PRAÇA ÂNGELO CRETÃ37: UMA HISTÓRIA KAINGANG DE CONFLITOS E RESISTÊNCIA Ana Caroline Goulart João Valentin Wawzyniak (Orientador) RESUMO No ano de 2009, famílias kaingang de diferentes áreas indígenas do Paraná se deslocaram para a região urbana de Londrina levantando acampamento na praça Ângelo Cretã, onde permanecem até os dias atuais. Essas famílias reivindicam o reconhecimento da área como Terra Indígena, pautando-se na doação da praça pela prefeitura à FUNAI em 1990. No entanto, a doação foi invalidada pela prefeitura em 1992, com o argumento da sua não utilização pela FUNAI, órgão agora responsável pela realocação dessas famílias. Situação que acarreta sérias complicações para essas famílias que se mantém em precárias condições de todas as ordens. O presente trabalho tem por objetivos abordar os conflitos entre os kaingang, população não indígena do bairro, prefeitura e FUNAI, buscando identificar, a partir disso, as motivações das famílias para permanecerem na área, bem como as suas estratégias e ocupação do espaço. Essa pesquisa está no seu estágio inicial. Já foram feitas incursões a campo que permitiram conhecer o espaço, fazer uma aproximação inicial com as famílias e observar o cotidiano delas. Ao mesmo tempo está sendo realizado um levantamento de informações a respeito da doação da praça e das ações das instituições envolvidas direta ou indiretamente nesse processo de ocupação. Palavras-chave: kaingang – praça – conflitos 37 Cacique Kaingang da Terra Indígena de Mangueirinha foi assassinado em 1980 por agir politicamente a favor das causas indígenas. O nome foi dado à praça em uma homenagem ao cacique na ocasião da doação da praça. 129 TERRITORIALIDADE E DESLOCAMENTOS KAINGANG Historicamente as famílias kaingang deslocam-se espacialmente de acordo com suas necessidades rituais e de plantio, adicionando novas terras ao que já habitavam antes de levantar novos acampamentos. Tommasino (2000:200) identificou outros modos de apropriação do espaço que variam conforme suas demandas, como os acampamentos fixos (emã) e os temporários (wãre) relativos a diversos tipos de uso da terra. Para a autora a propriedade está relacionada ao “direito de uso comum do território para caça e para coleta, com exceção do pinheiral, rigorosamente definida; propriedade individual/familiar da roça e das armadilhas de pesca; propriedade coletiva de cada grupo local pelas terras de campo onde estabeleciam seus alojamentos fixos (emã)”. Tommasino estabelece ligações com as formas antigas de ocupação dos espaços, com a saída dos índios das aldeias para se estabelecerem na cidade a fim de vender seus produtos, sendo esse um meio de “re-humanização” da pessoa kaingang, no que dizem ser o espaço do branco. Para essa autora, “a vida nas reservas obriga os kaingang a moverem-se no e sobre o espaço do branco. Mesmo negado na sua especificidade, ele ressurge borrando esse espaço com sua territorialidade kaingang. Dialeticamente, o processo indígena se (re)inscreve no mundo dos brancos.” (TOMMASINO, 2000, p.223). Nos trabalhos de Tommasino (1998, 2000) referentes aos kaingang da região de Londrina, observamos dois tipos de migração, a temporária e a fixa. A migração temporária, que tem por finalidade a venda de artesanatos e a migração permanente, em que os kaingang deslocam-se para Londrina a fim de fixar moradia e construir novas estratégias de sobrevivência no meio urbano, sendo esse segundo caso o 130 exemplo da migração kaingang para uma área na cidade de Londrina desde o ano de 2009, a Praça Ângelo Cretã. Localizada na região norte da cidade de Londrina, a Praça Ângelo Cretã, foi doada pela prefeitura à Fundação Nacional do Índio - FUNAI em 1990. Conforme relatos de representantes do órgão, tal doação surgiu de acordos políticos com a prefeitura. A doação foi realizada com o objetivo de criar um centro cultural com os seguintes objetivos: preservação da mata nativa remanescente e replantio das áreas desmatadas; implantação de horto florestal; criação de animais típicos da região; construção de pista de pedestrianismo ao redor da