Os afetos da Primeira Guerra Mundial na vida e na obra de Sigmund Freud. Cynthia Cristiane Guerreiro Baldi1 1- Introdução. Tomando a Primeira Guerra Mundial como marco de grande importância na vida e na obra do fundador da Psicanálise, pretendemos abordar as influências dos afetos (pathos) que esse violento evento e o difícil período do pós-guerra, na Áustria, proporcionaram sobre a vida e a obra de Sigmund Freud. Nossa hipótese é de que seus textos, dessa época, trazem as pistas dessas influências. Tendo como foco a Ciência Política, apontaremos para a ampliação do objeto de estudo do autor – o indivíduo para questões mais abrangentes, relacionadas ao social. Ainda que essas preocupações já estivessem presentes em trabalhos anteriores é, precisamente, a partir da Guerra que Freud, de fato, se propõe a expô-las à uma análise mais detalhada. Mesmo que Freud nunca tenha perdido de vista seu objeto, o indivíduo, acreditamos ser possível extrair importantes contribuições de seu pensamento acerca das relações sociais e, portanto, políticas, para as ciências sociais como um todo e não apenas para a Psicanálise. Antes da Primeira Guerra Mundial começar, Freud já havia escrito Totem e Tabu e rompido com Jung. Em Totem e Tabu o tema da morte (nesse caso, do pai) já parecia central tanto para o desenvolvimento do indivíduo (o Complexo de Édipo) como para o da sociedade (assassinato do pai primitivo). As preocupações de Freud, antes da Guerra giravam em torno da reorganização da Associação Psicanalítica Internacional, sem Jung na presidência, e com a Psicanálise em outros níveis, sua clínica, suas publicações e da organização do próximo congresso psicanítico que se realizaria em setembro.2 2- A Primeira Guerra Mundial. O período da Guerra foi uma época extremamente difícil e dolorosa, ainda que seus efeitos não se tenham revelado logo após o seu início. Foi um tempo onde a razão, 1 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Mestranda no Programa de Ciência Política, na mesma universidade. Área de concentração: Teoria Política. Linha temática de pesquisa: Poder, Subjetividade e Mudança Política. Sob orientação do Professor Doutor Renato Lessa. 2 Max Schur, Freud: Vida e Agonia. 1 tão admirada por Freud, ficou em segundo plano diante de toda a agressividade que era liberada. A partir de 1908, o Império Austro-Húngaro viveu algumas crises sucessivas, envolvendo os Bálcãs. O imperialismo na Alemanha seguia rumo ao choque com os interesses das Potencias Ocidentais, além disso, o militarismo, as rivalidades raciais e culturais eram outros fatores complexos dentro do Império austro-húngaro. Em 28 de junho de 1914 o Arquiduque austríaco Francisco Ferdinand foi assassinado, em Sarajevo, por militantes bósnios. Seis semanas depois, eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Em 23 de julho a Áustria deu um ultimato à Sérvia, com o apoio da Alemanha e, cinco dias depois, 29 de julho, o exército austro-húngaro a atacou. Nesse período, Freud e quase toda a população autríaca foram assolados por uma euforia nacionalista. No dia 4 de agosto, confirmada a invasão da Bélgica pela Alemanha, a Inglaterra entrou na guerra. Em agosto, a maior parte da Europa e as regiões vizinhas estavam em guerra; mais tarde, a Itália e os Estadoas Unidos também entrariam na guerra. Em novembro, Freud soube da morte de seu meio irmão Emanuel, num acidente de trem , na Inglaterra. Era impressionante o entusiasmo com que a guerra foi saudada, não apenas pela população, mas por intelectuais e artistas. O entusiasmo de Freud foi breve, até porque sua admiração pela Inglaterra era grande o que não se repetia em relação à Alemanha. Além disso, outro fator que o fez desaprovar a guerra foram as consequências diretas sobre sua vida pessoal e profissional: até o fim da guerra seus tres filhos tinham participado de combates e sua atividade clínica foi praticamente arruinada nos anos em que a guerra prosseguiu. O congresso de Psicanálise que aconteceria em setembro, em