EDUCAÇÃO E FELICIDADE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA “A VIDA FELIZ” DE SANTO AGOSTINHO SOUZA, Mariana Rossetto – UEM [email protected] CZADOTZ, Regina Célia Rampazzo – UEM [email protected] Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: Capes Resumo O presente trabalho teve como objetivo discutir a concepção de felicidade de Santo Agostinho, tendo em vista entender a proposta educativa elaborada pelo pensador para que o homem pudesse ser feliz. Nesse texto, foi utilizada como fonte principal a obra “A Vida Feliz”, uma das primeiras reflexões elaboradas por Santo Agostinho após sua conversão. Para realizar essa discussão, foi importante destacar o momento no qual a obra foi produzida, pois o pensamento de Santo Agostinho, no decorrer de sua vida, sofreu algumas alterações, de acordo com o aprofundamento do pensador nos valores cristãos. Sendo assim, não é possível ficar restrito à ideia de felicidade presente nessa obra para entender sua proposta educativa como um todo. Por isso, depois de apresentada “A Vida Feliz”, foram utilizadas outras reflexões agostinianas, bem como obras de comentadores do assunto, que deram condições de identificar algumas das mudanças do pensamento agostiniano sobre a concepção de vida feliz. Essa vida feliz foi considerada por ele, inicialmente, como sendo a vida do sábio, que deveria ter como objetivo final chegar a Deus. A educação era, pois, essa caminhada de busca pela posse de Deus. Com o tempo, contudo, e influenciado pelas leituras de Paulo de Tarso, Santo Agostinho concebe a educação como uma caminhada de peregrinação do homem, pois passa a considerar que a vida feliz só seria possível a ele após a sua morte, quando seu corpo e sua alma se tornariam incorruptíveis, ou seja, quando o homem por completo fosse transformado e pudesse chegar a Deus, entendido como a fonte da felicidade eterna. Palavras-chave: Santo Agostinho. Educação. Felicidade. Introdução Santo Agostinho é considerado um dos mais importantes mestres do cristianismo. Seu pensamento foi fundamental para o período em que viveu, entre os séculos IV e V d.C., pois auxiliou na sistematização da doutrina cristã e na elaboração de propostas para a formação do homem ideal, entendido como o homem santificado. Influenciou também o período que o 3930 sucedeu, a Idade Média, de modo que se chega a afirmar que esse momento foi caracterizado por uma “agostinização” (HAMMAN, 1980); e foi além, atravessando o tempo e se fazendo presente até os dias atuais na organização da Igreja Cristã. Contudo, ao tratar da importância de Santo Agostinho, não se deve restringi-la a seu papel na Igreja Cristã. Seu pensamento, para além de questões teológicas, aborda aspectos filosóficos, ao tratar das necessidades e dos anseios do homem enquanto tal. Ele trata de valores éticos e morais que, por se tratarem de valores atemporais, justificam a retomada de suas ideias não só no âmbito religioso. Assim, é importante entender que o pensamento agostiniano não se restringe ao período em que se constituiu, a saber, período de decadência do Império Romano e consolidação da Igreja Cristã enquanto instituição organizada; embora deva ser compreendido nesse contexto, como resposta aos anseios daquele tempo. Santo Agostinho é “[...] dos poucos cujas idéias não representam somente um momento histórico, mas exprimem e aprofundam valores universais, ainda que se tenham manifestado em um momento histórico determinado” (CAPORALINI, 2007, p. 35). Portanto, embora trate de aspectos universais, não se deve perder de vista, ao discutir essa temática, que as respostas ao homem apresentadas por Santo Agostinho e, por extensão, a sua proposta educativa, manifestam o interesse de uma instituição – a Igreja Cristã – que estava em processo de organização e assumia o controle da sociedade, buscando