PRAÇA ÂNGELO CRETÃ37: UMA HISTÓRIA KAINGANG DE
CONFLITOS E RESISTÊNCIA
Ana Caroline Goulart
João Valentin Wawzyniak (Orientador)
RESUMO
No ano de 2009, famílias kaingang de diferentes áreas indígenas do
Paraná se deslocaram para a região urbana de Londrina levantando
acampamento na praça Ângelo Cretã, onde permanecem até os dias
atuais. Essas famílias reivindicam o reconhecimento da área como Terra
Indígena, pautando-se na doação da praça pela prefeitura à FUNAI em
1990. No entanto, a doação foi invalidada pela prefeitura em 1992, com o
argumento da sua não utilização pela FUNAI, órgão agora responsável
pela realocação dessas famílias. Situação que acarreta sérias complicações
para essas famílias que se mantém em precárias condições de todas as
ordens. O presente trabalho tem por objetivos abordar os conflitos entre
os kaingang, população não indígena do bairro, prefeitura e FUNAI,
buscando identificar, a partir disso, as motivações das famílias para
permanecerem na área, bem como as suas estratégias e ocupação do
espaço. Essa pesquisa está no seu estágio inicial. Já foram feitas incursões
a campo que permitiram conhecer o espaço, fazer uma aproximação
inicial com as famílias e observar o cotidiano delas. Ao mesmo tempo está
sendo realizado um levantamento de informações a respeito da doação da
praça e das ações das instituições envolvidas direta ou indiretamente
nesse processo de ocupação.
Palavras-chave: kaingang – praça – conflitos
37
Cacique Kaingang da Terra Indígena de Mangueirinha foi assassinado em 1980 por agir politicamente a favor
das causas indígenas. O nome foi dado à praça em uma homenagem ao cacique na ocasião da doação da praça.
129
TERRITORIALIDADE E DESLOCAMENTOS KAINGANG
Historicamente as famílias kaingang deslocam-se espacialmente
de acordo com suas necessidades rituais e de plantio, adicionando novas
terras ao que já habitavam antes de levantar novos acampamentos.
Tommasino (2000:200) identificou outros modos de apropriação do
espaço que variam conforme suas demandas, como os acampamentos
fixos (emã) e os temporários (wãre) relativos a diversos tipos de uso da
terra.
Para a autora a propriedade está relacionada ao “direito de uso
comum do território para caça e para coleta, com exceção do pinheiral,
rigorosamente definida; propriedade individual/familiar da roça e das
armadilhas de pesca; propriedade coletiva de cada grupo local pelas terras
de campo onde estabeleciam seus alojamentos fixos (emã)”.
Tommasino estabelece ligações com as formas antigas de
ocupação dos espaços, com a saída dos índios das aldeias para se
estabelecerem na cidade a fim de vender seus produtos, sendo esse um
meio de “re-humanização” da pessoa kaingang, no que dizem ser o
espaço do branco. Para essa autora,
“a vida nas reservas obriga os kaingang a
moverem-se no e sobre o espaço do branco.
Mesmo negado na sua especificidade, ele
ressurge borrando esse espaço com sua
territorialidade kaingang. Dialeticamente, o
processo indígena se (re)inscreve no mundo
dos brancos.” (TOMMASINO, 2000, p.223).
Nos trabalhos de Tommasino (1998, 2000) referentes aos
kaingang da região de Londrina, observamos dois tipos de migração, a
temporária e a fixa. A migração temporária, que tem por finalidade a
venda de artesanatos e a migração permanente, em que os kaingang
deslocam-se para Londrina a fim de fixar moradia e construir novas
estratégias de sobrevivência no meio urbano, sendo esse segundo caso o
130
exemplo da migração kaingang para uma área na cidade de Londrina
desde o ano de 2009, a Praça Ângelo Cretã.
Localizada na região norte da cidade de Londrina, a Praça Ângelo
Cretã, foi doada pela prefeitura à Fundação Nacional do Índio - FUNAI em
1990. Conforme relatos de representantes do órgão, tal doação surgiu de
acordos políticos com a prefeitura. A doação foi realizada com o objetivo
de criar um centro cultural com os seguintes objetivos: preservação da
mata nativa remanescente e replantio das áreas desmatadas; implantação
de horto florestal; criação de animais típicos da região; construção de
pista de pedestrianismo ao redor da Praça; implantação de cerca de
segurança; sede da delegacia regional de Londrina da FUNAI; loja de
artesanato; museu do índio com biblioteca, sala de vídeo e um anfiteatro.