Dresdem, não pôde se realizar. Os adeptos da psicanálise e colegas de Freud foram quase todos recrutados para servir na guerra. Por falta de dinheiro e disponibilidade as publicações psicanalíticas foram sendo interrompidas, paralizadas e diminuidas. A sociedade psicanalítica de Viena que se reunia semanalmente fazia anos, diminuiu gradativamente seus encontros até que se tornassem esporádicos. Congressos internacionais foram impossibilitados o que punha em risco a própria Psicanálise. Anna Freud, filha mais nova de Freud, que viajou para a Inglaterra, em meados de julho, foi surpreendida pelas hostilidades e voltou em segurança para Viena, no final de agosto, com a ajuda de Ernest Jones, colega inglês de Freud, apesar do risco que ela correu não ter sido tão grande. No início de agosto, um dos filhos de Freud, Martin, que havia sido recusado 2 num primeiro momento, se apresentou voluntariamente para servir no fronte. Em 1916, foi a vez de outro filho, Oliver. Ernest; o filho mais novo, se tornou voluntário em outubro. O genro, marido de Sophie, combateu até ser ferido e reformado por invalidez, em 1916. Esse foi um período doloroso e de muitas espectativas pelo bem-estar dos filhos, Freud enviava dinheiro e alimentos para eles, no fronte, e aguardava angustiadamente por notícias suas. O período de guerra foi também uma época de isolamento forçado para Freud, seus colegas estudiosos da psicanálise estavam praticamente todos servindo ao exército; com os amigos dos países adversários era difícil manter contato por causa da censura, além disso a maioria de seus pacientes ou estava também servindo ao exército ou tinha problemas mais imediatos, gerados pela guerra, do que a análise para se ocupar; as publicações diminuiram gigantescamente, não havia congressos psicanalíticos. O lado positivo é que lhe sobrou tempo para desenvolver suas idéias e escrever mais. Em 1915, escreveu os artigos sobre metapsicologia, empreendendo uma exposição completa e sistemática de suas teorias psicológicas, que eram doze, mas dos quais sete foram destruídos pelo autor, dos que restaram estão Os Instintos e suas vicissitudes, Repressão, O Inconsciente, Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos e Luto e Melancolia. Escreveu ainda, Um Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica da Doença, Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte, Sobre a Transitoriedade. Em 1916, com sessenta anos de idade, Freud escreveu Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico. Nos invernos de 1915-16 e 1916-17, Freud apresentou três séries de palestras introdutórias, resumindo e tentando popularizar a Psicanálise: Conferências Introdutórias, onde não deixou de mencionar a guerra, ainda que brevemente, dando mostra do quanto a destrutividade humana ocupava seus pensamentos durantes esses anos. Em 1917, uma vitória das Potências Centrais parecia impossível, ainda mais com a entrada dos Estados Unidos na Guerra, ao lado dos Países Aliados. A situação em Viena era precária: comida e combustíveis, necessários para o aquecimento, escassos tornavam o frio difícil de suportar, a inflação galopante sobre os gêneros de primeira necessidade era ainda maior que a oficial, no mercado negro. Freud recebia, 3 ocasionalmente, remessas de alimentos dos colegas de outros países o que era apenas um paliativo.3 Em 1918, após publicar Luto e Melancolia, Freud destruiu 7 dos 12 ensaios de metapsicologia que havia escrito nos últimos anos, um gesto enigmático, que provavelmente, teve alguma ligação com o sofrimento gerado pela guerra. Em setembro, um congresso psicanalítico internacional pôde, finalmente, se realizar, o último havia sido em 1913. Com um número de participantes reduzido, um dos temas discutidos foram as neuroses de guerra. Em novembro, a guerra estava terminada e império austro-húngaro sendo desmantelado. Depois de semanas sem notícias, no fim do mês, Freud teve notícias de Martin, prisioneiro desde outubro, na Itália. Em Luto e Melancolia4, escrito em 