa, em
função das mesmas estratégias de sedução dos massmedias, ficou
reduzido a “Petitsantôs” — “Pequeno Santos”.
Márcio Souza mostra, em uma sequência de capítulos, a força
midiática e espetacular das invenções do “Pequeno Santos”, em
paralelo com a figura carnavalesca de Carmem Miranda e com a
desenvoltura do esportista. Aqui fica claro como os títulos são
importantes fontes de significação no texto do autor amazonense —
eles funcionam como signo para uma leitura crítica. Neste caso, não
se pode deixar de percebera aparente contradição entre os títulos e o
enunciado dos três capítulos que formam uma sequência semântica:
Tecnologia de ponta II
Cada subida de Petitsantôs era um espetáculo coreográfico que encantava
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as multidões e impressionava os outros pioneiros.
Os braços eram frenéticos: como os braços de Carmem Miranda sob
a inspiração de Busby Berkeley.
O corpo anunciava a flexível malícia de Pelé.
Tecnologia de ponta III
Pelé foi contratado como relações-públicas de uma multinacional.
Carmem Miranda foi parar em Hollywood com a cabeça cheia de
bananas. Santos Dumont virou um aeroporto de vôos domésticos no
Rio de Janeiro.” (BV, p. 250).
O resultado irônico surge exatamente na oposição do título
com o conteúdo do capítulo. É certo que Carmen Miranda ajudou
a divulgar a cultura popular e as músicas brasileiras no exterior, por
meio de seu personagem com turbante de frutas na cabeça, sapatos
plataformas e roupas de baiana. De modo semelhante, Pelé também
se tornou muito conhecido no exterior e símbolo de um Brasil
vigoroso, com jinga e habilidades notórias advindas de seu modo
particular de jogar futebol. Contudo, também contribuíram para
fortalecer a máxima, diante do olhar estrangeiro, de que o “Brasil
não seria um país sério” ou avançado, focado no investimento em
“tecnologia de ponta” e nas variadas formas de conhecimento,
principalmente acadêmico. Assim, sob o olhar estrangeiro, o Brasil
só é lembrado de forma positiva em função do carnaval e do futebol.
Nesse contexto,Santos-Dumont, que seria o maior representante da
brasilidade, tendo em vista a contribuição que deu para a criação e
o desenvolvimento de uma “tecnologia de ponta”, também se torna,
por contágio metonímico, uma figura folclórica e carnavalizada.
De igual maneira, ressaltando o tom burlesco, em vários
momentos, sobretudo no início do livro, os voos de Santos-Dumont
são apresentados seguidos de bruscas quedas, por meio das quais o
narrador, refletindo a visão do meio social da época, dá relevo ao
ridículo e ao rebaixamento do herói. Rebaixar o herói é algo
característico do universo cômico. Diferentemente do gênero trágico
que, em função da purificação e da purgação, busca mostrar na queda
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a grandeza do herói, como acontece em Édipo Rei de Sófocles, por
exemplo, no cômico a queda está diretamente associada ao gracejo,
à bufonaria, ao chiste, à malícia. Em O brasileiro voador, a inversão e o
rebaixamento são reforçados ainda na comparação de SantosDumont com animais, como nos títulos dos capítulos: “O lobo
solitário”, “O caramujo em sua casa”, “O caramujo empreendedor”,
“A besta humana”, “Tirando o animal da toca”.
O rebaixamento do heroi
Além do protagonista ser submetido ao rebaixamento,
ressaltando-se seus defeitos, suas limitações, suas angústias e
frustrações, outra configuração que diminui a figura heroica é dada
quando se divide a personagem Santos-Dumont em duas: Alberto,
o homem sisudo, sério, responsável, triste, e Petitsantôs, o
espontâneo, alegre, frívolo e fútil, como demonstra a seguinte
passagem:
O que deseja Petitsantôs?
As pequenas expectativas que se disfarçam de grandes. Uma rodada no
pano verde. Acordar tarde. Exibir-se aos olhos da cidade.
E Alberto?
Ele não sabe. Teme apenas a ausência inquietante dos desafios. Renasce
a cada dia esse temor, no gosto dos pratos finos, no sabor do vinho.
Está melancólico, indiferente, magoado sem saber por quê. (BV, p. 72).
O riso, no romance, não deixa de se configurar como ato
crítico do ufanismo, da política brasileira, da sociedade conformista
e do leitor ingênuo. Além da escancarada ironia, o foco centralizado
no ridículo e na inversão dos valores das biografias encomiásticas
permite ver os problemas até então encobertos. Márcio Souza, ao
longo de sua carreira literária, faz clara opção pelo gênero satírico e
justifica da seguinte forma a sua recusa por personagens trágicos
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em suas criações: “a tragédia e o drama são tipos de arte que pedem
personagens sérios, de responsabilidade, e não encontrei nenhum
‘coronel de barranco’ de responsabilidade que servisse para uma
tragédia” (SOUZA, 1982, p. 07). Assim, para o autor, no contexto
brasileiro, o riso se configura como uma forma de crítica, ou seja,
em suas palavras,o humor “é uma arma violenta contra a alienação”
(Id.,Ibid., p. 07). Nessa perspectiva, a paródia se configura como
uma estratégia de deformação, que permite reinventar a realidade
de maneira mais consciente, no caso específico de Santos-Dumont,
percebendo os aspectos ideológicos envolvidos em toda
heroificação.
Na sequência de capítulos intitulados com nomes de fármacos
— “Xarope Bromil”, “Emulsão Scott”, “Xarope de hipophosphitos
do Dr. Churchill”, “Xarope Larose”, “O sabão mágico da Drogaria
Pizzarro” e “Cafiaspirina” —, o sarcasmo funciona como antídoto
contra a hipocrisia e a seriedade da história. Nesses capítulos, o autor
faz uma crítica, por meio da ironia, aos discursos empolados da
sociedade burguesa e dos políticos brasileiros. O discurso hipócrita
dos “donos do poder” da nascente república brasileira emerge
constantemente na narrativa como um véu que encobre os problemas
da sociedade. É o que se verifica, por exemplo,nos capítulos
“Biotônico Fontoura” e “Vocação agrária”:
Petitsantôs agora é Santos-Dumont, dileto filho da terra verdejante, o
homem que voa mas chega por mar. Foi para ele que embrulharam
para presente o Pão de Açúcar, e ali fizeram pender uma faixa de boasvindas.
E de outra coisa não se fala no Café do Rio. O dândi logo desfilará em
carro aberto, “à laRenaissance”, como é do gosto de madame Rui
Barbosa. Entre as barbas e bigodes, as peles escuras misturam-se. Pelo
menos hoje a rua do Ouvidor democratizou-se. (BV, p. 179).
... e esta vai ser a última oportunidade para que o senhor veja o nosso
Rio de Janeiro como uma infecta vila colonial, de casario miserável,
surtos de cólera e febre amarela. Não podemos continuar assim, com
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os navios estrangeiros recusando aportar aqui, a cidade ganhando fama
de empesteada... Positivamente o Rio de Janeiro precisa se transformar
numa cidade moderna, capital de uma república progressista.
[...] Sou político por vocação, mas aqui neste país a política não é uma
dama casta, é uma cortesã. Uma cortesã!
[...]
Não é a Bela Otero, não, senhor Santos Dumont! É a triste política
desta terra de mulatos. Uma rameira. (BV, p. 185).
Essa aparência enganosa da política, da ordem e do bem-estar
é posta diante do leitor de maneira irônica, exigindo deste um
posicionamento crítico. O autor-narrador de O brasileiro voador age
como um iconoclasta, que dessacraliza o herói, mas também as
instituições e a historiografia tradicional. No referido livro, a sátira,
a caricatura, a ironia, o burlesco e o deboche são recursos que
potencializam tal objetivo. É por meio deles que o escritor
amazonense pode desconstruir e humanizar o herói das biografias
oficiais. TizukaYamazaki, em entrevista já citada, confirma essa
percepção quanto à função dos recursos paródico-satíricos no filme
por ela idealizado e, de maneira mais efetiva, no romance que foi
publicado por Márcio Souza:
O viés satírico é seu grande trunfo, ainda mais para um herói “chapa
branca”. Sempre quis um Santos-Dumont jovem, ousado, aventureiro,
muito diferente do sujeito velho e carrancudo com um chapéu enfiado
na cabeça, que conhecemos pela história oficial e pelas imagens oferecidas
pela imprensa. (YAMAZAKI, 2011).
Portanto, a sátira que faz rir, para a diretora de cinema, é
também potencialmente aquela que questiona verdades canônicas,
que permite tanto levantar o véu que encobre as contradições e
desventuras do patrono da aviação brasileira, como também do
“convencionalismo pernicioso” da história oficial — pernicioso
porque, segundo Mikhail Bakhtin (1993, p. 279), tal
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convencionalismo é frequentemente representado do ponto de vista
de alguém que não participa dele, que está de fora e por isso mesmo
não o compreende. Uma das medidas tomadas por Márcio Souza
para libertar Santos-Dumont do estigma de herói “chapa branca” é
compará-lo, amiúde, a personagens burlescas, como se pode
perceber pelo uso estratégico de alguns títulos de capítulos, tais
como: “Tartarin de Tarascon”, “Aprendiz de feiticeiro”, “Comédia
de Georges Méliès” ou “Max Linder detetive” — esse último se
desdobra em mais dois, mudando-se apenas o algarismo que
demarca a sequência.
No romance de Alphonse Daudet (1872), Tartarin de Tarascon,
o personagem que dá título à obra, é um herói picaresco especialista
em caçadas. A obra de Daudet é declaradamente inspirada no livro
Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Mitômano, hiperbólico e
glutão, entre outras coisas, Tartarin funde características tanto de
Dom Quixote como de Sancho Pança e vive buscando na ficção as
aventuras e emoções que não encontra na realidade. Aprendiz de
feiticeiro, ou Der Zauberlehrling em alemão, é o título de um poema
homônimo de Goethe (1797). Uma narrativa breve, composta a
partir de uma lenda popular, na qual persistia um certo aspecto
moralizante. No texto de Goethe, um aprendiz, na ausência de seu
mestre, o feiticeiro, atrapalha-se na tentativa de encantar um esfregão
e assim fazer a limpeza,da qual o mestre tinha-lhe encarregado. O
texto só ganhou o tom humorístico quando foi transposto para o
poema sinfônico de Paul Dukas em 1897. Em 1940, foi adaptado
pela Disney para o cinema como longa-metragem de animação, tendo
como título unicamente a palavra Fantasia. No filme, Mickey Mouse
interpreta o aprendiz atrapalhado e bufão, tornando a história
mundialmente conhecida por seu aspecto lúdico e humorístico.
Já Georges Méliès foi ilusionista e é considerado pioneiro na
criação de efeitos especiais para o cinema. Suas fantasiosas e criativas
elaborações imagéticas, resultado das estratégias de corte e
montagem da película, além da trucagem da ação que ele deu o
nome de stop-action, provocam encantamento e trazem a marca do
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humor. Criou ainda várias outras técnicas cinematográficas, tais como
jogo de perspectiva (que permite explorar a ilusão de ótica),
múltiplas exposições ou filmagens em alta e baixa velocidade, que
davam a seus filmes sempre um efeito cômico. Alguns desses
recursos aparecem com frequência na composição de O brasileiro
voador. Além disso, como bem percebe Lilian Victorino Félix de
Lima (2009, p.15), em Dilemas do pós-modernismo na cultura de massa,
alguns dos trabalhos do ilusionista francês, como A lua a um metro
(1898), Viagem à lua (1902), A estátua animada (1903), Vinte mil léguas
submarinas (1907), A conquista do pólo (1912), são filmes inspirados na
literatura do visionário Júlio Verne e seus temas de exploração
espacial e terrestre. Também as máquinas voadoras de SantosDumont, segundo seus biógrafos, são inspiradas nos livros do
escritor francês.
Outra figura bastante explorada no livro de Márcio Souza é a
de “Max Linder”. Tal personagem, alter-ego cômico do ator Gabriel
Leuvielle (que inspirou fortemente o trabalho cinematográfico de
Charles Chaplin), é uma personagem burlesca, urbana, que usava
ternos elegantes e chapéu. Além da semelhança imagética que pode
ser estabelecida entre Max Linder e o Santos-Dumont apresentado
pelo autor amazonense, há outro elemento de enunciação que
aproxima as duas personagens. Como bem lembra Odair José
Moreira da Silva (2004), em A manifestação de Cronos em 35 mm, Max
Linder, assim como Charles Chaplin, Mack Sennett, Buster Keaton,
entre outros, são personagens que usaram, desde os primórdios do
cinema, o recurso do andamento acelerado das cenas, o que dá ainda
mais comicidade à ação do ator. Dessa forma, certas situações
triviais tornam-se engraçadas ou se transformam em burlescas dentro
da narrativa em função do ritmo acelerado dado à imagem, assim
como o faz o narrador-autor de O brasileiro voador, em vários
momentos, ao representar Santos-Dumont com a mesma dinâmica.
Ademais, Márcio Souza deixa latente, na analogia estabelecida entre
os dois homens, o fato de o ator e o aviador terem, ainda que por
diferentes motivações, cometido suicídio.
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A percepção do jogo paródico
“Chapin fazia uma imitação perfeita do presidente da França.
Quando ele começava, parodiando a solenidade de entrega da Legião
de Honra a Petitsantôs, todos paravam para rir da pantomima” (BV, p.
199). O excerto citado, se entendido como metatexto, desvela o sentido
de paródia adotado por Márcio Souza na composição de O brasileiro
voador, qual seja, a deformação cômico-satírica das biografias oficiais de
Santos-Dumont e do discurso histórico e verborrágico. Considerando
que o título do capítulo é “Honrarias e desafios”, talvez o desafio do
escritor fosse contar uma história livre da tradição encomiástica.
Na deformação proposta por Márcio Souza, a semântica da
palavra glória, uma das tópicas organizadoras das biografias
tradicionais sobre Santos-Dumont, é invertida por meio da ironia e
profanada por meio do deboche. Para tanto, busca a cumplicidade
do leitor, quer por meio do riso, quer pela inversão irônica do
contexto até então grandiloquente, o texto leva-o a ter uma postura
crítica em relação à história oficial, ao herói e às glórias nacionais.
Tal como pode ser encontrado no capítulo que encerra o livro, o
gesto supersticioso de bater na madeira para afastar o mau agouro
é, paradoxalmente, o índice da sublevação do leitor diante da imagem
grandiosa e mítica que lhe foi imposta como espelho:
Glória nacional
Sabe o que acontece quando você diz o nome de Santos Dumont a
bordo de um desses aviões de milhões de dólares que circulam pelo
Brasil?
A tripulação em peso isola batendo na madeira.
Santos Dumont.
Toc-toc-toc. (BV, p. 299).
A ironia, a caricatura, o burlesco e o deboche, nesse contexto,
são as estratégias eficazes para instigar o posicionamento crítico do
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leitor diante do texto. Mesmonos momentos em que explora a
“inflação de sentimentos”, típica dos folhetins românticos brasileiros,
o caráter paródico da obra acaba por transformá-la, no arremate
do texto, em algo contrário ao quese dava a entender em princípio.
Esses elementos que moldam o enunciado juntam-se à paródia de
tal modo que se possa profanar o texto-objeto original e assim fazer
uma retomada crítica do passado. Nesse sentido, a paródia passa a
ter uma função reflexiva, pois dirige o olhar do leitor para as
preocupações extratextuais. Antes, contudo, é preciso que o leitor
reconheça o contexto paródico como tal.A professora da
Universidade de Toronto, Linda Hutcheon (1989), em seu livro Uma
teoria da paródia, faz a seguinte observação:
Por outras palavras, além dos códigos artísticos vulgares, os leitores
devem também reconhecer que o que estão a ler é uma paródia, até que
ponto o é e de que tipo. Devem também, evidentemente, conhecer o
texto ou as convenções que estão a ser parodiadas, para que a História
seja lida como outra coisa que não qualquer peça de literatura — isto é,
qualquer peça não paródica. (HUTCHEON, 1989, p. 118).
A partir da percepção do jogo paródico no texto, a acuidade
do sujeito é aprimorada — o sentido da obra é ampliado a partir de
uma leiturapor meio da qualse perceba a transformação do código
original, que se abre assim para a construção de significados novos.
Isso tudo exigiria um leitor atento que pudesse apreender ao menos
parte das relações paródicas, das ironias e das inversões presentes
no texto. Em uma situação ideal, o leitor reconheceria os textos que
serviram de base, perceberia o diálogo entre eles, e a leitura se
transformaria em um ato de múltipla decodificação. Tal observação
encontra acolhida na proposição bakhtiniana citada por Beth Brait:
Não há nem primeira palavra nem derradeira palavra. Os contextos do
diálogo não têm limite. Estendem-se ao mais remoto passado e ao
mais distante futuro. Até significados trazidos por diálogos provenientes
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do mais longínquo passado jamais hão de ser apreendidos de uma vez
por todas, pois eles serão sempre renovados em diálogo ulterior. Em
qualquer momento presente do diálogo há grandes massas de significados
esquecidos, mas estes serão de novo reinvocados em um dado momento
no curso posterior do diálogo quando ele há de receber nova vida. Pois
nada é absolutamente morto: todo significado terá algum dia o seu
festiva de regresso ao lar. (BAKTHIN, apud BRAIT, 1998, p. 173).
Em O brasileiro voador, a partir dessa perspectiva dialógica,
caberia a esseleitorideal identificar e estabelecer relações associativas
entre os títulos (no referido romance, eles funcionam como índices
que remetem sempre a outros signos) e o texto, conectar os
fragmentos em função da sua compreensão da narrativa;
concomitantemente, caberia também buscar correlações externas
ao texto, seguir as pistas, pesquisar as fontes, para assim perceber as
várias possibilidades semânticas do relato. Entretanto, nada obriga
o indivíduo, no momento da leitura, a praticar tal exercício
intelectual, a fazer cruzamento de signos, aparentemente
incompatíveis muitas vezes, ou a recorrer a complicadas elaborações
da teoria literária. Não se nega a possibilidade de uma leitura que se
mantenha puramente nos domínios das sensações prazerosas. Mas
esse prazer se tornaria ainda mais intenso, e com alguma relevância
na formação intelectual desse sujeito, ao se fazer uma leitura mais
profunda da narrativa. Nesse sentido, ter-se-ia a oportunidade de
perseguir, como um detetive, os dados intratextuais e extratextuais
que permitiriam ampliar a compreensão do que é lido.No caso de
O brasileiro voador, principalmente, deveria buscar as inter-relações
potenciais a partir dos títulos dos capítulos.
Para evitar o proselitismo ou a linguagem empolada, que
afastaria o leitor, nesse romance paródico-biográfico, como em boa
parte de sua obra, Márcio Souza procura soluções simples, por
exemplo, ao usar títulos que se referem a textos bastante conhecidos,
tais como os “O gato de botas”, “Chapeuzinho vermelho”, “Uma
pulga atrás da orelha”, “A maçã de Newton”, “Os santos do
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calendário”, “Com que roupa”. Tais textos estabelecem relações
com signos já bastante conhecidos. No entanto, aparecem
intercalados outros signos menos conhecidos que convidam o sujeito
a perseguir e decifrar pistas. Como o próprio escritor ressalta, em
entrevista feita para a edição número dezenove de Os Cadernos de
Literatura Brasileira (2005, p. 38), do Instituto Moreira Salles, o que
reivindica é o direito de ser lido. O autor amazonense chega à
seguinte constatação: “Eu sou um escritor dos leitores, insisto. Eu
gosto dos leitores. Espero que os leitores leiam os meus livros. Isso
não quer dizer que eu vá sucumbir e preparar uma literatura
pasteurizada”. Portanto, não se deve esperar apenas facilidades na
leitura de O brasileiro voador, pois o narrador-autor vai constantemente
seduzir e trair o leitor.
Ao se fazer uma leitura atenta, rastreando os títulos de O
brasileiro voador, encontra-se várias referências eruditas, entre elas:
“Minha formação” (título do livro de Joaquim Nabuco); “A máquina
celibatária” (máquinas inventadas Raymond Roussel em Impressions
d’Afrique; também pode ser associada à obra de Duchamp, “La
Mariéemise a nu par sescélibataires”); “Os sertões” (título do livro
de Euclides da Cunha); “Sturm unddrang” (movimento literário que
predomina na primeira fase do Romantismo alemão e pode ser
traduzido por “tempestade e ímpeto”); “Teoria das classes ociosas”
(título do livro de ThorsteinVeblen); “A besta Humana” (título do
livro de Émile Zola) Também há uma série de referências ao
Movimento Modernista brasileiro, em títulos como: “Poesia PauBrasil” (que remete ao “Manifesto Pau-Brasil” de Oswald de
Andrade); “Paulicéia desvairada” (livro de poesias de Mário de
Andrade, publicado em 1922, o qual é marcado pela sátira social);
“Rudepoema” (composição de Heitor Villa Lobo para piano); “No
meio do caminho tinha uma pedra” (verso do poema “No meio do
caminho” de Carlos Drummond de Andrade). Essas alusões atuam
como índices que impulsionam o leitor a buscar informações
extratextuais, paraassim entender melhor a relação dos títulos com
o desenvolvimento da narrativa.
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Por meio da intertextualidade paródica, é possível reconhecer
ainda determinadas marcas da influência modernista na obra de
Márcio Souza, sobretudo dos dois romances de Oswald de Andrade,
Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte-Grande
(1933). A relação com a obra oswaldiana é ampliada no capítulo
“Feijoada de inverno”, no qual o leitor toma conhecimento de uma
espécie de glutonaria, relacionada com o preparo e comilança de
uma feijoada na casa da “Redentora” — denominação dada pelos
brasileiros à Princesa Isabel.Nessa passagem, percebem-se ecos do
ritual que inspirou o instigante “Manifesto Antropofágico” de
Oswald de Andrade. Na comedela, toda ela preparada para se
degustar alimentos típicos da culinária popular brasileira, fica bem
marcado pelo narrador o descompasso do marido da Princesa, de
origem francesa. Segundo tal versão, o Conde d’Eu tinha certa
aversão aos hábitos e às iguarias brasileiras, consideradas por ele
bárbaras e primitivas. O almoço é descrito como um conjunto de
atos e práticas próprias de uma cerimônia comunitária, pouco
lembra um evento promovido por aristocratas. No dia e na hora
escolhidos, cada convidado contribui com algum ingrediente para
o rito “bárbaro”. A Princesa “toca o sino” para dar início ao
banquete tão pouco nobre, reforçando o aspecto de mistura e de
embate entre elementos diferentes. Inverte-se a ordem do
empréstimo cultural em pleno solo francês. Dona Isabel mistura a
refeição, que está associada a suas raízes brasileiras, aos hábitos
aristocráticos europeus:
Dona Isabel tocou o sininho de prata e os criados entraram com a
esperada iguaria. Era um sábado, dia de feijoada, ritual brasileiro que
raras vezes a princesa podia cumprir, fosse pela raridade dos ingredientes
autênticos ou pela sempre veemente oposição do senhor conde, homem
de estômago frágil que se revoltava frente à barbárie de semelhante
acepipe.
A princesa, no entanto, fartava-se sempre que podia. Uma feijoada
completa era como regressar ao mormaço de uma tarde carioca.
Graças à gentileza do marquês de Sapucaí, o feijão preto era da última
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safra, colhida em sua propriedade no norte do Rio. Uma recente visita
da viscondessa de Garanhus fornecera as orelhinhas e os rabinhos de
porco que o convidado olhava com gula. O paio era da fazenda do
marquês de Abrantes, e a carne-seca, da fazenda do barão da Torre. A
couve mineira, conservada em gelo, era um presente do arcebispo de
Mariana.
A sobremesa estava garantida, e sempre provocava a retirada intempestiva
do conde: queijo com goiabada (...). (BV, p. 65).
Essa é uma cena simbólica que guarda em si as linhas de força
que sustentam o que parece ser o principal objetivo de O brasileiro
voador, qual seja, a confluência da desconstrução da figura do herói
com a da narrativa. Santos-Dumont contribui para essa cerimônia
carnavalizada, chamada pelo autor amazonense de “Feijoada de
inverno”, trazendo queijo de Minas para ser deglutido como parte
da sobremesa. Qual seria o papel do aviador nesse locus
carnavalizado? Ao que parece, ele representa o herói decaído que se
junta aos destronados: a princesa Isabel, exilada na França após a
Proclamação da República do Brasil, e o conde D’Eu, duplamente
desterrado — primeiro, em 1848, logo depois da vitória da segunda
república francesa, obrigado a exilar-se com sua família em Londres
e, posteriormente, com sua esposa Dona Isabel, banidos do Brasil
após a Proclamação da República.
Em O brasileiro voador, o mito do “pai da aviação”, orgulho
nacional, transforma-se em herói destronado, assim como os
monarcas exilados. Essa inversão se dá progressivamente, com o
acúmulo de elementos da enunciação, os quais vão rebaixando a
dimensão heroica do aviador. Nesse contexto, a carnavalização,
como processo de inversão paródica, revela o lado oculto do que é,
em termos bakhtinianos, a “mentira oficial” do brasileiro. Assim,
por meio do que não parece sério, Márcio Souza procura denunciar
uma certa manipulação que fica embutida em qualquer representação
heroica. A ideologia que sustenta essa manipulação é desvelada pelo
autor. Ao explorar as dissonâncias e a ambiguidade da figura heroica,
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por meio da paródia, acaba por abrir o discurso oficial para possíveis
e necessárias interpelações.
Dessa forma, o romance-paródicoafasta-se do discurso
autoritário e monológicocaracterístico das biografias oficiais, nas
quais o espaço textual, que deveria se abrir em função da pluralidade
dos erros e acertos do homem, fecha-se em torno de uma perspectiva
teleológica. O herói que se configura a partir desse olhar é
unidimensional e infalível. Caminha junto, portanto, com o próprio
formato do discurso que o enuncia, baseado em uma verdade
monológica, absoluta, que se pretende incontestável. Abafam-se
assim as vozes, perde-se a ambiguidade das múltiplas posições de
enunciação por meio das quais o herói poderia ser visto ou se faria
ouvir.
O autor de O brasileiro voador, ao contrário dessa linha de
enunciação, utiliza-se de uma constelação de citações e referências
bibliográficas, abrindo assim variadas perspectivas semânticas para
a decodificação da obra. Tal conjunto se configura como um catálogo
de textos lidos pelo autor, que na obra se multiplica em combinações
variadas e arranjos insuspeitos. A cada leitura, o conjunto de
referência vai sendo ampliado, o que faz com que os leitores tenham
a impressão de que a lista de citações do autoré sempre incompleta,
visto que também há referências bibliográficas que ficam implícitas
e outras tantas que nem mesmo o escritor percebe que está utilizando.
Até onde ir, na recensão das leituras feitas pelo autor de um texto, é
o que questiona Antoine Compagnon na seguinte passagem:
Deve-se acrescentar os jornais, os romances policiais? Como distinguir
aquilo que foi útil, aquilo que surgiu ao acaso? E por que não os filmes?
E as conversas? E as velhas leituras, as da infância, que me fazem ainda
sonhar? Uma bibliografia verídica, sincera e exaustiva é tão impossível
quanto uma confissão verdadeira. Há na bibliografia um problema
patente que leva o autor a precauções quando a qualifica de “sumária”,
como se se desculpasse da falta de alguma coisa. Seria necessário
interrompê-la, como à confissão de seus pecados, pela invocação de
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uma circunstância atenuante para o esquecimento, e esquece-se aquilo
que se quer. É por isso que o mais simples, para resolver o problema, e
oferecer, mesmo assim, um repertório ao leitor potencial, é seduzi-lo
com uma “lista de obras citadas”; e é nisso que consiste, muitas vezes, a
bibliografia, declara ou não como tal. (COPAGNON, 1996, p. 76).
Em O brasileiro voador, as marcas de citações heterogêneas
ajudam a compor uma estrutura narrativa aberta. Essa multiplicidade
textual substitui a concepção de unicidade, colocando em seu lugar
o intercâmbio, atestando a impossibilidade de pensar em fronteiras
que demarquem gêneros puros. Para refazer a trajetória de SantosDumont, portanto, recuperando a polêmica em torno de seu
processo de heroificação, Márcio Souza não reconstrói o mito, mas
o homem com suas contradições, utilizando uma rede de textos que
dialogam entre si. Nesse embate de muitas vozes, que se completam,
respondendo ou não umas às outras, problematizando a figura do
herói, “afirma-se o primado do intertextual sobre o textual”, ou
seja, como observa a ensaísta Diana de Luz Passos Barros (2003,
p.4) “a intertextualidade não é mais uma dimensão derivada, mas,
ao contrário, a dimensão primeira de que o texto deriva”. Desse
modo, se o herói perde a sua forma, se a sua desfiguração o deixa
desconfortável no panteão nacional, permite, como compensação,
revitalizar o gênero biográfico. Perde o herói, ganha o discurso em
permanente construção e que, por isso mesmo, torna-se polissêmico,
carregado de contradições e ambiguidades.
Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch.Questões de literatura e de estética.
São Paulo: HUCITEC, 1993.
BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo,
polifonia, intertextualidade. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2003.
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BRAIT, B. “Mikhail Bakhtin: autor e personagem.”Revista USP, v. 39, n. 1,
p. 158-173, 1998.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho de citação. Belo Horizonte, UFMG,
1996.
FREIRE, José Alonso Torres. “Um diálogo explosivo: sátira, paródia e
história”. Itinerário – Revista brasileira de literatura. Araraquara, v 22, 2004.
Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2790.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2010.
HUTCHEON, Linda. UmaTeoria da Paródia. São Paulo:Edições 70, 1989.
LIMA, Lilian Victorino Félix de. Dilemas do pós-modernismo na cultura
de massa. 2009. 233f.. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Universidade Estadual Paulista. Marília.
SILVA, Odair José Moreira. A manifestação de Cronos em 35mm: o tempo
no cinema. 2004.231f.. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo. São Paulo.
SOUZA, Márcio. O brasileiro voador: um romance mais-leve-que-o-ar.
ed. 2. Rio de Janeiro: Record, 2009.
______. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982.
______. “Entrevista”. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n.19,
Instituto Moreira Salles. 2005.
Notas
2
Entrevista anexa à dissertação de mestrado O desafio biográfico ou como se escrever uma vida: a
(des)construção da figura heroica de Santos-Dumont a partir de O brasileiro voador. Disponível
em: <http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=13741>. Acesso
em 10/01/2014.
3
Entrevista anexa à dissertação de mestrado O desafio biográfico ou como se escrever uma vida: a
(des)construção da figura heroica de Santos-Dumont a partir de O brasileiro voador. Disponível
em: <http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=13741>. Acesso
em 10/01/2014.
4
Entrevista anexa à dissertação de mestrado O desafio biográfico ou como se escrever uma vida: a
(des)construção da figura heroica de Santos-Dumont a partir de O brasileiro voador. Disponível
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em: <http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=13741>. Acesso
em 10/01/2014.
5
SOUZA, Márcio. O brasileiro voador: um romance mais-leve-que-o-ar. ed. 2. Rio de Janeiro:
Record, 2009. Todas as citações são dessa edição. Deste ponto em diante, será adotada a sigla
BV nos excertos da obra, seguida apenas do número de página.
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IRACEMA, DE JOSÉ DE
ALENCAR: UMA FICÇÃO
TOPONÍMICA
IRACEMA, BY JOSÉ DE
ALENCAR: A TOPONIMIC
FICTION
Suene Honorato
(UFT)1
RESUMO: O romance Iracema, de José de Alencar, publicado
em 1865, apresenta como narrador um personagem que se diz
compilador da tradição oral. Ao escrever o romance, sua
proposta é recontar a lenda ouvida na infância, a qual explica o
nome do lugar onde nasceu, o estado do Ceará. A etimologia
de tal nome permitiu que o escritor somasse a fatos históricos
referentes à fundação do primeiro povoado cearense a narrativa
fictícia sobre Iracema. Ao criar uma lenda que explica um
elemento da realidade, o narrador procura ressignificar fatos
1
Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas e professora
de Língua Portuguesa do curso de Educação do Campo da Universidade Federal do Tocantins,
CEP 77.900-000, Campus de Tocantinópolis-TO, [email protected]
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IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR: UMA FICÇÃO TOPONÍMICA
S UENE H ONORATO
históricos, valorizando-os enquanto constituintes da identidade
nacional. A leitura do romance, cotejada com textos críticos do
próprio Alencar, mostrará como a máscara assumida por esse
personagem-narrador parece condizente com o projeto
alencariano de consolidação da língua e literatura no Brasil, que
pretendia a criação de novas formas de expressão, de novos
tipos literários, em conformidade com a originalidade da natureza
brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: José de Alencar; Iracema; Toponímia.
ABSTRACT: The novel Iracema, by José de Alencar, originaly
published in 1865, has a narrator who presents himself as a compiler of the oral tradition. In writing the novel, his proposal is to
retell the tale heard in childhood, which explains the name of the
his birthplace, the state of Ceará. The etymology of the name
allowed the writer add historical facts concerning the founding
of the first settlement of Ceará to the fictional narrative about
Iracema. Creating a legend that explains an element of reality,
the narrator seeks to reframe historical facts, regarding them as
constituents of national identity. The reading of the novel, compared to Alencar’s own critical texts, show how the mask assumed by that character narrator seems consistent with his project
of consolidation of language and literature in Brazil, which aimed
at creating new forms of expression, new literary types, in accordance with the originality of Brazilian nature.
KEYWORDS: José de Alencar; Iracema; Toponym.
Introdução
Com Iracema, José da Alencar logrou inserir no universo
linguístico brasileiro um dos epítetos mais conhecidos de nossa
literatura. Cavalcanti Proença noticia a popularidade do livro,
principalmente no Ceará, onde teria ocorrido, segundo Raquel de
Queirós, o seguinte episódio em um programa de rádio:
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IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR: UMA FICÇÃO TOPONÍMICA
S UENE H ONORATO
[...] houve a pergunta: “De quem eram os olhos de ressaca?” Passaramse os minutos, timidamente ouvintes ensaiaram respostas, o prazo
extinguiu-se e ninguém acertou. O locutor fez outra pergunta – Quem
era a virgem dos lábios de mel? – Cito: “Quase o auditório veio abaixo
no brado unânime da assistência: Iracema!” (PROENÇA, 1959, p. 112).
