1 A APOLOGÉTICA CRISTÃ NOS SÉCULOS I, II e III A apologética clássica, tradicional, que prevaleceu nos três primeiros séculos da era cristã, só responde a uma parte da Teologia Fundamental atual, que assume, embora ampliando-o, o projeto da apologética clássica. Frente ao robustecimento evidente do cristianismo depois do primeiro século de luta e através dos grandes reinados dos imperadores do século II, o paganismo e seus melhores representantes aumentaram seus esforços para impedir sua propagação. As perseguições significam o esforço violento do Estado romano contra o cristianismo. Mas não foi está a única maneira que o mundo pagão utilizou para atacar os cristãos. Como a intenção dos pagãos era destruir os cristãos, recorreram também as armas literárias, espalhando por toda parte, por meio de diversas classes de escritos, as mais horrendas calunias. Com isso aumentava o ambiente anti-cristão com mais eficácia e contribuía para aumentar as perseguições. I – Escritos pagãos contra o cristianismo Na realidade, não conhecemos os restos dos escritos antigos anteriores ao reinado de Adriano, sabemos que existiram e que desempenharam um papel importante. I.I – Primeiros escritores anticristãos Os primeiros escritos de que temos alguma noticia são alguns fragmentos respectivos do cristianismo e dos filósofos estóicos, como: Epíteto e Marco Aurélio, Galiano e Aelio Aristides. Os ataques já sistematizados começaram em pleno reinado de Marco Aurélio, respondendo, sem dúvida ao grande crescimento alcançado pelo cristianismo. Frontón, preceptor de Marco Aurélio, deu a conhecer particularmente por suas ironias o desprezo sobre a morte dos cristãos, e insistiu de modo especial na corrupção e crimes que lhes atribuíam. Minúcio Felix, em sua Apologia, trás alguns fragmentos desta classe de escritos copiados de Frontón. Neles se dão como certo os assassinatos de crianças nas reuniões dos cristãos para beber seu sangue, e outros feitos do mesmo estilo, como adorar a cabeça de um asno. 2 I.II – Luciano e Celso Até aqui não foram mais do que ensaio de pouca importância . No ano de 167 apareceu o escrito sobre a morte do Peregrino, de Luciano. Não há duvida que Luciano era espírito cultivado e seleto, porém ao mesmo tempo um escritor terrível: o rei da ironia e da sátira. No Peregrino, tipo de cristão convertido do paganismo, apresenta um ladrão e vigarista (aquele que convence através do discurso). O cristianismo não era para ele senão uma de tantas artes de fanatismo e desapareceria. Não era de surpreender isto em Luciano, que igualmente em seus Diálogos dos Mortos aplica a ironia caustica aos deuses do Olimpio e personagens mais célebres. Muito mais terrível e perigoso foi outro polêmico pagão chamado Celso, com seu livro Discurso Verdadeiro, aparecido no ano 178. Seu original se perdeu, mas os fragmentos reproduzidos por Orígenes em sua refutação quase, se pode reconstruir. Sua tese é a que a religião romana é indispensável para o Império, e assim o não professa-lá é declarar-se contrario a ele. O mal dos cristãos, afirma Celso, não é ter uma religião distinta própria, sim o exclusivismo e o rechaçar a religião do Império romano. Celso conhece perfeitamente a doutrina cristã em seus pontos essenciais e trata de refuta-la e ridiculariza-la do ponto de vista pagão. Para ele, a doutrina é uma mescla da loucura judaica, de erros novos e de algumas prescrições éticas fundamentais, tomadas dos filósofos gregos. Com isso já se vê a tendência a um certo indiferentismo religioso, unido com o reconhecimento da religião, porém sobre todo empenho em dar a preferência as doutrinas filosóficas gregas. II – Defesa literária do cristianismo: apologias Contra estes inimigos, teve que defender-se desde o princípio o cristianismo. Contra a força do imperadores impero a constância e heroísmos de seus mártires, que com razão deve considerar-se como o primeiro estado da apologética cristã. Porém, ademais, os mesmos mártires não calavam diante dos juizes. Com toda veemência defendiam a doutrina cristã contra as mas e grosseiras calunias que se propagavam. Também isto é uma verdadeira apologética. II.I – Características Gerais das apologias Como sabemos, seria cansativo e monótono seguir metodicamente o estudo detalhado de cada uma das apologias, será indubitavelmente mais útil indicar brevemente as características gerais que apresentam todas elas. 3 Antes de tudo todas elas estão direcionadas a provar as injustiças que são cometidas contra os cristãos, para o qual desfaçam uma por uma as acusações e calunias propagadas contra eles. Eis algumas: de antropofagia, por supor que em suas reuniões litúrgicas sacrificavam