formar o homem dessa sociedade de acordo com sua doutrina. Dentre outros assuntos, um tema ao qual Santo Agostinho sempre recorre é o da felicidade. Para tratar dessa temática, nesse trabalho será apresentada uma das primeiras reflexões agostinianas, “A Vida Feliz”, na qual o pensador discute sobre a fonte da verdadeira felicidade e a busca que o homem empreende por essa felicidade. Paralelamente a isso, serão apresentados pensamentos posteriores de Santo Agostinho referentes ao tema. Isso se explica quando se entende que essa obra foi escrita por um Santo Agostinho neo-convertido que, no decorrer do tempo, voltou seu pensamento cada vez mais para os valores cristãos, em função dos interesses da Igreja Cristã. Santo Agostinho e sua obra: “A Vida Feliz” Aurelius Augustinus nasceu no dia 13 de novembro de 354 d.C., em Tagaste, na África, e morreu no dia 28 de agosto de 430 em Hipona, onde era bispo. 3931 Santo Agostinho concluiu seu ciclo de estudos quando tinha 19 anos, tendo estudado em Tagaste, Madaura e Catargo. Sua formação foi essencialmente literária e baseada na língua latina, característica importante de ser destacada: Importa examinar, com certa atenção, a natureza dessa formação de base, pois todo o pensamento e a obra inteira de Agostinho revelam estrita dependência dela, tanto nos caracteres positivos como nas deficiências, no que têm de bom ou de mau [...] Praticamente Santo Agostinho não pode utilizar do pensamento grego, pagão ou cristão, senão o que passara ao latim, em forma de traduções ou de adaptações (MARROU, 1957, p. 16). Aos 19 anos, entrou em contato com Hortensius, de Cícero. Essa leitura despertou-o para o “amor à sabedoria”, conforme o próprio Santo Agostinho relata em suas Confissões (2010, p. 70): Seguindo o programa normal do curso, chegou-me às mãos o livro de tal Cícero, cuja linguagem – mas não o coração – é quase unanimemente admirada. O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos [...] ele transformou as minhas aspirações e desejos. Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria [...]. Eu contava dezenove anos [...]. Não era para apurar a linguagem que eu lia esse livro [...]: o que me apaixonava era o seu conteúdo, e não a maneira de dizer. [...] Ora, o amor da sabedoria, pelo qual eu me apaixonava com esses estudos, tem o nome grego de filosofia. A partir de então, passou a buscar a sabedoria. Voltou-se, inicialmente, para a Bíblia, mas decepcionou-se com sua leitura, pois considerou sua linguagem rústica quando comparada ao estilo ciceroniano: “Agostinho voltou-se então para a Bíblia, mas não a entendeu. O estilo com a qual estava redigida, tão diverso do estilo rico em refinamento da prosa ciceroniana, e o modo antropológico com que parecia falar de Deus velaram sua compreensão [...]” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 430). Segundo relatos do próprio Santo Agostinho, na tentativa de acalmar seu espírito inquieto, tornou-se adepto do maniqueísmo, baseado no dualismo bem x mal. Fausto, considerado a maior autoridade do maniqueísmo naquele momento, não conseguiu suprir todas as suas dúvidas, o que fez com que ele se afastasse da doutrina maniqueísta. Aproximou-se então dos acadêmicos céticos, cuja filosofia é pautada na dúvida, mas essa doutrina também não conseguiu satisfazê-lo. 3932 Paralelamente a isso, exerceu a profissão de professor durante 13 anos, tendo lecionado em Tagaste, Catargo, Roma e Milão. Nesta última, assumiu o papel de professor de retórica oficial da cidade, e foi ali que aconteceram os encontros decisivos para sua conversão. Esses encontros referem-se ao contato com o Bispo Ambrósio e com os neoplatônicos, bem como a leitura das cartas de Paulo de Tarso. Converteu-se ao cristianismo no ano de 386, quando, ao buscar a solidão no jardim de sua casa ouviu uma voz que dizia “Toma