Proença registra ser conhecido não só o epíteto atribuído a
Iracema, como outras passagens do romance, principalmente
referentes aos lugares em que se passa a ação, e ainda algumas que
terminaram por ser assimiladas à linguagem cotidiana, caso de “mais
rápida que a ema selvagem” (ALENCAR, 1958, p. 238).
A penetração popular alcançada pelo livro é certamente um
desdobramento do projeto literário alencariano. Em resposta às
críticas dirigidas ao romance por Pinheiro Chagas quanto à “mania
de tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português” (apud
ALENCAR, 1958, p. 313), Alencar escreveu um pós-escrito2 à
segunda edição de Iracema defendendo que a consolidação de uma
língua identitária do Brasil devia se fazer por duas forças
complementares: a “revolução irresistível e fatal” (ALENCAR, 1958,
p. 314) que se opera na fala do povo e a ação dos escritores sobre
esta, que “talham e pulem o grosseiro dialeto do vulgo”
(ALENCAR, 1958, p. 313). A linguagem de Iracema, ao ser assimilada
na oralidade pelos falantes brasileiros, atesta o intercâmbio entre
essas duas forças que a ficção alencariana logrou realizar.
Mais significativa é a penetração popular do romance se
considerarmos que o argumento ficcional de Iracema está orientado
para a criação da lenda que justifica o nome “Ceará”. Na carta ao
dr. Jaguaribe, prólogo do romance, Alencar (1958, p. 233-234)
afirma que “o livro é cearense. Foi imaginado aí [...]. Escrevi-o para
ser lido lá [...]” e que se sentirá satisfeito se “for acolhido pelo bom
cearense”. Algumas páginas à frente, o narrador anuncia o tema de
seu “relato”: “uma história que me contaram nas lindas várzeas onde
nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando
os campos, e a brisa rugitava nos palmares” (ALENCAR, 1958, p.
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238). Como afirmou Marisa Lajolo (2009, p. 91), em “José de
Alencar: um criador de autores e leitores”, nas duas páginas que
compõem o prólogo, Alencar se utiliza das “artimanhas que vêm
funcionando há mais de um século e que entram em ação cada vez
que um novo leitor abre este livrinho ...”. Isso porque, sob a máscara
do dr. Jaguaribe – parente de Alencar – desenha-se a imagem do
leitor ocidental característico do século XIX, que tem na leitura de
uma boa história seu momento de descanso; ao passo que o narrador,
por meio dessa carta, se coloca como aquele que escreve o que lhe
contaram, procedimento que apaga a individualidade do leitor,
transformado em público.
Como se sabe, Iracema é uma índia filha da nação tabajara,
habitante do interior, que se apaixona pelo português Martim, aliado
da tribo inimiga, os pitiguaras, habitantes do litoral. A rivalidade entre
as tribos impede que Iracema viva feliz ao lado de Martim em campo
inimigo, e por isso decidem se estabelecer em outra localidade. A
saudade da pátria lusitana, na nova vida, aflige Martim e o distancia
de Iracema. Desolada diante da postura do amado, tão logo nasce o
primeiro fruto de seu amor, Iracema morre sob o canto da jandaia,
sua amiga inseparável. Assim se conclui o penúltimo capítulo:
O camucim que recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas
odoríferas, foi enterrado ao pé do coqueiro, à borda do rio. Martim
quebrou um ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de
sua esposa. A jandaia pousada no olho da palmeira repetia tristemente:
– Iracema!
Desde então os guerreiros pitiguaras que passavam perto da cabana e
ouviam ressoar a voz plangente da ave amiga, afastavam-se com a alma
cheia de tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia. E foi assim que um
dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeja o
rio (ALENCAR, 1958, p. 303 – grifo meu).
O capítulo final traz os desdobramentos do trágico romance
entre Iracema e Martim que reafirmam o sentido da lenda. Martim
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parte com o filho, “o primeiro cearense” (ALENCAR, 1958, p. 303),
e volta alguns anos depois acompanhado de um sacerdote, para
fundar ali a primeira comunidade cristã. Ao final, a necessidade de
se relembrar, por meio do registro da escrita, a história de Iracema
se explica: “A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não
repetia o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra”
(ALENCAR, 1958, p. 304). Daí a importância do narrador que
decide conferir à narrativa oral o registro da escrita.
A primeira nota do romance diz que “Ceará significa na língua
indígena – canto de jandaia. [...] é nome composto de cemo – cantar
forte, clamar, e ára – pequena arara ou periquito”, etimologia que
Alencar (1958, p. 235) afirma como verdadeira por ser conforme
às tradições e às regras da língua tupi. A narrativa origina-se, pois,
do pressuposto etimológico, cuja refutação impingiria ao romance
a pecha de inverossímil na correlação com os elementos externos
que o fundamentam: sendo equívoco tal pressuposto, o canto da
jandaia que celebra a memória de Iracema não poderia dar origem
ao nome do lugar em que foi enterrada. Por isso, Alencar preocupouse não só em indicar a etimologia em nota, como em responder
posteriormente à publicação do romance ao questionamento de suas
fontes no texto “O nome Ceará”3: “A origem e significação da palavra
Ceará são bem conhecidas e deviam estar fora de contestação”
(ALENCAR, 1960, p. 1028). Alencar defende o filólogo Aires do
Casal, em cujo estudo se fundamenta, aludindo ao prestígio de que
o pesquisador gozava no meio científico, e detalha o procedimento
de dedução dos radicais e composição do vocábulo por meio do
“sistema de encapsulação” (ALENCAR, 1960, p. 1029) observado
na língua tupi, sem omitir e afastar as possíveis contestações. Ressalta
ainda a inequívoca presença das araras no Ceará, tanto pelas notícias
dos cronistas e pela observação contemporânea a sua época, quanto
pelos diversos nomes de lugares que fazem alguma referência ao
pássaro.
Interessa menos averiguar os erros e acertos na defesa de
Alencar, do que a postura que o escritor assume neste e em outros
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textos em relação ao comprometimento com a “verdade histórica”
e com as tradições de seu país, que se alia à sua preocupação mais
geral com a formação do caráter identitário da literatura brasileira,
num momento que ele chama de “período especial e ambíguo da
formação de uma nacionalidade” (ALENCAR, 1959, p. 699).
Indianismo como linha de força do nacionalismo literário
Mas qual seria a ambiguidade apontada pelo próprio Alencar
no que se refere à formação da identidade nacional? À primeira
vista, a vigência do indianismo como tema literário que visava o
fortalecimento do caráter identitário encerra uma conhecida
contradição: ao pretender conferir à literatura um caráter
nacionalista, os escritores românticos se utilizaram de modelos
europeus para vestir o “selvagem”, eleito como símbolo nacional.
Na opinião de Alfredo Bosi (1992, p. 179), em “Um mito
sacrificial: o indianismo de Alencar”, esse aspecto teria um caráter
“pesadamente ideológico”, contribuindo para uma leitura
conciliatória da relação colonizador/colonizado. Avaliando as
representações do passado colonial brasileiro como uma “dialética
de oposição”, em que de um lado estava a afirmação pelos brasileiros
da sua nacionalidade e, de outro, a resistência dos portugueses em
perder a exploração da colônia, Bosi considera que o índio devesse
ter ocupado no imaginário pós-colonial o lugar de rebelde. A ficção
alencariana é fortemente contrária à expectativa do crítico, pois
considera que nela o índio e o português estão em íntima comunhão.
Mais do que isso, o índio se sacrifica pelo colonizador, a exemplo
de Peri, em O Guarani, e Iracema, que se anulam em função do amor
pelo branco. Para Bosi, Gonçalves Dias teria sido mais bem sucedido
nesse sentido, pois vê em sua poesia indianista o anúncio da dimensão
de tragédia que o contato com o colonizador representou, enquanto
que em Alencar dominaria a nota de atenuação e sublimação do
conflito.
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É preciso, no entanto, lembrar que o indianismo brasileiro, como
linha de força do nacionalismo literário, tem suas origens no momento
em que o Brasil proclamava-se independente de Portugal. Esse marco
político indicia o fortalecimento da consciência de diferenciação em
relação à metrópole, que já havia sido esboçada pelos árcades da
Inconfidência Mineira. Porém, no romantismo, ela assume o caráter
nacionalista que não conhecera até então, tomado pela elite local como
uma tarefa a se cumprir. A literatura tem grande papel nesse momento
pois, como afirma Antonio Candido (2006) em “Literatura e cultura
de 1900 a 1945”, ela ocupou por muito tempo o lugar das ciências
sociais, dada a incipiente formação e fraca divisão do trabalho
intelectual que aqui vigorou até as raias do modernismo.
O poeta Gonçalves de Magalhães, no “Ensaio sobre a história
da literatura no Brasil”, publicado na revista Niterói em 1836,
formaliza pela primeira vez o problema de se buscar a representação
da natureza americana à distância dos modelos europeus. O texto
assinala um momento de otimismo acerca da literatura nacional,
reforçado, no plano político, pela perspectiva de assunção do Império
por D. Pedro II, primeiro representante político nascido no Brasil.
Assumindo em 1840, ano da antecipação de sua maioridade, o jovem
monarca vai influir na vida cultural brasileira, estimulando o
desenvolvimento artístico e participando ativamente do debate
sobre a literatura nacional.
Embora o índio não apareça no ensaio de Magalhães senão
como inspirador da natureza brasileira, será transformado cada vez
mais em carro-chefe do nosso nacionalismo literário. Já na publicação
de estreia de Gonçalves Dias, Primeiros cantos (1846), o índio figura
em alguns poemas como tema, e a partir daí será cada vez mais
afirmado; em 1857, quando publica o épico Os timbiras, o indianismo
já se havia estabelecido. Magalhães dera a público no ano anterior
sua anunciada A confederação dos tamoios, obra patrocinada por D. Pedro
II no intuito de inscrever nossa literatura na tradição das grandes
epopeias de fundação. Na Europa, o romantismo havia empreendido
o resgate de símbolos nacionais dentro de sua própria tradição
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literária, como ocorreu com a Eneida, de Virgílio (século I a. C.), na
Itália, e Os lusíadas (1572), de Luís de Camões, em Portugal. Se no
caso italiano o ancestral escolhido por Virgílio foi o herói grego
Eneias, que teria fundado Roma depois da ruína da Troia homérica,
e no caso português, um personagem histórico (Vasco da Gama)
que o poema torna favorecido pelo fado e, portanto, capaz até
mesmo de superar a dignidade dos herois gregos; no Brasil, a
inexistência de uma tradição literária propiciou a eleição do índio
como nosso ancestral, para o que foi necessário vesti-lo com a
idealização dos grandes herois a fim de que se tornasse um tema
literário. Dessa forma, o elemento diferenciador em relação à
tradição europeia não era o heroísmo atribuído aos personagens,
mas o fato de o índio e a natureza brasileira se nivelarem aos temas
da tradição literária europeia. Aí está, talvez, a ambiguidade que
Alencar reconhecera naquele momento: para se distanciar do modelo
europeu, era necessário recorrer a ele.
Nas obras de Gonçalves Dias, o índio aparecerá em feição
despersonalizada. A voz que lhe atribuiu ainda carrega alguma
impregnação neoclássica e sua imagem foi enobrecida pelo ideal
cavalheiresco. De todo modo, Gonçalves Dias consegue criar uma
nova convenção poética, pois aos olhos do leitor habituado à tradição
europeia o indianismo termina por ser significativo enquanto
elemento surpresa. Antonio Candido (2000) ressalta a importância
de reler o indianismo de Gonçalves Dias por esse prisma, pois a
exigência de tratamento realista ou precisão etnográfica ao
indianismo literário implicaria reduzir seu valor estético. A
poeticidade na representação do índio ganha força em I-Juca Pirama,
onde Candido (2000, p. 75) assinala a “suspensão da convenção
heroica”, pois a narrativa sobre o conflito do personagem marcado
para a morte quebra a expectativa de valentia, colocada no limite
entre o bem individual (cuidar do pai) e o bem comum (morrer em
acordo com os padrões cavalheirescos de honra).
Paulo Franchetti (2007), em artigo dedicado ao I-Juca Pirama,
coloca em cena outro elemento importante para a compreensão do
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indianismo: a questão política. Como emblema da oposição do
império brasileiro ao reino português, o indianismo cumpria função
diferenciadora; porém, era preciso evitar que ele fosse identificado
às várias rebeliões populares que ocorreram durante o período da
Regência (1831-1840), em que se associavam negros, índios e
mestiços. Assim, a estratégia literária adotada foi a de, ao eleger o
índio como tema poético por excelência, apagá-lo da história do
presente. Note-se que tanto Gonçalves de Magalhães quanto José
de Alencar tratam o índio, em textos críticos e literários, como raça
extinta. A cena montada para o sacrifício em I-Juca Pirama, embora
colocada num passado mítico anterior ao contato com o português,
trata da extinção de uma raça, cuja memória será perpetuada pelo
canto de seus feitos, sendo o guerreiro que morrerá o último
representante de sua tribo. Dessa maneira, o indianismo em
Gonçalves Dias responde a várias demandas: retrata a cor local
reivindicada pelos românticos; atende à preocupação política do
Segundo Império; abre novas possibilidades estéticas para a
literatura brasileira; catalisa o anseio de nacionalismo pósIndependência.
José de Alencar deu outro tom ao indianismo, transfigurando a
despersonalização do índio gonçalviano em individualismo. De tema,
passa a personagem nos romances O Guarani (1857), Iracema (1865) e
Ubirajara (1874). Isso implica a elaboração de uma linguagem que
parecesse natural na voz do índio. Tanto a Gonçalves Dias quanto a
Magalhães, Alencar criticará a ausência de tal naturalidade. A
publicação d’A Confederação dos Tamoios foi motivo de uma polêmica
literária que Alencar, sob o pseudônimo de Ig., travou nos jornais
com os intelectuais da época, incluído o próprio D. Pedro II, que
tomou a defesa de Magalhães. Além de considerar artificial a
representação do índio e da cor local, Alencar defendeu que a epopeia
não era um gênero propício para a efetivação do projeto de
consolidação da literatura nacional; a ela, preferiu o romance, embora
depois tenha recuado no radicalismo de sua posição e tentando
escrever uma epopeia que deixou inconclusa, Os filhos de Tupã.
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Na recepção crítica do indianismo como linha de força do
nacionalismo literário, há posturas bastante divergentes. É certo que
já no modernismo a representação do índio num Macunaíma
distancia-se da idealização romântica, embora, por outro lado, tenha
dele haurido a abertura das possibilidades da pesquisa linguística e
conciliado a ambiguidade da posição romântica pelo princípio
antropófago. É essa a feição que Haroldo de Campos (2010) atualiza
em “Iracema: uma arqueografia de vanguarda”, sublinhando a
liberdade linguística com que Alencar fugiu ao padrão lusitanizante
do português, recorrendo à língua tupi como elemento constituinte
de sua linguagem literária, por meio de uma “operação tradutora”,
que promove o estranhamento da língua dominante; com isso cria a
utopia de uma língua adâmica, cuja extravagância evidencia o
processo de apagamento a ela imposto pela língua do colonizador.
Ressalta-se, assim, uma visada conflituosa da relação entre
colonizador/colonizado.
Semelhante é o caminho de leitura traçado por Paulo
Franchetti (2007), em “Indianismo romântico revisitado: Iracema ou
a poética da etimologia”, para quem a operação arqueológica de
recuperação da etimologia tupi importa não pelo valor documental
(nem sempre verificável), mas pelo caráter inventivo. Em Alencar,
a necessidade de apagamento histórico do índio se dá como
reinvenção de seus modos de dizer frente à cultura europeia. Daí
seu caráter “radical e mesmo violento” (FRANCHETTI, 2007, p.
76). Além disso, Franchetti assinala pontos de contato entre o
procedimento linguístico de Alencar e a “palavra-valise” de Lewis
Carrol: enquanto o autor inglês busca criar uma nova língua a partir
da aglutinação de elementos provenientes de línguas diversas,
Alencar empreende a descoberta de uma língua-outra na decifração
dos elementos comprimidos na língua tupi.
Na contramão da leitura de Bosi, também Lúcia Helena (2006),
em A solidão tropical, avalia como nada conciliatória a interação entre o
mal-estar da colonização e o resgate da memória do índio na tarefa
que Alencar tomou para si. A autora parte da solidão pressuposta
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pelo gênero romance para chegar à tematização da solidão dentro
dos romances alencarianos como potencializadora de
questionamentos: Iracema e Martim, por motivos diferentes, sentem
sua solidão como inadequação entre interior e exterior; Moacir, fruto
da união amorosa entre índio e branco, é marcado pela própria mãe
em seu batismo com o índice de uma crise identitária; n’O Guarani, o
final em que Peri e Ceci flutuam sobre uma palmeira é uma “figuração
do dilúvio de incertezas” que representa o futuro da nação à luz de
seu passado histórico. Nesses meandros, Lúcia Helena reconhece a
astúcia do narrador alencariano em figurar criticamente as fraturas da
composição identitária brasileira.
Dessas leituras, se percebe que, quando o critério de avaliação
do nacionalismo nas obras de Gonçalves Dias e José de Alencar
recai sobre a posição político-ideológica, é possível considerá-los
tanto a serviço quanto contrários ao discurso do colonizador. Bosi
vê Gonçalves Dias como alguém que, ao contrário de Alencar,
vivenciou de perto as revoltas populares no Maranhão, e por isso
retrataria a situação índio/colonizador de maneira problematizada,
na dimensão trágica do apagamento do primeiro; ao passo que
Franchetti, ao analisar as modificações feitas por Gonçalves Dias
nas reedições de suas obras, observa a tentativa do poeta de
responder ao projeto político do Segundo Império. Quando se trata
de Alencar, a leitura de Bosi identifica amenização do conflito,
enquanto a de Lúcia Helena revela o tratamento crítico do autor
quanto ao estabelecimento da identidade brasileira. Já em relação às
potencialidades literárias das obras de ambos os autores, a recepção
crítica destaca a criação de novos padrões estéticos que influíram na
tradição literária brasileira.
O projeto literário alencariano
Iracema é parte de um projeto de escrita, exposto no prefácio
a Sonhos d’ouro (1872), denominado “Benção paterna”, que objetivava
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representar três fases da literatura nacional: a primitiva, em que se
incluem as lendas indígenas; a histórica, que trata do contato entre o
colonizador e o colonizado; e outra que começa com a
independência política e pretende alcançar a independência literária.
Nessas três categorias, Alencar inclui toda a sua obra produzida até
o momento. E, embora a inserção de Iracema na primeira delas seja
equívoca por tratar do segundo momento referido em suas
classificações, como nota Franchetti (2007, p. 77-78), percebe-se
dessa categorização a preocupação do escritor com o tratamento
da “cor local”, que justifica a composição até mesmo de seus
romances urbanos, pois neles se conhece “a fisionomia da sociedade
fluminense” (ALENCAR, 1959, p. 699).
Em Iracema, o comprometimento com a “verdade histórica”
assume a feição de um posicionamento eletivo ante os fatos de que dão
notícia os cronistas, exposto depois do prólogo. Embora um
povoado tenha sido fundado no Ceará em 1603 por Pêro Coelho,
o “argumento histórico” do romance é que Martim Soares Moreno
deve ser celebrado como seu verdadeiro fundador: “O Ceará deve
honrar sua memória como a de um varão prestante e seu verdadeiro
fundador, pois que o primeiro povoado à foz do rio Jaguaribe
não passou de uma tentativa frustrada” (ALENCAR, 1958, p. 235),
tendo sido arruinado em decorrência do desrespeito aos índios,
que por isso entraram em guerra com os portugueses e obrigaram
Pêro Coelho a se retirar para a Paraíba. Alencar ainda informa
sobre a amizade entre Martim, Poti (batizado no cristianismo
Antônio Felipe Camarão) e Jacaúna, e a rivalidade destes com Mel
Redondo (Irapuã), personagens históricos que compõem seu
romance.
Em “Como e porque sou romancista” (1873), Alencar conta
que em 1848, tendo voltado à terra natal depois de uma estadia
em São Paulo, onde frequentou o curso de Direito, voltou a se
interessar pela escrita de romances. As reminiscências do Ceará
lhe despertaram a vontade de buscar um tema nacional que lhe
serviria à composição:
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Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto
do Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas
dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema
para o meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma
época (ALENCAR, 1959, p. 143).
Porém, Alencar considerava que a existência do argumento
histórico não bastava à confecção de uma obra representativa
da nossa nacionalidade, como atestam as “Cartas sobre A
confederação dos tamoios”. O poema épico de Magalhães recebeu
duras críticas do futuro autor de Iracema em relação à forma de
composição e ao tratamento do assunto. A pretensão épica do
poema, que busca alçar um fato histórico à grandeza capaz de
orgulhar os filhos de sua nação, não teria sido realizada, pois o
autor não soubera apresentar poeticamente os heróis e as belezas
de sua pátria:
Se o poeta que intenta escrever uma epopeia não se sente com forças de
levar ao cabo essa obra difícil; se não tem bastante imaginação para
fazer reviver aquilo que já não existe, deve antes deixar dormir no
esquecimento os fastos de sua pátria, do que expô-los à indiferença do
presente (ALENCAR, 1960, p. 891).
A imaginação, manifestada tanto no plano dos fatos narrados
quanto no plano da elaboração linguística, reaviva os episódios
históricos que só assim devem ser apresentados ao leitor. Em
Iracema, embora se trate da composição de uma lenda, e não de
uma epopeia, a fantasia criativa do autor soma ao “argumento
histórico” elementos que concorrem para singularizá-los, e por
isso tornam-se dignos de interesse para um romance que, como
vimos, integra um projeto mais amplo de afirmação da literatura
nacional. É o procedimento inventivo que, para Alencar, deve estar
na base da confecção de uma obra literária que se paute nos
elementos caracteristicamente brasileiros.
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Iracema e a invenção da heroína indígena4
Iracema é, notadamente, a personagem que mais representa o
plano imaginativo no romance: em torno dela se concentram as
personagens históricas; em função dela, a narrativa se desenrola e
cumpre seu objetivo. Iracema confere à trama o pathos que a
engrandece. Por isso, ela é apresentada como heroína cujos valores
a cingem de uma aura incorruptível, cuja beleza se sobrepõe à de
todas as outras mulheres de sua raça e da raça dos conquistadores.
Em relação à noiva que o espera em solo português, diz Martim a
Iracema: “Ela não é mais doce do que Iracema, a virgem dos lábios
de mel; nem mais formosa!” (ALENCAR, 1958, p. 247). Além disso,
Iracema guarda os segredos da bebida de Tupã, espécie de licor
alucinatório que os guerreiros indígenas ingerem em situações rituais;
esse conhecimento a impede de se entregar aos homens. O Pajé
adverte Martim: “Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a
flor de seu corpo, ela morrerá [...]” (ALENCAR, 1958, p. 257).
Iracema sabe que, caso ceda ao amor carnal, o destino lhe abaterá a
vida; e, se o faz, não é por deixar-se corromper, mas pela grandeza
de seu amor, medida pelo contraste com a punição mortal.
Nas “Cartas sobre A confederação dos tamoios”, em dois
momentos Alencar se dedica ao tratamento da figura feminina,
carente de dignidade e beleza. Na terceira delas, diz que “[...] a
heroína do poema do Sr. Magalhães é uma mulher como qualquer
outra; as virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em
um romance árabe, chinês, ou europeu [...]” e que o autor não se
deixou inspirar pelas belezas de sua terra para criar um tipo novo
que a representasse (ALENCAR, 1960, p. 878). Na oitava carta,
volta a insistir na “[...] falta que se nota no poema da criação de uma
mulher, e [n]a nenhuma originalidade e invenção que o autor revelou
nessa imagem poética, que representa uma das mais belas faces da
vida humana” (ALENCAR, 1960, p. 909). Para fundamentar sua
crítica, enumera os tipos femininos criados por Homero, Virgílio,
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Dante, Shakespeare, Camões, Tasso, Milton, Klopstock,
Macpherson, Chateaubriand, além de citar Chriemhild, personagem
dos Nibelungen, e as mulheres que figuram na Bíblia. Em todos os
casos, percebe não só a singularização dos tipos femininos, como a
influência fundamental que elas exercem na trama.
Machado de Assis (apud ALENCAR, 1958, p. 227), em “Nota
preliminar” ao romance, ressalta o sucesso alcançado por Alencar
na criação de Iracema como “figura bela e poética”, característica
manifestada tanto física quanto moralmente. Porém, não entende
que a personagem dê ensejo a uma narrativa de feição épica, pois
por mais que soe a pocema de guerra dos índios “nem por isso o
livro deixa de ser exclusivamente votado à história tocante de uma virgem
indiana, dos seus amores, e dos seus infortúnios. [...] limita-se a falar
ao sentimento, vê-se que não pretende sair fora do coração”
(MACHADO apud ALENCAR, 1958, p. 226 – grifo meu). De fato,
o enredo de Iracema não se centra nas guerras entre tribos indígenas
que, segundo Machado, seriam motivo para se compor um poema
épico. Mas é preciso acrescentar que a singularidade da “virgem
dos lábios de mel” volta-se para o plano coletivo a que a lenda
recontada se dirige.
Assim, é essencial à narrativa que Iracema seja apresentada
como bela, íntegra de caráter, pura em seus afetos e consciente de
seu destino; isto é, que cause estranhamento ao ser cotejada com
quaisquer parâmetros reais. A abnegação diante da morte em prol
do amor ao português Martim confere ao fruto desse amor uma
grandiosidade que marcará a união do índio com o branco. Iracema
o nomeia Moacir: “Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento”
(ALENCAR, 1958, p. 297) e em nota se acrescenta: “de moacy –
dor, e ira – desinência que significa – saído de”. Como já ressaltou
Lúcia Helena (2006), em Moacir a união de raças é representada
como processo cultural conflituoso que tende à extinção do índio,
cuja memória nele e em seus descendentes permanecerá em função
do nome que a mãe lhe atribuiu. O velho Batuireté, avô de Poti,
assim recebe Martim: “Tupã quis que estes olhos vissem, antes de se
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apagarem, o gavião branco junto da narceja” (ALENCAR, 1958, p.
283), paralelo que indica, segundo a nota a ele aposta, “a destruição
de sua raça pela branca”.
Se em Iracema o caráter imaginativo se acentua, este não está,
porém, ausente nos personagens históricos. Os índios são, ali, figuras
heroicas: possuem bravura, força e respeito às suas tradições. Tanto
quanto Iracema, Poti encerra as virtudes mais sublimes de sua raça.
Utilizando-se das estratégias que aprendeu com a natureza, por
exemplo, Poti se insere sozinho no campo dos inimigos para salvar
Martim, que ali havia sido recebido como hóspede na cabana de
Araquém, pai de Iracema, mas despertara a ira de Irapuã, guerreiro
tabajara, quando este percebeu a inclinação que a virgem indiana
devotava ao português. Poti imita o canto da gaivota, grito de guerra
da nação pitiguara, e se faz anunciar.
A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poti, irmão de
Jacaúna, subiu das ribeiras do mar ao cimo da Ibiapaba: rara é a cabana
onde já não rugiu contra ele o grito da vingança, porque cada golpe do
válido tacape deitou um guerreiro tabajara em seu camucim (ALENCAR,
1958, p. 260).
Esse “índio transfigurado” (PROENÇA, 1959, p. 52)
demonstra a postura alencariana em relação ao comprometimento
com a literatura nacional. Para Cavalcanti Proença (1959, p. 52),
“assim era preciso, para que o ancestral escolhido não ficasse a dever
aos portugueses, proibidos, proscritos, mas heroicos e admirados
em sua glória cavalheiresca”. Além da necessidade de se contrapor
aos modelos portugueses dos quais é tributário, Alencar reafirma a
concepção de que o passado de sua nação deva ser recontado pela
literatura com o fim engrandecê-lo. O comentário sobre a forma
como o índio é apresentado n’O Guarani, que também se conforma
a Iracema, explicita sua posição: “N’O Guarani o selvagem é um ideal,
que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de
que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre
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ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça”
(ALENCAR, 1959, p. 149).
Trata-se, pois, de uma idealização do passado histórico relatado
pelos cronistas que se justifica na elevação do índio para que este seja
o elemento dignificante em nossas origens. É importante notar que
em Iracema o ideal cavalheiresco do índio não se estende a todos os
personagens. Irapuã funciona como contraponto a Poti e Iracema:
seu desejo de vingança contra Martim é injustificado, pois o português
havia sido trazido por Tupã, e merecia, portanto, todas as honras da
hospitalidade. Na qualidade de hóspede de Araquém, Martim não
devia sofrer nenhuma punição por ser aliado dos pitiguaras.
Isso demonstra o desrespeito de Irapuã aos preceitos indígenas,
o que o torna “vil e indigno”, suscetível aos estímulos mais torpes da
paixão. Mesmo Martim, se não possui o heroísmo com que Alencar
caracteriza a raça indígena5, não se degrada como Irapuã: é valente,
forte, defende seus aliados, e ambientou-se entre os índios, sendo capaz
de compreender as regras de sua cultura, sua língua e seu modo de
falar. Por isso, a acusação contra ele dirigida por Irapuã de ingratidão
à hospitalidade faz-se injusta. Se o português rejeita as mulheres da
tribo – presente oferecido ao hóspede – em nome do amor a Iracema,
conhece o impedimento que a levaria à morte e por isso se resigna a
sonhar com a virgem indiana. Porém, Iracema entrega-se a Martim
durante o sonho proporcionado pela bebida de Tupã, e só lhe revela
o fato quando o português está prestes a deixar os campos tabajaras.
Ela se responsabiliza por seu destino, e essa liberdade é reconhecida
pelos seus, como demonstra a visita cordial que Caubi, seu irmão, lhe
faz depois de ela ter abandonado a cabana de Araquém.
Iracema e a invenção de uma linguagem
O trabalho com a linguagem é outra face da fantasia criativa
de Alencar em Iracema. Os valores épicos atribuídos aos personagens
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revestem-se de uma linguagem poética que se processa
principalmente pela associação com a natureza, como ocorre na
conhecida apresentação de Iracema: “[...] tinha os cabelos mais
negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como o seu sorriso; nem a baunilha
recendia no bosque como seu hálito perfumado” (ALENCAR, 1958,
p. 238). As comparações com os elementos da natureza não servem
apenas à descrição de personagens ou à fala dos mesmos, mas
associam-se ao modo de pensar do narrador, investido do poder
de representar a tradição oral, que assim conta a passagem do tempo:
“O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das
praias do Ceará [...]” (ALENCAR, 1958, p. 303). Esse
procedimento, fundado na matriz etimológica das palavras indígenas,
a que Franchetti (2007) denomina “poética da etimologia”, associa
o significante ao dado concreto a que se refere, como se supõe ter
ocorrido nas primeiras manifestações linguísticas:
[...] Alencar constrói a utopia de uma língua inteiramente motivada, concreta,
na qual os termos abstratos eram sempre metáforas à espera de decifração.
Constrói a utopia de uma língua adâmica, portanto, frente à qual mais
vale a capacidade poética de interpretação do sentido do que os
documentos linguísticos existentes (FRANCHETTI, 2007, p. 83).
Como ocorre com o nome que motiva a construção do
enredo, Alencar busca na etimologia tupi a maior proximidade
possível entre significante e significado. A tradução para o português
dos componentes que constituem o nome se desdobra em relação a
outros elementos. Franchetti (2007, p. 80-81) cita como exemplo
desse procedimento a composição do nome de Iracema, que, além
de ser anagrama de “América”, é da seguinte maneira explicado em
nota por Alencar: “Em guarani significa lábios de mel – de ira, mel
e tembe – lábios. Tembe na composição altera-se em ceme, como na
palavra ceme iba” (ALENCAR, 1958, p. 237). O nome de Iracema se
contrapõe ao nome do chefe tabajara Mel Redondo; comparece
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também na fala que Iracema dirige ao filho: “Tua mãe também, filho
de minha angústia, não beberá em teus lábios o mel de teu sorriso”
(ALENCAR, 1958, p. 298), dentre outras referências ao longo do
romance.
Na quarta das “Cartas sobre A confederação dos tamoios”, Alencar
combate a crítica ao uso da língua indígena como fonte literária.
Entende que haja um excesso por parte de escritores que apenas
buscam preencher o texto com vocabulários oriundos da língua tupi,
mas não admite que daí seja derivado um julgamento valorativo,
pois os críticos
[...] que assim procedem têm uma ideia que não posso admitir; dizem
que as nossas raças primitivas eram raças decaídas, que não tinham poesia
nem tradições; que as línguas que falavam eram bárbaras e faltas de
imagens, que os termos indígenas são mal soantes e pouco poéticos; e
concluem daqui que devemos ver a natureza do Brasil com os olhos do
europeu, exprimi-la com a frase do homem civilizado, e senti-la como
o indivíduo que vive no doce confortable (ALENCAR, 1960, p. 885).
Ressoam aqui, como mostra Cavalcanti Proença (1959, p. 4850), as ideias de Montaigne a respeito dos índios, considerados
bárbaros pelo europeu que não conseguia medi-lo por um critério
que não fosse o seu próprio. Descontado o “excesso de boa fé”
(PROENÇA, 1959, p. 53), a citação nos mostra a necessidade não
de “combater a cousa em si” (ALENCAR, 1960, p. 885), mas de
fazer do uso do vocabulário indígena uma possibilidade de
apresentação da literatura nacional. Ao se apropriar do vocabulário
tupi, Alencar lhe atribui a poeticidade da palavra virgem, que precisa
se haver com o dado concreto imediato, sem as camadas de pó que
o desgaste do uso lhe confere. Com isso, pretende reabilitar a imagem
do índio como ancestral, mas não identificar-se com ele: “o nacional
resulta da imitação do selvagem, da apropriação de sua mitologia,
vocabulário e formas de dizer pelo homem civilizado, por meio da
imaginação arqueológica e da pesquisa linguística” (FRANCHETTI,
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2007, p. 77). O caráter de imitação é claramente inventivo, no seio
do próprio processo de reconstituição desse vocabulário e na
simulação de um narrador despido da máscara de homem civilizado,
que o prólogo do romance desvela.
A invenção de uma lenda
É, pois, esse mesmo caráter inventivo que, partindo da
etimologia do nome Ceará, permite ao narrador recontar a lenda
que ouviu nos tempos de criança. Esse distanciamento, explicitado
no primeiro capítulo, situa a narrativa em tempos imemoriais, de
que dá notícia a tradição oral, e é reafirmado no penúltimo: “E foi
assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o
coqueiro, e os campos onde serpeja o rio” (ALENCAR, 1958, p.