1915 mas só publicado em 1917, Freud analisa mais profundamente os sentimentos ambivalentes envolvidos no processo de luto. Descreve também como a agressividade volta-se para o próprio indivíduo. Com a continuidade da guerra e influenciado por todas as consequências que ela vinha impondo, Freud começou a refletir sobre a decadência da humanidade e a realidade da natureza humana da qual a guerra era a expressão e, em 1915 publicou dois artigos: A Desilusão da Guerra e Nossa Atitude para com a Morte que compõem as Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte5. Nesses artigos, Freud admitia que a existência de nações entre as quais havia diferenças econômicas e culturais poderia desencadear guerras, mas que a espectativa era de que a civilização pudesse gerar maneiras alternativas e mais pacíficas de resolver esses conflitos e que, mesmo se chegassem a ocorrer guerras que elas seriam pouco sangrentas, que respeitariam as normas do direito internacional, espectativas que se frustravam com o advento mais sangrento que a humanidade presenciava até então. No primeiro artigo, Freud chama a atenção para a destruição dos bens construídos pela humanidade, através da explosão do ódio e do desprezo pelo inimigo. Mesmo os intelectuais, artistas e cientistas foram carregados pela propaganda tendenciosa da guerra e perderam a lucidez. Uma das consequências da guerra foi pôr abaixo as ilusões acerca da natureza humana; natureza essa que, para a Psicanálise, não era nenhuma surpresa. O homem não é ‘bom’ e nem ‘mau’, apenas expressa seus 3 Peter Gay, Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. 4 Sigmund Freud, Luto e Melancolia. 5 Sigmund Freud, Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte. 4 impulsos primitivos que, na sociedade civilizada, são inibidos social e internamente e, toda a agressividade que é reprimida, em algum momento, vem novamente à tona. A guerra mostrou que a humanidade não é naturalmente boa, essa ilusão é que causou tanta decepção quando se percebeu a destrutividade e a mortandade de que é capaz a humanidade. No segundo artigo, o tema da morte é central. Freud questiona o posicionamento da sociedade civilizada em relação à morte. Segundo ele, o homem moderno nega constantemente a existência da morte e usa a imaginação para atenuar os efeitos que o impacto da morte de outros causa sobre si; exemplo disso são o romance e o teatro que, permitem uma certa identificação com a morte da personagem, mas enquanto ela está distante, no plano da ficção. O que a civilização tenta ocultar, a agressividade, sob o véu da gentileza e da cortesia, o homem primitivo vivia mais abertamente, se satisfazendo despudoradamente com a morte do inimigo. Freud sustenta que um dos sentimentos ambivalentes que surgem, em função da morte, é a culpa e, é esse sentimento que faz surgir a crença numa vida eterna, no espríto imortal, na reencarnação e, o medo da morte está relacionado a esse sentimento de culpa. Ora, a proibição de matar, norma na sociedade civilizada, com a mortandade provocada pela guerra, é mostra de que o homem moderno apenas reprimiu a agressividade que é parte integrante da sua psiquê e que o coloca muito próximo do homem primitivo. Desfeita essa ilusão, a morte estando cara-a-cara com o homem, a vida se torna mais interessante; admitindo a real possibilidade da morte é que o homem tem a possibilidade de reconstruir uma civilização menos hipócrita e frágil. Tendo seus filhos no fronte, Freud sabia bem o que era essa proximidade com a morte. Ele condenava a guerra e a única via de escape para essa opção, em sua opinião, era através do Logos. Sua própria atividade intelectual, durante a guerra, o ajudou a tolerar seus efeitos sobre sua sua vida como, por exemplo, o receio pela morte dos filhos e as dificuldades financeiras. Em Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte, Freud depositou toda a tentativa de explicar o advento da guerra nas propriedades da natureza humana, aliás, toda aproximação de uma análise mais social ou de fenômenos sociais, na obra de Freud, tem sempre como foco e ponto de partida a natureza humana. 