No ano de 2009, famílias kaingang de diferentes áreas indígenas
do Paraná se deslocaram para a região urbana de Londrina levantando
acampamento na praça Ângelo Cretã, onde permanecem até os dias
atuais. Essas famílias reivindicam o reconhecimento da área como Terra
Indígena, pautando-se na doação da praça pela prefeitura à FUNAI. No
entanto, a doação foi invalidada pela prefeitura em 1992, com o
argumento da sua não utilização pela FUNAI, órgão agora responsável
pela realocação dessas famílias. Situação que acarreta sérias complicações
para essas famílias que se mantém em precárias condições de todas as
ordens. O presente trabalho tem por objetivos abordar os conflitos entre
os kaingang, população não indígena do bairro, prefeitura e FUNAI,
buscando identificar, a partir disso, as motivações das famílias para
permanecerem na área, bem como as suas estratégias e ocupação do
espaço. Essa pesquisa está no seu estágio inicial. Já foram feitas incursões
a campo que permitiram conhecer o espaço, fazer uma aproximação
inicial com as famílias e observar o cotidiano delas. Ao mesmo tempo
realiza-se um levantamento de informações a respeito da doação da praça
131
e das ações das instituições envolvidas direta ou indiretamente nesse
processo.
ORGANIZAÇÃO SOCIAL (URBANA) KAINGANG
A (re)organização dos kaingang tem em seu centro político a
figura dos dois caciques, Valdir (parte de cima) e Aristides (parte de
baixo), que encabeçam as tomadas de decisões, mesmo que isso ocorra
separadamente, mas seguem com o mesmo objetivo de regularização da
área ou a doação de uma nova área. Tendo assim os três fundamentos
que
envolvem
uma
liderança
política,
como
apontou
Fernandes
(2003:267): “(1) divisão da comunidade em grupos; (2) a concepção de
que a comunidade constitui uma unidade; (3) a concepção da comunidade
como um agente em relacionamento com o mundo dos „brancos‟”.
Enquanto as famílias kaingang aguardam os resultados acerca de
suas reivindicações, traçam estratégias de (re)organização para ocupação
do local. Essas estratégias têm reproduzido alguns aspectos de sua
organização, relações e estrutura das áreas indígenas. Os laços sociais
internos são reelaborados pela interação de diversas T.Is., sendo elas de
São Jerônimo da Serra, Tamarana, Faxinal e Barão de Antonina.
A reorganização das famílias no contexto urbano pode ser
analisada a partir das redes de comunicação entre as áreas indígenas.
Antes de decidir migrar para cidade são estabelecidos contatos e tomadas
decisões quanto ao que fazer. Em outros termos, formula-se um novo
projeto de vida que mantenha reforçada sua identidade étnica num
espaço que tem sido caracterizado como oposto à aldeia e não podendo
haver ligações entre ambos os lados. Verifica-se o que Melo (2009:59)
chamou de “contínua interação” entre os dois mundos, a fim de
desconstruir as fronteiras territoriais demarcatórias do que é ser índio.
Para que melhor percebamos como ocorre a interação entre os dois
132
mundos e a desconstrução de tais fronteiras, é necessário, antes de tudo,
conhecer a mitologia e organização kaingang dentro da área indígena, a
fim de identificar a reprodução de suas práticas rituais e sociais dentro da
cidade.
Por muito tempo abandonada pela prefeitura e pela Secretaria
Municipal de Meio Ambiente - SEMA, a área da praça foi transformada em
lixão, considerada pelos moradores como um lugar perigoso, mesmo
tendo seu entorno cercado com grades. Após o acampamento kaingang foi
melhorada com a limpeza que fizeram. No entanto, muitos moradores da
região continuam jogando lixo no local. Atualmente residem na Praça
aproximadamente 30 pessoas, contando com as crianças. Dividem-se em
dois grupos, um grupo familiar que ocupa a parte de cima da praça
construiu suas casas numa linha vertical e outro grupo, que ocupa a parte
de baixo, com casas na linha horizontal. Vemos nessa disposição espacial
das casas a dualidade kaingang presente no mito do princípio formador do
mundo, sendo essa diferença o fundamento central para a vida kaingang
(VEIGA, 2004).