e lê”. Ao abrir a Bíblia, leu a seguinte estrofe (13) no capítulo 13 da epístola de Paulo a Romanos: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas; mas revestivos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da carne”. A partir daí, acreditou ter encontrado a tranquilidade a que aspirava, a ponto de afirmar: “Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz de certeza” (AGOSTINHO, 2010, p. 231). Passou a se dedica à purificação de seus costumes, afastando-se do que passou a considerar mundano e pecaminoso (PEREIRA MELO, 2010). Depois de convertido, Santo Agostinho deixou a profissão de retórico e retirou-se para uma propriedade rural em Cassiciacum. Recebeu o batismo por meio de Ambrósio no dia 24 de abril de 387 e, após retornar à África, fundou uma comunidade monástica. Abandonou esta comunidade em 391, quando foi ordenado presbítero da cidade de Hipona. Tornou-se bispo dessa cidade em 395, e passou a se dedicar inteiramente a essa tarefa, mas sem deixar de lado sua obra escrita, tanto é que, após sua morte, deixou aproximadamente 113 obras e 225 cartas: Estava cônscio que a obra escrita não constituía o lado menos importante de sua vida. Possuía o sentimento vivo de ser útil à Igreja inteira, tanto à de seu tempo como à do futuro: vemo-lo, ao cabo da existência, preocupado em pôr seus livros em ordem, em catalogá-los, revisá-los e em assegurar-lhes a conservação para a posteridade (MARROU, 1957, p. 47). Essa compreensão da vida de Santo Agostinho é importante, tendo-se em vista a influência que ela exerceu em seu pensamento: 3933 Para Agostinho, a vida e a doutrina são uma só coisa. Sua doutrina é uma interpretação de sua vida, e sua vida não cessa de nutrir-se nas fontes da doutrina. E assim o pensar agostiniano evolui em contacto imediato com a vida. Seu objetivo não é ensinar a pensar, e sim, a viver, a viver pensando. É a este contacto direto com a vida real que a ideologia agostiniana deve o seu valor imperecível e a sua influência fecunda e constante sobre o pensamento ocidental até os nossos dias (BOEHNER; GILSON, 1970, p. 203). Até mesmo por isso, ao estudar as obras de Santo Agostinho, é importante destacar o período de sua vida em que ele a escreveu, pois existem algumas diferenças entre o pensador neo-convertido e o bispo da igreja. Após a conversão, Santo Agostinho apresenta-se como uma alma inquieta que busca respostas para suas angústias no cristianismo, tentando conciliar sua fé com a razão. Enquanto no princípio de seu pensamento o que se constata é uma forte influência da cultura clássica, suas reflexões finais mostram um aprofundamento nos mistérios e valores cristãos. Além disso, conforme ele foi assumindo um papel de destaque na Igreja Cristã, maior passou a ser seu interesse em auxiliar essa instituição em sua consolidação, o que significa, por extensão, um maior interesse em formar o homem daquele momento de acordo com os princípios cristãos. Assim, ao tratar de “A Vida Feliz”, objeto de interesse desse texto, é importante compreender quais eram as suas motivações ao escrevê-la, e quando essa obra foi produzida, para discutir a proposta agostiniana acerca da felicidade. A partir daí é que se buscará entender como essa proposta foi se desenvolvendo no decorrer de sua vida. De acordo com o que foi apresentado, depois de convertido, no ano de 386, Santo Agostinho retirou-se em uma propriedade em Cassiacum. Ali, ele estava com seus amigos e discípulos, Alípio, Licêncio, Trigésio, seu irmão, Navígio, seu filho, Adeodato, e sua mãe, Mônica. Durante esse retiro, produziu alguns de seus primeiros escritos, dentre os quais “A Vida Feliz”, “Solilóquios”, “A Ordem” e “Contra os Acadêmicos”, resultantes dos diálogos que estabeleceram: E, partindo para a casa de campo com todos os meus, eu te louvava com alegria. Nos livros de discussões