5 Também tratando da morte, em 1915, Freud escreveu Sobre a Transitoriedade6, onde afirma que a mortalidade, não anula o valor da vida assim como a limitação temporal de uma obra de arte não minora sua beleza. Falando das proezas realizadas pela guerra: a destruição das realizações da civilização, o fim da ilusão sobre a possibilidade de fim das diferenças entre raças e nações, o fim da crença na imparcialidade da ciência, a exposição dos instintos primitivos agressivos que se julgavam domesticados pela educação civilizada; Freud afirma que a perecividade desses objetos não faz com seu valor seja anulado, ainda que aparentemente essa perda de valor se mostre verdadeira. Isso será verdade apenas enquanto durar o luto pela perda desses objetos, depois disso, a libido novamente estará pronta para investir em outros objetos e na reconstrução do que foi perdido e, possivelmente, em bases mais sólidas, menos frágeis. 3- O pós-gerra. Os meses seguintes ao fim da guerra foram marcados por instabilidades políticas na Alemanha, na Àustria e na Hungria e por batalhas, nas ruas, entre militantes radicais e reacionários. O ano seguinte, provou que o fim da guerra não acabaria com as dificuldades na Áustria; a nutrição e a saúde continuavam precárias. Foi um ano marcado também, por uma série de tratados que puseram fim aos impérios centroeuropeus e, em junho, os alemães assinaram o Tratado de Versalhes. Boa parte da antiga Ástria também foi mutilada com a assinatura do Tratado de St. Germain. A situação em Viena, no pós-guerra, continuava tão precária que Freud chegou a escrever um artigo para um jornal pedindo batatas como pagamento; para comer carne as pessoas criavam coelhos ou caçavam esquilos.7 O governo racionava os gêneros de primeira necessidade, os combustíveis continuavam escassos e o mercado negro prosperava. Países ocidentais enviavam gêneros de primeira necessidade para a população, tentando atender aos apelos de políticos austríacos o que não resolvia, de forma alguma, o problema. A mortalidade infantil era alarmante. Em 1919, Martin finalmente voltou para casa depois de ficar por um bom período se recuperando de ferimentos num hospital, destino diferente de mais de 800 mil soldados austro-húngaros que morreram em combate ou por doenças na guerra. 6 Sigmund Freud, Sobre a Transitoriedade. 7 Peter Gay, Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. 6 Freud havia se preparado, durante a guerra, para, possivelmente, receber a notícia da morte dos filhos. Diferente de muitas famílias, a família Freud teve sorte e a guerra não foi responsável pela maorte de nenhum deles. Mas o período seguinte, do pós-guerra, pôs a morte em contato com Freud em vários momentos. O primeiro deles, em 3 de julho de 1919, foi através de Victor Tausk, psicanalista em Viena que, depois da guerra procurou a ajuda de Freud que se recusou a analisá-lo, indicando Helene Deutsch para para substituí-lo na análise. Freud era analista de Helene e Helene se tornou analista de Tausk, a análise não deu certo e Tausk se suicidou. Freud parece não ter se abalado muito com a morte de Tausk. A segunda morte foi a de Anton Von Freund, essa sim, o abalou Freud profundamente. No início de 1920, Sophie, filha de Freud, grávida do terceiro filho e deixando mais dois, morreu por causa de uma pneumonia, agravamento de uma gripe, se tornando mais uma vítima da guerra. Freud e sua esposa não puderam comparecer ao enterro porque não havia trens. Freud sofria até mesmo com a escassez de papel, o que fazia racionar as cartas aos amigos e parentes estrangeiros nas quais pedia, no que era prontamente atendido, que lhe enviassem e a sua família todo tipo de produtos, desde alimentos até charutos e roupas; essas cartas eram também, uma forma de denunciar a situação calamitosa em que viviam. Como se não bastasse, Freud ainda tinha que se preocupar com o desvio de destino