Em cada uma das partes há um cacique que representa
politicamente o interesse de seu grupo, bem como o interesse comum das
duas partes, já que habitam o mesmo espaço. Talvez a análise, ainda
incipiente, dessa organização não indique uma representação literal do
dualismo
kaingang,
já
que
não
estamos
falando
em
casamentos
exogâmicos, Kamé e Kairu, mas nota-se a presença da divisão mítica
dessa população, simbolizada através do faccionalismo.
A construção do espaço para as casas segue, de certo modo, a
lógica da aldeia, em que “(...)a casa do líder político, chamado pã‟i (ou
cacique), esteja localizada no centro da reserva. O espaço ao redor das
casas é chamado plur, que significa literalmente “espaço limpo”, em
contraste com a floresta virgem (...)” (CRÉPEAU, 2005). A casa do cacique
133
Valdir está localizada no centro do lado oposto às casas da parte de cima.
A mesma centralidade observa-se na morada do cacique Aristides, parte
de baixo, mas com outra disposição espacial. Todo o espaço ao redor das
casas foi limpo, criando o “plur”, embora não se dê de forma tão
abrangente como na aldeia devido ao pouco espaço e o desejo de
preservar grande parte da mata ali existente, já que encontraram diversas
plantas medicinais.
Esses têm sido alguns meios de etnização do espaço como forma
de resistência dentro da cidade. Há ainda outros fatores que podem fazer
parte dessa lógica, mas que, no entanto ainda não é possível tratá-los
com maior profundidade na atual fase da pesquisa.
ETNIZAÇÃO DA CIDADE
Para compreendermos mais amplamente a situação de migração
indígena para o espaço urbano, há que se pensar nas teorias traçadas por
Cardoso de Oliveira (1972), tendo como ponto de partida seus escritos
referentes à fricção interétnica. No entanto, tomando como referência os
apontamentos
de
Melo
(2009:74),
“(...)
esse
modelo
precisa
ser
redimensionado, pois o foco nas relações de sujeição do índio à sociedade
nacional não permite ver a criatividade e a agência indígena no
processo.”. Dessa forma, tenta-se, nesse trabalho, estabelecer ligações de
complementaridade entre a abordagem contatualista com a formulação
teórica do agenciamento e intencionalidade de Ortner (2007), bem como
as atuais formulações de Cardoso de Oliveira sobre a existência de uma
comunidade de comunicação através da horizontalização do diálogo,
avançando as teorias do contato. Tais abordagens orientam as reflexões
realizadas a partir das visitas a campo.
Para analisar o processo migratório deve-se, antes, compreender
as motivações que influenciaram essa tomada de decisão. Partindo do
134
ponto de vista kaingang, pretendo entender como ocorre a apropriação de
um novo espaço e não segundo uma interpretação pautada em valores
urbanos-ocidentais para as resignificações étnicas da cidade.
Segundo
alguns
estudos
(CESARINO,
2008;
MELO,
2009;
SOUSA, 2008; OLIVEIRA, 1972), e o Censo do IBGE, há uma crescente
auto-identificação indígena nas cidades e o significativo aumento da
migração indígena para as áreas urbanas. Este fenômeno é ainda pouco
estudado, particularmente no estado do Paraná.
Melo (2009:59) ao analisar a fluidez da identidade Baré na cidade
de Manaus, desconstrói a barreira criada entre a noção de aldeia e de
cidade, ao dizer que: “(...) a “cidade” e “a comunidade”, [...], não são
pensadas como modelos que se opõem, mas que estão em contínua
interação [pois] os modelos teóricos frequentemente utilizados difundem o
senso de que a “aldeia” não pode estar na “cidade” e vice-versa”.