Praça; implantação de cerca de segurança; sede da delegacia regional de Londrina da FUNAI; loja de artesanato; museu do índio com biblioteca, sala de vídeo e um anfiteatro. No ano de 2009, famílias kaingang de diferentes áreas indígenas do Paraná se deslocaram para a região urbana de Londrina levantando acampamento na praça Ângelo Cretã, onde permanecem até os dias atuais. Essas famílias reivindicam o reconhecimento da área como Terra Indígena, pautando-se na doação da praça pela prefeitura à FUNAI. No entanto, a doação foi invalidada pela prefeitura em 1992, com o argumento da sua não utilização pela FUNAI, órgão agora responsável pela realocação dessas famílias. Situação que acarreta sérias complicações para essas famílias que se mantém em precárias condições de todas as ordens. O presente trabalho tem por objetivos abordar os conflitos entre os kaingang, população não indígena do bairro, prefeitura e FUNAI, buscando identificar, a partir disso, as motivações das famílias para permanecerem na área, bem como as suas estratégias e ocupação do espaço. Essa pesquisa está no seu estágio inicial. Já foram feitas incursões a campo que permitiram conhecer o espaço, fazer uma aproximação inicial com as famílias e observar o cotidiano delas. Ao mesmo tempo realiza-se um levantamento de informações a respeito da doação da praça 131 e das ações das instituições envolvidas direta ou indiretamente nesse processo. ORGANIZAÇÃO SOCIAL (URBANA) KAINGANG A (re)organização dos kaingang tem em seu centro político a figura dos dois caciques, Valdir (parte de cima) e Aristides (parte de baixo), que encabeçam as tomadas de decisões, mesmo que isso ocorra separadamente, mas seguem com o mesmo objetivo de regularização da área ou a doação de uma nova área. Tendo assim os três fundamentos que envolvem uma liderança política, como apontou Fernandes (2003:267): “(1) divisão da comunidade em grupos; (2) a concepção de que a comunidade constitui uma unidade; (3) a concepção da comunidade como um agente em relacionamento com o mundo dos „brancos‟”. Enquanto as famílias kaingang aguardam os resultados acerca de suas reivindicações, traçam estratégias de (re)organização para ocupação do local. Essas estratégias têm reproduzido alguns aspectos de sua organização, relações e estrutura das áreas indígenas. Os laços sociais internos são reelaborados pela interação de diversas T.Is., sendo elas de São Jerônimo da Serra, Tamarana, Faxinal e Barão de Antonina. A reorganização das famílias no contexto urbano pode ser analisada a partir das redes de comunicação entre as áreas indígenas. Antes de decidir migrar para cidade são estabelecidos contatos e tomadas decisões quanto ao que fazer. Em outros termos, formula-se um novo projeto de vida que mantenha reforçada sua identidade étnica num espaço que tem sido caracterizado como oposto à aldeia e não podendo haver ligações entre ambos os lados. Verifica-se o que Melo (2009:59) chamou de “contínua interação” entre os dois mundos, a fim de desconstruir as fronteiras territoriais demarcatórias do que é ser índio. Para que melhor percebamos como ocorre a interação entre os dois 132 mundos e a desconstrução de tais fronteiras, é necessário, antes de tudo, conhecer a mitologia e organização kaingang dentro da área indígena, a fim de identificar a reprodução de suas práticas rituais e sociais dentro da cidade. Por muito tempo abandonada pela prefeitura e pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente - SEMA, a área da praça foi transformada em lixão, considerada pelos moradores como um lugar perigoso, mesmo tendo seu entorno cercado com grades. Após o acampamento kaingang foi melhorada com a limpeza que fizeram. No entanto, muitos moradores da região continuam jogando lixo no local. Atualmente residem na Praça aproximadamente 30 pessoas, contando com as crianças. Dividem-se em dois grupos, um grupo familiar que ocupa a parte de cima da praça construiu suas casas numa linha vertical e outro grupo, que ocupa a parte de baixo, com casas na linha horizontal. Vemos nessa disposição espacial das casas a dualidade