com meus amigos mesmo diante de ti está documentada a atividade literária ali realizada, já a teu serviço, mas respirando ainda – como nas pausas da luta – o orgulho da erudição (AGOSTINHO, 2010, p. 240). “A Vida Feliz” foi resultado de três dias de diálogo, tendo como tema principal a felicidade, “[...] tema clássico e fundamental para a Antiguidade” (FRANGIOTTI, 1998, p. 3934 111), tema este que, conforme foi apresentado, foi despertado em Santo Agostinho com a leitura de Cícero. Em Cícero, a filosofia era entendida como sabedoria e como arte de viver que levava o homem à verdadeira felicidade. Ele foi o divulgador das filosofias gregas, fazendo isso em língua latina. Santo Agostinho, ao lê-lo, adotou algumas das ideias ciceronianas, passando a acreditar, então, que a filosofia lhe possibilitaria chegar a essa felicidade que buscava. Contudo, recém-convertido, rompeu com essa idéia clássica, apontando não mais a filosofia como a fonte da felicidade, mas sim a posse de Deus (FRANGIOTTI, 1998). Ele mostra essa conclusão de que a posse de Deus é que o levaria o homem à felicidade no seguinte diálogo: — Pois bem, prossegui, admitis ser infeliz o homem que não é feliz? — Sem a menor dúvida. — Logo, é infeliz quem não possui o que deseja? Todos aprovaram. — Então, o que o homem precisa conseguir para ser feliz? [...] — Por conseguinte, estamos convencidos de que, se alguém quiser ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado em algum revés de sorte. — Já concordamos com isso, diz Trigésio. —Então, qual a vossa opinião? É Deus eterno e imutável? — Eis aí uma verdade tão certa que qualquer questão se torna supérflua, interveio Licencio. Em piedosa harmonia, todos os outros disseram-se de acordo. Concluí então: — Logo, quem possui a Deus é feliz! (AGOSTINHO, 1998a, p. 129-131). Quem possui a Deus, de acordo com ele, é o sábio: “- Ninguém duvida agora de que quem se encontra na indigência seja feliz? E não precisamos indagar se o sábio sofre de necessidades corporais, pois essas coisas não se fazem sentir na alma - sede da vida feliz. A alma do sábio é perfeita: ora, ao que é perfeito nada falta” (AGOSTINHO, 1998a, p. 145). Entretanto, decorridos os anos, Santo Agostinho mudou algumas de suas concepções, lamentando-se por considerar inicialmente que a felicidade estaria presente na alma do sábio, independente do estado de seu corpo. Ele passou a afirmar, então, que somente uma vida poderia ser chamada de feliz: a vida futura, imortal. De acordo com ele, a vida feliz na terra só seria possível aos homens por meio da esperança da vida eterna (FRANGIOTTI, 1998). Eis o que apresenta em “A Trindade” (1994): 3935 Segue-se daí que a fé em Deus é imprescindível nesta vida mortal, tão cheia de erros e tribulações. É impossível encontrar bens, principalmente os que tornam os homens bons e felizes, se não vierem de Deus para o homem e não aproximarem o homem de seu Deus. Quando, porém, aquele que permanece bom e fiel em meio às misérias desta vida, chegar à vida bem-aventurada, então acontecerá o que agora não é possível de forma alguma, ou seja, o homem viver como quer. Pois naquela felicidade, nada quererá de mal ou nada desejará que lhe falte e não faltará nada do que desejar. Tudo o que amar estará lá presente e não desejará nada que esteja ausente. Tudo o que ali existir será bom e o Deus supremo será o supremo Bem, e ali estará para gozo de todos os que o amam. E eis o que será o maior grau de felicidade: estará certo de que será assim por toda a eternidade (AGOSTINHO, p. 406, 407). Por isso, ao final de sua vida, em suas “Retratações”, na qual revisou suas obras anteriores, Santo Agostinho declara sobre “A Vida Feliz”: Este livro... Começado por ocasião dó aniversário de meu nascimento, foi terminado após três dias de discussão, como está bem indicado aí. Nesse livro