303). Porém, o “argumento histórico” concentra a narrativa nos
primeiros anos do século XVII e apresenta os personagens históricos
que nela tomam parte. Iracema não está aí incluída e não integra o
elenco de personagens da cultura popular que figuram no Dicionário
do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (1979). Assim, a máscara do
narrador assume ainda este outro aspecto: apresenta-se como uma
espécie de compilador da tradição, que cria uma lenda – se isto não
for uma contradição em termos – em torno do nome de seu estado
natal. Em Iracema, a estrutura da lenda permite que o narrador ofereça
uma explicação plausível para um elemento da realidade imediata
em que os dados históricos se aliam à invenção, atribuída à tradição
oral. Com isso, o narrador se coloca como porta-voz da coletividade
e reafirma seu comprometimento com o projeto de consolidação
da literatura nacional.
No século XIX, o romance era ainda considerado, em
comparação à epopeia, um gênero menor. Em A fonte subterrânea,
Martins (2005, p. 81) observa a pouca atenção dada ao gênero nos
tratados de retórica, que o vinculavam ao caráter pedagógico: “O
romance surge, assim, como adorno ou roupagem de virtudes e
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ensinamentos a serem transmitidos a um leitor que, de outra forma,
poderia recusá-los devido à sua insipidez”. Embora não utilize a
mesma terminologia que os retóricos, segundo Martins (2005)
Alencar teria sido influenciado por suas ideias. Em alguns de seus
escritos, nota-se a preocupação em agradar ao público, em
proporcionar-lhes momentos amenos, como se lê no prólogo de
Iracema: “Percorra suas páginas para desenfastiar o espírito das
cousas graves que o trazem ocupado” (ALENCAR, 1958, p. 233),
embora anuncie depois que o livro “é, pois, um ensaio ou antes
uma mostra. Verá realizadas nele minhas ideias a respeito da
literatura nacional” (ALENCAR, 1958, p. 307), com o que assinala
seu caráter instrutivo. E parece ainda afeito à ideia que se insinuou
em seu espírito desde cedo em relação à composição de uma
epopeia nacional. Na carta ao dr. Jaguaribe posposta ao desfecho
da narrativa, afirma: “Se o público ledor gostar dessa forma
literária, que me parece ter algum atrativo, então se fará um esforço
para levar ao cabo o começado poema [Os filhos de Tupã], embora
o verso tenha perdido muito de seu primitivo encanto”
(ALENCAR, 1958, p. 307).
Sabe-se que Alencar não dedicou um estudo sistemático ao
romance, como fez em relação a outros gêneros literários, causa
que Martins (2005, p. 161-163) atribui menos ao fato de se tratar de
um gênero novo e multiforme, do que à necessidade de Alencar em
responder as críticas que lhe eram dirigidas. De um ou de outro
modo, o romance lhe parecia mais condizente com as necessidades
de seu tempo, como afirma em “Benção paterna”, onde aconselha
ao livro defender-se das críticas em relação ao pouco peso do volume
com o argumento de que era “filho deste século enxacoco e mazorral,
que tudo aferventa a vapor, seja poesia, seja arte, ou ciência”
(ALENCAR, 1959, p. 694). Além disso, e talvez mais importante, o
romancista considerava que a almejada independência literária devia
passar pela elaboração de novas formas de expressão: “A forma
com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios;
o verso que disse as desgraças de Troia, e os combates mitológicos
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não pode exprimir as tristes endechas do Guanabara, e as tradições
dos selvagens da América” (ALENCAR, 1960, p. 875-876).
As duas últimas considerações, se cotejadas com o romance
Iracema, parecem mais significativas da postura alencariana. Nele, a
possibilidade de se criar uma nova forma está na apropriação da
estrutura da lenda como medida de ressignificação dos fatos
históricos por meio da linguagem poética. A fusão de gêneros aí
identificada se conforma melhor à fluidez romanesca do que aos
elementos que estruturam a epopeia, para os quais a observação
dos modelos não parecia a Alencar permitir muitas manipulações,
como fica demonstrado nas exigências que faz ao poema de
Magalhães. Além disso, a popularidade alcançada por seu “poema
em prosa” (MACHADO apud ALENCAR, 1958, p. 226) reitera o
desprestígio do verso, embora não o da poesia, que muita gente
sabe de cor: “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta
a jandaia nas frondes da carnaúba” (ALENCAR, 1958, p. 237).
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Notas
2
Em “O indianismo romântico revisitado: Iracema ou a poética da etimologia”, Paulo Franchetti
(2007, p. 75) ressalta a importância de se considerar os textos apostos à narrativa – cartas e
notas – como parte do romance: “[...] a novela só ganha pleno sentido histórico e literário,
quando lida em conjunto com a carta e com a seção de notas que a segue imediatamente e que
também é envolvida pela carta ao dr. Jaguaribe”. Para esta análise, considerarei ainda o texto
“Argumento histórico”, a carta posposta à narrativa e o pós-escrito à segunda edição.
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3
Alencar muito se ocupou na defesa às críticas que sua obra frequentemente suscitava. Abstenhome de situá-las, pois as polêmicas literárias de Alencar são por demais extensas e já renderam
bom trabalho aos especialistas. Priorizarei aqui os desdobramentos que as considerações do
romancista adquirem se comparadas ao romance Iracema, em detrimento das críticas que lhe
foram feitas.
4
Cf. palestra realizada por Paulo Franchetti no Espaço Cultural CPFL, intitulada “Iracema, a
construção da heroína indígena”, em que o crítico analisa os procedimentos formais utilizados
por Alencar na feitura do romance.
5
Algumas diferenças entre Poti e Martim denotam esse paralelo: embora não deseje, Martim em
diversos episódios recebe a proteção de Iracema, que por ser mulher Poti considera fraca;
Martim se deixa comover pelo lamento da esposa, enquanto Poti entende que o verdadeiro
guerreiro não se rende às paixões; apesar de Martim ter assimilado a linguagem e os costumes
indígenas, não tem a mesma destreza que Poti ao lidar com a natureza; dentre outras.
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VIAGEM E EXPLORAÇÃO
COLONIALISTA NA UTOPIA
INGLESA CLÁSSICA
VOYAGE AND COLONIALIST
EXPLOITATION IN CLASSICAL
ENGLISH UTOPIA
Helvio Moraes
(UNEMAT)1
RESUMO: Os primeiros escritos utópicos ingleses (Utopia de
Morus e A Nova Atlântida de Bacon) abordam temas vinculados
à ideia da colonização do Novo Mundo, tanto na construção
idealizada do mundo outro quanto nos relatos feitos pelos
interlocutores do viajante em relação à forma como são tratadas
as populações nativas. O viajante da utopia é tomado, antes de
tudo, pela sensação de maravilhamento diante do mundo recém
descoberto. No entanto, aos poucos, ele vai sendo instruído pelos
seus ‘guias’ e ao estupor se substitui a descrição detalhada de
como tal mundo pôde ser estabelecido, cuja ordem se revela
1
Docente do programa de pós-graduação em Estudos Literários (PPGEL), da UNEMAT,
câmpus de Tangará da Serra. Docente do curso de Letras, UNEMAT, câmpus de Pontes e
Lacerda.
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muito mais avançada, social e tecnologicamente, que a do Velho
Mundo. Esta seria a forma pela qual o colonizador passaria a ser
colonizado. Acredito que se trata de um artifício usado pelo
utopista para projetar uma imagem futura e idealizada do homem
europeu. A América se configura como espaço onde é possível
projetar a imagem de uma ordem político-social redimida dos
males contemporâneos do autor. Meu objetivo é apresentar como
os três escritos utópicos em questão elaboram tais imagens, assim
como problematizam a imagem do outro, o homem americano
em seu mundo.
PALAVRAS-CHAVE: Utopia inglesa. Humanismo. Literatura
de viagem. Colonização. História Literária.
ABSTRACT: The first English utopian writings (Utopia, by Thomas Morus, and The New Atlantis, by Francis Bacon) approach
themes related to the idea of colonization in the New World, be
it in the idealized construction of the other world or in the reports given by the traveler’s interlocutors regarding the form by
which the indigenous populations are treated. First of all, the
utopian traveler is taken by the feeling of wonder in face of the
world recently-discovered. However, he is gradually instructed
by his “guides”, and the prior astonishment is replaced by a detailed description of how such an order could be established –
an order which proves to be socially and technologically more
advanced than that of the Old World. This is the way the colonizer, in the utopian work, comes to be colonized. I believe it is
an expedient used by the utopista with the aim of projecting a
future and idealized image of the European man. America is
conceived as a space where it is possible to project the image of
a socio-political order redeemed from the contemporary evils
of the author. My purpose is to show how these two utopian
writings develop such images and approach the problem of
otherness, in this case, the American men and his world.
KEY-WORDS: English utopia. Humanism. Travel Literature.
Colonization. Literary History
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Introdução
Alguns dos primeiros escritos utópicos ingleses (Utopia de
Morus e A Nova Atlântida de Bacon) abordam, ainda que indireta e
alusivamente, temas vinculados à ideia da colonização do Novo
Mundo, tanto no que diz respeito à construção idealizada do mundo
outro quanto aos relatos feitos pelos interlocutores do viajante em
relação à forma como são tratadas as populações nativas. O viajante
da utopia é tomado, antes de tudo, pela sensação de maravilhamento
diante do mundo a que chega inesperadamente. No entanto, aos
poucos, ele vai sendo instruído pelos seus ‘guias’ e ao estupor se
substitui a descrição detalhada de como tal mundo pôde ser
estabelecido, cuja ordem se revela muito mais avançada, social e
tecnologicamente, que a do Velho Mundo. Este recurso, de que vários
utopistas lançam mão, causa um efeito admirável, apresentando-nos
o futuro colonizador sendo instruído por aquele que será colonizado.
Na verdade, trata-se de um artifício usado pelo utopista para projetar
uma imagem futura e idealizada do homem europeu. A América e
os outros “mundos” recém descobertos se configuram como
espaços onde é possível projetar a imagem de uma ordem políticosocial redimida dos males contemporâneos do autor. Meu objetivo
é apresentar como esses escritos utópicos elaboram tais imagens,
como problematizam a relação de alteridade e, por fim, que
elementos de um discurso colonizador podem ser percebidos em
suas páginas.
A centralidade do tema da viagem
Como em outros textos utópicos do período, o tema da
viagem é central nos três autores que analisamos. Não somente o
surgimento das primeiras utopias literárias coincide com o início
das grandes descobertas marítimas – sendo este, de fato, o aspecto
que mais se destaca ao primeiro contato com tais escritos –, mas os
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artifícios literários dos quais o utopista lança mão para nos apresentar
sua visão de sociedade ideal mantêm um profundo diálogo com o
amplo espectro da literatura de viagem, que abarca escritos dos mais
diversos gêneros, como a viagem maravilhosa e os relatos de
viajantes, seja sob a forma de diários ou epístolas, assumindo desta
gama de escritos suas modalidades discursivas. A viagem é o
expediente sine qua non para a apresentação do encontro (ou choque)
de tradições culturais diferentes.
De fato, o tema é considerado como uma constante do gênero,
que se expressa direta ou indiretamente, no espaço (a própria viagem
marítima sendo o maior exemplo) ou no tempo (o recurso ao sonho),
em todas as utopias. Contudo, sua centralidade como fator de
incidência sobre os elementos que compõem o núcleo do projeto
utópico é colocada em questão por alguns estudiosos. Como nos
salienta Minerva (1996, p.40), tal atitude deve-se ao fato de certos
historiadores da literatura utópica terem sido atraídos mais pela
descrição do lugar outro do que pelos meios empregados para
alcançá-lo. Consequentemente, relegam à viagem a função de simples
expediente literário, um mero recurso usado pelo autor para explicar
de modo verossímil como se deu a descoberta do mundo ideal,
sendo, logo em seguida, descartado, a ponto de a maioria das utopias
não relatarem como se deu a viagem de retorno.
A relação, portanto, entre a narração da viagem e a descrição
do mundo utópico recém-descoberto seria antitética e não dialética.
Às vicissitudes da travessia seria contraposta a perfeição da cidade
ideal, à ação, a descrição e, assim, constituídos os pólos antitéticos
do relato utópico, prevaleceria, como ponto legítimo de
investigação, aquele relacionado ao desenho do mundo outro; o seu
oposto – a travessia –, em nada contribuiria para elucidá-lo, nada
nos diria acerca do plano elaborado pelo seu autor.
Cremos que esta atenção excessiva ao aspecto descritivo, em
detrimento das passagens mais carregadas de elementos romanescos,
falha por não levar em consideração certos dados importantes
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relativos à idéia de viagem. O primeiro seria a relevância da viagem
para a mentalidade européia no Renascimento.
Há um processo que poderíamos denominar de secularização
da viagem, que se desvia paulatinamente da peregrinação medieval
e, como resultado do racionalismo humanista, termina nas grandes
viagens dos portugueses e espanhois. Conforme nos esclarece
Servier (1995, p. 112), por um lado, “se o Ocidente se dirigia
sempre adiante, rumo ao oeste, era para encontrar de novo o
paraíso terrestre”. Contudo, as viagens na época dos grandes
descobrimentos, aos poucos, fizeram desaparecer este mito que,
como aponta Jean Delumeau (1988), ainda era considerado um
fato no início do século XVI:
Há uma mudança profunda que se dá no século XVI, pois os grandes
navegadores portugueses, espanhóis, etc., deram a volta ao mundo e não
ouviram falar do Paraíso terrestre, nem o viram, e podem dizer que ele já
cá não está. [...] A partir do século XVI os mapas já não colocam o
Jardim do Éden ao alto. [...] O século XVI marca o momento em que
deixa de se aceitar que o Paraíso terrestre, mesmo inacessível, ainda existia.
Inversamente, em não se confirmando a existência de um Éden
algures na rota marítima através do Ocidente, “a Europa foi colocada
diante do Novo Mundo e produziu-se uma sensação de inacabado
que abalou as bases do pensamento medieval e do primeiro
renascimento” (RODRIGUES et alii, 2000, p.133)
Uma fonte considerável de relatos de navegantes descrevendo
a nova geografia, formas novas de organização social e diferentes
costumes, acabou por instaurar um processo de revisão crítica de
uma Europa já atormentada por crises e distúrbios violentos que
antecipavam conjeturas sobre uma iminente queda dos antigos
edifícios sociais, cujos alicerces já não se sustentariam por mais
tempo. São estes relatos que criam o Novo Mundo e este passa a
servir de espelho a esta Europa desgastada.
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Desta forma, para De Boni (2006, p. 202), “a dilatação do
mundo real como resultado das explorações constituía para a cultura
européia um fator de estímulo para a ‘descoberta’ literária de ilhas
inexistentes, nas quais projetar a própria ânsia de aperfeiçoamento”
O segundo ponto raramente levado em consideração referese à amplitude do conceito de viagem. Não só a partida e a trajetória
para se alcançar o lugar outro, mas também toda a experiência ali
vivida – e por isso, a narração de como se dá o contato com o
outro, assim como a descrição das normas perfeitas do viver
associado – devem estar condicionadas à idéia da viagem utópica.
Visto nesta perspectiva, mais que mero expediente literário, o recurso
à viagem se transforma em princípio. Assim, sua função no interior
do projeto utópico não é apenas promocional (enquanto moldura,
que diz respeito ao antes e ao depois da utopia), mas também, e
principalmente, um elemento estruturante (cf. MINERVA, 1996,
p.42).
Sem reduzir a importância das razões históricas que levaram à
elaboração do projeto utópico, ou, mais particularmente, as de fundo
pessoal que induziram o utopista a criar sua utopia, queremos chamar
a atenção também para o aspecto estrutural do texto, e demonstrar
sua relevância. Na verdade, o texto utópico se privilegia por ser
capaz de mostrar de forma bastante clara os pontos de convergência
entre estes três paradigmas.
Portanto, à imagem de dois pólos antitéticos preferimos opor
a idéia de um jogo dialético entre duas visões distintas de mundo: a
do viajante, que traz consigo todo o arcabouço cultural de seu lugar
de proveniência, e a do outro, que assume a função didática de revelar
ao primeiro, de forma pormenorizada, o modo de ser do mundo
recém-descoberto. A viagem utópica possui, de fato, um grande
valor heurístico (cf. MINERVA, 1996, p 14), e este só pode ser visto
dentro de um movimento contínuo de recepção do novo e de
constante comparação. O expediente narrativo das etapas
intermediárias que preparam o viajante para o contato com a
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alteridade assemelha-se, de certa forma, a um ritual de iniciação (cf.
MINERVA, 1996, p.10), um processo de transformação ao fim do
qual temos a imagem de um novo homem, mais sábio e purificado
das imperfeições que trazia anteriormente. Embora este homem,
na utopia, seja representado pelo viajante, graças a um hábil
agenciamento de técnicas narrativas – como o testemunho em
primeira pessoa, o caráter informativo do relato, os procedimentos
estilísticos que se utilizam de topoi literários para explicar o novo,
entre outras – o ‘percurso iniciático’ se potencializa e se estende ao
leitor, e, portanto, a todos os homens, de modo que o gradual
esclarecimento vivenciado por um é simultaneamente experimentado
pelo outro.
Desta forma, a função do narrador-viajante é dupla.
Primeiramente, ele é o mediador entre dois mundos: é ele quem
leva para dentro da utopia a visão de mundo do leitor, encarna os
valores de sua época e, ao mesmo tempo, serve como testemunha
ocular das novidades do lugar outro. Sua segunda função é a de
ator, pois ninguém mais, senão ele (e, às vezes, seus companheiros
que, contudo, permanecem em silêncio), passará pelo processo de
aprendizado que será transmitido à posteridade.
Morus: o nativo torna-se um utopiano
Feitas estas considerações, passemos a discutir como a questão
da alteridade e do contato com o mundo outro é colocada pelos
narradores de Morus e Bacon. Especificamente, analisaremos em
suas utopias algumas passagens que indicam uma disposição, ou
fazem menção, a um projeto de exploração colonialista. Podemos
antecipar que os dois autores interessam-se por aspectos diversos
de tal exploração. Morus volta sua atenção primordialmente para
uma problemática de ordem social. Bacon enxerga as possibilidades
que se abrem à exploração dos recursos naturais de uma terra vasta
e abastada.
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Para compreender mos a forma como Morus sente a
necessidade do estabelecimento de colônias vinculadas a Utopia, é
preciso ter em mente que todo seu projeto parte do conceito de
autarquia. O chanceler inglês constrói sua cidade a partir da noção
de necessidade, adotando-a como um princípio econômico que
tornará possível a rejeição de toda e qualquer acumulação de capital
e levará à tentativa de suprir a carência de recursos, o que já se
encontra, de certa forma, delineado em Platão, no Livro II d’A
República. Segundo Logan e Adams, ao adotar como fundamento
de sua cidade a noção de autarquia, Morus sugere que “a melhor
república é aquela que engloba todo o necessário à felicidade de
seus cidadãos, e nada além disso”. (LOGAN et alii. In MORUS,
1999)
A colônia surge como forma de administrar o excesso, seja
de contingente populacional, seja da produção agrícola (sendo este
último apenas implicitamente indicado). Assim,
Cada cidade comporta seis mil famílias, sem contar as que vivem no
campo, e, para que esse número não aumente ou diminua, uma lei
determina que nenhuma família pode ter menos de dez ou mais de
dezesseis adultos. Eles não procuram, evidentemente, controlar o número
de crianças das famílias. Para assegurar o bom funcionamento, os
membros excedentes são mandados para as famílias menos numerosas.
Se houver superpovoamento numa cidade, o excedente populacional
será transferido para uma cidade menos povoada. E, se a ilha inteira
ficar superpovoada, um certo número de pessoas é escolhido em cada
cidade, e a elas caberá fundar uma nova colônia no ponto mais próximo
do continente, onde existe uma área ainda não cultivada pelos habitantes
locais. (MORUS, 1999, p.93)
Estes habitantes locais poderão ser expulsos de suas terras ou
não, dependendo do modo como procedem em relação aos
colonizadores. Caso admitam e assimilem as instituições e as leis de
Utopia, poderão continuar em suas terras, convivendo com os
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utopianos. De qualquer forma, as estruturas sociais e políticas da
metrópole são impostas sem qualquer possibilidade de diálogo ou
apreciação crítica por parte dos povos a serem colonizados:
Essas colônias são governadas pelos utopianos, mas permite-se que os
nativos venham juntar-se a eles, caso assim o desejem. Quando isso
acontece, nativos e colonizadores logo formam uma comunidade única,
com um estilo de vida comum, e disso advêm vantagens para ambos
os lados – pois, sob o controle e a gerência das leis utopianas, uma
terra que se considerava estéril e incapaz de produzir para um único
povo acaba por tornar-se produtiva para dois povos ao mesmo tempo.
Mas, se os nativos não se conformam às leis de Utopia, são expulsos da
região que se pretende colonizar. Se resistem, os utopianos declaram
guerra, pois consideram-na perfeitamente justificável sempre que um
país nega a outro o direito natural de extrair alimentos de um solo que
os proprietários originais deixam em desuso, conservando-o apenas
como uma propriedade inútil. (MORUS, 1999, p.93-4).
Estas passagens nos permitem atentar para um aspecto de
certos escritos utópicos lido geralmente de maneira equivocada: não
se deve buscar na descrição da comunidade utópica a representação
das populações nativas do Novo Mundo. Quando muito, o que as
caracteriza é um amálgama de certos valores da civilização europeia
com elementos dessas culturas nativas. O utopiano é, antes, uma
projeção ideal do homem europeu. Indícios do homem americano
e da forma pela qual, conforme Morus, ele deve ser tratado,
encontramos nessas passagens referentes às populações vizinhas a
Utopia. Não surpreende, portanto, que estas devam se adequar,
absorver e submeter-se à forma de vida de uma civilização
construída conforme a mais absoluta racionalidade. A metrópole
tem o “direito natural” de se impor e explorar os domínios
territoriais desses povos, porque alcançou as condições plenas para
o desenvolvimento do viver associado, e o ato de estendê-las às
colônias é justificado como um ato de justiça e magnanimidade,
quase um dever2. Como que situada num pólo contrário, temos a
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representação (e o contraste) do homem europeu e do americano
nas Cartas iroquesas de Maubert de Gouvest (1752)3.
Portanto, Morus se volta fundamentalmente para o aspecto
político da exploração colonial, sua configuração social e a conversão
das populações nativas à imagem do homem e do cidadão de Utopia.
Bacon, por outro lado, se interessará por outro aspecto do Novo
Mundo: as novas e inúmeras possibilidades abertas para a
investigação sistemática da natureza.
Bacon: exploração da natureza como empreendimento
científico
Ao longo das páginas d’A nova Atlântida, principalmente em
sua parte final, Bacon nos fornece a imagem de uma Natureza
dessacralizada e completamente manipulada pelo homem, em que
se percebe a valorização do processo civilizatório, do “artifitium”,
da técnica, a inabalável convicção da preeminência da
experimentação sobre a contemplação. Para Bacon, a história da
civilização é “advancement”, é exercício cívico, coletivo4. A nova
Atlântida é, em síntese, a imagem vívida de como seria a vida num
mundo onde o empreendimento científico torna-se a estrutura
dominante de uma sociedade5. Ela traduz o desejo de Bacon de ver
institucionalizada uma sociedade científica, onde a pesquisa é
realizada de forma cooperativista, baseada sobre a ciência
experimental. Não surpreende, portanto, que a principal instituição
da Nova Atlântida seja a Casa de Salomão, instituída “para a
descoberta da verdadeira natureza de todas as coisas, e para que
maior fosse a glória de Deus na criação delas e maior o benefício
dos homens no seu uso”.(BACON, 1976, p.40).
A atitude de Bacon em relação ao projeto de expansão do
domínio britânico é bastante complexa, conforme nos mostra um
recente estudo de Sarah Irving (2006), pois seu humanismo cívico o
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faz atentar para questões bastante problemáticas na esfera da
exploração colonial, como o deslocamento das populações nativas,
a corrupção moral advinda da exploração, etc. Porém, no âmbito
da questão aqui proposta, podemos perceber que, em consonância
com sua noção de “avanço da humanidade”, a exuberância natural
das colônias, submetida ao crivo da investigação científica, pode
trazer benefícios em igual medida a todas as partes envolvidas nesse
processo. Como observa Irving, “para Bacon, as colônias não eram
simplesmente novas commonwealths, eram lugares que produziam
potencialmente o conhecimento natural, vital para a recriação original
e epistêmico império humano sobre o mundo”. (IRVING, 2006).
N’A nova Atlântida, tanto o narrador-viajante quanto o
Sacerdote, que apresenta em linhas gerais a estrutura e o trabalho
desenvolvido na Casa de Salomão, compartilham esta confiança
numa ciência redentora. A reação inicial do narrador é muito
semelhante àquela que Greenblatt (1996) percebe nos relatos dos
primeiros navegadores europeus: uma sensação de maravilhamento,
que se expressa antes de qualquer formulação discursiva mais
“racional”. Paulatinamente, porém, os marinheiros vão
compreendendo o funcionamento de uma comunidade política que
se revela tecnologica e socialmente superior à que pertencem, por
meio de entrevistas e encontros com figuras importantes de tal
comunidade6
Há, portanto, uma preparação para a descoberta final da Casa
de Salomão, o grande colégio de cientistas em que, graças à riqueza
natural do lugar, grandes avanços científicos são realizados. O
discurso do Sacerdote compreende um elenco das maravilhas que o
avanço científico pode (ou poderia) proporcionar ao homem. É
uma exposição didaticamente planejada de modo a fazer com que o
narrador visualize o ‘admirável mundo novo’ construído pela ciência.
E, de fato, o narrador pode apenas visualizá-lo: não lhe é dada a
oportunidade de conhecê-lo, nem ao menos visitar uma sequer de
suas fabulosas casas de máquinas, de perfumes, de som, de preparação
de bebidas e alimentos, etc.
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Retorna à cena a idéia de maravilhamento, estudada por
Greenblatt. A diferença é que, aqui, a maravilha não se descortina
frente aos olhos do narrador. Ela é apenas vislumbrada como objeto
de futura descoberta, uma vez que as terras do mundo, já amplamente
exploradas, aos poucos deixavam de ser objeto de curioso escrutínio
para serem racionalmente colonizadas.
Referências
ALBANESE .”The New Atlantis and the Uses of Utopia” in ELH, vol. 57,
nº 3. (Autumn, 1990),
BACON, Francis. Nova Atlântida. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues. Lisboa:
Editorial Minerva, 1976.
DAVIS, J. C. Utopía y la sociedad ideal – Estudio de la literatura utópica
inglesa (1560-1700). Trad. Juan José Utrilla. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1985
DE BONI, Claudio. “Il viaggio di Bougainville, le riflessioni di Diderot e
l’utopia della felicita secondo natura”. In: Morus – Utopia e Renascimento,
nº 3. Campinas: Gráfica Central da Unicamp, 2006.
DELUMEAU, Jean. “Substituir a Utopia pela Lucidez”. O Expresso. 5
dez. 1998.
GREENBLATT, Stephen. Possessões maravilhosas. São Paulo: Edusp,
1996.
IRVING, Sarah. “ ‘In a pure soil’: Colonial anxieties in the work of Francis
Bacon” In History of European Ideas, vol. 32, nº 3, Set/2006, p. 249-262.
LOGAN, George M. & ADAMS, Robert M. In: MORE, Thomas. Utopia.
São Paulo: Martins Fontes, 1999, XXXIV.
MINERVA, Nadia. “Viaggi verso utopia, viaggi in utopia. Dinamica del
movimento e della stasi”. In BACCOLINI, Raffaela; FORTUNATI, Vita &
MINERVA, Nadia (ed.). Viaggi in Utopia. Ravenna: Longo Editore, 1996.
PATRIZI, Francesco In MORAES, Helvio. “A Cidade Feliz: a utopia aristocrática
de Francesco Patrizi”. Morus – Utopia e Renascimento, nº 1. Campinas:
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Gráfica Central da Unicamp, 2004.
ROFRIGUES, Antonio E. M; FALCON, Francisco J. C. Tempos Modernos
- Ensaios de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
ROSSI, Paolo. “Il mito di Prometeo e gli ideali della nuova scienza”. Rivista
di Filosofia, vol. XLVI, n. 3. Torino, Taylor Editore, 1955.
SARGENT, Rose-Mary. “Bacon as an Advocate for Cooperative Scientific
Research” in PELTONEN, Markku, 1996,p.152) The Cambridge
Companion to Bacon. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
SERVIER, Jean. La Utopia. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.
Notas
2
Algo semelhante encontramos no capítulo conclusivo de outro escrito utópico do período, A
cidade feliz do filósofo ítalo-croata Francesco Patrizi da Cherso, em que se cria a imagem de uma
cidade ideal, acima de todas as cidades do mundo, que a ela se dirigem em busca de auxílio: “Se
nossa cidade for tal como a descrevemos, poder-se-á, com grande abundância, estancar a sede,
e saciar-se com as águas que do abençoado vórtice sobre ela caem. Esta cidade, de sua grande
altura, sobre todas as outras cidades do mundo elevada, e na presença de todas colocada, será
por elas venerada, adorada e rogada a dignar-se mergulhar seus dedos nas águas salutares de seu
feliz regato e molhar, para refrigério de suas misérias, com uma gota, suas bocas abrasadas e
sedentas” (PATRIZI, Francesco. In MORAES, Hélvio. 2004)
3
Para uma leitura dessa outra forma de representação, ver TIN, Emerson. “As Cartas Iroquesas
de Jean-Henri Maubert de Gouvest (1752)” In Morus – Utopia e Renascimento, nº 3. Campinas,
Gráfica Central da Unicamp, 2006, p. 292-317.
4
“Para Bacon, o saber não é fruto de intuições solitárias, mas o resultado de uma profunda
reforma que diz respeito ao modo de pensar e de falar dos homens, e que concerne também as
próprias estruturas de seu viver associado.” (ROSSI, 1955, p. 147).
5
Ver SARGENT, Rose-Mary. “Bacon as an Advocate for Cooperative Scientific Research” in
PELTONEN, Markku, 1996, p.152)
6
ALBANESE ( 1990, p. 509) se refere a um aspecto d’A nova Atlântida que, segundo a autora,
implica numa inversão da lógica do discurso colonialista: o objeto de escrutínio e dominação
não é o nativo, mas o europeu. Desde o início, os marinheiros são atentamente observados,
como se os bensalemitas quisessem se certificar da sua força, da sua integridade física e da
sinceridade de suas declarações quanto a serem pessoas de paz e seguidoras dos preceitos
cristãos. Os estrangeiros não são imediatamente admitidos em terra, e quando são autorizados
a desembarcar, devem passar pelo regime de quarentena a que já fizemos menção. Ainda mais
interessante é o fato de demonstrarem ter consciência do papel de submissão a que são levados,
o que é, no mínimo, curioso (e, em grande medida, irônico), se compararmos com a imagem dos
ilustres conquistadores do Novo Mundo: “[...] estamos entre um povo cristão, cheio de compaixão
e humanidade: que não nos cubra o rosto a vergonha de revelarmos diante deles os nossos vícios
ou a nossa indignidade. Mas há mais, pois eles ordenaram-nos, embora sob a forma de grande
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VIAGEM E EXPLORAÇÃO COLONIALISTA NA UTOPIA INGLESA CLÁSSICA
H ELVIO MORAES
cortesia, que permanecêssemos enclausurados entre estas paredes durante três dias, quem sabe
se para poderem avaliar a nossa conduta e o nosso caráter e, se os considerarem maus, nos
expulsarem imediatamente e, se os acharem bons, nos concederem mais tempo? É possível que
estes homens que colocaram ao nosso serviço estejam ao mesmo tempo encarregados de nos
vigiar (BACON, 1976, p. 17-8). O mesmo grau de ironia é dispensado à forma pela qual o
discurso do nativo é aceito sem questionamentos por parte do europeu. A história ocidental é
submetida a grandes correções, referências a um proto-cristianismo são feitas e a noção de
Velho e Novo mundo é totalmente subvertida, quando o administrador da Casa dos Estrangeiros
explica a origem do cristianismo na ilha e a razão de seus habitantes, profundos conhecedores
das nações do planeta, permaneceram incógnitos a elas. Na formulação de Davis, “o grande
paradoxo consiste no fato de que os novo-atlantes conhecem os assuntos, a cultura e a natureza
do resto do mundo, enquanto que o resto do mundo permanece na ignorância deles. Conhecem,
sem ser conhecidos” (DAVIS, 1985, p. 112). O tom confiante, pleno de autoridade, do discurso
do administrador – afiançado pela evidente superioridade da organização social da ilha em
comparação com a Europa – não deixa outra alternativa ao narrador senão a de, no mínimo,
emprestar-lhe um ouvido favorável (e ouvi-lo em silêncio). Como dissemos anteriormente, a
técnica retórica da inversão é amplamente utilizada aqui. Segundo Albanese ( 1990, p. 509),
“desde o momento do primeiro encontro, são [...] os espanhóis quem são escrutinados, contidos
e regulados pelos seus anfitriões aparentemente benignos.” Há, contudo, uma pequena divergência
entre o tratamento dispensado pelos bensalemitas e o modo como se dá a dominação colonialista:
“a opressão do outro, que é, em qualquer lugar, o foco da colonização, é aqui transformada em
uma interrogação visual, e transferida para uma população nativa [...] mais suave do que os
europeus que a descobriram” ( 1990, p. 509). Embora tais conclusões sejam relevantes, temos
alguma reserva quanto a relacionar de forma tão cabal o nativo americano com os bensalemitas,
conforme dissemos anteriormente.
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DEZESSEIS PALAVRAS QUE
CHORAM: UMA LEITURA DA
(DES)CONSTRUÇÃO DA
LINGUAGEM NA CRÔNICA DE
ROBERTO POMPEU TOLEDO
SIXTEEN WORDS THAT CRY:
AN INTERPRETATION OF THE
(DE) CONSTRUCTION OF
LANGUAGE IN A CHRONICLE
OF ROBERTO POMPEU TOLEDO
Ricardo Marques Macedo
(UNEMAT)1
Aroldo José Abreu Pinto
(UNEMAT)2
1
Mestre pela Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL, da Universidade do Estado de
Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra-MT, Brasil, CEP 78300-000.