kaingang presente no mito do princípio formador do mundo, sendo essa diferença o fundamento central para a vida kaingang (VEIGA, 2004). Em cada uma das partes há um cacique que representa politicamente o interesse de seu grupo, bem como o interesse comum das duas partes, já que habitam o mesmo espaço. Talvez a análise, ainda incipiente, dessa organização não indique uma representação literal do dualismo kaingang, já que não estamos falando em casamentos exogâmicos, Kamé e Kairu, mas nota-se a presença da divisão mítica dessa população, simbolizada através do faccionalismo. A construção do espaço para as casas segue, de certo modo, a lógica da aldeia, em que “(...)a casa do líder político, chamado pã‟i (ou cacique), esteja localizada no centro da reserva. O espaço ao redor das casas é chamado plur, que significa literalmente “espaço limpo”, em contraste com a floresta virgem (...)” (CRÉPEAU, 2005). A casa do cacique 133 Valdir está localizada no centro do lado oposto às casas da parte de cima. A mesma centralidade observa-se na morada do cacique Aristides, parte de baixo, mas com outra disposição espacial. Todo o espaço ao redor das casas foi limpo, criando o “plur”, embora não se dê de forma tão abrangente como na aldeia devido ao pouco espaço e o desejo de preservar grande parte da mata ali existente, já que encontraram diversas plantas medicinais. Esses têm sido alguns meios de etnização do espaço como forma de resistência dentro da cidade. Há ainda outros fatores que podem fazer parte dessa lógica, mas que, no entanto ainda não é possível tratá-los com maior profundidade na atual fase da pesquisa. ETNIZAÇÃO DA CIDADE Para compreendermos mais amplamente a situação de migração indígena para o espaço urbano, há que se pensar nas teorias traçadas por Cardoso de Oliveira (1972), tendo como ponto de partida seus escritos referentes à fricção interétnica. No entanto, tomando como referência os apontamentos de Melo (2009:74), “(...) esse modelo precisa ser redimensionado, pois o foco nas relações de sujeição do índio à sociedade nacional não permite ver a criatividade e a agência indígena no processo.”. Dessa forma, tenta-se, nesse trabalho, estabelecer ligações de complementaridade entre a abordagem contatualista com a formulação teórica do agenciamento e intencionalidade de Ortner (2007), bem como as atuais formulações de Cardoso de Oliveira sobre a existência de uma comunidade de comunicação através da horizontalização do diálogo, avançando as teorias do contato. Tais abordagens orientam as reflexões realizadas a partir das visitas a campo. Para analisar o processo migratório deve-se, antes, compreender as motivações que influenciaram essa tomada de decisão. Partindo do 134 ponto de vista kaingang, pretendo entender como ocorre a apropriação de um novo espaço e não segundo uma interpretação pautada em valores urbanos-ocidentais para as resignificações étnicas da cidade. Segundo alguns estudos (CESARINO, 2008; MELO, 2009; SOUSA, 2008; OLIVEIRA, 1972), e o Censo do IBGE, há uma crescente auto-identificação indígena nas cidades e o significativo aumento da migração indígena para as áreas urbanas. Este fenômeno é ainda pouco estudado, particularmente no estado do Paraná. Melo (2009:59) ao analisar a fluidez da identidade Baré na cidade de Manaus, desconstrói a barreira criada entre a noção de aldeia e de cidade, ao dizer que: “(...) a “cidade” e “a comunidade”, [...], não são pensadas como modelos que se opõem, mas que estão em contínua interação [pois] os modelos teóricos frequentemente utilizados difundem o senso de que a “aldeia” não pode estar na “cidade” e vice-versa”. Deve-se então, lançar um novo olhar a essa situação que nos é apresentada, ou seja, como entender essa nova apropriação e resignificação de espaços sem “desetnizá-los”? Há que se atentar para o que antecede a migração, conforme indicou Melo (2009), os fatores para o aumento da migração tem sido a precariedade no atendimento às áreas indígenas e a situação atual demarcatória das terras indígenas, afetada por interesses desenvolvimentistas, fato