e a violação que sofriam muitas de suas encomendas. A família de Freud sofria também com a debilidade da saúde, gerada por anos de nutrição insuficiente. Sua esposa teve pneumonia, complicação gerada pela ‘gripe espanhola’ que vinha matando milhares de pessoas. Em 1918, escolas e teatro eram fechadas nos tempos mais frios para tentar diminuir o contágio. Em 1921, quando findou a epidemia, mais de 15 mil pessoas haviam morrido, em decorrência da doença e da falta de medicamentos para combatê-la. Felizmente Martha Freud sobreviveu, depois de uma longa recuperação. A partir de 1921, as coisas começaram a melhorar lentamente, a inflação continuava e Freud, com muitos pacientes ingleses e norte-americanos, na atual conjunturas seus preferidos, pedia o pagamento em dólares. Como consequência da guerra, seus filhos ficaram desempregados ou com empregos precários, o que fez com que Freud se tornasse também responsável por sua subsistência. Em 1923, Freud publicou O Ego e o Id, escrito no ano anterior para ser uma continuação de Além do Princípio do Prazer, onde apresentava a divisão em id, ego e superego da estrutura e do funcionamento mental. 7 Em agosto, sua sobrinha Cecilie Graf, com 23 anos, suicidou-se, estava grávida e solteira, morte que o balou bastante. Desde o fim de 1917, Freud vinha sofrendo com um inchaço no palato; em fevereiro de 1923, percebeu um tumor leucoplástico8 no maxilar e no palato que foi removido poucos meses depois. Desde o início Freud desconfiava da malignidade do tumor, mas Maximiliam Steiner, o dermatologista que procurou, não confirmou o diagnóstico de câncer. Pouco tempo depois, procurou felix Deutsch, outro médico, para ouvir sua opinião, ele também não confirmou o verdadeiro diagnóstico – epitelioma – mas aconselhou sua remoção. Freud escolheu o rinologista Marcus Hajek para fazer a cirurgia - médico que não tinha fama de muito competente. A cirurgia foi realizada, irresponsavelmente, no ambulatório da clínica desse médico. Freud teve grande hemorragia durante e depois da cirurgia e ficou numa enfermaria sem acompanhamento algum e somente na companhia de um outro paciente. Esse paciente percebendo o malestar de Freud durante a tarde foi quem, provavelmente, salvou sua vida indo chamar a enfermeira já que a campanhia não funcionava. Foram ainda receitadas pelo médico, sessões de rádio e raio x que não surtiram efeito, pois para esse tipo de câncer não eram aconselháveis.9 Meses depois, com a continuidade das dores, Freud voltou a procurar Deutsch, que aconselhou uma segunda operação, ainda sem revelar o verdadeiro diagnóstico ao paciente. Junto com todo o sofrimento e a preocupação com sua saúde, Freud, novamente, teve contato com a morte, talvez essa tenha a sido a perda mais dolorosa para ele, seu neto, filho mais novo de Sophie, com 4 anos, morreu depois de constatada uma tuberculose miliar, em 19 de junho. Somente em setembro, Freud teve acesso a verdade de sua doença, enfrentando corajosamente todos os procedimentos a que foi obrigado a se submeter. Procurou então Hans Pichler, conceituado ciurgião das vias orais, indicado por Deutsch, foram realizadas duas cirurgias, em 4 e 12 de outubro. Em novembro, novos tecidos cancerosos foram detectado e uma nova cirurgia necessária. Em seguida, cerca de 30 cirurgias foram realizadas para retirar novas leucoplasias benignas ou pré-cancerosas, as sucessivas próteses eram incômodas e dolorosas, impediam uma boa dicção e comer e fumar se tornaram atividades dolorosas, Freud lutou bravamente contra a doença e, 8 Tumor benigno associado ao consumo regular de tabaco. 9 Max Schur, Freud: Vida e Agonia. 8 somente em 1936, o câncer seria novamente detectado. Em 23 de setembro de 1939, a morte finalmente venceu, Freud tinha 83 anos de idade. 