2
Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL - UNEMATTangará da Serra- MT. [email protected]
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DE ROBERTO POMPEU TOLEDO
R ICARDO M ARQUES M ACEDO E A ROLDO JOSÉ A BREU P INTO
RESUMO: Este texto tem como objetivo analisar a crônica “
Dezesseis palavras que choram”, do jornalista Roberto Pompeu
Toledo, publicada na Revista Veja, enfocando a reação provocada
pela fala do governador do DF ao supostamente incitar crime
de preconceito racial.
PALAVRAS-CHAVE: Crônica. Racismo. Política.
ABSTRACT: This text aims at analyzing a human story called
“Dezesseis palavras que choram”, written by journalist Roberto
Pompeu Toledo and published in Revista Veja. The text presents
us with the unease provoked by speech of the Governor of the
DF allegedly inciting racial hate crime.
KEYWORDS: Human story. Prejudice crime. Politic.
Introdução
O presente trabalho focaliza a crônica “Dezesseis palavras que
choram”, de Roberto Pompeu Toledo, publicada pela Revista Veja,
em fevereiro de 2002, treze dias após o então Governador do
Distrito Federal convocar a população que participava de uma
manifestação/comício (antecipado) na cidade-satélite de Brazlândia
a destinar uma salva de vaias a um aposentado negro que se
encontrava próxima a uma faixa de protesto produzida por
militantes do Partido dos Trabalhadores.
Partindo do pressuposto da necessidade de contextualização
do texto em análise, uma crônica, em um primeiro momento
esboçaremos um breve comentário sobre esse gênero e sua função
no Brasil. Em seguida expomos alguns elementos externos, do
momento de sua produção, que possam ajudar a configurar o
contexto dos fatos, as circunstâncias que motivaram a manifestação
de Pompeu de Toledo.
Feito isso, passamos a analisar os argumentos apresentados
pelo cronista para uma possível defesa do governador.
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Crônica
O conceito de crônica não é único e consensualmente aceito.
Cada cultura define por crônica um tipo específico de texto, embora
todas concordem em que, do ponto de vista histórico, segundo
Marques de Melo (2003), ela represente efetivamente a narração de
certos fatos, seguindo uma ordem cronológica e com finalidade de
registro para a posteridade.
Apesar de considerar a crônica como um gênero menor em
relação aos demais gêneros literários, Antonio Candido (1992)
considera o formato adotado no Brasil como um gênero tipicamente
brasileiro, originário dos antigos “folhetins”, com um tom mais leve
e descompromissado. Afrânio Coutinho (2003), para conceituar este
gênero, parte da diferenciação entre ensaio e crônica. Busca um sentido
mais antigo para o uso diferenciado destes dois tipos de textos.
Para o crítico, o ensaio surge como uma modalidade textual
muito mais próxima da manifestação oral ou do pensamento no
momento do ato, podendo ser considerado como um “breve
discurso, compacto, um compêndio de pensamento, experiência e
observação” (COUTINHO, 2003, p. 118). Alerta ainda para o fato
de serem os ensaios um tipo de composição em prosa que busca
experimentar ou interpretar a realidade a partir de um olhar pessoal
do autor. Com o passar dos anos, o ensaio assume novo propósito
e passa a ser considerado uma modalidade de estudo, acabado e
concludente.
Por serem tradicionalmente datadas, as crônicas normalmente
tratam de temas que surgem em um determinado momento próximo
à sua publicação. Entretanto, cabe ao cronista não apenas noticiar o
fato, mas comentar, sendo o comentário de pequeno alcance quanto
ao interesse, apenas pelo frescor dos acontecimentos. Entretanto,
vale ressaltar, há autores que conseguem romper com este
imediatismo e conferem transcendência à crônica pela qualidade
principalmente literária.
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No Brasil, a crônica surge em meados do século XIX,
destinada a apresentar de maneira suave e palatável fatos da semana
ou do mês. À época quase sempre visavam ao público feminino.
José de Alencar e Francisco Otaviano de Almeida Rosa foram dois
grandes nomes da crônica brasileira da época.
Será Bilac o responsável por conferir a algumas de suas
crônicas uma feição de ensaio ao concentrar seus comentários sobre
determinados fatos, ideias ou acontecimentos. Assim surge, segundo
Coutinho (2003), o conceito que temos hoje de crônica, muito
mais próxima dos ensaios do passado, permitindo comentários
ligeiros ou divagações realizadas com bom gosto literário.
Há ainda de se considerar alguns aspectos importantes para a
caracterização da crônica. O cronista deve dar preferência à
linguagem da atualidade, refletindo a época de sua publicação. O
estilo deve ser simples e tender para um tom comunicativo, de
conversa. Deve-se rejeitar postura dogmática e fechada para evitar
a fuga dos leitores que não comungam das mesmas opiniões e
posicionamentos.
Afrânio Coutinho estabelece cinco categorias para classificar
da crônica brasileira. São elas: a) crônica narrativa – o eixo central é
uma história ou episódio; b) crônica metafísica – esboça reflexões
sobre os acontecimentos ou homens de maneira mais ou menos
filosófica; c) crônica poema-em-prosa – de conteúdo lírico; d)
crônica-comentário dos acontecimentos; e) crônica-informação – é
a categoria mais próxima do sentido etimológico, assemelha-se a
crônica-comentário, mas com caráter menos pessoal.
As circunstâncias
Por ser a crônica em questão um produto híbrido, fruto da
crítica jornalística motivado por fatos reais, faz-se necessário traçar
o contexto da frase polêmica do então governador do Distrito
Federal Joaquim Roriz.
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O caso teve sua origem numa quinta-feira, dia 31 de janeiro
de 2002, durante um pronunciamento para uma multidão de cerca
de 200 pessoas na cidade-satélite de Brazlândia (DF) que
reclamavam dos valores cobrados pelo IPTU (Imposto Predial e
Territorial Urbano).
Durante seu governo, Roriz realizou diversos assentamentos,
retirando famílias carentes de favelas e proporcionando a
oportunidade de melhores condições de moradia. Ao mesmo tempo
em que praticava “ações sociais”, o governador costumava
discursar e prometer às famílias isenção do pagamento de impostos
e tributos como taxas de água e energia.
Diante das promessas e da não isenção de tais taxas e impostos,
a população decidiu então promover uma manifestação contra Roriz.
Na manifestação do último dia do mês de janeiro de 2002, o
governador avistou, próximo a uma faixa de protesto produzida
por militantes do PT (Partido dos Trabalhadores), um senhor; por
acreditar que se tratava de um opositor político convidou, então,
toda a multidão para vaiá-lo, nos seguintes termos: “- ali está um
crioulo petista que eu quero que vocês dão uma salva de vaia nele”.
Parte do discurso foi gravado em áudio por um estudante
universitário que mais tarde cederia a gravação para a Rádio CBN;
esta tornou público o caso, atraindo a atenção de toda a imprensa
nacional e demais partidos políticos. A polêmica estava armada.
Por conta da frase, o procurador-geral da República na época,
Geraldo Brindeiro, decidiu entrar com uma ação contra Roriz no
Superior Tribunal de Justiça, alegando incitação a crime de racismo.
O caso, no entanto, foi arquivado meses depois.
Essa não seria a primeira vez que Roriz se via em meio a
polêmicas decorrentes de suas falas desbragadas. Já em 1994, ,
durante a campanha por Valmir Campelo, de cima do palanque e
diante de vários eleitores, teria chamado de “vadia” a tucana Maria
de Lourdes Abadia que viria, curiosamente, a se tornar candidata a
vice pela chapa do próprio Roriz na campanha de 2002. Em 2001,
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Roriz, em discurso no Recanto das Emas, declara que, em uma festa
com oito desembargadores, um deles teria dito que não via a hora
de ver arquivado um processo por improbidade administrativa, em
consequência de doações irregulares de lotes a igrejas. Igualmente
em 2001, Roriz chama os senadores Valmir Amaral e Wellington
Roberto de “bandidos”. No final do mesmo ano, o então
governador ataca publicamente o juiz Carlos Frederico Maroja de
Medeiros, afirmando ser ele incompetente.
Em 2002, ano do fato objeto da crônica em pauta, além de
referir-se a um desconhecido como “crioulo petista” - depois vemse a saber que se tratava de um aposentado, Roriz insinua, em outro
pronunciamento para um grupo de aproximadamente 200 religiosos
na Conferência Brasileira de Pastores, que o deputado distrital
Rodrigo Rollemberg (PSB) era usuário de maconha. No ano seguinte,
em 2003, além de chamar o ex-governador Cristovam Buarque de
“assassino”, o qualifica como uma pessoa “que não gosta de pobres”.
Já no ano de 2010, durante campanha ao governo, Roriz afirma
que no governo do PT poderia matar, roubar e até mesmo estuprar.
Compara ainda os militantes do PT a satanás. Vale ressaltar que
Roriz iniciou sua carreira política no estado de Goiás ao fundar ali
o Partido dos Trabalhadores.
Dezesseis palavras
A crônica “Dezesseis palavras que choram” do jornalista
Pompeu Toledo,se encaixa na modalidade crônica-comentário da
classificação de Coutinho: foi motivada, como assinalamos, pela fala
de Roriz em um comício, em janeiro de 2002, diante de uma multidão
que protestava contra os altos impostos cobrados. Por essa razão,vale
ressaltar, de início, que a frase desencadeadora da polêmica e desta
crônica não é uma frase perdida em um discurso qualquer, de um
artigo de jornal que poucos leem ou um capítulo de uma obra que
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por acaso alguém descobre. Pelo contrário, uma situação real de
produção bastante determinável: é oral, dirigida indiscutivelmente
a um destinatário certo, que não é um indivíduo mas um coletivo. E
mais: num comício, ou seja, uma multidão reunida com objetivo
específico: ouvir alguém que fala. E cuja expectativa sobre o tema
ou os temas a serem abordados não se abre em leque, pelo contrário.
Ou seja, uma situação de produção linguística totalmente marcada.
Entretanto, o fato em si, ao leitor da crônica simplesmente, só
pode ser apreendido indiretamente pelo discurso do cronista,
supondo-se que ele não compunha o público do referido comício.
Entretanto para compreender o seu sentido é dispensável
contextualizá-lo, reatualizando as referências apontadas acima,
principalmente porque não se pode, aqui, prescindir da configuração
de uma imagem, uma certa imagem, não só do político Roriz, mas
principalmente do Roriz de fala desbragada.
Comecemos pelo título da crônica: “ Dezesseis palavras que
choram”.
O título de uma obra, mais que dar nome, tem a função de marcar o
início do texto, de constituí-lo como mercadoria, segundo Roland
Barthes. Como adverte o semiólogo em “Análise estrutural de um conto
de Edgar Poe” (1977, p. 41), todo título possui vários sentidos simultâneos,
dentre os quais se destacam dois: “1) o que ele enuncia, ligado à
contingência daquilo que o segue; 2) o próprio anúncio de que vai seguirse um trecho de literatura (isto é, de fato, uma mercadoria); por outras
palavras, o título tem sempre uma dupla função: enunciadora e dêitica”.
(DUNGUE; MIYAZAKI, 2012, p.5)
Dentre as várias expectativas abertas pelo título da crônica,
destacamos duas: 1- palavras antropomorfizadas, numa relação
metonímica em que o sujeito real da fala é substituído pelo
instrumento de expressão, manifestam o sentimento sobre alguma
coisa por alguma razão, negativa; 2- palavras, antropomorfizadas,
expressam sentimentos próprios.
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O lead já adianta ao leitor do que trata a crônica. O receptor já
concebe uma imagem da situação e sua leitura é pautada inicialmente
por seu conteúdo dado, mesmo que ao longo do texto tensões sejam
formadas entre o sentido inicial do lead e o seu desenvolvimento.
Confira na íntegra: “Uma frase do governador do Distrito Federal
transforma-o em réu de duplo crime: racismo e atentado ao idioma”
(TOLEDO, 2002). Ou seja, a escolha dos termos pontua os pontos
nevrálgicos: o sujeito (ativo), uma frase; o sujeito passivo ( um
político); e a sua qualificação ( governador do DF); as causas: dois
atos cuja aproximação numa mesma função sintática leva à estranheza
quanto aos universos semânticos distintos. Trocando em miúdos,
como se leria essa frase?
O autor (a partir de agora nomeado apenas de narrador) inicia
seu texto com a expressão “uma frase” dando a entender tratar-se
apenas de mais uma frase qualquer proferida, tese reforçada pelo
uso do artigo indefinido “uma” em oposição ao definido “a”, que
seria mais indicado para enfatizar a frase em questão. Em seguida, é
apresentado o personagem principal: um “governador”. Há de se
considerar que é “uma frase” que exerce a função de sujeito no
enunciado, criando o efeito de que a frase (emitida por Roriz e
destacada na crônica) teria querer próprio para condenar Roriz, em
oposição a uma situação em que, com base na leitura da mesma,
seria o leitor a pronunciar-se a respeito.
A nomeação da personagem central como governador
convoca à cena a implicação de todo um código de valores e postura
anteriormente aceito pelo sujeito: em escala, podemos classificar o
governador como a terceira figura mais importante de nossa
organização política (presidente em primeiro, seguido por senadores
e em terceiro, os governadores). O narrador vai além e situa a escala
geograficamente: trata-se do “governador do Distrito Federal”. Não
se trata mais de uma figura central da política de um estado qualquer
e imaginário. Ele agora representa o Distrito Federal, o centro
nervoso da política brasileira. É a capital nacional, espaço de que,
no Brasil, emanam as leis e principais decisões que norteiam o país.
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Tais implicações, num primeiro momento pelo menos, estariam
ausentes, ou atenuadas, se em lugar de “governador do Distrito
Federal”, figurasse apenas Joaquim Roriz. Este nome passaria
despercebido para grande parte da população brasileira. Mas o cargo
que ele ocupa traça outro horizonte de sentido em que o fato-objeto
deve ser situado. Nesse cenário, é interessante que o papel de
destinador na concepção semiótica greimasiana - aquele que dita os
valores que serão postos em movimentação na narrativa – esteja
encarnado, por delegação, pelo Partido dos Trabalhadores – PT,
que se encarrega de cobrar a infração em vigência pelo contrato
assumido por Roriz. Na verdade, no nível das manifestações actorias,
o PT é aí um ator sincrético que congrega os papeis de destinador e
anti-sujeito (“acérrimo adversário do governador”, informa a
crônica).
Assim, no lead o narrador, após apresentar o personagem
central, modifica função temática deste no texto. De Governador,
é transformado agora em “réu de duplo crime”. Ser réu implica
estar em processo de julgamento: é nessa situação que entra a
atualidade da crônica: Roriz ainda não foi julgado, o leitor pode – e
deve – como cidadão ser juiz também.
Entre as informações dadas pelo lead e no primeiro parágrafo
nota-se uma tensão. No primeiro, o narrador afirma que o
governador se transformou em um réu de dois crimes: “racismo e
atentado ao idioma”. Já no parágrafo seguinte, ao convidar para a
reflexão, o narrador cita apenas o “crime de racismo”, o que seria o
mais razoável uma vez que o crime de racismo é realizado através
da manifestação verbal. Ou seja, a frase não é simplesmente
manifestação, expressão de algo, mas teria aqui uma função
essencialmente performativa: ela não expressa o crime, ela realiza o
crime: ela é um ato. Mas, apesar disso, também não é esta a questão,
a razão da imputação do segundo crime, como se verá.
É no primeiro parágrafo ainda que encontramos referências
espaciais e temporais que nos ajudam a situar personagens e ações.
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A frase foi dita no dia 31. Apesar do texto não trazer referências a
mês e ano, inferimos tratar-se de março de 2002 devido à data de
publicação da crônica. Quanto à referência espacial, ela traz ao
cenário Brazlândia, uma cidade-satélite próxima a Brasília, cuja
economia gira em torno da agricultura familiar, sua população,
pois, composta de pessoas simples, normalmente base do
eleitorado do PT.
Neste primeiro parágrafo, enfrentam-se, de um lado, o
governador e, do outro, “PT de Brasília”. Ambos os sujeitos assim
nomeados perdem a configuração individualizante para permanecer
na genérica de instituições. Uma situação curiosa se a memória leva
o leitor ao dado de que um (Roriz) é o fruto do outro (PT).
Ao contrário do que se esperaria da leitura imediata da frase
– cometimento de crime de racismo -, “ Se as palavras de Roriz
merecem ou não condenação será o tema”, assevera Pompeu de
Toledo -, o cronista aprofunda o tema indicado: trata-se, não de
julgar o crime, mas de julgar as palavras. Ele o faz começando pela
utilização de recursos estilísticos para realçar sua importância (ou
desimportância) e valor (ou desvalor). A citação é posta em parágrafo
à parte e todo em caixa alta (maiúsculas). Não há indicação de aspas,
utilizadas normalmente para citações. O texto citado é iniciado
diretamente por um travessão que indica, normalmente, a fala de
uma personagem. Assim, a polêmica frase salta como se
pronunciada/gritada pela primeira vez pelo enunciador.
- ALI ESTÁ UM CRIOULO PETISTA QUE EU QUERO
QUE VOCÊS DÃO UMA SALVA DE VAIA NELE”.
“A frase [...] já seria um assombro”, define o narrador. E traduz
“um pandemônio sintático”. E destacando os pontos da ação
criminosa – “Do primeiro ‘que’ ao ‘nele’ final, passando pelo ‘dão’
em vez de ‘deem’ e à ‘vaia’ em vez de ‘vaias’, e a mais gritante, traição
da e pela linguagem, “salva de vaia” - conclui: “há atentados de
toda ordem contra a língua portuguesa”. E evoca a autoridade na
figura do “guardião” nacionalmente conhecido na mídia. Aí está
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reconhecida a vítima, o crime e a gravidade deste: “o professor
Paquale a nocaute.”
Entretanto, o narrador - ironicamente, gozador – encontra
uma linha de defesa contra o primeiro crime, o de racismo,
exatamente na linguagem e no termo perpetuar do mesmo. Acima
dos graves os erros principalmente sintáticos - indicativos de um
novo crime, contra a língua natural, mais grave pela amplitude já
que se trata do patrimônio mais genuíno de uma nação, ele aponta
uma agora não uma traição mas salvação da/pela linguagem. A
salvação vem da história da língua, do termo “criminoso” na língua.
E aí o autor exibe a sua cultura, discorrendo sobre a sua etimologia,
provavelmente desconhecida de muita gente, letrada ou não.
O narrador inicia o quarto parágrafo anunciando que crioulo,
na frase proferida por Roriz, não significa necessariamente negro.
Ressalte-se no texto de Pompeu o uso de marcas para diferenciar
usos de vocábulos em contextos distintos. O autor opõe “negro”
(marcado com aspas no texto original) a negro (sem aspas) para
indicar tempo e uso diferentes. O primeiro, com aspas, indica o uso
recente do termo com grande carga pejorativa; já o segundo, sem
aspas, se refere ao sentido lato da palavra.
Seguindo o seu raciocínio, vai ele à origem do termo: crioulo,
na origem, nada teria a ver com cor da pele, nem com África. Ele
proviria da evolução de “cria da terra”, melhor, de “criadouro”.
Ao longo dos usos, ocorreriam os fenômenos que a filologia
identifica como aférese e lambdacismo: criadouro > criaouro>
criaoulo> crioulo. Inicia o cronista seu argumento pelo sentido de
“filho da terra”. Se na América, indicaria o nascido no continente,
seja ele branco ou negro. Traz à cola a história do termo em países
hispano-americanos: indicaria o nascido não na Espanha, mas na
nova “terra”. Tanto que o “créole” em país de colonização francesa
significa o dialeto feito de mistura do francês com a língua local.
Está aí o argumento a favor do governador do Distrito
Federal: ao se referir àquela pessoa que ali o hostilizava chamou-o
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dignamente de “filho da terra”. Assim, o narrador promove um
enfraquecimento do campo semântico pejorativo que envolve o
vocábulo crioulo e apresenta a primeira correção semântico-sintática
para a frase em questão. O governador não teria utilizado a palavra
no sentido de negro, mas sim no de filho da terra. Ao promover esse
reparo, cria-se o sentido de valorização do indivíduo, além de
provocar uma identificação entre sujeito e nação, de indivíduo e
identidade. Ao fazer isto, com humor o narrador transfere para toda
a nação o sentimento de ofensa. Roriz não ofenderia apenas o
aposentado que estava presenciando ao pronunciamento na cidadesatélite de Brasília, mas ofenderia ao filho da terra que
metonimicamente equivale a todos os cidadãos brasileiros.
Juntando, pois, as correções no início listadas e o sentido
“recuperado” via etimologia, qual é a proposta do cronista?
- ALI ESTÁ UM FILHO DESTA TERRA, POR SINAL
PETISTA, PARA O QUAL PEÇO QUE VOCES DESTINEM
UMA SONORA VAIA.
Temos a primeira versão corrigida pelo narrador para a frase
de Roriz. Agora o leitor não se encontra mais frente à fala do
governador, mas sim diante da fala do cronista, fruto de uma leitura
a partir daquela. Outro ponto que merece destaque é que o narrador
desconsidera propositadamente o fato de a frase original ter sido
dita em comício, portanto usando a linguagem oral, e propõe a
correção com base nas regras da norma culta do português escrito.
Este deslocamento de oral a escrito marca a tentativa de se registrar
na história tal fato, uma vez que o registro escrito se mantém muito
mais forte e vivo ao longo dos anos, enquanto que a fala se perde e
se modifica.
Os elementos gráficos empregados no texto original
permanecem na nova forma. Note-se, porém, que o adjetivo petista
segue na frase, mas crioulo é substituído por uma expressão mais
geral e que, como já afirmamos anteriormente, representaria cada
um dos brasileiros. Entretanto, o adjetivo já não vem mais
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diretamente inserido após o substantivo como ocorre na frase do
governador (“crioulo petista”); agora aparecem os dois segmentos
distanciados e indiretamente relacionados pela expressão “[...], por
sinal, petista”. Em outras palavras, trata-se de uma informação
complementar que poderia ou não ser importante para todo o
contexto. Desta forma, ocorre o enfraquecimento do termo crioulo
já que seu sentido pejorativo foi desconsiderado, a ampliação da
abrangência da ofensa ao escolher a expressão “filho desta terra”
para substituir o vocábulo anterior e a permanência da palavra
“petista” no texto. A expressão “por sinal” é ambígua: tanto pode
apontar para um lado quanto para outro. Num diálogo, o
estranhamento se apresentaria como uma pergunta: “o que se quer
dizer?”. Ela só aponta uma relação. Poderíamos, inclusive, entender
que há aí uma equivalência: dizer “filho da terra” (ou seja, o nativo)
ou “d(esta) terra” ( ou seja, de gente que tira o sustento da agricultura
familiar) significa ser petista. Petista é o que provém do extrato social
mais humilde. Se se salva o crioulo, o inimigo político, não; a ele se
destina a vaia.
Uma brincadeira, como o próprio narrador afirma: “ Não
pegou?” “[...] soa forçada?” Uma brincadeira, com certeza.
Interessante, pela lição sobre a palavra crioulo. Ninguém pode negar
o uso corrente da palavra crioulo para indicar uma mestiçagem em
que se marca a presença, em qualquer dosagem, do elemento negro.
De forma pejorativa ou não. Só o contexto (talvez) poderá dizer. O
preconceito não encontraria lugar quando a “crioulidade” fosse
tomada simplesmente como traço distintivo exterior: como indicar
alguém anônimo numa turba heterogênea em todos os sentidos? O
preconceito desapareceria principalmente quando o crioulo fosse
capaz de chamar-se a si mesmo de crioulo.3
Neste momento, o narrador encerra a apresentação da primeira
linha de defesa e nos mostra uma outra linha. Esta segunda linha
está muito mais relacionada a elementos externos da crônica que a
primeira. Enquanto a primeira explicação se dá (ou se procurar dar)
em função de elementos internos e específicos de linguagem, a
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segunda se volta para elementos da realidade, quando ao Roriz
personagem começa-se a estabelecer uma relação mais forte com o
Roriz da realidade.
Dentro de seu papel de crônica, de ser híbrido, a crônica
informa a saída do anonimato do crioulo: “o governo do Distrito
Federal até identificou o destinatário da frase”. Note a utilização da
escala semântica para constituição da frase, em discurso indireto
livre: “até” revela uma gradação inclusiva, que menos fala das ações
tomadas pelo governo do que do esforço na argumentação. O
narrador repete as palavras do outro: “seria um certo Marinalvo
Nascimento”. Apesar do nome, de seu registro social, ele continua,
pelo contrário, no anonimato: afinal é só “um certo” Marinalvo
Nascimento4. Apesar de que fosse “cabo eleitoral do deputado
distrital Edimar Pirineus, atual secretário do Desenvolvimento
Econômico de Roriz”. E, desempenhando o papel de componentes
substituíveis paradigmaticamente, outro secretário do governo, da
Comunicação, Wellington Moraes, vem ao socorro e entorna mais
o caldo que já perdera a credibilidade pelo excesso dos pormenores:
“ O governador sempre brinca desse jeito com as pessoas simples.”
Está aí confirmado: crioulo, gente desta terra, de Brazlândia, gente
simples (e petista ?).
Sustentada em tais argumentos, a segunda linha de defesaadotada pelo “reu”- busca reforçar a ideia de brincadeira carinhosa
entre pessoas conhecidas. O narrador questiona tal explicação, e o
faz socorrendo-se do uso da língua: os opostos “negão” e
“brancão” como dificilmente permutáveis na prática social. Afinal,
historicamente e ideologicamente em que situação um negro
chamaria um branco de “brancão” como expressão de afeto? Da
mesma forma que soaria estranho um negro chamar alguém de
“brancão”, fora de propósito seria um branco usar uma camiseta
com a mensagem de “100% Branco”.
O imbroglio se complica ao pretender-se explicar a contradição
entre ser correligionário e ser petista. Se o ofendido era
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correligionário do governador, então, por que teria sido chamado
de petista? Propõe-se então a tese de falha no momento da
enunciação, Roriz deixara de pronunciar o advérbio de negação
“não” antes do adjetivo “petista”. Da mesma forma, ao dizer “salva
de vaias” queria ter dito “salva de palmas”: Equívoco talvez
explicável porque o ponto visado seria o conteúdo isotópico de
“salva” e “palmas” na expressão traída: a manifestação calorosa (bem
coerente com o destempero verbal de Roriz), ainda que tal desejo
tenha criado um produto estranho como “salva de vaia”. Ou seja,
com isso, nessa caminhada argumentativa chega-se ao ponto
nevrálgico da frase desencadeadora do processo do PT e da crônica
de Pompeu: chegamos ao processo mesmo, falho, falhado da própria
enunciação. O que equivale a dizer: do sujeito enunciador.
Diante de tal suposição, o narrador apresenta uma terceira
versão para a frase revisada, a única possível pela coerência lógica,
mas não da realidade dos acontecimentos:
- ALI ESTÁ UM FILHO DESTA TERRA, ALGUÉM
LONGE DE SER UM PETISTA, PARA O QUAL PEÇO QUE
VOCES DESTINEM UMA SALVA DE PALMAS.
A segunda correção mantém o caráter universal do sujeito
afetado pela ofensa com a permanência da expressão filho desta terra.
O adjetivo petista também se faz presente, mas desta vez os sentidos
são invertidos pelo narrador, não se trata mais de alguém petista,
temos agora alguém “longe de ser petista” e por complemento: este
alguém que não é petista merece receber uma salva de palmas.
Ao modificar o sujeito ofendido de petista para não-petista,
o narrador restaura a isotopia perdida nas duas primeiras versões (a
original do governador e a refeita pelo narrador) da frase. A ideia
contida na terceira versão é aparentemente diferente daquela exposta
na primeira, mas por negação traz a mesma carga ideológica. Ou
seja, se não é petista merece palmas, se for petista cabe a
demonstração pública, contrária às palmas (a reprovação e,
consequentemente, temos a figura das vaias).
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A conclusão do narrador é exemplar: “Roriz deve ser mesmo
condenado não por racismo, mas porque não sabe o que diz.” Num
movimento espiralado, partindo-se do produto – a frase mal
construída , a contra-argumentação da defesa – do crime de racismo
– faz um percurso extraordinário pelo absurdo – factual e lógico –
que só termina no comprometimento, não pelo crime duplo
cometido – contra o outro e contra a língua – mas do próprio sujeito.
Ao chegar à formulação correta, decorrente das argumentações
havidas, exatamente oposta à inicial, o que se evidencia é a completa
desqualificação do sujeito: na expressão, do conteúdo e pragmática.
Se não basta o percurso realizado para entender esse fato, o
socorro das informações sobre as incidências do mesmo tipo de
fenômeno na história política de Roriz têm a sua valia. E tanto uma
coisa como outra, quando veiculada pelo discurso de Pompeu e em
forma desse gênero – flexível, que acolhe qualquer ingerência
estilística, a bel prazer do enunciador que assim se diverte – acabam
descolando a história narrada do solo referencial do verídico para
só fazer valer o prazer do possível.
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www.senado.gov.br/noticias/opiniaopublica/inc/senamidia/n>. Acesso: 23
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COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: _____. A literatura no Brasil.
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Joaquim Roriz pede vaia a “crioulo petista”, e PT quer processá-lo. Folha
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MELO, José Marques de. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no
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Relatório referente ao Inquérito nº 328 – DF (2002/0011197-2). Supremo
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Veja o perfil de Joaquim Roriz, governador reeleito no Distrito Federal. Folha
Online. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/
ult96u41609.shtml>. Acesso: 23 set. 2010.
Notas
3
Recente quiproquó de mesma natureza envolveu o cantor negro Alexandre Pires, por ter-se
fantasiado de gorila, juntamente com amigos negros e não negros, numa brincadeira de que
participavam garotas igualmente negras e brancas. Segundo ele, simplesmente se lembrou de
King Kong..
4
De acordo com informações colhidas do Relatório referente ao Inquérito nº 328 – DF (2002/
0011197-2), o nome do aposentado “ crioulo petista” se chama na realidade Marinaldo Marcelino
do Nascimento.
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DE LOS HABITANTES DEL
NORESTE DE MÉXICO: LA
SIMBÓLICA DE LAS DOCE
VERDADES DEL MUNDO
THE FICTIONAL PRODUCTION
BY NORTHEASTERN
MEXICAN INHABITANTS: THE
SYMBOLIC IN LAS DOCE
VERDADES DEL MUNDO
Gabriel Ignacio Verduzco Argüelles
(UANL-Mx)1
María Eugenia Flores Treviño
(UANL-Mx)2
1
Estudiante de doctorado. Área de Estudios de Posgrado. Facultad de Filosofía y Letras.
Universidad Autónoma de Nuevo León, México.
2
Profesora Investigadora. Área de Estudios de Posgrado. Facultad de Filosofía y Letras,
Universidad Autónoma de Nuevo León, México. [email protected]
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DOCE VERDADES DEL MUNDO
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RESUMEN: La tradición oral difunde con todo esplendor y
crudeza, los valores, temores y complejos más profundos de la
sociedad. Los relatos orales, plenos de imágenes, ritos, tradiciones
y cargas simbólicas, caracterizan de manera profunda los mitos
contenidos en lo más hondo del imaginario popular. De entre
estos relatos destacan Las doce verdades del mundo. Las doce verdades
son una serie acumulativa de temática religiosa cristiana que, según
la tradición popular del estado mexicano de Coahuila, sirve como
ritual para atrapar brujas, y su forma literaria se remonta a la estilística
y a la mnemotecnia semítica. Se propone como hipótesis que el
contexto vital condiciona la producción simbólica en los relatos
orales sobre la brujería, y que estos relatos emplean símbolos y
estructuras textuales, que los hablantes emplean de modo peculiar
en el relato, y que apelan a la conciencia religiosa del oyente.La
investigación3 pretende mostrar los símbolos que conforman las
llamadas Doce verdades documentadas en 19 testimonios narrativos
distintos de las mismas y cómo el contexto en el que aparecen, da
razón de dicha construcción textual de las Doce verdades.
PALABRAS CLAVE: Símbolo. Brujería. Oralidad. Ficción.
ABSTRACT: The oral tradition spreads, with splendour and harshness, the values, fears and the deepest complex of society. The
oral stories, full of images, rites, traditions and symbolic charges,
deeply characterize the contents of the myths in the deepest of the
popular imaginary. Amongst these stories Las doce verdades del mundo
can be distinguished. Las doce verdades are a christian religious accumulative series that, according to the popular tradition of the
Mexican state of Coahuila, is used a ritual to catch witches, and its
literary form goes back to stylistic and mnemonics semitics. It is
proposed, as a hypothesis that the vital context is a condition of
the symbolic production in oral narratives about witchcraft, and
these narratives use symbols and textual structures, that speakers
use peculiarly in oral story, and they appeal to the listener’s religious
conscience.The investigation pretends to show the symbols that
form the so called Las doce verdades documented in 19 different
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narrative testimonies of the same and how the context in wich
they appear, explains the textual construction of Las doce verdades.
KEYWORDS: Symbol. Witchcraft. Oral. Fiction.
Introducción
En el presente trabajo se estudian los relatos orales sobre
brujería en Coahuila, México. Se considera que ésta es una
investigación fronteriza, en cuanto que abarca procesos de
ficcionalización y construcción estética en la narrativa, realizados en
la lengua oral.
El principal objetivo de este trabajo es mostrar los símbolos
que conforman las llamadas Doce verdades y cómo el contexto en el
que aparecen da razón de dicha construcción textual. Para este
trabajo se recopilaron 19 versiones de diferentes géneros (canciones,
letanías, publicaciones, relatos y otros) de Las doce verdades4, ya que el
fenómeno de la variabilidad textual en un conjuro mágico resulta
interesante en virtud de la eficacia de dicha invocación, por lo que
exigirá un trabajo de crítica textual, que por ahora no es el objetivo
principal de este trabajo.5
Las doce verdades son una serie acumulativa de temática religiosa
cristiana que, según la tradición popular de la región estudiada, sirve
como imprecación y se expresa para atrapar a las brujas. Es también
un juego memorístico para aprender las verdades fundamentales
cristianas, y su forma literaria se remonta a la estilística y a la
mnemotecnia semítica.La recitación de Las doce verdades como conjuro
implica un ritual. Según la tradición, quien reza Las doce verdades para
capturar una bruja o brujo ha de tejer un nudo en un hilo negro
bendito, en un cordón, en un paliacate6, o en algo parecido que se
tenga a mano, al tiempo que va enunciando cada verdad, de la
número uno, a la doce. Y luego al revés, mientras dice Las doce verdades
de la número doce a la uno, va deshaciendo los nudos del cordón.