concordamos que prosseguíamos juntos a busca — que não há vida feliz a não ser no perfeito conhecimento de Deus. Desagrada-me ter dado a Mânlio Teodoro, a quem dediquei o livro — se bem que fosse homem douto e cristão — mais elogios do que devia. Também lamento haver mencionado diversas vezes o tema fortuna. Enfim, ter declarado que, no curso da vida presente, a vida feliz existe no sábio exclusivamente, e em sua alma, qualquer seja o estado de seu corpo. Com efeito, o conhecimento perfeito de Deus, isto é, aquele melhor do qual o homem nada pode possuir, o Apóstolo o espera só para a vida futura (ICor 13,12). Ela, unicamente, merece o nome de vida feliz, porque o corpo, já então incorruptível e imortal, estará submetido ao espírito, sem nenhuma fraqueza ou resistência (ICor 15,42ss). Em nosso manuscrito encontrais, de fato, este livro incompleto e apresentando não poucas lacunas. Fora assim copiado por alguns irmãos e eu não consegui encontrar um exemplar completo, pelo qual pudesse corrigi-lo ao revê-lo... (Retractationes 1,2 apud FRANGIOTTI, 1998, p. 111, 112). Santo Agostinho mantém, dessa maneira, a ideia de que Deus é a fonte da verdadeira felicidade, mas deixa de considerá-la possível nessa vida, afirmando que somente com o corpo incorruptível e submetido ao espírito, ou seja, só após a morte é que o homem pode chegar a esse conhecimento perfeito, pois não haverá nenhuma fraqueza que o impeça de alcançá-lo. É necessário entender, nesse sentido, qual a caminhada educativa proposta por Santo Agostinho. A caminhada educativa agostiniana para a felicidade A alma, na compreensão agostiniana, aspira a um conhecimento de Deus, pelo qual possa se expandir em uma irradiação de felicidade, aspiração essa justificada como resultado 3936 da inquietação do homem e de sua insatisfação consigo mesmo (PEREIRA MELO, 2002). Reafirma-se, aqui, a ideia presente em “A Vida Feliz”, de que todos desejam ser felizes: “O que a alma certamente não põe em dúvida é a sua própria infelicidade e o fato de desejar ser feliz” (AGOSTINHO,1994, p. 468). Outra ideia reafirmada é a necessidade de que o homem se volte para Deus para chegar ao seu objetivo, ou seja, à felicidade. Em relação a isso, Santo Agostinho afirma que o problema do homem está em buscar essa felicidade em prazeres corporais e em bens materiais e passageiros, que proporcionam uma falsa sensação de felicidade e que podem ser retirados dele a qualquer momento: Por certo, um homem não se considerará muito infeliz se vier a perder sua boa reputação, riquezas consideráveis ou bens corporais de toda espécie? Mas não o julgarás, antes, muito mais infeliz, caso tendo em abundância todos esses bens, venha ele a se apegar demasiadamente a tudo isso, coisas essas que podem ser perdidas bem facilmente e que não são conquistadas quando se quer? (AGOSTINHO, 1995, p. 54). -------------------------------------------------------------------------------------------Querem descansar nos bens instáveis – e não nos permanentes: são-lhes aqueles arrancados pelo tempo e passam... e os atormentam com temores e dores e os não deixam tranqüilos (AGOSTINHO, 2005, p. 79). -------------------------------------------------------------------------------------------Finalmente – ainda que os prazeres insanos não sejam prazeres, ainda assim, o que quer que sejam, e por mais que agradem a ostentação das riquezas e o orgulho das honras, a voragem das tabernas e as lutas dos teatros, a imundície das fornicações e a excitação dos banhos quentes – uma febrezinha leva tudo isso e, embora nos deixe vivos, tira-nos toda essa falsa felicidade: o que fica é uma consciência vazia e ferida [...] (AGOSTINHO, 2005, p. 81). -------------------------------------------------------------------------------------------Toda criatura corporal é bem, por pouco que a alma – amante de