1920 foi ano em que Freud publicou Além do Princípio do Prazer10, escrito no ano anterior. Nesse texto, onde continua a tratar do tema da morte, ele desenvolveu o conceito de ‘pulsão de morte’ e deu ênfase à agressão. Chegou a se cogitar que Freud tivesse escrito esse texto motivado pela morte da filha Sophie, mas ele já havia escrito o texto quando ela morreu, mas de qualquer forma, a violência dos anos anteriores teve sua parcela de responsabilidade numa maior preocupação de Freud com a morte e a agressividade do indivíduo e da sociedade já que, a guerra revelava uma face da humanidade que ilusoriamente julgava-se inexistente. Em obras anteriores à guerra Freud já havia dado atenção à questão da agressão, mas num nível mais restrito ao indivíduo. Por isso mesmo, ele insistia que, para a Psicanálise, a Guerra não foi surpresa, veio apenas confirmar suas hipóteses acerca da natureza humana. Outro fator que fez parte do pano de fundo para o desenvolvimento desse texto foi ter acompanhado a luta do amigo e paciente Anton von Freund11, que sofria de câncer, contra a morte e que faleceu dias antes de sua filha. Além do Princípio do Prazer foi um texto um pouco mais especulativo e menos fincado na experiência clínica, que seus escritos anteriores, o próprio autor alertava para suas incertezas. No entanto, introduziu importantes avanços à teoria das pulsões ampliando o conceito de sexualidade, introduzindo o conceito de narcisismo e a afirmando a natureza regressiva das pulsões. Na mente humana existiria uma forte tendência para o princípio do prazer, porém o que gera prazer pode simultaneamente gerar desprazer, caberia, então, ao princípio de realidade adiar a obtenção desse prazer imediato para evitar o desprazer adiando e redirecionando a satisfação. A partir daí usa a compulsão à repetição como uma atividade extremamente instintiva chegando à conclusão de que “a finalidade de toda vida é a morte”, ou seja, de que há, também, uma tendência a restauração do estado inorgânico através da morte; era 10 Sigmund Freud, Além do Princípio do Prazer. 11 Anton Von Freund fez análise com Freud e foi curado de uma neurose, sua gratidão o fez fundar uma editora para apoiar as publicações psicanalíticas; era um homem rico. Em 1919, foram constatadas metástases de seu câncer abdominal; tendo total consciência de seu estado, Freund lutou o quanto pôde contra a doença. As cartas da época mostram como o sofrimento do jovem amigo abalou Freud. Freund morreu em 21 de janeiro de 1920. Freud acompanhou o amigo durante todos os dias até sua morte, com 40 anos de idade. Ver Max Schur, Freud: Vida e Agonia e Pete Gay, Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. 9 essa a pulsão de morte. Mas, se assim fosse, a morte seria o principal objetivo da mente, porém, na realidade, pulsão de morte e pulsão de vida, Eros e Tânatos, lutam até o fim, ou seja, até a vitória da pulsão de morte durante toda a vida, vida que é o palco desse conflito, na mente humana. A pulsão de vida tende a investir tudo – o corpo, as coisas, outros seres – libidinalmente, buscando a coesão entre tudo, no movimento oposto, estaria a pulsão de morte tentando desprender essa libido dos objetos, separá-los, acabando com a tensão e voltando ao estado inorgânico. A pulsão de morte buscaria o fim da tensão psíquica através da morte. Ambas as pulsões tentam reestabelecer um estado, anterior, a primeira através da ligação libidinal, aumentando a tensão, e a segunda, através da busca da calma do inorgânico. Esse estado anterior pode ser prazeroso ou não. Essa tendência à repetição, para Freud, seria maior que a própria tendência ao princípio de prazer.12 Outra forma de aliviar essa tensão, e é essa a que pôde ser observada durante a Guerra, seria através da agressividade dirigida ao mundo externo, ao social, à civilização. Segundo Max Schur, “As formulações de Freud quanto à pulsão de morte e à compulsão à repetição foram, em parte, determinadas por uma permanete tentativa de “elaborar” suas supertições obsessivas e chegar a um acordo com o problema da morte, tratando-o como problema científico”13. Na verdade, quase todos os escritos de Freud desde o início da Guerra, mostram sua clara preocupação com a questão da morte e da