apontado por Teixeira em seu estudo sobre o censo referente às populações indígenas que se encontram nas cidades. Para este autor, “as regiões em que a população indígena concentra-se nas áreas rurais, são, geralmente, aquelas em que há maior número de terras indígenas demarcadas e homologadas, como são os casos das Regiões Norte e Centro-Oeste” (TEIXEIRA, 2008:3) 135 Grande parte das famílias acampadas na Praça é oriunda do Apucaraninha38 e de São Jerônimo da Serra39, áreas indígenas que passam por problemas de demarcação de terra e revisão da área, respectivamente. No caso de São Jerônimo, outro fator comentado pelos índios é o aumento de brancos dentro da T.I., como Rothen (2000) apontou em seu trabalho. De acordo com os índios entrevistados pela autora, eles, os brancos, desestruturam suas categorias de identificação, de representação e da continuidade da língua. A etnização da cidade deve ser entendida como um processo de transformação e reconstrução, não simplesmente uma categoria representativa da troca de territórios. Com a chegada dos kaingang à Praça Ângelo Cretã, o espaço que antes esteve abandonado pelas autoridades municipais tornou-se uma aldeia urbana com a reestruturação do território para as casas, o reconhecimento de plantas medicinais e o faccionalismo que caracteriza a organização social Kaigang. O processo de etnização de territórios urbanos passa por mudanças nas suas práticas cotidianas no novo espaço. Entretanto, como observou Cesarino (2008, p.139-140) na prática xamânica dos Marubo que se deslocam para a cidade, “os espaços são reversíveis; a multiplicação perspectivista do xamanismo não se detém a domínios circunscritos”. Mesmo com a transição e com as expectativas da vida na cidade os kaingang, em sua maioria, não se desvinculam totalmente da vida na aldeia, estabelecem redes sociais com a família que ainda permanece na T.I., mesmo criando novas redes de comunicação com os não índios que moram no bairro. Constroem um jogo duplo de relações diferenciadas que contribui para a formação da pessoa kaingang que se apropria da conexão com os dois mundos como forma de totalidade de si. Essa dupla conexão 38 No caso da T.I. Apucaraninha já está sendo organizado um GT para a revisão da área. Em São Jerônimo da Serra o problema torna-se um pouco mais grave. A área já demarcada não tem espaço suficiente para o plantio e para a população, o que requer uma revisão da área, um pedido já antigo dos indígenas. 39 136 é representada pela inserção numa sociedade de classes, faz parte de uma comunidade urbana, assim como, pela relação e afeição, com a comunidade indígena de origem, como foi relatado por um kaingang: “Queremos ir para a reserva, mas não tem condições, a FUNAI não consegue atender todos da aldeia, viemos para a cidade para manter nossa cultura e dar comida para nossos filhos.” A partir dessa visão kaingang sobre a migração nos interessa analisar as dinâmicas referentes à identidade étnica dos indígenas inseridos numa sociedade de classes, como formulou Cardoso de Oliveira (1972) ao tratar da “caboclização” dos índios no alto Solimões, em que o caboclo ao mudar para cidade torna-se, ao olhar do branco, integrado e dependende, perdendo suas características próprias. Já estabelecido no espaço urbano o indígena sofre as conseqüências da idealização de um nativo brasileiro, que no caso da Praça, esse olhar se lançou para as habitações erguidas. A proprietária de um bar localizado na frente do acampamento se posicionou da seguinte forma: “quando ele (cacique) disse que iam vim pra cá eu até gostei. Falei, ah, eles vão construir umas cabaninhas. Acho até bonitinho, gosto dessas coisas, mas olha isso, tá pior que favela, isso desvaloriza o meu ponto”. Observa-se a exteriorização do olhar estereotipado que propaga a imagem de um índio genérico (BURKE, 2004), já que não houve a opção de reconhecer o outro exótico fisicamente, sem seus adornos e vestindose como o homem branco, espera-se algum elemento que diga se realmente são indígenas, remontando-nos à dicotomia “nobre selvagem” versus “canibal”, sendo