Deus – a domine. É bem inferior, mas belo em seu gênero, por levar impressa uma forma ou espécie. Quando a criatura corporal é possuída por uma alma negligente de Deus, nem mesmo assim, ela se muda em mal. Sendo, porém, o pecado um mal, esse amor a um bem inferior será ocasião de pena para o seu amante. Poderá levá-lo à miséria, e iludi-lo com seus falsos deleites, visto que esses bens não satisfazem, mas atormentam (AGOSTINHO, 1992, p. 71). O que o homem precisava, portanto, era voltar-se para Deus, buscando-O e apreendendo-O (GILSON, 2007). Nesse ponto, é possível estabelecer relações com a própria experiência de vida de Santo Agostinho. Ele considera que sua vida antes de se tornar cristão foi pecaminosa e que não encontrava a felicidade que buscava porque a procurava nos prazeres corporais, o que para ele o distanciava de Deus, a partir de então entendido como 3937 verdadeira fonte de felicidade. Em função disso, no decorrer de sua obra, já a partir do momento que se converteu, constata-se a insistência em demonstrar seu desejo de conhecer a Deus, afirmando que nada mais seria necessário para alcançar a felicidade: E quer louvar-te o homem, esta parcela de tua criação; o homem carregado com sua condição mortal, carregado com o testemunho de seu pecado e com o testemunho de que resistes aos soberbos; e mesmo assim, quer louvar-te o homem, esta parcela de tua criação. Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti (AGOSTINHO, 2010, p. 19). No entanto, apesar de afirmar que todos buscavam essa felicidade, Santo Agostinho não acreditava que todos estivessem aptos para empreendê-la. A despeito dos obstáculos que particularizam esse caminho, afirma: É próprio de todos os homens quererem ser felizes, mas nem todos possuem a fé para chegar à felicidade pela purificação do coração. Acontece, entretanto, que esse caminho que nem todos desejam é o verdadeiro caminho para a felicidade, a qual ninguém pode alcançar se não o quiser (AGOSTINHO, 1994, p. 433). Considera, dessa maneira, que o homem estava entre Deus, a própria felicidade, e a matéria, incapaz de felicidade ou infelicidade, donde se estabelece a hierarquia agostiniana de que o homem era infeliz quando se desviava para baixo, e feliz quando se voltava para o alto, para Deus (PÉPIN, 2004). O homem deveria passar pelo mundo, utilizando-se dele, mas a fruição deveria acontecer somente em Deus, considerado a única fonte da felicidade: “[...] verdadeiro Deus, único com quem, único por quem e único em quem é feliz a alma humana, isto é, a racional e intelectual” (AGOSTINHO, 2002, p. 342). Santo Agostinho apresentou, então, uma proposta educativa de busca do homem pela felicidade, ou seja, por Deus. A configuração dessa educação agostiniana demonstrou forte influência platônica, sendo entendida, em um primeiro momento, como uma caminhada de purificação moral e exercitação intelectual, por meio da qual o homem ia, nos dizeres de Santo Agostinho, identificando-se com a Sabedoria, Bondade, Beleza e Felicidade supremas (PEREIRA MELO, 2002). A perfeição moral, a felicidade e, consequentemente, a sabedoria completa estavam relacionadas à ação do homem, que deveria conhecer e amar a Deus (PEREIRA MELO, 2010). 3938 A exortação agostiniana era de que o homem passasse por um processo de purificação, distanciando-se do que o levava a uma vida de pecado e voltando-se para sua alma, na qual, por um processo de exercitação, poderia aproximar-se de Deus. Isso porque, para Santo Agostinho, com Deus “[...] comunica-se através das vias internas da alma” (CAPORALINI, 2007, p. 44). Ao se caracterizar como uma busca interior do homem pela contemplação de Deus, a caminhada educativa agostiniana pode ser considerada também autoeducação. Santo Agostinho desenvolve a ideia da importância dada à alma ao compará-la com o corpo. A superioridade