agressividade, questões que, o levaram a refletir acerca de fenômenos sociais como a própria guerra, as religiões etc. Como se, para suportar todos acontecimentos que assolaram sua vida, a partir da guerra, Freud tivesse que colocar muitas dessas questões no plano científico, aliás, para ele, o conhecimento seria a única solução sólida para os problemas que a civilização e ele mesmo vinham enfrentando. Em Psicologia de Massa e Análise do Ego14, Freud quis apontar um caminho para, da análise do indivíduo, passar para a compreensão da sociedade. Ele tentava entender o que mantinha os grupos unidos, além do interesse próprio. Para o autor, como o (s) Outro (s) está presente na vida do indivíduo desde seus primeiros momentos – como objeto de identificação, objeto de desejo, adversário e auxiliar – a psicologia individual seria ao mesmo tempo psicologia social, pois, desde o início, há relações 12 J. –D. Nasio, O Prazer de Ler Freud. 13 Max Schur, Freud: Vida e Agonia. 14 Sigmund Freud, Psicologia de Massa e Análise do Ego. 10 sociais com outros indivíduos; as relações familiares são relações sociais, relações de poder. Com isso, Freud deixava claro que não é possível analisar o indivíduo sem recorrer ao exterior, à sociedade, às relações sociais e vice-e-versa, do contrário, se têm apenas análises superficiais. Para Freud, o que liga os grupos são emoções sexuais difusas, o fim dessa libido é inibida, ou seja, sublimado. Analisando o exército e a igreja, os indivíduos estariam ligados libidinalmente ao líder (comandante, Cristo) por um lado, e aos outros indivíduos do grupo, por outro lado. Sendo ligados por laços libidinais, os grupos só se desintegram quando esses laços enfraquecem. Sendo unidos intensamente por laços de amor, na mesma intensidade, será dirigido ódio aos que não pertencem ao grupo, que são diferentes. Isso explicaria a intolerância religiosa, por exemplo. 4- Conclusão. Segundo Mezan, os escritos de Freud, que contém os conceitos fundamentais da Psicanálise, são compostos, paralelamente por construções, pensamentos e inferências do indivíduo Sigmund Freud, e que são expressão e elaboração de sua visão particular do mundo e que, escapam à rigidez de sua ciência. Essa dimensão singular e única da vida psíquica freudiana, subterrânea em sua obra, é que permite concluir que sua obra é profundamente marcada pelos acontecimentos de sua vida pessoal e que os mesmos tiveram importante influência nos rumos que sua obra seguiu. È por essa razão, também, que achamos de fundamental importância fazer uma análise os escritos de Freud considerando a marca, durante e após a Primeira Guerra Mundial, de um reflexo, de uma influência, não num sentido determinista, do sofrimento (pathos) que esse período representou para o nosso autor.15 Como a morte esteve muito próxima dele, nesse período, nada surpreende que ela se revelasse presente nos seus escritos desse período e que a preocupação com fenômenos sociais, ainda que, sempre partindo suas reflexões sobre a natureza humana, compusessem suas preocupações em sua obra, mais fortemente apartir desse catastrófico evento: a Primeira Guerra Mundial. 5- Referências Bibliográficas: 15 Renato Mezan, Freud, Pensador da Cultura. 11 FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia; Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte e Sobre a Transitoriedade. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Riode Janeiro: Imago, 2006. ---------------------. Além do princípio do Prazer e Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006. GAY, Peter. Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. São Paulo: Cia das Letras, 2005. MEZAN, Renato. Freud, Pensador da Cultura. São paulo: Cia. Das Letras, 2006. --------------------. Sigmund Freud – A Conquista do Proibido. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. NASIO, J. –D. O Prazer de Ler Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. SCHUR, Marx. Freud: Vida e Agonia. Uma Biografia. Rio de Janeiro: Imago, 1981. 12