crianças e bebiam seu sangue, incestos, mas costumes e o que eles incluíam baixo a culpa de ateísmo, oposição sistemática ao bem público, de onde se seguia a acusação de se inimigos do gênero humano, a magia e sacrilégios, unido a celebração de concílios secretos. Todas estas e outras parecidas calúnias procuram os apologetas procuram desfaze-las, fazendo ver juntamente a violação das leis jurídicas nos processos contra os cristãos. Mas os apologetas não se contentam em manterem-se na defensiva. Passando adiante, põem especial interesse em apresentar o valor positivo do cristianismo, a vida a doutrina católica. Por isso entretém se em suas apologias as mais belas descrições sobre a vida cristã. Porém o máximo interesse desta apologia positiva o conseguem com os cantos que dedicam a pessoa de Cristo e aos efeitos benéficos e sociais que obtem sua doutrina em todas as partes. Daí passam com freqüência ao ataque contra o paganismo. Como antítese da personalidade sublime de Cristo e da elevação de todos seus ensinamentos, descobrem a sociedade e loucura do culto dos deuses, a imoralidade dos cultos pagãos, a divinização dos vícios mais repugnantes, a crueldade e barbárie dos sacrifícios humanos usados pelo paganismo. II.II – Principais apologetas Quadrado é o apologeta mais antigo que conhecemos. O ano 124 apresento ao imperador Adriano uma apologia, escrita, pelo que nos parece por motivo de uma perseguição local. Deste escrito não se tem nada conservado mais que fragmentos transcritos por Eusébio. Aristides, da mesma forma que Quadrato, compôs uma apologia que dirigiu também a Adriano. Supostamente perdida até o final do século XIX somente conhecíamos dela o que nos comunicou Eusébio; porém em 1889 foi encontrada em uma tradução siríaca pelo americano R. Harris, e pouco depois no original grego refeito. Aristides divide os homens em quatro classes: bárbaros, judeus, gregos e cristãos. Fala do reconhecimento e culto de Deus. O que tributam os gregos e bárbaros a seus deuses é incompatível com o verdadeiro Deus e oposto a moralidade. O dos judeus é meramente exterior. A verdade e moralidade, o culto verdadeiro da divindade só há na nova 4 linguagem dos cristãos. Uma dessas notas típicas desta apologia são as discrições da vida exemplar dos cristãos, sua harmonia e sua caridade mutua, tão distinta do egoísmo e crueldade dos pagãos. São Justino é chamado comumente de O Filósofo por haver-se dedicado especialmente a filosofia antes e depois de sua conversão e haver encontrado a verdade do cristianismo precisamente no estudo da mesma. É especialmente o rei dos apologetas do século II, e representa um sistema inteiramente próprio e original, em contraposição desencadeavam outros, sobre tudo Tertuliano. Frente o ataque veemente e as reivindicações ardorosas de outros, São Justino representa o sistema de atração e harmonia, de fechar pontes e sanar dificuldades para facilitar a comum inteligência. Por outra parte, seus escritos revelam perfeitamente todo sistema e modo de ser. Assim, pois, com a convicção mais profunda, se dedicou por inteiro ao ensinamento e ao estudo da doutrina cristã. Passou algum tempo em Efeso e logo se dirigiu para Roma, onde estabeleceu escola e defendeu com maior força o cristianismo. Entre as várias obras que compôs, três unicamente estão conservadas e são precisamente apologéticas. Estas são: As das apologias, que seguem a critica mais recente, foram dirigidas ambas ao imperador Antônio Pio, e o diálogo com o judeu Trifón, também de caráter apologético. A primeira Apologia, escrita em 153 desconhece o primeiro as acusações e calunias contra o cristianismo, e logo expõe amplamente o substancial da doutrina de Cristo. Estende-se de um modo geral na prova da divindade de Cristo. Conforme Justino e outros apologistas, Deus não tem nome, nem origem. Negam sua onipresença substancial no universo. Deus habita em regiões suprecelestes, não pode deixar seu lugar e, portanto, tampouco, aparecer no mundo. Deus se chama “Pai” pela principal razão de ser patèr tou pánton. Com sua teoria do lógos spermátikos Justino lança uma ponte entre a filosofia antiga e o cristianismo. Em Cristo, o Logos divino apareceu em toda a sua plenitude; mas cada homem possui, em seu intelecto, um germe (spérma) do Logos. Quanto à relação entre o Logos e o Pai, Justino é subordinacionista. O Logos-Filho foi proferido “ad extra”, isto é, tornou-se uma pessoa divina, mas subordinada ao Pai, unicamente com a finalidade de assistir a criação e ao governo do mundo. Para ele a alma possui também certa corporeidade; vive ela, não por ser vida (como Deus), mas por participar da vida. Depois da morte, as almas