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Los símbolos en la narración oral
Lurker (2000, p. 43) explica que los relatos orales asumen la
forma de mito o bien de cuento popular o tradicional dependiendo
de cómo organiza, narrativamente, la producción simbólica. Esta
clase de textos, en mayor o menor medida, queda fuera del ámbito
científico, experimentable y replicable, pues los símbolos narrados
en estos textos, considerados aisladamente, aparecen
incomprensibles y sin sentido. Por su parte, Kirk (1985, p. 262-263)
dice que estos relatos hablan de ese mundo secreto, enigmático y
maravilloso que se escapa a los métodos de la ciencia. Describen
lugares y situaciones donde espacio y tiempo son coordenadas que
pierden fuerza y vigencia, donde se impone lo mágico y misterioso
y pueden adquirir una triple función: la de entretener, la de revalidar
prácticas, instituciones o costumbres, o la de explicar algo. Así, los
cuentos ejemplifican una fantasía que implica la satisfacción de los
deseos de una sociedad, y sus personajes no tienen nombres propios,
sino más bien son personajes genéricos y su trama se remite a un
tiempo indeterminado pero histórico, en el pasado no distante y
suele resolverse mediante el empleo del ingenio o de trucos de algún
personaje (KIRK, 1985, p. 51. 53).
Por su parte, los mitos presentan personajes específicos y las
relaciones entre ellos son muy concretas, vinculados a una región
determinada; no están atados al uso del ingenio para resolver los
conflictos; emplean elementos sobrenaturales de forma abundante
y natural; y el tiempo siempre es ahistórico, es un momento antes de
que comience el mismo tiempo (KIRK, 1985, p. 52). Kluckhohn
(1942, p. 57) explica que la conformación simbólica de los mitos
funciona como un paliativo, socialmente aceptado, de ansiedades,
miedos, enfermedades y problemas importantes, mediante su
repetición, transmisión y ritualización.
En esta misma sintonía, Cardero (2008, p. 218) llama intersignos
a los instrumentos adecuados para trasladar creencias y hacerlas
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accesibles de ser tratadas, especialmente cuando remiten a las
situaciones aterradoras de la vida, como la muerte y lo sobrenatural.
Estamos de acuerdo con Kirk (1985, p. 261), quien señala que
es posible que los símbolos estructurados en los relatos míticos
[…] posean un significado en su propia estructura, que inconscientemente
puede que represente elementos estructurales de la propia sociedad en
la que se originaron o actitudes típicas del comportamiento de los
propios creadores de los mitos. Pueden también reflejar ciertas
preocupaciones humanas específicas, que incluyen las que las
contradicciones entre los instintos, deseos y las inconmovibles realidades
de la naturaleza y la sociedad pueden producir.
Así pues, el símbolo sería universal, común a cualquier ser
humano, independientemente de su cultura, cosmovisión, época y
contexto vital en que se encuentre.
El acontecimiento simbólico sobreabunda en significado,
nunca se agota por completo. Continuamente, el significado alcanzado
remite a otro aspecto que queda pendiente. El símbolo admite
siempre una interpretación que, pese al conocimiento empírico
limitado y fragmentario, deja una comprensión suficiente para vivir
(BEUCHOT, 2004, p. 143). De esta forma, los símbolos no sólo
remiten a lo que significan, sino que lo mismo que significa vuelve a
conducir y a llevar a otra cosa, muchas veces oculta. Así transgrede
los límites del sentido, que son, para cada ser humano, los límites de
la cultura y permite remontarlos.
Con Beuchot (2004, p. 145) se afirma que es fundamental
estudiar, analizar y explicar el contexto en el que nace y se genera el
símbolo. El símbolo como tal no se explica, pero la comprensión
del contexto que lo acuña, de las condiciones en que aparece y las
relaciones a las que apunta, sí son sujetos de análisis y explicación.
La comprensión del contexto será fundamental, no solo para captar
lo que el símbolo dice, sino para la posibilidad de su interpretación.
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Contexto del corpus de la investigación
Así como el contexto del Ejad mi Iodea es el memorial
fundacional que busca mantener viva la memoria del judaísmo, el
contexto del relato de la habitante de la región de Saltillo y “Tequila”
(2009), es el del conjuro para atrapar a las brujas.
Para Fuentes Aguirre (2004), Las doce verdades sirven para
conjurar espantos y, en la novela Telares (2002), son también un
conjuro contra el mal. También “Las palabricas retornadas” (1993)
sirven como fórmula de expulsión de demonios. Las doce verdades,
según las “Alabanzas…”, son recitación de la doctrina para alabanza.
John Cuellar (2005) señala que son base firme de la religión, lo que
las coloca en el ámbito catequético-doctrinal, al igual que la letra de
“La baraja bendita” (1997) y “Las palabras retornadas” (2008). En
este ámbito está también Las doce palabras (2002), que es una mezcla
de recitación catequética con sentido lúdico, por ser una canción.
En este tono, Las doce verdades del mundo de la Casa Cristo Rey tienen
un sentido apologético.
Para Bryant “Eduardo” Holman (2002) forman parte de los
rezos de un ritual para curar a una persona de sus males. Igual uso
tienen “Las palabras retornadas”, para curar el “mal de ojo”. “Las
palabricas retornadas” (1993) se rezan a un agonizante para que los
demonios no se lleven su alma. Las doce verdades (2005) en Zapotitlán
se rezan cuando se sepulta a una persona; e Ignacio Valdés (2007)
dice que es el difunto quien se encuentra en algún momento con el
Diablo, a quien tendrá que vencer mediante este rezo. “Las doce
palabras redobladas” (1988) son un rezo para el fin del año a las
doce de la noche. Sin embargo, la estructura de las mismas las
asemeja a las del acertijo diabólico anterior; y el texto de la canción
publicada por Bernal (2010) parece estar en un sentido lúdico.
Como existen variantes de este ritual, a continuación se
enumeran Las doce verdades del mundo conforme a una posible forma
original:
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I.
Un solo Dios;
II.
Dos Tablas de la Ley;
III. Tres personas divinas;
IV. Cuatro evangelios;
V.
Cinco llagas;
VI. Seis candeleros;
VII. Siete palabras;
VIII. Ocho coros;
IX. Nueve meses;
X.
Diez mandamientos;
XI. Once mil vírgenes;
XII. Doce apóstoles.
Los símbolos de Las doce verdades
En la exposición que se hace a continuación se revisan las
variantes de cada una de las Verdades, pues este fenómeno responde
al contexto en que se presenta cada versión. Revisar cada una de
ellas permite un acercamiento a la forma doctrinal cristiana que está
en el principio de cada una de las Verdades y justifica la elección de
una para el listado que se presentó como posible forma original. Se
abordan los elementos religiosos y los significados del cordón y de
los nudos. No es propósito de este trabajo detallar el simbolismo
de cada número.
i) Los simbolismos religiosos para cada número.
Con respecto al número uno: Un solo Dios.
a) La Casa Santa de Jerusalén. En la tradición bíblica
judeocristiana remite al Templo de Jerusalén, que en esta misma
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tradición es el signo visible de la presencia de YHWH y su gloria
(cfr. Ez. 10, 18-22; 1Re. 8, 10-13; Sal. 132, 13-14; 68, 17). En la
Edad Media, la expresión designa al Santo Sepulcro y a los Lugares
Santos y, por extensión, a Palestina. Esta referencia tiene relación
con la confesión judía de “Un solo Dios”, que en la versión cristiana
es Dios Padre.
b) Un solo Dios. El monoteísmo es la afirmación fundamental
del judaísmo. El Templo de Salomón y el Segundo Templo, tras el
exilio en Babilonia, simbolizan a Dios y su gloria. Esto empataría
este significado con el del inciso a).
c) La Virgen pura. Esta expresión doctrinal, en armonía con
las otras once que expresa Calvarrasa de Arriba, tiene un sabor
catequético fuerte. Si bien la referencia uno-Virgen no es tan fuerte
o evidente como la de uno-Dios, el tema de la Virgen María sí es
uno de mayor polémica y, por tanto, de mayor necesidad de
aprendizaje catequético en el horizonte cristiano católico, y más en
el ambiente de la España rural.
d) La expresión “a la una más claro el sol que la luna” no tiene
referente religioso. Parece ser, por el carácter empírico de la
expresión, un referente de tipo agrícola o rural.
Con respecto al número dos: Dos tablas de la Ley.
a) Las dos tablas de Moisés o de la Ley. Remite al texto de Éxodo
24, 12. 34, 1-5, donde Moisés labra dos tablas de piedra que
contienen la Ley de la Alianza que YHWH entrega en el Sinaí a Israel.
b) El Antiguo y Nuevo Testamento. En la tradición cristiana, es la
división que se hace de los libros considerados inspirados por Dios.
La expresión “testamento” significa alianza y esto lleva a la
consideración de una primera alianza entre Dios e Israel, que será
revocada para hacer una nueva y definitiva alianza entre Dios y la
humanidad a través de Jesuscristo. Sin embargo, algunos teólogos
contemporáneos prefieren el uso de la terminología Primer y
Segundo Testamento (ZENGER, 2000).
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Con respecto al número tres: Tres personas divinas.
a) Las “tres trinidades”. Dado el contexto catequético cristiano
de los enunciados, parece existir un error en la enunciación de esta
verdad, ya que la doctrina cristiana habla de tres personas en una
trinidad. Sin embargo, dada la connotación memorística de las Doce
verdades, podría haber una alusión a “trinidades” de verdades
doctrinales populares: el Padre el Hijo y el Espíritu, las tres personas
de la Trinidad; Fe, Esperanza y Caridad, las virtudes teologales;
Bautismo, Confirmación y Eucaristía, los sacramentos de iniciación;
Padrenuestro, Avemaría y Gloria, las oraciones del cristiano;
Gozosos, Dolorosos y Gloriosos, los misterios del Rosario7, Jesús,
María y José, los dulces nombres de la Sagrada Familia y Pedro,
Santiago y Juan, los apóstoles “predilectos” de Jesús, entre las triadas
más conocidas.
b) Tres divinas personas y/o Santísima Trinidad. Remite a la
expresión doctrinal cristiana de la Trinidad, fundamento de la fe
cristiana. En el siglo IV, el primer concilio de Constantinopla, en el
año 381, declaró solemnemente la definición de la Trinidad como
ìwá ïPówá êáv ôñåÖò Qðïóôqóåéò, una sustancia en tres personas
(DENZINGER, 2000, pp. 110-111). Las tres divinas personas de la
Santísima Trinidad son el Padre, el Hijo y el Espíritu Santo.
c) Las tres Marías. En la tradición popular cristiana, son las
mujeres que acompañan a Jesús durante su caminar hacia el Calvario.
Las Marías son María Magdalena, María la madre de Santiago y de
José y la madre de los de Zebedeo o Salomé (Mc. 15, 40; Mt. 27,
56); El evangelio de Juan menciona a su madre (de Jesús) y la hermana
de su madre, María, mujer de Cleofás, y María Magdalena (Jn. 19,
25). Lucas solo menciona de forma genérica que las mujeres que
habían ido con Jesús desde Galilea estaban allí, en el Calvario (23,
49) y los nombres son, al parecer Juana, mujer de Cusa, Susana y
María Magdalena (cfr. Lc. 8, 2). Así pues, las tres Marías son cuatro:
la Virgen María, María Magdalena y María la madre de Santiago y
de José y María, mujer de Cleofás, salvo que estas dos últimas sean la
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misma mujer. Hay que destacar también que con este nombre de
“Tres Marías” se conoce a las estrellas que conforman el cinturón
de Orión: Mintaka, Alnilam y Alnitak. En la mitología egipcia estas
estrellas constituían el lugar de reposo del alma de Osiris, el Dios
del submundo y un símbolo de creatividad y de la continuidad de la
vida. Robert Bauval y Adrian Gilbert (1995) dicen que las pirámides
de Gizeh son un reflejo de las estrellas del cinturón de Orión, dada
la idea de la pirámide como lugar de tránsito entre la muerte y la
vida. Como el testimonio del que procede esta “verdad” menciona
varias referencias de tipo agrario, no sería de extrañar que la alusión
sea a estas estrellas, y a la constelación en su conjunto.
d) Los tres patriarcas: Abraham, Isaac y Jacob. En el
judeocristianismo, los patriarcas son aquellos personajes depositarios
de las promesas de Dios a Israel para constituirlos como el pueblo
de su propiedad. Abraham (Gn. 12, 1-3), Isaac, hijo de Abraham
(Gn. 24, 11) y Jacob, hijo de Isaac (Gn. 28, 13-15) son el fundamento
de Israel como pueblo y como nación. En buena parte de los libros
de la Torá, Dios es presentado como “el Dios de Abraham, de Isaac
y de Jacob” (Ex. 3,6), como si ese fuera su nombre propio.
Con respecto al número cuatro: Cuatro evangelios.
a) Cuatro evangelios. Conforme a la tradición cristiana antigua,
como lo consignan Léon-Dufour (1992, pp. 292.329.361) y Carrillo
Alday (1992, p. 35) los cuatro evangelios considerados canónicos o
inspirados son los atribuidos a Marcos (ca. 65-70), Mateo (ca. 8090), Lucas (ca. 70-90) y Juan (ca. 90-100).
b) Cuatro evangelistas. Como ya se refirió en el inciso anterior,
los cuatro evangelistas son estos personajes a quienes la tradición
cristiana antigua les ha atribuido la autoría de dichos escritos. Papías,
hacia el 125, habla de Marcos como el intérprete o ñìåíåõôuò de
Pedro (LÉON-DUFOUR, 1992, p. 286) y de quien escucharía la
predicación que luego puso por escrito (cfr. He. 12, 12. 1Pe. 5, 13).
El mismo Papías (LÉON-DUFOUR, 1992, p. 323) explica que
Mateo es el apóstol publicano (cfr. Mt. 10, 3), identificado también
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como Leví (cfr. Mc. 2, 14). Desde la segunda mitad del siglo II,
explica Léon-Dufour (1992, p. 356), el canon de Muratori señala a
Lucas, el médico acompañante de Pablo en sus viajes misioneros
como autor del tercer evangelio (cfr. Col. 4, 14. He. 16, 10-17). El
cuarto evangelio se le atribuye a Juan, uno de los Doce apóstoles
desde los últimos decenios del siglo II, y a quien se suele identificar
con el “discípulo amado” (cfr. Jn. 13, 23. 21, 24), que si bien, no es
el autor material de la última redacción del texto, sí está en la base
del mismo (CARRILLO ALDAY, 1992, p. 37).
c) Cuatro témporas. En la tradición religiosa anterior a las
reformas del Concilio Vaticano II de 1963, las témporas eran días
reservados por la Iglesia para el ayuno y abstinencia al principio de
cada estación del año (STRAUBINGER, 1958, p. 290). Las témporas
fueron una adaptación a las prácticas romanas de ofrecer sacrificios
para lograr cosechas abundantes. La Iglesia agregó la idea de la
propagación de la vida sobrenatural por medio del sacerdocio y
por ello las témporas fueron días de preparación para aquellos que
se ordenarían sacerdotes. Las témporas tenían como objetivo el
consagrar cada inicio de estación a Dios, pedir por buenas cosechas
y agradecer las anteriores. Las témporas se celebraban los miércoles,
viernes y sábados siguientes al tercer domingo de adviento, al primer
domingo de cuaresma, al domingo de Pentecostés y al 14 de
septiembre (STRAUBINGER, 1958, p. 290).
d) Las cuatro matriarcas: Sara, Rebeca, Raquel y Lea. Las matriarcas
son el complemento femenino de los tres patriarcas que dan origen
a Israel. Sara, esposa de Abraham y madre de Isaac (Gn. 17, 15-16),
Rebeca, esposa de Isaac y madre de Jacob y de Esaú (Gn. 25, 19-26)
y Raquel y Lea, esposas de Jacob y madres de sus 12 hijos, de donde
saldrán las tribus de Israel (Gn. 35, 22b-26). Las cuatro matriarcas
son también fundamento de Israel como pueblo depositario de las
promesas de Dios.
Con respecto al número cinco: Cinco llagas.
a) Cinco llagas. Esta expresión alude a las heridas del
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Crucificado-Resucitado cuando se muestra a los apóstoles en la
noche del primer día de la semana, el domingo de resurrección,
mostrando las manos, los pies y el costado con las huellas de los
clavos y de la lanzada recibidas en la crucifixión (cfr. Lc. 24, 39-40.
Jn. 20, 20. 27). En la Edad Media, en el siglo XII, Bernardo de
Claraval aseguró tener una revelación en la que el mismo Jesucristo
le habló de una herida en su espalda “honda tres dedos, que se me
hizo llevando la Cruz; esta me ha sido de mayor pena y dolor que
todas otras; la cual consideran poco todos los hombres por no serles
conocida: pero tú tenla en veneración” (LÓPEZ, 1998). El papa
Eugenio III a instancias de san Bernardo concedió a quien dijese tres
veces el Padrenuestro y Avemaría en honra de la llaga de la espalda
de Jesucristo, tres mil años de indulgencia (LÓPEZ, 1998). Otra
piadosa leyenda medieval cuenta que santa Brígida de Suecia deseaba
saber cuántos azotes recibió Jesús en su Pasión. Entonces Cristo se
le apareció y le dictó quince oraciones para rezarlas diariamente
durante un año, junto con un Padrenuestro y un Avemaría por cada
una. “Al terminar el año, le dijo, habréis venerado cada una de mis
llagas” (LÓPEZ, 1998).
b) Cinco mil vírgenes. No existe ninguna relación a tradiciones
religiosas sobre cinco mil vírgenes. Esta expresión parece ser una
corrupción de la expresión “once mil vírgenes”, de la cual sí hay
una leyenda europea antigua y de la que se hablará en el apartado
con respecto al número once.
c) Los cinco libros de la Torá. A partir del año 70, con la
destrucción de Jerusalén por Tito, los rabinos y sabios judíos se
reunieron en Jamnia para determinar cuáles serían los libros que
habrían de considerarse revelados por Dios y que no estuvieran
“contaminados” por influencias paganas o del naciente cristianismo.
Uno de los criterios fundamentales fue desechar los textos escritos
en griego y considerar solo aquellos escritos en hebreo. La Biblia
Hebrea quedó constituida en tres partes: La Ley o Torá, Los Profetas
o Nebiím y Los Escritos o Ketubim. La Torá se llamó en griego
Pentateuco y se conformó por “En el principio” o Génesis, “Estos
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son los nombres” o Éxodo, “Llamó YHWH a Moisés” o Levítico,
“En el desierto” o Números y “Estas son las palabras” o
Duteronomio (UBIETA, 1998, p. XII).
Con respecto al número seis: Seis candeleros.
a) Seis candeleros, candelabros, candelas, candelarias o velas. Al parecer,
la referencia remite a la liturgia eucarística del rito latino-romano
anterior a la reforma litúrgica de la constitución Sacrosanctum Concilium
del Concilio Vaticano II en 1963, en la que se mandaba que en el
altar mayor de las iglesias se encendieran seis cirios para la
celebración de la misa mayor (STAUBRINGER, 1958, p. 195). El
testimonio de Atotonilco añade que los seis candeleros están “en la
Iglesia”, reafirmando lo anterior, así como el testimonio de John
Cuellar que explicita que “arden en el altar para celebrar la misa
mayor”. Por su parte, Ignacio Valdés ubica los seis candeleros en
Galilea, Fabiola Ruiz en Roma, y Morote 2 en Belén, muy
probablemente en alusión a las llamadas “Iglesias Madre” de la
antigua cristiandad, por ser Palestina el lugar de donde salió Jesucristo
a su predicación o Roma la sede de Pedro.La variante de Morote 2
sobre las hachas que ardieron en el monte de Galilea, puede ser una
alusión al imaginario popular del descenso de Jesús de la cruz en el
monte Calvario, como aparece en abundante iconografía, pero sin
mayor referente documental.
b) Seis mandamientos. No existe ninguna relación a tradiciones
religiosas sobre seis mandamientos. Esta expresión parece ser una
corrupción de la expresión “diez mandamientos”, de la que sí hay
referencias y se hablará de ellas en el apartado con respecto al número
diez.
c) Los días que pasó Dios Nuestro Señor para crear todo lo que en
materia poseemos. Esta “verdad” remite al relato de la creación
contenido en el Génesis (1, 1-31), donde, en un esquema de seis
días, Dios separa la luz y la oscuridad, las aguas y la tierra, crea las
diferentes especies de plantas y de animales y por último al ser
humano.
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d) Los seis tratados de la Mishná: Zeraim (semillas), Moed (fiestas),
Nashim (mujeres), Nezikín (daños), Kodashím (cuestiones sagradas), Toharot
(pureza). Los fariseos reconocían una Torá escrita y una Tora oral.
Esta última, paulatinamente, irá adquiriendo un carácter divino y se
le considerará dada a Moisés también en el Sinaí. En los siglos
posteriores se plasmará por escrito en la Mishná, que junto a su
comentario, la Quemará, constituirá la parte mayor del Talmud,
compilación de la ley oral de los judíos. Mishná, del hebreo
shaná=repetir, es el texto del Talmud, compilado alrededor del siglo
II-III d.C. por Rabí Yehudá. Pone por escrito tanto la práctica de la
ley, como la doctrina jurídica y moral enseñada por los rabinos.
Consta de 6 grandes secciones u órdenes (sedarim). Cada orden con
un número variado de tratados (masekot), en total 63, y cada tratado
subdividido en capítulos (peraquim), en total 523 (JUNCO, 2008,
pp. 132. 265).
Con respecto al número siete: Siete palabras.
a) Siete palabras. Esta expresión remite a los logia de Jesús en la
cruz, que entre los cuatro evangelios canónicos dan un total de siete
dichos: 1) “Padre, perdónalos porque no saben lo que hacen” (Lc. 23,
34); 2) “Hoy estarás conmigo en el paraíso” (Lc. 23, 43); 3) “Mujer,
ahí tienes a tu hijo. Hijo, ahí tienes a tu madre” (Jn. 19, 26-27); 4)
“Dios mío, Dios mío, ¿por qué me has abandonado?” (Mt. 27, 46); 5)
“Tengo sed” (Jn. 19, 28); 6) “Todo está consumado” (Jn. 19, 30); 7)
Padre, en tus manos encomiendo mi espíritu” (Lc. 23, 46). Son una
devoción propia del tiempo de la semana santa, especialmente del
Viernes Santo (JACOBO, 1989, p. 156-161), en el que se acostumbraba
realizar el “sermón de las Siete Palabras”, haciendo reflexiones y
exhortaciones morales a partir de cada uno de estos logia.
b) Siete gozos. Los siete gozos de la Virgen es una devoción
franciscana parecida al rosario. Se remonta al siglo XV y está en el
origen de la corona de siete misterios que muchos franciscanos y
franciscanas llevan colgada en el cordón (GÁLVEZ, 2007). Primer
gozo: El ángel Gabriel anuncia a María el nacimiento de Jesús (cfr.
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Lc 1,30-31.38); Segundo gozo: María visita a su pariente Isabel (cfr.
Lc 1,39-42); Tercer gozo: Jesús nace de la Virgen María (cfr. Lc 2,67); Cuarto gozo: Unos magos de Oriente adoran al niño Jesús en
Belén (cfr. Mt 2,1.11); Quinto gozo: María y José encuentran al niño
Jesús en el Templo (cfr. Lc 2,43.46.48-49); Sexto gozo: Jesús resucita
victorioso de la muerte y se aparece a los suyos (cfr. Hc 1,14; 2,1-4);
Séptimo gozo: María es elevada al cielo y coronada como reina y
primicia de la humanidad redimida (cfr. Ap 11,19; 12,1).
c) Siete elementos. En la tradición alquímica los siete elementos
están vinculados a los cuerpos celestes: Sol-oro, Luna-plata,
Mercurio-mercurio, Venus-cobre, Marte-hierro, Júpiter-estaño, sin
olvidar que el siete simboliza totalidad: siete elementos son la
totalidad de lo creado, y siete planetas que los reflejan son todo el
universo (GHEERBRANT, 2007, p. 943).
d) Siete cielos. En la tradición judía talmúdica existen siete cielos,
cada uno con su jerarquía, sus estrellas y ángeles; según el Zohar
(2002, p. 32) son Vilón, Rakía, Shejakim, Zevul, Ma’ón, Majón y Aravot,
que son usados como metáfora para describir estados espirituales.
San Pablo hace una referencia velada a esto en 2Co. 12, 2 al hablar
de un arrebato al tercer cielo.
e) El séptimo día que impuso de descanso después de haber logrado su
propósito. Esta “verdad” remite al texto de Génesis 2, 2-3 en el que se
narra que al concluir los seis días de la creación, YHWH descansa y
santifica el séptimo día. Con base en los estudios bíblicos, los
exegetas coinciden en señalar un esquema llamado “sacerdotal” en
este relato de la creación, explicando así el sentido sagrado del shabbat
en la tradición judía, aunque no se menciona aquí por ese nombre y
a que el sábado será impuesto en el Sinaí como señal de la Alianza
(cfr. Ex. 31, 12-17) (CLIFFORD, 1990, p. 456).
f) Los siete días de la semana que presenta el Ejad no tienen
necesariamente un sentido religioso, salvo el esquema creacional
escrito en Gn. 1-2, 4a y que pertenecería al llamado documento
yahvista –J- (UBIETA, 1998, p. 7).
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Con respecto al número ocho: Ocho coros.
a) Ocho altares. No existe una referencia religiosa clara a ocho
altares. Podría ser, pero de forma muy forzada, una alusión a las
siete iglesias, y sus respectivos altares, mencionadas en el libro del
Apocalipsis (cfr. Ap. 2, 1-3, 22) y el octavo sería el altar del cielo
mencionado ya en el Canon Romano hacia la primera mitad del
siglo III (RADECKI, 1995).
b) Ocho coros. No hay referencia religiosa precisa a la expresión
“ocho coros”. Podría ser una forma corrupta de los “nueve coros”
del Pseudo Dionisio, pero Cipriano de Cartago (1986, pp. 626-627)
escribe, en su Tratado sobre la muerte que
Allí está el coro celestial de los apóstoles, la multitud exultante de los
profetas, la innumerable muchedumbre de los mártires, coronados por
el glorioso certamen de su pasión; allí las vírgenes triunfantes, que con el
vigor de su continencia dominaron la concupiscencia de su carne y de su
cuerpo; allí los que han obtenido el premio de su misericordia, los que
practicaron el bien, socorriendo a los necesitados con sus bienes, los
que, obedeciendo el consejo del Señor, trasladaron su patrimonio terreno
a los tesoros celestiales. Deseemos ávidamente, hermanos muy amados,
la compañía de todos ellos.
Posteriormente, la llamada letanía lauretana termina con lo
que podrían ser estos ocho coros: 1) ángeles; 2) patriarcas; 3) profetas;
4) apóstoles; 5) mártires; 6) confesores; 7) vírgenes y 8) santos.
c) Ocho angustias. No hay referencia religiosa precisa a la
expresión “ocho angustias”, parece ser una forma corrupta de la
tradición piadosa de los “siete dolores de María”. Inspirada en las
tradiciones evangélicas de la Pasión, la figura de la Madre Dolorosa
sirvió como elemento de piedad y devoción en las celebraciones de
la Semana Santa. De ahí, y como correlato de los siete gozos de
María, nace la tradición de los siete dolores de María, promovida
desde la Edad media por los Servitas y aprobada para la iglesia
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latina en 1817: 1) La profecía de Simeón (cfr. Lc. 2, 34-35); 2) la
huída a Egipto (cfr, Mt. 2, 13-14); 3) La pérdida del niño Jesús en el
Templo (cfr. Lc. 2, 48); 4) el via crucis de Jesús (cfr. Mt. 27, 31ss et
par.); 5) María al pie de la cruz (cfr. Jn. 19, 25); 6) El descendimiento
del cuerpo de Jesús de la cruz (cfr. Mt. 27, 57ss et par.); 7) Jesús es
sepultado (cfr. Mt. 27, 60 et par.). (STAUBRINGER, 1958, p. 184).
En la tradición japonesa del Bushido existen ocho angustias: 1) vivir,
2) envejecer, 3) enfermarse, 4) morir, 5) la despedida de las personas
que se ama; 6) el encuentro con un contrincante malvado o un jefe
regañón; 7) la angustia de no poder apropiarse de lo que se quiere,
cosas como el poder, el estatus, una buena nota, un amigo o una
amiga que no te corresponda y 8) el hostigamiento por las pasiones
ardientes y deseos pecaminosos (NAKAMURA, 2009, pp. 4-5), pero
no parece ser esta la referencia de la “verdad”.
d) Ocho gozos. No hay referencia religiosa precisa a la expresión
“ocho gozos”, parece ser una forma corrupta de los “siete gozos”
de la corona franciscana.
e) La circuncisión de Jesucristo al octavo día de vida. Esta verdad
hace referencia al texto del evangelio de Lucas (2, 21) donde se narra
que, conforme a la ley judía, todo varón había de ser circuncidado a
los ocho días de nacido como signo de pertenencia al pueblo de la
Alianza (cfr. Gn. 17. Lv. 12, 3).
f) Ocho los días de la circuncisión. Conforme al judaísmo, la alianza
que Dios hace con Abraham queda sellada en la carne mediante la
circuncisión de él y de todos los varones de su familia y grupo (Gn.
17). Después, la Ley de Moisés mandará que todo varón israelita sea
circuncidado a los ocho días de nacido Lv. 12, 3.
Con respecto al número nueve: Nueve meses.
a) Nueve meses. Si bien esta no es una afirmación religiosa como
tal, en virtud de que la gestación humana tiene un periodo de nueve
meses, desde el contexto religioso cristiano en que se encuentra es
una reafirmación de la naturaleza humana de Cristo, verdadero
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hombre, consbustancial a la humanidad -Aìïï{óéïí !ìÖí ôxí áPôxí
êáôp ôtí íèôñùðyôçôá, êáôp ðqíôá Eìïéïí !ìÖí ÷ùñvò ìáñôwáò-, como
lo señaló el Concilio de Calcedonia en 451 (DENZINGER, 2000,
pp. 162-163). En México, la tradición popular de origen colonial
conocida como “posadas” rememora, durante nueve días las
andanzas de José y María antes del nacimiento de Jesús en un establo
en Belén. Estos nueve días, bien pueden ser la simple referencia al
novenario de Navidad o a los nueve meses de gestación.
b) Nueve coros. La jerarquía celeste, conforme al Pseudo
Dionisio en el texto ðåñv ôÆò oPñáíwáò 1åñáñ÷wáò, está
conformada por tres triadas de coros: 1) serafines, querubines y
tronos; 2) virtudes, dominaciones y potestades; 3) ángeles, arcángeles
y principados. Estas clasificaciones son propias del judaísmo y de la
mitología babilónica. En la Biblia con frecuencia se les menciona a
todos ellos (cfr. Gn. 3, 24. 28, 12 Is. 6, 2. Col. 1, 16.).
c) Nueve gozos. No hay referencia religiosa precisa a la expresión
“nueve gozos”, parece ser una forma corrupta de los “siete gozos”
de la corona franciscana.
d) Nueve cielos. No hay referencia religiosa precisa a la expresión
“nueve cielos”, parece ser una forma corrupta de los “siete cielos”
del Zohar. La única referencia directa está en Dante, cuando este
habla del Paraíso en la Divina Comedia, como estructurado en las
nueve esferas del sistema celestial descrito por Ptolomeo: siete de
los planetas, el de las estrellas fijas y el del Primer Motor (DÍAZ
PAZOS, 2008).
Con respecto al número diez: Diez mandamientos.
a)Diez mandamientos. Remite al texto de Éxodo 24, 12. 34, 1-5,
donde Moisés labra dos tablas de piedra que contienen la Ley de la
Alianza que YHWH entrega en el Sinaí a Israel y que se desglosan en
10 principios a seguir por Israel como núcleo de la Ley. El
cristianismo los hace suyos y los matiza en algunas de sus
afirmaciones: 1) Amarás a Dios sobre todas las cosas; 2) No tomarás
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el nombre de Dios en vano; 3) Santificarás las fiestas; 4) Honrarás a
tu padre y a tu madre; 5) No matarás; 6) No fornicarás; 7) No
robarás; 8) No levantarás falso testimonio ni mentirás; 9) No
consentirás pensamientos ni deseos impuros y 10) No codiciarás
los bienes ajenos.
Con respecto al número once: Once mil vírgenes.
a) Once mil vírgenes. Esta verdad remite a la leyenda medieval
de santa Úrsula. Úrsula se convirtió al cristianismo prometiendo
guardar su virginidad. Como la pretendía el príncipe bretón Ereo
decidió realizar una peregrinación a Roma y consagrar su virginidad.
En Roma, fue recibida por el papa, que la bendijo y consagró sus
votos de virginidad perpetua para dedicarse a la predicación del
evangelio. Al regresar a su tierra, fue sorprendida en Colonia por
los hunos. Atila se enamoró de ella pero la joven se resistió y, junto
a otras vírgenes fue martirizada. En el lugar se erigió una basílica
dedicada a las “once mil vírgenes”, entre ellas Úrsula. En la
inscripción de dedicación de este edificio se nombra a las otras
doncellas: Aurelia, Brítula, Cordola, Cunegonda, Cunera, Pinnosa,
Saturnina, Paladia y Odialia. Poncelet (1999) dice que
Úrsula y sus once mil acompañantes proviene de los dos nombres Úrsula
y Undecimillia, o de Úrsula y Ximillia, o de la abreviatura XI.M.V. (undecim
martyres virgines), mal interpretada como undecim millia virginum. También
se ha conjeturado, y esto es menos arbitrario, que es la combinación de
las once virgenes mencionadas en los antiguos libros litúrgicos con la
figura de varios miles (millia) dada por Wandalberto. Como quiera que
sea, este número es desde entonces aceptado, así como el origen Británico
de las santas, mientras que Úrsula sustituye a Pinnosa tomando el puesto
principal entre las vírgenes de Colonia.
Con respecto al mil, este número ha tenido siempre un
significado paradisiaco de exuberancia, es referencia a la inmortalidad
de la felicidad (GHEERBRANT, 2007, pp. 712-713).