agora, índio aldeado versus citadino. Resta-nos então, desconstruir a idéia de perda da consciência e determinação étnica dessas populações, analisando amplamente os 137 fatores determinantes de sua migração e como se dá as transformações de suas práticas sem que isso o afete no atendimento público especializado oferecido pela FUNAI e pela Fundação Nacional de Saúde FUNASA. A LÓGICA LEGAL URBANA EM OPOSIÇÃO ÀS INTENCIONALIDADES INDÍGENA Residindo na área urbana, os kaingang tornam-se brancos para a FUNAI e FUNASA, não recebendo, assim, os atendimentos necessários como recebiam nas áreas indígenas. É presente no imaginário nacional que lugar de índio é na aldeia, sem analisar os fatores determinantes de sua migração. Trata-se de não torná-lo uma espécie de “patrimônio” do país, a ser mantido num local específico para que somente assim seja reconhecido como um sujeito de direitos diferenciados. Contrariamente a essa concepção simplista da história, deve-se entender que: “Reservas indígenas não são jaulas de jardim zoológico, vitrines do paleolítico, grotões onde „índios genéricos‟ devem ficar para que não percam a sua autenticidade e, portanto, a justificativa para a aquisição de seus direitos legais.” (CESARINO, 2008: 174) É nesse quadro de reconhecimento de direitos e não-direitos onde se trava o embate da tríade moldada em seus jogos discursivos de poder que envolvem agentes diretamente no caso: 1- a Prefeitura Municipal de Londrina, representando os direitos/interesses urbanos, pautando-se na Lei Orgânica do Município; 2- FUNAI, responsável por atender os direitos das populações indígenas, ainda marcada pela característica tutelar e, por fim, 3- os Kaingang, que depois de suas guerras épicas (MOTA, 1994) traçam uma nova história de resistência e intenções que perpassam os limites territoriais reconhecidos pelo Estado nacional. Entretanto, essa ocupação envolveu indiretamente outros agentes políticos que são o Centro Regional de Assistência Social - CRASSUL, o Posto de Saúde e a FUNASA. Para uma melhor análise dessas 138 relações conflitantes vamos nos apropriar das formulações teóricas de Cardoso de Oliveira (2000) e Ortner (2007). Como órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio, desempenha suas funções precariamente, diga-se de passagem, e de acordo com as políticas colonialistas que deram início aos descimentos e aldeamentos em áreas reduzidas e improdutivas. Essa política inicial do contato foi problematizada por diversos antropólogos e historiadores, no entanto, a FUNAI tem se posicionado de forma omissa a essas informações ao negar o reconhecimento e atendimento aos indígenas que fixam moradia na cidade, dando a entender que reconhecem como única forma de legitimidade étnica o aldeamento, situação construída de forma truculenta. Partindo desse pressuposto de que ainda há resquícios colonialistas na política indigenista brasileira, nota-se, em uma visita que realizei a FUNAI, o discurso preservacionista e tutelar. Um funcionário ao ser questionado sobre a situação dos Kaingang da Praça Ângelo Cretã, posicionou-se da seguinte forma sobre esse movimento migratório: “Se a FUNAI apoiar esse movimento, nós estaremos apoiando a baderna, não concorda?”. Outro, logo em seguida, completou tal raciocínio dizendo, “seria tudo mais fácil se eles aceitassem voltar para a aldeia. Não é objetivo da FUNAI esvaziar as aldeias”. Nesse sentido, temos a negação da atual situação, impossibilitando uma discussão simétrica, retomando assim a seguinte definição de agência: “A agência ou sua ausência se expressa por meio de uma linguagem de atividade e passividade. Atividade implica perseguir „projetos‟; passividade implica não apenas não perseguir projetos, como evitar o desejo de fazê-lo” (ORTNER, 2007:59) Uma das funções da FUNAI, segundo OLIVEIRA (2000), é agir como uma mediadora legal entre as duas realidades, índios e não índios, interpretando os discursos indígenas, criando essa relação necessária, o 139 que não aconteceu em nenhum momento, deixando nítida a falta de informação referente a estrutura e