Deve-se então, lançar um novo olhar a essa situação que nos é
apresentada,
ou
seja,
como
entender
essa
nova
apropriação
e
resignificação de espaços sem “desetnizá-los”? Há que se atentar para o
que antecede a migração, conforme indicou Melo (2009), os fatores para o
aumento da migração tem sido a precariedade no atendimento às áreas
indígenas e a situação atual demarcatória das terras indígenas, afetada
por interesses desenvolvimentistas, fato apontado por Teixeira em seu
estudo sobre o censo referente às populações indígenas que se encontram
nas cidades. Para este autor, “as regiões em que a população indígena
concentra-se nas áreas rurais, são, geralmente, aquelas em que há maior
número de terras indígenas demarcadas e homologadas, como são os
casos das Regiões Norte e Centro-Oeste” (TEIXEIRA, 2008:3)
135
Grande parte das famílias acampadas na Praça é oriunda do
Apucaraninha38 e de São Jerônimo da Serra39, áreas indígenas que
passam por problemas de demarcação de terra e revisão da área,
respectivamente. No caso de São Jerônimo, outro fator comentado pelos
índios é o aumento de brancos dentro da T.I., como Rothen (2000)
apontou em seu trabalho. De acordo com os índios entrevistados pela
autora, eles, os brancos, desestruturam suas categorias de identificação,
de representação e da continuidade da língua.
A etnização da cidade deve ser entendida como um processo de
transformação
e
reconstrução,
não
simplesmente
uma
categoria
representativa da troca de territórios. Com a chegada dos kaingang à
Praça Ângelo Cretã, o espaço que antes esteve abandonado pelas
autoridades municipais tornou-se uma aldeia urbana com a reestruturação
do território para as casas, o reconhecimento de plantas medicinais e o
faccionalismo que caracteriza a organização social Kaigang. O processo de
etnização de territórios urbanos passa por mudanças nas suas práticas
cotidianas no novo espaço. Entretanto, como observou Cesarino (2008,
p.139-140) na prática xamânica dos Marubo que se deslocam para a
cidade, “os espaços são reversíveis; a multiplicação perspectivista do
xamanismo não se detém a domínios circunscritos”.
Mesmo com a transição e com as expectativas da vida na cidade
os kaingang, em sua maioria, não se desvinculam totalmente da vida na
aldeia, estabelecem redes sociais com a família que ainda permanece na
T.I., mesmo criando novas redes de comunicação com os não índios que
moram no bairro. Constroem um jogo duplo de relações diferenciadas que
contribui para a formação da pessoa kaingang que se apropria da conexão
com os dois mundos como forma de totalidade de si. Essa dupla conexão
38
No caso da T.I. Apucaraninha já está sendo organizado um GT para a revisão da área.
Em São Jerônimo da Serra o problema torna-se um pouco mais grave. A área já demarcada não tem espaço
suficiente para o plantio e para a população, o que requer uma revisão da área, um pedido já antigo dos
indígenas.
39
136
é representada pela inserção numa sociedade de classes, faz parte de
uma comunidade urbana, assim como, pela relação e afeição, com a
comunidade indígena de origem, como foi relatado por um kaingang:
“Queremos ir para a reserva, mas não tem condições, a FUNAI não
consegue atender todos da aldeia, viemos para a cidade para manter
nossa cultura e dar comida para nossos filhos.”
A partir dessa visão kaingang sobre a migração nos interessa
analisar as dinâmicas referentes à identidade étnica dos indígenas
inseridos numa sociedade de classes, como formulou Cardoso de Oliveira
(1972) ao tratar da “caboclização” dos índios no alto Solimões, em que o
caboclo ao mudar para cidade torna-se, ao olhar do branco, integrado e
dependende, perdendo suas características próprias.
Já
estabelecido
no
espaço
urbano
o
indígena
sofre
as
conseqüências da idealização de um nativo brasileiro, que no caso da
Praça, esse olhar se lançou para as habitações erguidas. A proprietária de
um bar localizado na frente do acampamento se posicionou da seguinte
forma: “quando ele (cacique) disse que iam vim pra cá eu até gostei.
Falei, ah, eles vão construir umas cabaninhas. Acho até bonitinho, gosto
dessas coisas, mas olha isso, tá pior que favela, isso desvaloriza o meu
ponto”.