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b) El número de apóstoles después de la traición y muerte de Judas.
Esta afirmación hace referencia a los textos bíblicos de Mateo 27,
5, donde Judas se ahorca tras haber traicionado a Jesús y Mateo
28, 16, donde el texto habla de Once discípulos y Hechos 1, 13,
que da la lista de los Once apóstoles: Pedro, Juan, Santiago, Andrés,
Felipe, Tomás, Bartolomé, Mateo, Santiago de Alfeo, Simón el
zelota y Judas Tadeo.
c) Once las estrellas en el sueño de José. Conforme al texto de Gn.
37, 9, José, hijo de Jacob sueña su futuro y el de sus hermanos con
este simbolismo y con el de las gavillas (Gn. 37, 7) que, de acuerdo
con el mismo texto, se cumple maravillosamente en Egipto años
después (Gn. 42, 8-9).
Con respecto al número doce: Doce apóstoles.
a) Doce apóstoles. Conforme al testimonio evangélico, Jesús eligió
a doce varones para que estuvieran con él y para enviarlos a predicar,
una vez que fueran testigos de sus palabras y acciones. Los nombres
de los Doce son: Simón, llamado Pedro, y Andrés, Santiago y Juan
hijos de Zebedeo, Felipe y Bartolomé, Tomás y Mateo el publicano,
Santiago de Alfeo y Judas de Santiago o Tadeo, Simón el zelota o el
cananeo, y Judas Iscariote (cfr. Mt. 10, 1-4. Mc. 3, 14-19. Lc. 6, 1316. Jn. 6, 70.). Tras la resurrección, los Once eligen a Matías para
completar el número de Doce apóstoles (cfr. He. 1, 13).
b) Doce pastores. La figura del pastor es típica en la tradición
bíblica para referir a los guías del pueblo, así lo menciona el texto
de Ezequiel (34, 1ss) y la promesa de YHWH a Jeremías (cfr. Jr. 3,
15). Jesús toma para sí el símil del pastor (cfr. Mc. 14, 27),
autodenominándose “Buen Pastor” (cfr. Jn. 10, 11ss). Los Doce,
como testigos de Jesús, habrán de reproducir su imagen y guiar al
pueblo de Dios. En este sentido “doce pastores” y “doce apóstoles”
son términos intercambiables.
c) Doce meses. Es una afirmación del contexto cotidiano sin
connotación religiosa.
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d) Doce palabras. Solamente Calvarrasa menciona como
“verdad” doce las Doce palabras, que son estas mismas “doce
verdades” que se han venido refiriendo.
e) Doce son las tribus: Reubén, Simeón (Leví), Judah, Issachar, Zebulún,
Benjamín, Dan, Naftalí, Gad, Asher, Efraim, Manasé. Los doce hijos
de Jacob no son los que dan origen a las doce tribus de Israel. Efraín
(Efraim) y Manasés (Manasé) son hijos de José y vienen a ocupar el
lugar de José y de Leví en el reparto de la tierra de Israel con Josué
(Jos. 13-19).
Con respecto al número trece.
Aunque en el listado de la posible forma original no se incluye
este número, seis versiones mencionan o hacen alusión a una verdad
trece, que se expone a continuación.
a) Trece rayos de sol conduzcan a las brujas y a las hechiceras a los
infiernos. El testimonio de Curanderismo es el único que menciona
esta “verdad”. La idea de los rayos de sol remite a emanaciones de
un centro, bueno y santo, sobre los seres. Significa una influencia
fecundante o esterilizante, dependiendo de la persona que los recibe
(GHEERBRANT, 2007, p. 870). Así, el centro bueno o santo, el sol
o Dios, esterilizaría la maldad de las brujas que reciben sus rayos.
b) Los trece rayos de sol que le caigan al demonio y le partan el corazón.
De Vicente (2005) y Morote 1 (1993) mencionen esta “verdad”. Al
igual que en el inciso anterior, aparece el mismo simbolismo de los
rayos de sol, pero aquí es el demonio quien los recibe, no las brujas.
Esta expresión remite a la idea del acertijo o al juego de habilidad
que supone la recitación de las Doce Verdades o Palabras, donde el
trece serviría de conjuro ante la trampa o el engaño del demonio.
c Las doce ya las dije, trece no las aprendí, vete al infierno, demonio, que
esta alma no es para ti. Esta expresión en Ignacio Valdés (2007) remite,
nuevamente, a la idea de un acertijo o un juego de habilidad, donde
el trece serviría de trampa o de engaño a quien recita las Doce Verdades
una por una.
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d) Trece son los atributos de Dios según el recuento del libro de Éxodo
34, 6-7. Es el listado de atributos que Dios da de sí mismo cuando
Moisés pide que le muestre su rostro en la peña del Horeb. Además,
trece es el valor numérico de la palabra hebrea ejad, uno. Esto lleva
nuevamente a la primera estrofa del poema, la unicidad de Dios.
ii) Los simbolismos del cordón y de los nudos del ritual
Como se mencionó con anterioridad, la recitación de las doce
verdades del mundo van acompañadas de un ritual que consiste en hacer
un nudo en un cordón –o en algo parecido- cada vez que se menciona
una verdad y luego se va deshaciendo el nudo cuando se recitan las
verdades al revés. De este modo se construye el ritual: verdad, cordón
y nudo. Palabras y acciones íntimamente ligadas entre sí, como en
los mitos tradicionales de la creación del mundo en todas las culturas.
El cordón simboliza ascensión, medio y deseo. El cordón con
nudos simboliza ligaduras y virtudes secretas o mágicas
(GHEERBRANT, 2007, p. 386). El cordón, por extensión,
simboliza la vida. La tradición bíblica mira la vida como una cuerda
de tejedor que puede cortarse de pronto (cfr. Is. 38, 12). Así también
la mitología griega con la figura de las Moiras, Cloto y Láquesis, que
controlan el hilo de la vida de cada ser humano y Átropos lo corta al
llegar su fin. En su origen son divinidades relacionadas con la vida
del hombre. Sus nombres significan “la que hila”, “la que asigna el
destino” y “la inflexible”.
Los romanos llamaron a estos seres Parcas. Las tres Parcas
eran Nona, que hilaba el hilo de la vida desde su rueca hasta su huso,
Décima, que medía el hilo de la vida con su vara y Morta, que cortaba
el hilo de la vida, eligiendo la forma en que la persona moría
(GARIBAY, 2003, p. 251).
En la mitología nórdica hay una figura semejante, las Nornas.
Sus nombres son Urd, lo que ha ocurrido o el destino, Verdandi, lo
que ocurre ahora y Skuld lo que debería suceder o es necesario que
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ocurra. Todas ellas están asociadas al destino y que el pasado, el
presente, y el futuro están entrelazados de tal modo que no pueden
ser separados por las tres Nornas principales. Viven bajo las raíces
del árbol del mundo en el centro del cosmos, donde tejen los tapices
de los destinos. La vida de cada persona es un hilo en su telar, y la
longitud de cada cuerda es la duración de la vida de dicha persona,
incluso los dioses tienen sus propios tapices, aunque las Nornas no
se los dejan ver (DALY, 2010, p. 74).
El cordón simboliza la vida y la persona. Es un símbolo del
cordón umbilical. El oficio y arte de tejer y de hilar son tan antiguos
como el hombre mismo. No por nada el tejer es un símbolo del
destino que se construye y se teje, nunca mejor dicho, con las
relaciones y las decisiones. Sin embargo, tejer no solo simboliza
predestinar, en un sentido antropológico, o reunir realidades
diferentes en el plano cosmológico, sino también significa crear, sacar
de la propia sustancia, como lo hace la araña al tejer su tela
(GHEERBRANT, 2007, p. 982).
Un nudo representa fijación en un estado determinado, pero
es un símbolo doble, ya que deshacer el nudo significa liberación.
Entre los pueblos árabes los nudos están relacionados con la muerte
y se usan para conjurar el mal de ojo. Los nudos en una cuerda están
atados entre ellos y ligados a su principio. (GHEERBRANT, 2007,
p. 756). Además los nudos simbolizan el atar la voluntad o atar a la
persona. Existen prácticas religiosas mágicas, en las que se anuda a
un santo al que solo se desanudará cuando otorgue los favores
solicitados. Por ejemplo, en el sur de la Ciudad de México, cuando
alguien pierde algún objeto, para hallarlo anuda una prenda de color
rojo y golpea con el nudo tres veces al tiempo que recita el siguiente
verso: San Cucufato, san Cucufato/hasta que no me lo entregues/no te desato.
De esta forma, quien reza Las Doce Verdades al tiempo que
“teje” los nudos en el cordón, está definiendo el destino de la bruja
o brujo que ha decidido atrapar. Desde este sentido es inevitable
que funcione el conjuro, pues se atan las propiedades mágicas del
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brujo o bruja con ello. Pero también “desteje” los nudos cuando
reza al revés Las Doce Verdades. Este derecho y revés del rezo y del
anudar-desanudares un simbolismo del movimiento de vida-muerte,
de todo lo que nace, muere y renace.
Lenguaje oral y ficción
Las doce verdades del mundo, en cuanto forma narrativa, muestra
en su estructura cómo el lenguaje oral refleja la cosmovisión en que
se producen. Siguiendo a Ong (2011, pp. 40-41) en una cultura oral,
la restricción de las palabras al sonido determina los modos de
expresión y los procesos de pensamiento al grado que, las
necesidades mnemotécnicas determinan la sintaxis. Esta dependencia
implica que la experiencia sobre el mundo se interioriza y funciona
desde la memoria. Así, Ong explica que (2011, p. 42)
[...] toda expresión y todo pensamiento es formulaico hasta cierto
punto en el sentido de que toda palabra y todo concepto comunicado
en una palabra constituye una especie de fórmula, una manera fija de
procesar los datos de la experiencia, de determinar el modo como la
experiencia, de determinar el modo como la experiencia y la reflexión
se organizan intelectualmente, y de actuar como una especie de aparato
mnemotécnico. Expresar la experiencia con palabras (lo cual significa
transformarla por lo menos en cierta medida, que no falsificarla) puede
producir su recuerdo.
Ahora bien, de acuerdo con Cardero (2009) los mitos, leyendas
y cuentos son estructuras culturales que tienen el papel de neutralizar
la angustia que lo desconocido produce en un grupo humano. Esto
se realiza mediante la articulación de los signos y símbolos,
establecidos en cada cultura, en los relatos, mitos y leyendas, y reciben
el nombre de intersignos. Estos han de ser cuidadosamente diseñados
para que puedan desempeñar su función.
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Mitos, leyendas y cuentos tienen su origen en la cultura oral,
pues su relación a lo numinoso y sagrado refleja las preocupaciones
fundamentales de la existencia (ONG, 2011, p. 78). Aparece así la
primera diferencia entre lo fabuloso8 y legendario, con lo histórico.
En opinión de Auerbach (2011, p. 25-26) la diferencia estriba en que
En lo legendario se elimina todo lo contrapuesto, resistente, diverso,
secundario que se insinúa en los acontecimientos principales y en los
motivos directores; todo lo indeciso, inconexo, titubeante que tienda a
confundir el curso claro de la acción y el derrotero simple de los actores.
La historia que nosotros presenciamos o que conocemos por testigos
coetáneos, transcurre en forma mucho menos unitaria, más
contradictoria y confusa; tan solo cuando ha producido ya resultados
dentro de una zona determinada, podemos con su ayuda ordenarla de
algún modo, y cuántas veces ocurre que el pretendido orden conseguido
nos parece de nuevo dudoso, cuántas veces nos preguntamos si los
resultados aquellos no nos llevaron a ordenar demasiado sencillamente
los anteriores acontecimientos. La leyenda ordena sus materiales en forma
unívoca y decidida, recortándolos de su conexión con el resto del mundo,
de modo que éste no pueda ejercer una influencia perturbadora, y conoce
tan sólo hombres definitivamente cortados, determinados por unos
pocos motivos simples, y cuya unidad compacta de sentir y de obrar no
se puede alterar [...] Es tan difícil escribir historia, que la mayoría de los
historiadores se ve obligada a hacer concesiones a la técnica de lo fabuloso.
Este es el papel de la ficción, y en el lenguaje oral es
omnipresente. De acuerdo con Martínez Bonati (2001, p. 177), una
ficción es a la vez real y ficticia, pues el lenguaje literario asume formas
fantásticas que el discurso nunca asume en una comunicación real
formal. Las afirmaciones de certeza de un narrador en tercera
persona, cuando refieren hechos singulares, no pueden ser puestos
en duda de manera seria.
Las afirmaciones que hacemos en la vida real sobre hechos
cualesquiera pertenecen al ámbito de lo empírico. La posibilidad de
que sean falsos o no estrictamente exactas, “es parte de nuestra
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comprensión de ellas como actos del lenguaje” (MARTÍNEZ
BONATI, 2001, p. 180). Por el contrario, prosigue Martínez Bonati
(2001, pp. 180-181) la comprensión de afirmaciones
pseudoautoriales relativas a hechos del mundo narrado excluye la
posibilidad de que sean falsas y les concede verdad y exactitud, pero
solo dentro del juego de la ficción y dentro del propio mundo ficticio.
“Les concedemos lúdica e irónicamente la naturaleza del lenguaje, y
ello tan solo dentro del ámbito de lo fictivo. Son lenguaje ficticio, y
por eso pueden ser, como son, afirmaciones empíricas
absolutamente indudables” (MARTÍNEZ BONATI, 2001, p. 181).
La ficción literaria permite hacer una narración que hubiera
podido ser o que pudiera ser, pero no es. Y aquí está el papel del
mito y del símbolo narrados ficticia y literariamente, pues la verdad
que busca la literatura no es una verdad “epistémica”, sino moral. Y
el mito y el ritual tienen una función sanadora o regeneradora
(ELIADE, 1981, p. 52).
De esta manera, el ritual exige la recitación solemne del mito,
pues los rituales evocan el comienzo, el tiempo primordial y mítico.
La ficción narrativa, enmarcada en el contexto cultural en que se
produce, completa el marco de la realidad desde el cual se asume
como verídico lo narrado y los símbolos adquieren toda su fuerza y
despliegan por entero su potencialidad que impacta profundamente
al ser humano que participa de la narración.
De esta forma, si Las doce verdades del mundo son una narración
simbólica y ritual que apela a los mitos del cristianismo, en virtud
del papel regenerador del mito, conseguirían conjurar el mal que
supone la brujería.
Conclusión
Las doce verdades del mundo llevan consigo una profunda
articulación simbólica, como se ha señalado para cada una de ellas
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en lo particular, pero pueden ser consideradas, en conjunto, un
camino simbólico de iniciación.El camino iniciático comienza, en
Dios, fuente de todo cuanto es y existe (I). Las Tablas de la Ley (II)
simbolizan la entrada de Dios en la historia para revelarse al hombre,
revelación que llega a su plenitud con Cristo, que revela la Trinidad
Divina (III) y pone al alcance del hombre la salvación (IV) y con su
muerte y resurrección (V) abre los cielos a la humanidad,
comunicando siempre su vida por la Eucaristía y los sacramentos
(VI) memoriales de su pasión (VII). Así la multiforme gracia de
Dios santificará a los hombres (VIII), que habrán de dar a luz a Cristo
en sus propias vidas (IX) aceptando la Ley de Dios en sus corazones
(X), consagrándose en cuerpo y alma (XI) para construir el Reino
de Dios en la tierra por la Iglesia (XII). Aquí se llega al punto central
y comienza el “descenso”.
Como bautizado y miembro de la Iglesia (XII) hay que
esforzarse por consagrar todo el mundo a Dios (XI) y hacer que su
Ley reine en todos los hombres (X). Así será posible que se forme
Cristo en cada persona por la gracia (IX). Esta configuración con
Cristo lleva al creyente a hacer vida la fe en los diferentes ámbitos
de la vida, de sus quehaceres y trabajos (VIII), incluso hasta el extremo
de dar su vida (VII). La gracia de los sacramentos (VI) mantiene
viva la fuerza de la esperanza de que otro mundo es posible,
siguiendo las huellas de Jesucristo Crucificado y Resucitado (V),
convirtiendo los evangelios (IV) en guía para la vida y conduciendo
el mundo y la historia al Padre, por Cristo en el Espíritu (III), y
haciendo del amor, centro de la Ley de Dios y su Alianza (II), el
núcleo de la Nueva Creación, donde Dios será todo en todos (I).
El papel de conjuro le vendría dado a Las doce verdades en
virtud de su capacidad de introducir en el misterio divino. Además,
el hecho de narrarse al derecho y al revés, junto al rito de los nudos,
implica la simbólica de la magia simpática, donde, gracias a la
semejanza del objeto mágico, el ritual se apropia de la fuerza de
aquello a lo que se asemeja. Y no se puede ignorar el hecho de que la
brujería sea considerada, desde la Edad Media, una oposición o
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remedo de la creación de Dios; una especie de revés deforme. Y ahí
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2008].
Notas
3
Corresponde a la tesis doctoral que se desarrolla en la Universidad Autónoma de Nuevo León
con el título de Lenguaje contextos y producción simbólica en la tradición oral sobre brujería en el sureste
del estado de Coahuila.
4
1) Un relato en audio obtenido por entrevista de una mujer de 80 años, habitante de Saltillo;
2) El artículo escrito por Armando Fuentes Aguirre, titulado “Las Doce Verdades. ¿Habrá
tantas en este mundo mentiroso?”; 3) El texto de las Doce verdades publicado en el libro
Alabanzas que se cantan en el santuario de Nuestro Padre Jesús de Atotonilco Guanajuato”; 4) El artículo
de internet “Curanderismo” de Bryant “Eduardo” Holman; 5) El artículo de internet
“Enciclopedia de los Municipios de México, Estado de Jalisco, Zapotitlán de Vadillo”; 6) El
texto de las Doce verdades publicado por Materia John Cuellar; 7) El texto de las Doce verdades
publicado por Rocío Adelita de las Pistolas; 8) El texto de la canción popular 237 “Serie
Acumulativa” publicada por Sergio Bernal; 9) El texto de la oración “Las Doce Palabras
redobladas” publicado por Juliana Panizio; 10) El texto de la canción del pueblo Calvarrasa de
Arriba “Las doce palabras”; 11) El texto de Las doce palabras retornadas, publicado por Ignacio
Valdés; 12) El texto de las Doce verdades publicado por Fabiola Ruiz en la novela Telares; 13) La
letra de la canción “La Baraja Bendita” de los Tigres del Norte; 14) “Las palabras retornadas”
del artículo de Enrique de Vicente y Lorenzo Fernández “Curanderos, el poder de la tradición”;
15) “Las palabricas retornadas”, según el primer texto de Pascuala Morote en “Las creencias y
supersticiones de Jumilla”; 16) “Las palabricas retornadas”, según el segundo texto de Pascuala
Morote en “Las creencias y supersticiones de Jumilla”; 17) Las palabras retornadas, de la Asociación
Cultural Sierra de Segura; 18) Las doce verdades del mundo, según el texto de la Casa Cristo Rey;
19) “Ejad mi Iodea” según el texto del rabino León Klenicki.
5
Y, sin embargo, ya se ha hecho la primera fase: la collatio, que consiste en la recopilación de
testimonios según Alberto Blecua (1983).
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6
Según el Diccionario de mexicanismos (Academia Mexicana de la Lengua, 2013, p. 423), es un
“pañuelo de algodón, grande y cuadrado, generalmente de vivos colores estampado con diversas
figuras geométricas que se repiten”.
7
A partir del año 2002, Juan Pablo II agregó al rosario los misterios llamados “de luz”.
8
En el sentido latino de fabula, como conversación coloquial que da origen al relato mítico.
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LA FUNCIÓN MITOPOÉTICA
DEL ‘ÉL ES DIOS’ DEL ACTO
COMUNICATIVO EN LA
DANZA CONCHERA EN
MÉXICO
THE MYTHOPOETIC FUNCTION IN
EL ES DIOS OF
COMMUNICATIVE ACT IN
CONCHERA DANCE IN
MEXICO
José Luis Valencia González
(ENAH-Mx)1
A mi padrino Manuel que partió al mictlán a los 99 años lleno de vida
RESUMEN: La danza conchera es una manifestación cultural
que se practica actualmente en varias regiones de México.
1
Doctor en antropología social y profesor de la Escuela Nacional de Antropología e Historia de
México. <[email protected].
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MÉXICO
JOSÉ LUIS VALENCIA GONZÁLEZ
Corresponde al género de las danzas de conquista, aunque con
características muy particulares que la hacen considerarse como la
heredera más directa de la danza practicada durante los tiempos
precolombinos. El presente trabajo tiene como objetivo central
analizar las funciones comunicativas que cumple el enunciado
discursivo ‘Él es Dios’, que se pronuncia durante todo el ritual
conchero. Para lograrlo, primero se realizó el rescate de los
textopoyéticos que son dispositivos de la memoria colectiva
de esta semiosfera dancística (LOTMAN, 1998, p. 133),
encontrados en los códices pre y poshispánicos; segundo, se
estableció el mitopoético que se narra en la danza y que sucedió
durante la Colonia temprana, y éste se refiere a la aparición de
un signo en el cielo obtenido que para los españoles y para los
mexicanos aparentemente tiene significados muy diferentes pero
se puede mostrar que en realidad pudiera ser lo mismo. Se
conecta con la propuesta de las funciones comunicativas por
Roman Jakobson para posteriormente actualizarlas y
complementarlas con la Semiótica de la Cultura de la Escuela
de Tartu y proponer una nueva función comunicativa, centrada
en lo histórico-cultural, la función mitopoética.
PALABRAS CLAVE: México. Semiosfera. Danza conchera.
Mitopóetico. Funciones comunicativas.
ABSTRACT: The conchera dance is a cultural event that is currently played in various regions of Mexico. It corresponds to the
genre of the conquest dances, though with particular characteristics that make it be considered as the most direct heir of the
dance practiced during the pre-Columbian time. The present
work is mainly aimed at analyzing the communicative functions
of the discursive utterance El es Dios, pronounced throughout
the Conchero ritual. To this purpose, firstly we carried out the
recovery of poetic texts that are devices of the collective memory
of this dancistic semiosphere (Lotman 1998, p. 133), found in
pre and post-Hispanic codexes; Secondly, we established the
mythopoetics which is narrated in the dance and occurred during the early Colony, referring to the appearance of a sign in the
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MÉXICO
JOSÉ L UIS VALENCIA GONZÁLEZ
sky, which for Spaniards and Mexicans has apparently very different meanings, although it can be demonstrated that, in fact, it
may be the same. This study is based on the idea of communicative functions by Roman Jakobson, updating and complementing them afterwards with the Semiotics of Culture of the
Tartu School, proposing a new communicative function, centralized in the cultural-historical, the mythopoetic function.
KEYWORDS: Mexico. Semiosphere. Conchera dance.
Mythopoetics. Communicative functions
La danza en el mundo prehispánico
Imagen1. Códice Durán. Probable danza preparativa para la guerra
Gracias a los estudios de varios antropólogos especialmente
(STEN, 1990 y GONZÁLEZ 2005) se puso de relieve a la danza
como una de las prácticas de mayor extensión en la vida sagrada y
cotidiana de los antiguos mexicanos2, es decir, se incluía en los
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momentos de júbilo, durante los cultos ceremoniosos y en las
preparaciones para las batallas, por lo mismo su papel es
preponderante en la cohesión social.
Imagen2. Códice Florentino. Probable danza de regocijo
Desafortunadamente las fuentes históricas, que son los textos
fundantes, no nos permiten conocer las características específicas
de cada tipo de ceremonia, aunque gracias a los cronistas
(SAHAGÚN, 2000. p.134, ZORITA, 1999, p. 305-308 y DURÁN,
2000, p. 30 y 128) se pueden identificar los instrumentos musicales
que utilizaron los antiguos mexicanos, siendo los más destacados: el
huehuetl, tambor ahuecado hecho de un tronco de árbol y forrado
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JOSÉ L UIS VALENCIA GONZÁLEZ
con la piel de algún animal; el teponaxtli, otro tambor pero horizontal,
también hecho de un tronco o de piedra, hueco y calado en forma
de diapasón; y la ayacaxtli o sonaja que marcaba el ritmo individual.
Imagen3. CódiceFlorentino, cantos
Sumado a lo anterior, es menester comentar los mismos cantos
que ahí se realizaban, al igual que las danzas, tenían distintas funciones.
Al respecto, hay que señalar que primero Ángel Ma. Garibay (2000)
y posteriormente Amos Segala (1990) se encargaron de proponer
una taxonomía de los cantos mexicanos, denominados también como
himnos de alabanzas. En este intento se planteó que dichos cantos
cumplen cabalmente con la denominación de poesías-musicales, los
que contemplaban a los teocuicatl —‘canto sagrado’—, que estaban
destinados para alabar con un gran sentimiento la divinidad de las
fuerzas creadoras de la vida: la lluvia, el viento, el padre Sol o la
madre Tierra, entre otras; y los tlahtolli —‘palabra’— que se
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MÉXICO
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encargaban de ensalzar las épicas heroicas de los pueblos nahuas.
En sí, es una clasificación muy amplia pero sirve por ahora para
entender los sentidos que tenían los cantos de una forma muy general,
puesto que los formatos se siguen conservando hasta la fecha.
Cuando se revisan los textopoyéticos3 visuales de los códices
es pertinente considerar el ‘levantamiento’ de los altares, según la
deidad a la que se iba a venerar, puesto que cada fecha responde a
uno en particular, de acuerdo al mes que corresponde4 (GRAULIC,
1999,p.49-51). Los altares tienen la cualidad de reunir las ofrendas
que se consideraban más sagradas, pero lo más importante es la
semiotización que adquieren los mismos, puesto que quitando sus
limitadas alusiones descriptivas, en realidad también hay una alta
densidad semiótica relacionada con las fuerzas o energías que les
permiten ubicar a cada pueblo con su propia identidad, consecuencia
de las condiciones de producción del lugar.
Imagen 4. Códice Magliabechano. Música y cantos frente al altar, en estecaso, de un rito
mortuorio.
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La devoción peregrina es otra de las actividades periódicas
que se han realizado hasta la fecha, pero en sí, es un tema realmente
poco trabajado e injustamente no se le ha dado la atención que se
merece (FOURNIER,2012), pero se sabe que también la costumbre
de agruparse para caminar a veces por varios días y ante las
inclemencias temporales para asistir a los espacios sagrados era parte
de su sacrificio humano, generalmente estigmatizado y mal
entendido.
Imagen 5. Fragmento de la Tira de la Peregrinación Azteca
En cuanto a la danza, el movimiento propiamente dicho, como
ya se comentó desde el principio de este documento, también tiene
una función primordial señalada en la filosofía prehispánica, en
donde se entiende que existe una idea onto y filogenética acerca de
nuestro origen. La ontogenética se refiere a nuestro origen cósmico,
es decir, no se personaliza, no somos individuos, sino el producto
de las fuerzas cósmicas. En el pensamiento mexicah —producto de
un continuum cultural desde los olmecas— se consideraba que para
que obtuviéramos la vida era necesario que hubiera un chispazo
cósmico, y esta unidad de fuerzas marcaba nuestro Tonal. Es
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impresionante que el pensamiento emanado de una arcaica reflexión
considera ya a la afamada segunda ley de la termodinámica, puesto
que pensaban que el Sol con el desgaste de nuestro nacimiento está
en pleno proceso entrópico, y era necesario devolverle la energía
perdida a través del sacrificio humano, que no se refiere únicamente
ofrecerle el corazón de los cautivos humanos, sino había otras formas
más, tales como soportar las velaciones, las peregrinaciones y la danza
misma, que implica un enorme deterioro físico.
Imagen 6. La danza registrada en el Códice Borbónico
Tonal tiene una traducción isomórfica muy sesgada, a manera
cristiana se plantea como alma o sombra, sin embargo, en realidad
es un concepto polisémico de mayor extensión e intensión, por
ejemplo entre sus acepciones están la de ‘camino’ ‘modo’, ‘luz’, ‘sol’
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o ‘destino’, referencias que permitieron la constitución del tonalpohualli
que establece la cuenta de los destinos, y en él se definía cuál era el
designio, el oficio, el cargo y otras muchas cosas de cada individuo.
En él se buscaría la revelación hacia lo más interno y místico
poderosamente desconocido, algo así que respondería a la pregunta
¿Qué venimos hacer aquí, a esta vida?, y la contestación sería en
términos colectivos porque de las acciones individuales dependía el
futuro de una nación.
En cuanto a lo filogenético los antiguos mexicanos
consideraban que todos veníamos de un animal en línea directa,
pasando por cada una de las etapas de la evolución hasta convertirnos
en humanos; pero esa reminiscencia más espiritual que genética,
determinaba que todos teníamos un animal protector al que llamaron
nahual.
Para el pensamiento antiguo en México, que reunía su
cosmovisión, su cosmogonía y su cosmología en un procesamiento
cognitivo holístico u homomórfico (Lotman 1996:58), todo se
establece sintagmáticamente desde su lenguaje, por ejemplo el verbo
‘vivir’ en nahuatl se dice nemi, y ‘caminar’ se dice nenemi. De acuerdo
a la regla gramatical la reduplicación de la primera sílaba en los
verbos tiene una función similar al prefijo [re] en el español, que
implica volver hacer lo que se indica: reprobar = probar otra vez;
rehacer = volver a hacer lo ya hecho; por lo tanto, nenemi
semánticamente no significa solamente caminar sino vivir
doblemente. Este enlace se plasma paradigmáticamente sobre la
danza en su conjunto porque significará movimiento, y es uno de los
caminos sagrados para que cada uno de nosotros conozca su tonal y
su nahual, por ende, se comprende la importancia como producción
y reproducción de las prácticas sagradas entre los mexicanos.
Por último, en la contextualización histórica de la danza se
debe enfatizar sobre la importancia que de la palabra se tiene. ‘Palabra’
en nahuatl se dice tlahtolli y se utiliza en distintas circunstancias, por
ejemplo, cuando se refiere a la sabiduría se dice huehuetlahtolli o palabra
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antigua. O bien, donde mejor se refleja su valor semiótico es cuando
se aplica a la jerarquía máxima de mando que había entre los mexicah,
que es el de rey o emperador, los cuales finalmente no tienen nada
que ver en ese sentido5, pero se utilizan por ejemplos para fines
explicativos: el HueyTlahtoani [de huey = gran, tlahtoa = hablar y ni =
el que realiza] es ‘aquel que realiza la palabra’, un concepto totalmente
distinto al occidental porque para ejercer la palabra como máxima
autoridad tenía que ser un hombre sabio, capacitado en la praxis
comunitaria y formado en el calmecatl que es lo analógico a lo que
conocemos como universidad.
Se han vertido algunas de las actividades incluidas en una
práctica tan compleja que es la danza, pero las mismas sirven para
establecerse como textopoyéticos, que son los que constituyen la
memoria de la cultural del México prehispánico. El sentido holístico
primordial de ellos es que cada acción intenta una reciprocidad entre
las ofrendas y el sacrificio por los favores santificados, que es la
función fundamental para la sobrevivencia de la comunidad, porque
el ritual dancístico se conecta homomórficamente al origen, la forma
y a las leyes que rigen el universo —hoy multiverso.
La danza conchera azteca-chichimeca
Con la llegada de la cultura ibérica a estas regiones se dio una
intensa confrontación que provocó básicamente una explosión
cultural (Lotman 1999) entre lo propio y lo ajeno en todo el AnahuacTawantizuyu1, que es el antiguo nombre de este continente. Los textos
homogéneos integradores de las regiones de Mesoamérica,
Aridoamérica y Oasisamérica tuvieron una férrea lucha contra los
no-textos de la no-semiótica de una radical no-cultura invasora, y
como un proceso altamente tensional, dialéctico y dialógico surgió
un mestizaje genético y nuevos textos transculturales que
conservaron la memoria colectiva ancestral en su proceso de
traducción iso y homeomórfica con la nueva cultura.
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7. División megacultural arbitraria desde occidente, hoy se considera como un continuum del
gran Anahuac
Mucho se ha discutido sobre esta cuestión, ya que los
occidentalizados han dado por hecho que el México antiguo
desapareció, considerando que solamente quedan residuos de aquella
vieja gloria, en esta posición se encuentran los gobiernos actuales,
reductos de los criollos, quienes han hecho un enorme esfuerzo
porque nuestra memoria se culmine en la inexistencia sin conseguirlo
porque la persistente resistencia india es perenne.
Aunque hay que ser realistas, desde la Colonia temprana los
conflictos intestinos entre las autoridades civiles españolas y/o entre
las clericales. Por ejemplo, los ‘conquistadores’ consideraban que
tenían más derechos en estas tierras que todos los administradores
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españoles enviados por la Corona. Por otro lado, los misioneros de
las distintas órdenes cristianas no se ponían de acuerdo sobre cómo
afianzar la evangelización puesto que los contenidos y estrategias
evangelizadoras no eran los mismos, y la situación se volvió tan
extrema que terminaron exiliándose entre ellos de estas tierras
(RICARD, 1947, p. 359 y ss).
8. Juan Sánchez de Peralta
También se dieron otras rencillas extremas, una la
protagonizaron los misioneros contra las autoridades civiles por el
maltrato que estos últimos aplicaban a los indios; y la otra, poco
tiempo después del comienzo de la colonización —quizás la más
decisiva de todas porque terminó con la independencia del pueblo
mexicano— es la que se dio entre los criollos, españoles nacidos en
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estas tierras contra los españoles peninsulares. Como se sabe ya desde
el mismo hijo de Hernán Cortés, Martín Cortés, primer líder
independentista, quien saboreó las miles de la gloria de la conquista,
junto con los hermanos Ávila y Juan Sánchez de Peralta promovieron
la primera conjuración contra la Corona, aunque Martín Cortés se
separó a tiempo de la rebelión lo que le permitió salvarse, pero los
demás sufrieron las peores represalias aplicadas por las leyes de la
Corona y murieron ahorcados en represalia a sus acciones
(VALENCIA, 2012, p. 627).
9. Crónica del primer intento independentista
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En sí la coyuntura socio-política-económica-histórica y religiosa
del momento definitivamente fue determinante para que los sabios
indios de aquél entonces la aprovecharan y lograran infiltrar sus
textos antiguos homogéneos entre los nuevos heterogéneos de los
invasores, y lograr mantener un pensamiento sabio y ancestral
enmascarado en en una intertexualidad. Uno de ellos fue la práctica
comunitaria de la danza sagrada que es la que estamos analizando.