organização do local. Como bem apontou um kaingang, durante a reunião realizada no CRAS, ao dizer que os representantes da FUNAI só compareceram no bairro por conta da reunião e não pelo interesse na atual situação. Já que o reconhecimento e atendimento a todos os indígenas não tem sido o objetivo da FUNAI, essa atribuição é dada aos órgãos municipais, como é o caso da prefeitura, responsável pela doação da praça em 1990 e agora responsabilizada, pela FUNAI, em realocar essas famílias. Representada pela antropóloga Marlene de Oliveira, a prefeitura ampara-se na Lei Orgânica do Município que proíbe doação, permuta, venda ou permissão de uso de área destinada a logradouro público. Com relação aos envolvidos indiretamente, CRAS e Posto de Saúde, suas ações têm sido diretas no atendimento às famílias acampadas na Praça, através do cadastro no Programa Bolsa Família e encaminhamentos para tirar documentações (RG e CPF). No caso do Posto têm sido realizados atendimentos básicos, encaminhando para outras unidades de saúde os casos mais específicos de doença. A busca pelo Posto de Saúde do bairro ocorreu pelo fato de não haver atendimento da FUNASA, que por sua vez não oferece esse atendimento aos índios urbanos. Segundo o chefe da DSEI, ''Se eles estão vivendo na área urbana por vontade própria, precisarão se submeter a esse procedimento.'' (LUPORINI, 2010) Vale questionar até que ponto essa decisão é por vontade própria. O movimento migratório não se resume na simples vontade de se mudar, pois como colocou Santos (1987), a migração torna-se forçada de acordo com os interesses hegemônicos das diversas localidades, que no caso da Praça Ângelo Cretã esses interesses estão voltados no retorno à 140 aldeia, sendo esse o lugar de reconhecimento étnico para as autoridades urbanas. Após um ano de acampamento e de diversos pedidos para que se regularizasse a situação, foi convocada uma reunião no início de julho de 2010 com o intuito de estabelecer um acordo com os Kaingang a fim de tirá-los da praça. Foram convidados para a reunião os Kaingang, o CRAS, a Prefeitura, a FUNAI e o SEMA. É nesse contexto que podemos identificar os diversos discursos construídos em torno do espaço e do poder (DE PAULA, 2005). A reunião foi realizada no CRAS, contando com a presença de nove Kaingang das terras de São Jerônimo da Serra e Barão de Antonina, cacique guarani da T.I. de São Jerônimo da Serra, a antropóloga Marlene de Oliveira, FUNAI e assistente social do CRAS, o secretário da SEMA, também convidado, não compareceu. Analisando a estrutura da reunião, temos aparentemente o que Cardoso de Oliveira (2000: 219) chamou de comunidade de comunicação, “(...) diríamos que o encontro entre uma equipe de indigenistas (formada por antropólogos, técnicos e administradores) e lideranças indígenas, consistiria uma comunidade real de comunicação”. Contudo, o diálogo nem sempre foi eticamente construído, como foi observado nas falas de uma funcionária da FUNAI que interrompia rudemente as colocações indígenas, não dando espaço para a horizontalização do diálogo. Mas o que cabe ressaltar desse encontro são o objetivo e os projetos que envolvem essa disputa. Seguindo Ortner (2007:45), analisamos essa situação entendendo que “(...) a vida social é voltada para metas e projetos culturalmente constituídos e envolvendo tanto práticas de rotina como ações intencionalizadas”. O projeto inicia em 1990 com a doação da Praça visando a construção do Centro Cultural a fim de ter um local no meio urbano que fosse referência sobre a história e cultura kaingang. No entanto, não foi o 141 que aconteceu. Dando margem a um segundo projeto, partindo do próprio interesse indígena, que a principio seria construir casas para moradia fixa dentro da Praça. Os kaingang reivindicam a área desde 2009 relembrando da doação e fazendo menção ao nome dado à Praça por conta dessa doação: “queira ou não queira vamos ficar lá, é o nome de um parente nosso que está lá”. A intencionalidade kaingang visa a conquista e transformação do espaço, já que a idéia de pertença da Praça ainda existe no