que ele atribui à alma se deve ao fato de a mesma encontrar-se ligada a Deus. Por isso, acreditava que o homem, ao se deixar levar pela sensibilidade de seu corpo, satisfazendo-se com os prazeres externos, perdia a oportunidade de buscar o que lhe garantiria a real felicidade, ou seja, os bens eternos, afastando-se assim da caminhada de santificação: Maravilha-me muito que homens de tal maneira sábios, que pensaram que todas as coisas corporais e sensíveis devem pospor-se às incorpóreas e inteligíveis, façam, quando tratam da vida feliz, menção dos contactos corporais. [...] Se, portanto, quanto mais alguém é semelhante a Deus, tanto mais se aproxima dele [...]. A alma do homem é tanto mais dessemelhante do ser incorpóreo, incomutável e eterno, quanto mais ávida se revela das coisas temporais e mutáveis (AGOSTINHO, 2002, p. 359, 360). Nesse entendimento, para que o homem estivesse preparado para a contemplação divina, seu corpo deveria estar submetido à sua alma, sendo o apego à materialidade um impedimento na realização da caminhada autoeducativa, já que afastava o indivíduo do que procurava: Faze, Pai, que eu te procure, mas livra-me do erro. Nenhuma outra coisa, além de ti, se apresente a mim, que te estou procurando. Se nada mais desejo senão a ti, Pai, então eu te encontro logo. Mas se houver em mim desejo de algo supérfluo, limpame e torna-me apto a ver-te (AGOSTINHO, 1998b, p. 20). Portanto, para que tivesse uma vida reta e pudesse chegar à Verdade, era necessário que o homem se afastasse dos bens corporais e se voltasse para os bens espirituais. A partir daí, conforme relata Pereira Melo (2002), Santo Agostinho apresenta uma nova definição de educação, influenciado pela leitura de Paulo de Tarso: uma caminhada de peregrinação do 3939 homem, na qual o ‘homem exterior’, voltado aos bens materiais, mutáveis e mortais, deveria ceder lugar ao ‘homem interior’, ligado aos bens espirituais, imutáveis e imortais. Superar esse obstáculo de se voltar para os apelos exteriores do mundo, no entanto, era somente o primeiro passo da educação cristã. Depois disso, era preciso cuidar para que a alma não ficasse presa em sua própria contemplação, sem se voltar para aquele que lhe deu origem, ou seja, o próprio Deus (PEREIRA MELO, 2010), objetivo final do homem: É grande e bem raro esforço transcender com o poder da razão todas as criaturas corpóreas e incorpóreas, que se apresentam mutáveis, e chegar à substância imutável de Deus e dele próprio aprender que toda natureza que não é Ele não tem outro autor senão Ele. [...] Fala pela verdade mesma, se alguém há idôneo para ouvir com a mente, não com o corpo. Fala desse modo à parte do homem que no homem é mais perfeita que as demais de que consta e à qual apenas Deus é superior (AGOSTINHO, 1961, p. 104). Com isso, o homem poderia gozar da felicidade completa após a sua morte: “Adorai juntos e amai a Deus – por amor. Todo o nosso prêmio será Ele mesmo, e na vida eterna gozaremos de sua bondade e de sua beleza” (AGOSTINHO, 2005, p. 120). A educação em Santo Agostinho é, por isso, um processo que tem o papel de viabilizar/facilitar a caminhada humana rumo à ‘cidadania celeste’ (PEREIRA MELO, 2010). Como a possibilidade da felicidade após a morte envolvia o homem por completo, era preciso que ele cuidasse tanto de sua alma quanto de seu corpo no decorrer de sua vida, para ser digno de chegar à contemplação de Deus: Como o espírito, escravo da carne, se chama, não impropriamente, carnal, assim a carne, sujeita ao espírito, receberá o nome de espiritual. E não porque se converta em espírito, como alguns imaginam [...] mas porque se submeterá ao espírito, com admirável e suma facilidade de obediência, até a própria vontade seguríssima de sua imortalidade indissolúvel e já livre de toda sensação de mal-estar, de toda corruptibilidade e de todo peso (AGOSTINHO, 1961, p. 222). Por isso, nesse aspecto, o que é apresentado por Santo Agostinho em “A Vida Feliz” foi alterado: ele passou a acreditar que não bastava que o homem chegasse à contemplação interior independente do que estivesse acontecendo. Era preciso que o homem completo cumprisse a caminhada de santificação. 