10. Danza de conquista ‘águila
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La semiosfera de la ‘danza conchera’ es una, de entre varias,
que existe actualmente en México; incluso pertenece al género de las
‘danzas de conquista’ (SEVILLA, 1990, JÁUREGUI Y
BONFIGLIOLI, 1996) porque se le atribuye la idea de que nacen a
partir de una transculturalidad artística, como se ha visto, desde la
Colonia. Efectivamente, en la mayoría de estas danzas se escenifica
la lucha dada entre los moros y los cristianos en el reino de Castilla,
derrotados los primeros tuvieron que emprender su destierro al otro
lado del mar mediterráneo. Aún así las danzas de conquista muestran
en muchas de sus particularidades que se aproximan más a la
cosmovisión, cosmogonía y cosmología del México precolombino
que a la peninsular. Para ilustrar lo anterior, debemos considerar
que en estas danzas se configuran dos columnas, con una función
distinta a la lucha españolizada porque normalmente nunca existe
11. Las dos xiuhcoatin o serpientes de fuego que envuelven al Calendario azteca o piedra del Sol.
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un vencedor en sí. Esta representación más bien remite a la
significación de las dos serpientes que simbolizan la unidualidad de
las fuerzas cósmicas, tal como aparece en la famosa escultura llamada
‘calendario azteca’ o ‘piedra del Sol’. Las dos serpientes, que salen
de un mismo lugar para volverse a encontrar, como las dos energías
antagónicas pero complementarias del universo. Por otro lado, en
el México antiguo no había el bien y el mal desde la perspectiva
cristiana, tal como se comentó, porque nuestro Tonal nos tiene
preparado un camino que justifica la razón por la que cometemos a
veces un ‘mal comportamiento’2 pero que es propio para cumplir
con nuestro destino en esta vida. Así que en las danzas no ganan los
españoles con Jehová sobre los musulmanes con Alá, sino que es
solamente la lucha dialéctica que hay entre las dos grandes fuerzas
de la máxima deidad Ometeotl que, dicho de paso, significa ‘las dos
energías o esencias de alguien’.
Sin embargo, la danza conchera es la más apegada a la tradición
heredada desde los tiempos prehispánicos, al menos así lo muestran
los textopoyéticos que hay al respecto en los famosos códices, puesto
que tuvo que enfrentar varias facetas para que eso se lograra. La
primera de ellas data nuevamente de la época colonial, porque los
nativos mexicanos se vieron obligados a ser conversos cristianos. Y
aunque en esta parte religiosa hubo mucho de simulacro, es un hecho
que los indios engañaron a los misioneros haciéndoles creer que
habían logrado la evangelización.
Pero no todo fue tan inducido por los mexicanos, por
conveniencias centradas en la producción agrícola y minera
esencialmente, porque tanto el clero como la administración de la
corona disimularon que las cosas no sucedían y aceptaron
estratégicamente que los indios mantuvieran sus viejas costumbres
escondidas entre los nuevos textos de los rituales católicos, incluso,
los clérigos comprendían la ironía y la burla discursiva, como las
que están implícitas en las alabanzas y que ponen en juicio los
principios catequistas, generándose incluso oxímoros culturales
(VALENCIA, 2012, p. 236).
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12. Mapa de la Relación geográfica de Meztitlán, Sierra Gorda. Siglo XVI
La cuestión es que en las alabanzas que cantan los concheros
se narra que en 1531 sucedieron dos acontecimientos trascendentales
que le dieron inicio a la tradición de la danza, después denominada
conchera, como continuum de la practicada antes de la colonización.
El primero de ellos fue la veneración a la ‘aparición’ de la Virgen de
Guadalupe que sustituye al culto de CoatlicueTonantzin —[nuestra
madrecita Tierra la de falda de serpientes]—; y el segundo el que cuenta la
batalla que se dio en el cerro de San Gremal, en la ciudad de
Querétaro, a la entrada de la Sierra Gorda, en donde dicen que
apareció un signo en el cielo que indicó el comienzo de la verdadera
conquista, que para los concheros significa la ‘conquista de corazones’
a través de la danza.
Con relación al primero de los sucesos por ahora solamente
se puede comentar que la tan venerada Virgen de Guadalupe no
tuvo una aparición en el sentido literal de la palabra, es decir,
mágicamente, sino que en realidad fue pintada por Marcus Cipactli
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de acuerdo a la ficción que hizo el sabio Antonio Valeriano en su
NicanMopohua—‘Aquí se Cuenta’— donde relata precisamente las
apariciones marianas. Empero la historia nos marca que en realidad
tuvieron que pasar 135 años —en 1666 con el arzobispo Luis Laso
13. Don Nicolás de San Luis Montañez. Indio converso, encargado de la pacificación
de los chichimecas
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de la Vega (García 1982)— para que se aceptara el culto a esta
imagen, puesto que en su vestimenta existe toda una lectura del
pensamiento antiguo. Con ello se desmitifica, en primer lugar, que
no hubo una aparición mágica de la guadalupana, y en segundo lugar,
que tampoco fue una imposición española para sojuzgar a los indios.
El segundo acontecimiento es el más importante para efectos
de este trabajo, porque de ahí parte el pronunciamiento que ordenará
la organización general de, ritual sagrado de la danza. El mitopoético
(LOTMAN, 1996, p. 136) del periodo más intenso del comienzo de
la Colonia dice así:
Después de la caída de la Mexico-Tenochtitlan en 1521 los aztecas comenzaron a ser
sometidos, pero aún —diez años después— mantenían sus conocimientos bélicos, eran
organizados aún para la guerra, por lo que los llevaron para que se enfrentaran a los
insubordinados chichimecas3 de la Sierra Gorda4. Se cuenta que llevaban ya tres días
de lucha a ‘puño limpio’ y no había vencedor. Los notarios españoles que estaban ahí
— como el converso Nicolás de San Luis Montañez— para dar fe de los
hechos ya estaban cansados de esperar un resultado, por lo que comenzaron a presionar
para que tomaran las armas y dieran fin a la contienda de una vez por todas. Justo
cuando esto iba a suceder apareció el signo en el cielo y los españoles gritaron “Es el
Señor de Santiago” mientras que los mexicanos exclamaron ‘In Teotl’, que
literalmente diría ‘Él es Dios’. Fue entonces que los mexicah y chichimeca
depusieron las armas y dijeron, ahora es cuando comienza la verdadera conquista”
(tradición oral).
La narración es tan poderosa que pasó a ser un mitopoético, y
son varias las alabanzas que se remiten a él y al cerro de San Gremal,
donde dicen que fue el lugar que sucedió el milagro. Son muchas las
incógnitas que brotan sobre el suceso porque todo parece confuso,
aunque esas son las características del mito, que como los sueños
son intangibles, se diluyen y se esfuman de la realidad objetiva. La
cuestión es que para los danzantes eso no tiene ninguna importancia,
en virtud de que en cierta manera lo pragmático es la verdad, porque
no hay poder que rompa con la función mitopoética que es la de dar
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orden y esencia a una actividad que parece estar desactualizada del
panorama socio-político-económico contemporáneo.
La primera pregunta es si a solo 10 años de haberse rendido la
cultura azteca iban a estar sumisamente domesticados por los
españoles y existía un orden colonizador pleno y estabilizado. De
acuerdo a las leyes de la dialéctica eso sería imposible, sobre todo
porque los cambios cuantitativos, es decir, los institucionalizados
de la Corona en México aún no se habían implantado plenamente, y
los cambios cualitativos ni siquiera habían comenzado, la disidencia
era mucha y activa. Esto se puede confirmar considerando el análisis
que sobre los hechos hace Philip Powell (1980 y 1984), quien nos
dice que fue hasta finales del siglo XVI cuando los chichimecas se
pacificaron, no se sometieron a la Corona hasta después de enormes
negociaciones. Esto implicaría que el año de 1531 quedaría como
un dato convencional, quizás con la finalidad de matizar más su
importancia al conectarlo con la aparición de la gran Patrona de
México, la Virgen de Guadalupe.
Pero la pregunta que surge inmediatamente es ¿qué fue aquella
misteriosa señal que apareció en el cielo?, que de acuerdo a las
exclamaciones de los dos bandos gritaron por su parte: ¡Es el Señor
de Santiago! e ¡In Teotl!5, y que en primera instancia nada tienen que
ver, sobre todo por la versión española, porque para ellos la
apariencia tuvo que haber sido antropomorfa, lo que sería
básicamente imposible. No hay una respuesta clara, todo podría
aparentar meras sugerencias, incluso la que se presenta en este
momento. Se revisó pensando en que lo ocurrido haya sido un
acontecimiento celeste de gran relevancia: un eclipse, un cometa o
algún otro de la misma índole, pero no fue así, porque cuando menos
no hay nada registrado para 1531 ni años cercanos posteriores. Es
probable que lo presenciado fue un fenómeno climatológico, de esos
que suceden esporádicamente. Uno de ellos pudo ser el que se haya
formado un ‘halo solar’ por las condiciones climáticas, que consiste
en que un arcoíris redondo que envuelve al sol, sombrando su
entorno y emitiendo cuatro rayos que forman una cruz, que se
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asemeja mucho a las representaciones de los Ollin — Movimiento
—, como el que está en el códice Borbónico.
15. Halo solar en la ciudad de México
el 20 de julio del 2011 que aparenta
ser una cruz luminosa
14. El Ollin, la Santa
Cruz, al centro el ojo del
Sol. Códice Borbónico
16. La Cruz del Señor de
Santiago en el escudo de
armas de los franciscanos
Aún con esta posibilidad no resuelve la incógnita del Señor de
Santiago, pero cuando se revisa el escudo de armas de los
franciscanos se puede apreciar la Cruz del Señor de Santiago, lo que
establece una auténtica semejanza con las imágenes anteriores,
convirtiéndose en factible o verosímil la propuesta ofrecida de que
haya sido un espectacular ‘halo solar’ (VALENCIA, 2012).
Ahora bien, haciendo un oportuno paréntesis, es menester
aludir los cambios a los que se vieron obligados los danzantes, que
fueron de varios tipos, partiendo desde la suplantación de nuevas
imágenes divinas, las letras de los cantos sagrados, los instrumentos
musicales y su atuendo clásico, esto sin mencionar el bautizo cristiano
que vino a sustituir ‘la presentación del niño a los cuatro vientos’ y el
matrimonio que antiguamente se le denominó como ‘amarre de
tilmas’.
Pero regresando a las primeras prohibiciones, seguramente se
presentaron como tácticas generalizadas, las guerras de las imágenes
debieron presentarse en todas las culturas americanas, desatándose
una intertextualidad, fenómeno que cómodamente se le ha llamado
sincretismo, pero que con ello no se ha podido explicar nada. Por
nombrar solamente los siguientes casos, de suma importancia para
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los danzantes del centro de México por su referencia a los cuatro
rumbos o vientos, y que tienen que ver con la devoción peregrina
comentada anteriormente:
Apegado a ello, las letras ya no hablan de Quetzalcoatl, ni de
Tezcatlipoca, o de cualquier otra divinidad. En su lugar se nombrarán
ahora como el Señor de Sacromonte o el Señor de Chalma, sin
embargo, existe un implícito que se apega más al pensamiento antiguo
que al católico, porque como ya se
había comentado, enmascaradas
están presentes las deidades antiguas.
Los instrumentos, tal como se
apreciaron en las primeras imágenes,
eran
fundamentalmente
de
percusión: el huehuetl y el teponaztli, los
cuales fueron cambiados a la ‘concha’,
que es un instrumento de cuerda,
cuya caja esta hecha de la concha de
armadillo, de ahí su nombre
isomórfico. Pero tiene otro que le
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17. Instrumentos de cuerda hechas
de concha de armadillo
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dan los concheros que es la ‘cuenta’, que parte de una
metaforizaciónhomeomórfica porque la concha tiene 52 lineas de
escamas y se relaciona simbólicamente con el calendario cósmico
Xiuhnelpillidel ‘siclo’ de 52 años, y por otro lado, sirve para también
para ‘contar’ cantando los hechos históricos que van ocurriendo en
el transitar de una ceremonia a otra, igual como sucedía
antiguamente.
18. Pintura de concheros del siglo XVII.
Y el atuendo, que en términos generales estaba constituido
por un copilli —penacho o tocado de la cabeza—, adornado con
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plumas propias del lugar: águila, faisán, guajolote, tucán, y otras
más, fueron sustituidas por plumas de avestruz que fueron
importadas de las lejanas tierras africanas. La tilma o capa que era
amarrada de un hombro y el maxtla o taparrabo fueron modificados
por un faldón y una blusa con chaleco. Es decir, la transformación
de personalidad de los danzantes tenía como propósito hacerles
perder su identidad, aunque los misioneros, cómplices del atentado,
no se percataron que los pasos de la danza con los concheros se
camuflajearon en un movimiento más lento y discreto, incluyendo
todas las formas y contenidos de la antigüedad, que luego renacieron
con su auténtica dinámica que conservaron los chichimecas en los
rincones más inhóspitos e inaccesibles de la Sierra Gorda.
19. Conquista de la danza en el norte de México y sur de los Estados Unidos de
Norteamérica en 1890.
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Por la permanente inestabilidad que sufría el país por los
conflictos políticos no hay mayores datos de la danza durante la
época independentista, de la Reforma y Revolucionaria de México,
a excepción de que por los años 20 y 30’s del siglo pasado, en el
movimiento anti-cristero, fueron perseguidos por su aparente
conexión con el catolicismo, y fue hasta años posteriores que aparece
de una forma más liberada y extendida.
20. María Graciana. Generala de la Danza en 1901
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Un nuevo panorama contextual se abrió cuando México
comenzó a entrar a una calma beligerante. Se abrieron nuevos
espacios de expresión, uno de ellos fue la fusión entre los danzantes
concheros del centro quienes lograron reunirse nuevamente con los
danzantes chichimecas del norte, lo que hizo una conjunción extrema
que desembocó en una gran concentración el 12 de octubre de 1992,
a la que le nombraron los ‘500 años de resistencia india’. En esa
ocasión se integraron las dos grandes columnas, una de los indios
que llegaron desde el Canadá y otra del sur que vinieron de la región
andina, sumando varios miles de danzantes que se centralizaron en
lugares simbólicos como fue en la antigua Mexico-Tenochtitlan, hoy
ciudad de México y en la mítica ciudad tolteca de Teotihuacan.
21. Procesión al santuario de la Virgen de Guadalupe en la Villa en 1955
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En esa enorme concentración se pudo constatar el hecho
prístino del ritual conchero, con ciertas variantes, sintagmáticamente
consistía básicamente en lo mismo, y paradigmáticamente la
exclamación del ¡Él es Dios! tenía la misma función estando presente
en toda la extensión tempo-espacial de aquél momento. En este
sentido se puede explicar que el enunciado discursivo es utilizado
en distintos instantes del ritual conchero, de hecho, es el que da
comienzo al momento ceremonial:
¡Él es Dios compadritos!
(¡Él es Dios! —contestan al unísono los ahí presentes)
Con el permiso de Dios primeramente
Con el permiso del Arquitecto del Universo
Con el permiso del Dueño del Cerca y del Junto
Con el permiso del Creador de todo cuanto nos rodea
Con el permiso de las ánimas conquistadoras de los cuatro vientos
y con el permiso de todos los aquí presentes sin distinción cual ninguna
(¡Él es Dios! —nuevamente se da la contestación colectiva)
Pues compadritos, vamos a comenzar la obligación si todos están de
acuerdo
(¡Él es Dios!)
...
Como se decía, la danza conchera, en realidad es un ritual
conchero que no consiste solamente en bailar, sino que envuelve
desde los preparativos de la fiesta, como los insumos para alimentarse
y para el ornato del altar y de todo el escenario. Pero también cubre
la velación, que es el periodo en que se construyen las ‘santas formas’:
el xuchitl y el ollin, siendo acompañadas por el canto de alabanzas.
Allí por ejemplo cuando le es solicitada con un ¡Él es Dios! una
alabanza a alguno de los ahí presentes, él solicitado también contesta
con un ¡Él es Dios!. Lo mismo sucedería si en el círculo de la danza se
le asigna a alguno de los miembros la suya, se pedirá y contestará de
igual manera.
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22. Danza en Chalma en 1910.
Análisis de las funciones comunicativas de la palabra ¡Él es
Dios!
¿Por qué la palabra Él es Dios?
—¡Él es Dios!—
¿Por qué todos mencionan a Dios?
—Él es Dios—
//
Porque Dios es grande y glorioso
es todo bondadoso
por eso Él es Dios
—¡Él es Dios—
Alabanza conchera
Para hacer el análisis sobre cuáles son la funciones
comunicativas que cumple la el enunciado discursivo ‘Él es Dios’
durante el acto comunicativo del ritual conchero, primero hay que
aceptar lo que comenta Roman Jakobson (1986, p.352) “Una
esquematización de estas funciones exige un repaso conciso de los
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factores que constituyen todo hecho discursivo, cualquier acto de
comunicación verbal”:
Contexto
Destinador
Mensaje
Destinatario
Contacto
Código
Entonces, en primera instancia se establece como un
requerimiento fundamental al ‘contexto’ de referencia, pero como
se pudo ver en el ritual existen ‘varios contextos’ cuando se
pronuncia ‘Él es Dios’, por lo mismo, se puede plantear la premisa
de que la expresión cumple con funciones distintas, puesto que existe
una competencia discursiva con un código —no solamente lingüístico
o pragmático sino hasta simbólico y cognitivo— compartido entre
el destinador y el destinatario, que concretamente sería quien tiene
la ‘palabra’ y el resto de los danzantes.
A diferencia del contexto que es múltiple, el destinador no
tiene variación, porque se pueden enviar mensajes diferentes a un
mismo destinatario colectivo que realmente es el mismo en todos
los contextos. En cuanto al ‘contacto’, no tiene ninguna alteración,
siempre será el mismo, porque será la comunicación verbal en
medios ambientes y psicológicos idénticos, al interior del ritual.
Considerando que el acto discursivo —en términos más
culturales— propuesto por Jakobson (1986: 360), de acuerdo a las
funciones comunicativas nos presenta el nuevo esquema que amplía
el anterior, pasando de los elementos constituyentes del acto
comunicativo a las funciones que cumplen cada uno de ellos:
Referencial
Emotiva
Poética
Conativa o apelativa
Fática
Metalingüística
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Con ello tenemos que los distintos contextos tienen diferentes
‘funciones referenciales’, en virtud de que aunque es un mismo ritual,
es muy diferente el suceso en el que se pronuncia el ‘Él es Dios’, si es
al comienzo o fin del ritual, al indicarle a alguien que cante su
alabanza o que ejecute su danza, o bien, cuando se da una indicación
u orden para realizar determinado trabajo; lo único general de la
frase es que se mantiene idéntica en todo instante. Ahora bien, se
puede denotar perfectamente la contextualización gracias a la
experiencia cognoscitiva de los danzantes —gracias a la función
apelativa—, porque cada uno de ellos comprende perfectamente la
particular generación de sentido que adquiere lo que en cada ‘función
referencial’ el ‘Él es Dios’.
Otra función sensible que le da sentido a la expresión analizada
es la ‘emotiva’, que corresponde al destinador —o emisor—, y esto
estará de acuerdo a la modulación emocional con la que se pronuncie
el ‘Él es Dios´. Sí se entiende la situación cuando la fuerza de la
palabra se hace como si fuera una onomatopeya, una interjección o
cuando se sensibiliza hasta con un hilo melancólico. La
suprasegmentación de la modulación sonora o entonación de la
expresión referencial hará que el mensaje adquiera otro valor, como
es el ejemplo clásico de pronunciar una misma palabra como: /
No/, /¿No?, /¡No!/, que aunque siendo la misma claramente cambia
el significado de la expresión. Siguiendo los mismos principios,
sucedería lo mismo en el ¡Él es Dios!
Como ya se había comentado, al compartir una misma
codificación, la ‘función metalingüística’ —que bien puede cambiarse
a metadiscursiva—, que se puede convertir en el entendimiento de
las prácticas de producción y reproducción semiótico-discursivas
—en todas sus dimensiones— hacen que la competencia
comunicativa tenga una homogeneidad cognoscitiva, por lo que esta
función no altera el sentido de la expresión.
Así mismo, la misma competencia comunicativa hace que, en
términos contestatarios en algunas escasas excepciones, la ‘función
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conativa o apelativa’ del destinatario es básicamente pasiva, esto en
virtud de que tienen como canon o eslogan organizativo-cultural,
cumplir con las indicaciones de las ‘palabras jerárquicas’
incondicionalmente.
La ‘función fática’ no tiene ninguna dificultad para definirse,
el ‘Él es Dios’ es un imperativo que abre, prolonga e interrumpe
cada momento comunicativo y de las distintas fases internas del ritual.
Quizás la función fática sea la más clara e inobjetable de todas.
Ahora bien, la ‘función poética’, enclavada en el mensaje, es la
más oscilante de todas, puesto que cada función comunicativa influirá
en la producción de sentido en ésta última. Desde luego las funciones
comunicativas con mayor grado de variabilidad serán las que más
cambien el sentido del mensaje, y por ende, la función poética se
verá mayormente alterada. Pero al mismo tiempo, de acuerdo a
Jakobson (1986, p.359) la función poética será distinta de acuerdo a
la función comunicativa con la que se relacione, si es con la primera
persona, destinador o función emotiva, entonces la función poética
será lírica porque es la encargada de orientar el acto comunicativo;
si la relación es con la segunda persona, destinatario o función
apelativa, la función poética será exhortativa: pero si es con la función
referencial, entonces será una ‘función poética épica’ por dirigirse a
la tercera personal no presente o implícita.
Desde una perspectiva general en la danza, no habría ningún
problema para establecer que la función poética exhortativa se
cumple cabalmente, el sujeto destinatario colectivo es llevado a
cumplir cada indicación que se le envía o da. En cambio, para la
‘función poética lírica’ sí habría una participación sujeta a ciertas
creencias operantes en los concheros, porque ellos consideran que
la repartición de las ‘palabras’, que consiste en nombrar a alguien
para que dirija la ceremonia, es poner en manos de los designios
divinos el que ésta se logre, lo cual dependerá mucho de la
emotividad que el elegido imponga. Incluso, si las actividades no se
realizan adecuadamente podrá surgir alguien(es) que tenga(n) más
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experiencia y que se encargue(n) de modular las distintas frecuencias
emotivas y sentimentales que se estén presentando en ese momento.
Donde sí hay una mayor alteridad es con relación a la ‘función
poética épica’ porque en lo función referencial se involucran la
historia, la narración, la crónica, el mito, la leyenda, y otros factores
más. Desde luego que esto rebasa la pretensión de Jakobson quien
quería establecer la función en términos de una conducta verbal, a
partir de la ‘selección’ y de la ‘combinación’; aunque sin duda es
notable que el autor estuvo permanentemente luchando contra la
postura ultraestructural, él mismo (JAKOBSON, 1986, p. 363)
rechazaba la idea de que:
La poética, en el sentido lato del término, se ocupa de la función poética
no sólo en poesía, en donde la función se sobrepone a las demás funciones
de la lengua, sino también fuera de la poesía, cuando una que otra función
se sobrepone a la función poética.
La argumentación nos abre la puerta para superar el
estructuralismo lingüístico, efectivamente en la función poética épica
en la danza no hay en sí ninguna selección ni combinación —ni su
equilibrio entre ambos— porque el ‘Él es Dios’ no cambia en su
estructura, pero sí en la producción de su sentido como enunciado
discursivo, porque como función referencial se puede remontar al
mito que lo hizo nacer, por lo tanto se convierte, en su caso, en un
‘verso mnemónico’ porque no es propiamente una poesía bajo la
rigidez de la métrica poética, pero sí lo es cuando es una tradición o
memoria cultural que permea a la función poética épica.
Tratando de hacer una adaptación de la ‘función poética épica’
que nos propone Jakobson desde la lingüística, pretendiendo superar
sus alcances y llevar al enunciado ‘Él es Dios’ a las
multidimensionalidades de las prácticas semiótico-discursivo
culturales, por ser el eje central de todo un muy complejo ritual que
emana de un mito, se podría proponer una nueva versión, más
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amplia, actualizada y de mayor nivel, que sería la de la ‘función
mitopoética’, considerando que de acuerdo a Lotman (1996: 88), el
mitopoético se encarga de equilibrar “los principios semánticos de
todas [las] heterogéneas estructuras textopoyéticas” y establecer la
naturaleza tipológica del enunciado aquí trabajado.
Es decir, lo primero que hay que considerar es que se tienen
las dos traducciones del nahuatl al español que promueven el proceso
transcultural de la intertextualidad. La primera de ellas sería la
‘isomórfica’ que transcribe el ‘In Teotl’ por el ‘Él es Dios’ cuando
literalmente debería decir ‘La energía o esencia de alguien’; y segunda,
la traducción homeomórfica que intentaría unificar un mito que
concentra tanto la cosmovisión de los misioneros católicos como la
cosmovisión india. Al lograrlo, aparentemente por medio del
simulacro religioso de los indios al adoptar la lengua del español, se
genera el mitopoético que integra a todos los textopoyéticos antiguos
y se homogeneizan con los de la actualidad, haciendo congruente y
coherente el sentido de todo el ritual de la danza conchera aztecachichimeca como es llamada en la actualidad.
Conclusión
Como se pudo observar en todo el proceso de exposición de
una fracción del muy complejo ritual, se logró mostrar varios
aspectos que permiten confirmar que existe un continuum históricosemiótico-discursivo-cultural entre la danza practicada en la época
prehispánica y la danza conchera de la actualidad.
Con la explosión cultural que se vivió al caer derrotada la
Mexico-Tenochtitlan, se dieron procesos dialógicos y dialécticos
entre los textos del mundo prehispánico con los no-textos de una
cultura ajena e invasora. La dinámica transcultural fue muy tensional,
lo propio y ajeno estaba en una guerra sin cuartel pero finalmente
los nuevos textos fueron apareciendo, transculturando
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intertextualmente los textopoyéticos de la memoria de la cultura
antigua con la alteridad de la religión católica, permitiendo así
conservarse en la semiosfera de la danza de la danza conchera gran
parte del pensamiento ancestral.
De cualquier forma los textopoyéticos desde inicio de la
colonización española estaban siendo amenazados, por lo que un
pensamiento mitológico, más que por un hecho histórico real, se
generó un mitopoético para que le diera sentido a la danza que
nacería, en un continuum con la anterior, después de la colonización
española, puesto que gran parte de su forma se vio alterada, aunque
su lucha de resistencia se enfocó más en los contenidos, los cuales
parecen mantenerse vigentes hasta el día de hoy.
Este mitopoético, paralelo al de la aparición de la Virgen de
Guadalupe, del ‘Él es Dios’, se convirtió en el tropo y eje ordenador
de todo el ritual. Su evocación es utilizada en distintos tiempos del
mismo, lo que hace que tenga variadas funciones en los hechos
comunicativos que se dan al interior de la danza. Algunas de estas
funciones son muy estables, como la ‘fática’ porque el ‘Él es Dios´’
abre y clausura cualquier momento del ritual conchero, es decir, el
‘contacto’ es siempre el mismo. La competencia lingüística,
pragmática, semiótica y discursiva que hay entre los sujetos concheros
es muy elevada, porque el destinatario es una colectividad homogénea
y entienden perfectamente el mensaje del enunciado discursivo del
‘Él es Dios’ de acuerdo a la modalidad pronunciada por la función
emotiva del destinador, lo que indica que la ‘función metalingüística’,
que bien podría ser establecida como ‘metadiscursiva’ y
‘metasemiótica’, por ser multidimensional, es altamente
comprensible gracias a la experiencia cognitiva que tienen todos los
integrantes de la semiosfera conchera. Por lo mismo, la ‘función
poética exhortativa’, centrada en la segunda persona —el de la
función conativa o apelativa—, es plena y sin oposición ni
contradicción, puesto que se obedece sin condición; mientras que la
‘función emotiva’ tiene una condición más mítico-cultural, pues está
basada en las creencias, es decir, este puede variar de acuerdo a la
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experiencia de quien se le ha asignado una ‘palabra’, es decir un cargo,
pero como es parte del destino para que una celebración salga bien,
normalmente la variación de esta función estará sujetada a la situación
en que se emite el ‘Él es Dios’, lo que alteraría un poco la ‘función
poética lírica’ de acuerdo a quién la ejerce, sin embargo, se ha
apreciado que gracias al pensamiento comunitario o colectivo que
tienen los danzantes, su valor no sufre tanta variación.
Ahora bien, la ‘función referencial’ sí se convierte en la más
fluctuante, por los cambios contextuales que se llegan a presentar,
los cuales suceden de ceremonia a ceremonia e intraceremonial. Estos
cambios de escenarios serían determinantes para alterar en todo
momento la ‘función poética épica’, que se enlazaría en la selección
y organización léxico-gramatical, pero como se trata de un sólo
enunciado del ‘Él es Dios’, implica que de acuerdo a los estudios
analíticos de Jakobson simplemente no se cumple su propuesta.
Ante tal situación, es menester rebasar los alcances limitados
de la confinada estructura de la lingüística para incursionar en el
ámbito cultural, por ello fue necesario ubicar el antecedente míticohistórico del ‘Él es Dios’ y establecerlo como un mitopoético
colonial, que viene a ejercer la fuente de inspiración de la práctica
sagrada de la danza conchera. El mitopoético se convierte así en un
dispositivo homogeneizador de los textopoyéticos que habían
sufrido severos ataques durante la colonización, y para que no fueran
disueltos en estructuras heterogéneas, desvinculados entre sí, el ‘Él
es Dios’ los vuelve a unir en un sólo sentido coherente y congruente
a través el texto que es la danza conchera.
La estrategia fundamental fue lograr que la traducción del
‘In Teotl’isomórficamente se refiriera a Dios, y
homeomórficamente incluyera al señor de Santiago en el mismo
mito, de esta manera unifica al ‘Él es Dios’ en un nuevo texto, en
el proceso trascultural de la intextextualidad, y con ello, la
pacificación y legalización de la producción y reproducción de
la danza conchera azteca-chichimeca.
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Por último, ante este nuevo panorama de las funciones
comunicativas de Jakobson a nivel dimensional de lo histórico
cultural, se puede ofrecer la propuesta de que ‘Él es Dios’ estaría
enmarcada en la ‘función mitopoética’, que sería el mensaje enfocado
a lo mitológico-cultural para su mejor análisis y explicación.
Imagen23. GrupoOllinAyacaxtli de la ciudad de México en su fiesta del Corpus Cristi,
antiguamenteXipeTotec, frente a la catedralmetropolitana el 10 de junio del 2012
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Notas
2
De manera muy convencional se definirá como los antiguos mexicanos a todos los pueblos que
habitaron en el suelo mexicano, pero debe quedar claro que no solamente fueron los mexicas
quienes ocuparon todo el territorio, hubieron otros muchos de grandeza cultural como los
chichimecas, los mayas, los zapotecos, los mixtecos, los purépechas, y otros muchos más. La
convencionalidad se basa en que entre ellos compartieron en un amplio continuum un gran
texto y memoria cultural homogéneos.
3
Es un dispositivo central que cumple una importantísima función: construye el cuadro del
mundo, establece la unidad entre sus esferas alejadas, realizando en esencia una serie de funciones
de la ciencia en las formaciones culturales precientíficas, por ejemplo, en el dominio de la
astronomía y los calendarios (LOTMAN, 1998, p.133).
4
El calendario Xiuhpohualli, o cuenta del Sol, que está constituido por 18 meses de 20 días
correspondiente a 360 días, se articula con el Tonalpohualli o cuenta de los destinos que se basa
en el movimiento de traslación de Venus (Quetzalcoatl para los antiguos mexicanos), constituido
por 13 meses de 20 días, y a su vez, entre ambos, complejizan un tercero, el Xiuhnepilli, es el
calendario cósmico que mide el movimiento de las estrellas, principalmente de las ‘Pléyades’,
haciendo un ‘siclo’ (neologismo que une siglo con ciclo) de 52 años.
5
Términos utilizados por los españoles para referirse isomórficamente a los imperios y reinados
europeos y aplicados a los mexicas, sin embargo, aquí se establecieron relaciones comerciales en
algo que se denominó como la ‘Gran Confederación de los Pueblos del Anahuac’, donde los
aztecas encabezaron el control.
6
Anahuac es el nombre que le aplicaron las culturas del norte del continente y Tawantizuyu por
las del sur. En conjunto sería ‘Tierra entre dos aguas en los cuatro rumbos del universo’.
7
En nahuatl no existe la palabra malo, cuando se hace bien se dice [cualli = bueno], y cuando no
se hace bien se dice [amo cualli = no bueno].
8
Así eran nombrados los habitantes de la Gran Chichimeca, que era toda la parte norte de
México. El término para los españoles significaba ‘perros rabiosos’ por [chichi = perro y mecatl =
cuerda para amarrar]; sin embargo, corrigiendo traducción isomórfica, Chichimeca viene de
[Chiichi ([i:] i alargada y con ello significa ‘amamantar’ y mecatl también es la medida de todo],
como en [Calmecatl = Casa del aprendizaje o Universidad], por lo que Chiichimeca con otro
sentido significaría que ‘es de donde viene la medida del conocimiento’, porque al amamantarse
de la medida de todo es adquirir el saber.
9
La Sierra Gorda es una porción geográfica constituida por un mazo montañoso de difícil
acceso. Comprende partes de varios Estados: Querétaro, Guanajuato, San Luis Potosí e Hidalgo.
10
[In Teotl = La esencia o energía de alguien]; pero fue traducido isomóficamente como ‘Él es
Dios’.