Observa-se a exteriorização do olhar estereotipado que propaga
a imagem de um índio genérico (BURKE, 2004), já que não houve a opção
de reconhecer o outro exótico fisicamente, sem seus adornos e vestindose como o homem branco, espera-se algum elemento que diga se
realmente são indígenas, remontando-nos à dicotomia “nobre selvagem”
versus “canibal”, sendo agora, índio aldeado versus citadino.
Resta-nos então, desconstruir a idéia de perda da consciência e
determinação étnica dessas populações, analisando amplamente os
137
fatores determinantes de sua migração e como se dá as transformações
de
suas
práticas
sem
que
isso
o
afete
no
atendimento
público
especializado oferecido pela FUNAI e pela Fundação Nacional de Saúde FUNASA.
A LÓGICA LEGAL URBANA EM OPOSIÇÃO ÀS INTENCIONALIDADES
INDÍGENA
Residindo na área urbana, os kaingang tornam-se brancos para a
FUNAI e FUNASA, não recebendo, assim, os atendimentos necessários
como recebiam nas áreas indígenas. É presente no imaginário nacional
que lugar de índio é na aldeia, sem analisar os fatores determinantes de
sua migração. Trata-se de não torná-lo uma espécie de “patrimônio” do
país, a ser mantido num local específico para que somente assim seja
reconhecido como um sujeito de direitos diferenciados. Contrariamente a
essa concepção simplista da história, deve-se entender que: “Reservas
indígenas não são jaulas de jardim zoológico, vitrines do paleolítico,
grotões onde „índios genéricos‟ devem ficar para que não percam a sua
autenticidade e, portanto, a justificativa para a aquisição de seus direitos
legais.” (CESARINO, 2008: 174)
É nesse quadro de reconhecimento de direitos e não-direitos
onde se trava o embate da tríade moldada em seus jogos discursivos de
poder que envolvem agentes diretamente no caso: 1- a Prefeitura
Municipal de Londrina, representando os direitos/interesses urbanos,
pautando-se na Lei Orgânica do Município; 2- FUNAI, responsável por
atender os direitos das populações indígenas, ainda marcada pela
característica tutelar e, por fim, 3- os Kaingang, que depois de suas
guerras épicas (MOTA, 1994) traçam uma nova história de resistência e
intenções que perpassam os limites territoriais reconhecidos pelo Estado
nacional. Entretanto, essa ocupação envolveu indiretamente outros
agentes políticos que são o Centro Regional de Assistência Social - CRASSUL, o Posto de Saúde e a FUNASA. Para uma melhor análise dessas
138
relações conflitantes vamos nos apropriar das formulações teóricas de
Cardoso de Oliveira (2000) e Ortner (2007).
Como órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio,
desempenha suas funções precariamente, diga-se de passagem, e de
acordo com as políticas colonialistas que deram início aos descimentos e
aldeamentos em áreas reduzidas e improdutivas. Essa política inicial do
contato foi problematizada por diversos antropólogos e historiadores, no
entanto, a FUNAI tem se posicionado de forma omissa a essas
informações ao negar o reconhecimento e atendimento aos indígenas que
fixam moradia na cidade, dando a entender que reconhecem como única
forma de legitimidade étnica o aldeamento, situação construída de forma
truculenta.
Partindo
desse
pressuposto
de
que
ainda
há
resquícios
colonialistas na política indigenista brasileira, nota-se, em uma visita que
realizei a FUNAI, o discurso preservacionista e tutelar. Um funcionário ao
ser questionado sobre a situação dos Kaingang da Praça Ângelo Cretã,
posicionou-se da seguinte forma sobre esse movimento migratório: “Se a
FUNAI apoiar esse movimento, nós estaremos apoiando a baderna, não
concorda?”. Outro, logo em seguida, completou tal raciocínio dizendo,
“seria tudo mais fácil se eles aceitassem voltar para a aldeia. Não é
objetivo da FUNAI esvaziar as aldeias”. Nesse sentido, temos a negação
da atual situação, impossibilitando uma discussão simétrica, retomando
assim a seguinte definição de agência: “A agência ou sua ausência se
expressa por meio de uma linguagem de atividade e passividade.