3940 Conclusões Santo Agostinho elaborou suas reflexões tendo como um de seus objetivos apontar caminhos para que o homem saísse de seu estado de inquietação. Nessa tentativa, estando já convertido ao cristianismo, apresenta uma nova fonte de felicidade, que não é mais a filosofia: essa fonte é Deus. Para o pensador, Deus passa a ser o objetivo a ser buscado pelo homem, sendo que somente assim ele teria condições de ser feliz. Embora em um primeiro momento tenha considerado a possibilidade de o homem sábio chegar a tal vida feliz, Santo Agostinho, ao aprofundar-se no conhecimento da doutrina cristã, conclui que essa vida feliz em Deus só pode ser alcançada pelo homem em uma vida futura, cabendo ao mesmo passar por uma transformação no decorrer de sua vida terrena que lhe dê condições de chegar ao que considera a verdadeira felicidade. Assim, a proposta educativa agostiniana passa a ser entendida como uma caminhada santificadora do homem rumo à cidadania celeste. É interessante destacar, para concluir, a importância de tal estudo quando se considera a atualidade de sua temática. A felicidade é um anseio não só do homem do tempo de Santo Agostinho, mas um valor universal, que se apresenta ainda hoje, em nossos dias, como algo que é buscado pelo homem. Assim, é possível estabelecer relações com as questões atuais da sociedade, identificando permanências e rupturas. REFERÊNCIAS AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Volume II. São Paulo: Editora das Américas, 1961. AGOSTINHO. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994. AGOSTINHO. O Livre-arbítrio. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1995. AGOSTINHO. A Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998a. AGOSTINHO. Solilóquios. São Paulo: Paulus, 1998b. AGOSTINHO. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Parte 1. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. (Coleção Pensamento Humano). AGOSTINHO. A Instrução dos Catecúmenos: teoria e prática da catequese. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. 3941 AGOSTINHO. Confissões. 5ª ed. São Paulo: Paulus, 2010. BOEHNER, P.; GILSON, E. Santo Agostinho, o mestre do Ocidente. In: ______. História da Filosofia Cristã: Desde as origens até Nicolau de Cusa. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003. CAPORALINI, J. B. Reflexões sobre O Essencial de Santo Agostinho. Maringá: Chicletec, 2007. FRANGIOTTI, R. Introdução. In: AGOSTINHO. A vida feliz. São Paulo: Paulus, 1998. GILSON, E. Os padres latinos e a filosofia. In: ______. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. HAMMAN, A. Agostinho de Hipona. In: ______. Os padres da Igreja. 3ª ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980. MARROU, H. Santo Agostinho e o agostinismo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1957. PÉPIN, J. Santo Agostinho e a Patrística Ocidental. In: CHATELET, F. (Dir.). História da Filosofia: Idéias, Doutrinas. Vol. 2 – A Filosofia Medieval: do século I ao século XV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. PEREIRA MELO, J. J. A educação em Santo Agostinho. In: OLIVEIRA, T. (Org.). Luzes sobre a Idade Média. Maringá: EDUEM, 2002. PEREIRA MELO, J. J. Santo Agostinho e a educação como um fenômeno divino. Educação e Filosofia Uberlândia, v. 24, n. 48, p. 409-434, jul/dez 2010. REALE, G.; ANTISERI, D. Santo Agostinho e o apogeu da Patrística. In: ______. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 5ª ed. São Paulo: Paulus, 1990. (Volume I).