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A PRÁTICA MIDIÁTICA E A
HISTÓRIA: EM FOCO, O
SUJEITO INDÍGENA NO
SÉCULO XXI
THE MEDIATIC PRACTICE
AND HISTORY: IN XXI
CENTURY” POR “IN THE 21ST
CENTURY
Maria Luceli Faria Batistote
(UFMS)1
Caroline Hermínio Maldonado
(UFMS)2
RESUMO: Neste trabalho examinamos a prática midiática
correlacionada aos aspectos históricos, no intuito de
problematizar os sentidos discursivos sobre a construção da
1
Docente dos Programas de Pós-graduação: Mestrado em Comunicação e Mestrado em Estudos
de Linguagens - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande/MS/
Brasil, email: [email protected]
2
Aluna do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu - Mestrado em Comunicação - Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande/MS/Brasil, Bolsista CNPq, email:
[email protected]
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identidade do sujeito indígena. Tomamos como corpus um texto
sincrético, veiculado no Jornal Correio do Estado, no ano de 2009,
que apresenta além do texto verbal, uma fotomontagem, na qual
um jovem indígena aparece dividido, verticalmente, ao meio; de
um lado, vestido com terno e gravata e, de outro, com um traje
feito de fibras de buriti, típico da etnia Terena, usando, ainda,
cocar, colares e pintura em parte do rosto. Para a análise,
utilizamos noções da Semiótica francesa, mais especificamente,
a semântica discursiva, no que tange a tematização e figurativização,
buscando, à medida do possível, perceber na junção da expressão
com o conteúdo o processo de textualização e os efeitos de
sentido oriundos desse processo.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Mídia. História. Semiótica
francesa.
ABSTRACT: In this study we examine the mediatic practice
related to the historical aspects in order to problematize the discursive meanings of the construction of the indigenous subject’s
identity. We take as a corpus one syncretic text, published in
Correio do Estado, in 2009, which presents, beyond the verbal
text, a photo montage, in which a young Indian appears divided
vertically in half, on one side, dressed in suit and tie and, on the
other, with a costume made of buriti fiber, typical of the ethnicity
of Terena, and wearing a headdress, necklaces and painting on
the face. For the analysis, we employ the notions of French
Semiotics, more specifically, the discursive semantics, in regard
to the thematization and figurativeness, seeking, whenever it is
possible, the textualization process and the meaning effects resulting from the links between expression and content.
KEYWORDS: Discourse. Media. History. French Semiotcs.
Introdução
Os problemas relativos à terra, fome e violência, decorrentes de conflitos
e exclusão dos povos indígenas pelo próprio corpo social, teimam em
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subsistir. E os índios, seres humanos não reconhecidos como tais,
configuram-se como um produto dos tempos atuais, eles são refugos
humanos (AGAMBEN, 2002).
Neste trabalho examinamos a prática midiática correlacionada
aos aspectos históricos, no intuito de problematizar os sentidos
discursivos sobre a construção da identidade do sujeito indígena
no estado de Mato Grosso do Sul. Observar as representações sobre
os povos indígenas veiculadas na imprensa regional possibilita um
entendimento da “produção” da diferença que marca a trajetória
histórica dos indígenas, no Mato Grosso do Sul, ou seja, entender
como veem sendo “fabricados” e “produzidos” (SILVA, 1995, p.
198), no passado e no presente, os discursos sobre os índios. Desse
modo, é possível conhecer e compreender algumas das diversas
formas de sustentação de estereótipos locados no imaginário social
a respeito da figura do índio.
O texto selecionado para a análise foi extraído do Jornal
Correio do Estado, fundado em 1954, pelo grupo de mesmo nome,
criado pelo jornalista e professor José Barbosa Rodrigues. O jornal
impresso foi fundado 25 anos antes da divisão do então estado de
Mato Grosso e criação de Mato Grosso do Sul, cuja capital, Campo
Grande, abriga sua sede, atualmente.
Para a análise, utilizamos noções da semiótica francesa, mais
especificamente, a semântica discursiva, no que tange a tematização
e figurativização, buscando estabelecer, à medida do possível,
relações semissimbólicas entre as categorias dos planos de conteúdo
e de expressão.
1. Considerações teóricas
Dentre as teorias que tratam do texto discursivo, encontramos
a semiótica francesa, instituída por Algirdas Julien Greimas, também
conhecida como semiótica greimasiana ou discursiva. Ao buscar
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“descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o
que diz” (BARROS, 2005, p. 11), essa Semiótica não se interessa em
questionar o porquê do texto dizer o que diz. A semiótica de
Greimas firma suas bases no estruturalismo linguístico de Hjelmslev,
na antropologia estrutural de Lévi–Strauss, na teoria formalista do
conto de Propp e também na teoria das situações dramáticas de
Etienne Souriau (DIAS; PINTO, 2003).
A fim de elucidar o objetivo da semiótica, Fiorin (1999, p.
179), explica que “enquanto a Semiologia buscava descrever sistemas
de signo, [...] a Semiótica visa a compreender o sistema de diferenças
responsáveis pela produção de sentido de um texto”, ou seja, tratase de uma teoria que se importa, sobretudo, com a significação. Fiorin
(op. cit., p. 178) recorre à Greimas para sustentar a importância do
estudo da significação, que é considerado um denominador comum
das ciências humanas, “a ponto de o mundo humano definir-se
‘essencialmente como um mundo de significação’, de só poder ‘ser
chamado ‘humano’ na medida em que significa alguma coisa’”. Pelo
mesmo viés, Hall (2004, p. 40) argumenta que a língua não é um
sistema individual e sim um sistema social, preexistindo a nós, ou
seja, “falar uma língua não significa apenas expressar nossos
pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar a
imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua
e em nossos sistemas culturais”.
A semiótica francesa propõe-se como uma teoria gerativa, mas
também sintagmática, já que seu escopo é estudar a produção e a
interpretação de textos, e geral, porque se interessa por qualquer
tipo de texto, quer se manifeste verbalmente ou não. É apenas depois
de examinar o plano do conteúdo (sob a forma do percurso
gerativo), fazendo, por conseguinte, abstração da manifestação, que
a semiótica se volta para as especificidades da expressão e sua relação
com a significação. As estruturas textuais, no entanto, constituem
um domínio de pesquisas autônomas (desenvolvidas pela linguística
textual, entre outras), situando-se fora do percurso gerativo
propriamente dito.
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Outro aspecto importante na análise, a partir dessa perspectiva
teórica, é a conjuntura na qual o texto se insere, uma vez que,
conforme Barros (op. cit., p.12), necessário se faz analisá-lo em
relação ao contexto sócio-histórico que o envolve, pois somente
“encontra seu lugar entre os objetos culturais, inserido numa
sociedade (de classes) e determinado por formações ideológicas
específicas”.
É importante destacar que usar o percurso gerativo de sentido
como instrumental de análise não implica trabalhar todos os níveis
com igual interesse e profundidade. Assim, cabe observar como
Fiorin (1994, p.10) que um texto pode destacar mais um nível do
que outro, mais um componente do que outro e é sobre esse aspecto
mais explorado que a análises deve centrar-se.
Fizemos a opção pela semântica discursiva, com foco na
tematização e figurativização, do nível discursivo do percurso
gerativo de sentido, considerando a produtividade desses conceitos
para a análise de nosso corpus.
Nesse sentido, cabe acrescentar que do ponto de vista sintáxico,
os procedimentos de colocação em discurso, que entram em jogo na
instância da enunciação (os procedimentos de actorialização,
espacialização e temporalização), levam, graças aos mecanismos de
debreagem e de embreagem, à constituição de unidades discursivas.
O processo de discursivização não existe, assim, sem a instauração
de pessoas, espaços e tempos, procedimento que permite inscrever
as estruturas narrativas – de natureza lógica – em coordenadas
espácio-temporais e de converter os actantes em atores discursivos
(GREIMAS & COURTÈS, 1993, p. 379-80). A sintaxe do discurso
compreende ainda os procedimentos que o enunciador utiliza para
persuadir o enunciatário a aceitar o seu discurso. O fazer-crer é,
para a semiótica, um componente determinante do processo
comunicacional. Por essa razão, a argumentação adquire um relevo
muito grande na teoria. Já no âmbito da semântica, novos
investimentos vão acompanhar essa reorganização sintagmática. Um
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percurso narrativo dado pode, então, ser convertido, por ocasião
da sua discursivização, seja em um percurso temático, seja, numa
etapa posterior, em um percurso figurativo. Isso quer dizer que todos
os textos tematizam o nível narrativo, isto é, revestem os esquemas
narrativos abstratos com temas, podendo, em seguida, concretizar
ainda mais o nível temático, revestindo-o com figuras. Assim, se a
concretização parar no primeiro nível, teremos textos compostos
predominantemente de temas (isto é, de termos abstratos, que
organizam, classificam, categorizam os elementos do mundo natural);
se vier até o segundo, teremos textos constituídos preponderantemente
de figuras (ou seja, de termos concretos, que possuem, portanto,
um correspondente perceptível no mundo natural, quer seja este dado
ou construído). Cada um desses tipos de texto tem, pois, uma função
diferente: os temáticos explicam o mundo; os figurativos criam
simulacros do mundo.
Nas análises depreendemos as figuras que revestem as
temáticas que subjazem ao corpus selecionado, conforme
demonstrado no item 3. A seguir, tecemos algumas considerações
sobre o contexto no qual o indígena encontra-se inserido.
2. Algumas palavras sobre o contexto indígena
Cabe aqui retratar, ainda que brevemente, o panorama no qual
a reportagem mencionada foi veiculada, trazendo o tema da relação
entre identidade indígena, passado, presente e futuro; com ênfase
no uso de novas tecnologias e disputas, possivelmente, territoriais.
O estado de Mato Grosso do Sul possui uma das mais significativas
populações indígenas do país, totalizando 73.295 pessoas das etnias
Guarani-Ñandeva, Guarani-Kaiowá, Terena, Kadiwéu, Kinikinau,
Guató, Ofaié e Kamba, perdendo apenas para o estado do
Amazonas, que reúne 168.680 indígenas, segundo dados do Censo
2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistíca
(IBGE)3. Essas famílias vivem em uma região, na qual predomina
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um “forte sentimento anti-indígena”, agravado pelos conflitos
territoriais, segundo Brand; Nascimento e Urquiza (2009, p. 393).
Os conflitos atuais entre índios e latifundiários são resultado
de um processo de colonização, iniciado em 1892, que gerou o que
Brand (1997, p. 91) caracteriza como “confinamento” dos indígenas
das etnias Kaiowá e Guarani. Primeiramente o Governo Federal
concedeu a Companhia Matte Larangeira uma extensão de terra para
a exploração da erva-mate, que foi sendo ampliada com os anos,
até alcançar extensão de 5.000.000 ha. Com o fim do ciclo ervateiro,
em 1941, no governo de Getúlio Vargas, foi criada a Colônia
Agrícola Nacional de Dourados (CAND). Para promover o
desenvolvimento da região o Governo concedeu títulos de
propriedade a colonos. Estes dois momentos foram responsáveis
pela expulsão dos indígenas de suas terras tradicionais (BRAND,
1997).
Entre 1915 e 1920, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criou
reservas para as quais, conta vontade, foram levados os indígenas,
que reivindicavam suas terras, agora ocupadas por não-índios, que
implantavam as primeiras fazendas de gado. Em 1990, inicia-se o
avanço da agricultura mecanizada, com a monocultura de soja, cana
e milho. Nesta ocasião, os indígenas que ainda residiam em pequenas
áreas de mata nativa foram descobertos e obrigados a se retirar
(BRAND, 1997).
A Constituição Federal de 1988, além de assegurar o direito
dos índios de reaver seus territórios tradicionais, estabeleceu um
prazo de cinco anos para que ocorresse a regularização fundiária.
Hoje, com a “febre do biocombustível” se torna cada vez mais difícil
um acordo entre o estado, comunidades indígenas e aqueles que
têm títulos legítimos das terras. O caso é tão complicado, que tem
gerado conflitos armados, que já resultam em mortes de vários
indígenas, as quais os Guarani Kaiowá, ao se defenderem, por meio
de seu órgão representativo4; classificam como genocídio e/ou
etnocídio.
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Além dos Guarani Kaiowá, indígenas de certas comunidades,
pertencentes a outras etnias também seguem reivindicando por seus
territórios originais, como é o caso dos Terena. Vê-se, portanto,
que existem múltiplos casos de disputas territoriais em Mato Grosso
dos Sul, bem como diversas etnias. Hall (2004, p. 62) explica que “a
etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características
culturais – língua, religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’
– que são partilhadas por um povo”, ou seja, embora seja aceito o
termo “indígena” para se referir a estas populações é preciso
reconhecer que não se trata de um único povo.
No entanto, nota-se que muitas das reportagens dos jornais
regionais, a exemplo das contidas no suplemento ao qual este trabalho
faz análise da capa, frequentemente, apresentam os indígenas como
sendo um único povo, com uma única cultura; que estaria sendo
suplantada, por conta do simples fato de alguns indígenas viverem
nas cidades e não mais nas reservas ou aldeias, fazendo uso dos mesmos
recursos da “sociedade branca”. Isso fica evidente, por exemplo,
quando os textos são acompanhados de fotografias que mostram
pessoas de outra etnia, que não a mencionada na notícia ou reportagem.
Antes, porém, de iniciarmos as análises, consideremos as
afirmações de Limberti (2012, p.54):
A exposição intensa e ininterrupta à cultura não-índia faz com que os
índios sofram uma alteração em sua identidade, perdendo muitos dos
caracteres – que, num conjunto, realizam o reconhecimento de sua
individualidade – e ganhando outros que, isolados e opostos, neutralizam
o sentido de seus traços distintivos.
O confronto cultural apresenta um novo mundo que não é o deles,
com sentido totalmente diverso que se opõe ao deles. Alterando seus
valores de ordem existencial, tímica ou estética, torna ridículo o que era
sagrado, vergonha o que era orgulho, sobrevida o que era vida.
As características culturais específicas do sujeito indígena
parecem que se apresentam como ameaçadas no processo de
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modernização. A transformação nem sempre vem acompanhada
de ganhos e enriquecimentos para alguns.
Após breves relatos sobre o contexto indígena, detemos nosso
olhar para o texto sincrético.
3. A imagem estereotipada: uma possível análise
Nessa ótica, o foco analítico do nosso trabalho refere-se,
especificamente, ao texto sincrético, apresentado a seguir, publicado
no Jornal Correio do Estado, no ano de 2009.
Importa destacar, que esse texto é tido como sincrético por
conter um parágrafo grafado na capa de um suplemento especial,
acompanhado de uma fotomontagem, ou seja, o discurso, em sua
completude, é possível graças à associação de elementos com
diferentes linguagens.
Considerando que a semiótica possibilita análises que permitem
compreender como os discursos são construídos, como estabelecem
representações e processos de identificação5 dos sujeitos, justificamos
nossa opção teórica. Hall (2004, p. 71) defende que todas as
identidades estão localizadas em espaço e tempo simbólicos, sendo
que “a moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no
interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos
sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas”.
É preciso, ainda, considerar que, na análise de um texto, não
interessa a figura ou o tema isolados. Isso significa que, para achar o
tema que dá sentido às figuras ou o tema geral que unifica os temas
disseminados num discurso temático, é necessário apreender os
encadeamentos das figuras ou dos temas, isto é, os percursos
figurativos ou temáticos.
Segundo Fiorin (1989, p.91), figuras são termos que remetem
a elementos do mundo natural (efetivamente existente ou construído
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como tal): árvore, sol, correr, brincar, vermelho, etc., enquanto temas
são categorias que organizam, classificam, ordenam esses elementos:
elegância, vergonha, orgulho, etc. Os temas e as figuras encadeiamse, isto é, articulam-se em percursos podendo um dado texto ficar
apenas no nível temático (textos científicos e filosóficos, por
exemplo) ou ser revestido por figuras (textos literários, em geral,
criam, assim, simulacros de realidade). Isso quer dizer que todos os
textos passam por um primeiro nível de tematização, podendo (ou
não) ser figurativizados.
Em nosso corpus, a imagem apresenta um homem de aparência
jovem e traços, possivelmente, de alguma etnia indígena; que sorri e
está dividido, verticalmente, ao meio. De um lado, o jovem usa traje
de fibras de buriti, típico da etnia Terena, adereços no braço e
pescoço, pintura no rosto e cocar na cabeça. Do outro lado do corpo,
veste terno e gravata e segura um computador portátil, como exposto
no texto não-verbal. Ao lado direito, encontramos o texto verbal,
que para uma melhor visualização reproduzimos na sequência.
Reprodução do texto verbal:
Dividido, sem saber ao certo se mantém vivas suas tradições,
permanecendo tutelado, ou adaptando-se à sociedade em geral com
todas as suas novas tecnologias, o índio de MS vive um conflito. A
grande maioria ainda depende de políticas públicas que, nem sempre,
chegam às aldeias. Outros querem conquistar a independência, fazer sua
própria história, sem parar no tempo, e sem se envolver com disputas
que, nem sempre, representam efetivamente a sua vontade (CORREIO
DO ESTADO, 2009).
A escolha da semântica discursiva como recurso para esta
análise se dá em virtude do caráter mais específico e complexo das
estruturas discursivas, que na visão de Barros (1988, p. 115) são
mais “enriquecidas que as estruturas narrativas e fundamentais”. São
elementos da semântica estrutural: a tematização, a figurativização,
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a isotopia e a coerência textual. É importante atentar para a
tematização e a figurativização do texto, porque, conforme examina
Barros (op. cit, p. 115), “os valores disseminam-se, sob a forma de
temas, em percursos temáticos e recebem investimento figurativo,
no nível discursivo”, ou seja, compete à figurativização acrescentar
o sentido previsto na conversão do narrativo ao discursivo.
Com a finalidade de criar efeitos de realidade, o sujeito da
enunciação se vale da tematização e da figurativização. Assim, busca
desenvolver um discurso de coerência semântica e garantir a relação
entre mundo e discurso. Barros (op. cit, p. 92) explica que “o
enunciador coloca-se como destinador-manipulador, responsável
pelos valores do discurso e capaz de levar o enunciatário, a crer e
fazer. O fazer manipulador realiza-se no e pelo discurso, como um
fazer persuasivo”.
Segundo Greimas, o enunciador constroi discursos que criam
efeitos de sentido de verdade ou de falsidade, mas não elabora
discursos, de fato, verdadeiros ou falsos. O que parece ser verdadeiro,
no texto, é interpretado como ser verdadeiro, a partir do chamado
“contrato de veridicção assumido” (BARROS, op. cit, p. 94).
Na construção do discurso, o enunciador do texto se utiliza
de estratégias textuais e discursivas para o estabelecimento de pessoa,
tempo e espaço. Conforme sustenta Barros (2005, p. 54), “estudar
as projeções da enunciação é, por conseguinte, verificar quais são
os procedimentos utilizados para construir o discurso e quais os
efeitos de sentido fabricados pelos mecanismos escolhidos”. Como
nossa análise, centra-se nos aspectos da tematização e figurativização,
julgamos, ainda, pertinente, mencionar que “denomina-se figuração
a instalação pura e simples das figuras semióticas, ou seja, a passagem
do tema à figura, e iconização, seu revestimento exaustivo com a
finalidade de produzir ilusão referencial” (BARROS, op. cit, p. 117).
Dessa forma, buscando estabelecer uma relação entre a língua
e a realidade6, encontramos no texto em análise, o tema da divisão
ou fragmentação da identidade indígena, ora presa ao passado, ora
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atraída pelo presente. A escolha das isotopias, definidas, por Barros
(op. cit, p. 24), como “a reiteração discursiva dos temas e a
redundância das figuras, quando ocupam a dimensão total do
discurso”, possibilita um simulacro negativo da identidade indígena.
Afinal, trata-se de um índio tutelado, que não se adaptou inteiramente
à sociedade e depende de políticas públicas, representando assim
um problema para o Estado.
Considerando que a finalidade última de todo ato de
comunicação não é informar, mas persuadir o outro a aceitar o que
está sendo comunicado, nota-se, ainda, ser possível perceber pela
fotomontagem, o estabelecimento de uma relação semissimbólica.
As categorias semânticas de oposição passado vs presente/futuro,
do plano de conteúdo são representadas pelas categorias tradicional
(uso de adornos indígenas tradicionais) vs moderno (uso de traje
social e porte de computador - equipamento que conecta o indivíduo
ao mundo moderno), no plano de expressão.
A figurativização central da fotomontagem revela um espaço
duplo. Mais especificamente, trata-se de dois espaços, que não se
misturam, de modo algum. Um começa onde termina o outro. Isso
nos leva a crer em um deslocamento vivido pelo indígena representado.
Diferente do sujeito das múltiplas identidades, apontado pelos
estudos culturais, o sujeito apresentado em nosso corpus (na
fotomontagem) demonstra ser possuidor de duas identidades
apenas. Essas coexistem, não impedindo que o índio esboce um
sorriso, ou seja, parece não constituir motivo de tristeza ou frustração.
No entanto, o tema conflito pode ser apreendido por meio
das figuras apresentadas no enunciado verbal escrito. Vejamos:
“sem saber ao certo se mantém vivas suas tradições”,
“permanecendo tutelado”,
“adaptando-se à sociedade em geral com todas as suas novas
tecnologias”,
“a grande maioria ainda depende de políticas públicas”.
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Nesses recortes, denota-se uma situação de impasse para a
“sociedade em geral” (a qual o índio não se adaptou por inteiro) e
para o poder público (do qual o índio depende).
O enunciado “sem parar no tempo” produz a imagem do
indígena que quer se modernizar, pois “parar” denota ficar para
trás, não avançar.
As afirmações de Batistote (2012, p. 195) ajudam na análise
do enunciado “sem se envolver com disputas”, pois temos aí a
produção de um efeito de sentido que remete ao fato de não entrar
em conflito pela disputa de terras. A autora menciona que os grupos
indígenas brasileiros começarem a ficar sem suas terras, e a perda
de territórios passa a ser acompanhada da ausência de condições de
subsistência, de traços culturais, da autonomia.
E, ainda, destacamos o enunciado mais amplamente
apresentado ao final “sem se envolver com disputas que, nem
sempre, representam efetivamente a sua vontade” cujo efeito de
sentido produzido denota decisões tomadas mesmo sem virem ao
encontro da vontade do indígena, o que o apresenta, pois, como
um sujeito “sem vontade”, dominado pelo querer do outro. Dessa
forma, compreendendo a noção de estereótipo como uma “imagem
coletiva congelada considerada sob o ângulo da pejoração”
(AMOSSY & PIERROT, 1997, p. 69), é possível apreender, a
incorporação do sentido que se produz no enunciado “nem sempre,
representam efetivamente a sua vontade”.
A partir das análises, percebemos que a escrita se encontra e
se constrói no entrecruzamento de duas práticas distintas: a
jornalística e a histórica. A prática midiática deve, em princípio,
apurar os fatos, checar as fontes, considerar as versões conflitantes e
contrapor opiniões divergentes; tomar uma distância tal que possa
ter uma visão geral e, ao mesmo tempo, profunda dos fatos. Sabemos,
no entanto, que a prática jornalística se caracteriza pelo emprego de
estratégias que promovem uma construção da realidade no e pelo
discurso. Discurso que, por sua vez, se caracteriza por um nãoR E V I S T A ALERE - P R O G R A M A
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distanciamento temporal, supostamente necessário, do
acontecimento que está sendo narrado-apresentado. O tempo que a
história imediata narra-apresenta ainda está em curso. É o tempo
do presente, que se apresenta como uma lacuna entre o passado e o
futuro. Nessa perspectiva, a reflexão sobre os acontecimentos
presentes permite fazer que o passado retorne, seja reinterpretado
e novas significações sejam encontradas.
O índio, para nós brasileiros, não é o “outro” distante, do
outro continente; o índio é o próximo. O índio somos nós. Estamos
assim mergulhados em um cotidiano em que o político, o identitário
e o científico se entrelaçam continuamente, em suas relações. O tema
que permeia o discurso em questão retrata a realidade vivenciada,
no passado e no presente, não apenas pela sociedade indígena, mas
também pela sociedade do branco.
Segundo Gregolin (2000, p.19), o discurso – língua colocada
em prática no trabalho simbólico – é determinado pela História,
razão pela qual o sentido não está fixado como essência nas palavras.
Verificamos ser possível encontrar no texto, como uma unidade, ao
mesmo tempo linguística, sincrética e histórica, a construção de
sentidos veiculados pela mídia. Recorremos, pois, a De Certeau
(2002, p.56), historiador que, a partir dos meados de 1950, adota
um novo olhar para a História, indicando que os fatos históricos
acontecem porque, antes de existirem enquanto acontecimento,
muitos pensamentos e ações – os homens mesmo – no seu dia-adia, no quotidiano, estiveram presentes para que aquele
acontecimento ocorresse, existiriam em sintoma na sociedade.
Na compreensão dos mecanismos de interpretação
reconhecemos as figurações da História e o papel da memória na
legibilidade do sincretismo textual. O leitor é interpelado a
interpretar a História como se ela estivesse acontecendo diante do
seu olhar. Cria-se, pelo instantâneo, a ilusão do fluir histórico e,
consequentemente, a certeza ilusória de que se está acompanhando
a História-em-curso.
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Depreende-se que a prática midiática se constitui de traços
históricos que trazem a repetição de certa ideologia, produzindo
um determinado modo de funcionamento e estratégias enunciativas
que nos leva a crer no acontecimento, pois produz o efeito de sentido
de expressão da verdade do acontecimento e não como uma
construção de sentido particular.
Para um efeito de fim
Vale destacar que não buscamos a exaustividade, uma vez que
este trabalho não tem como objetivo uma completa e incontestável
análise de todos os níveis do percurso gerativo de sentido do texto
observado. Desse modo, abre caminho para reflexões sobre a
construção das identidades do indígena sul-mato-grossense. Para
tanto a ampliação do corpus se apresenta como necessária, afinal como
propõe Barros (1988, p. 94), “só quando um discurso é inserido no
contexto de outros textos, podem-se perceber os procedimentos
graças aos quais o enunciador o fez parecer verdadeiro”. Assim
sendo, aceitar ou recusar o discurso só é possível “no confronto
com discursos localizados em formações ideológicas contrárias ou
contraditórias” (BARROS, 1988, p. 94).
Para dar continuidade a este estudo, portanto, será interessante
somar à análise presente, outras apreciações, desta vez de discursos
oriundos de sujeitos com amplo conhecimento das questões
indígenas ou, para ser mais rico, de sujeitos propriamente indígenas;
que venham a contrapor os efeitos de sentido ora produzidos.
No entanto, por ora, suspendemos nossa escrita e deixamos
registrado que a partir das análises aqui apresentadas, encontramos
por meio dos conceitos de figurativização e tematização, um sujeito
indígena cindido, em que a submissão, o conformismo, a assimilação
acabam representando indivíduos que internalizam como legítimas
inovações advindas da modernidade.
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E, considerando que os sujeitos históricos se identificam ou
não como cidadãos no campo simbólico, percebe-se a construção
da identidade social do índio de forma estereotipada, ao buscar
formar uma percepção que impõe certo caráter nas informações
do nosso sentido ao rotular a evidência.
Questões como essas dizem respeito à nossa identidade
enquanto povo e ao destino desses outros povos, a partir dos quais
nos formamos e que insistimos, até hoje, em esquecer, abandonar,
rotular ou até mesmo destruir. Ampliar trabalhos conjuntos,
temáticos, voltados para um corpus específico, possibilita uma melhor
compreensão da nossa história, do nosso imaginário e,
consequentemente, das relações existentes entre discurso,
interioridades e exterioridades.
No texto sincrético, objeto de nossa análise, podemos
observar o esforço em constituir um caráter que conjuga natural e
cultural, característico do ser humano, contudo a sobreposição de
imagens não oferece uma explicação consistente, e o mosaico
formado, acaba por revelar o falso absolutismo do estereótipo.
Por fim, pretendemos mostrar que as categorias utilizadas
acima são não apenas produtivas na construção de sentidos de um
texto, mas também – e apesar da metalinguagem – acessíveis a
qualquer leitor, mesmo àquele pouco ou nada familiarizado com a
teoria semiótica.
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Henrique Burgio]. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 2002.
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T. T. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em
educação. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
Notas
3
Disponível em www.ibge.gov.br.
Trata-se do “Relatório da comissão de lideranças da Aty Guasu, após ouvir e ver a comunidade
Guarani e Kaiowá de Passo Piraju – Dourados – MS”, elaborado pela Assembleia dos Guarani,
nomeada Aty Guasu (termo da língua guarani, que pode ser traduzido como “grande assembleia”).
Documento disponível em https://www.facebook.com/notes/aty-guasu/relat%C3%B3rioda-comiss%C3%A3o-de-lideran%C3%A7as-da-aty-guasu-ap%C3%B3s-ouvir-e-ver-acomunidade-g/304885402962601.
5
Entende-se identificação, no sentido apontado por Hall (2004, p. 39), como um processo em
andamento, no qual “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro
de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso
exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros”.
6
Entende-se realidade, no sentido apontado por Guimarães (2005, p. 11-2), como as condições
sócio-históricas de um determinado grupo ou sociedade, na qual funcionam determinadas
divisões sociais em função da diferença simbólica (de sentido, ideológica) existente entre os
sujeitos que a constituem.
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reserva-se à Revista o direito de publicar o artigo na
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Estrutura:
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em inglês. Imediatamente abaixo, alinhado à direita,
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nome completo do autor, seguido da sigla de sua IES. Em nota de
rodapé: filiação científica - Departamento, Faculdade, Universidade,
CEP, cidade, estado, país.
Em Times New Roman e corpo 11: Resumo (máximo 200 palavras) e
Palavras-chave (máximo 06) no idioma do artigo; Abstract e
Keywords em inglês.
– Citações:
– No texto: entre aspas, sem destaque em itálico, seguidas, entre
parênteses, pelo sobrenome do autor em caixa alta, ano de publicação
e, quando necessário, da página (p.). “[...] moleques, mulatos/ vêm vêlos passar.” (FERREIRA, 1939, p. 65). Se o nome do autor estiver
citado no texto, indicam-se entre parênteses a data e a página: “Segundo
afirma Lotman (1991, p. 10).......”
Acima de 03 linhas: destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda,
corpo 11, sem aspas. Entre parênteses, sobrenome do autor em caixa
alta, ano, página.
Notas de rodapé: reduzidas ao mínimo, enumeradas, no pé de página,
corpo 10.
Referências bibliográficas:
Em ordem alfabética pelo último sobrenome do autor e conforme a
NBR 6023 da ABNT de 2006.
– Livros e monografias:
HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005.
– Capítulos de livros:
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AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A.
(Org.). O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 317-26.
ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In: _____. Texto e contexto.
São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 19-120.
– Dissertações e teses:
SILVA, I.A. Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. 1994.
Tese (Livre-docência) – Departamento de Linguística, Unesp,
Araraquara/SP.
– Artigos de periódicos:
HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje de
Ludwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos,
Puebla, n.24, p.5-9, 2002.
– Artigos em jornais:
CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, diz
estudo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago.2009. Cotidiano, p.5.
– Trabalhos em eventos:
SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In:
SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002.
Mirassol. Anais... Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20.
– Publicações On-Line
SILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10
mar.1999. Disponível em http://www.alerta.br. Acesso em 10
mar.1999.
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New Roman font, size 12, simple space between lines and paragraphs,
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and right.
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Length: 10 pages minimum and 15 maximum.
Structure:
Title - and its English translation - size 12, bold and capital, centered.
Immediately below, right-aligned, author’s full name, followed by the
initials of your university.
In a footnote: Academic Title, affiliation Science - Department,
College, University, zip code, city, state, country. email.
In Times New Roman and size 11: summary (maximum 200 words)
and keywords (maximum 06) in the language of the article; Abstract
and Keywords in English.
References in text and quotations:
Title of work into the text: italicized.
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This guideline, we can say that Dois Irmãos, novel published in 2000 by
Milton Hatoum,
Title of part: quotation marks.
In this text, Todorov introduces concepts that Genette itself brings in
the article “Frontiers of Narrative”, the same publication.
Text citations, enclosed in quotation marks, followed, in parentheses,
by author’s last name in uppercase, year of publication and, when
necessary, the page (p.);: “[...] street urchins, mulattos / come see them
spend” (Ferreira, 1939, p 65). If the author’s name is mentioned into
the text, indicates only the date in parentheses: “Souza (2005) points
out […]”. When necessary, the specification of page(s) should follow
the date, separated by commas and preceded by p. (SOUZA, 2005, p.
145). The quotes from various works by the same author, published in
the same year should be differentiated by small letters after the date
without spacing (SOUZA, 2005a). When the work has two or three
authors, all may be listed, separated by semicolons (SILVA; SOUZA;
SANTOS, 2005); when more than 3 authors, indicates the first followed
by et al. (SOUZA et al., 2005).
References (only mentioned studies into the text). Footnotes should
be presented in foot of page, using Microsoft Word resources, in size
10, numbered following the order of appearance.
Direct quotations, with longer than three lines (NBR 10520 of ABNT,
2006), should be highlighted with a decrease of 4 cm from the left
margin, in size 11 and unquoted.
References at the end of the text should be arranged as
recommended for ABNT NBR 6023 in 2006. We will give some
basic indications here: should be arranged alphabetically by
surname of the first author.
Books and monographs:
(AUTHOR, A. Title of the book. Edition number-ed., City: Publisher,
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number of pages p.).
HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005.
Book chapters (AUTHOR, A. Title of the chapter. In: AUTHOR, A.
book title. City: Publisher, Year. p. X-Y).
AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A.
(Org.) O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 317-26.
ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In ——— Texto e contexto.
São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 19-120.
Thesis and dissertations:
(AUTHOR, A. - dissertations /thesis title: subtitle without italics.
Number of leaves f. Year Dissertation / Thesis (Masters / PhD in
Concentration Area) - Institute / Faculty, University, City, Year)
SILVA, I.A. Figurações e metamorphose: o mito de Narciso. 1994 (Livredocência). Departamento de Linguística, Unesp, Araraquara/SP.
Journal articles:
(AUTHOR, A. title of article. Journal name, City, vol. volume, n.
paragraph, p. X-Y, Year).
HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje de
Ludwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos,
Puebla, n.24, p.5-9, 2002.
CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, diz
estudo. Folha de S.Paulo. São Paulo, 28 ago.2009. Cotidiano, p.5.
Work published in Annals of congress or similar:
(AUTHOR, A. title of work. in: NAME OF EVENT, edition ed.,
year. Anais... City: Institution. p. X-Y).
SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In:
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SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002.
Mirassol. Anais... Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20.
Work published On-Line:
SILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10
mar.1999. Disponível em http://www.alerta.br.Acesso em 10
mar.1999.
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E STUDOS L ITERÁRIOS -PPGEL - Ano 06, Vol. 08. N. o 08, dez. 2013 - ISSN 2176-1841 (digital) 1984-0055 (impressa)
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Revista ALERE 08 FINAL