Atividade implica perseguir „projetos‟; passividade implica não apenas não
perseguir projetos, como evitar o desejo de fazê-lo” (ORTNER, 2007:59)
Uma das funções da FUNAI, segundo OLIVEIRA (2000), é agir
como uma mediadora legal entre as duas realidades, índios e não índios,
interpretando os discursos indígenas, criando essa relação necessária, o
139
que não aconteceu em nenhum momento, deixando nítida a falta de
informação referente a estrutura e organização do local. Como bem
apontou um kaingang, durante a reunião realizada no CRAS, ao dizer que
os representantes da FUNAI só compareceram no bairro por conta da
reunião e não pelo interesse na atual situação.
Já que o reconhecimento e atendimento a todos os indígenas não
tem sido o objetivo da FUNAI, essa atribuição é dada aos órgãos
municipais, como é o caso da prefeitura, responsável pela doação da
praça em 1990 e agora responsabilizada, pela FUNAI, em realocar essas
famílias. Representada pela antropóloga Marlene de Oliveira, a prefeitura
ampara-se na Lei Orgânica do Município que proíbe doação, permuta,
venda ou permissão de uso de área destinada a logradouro público.
Com relação aos envolvidos indiretamente, CRAS e Posto de
Saúde, suas ações têm sido diretas no atendimento às famílias acampadas
na
Praça,
através
do
cadastro
no
Programa
Bolsa
Família
e
encaminhamentos para tirar documentações (RG e CPF). No caso do Posto
têm sido realizados atendimentos básicos, encaminhando para outras
unidades de saúde os casos mais específicos de doença. A busca pelo
Posto de Saúde do bairro ocorreu pelo fato de não haver atendimento da
FUNASA, que por sua vez não oferece esse atendimento aos índios
urbanos. Segundo o chefe da DSEI, ''Se eles estão vivendo na área
urbana
por
vontade
própria,
precisarão
se
submeter
a
esse
procedimento.'' (LUPORINI, 2010)
Vale questionar até que ponto essa decisão é por vontade
própria. O movimento migratório não se resume na simples vontade de se
mudar, pois como colocou Santos (1987), a migração torna-se forçada de
acordo com os interesses hegemônicos das diversas localidades, que no
caso da Praça Ângelo Cretã esses interesses estão voltados no retorno à
140
aldeia, sendo esse o lugar de reconhecimento étnico para as autoridades
urbanas.
Após um ano de acampamento e de diversos pedidos para que se
regularizasse a situação, foi convocada uma reunião no início de julho de
2010 com o intuito de estabelecer um acordo com os Kaingang a fim de
tirá-los da praça. Foram convidados para a reunião os Kaingang, o CRAS,
a Prefeitura, a FUNAI e o SEMA. É nesse contexto que podemos identificar
os diversos discursos construídos em torno do espaço e do poder (DE
PAULA, 2005). A reunião foi realizada no CRAS, contando com a presença
de nove Kaingang das terras de São Jerônimo da Serra e Barão de
Antonina, cacique guarani da T.I. de São Jerônimo da Serra, a
antropóloga Marlene de Oliveira, FUNAI e assistente social do CRAS, o
secretário da SEMA, também convidado, não compareceu.
Analisando a estrutura da reunião, temos aparentemente o que
Cardoso de Oliveira (2000: 219) chamou de comunidade de comunicação,
“(...) diríamos que o encontro entre uma equipe de indigenistas (formada
por antropólogos, técnicos e administradores) e lideranças indígenas,
consistiria uma comunidade real de comunicação”. Contudo, o diálogo
nem sempre foi eticamente construído, como foi observado nas falas de
uma funcionária da FUNAI que interrompia rudemente as colocações
indígenas, não dando espaço para a horizontalização do diálogo. Mas o
que cabe ressaltar desse encontro são o objetivo e os projetos que
envolvem essa disputa. Seguindo Ortner (2007:45), analisamos essa
situação entendendo que “(...) a vida social é voltada para metas e
projetos culturalmente constituídos e envolvendo tanto práticas de rotina
como ações intencionalizadas”.