imaginário kaingang uma vez que a revogação da doação não foi comunicada às lideranças da região, como explicou o cacique Nelson, da etnia Guarani: “Minha expressão pode parecer que apoio um ou outro. O indígena nunca foi invasor, sempre foi invadido. E por que os índios foram para esse local? Por que um dia alguém doou com o nome de um líder e isso não foi explicado? Se fosse feita uma reunião com prefeito e líderes indígenas, não só os do Apucaraninha, isso não teria acontecido [...] depois de muito tempo está sendo esclarecido”. O diálogo construído a partir da intencionalidade kaingang e da intencionalidade dos demais agentes gerou um novo projeto que é a construção de um Centro Cultural em outra área, podendo receber todos os indígenas que se deslocam para a cidade para vender “artesanato”. Podemos imaginar então que o discurso foi pautado pela eticidade já que as partes entraram num acordo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). No entanto, devemos nos atentar para uma das representações da agência sendo identificada por suas relações de poder entre os agentes já que a situação que os envolve é desigual e assimétrica (ORTNER, 2007). O que tento elucidar é que mesmo existindo um acordo, os kaingang presentes na reunião tiveram que reelaborar seu projeto inicial por conta da hegemonia discursiva (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). Além disso, não há garantia que o Centro Cultural será construído. Entretanto, decidiram manter a ocupação até que o novo Centro Cultural seja construido e esteja funcionando, mesmo que isso demore mais um ano, como foi a demora para a realização da primeira reunião. 142 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das diversas etapas que envolvem a migração das populações indígenas, mais especificamente dos kaingang que residem na Praça Ângelo Cretã, é essencial nesse momento ampliar e aprofundar a analise de como essas famílias tem resignificado a cidade de acordo com sua visão de mundo, bem como as relações de poder que envolvem essa disputa de território, entendendo como essas relações determinam o lugar das populações indígenas. Na mobilização, reorganização e reivindicação dos Kaingang encontram-se várias características próprias de sua cultura que podem assim legitimar qualquer atendimento específico que lhes é de direito, independente de habitarem um território legalmente reconhecido pelo Estado. Notou-se, com a descrição feita, que as características étnicas passam a imbuir um sentido mais amplo nas definições identitárias da cidade, não havendo a necessidade de enquadrar os migrantes indígenas em uma categoria única que representa a vida urbana, como proletários, mendigos ou não-índios. Foi desconsiderado, portanto, a padronização cultural/identitária politicamente elaborada e aplicada aos povos indígenas que se deslocam para as cidades, ou seja, os Kaingang não se tornaram urbanos, mas sim Kaingang urbanos que podem se enquadrar em outras categorias de identificação, mas sem perder sua noção de pessoa. Acompanhando o significado de pessoa kaingang percebemos que não há uma desconexão total da vida na aldeia, já que essa ligação representa a unidade entre os dois mundos, levando para a cidade características kaingang, que ao reproduzir a lógica da aldeia desconstroem as falácias que permeiam o pensamento não indígena com relação a dinâmica cultural ao negarem as possibilidades de 143 transformação e resignificação da cultura. Sendo assim, o que permanece como resultado inicial e parcial desta pesquisa, abrindo novas possibilidades de estudo, é o crescente agenciamento Kaingang em defesa de sua autonomia na escolha territorial, construindo estratégias incisivas que demonstram a linha tênue entre aldeia e cidade, além do seu poder discursivo sem mediações tutelares. 144 Bibliografia LUPORINI, F. Índios invadem sede da Funasa. In: Jornal de Londrina. 29/03/2010 http://www.jornaldelondrina.com.br/online/conteudo.phtml?id=986050 Acesso em 08/08/2010 BURKE, P. “Estereótipos do outro”. 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