O projeto inicia em 1990 com a doação da Praça visando a
construção do Centro Cultural a fim de ter um local no meio urbano que
fosse referência sobre a história e cultura kaingang. No entanto, não foi o
141
que aconteceu. Dando margem a um segundo projeto, partindo do próprio
interesse indígena, que a principio seria construir casas para moradia fixa
dentro da Praça. Os kaingang reivindicam a área desde 2009 relembrando
da doação e fazendo menção ao nome dado à Praça por conta dessa
doação: “queira ou não queira vamos ficar lá, é o nome de um parente
nosso que está lá”. A intencionalidade kaingang visa a conquista e
transformação do espaço, já que a idéia de pertença da Praça ainda existe
no imaginário kaingang uma vez que a revogação da doação não foi
comunicada às lideranças da região, como explicou o cacique Nelson, da
etnia Guarani: “Minha expressão pode parecer que apoio um ou outro. O
indígena nunca foi invasor, sempre foi invadido. E por que os índios foram
para esse local? Por que um dia alguém doou com o nome de um líder e
isso não foi explicado? Se fosse feita uma reunião com prefeito e líderes
indígenas, não só os do Apucaraninha, isso não teria acontecido [...]
depois de muito tempo está sendo esclarecido”.
O diálogo construído a partir da intencionalidade kaingang e da
intencionalidade dos demais agentes gerou um novo projeto que é a
construção de um Centro Cultural em outra área, podendo receber todos
os indígenas que se deslocam para a cidade para vender “artesanato”.
Podemos imaginar então que o discurso foi pautado pela eticidade já que
as partes entraram num acordo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). No
entanto, devemos nos atentar para uma das representações da agência
sendo identificada por suas relações de poder entre os agentes já que a
situação que os envolve é desigual e assimétrica (ORTNER, 2007). O que
tento elucidar é que mesmo existindo um acordo, os kaingang presentes
na reunião tiveram que reelaborar seu projeto inicial por conta da
hegemonia discursiva (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). Além disso, não há
garantia que o Centro Cultural será construído. Entretanto, decidiram
manter a ocupação até que o novo Centro Cultural seja construido e
esteja funcionando, mesmo que isso demore mais um ano, como foi a
demora para a realização da primeira reunião.
142
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das diversas etapas que envolvem a migração das
populações indígenas, mais especificamente dos kaingang que residem na
Praça Ângelo Cretã, é essencial nesse momento ampliar e aprofundar a
analise de como essas famílias tem resignificado a cidade de acordo com
sua visão de mundo, bem como as relações de poder que envolvem essa
disputa de território, entendendo como essas relações determinam o lugar
das populações indígenas.
Na mobilização, reorganização e reivindicação dos Kaingang
encontram-se várias características próprias de sua cultura que podem
assim legitimar qualquer atendimento específico que lhes é de direito,
independente de habitarem um território legalmente reconhecido pelo
Estado.
Notou-se, com a descrição feita, que as características étnicas
passam a imbuir um sentido mais amplo nas definições identitárias da
cidade, não havendo a necessidade de enquadrar os migrantes indígenas
em uma categoria única que representa a vida urbana, como proletários,
mendigos ou não-índios. Foi desconsiderado, portanto, a padronização
cultural/identitária politicamente elaborada e aplicada aos povos indígenas
que se deslocam para as cidades, ou seja, os Kaingang não se tornaram
urbanos, mas sim Kaingang urbanos que podem se enquadrar em outras
categorias de identificação, mas sem perder sua noção de pessoa.
Acompanhando o significado de pessoa kaingang percebemos
que não há uma desconexão total da vida na aldeia, já que essa ligação
representa a unidade entre os dois mundos, levando para a cidade
características
kaingang,
que
ao
reproduzir
a
lógica
da
aldeia
desconstroem as falácias que permeiam o pensamento não indígena com
relação
a
dinâmica
cultural
ao
negarem
as
possibilidades
de
143
transformação e resignificação da cultura. Sendo assim, o que permanece
como
resultado
inicial
e
parcial
desta
pesquisa,
abrindo
novas
possibilidades de estudo, é o crescente agenciamento Kaingang em defesa
de sua autonomia na escolha territorial, construindo estratégias incisivas
que demonstram a linha tênue entre aldeia e cidade, além do seu poder
discursivo sem mediações tutelares.
144
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