todas, excetuando-se a dos mártires, vão ao Hades, onde permanecerão até o fim do mundo, todavia os bons já estão 5 separados dos maus e cada uma das categorias, na previsão de seu futuro distinto, é feliz ou infeliz. Segundo a teoria expressa de Justino, a crença de que as almas entram no céu imediatamente depois da morte, equivale a negação da ressurreição dos mortos. Cristo depois de sua morte, desceu ao Hades, ou seja para junto das almas dos justos da Antiga Aliança. Justino atesta a existência das “memórias dos apóstolos” (apomnemoneúmata), a saber, dos Evangelhos canônicos. No Dial. 100 Maria é comparada, pela primeira vez na antiga literatura cristã, a Eva. Uma das aberturas típicas de São Justino é fazer ver as verdadeiras semelhanças entre filosofia clássica e a cristã. Taciano, discípulo de São Justino, se parecia muito pouco com seu mestre. Em oposição a suavidade de caráter daquele, Taciano era veemente, duro e altero. Santo Irineu nos faz dele uma pintura nada amigável. Toda sua atuação e ao mesmo estilo e o sistema de sua apologética, se recente destas condições de seu caráter. Taciano abandonou a obediência da Igreja, fundando a seita dos Encratitas. II.III – Outros apologetas Dignos de menção todavia são outros apologetas que alcançaram grande fama: Atenágoras: filósofo ateniense, representante da tendência de São Justino, autor da apologia intitulada Presbéia, ou Ligação, que apareceu entre 177 e 180. Está dirigida a Marco Aurélio e seu filho Cômodo e compreende preciosas descrições sobre a vida cristã. São Teófilo: autor de um escrito apologético em três livros, o único entre os apologistas que ostenta o caráter episcopal. Minucio Félix: que escreveu a Octavius, o que se deve considerar como a primeira apologia composta em latim, escrito notável, escrita em estilo atraente do mesmo modo que os Diálogos de Platão. É um diálogo em que um tal Cecílio apresenta as dificuldades do paganismo, e Octavius, vai resolvendo com especial acerto e graça incomparável. 6 III – A Didachê O escrito designado brevemente como Didachê ou Doutrina dos apóstolos, foi descoberto em 1873, por Ph. Bryennios, na biblioteca constantinopolitana do patriarca grego de Jerusalém, num manuscrito do ano 1056 (agora Cód. 54, na biblioteca jerosolimitana do patriarca grego; este códice contém ainda o texto íntegro da carta de São Barnabé e as duas epistolas de Pseudo-Clemente). Também se teve conhecimento de fragmentos de um texto grego, de uma versão copta e etíope e de uma tradução georgiana completa. Uma versão latina muito antiga (“Doctrina apostolorum”, correspondendo a D. 1-6 sem 1,3b-2,1), não se apóia no texto cristão da Didaquê, mas no texto grego de uma doutrina judaica tardia das duas vias (morte e vida, para São Barnabé: Trevas e Luz); concepções paralelas se refletem, outrossim, na literatura sapiencial, bem como nos escritos rabínicos e nos manuais da seita de Qumrã. Tal doutrina destinava-se à instrução moral dos pagãos, desejosos de aderirem à sinagoga como pessoas “tementes a Deus”, o escrito era intitulado, pois com razão, Didachè Kuríou tois éthnesin. Já antes dessa versão latina, vários estudiosos haviam admitido a existência de um original judaico, como fonte da Didaquê 1-6; tanto a própria “Doutrina” confirma tal opinião, quanto outros antigos escritos cristãos, que empregaram apenas a doutrina independente das duas vias (sem interpolação cristã): a Carta a Barnabé (18 – 20), Hermas (mand. 2. 4 – 6), a Constituição Apostólica (4 – 13), o “Synbtagna” e a “Fides Nicaena” Apesar da obra ser denominada didachè kuríos dia tom dódeca apostolon tois éthnesein, não apresenta absolutamente as características de uma catequese da fé cristã; o título foi tirado do original judaico e anteposto a todo opúsculo. O texto cristianizado da doutrina das duas vias recebeu uma interpolação puramente cristã: prescrições litúrgicas para o batismo, preceitos sobre o jejum e a oração; oração para os ágapes, deteminações concretas relativas aos doutores, apóstolos itinerantes e profetas; acerca da celebração do domingo e da instituição dos bispos e diáconos. Exortações à vigilância em vista do fim último (provavelmente também calcadas em moldes judaicos) formam a conclusão. Pátria da Didaquê seria, talvez, a Síria ou a Palestina, e a composição dataria da primeira metade do século II, antes ainda do surgimento do Montanismo. Tal antiguidade é sugerida, em primeiro lugar, pelo esboço que traz da vida eclesiástica: a preponderância dos profetas, doutores, apóstolos, bispos e diáconos; a formula das orações, a designação de Jesus como “Servo de Deus”. Porém estudiosos ingleses, particularmente, consideram ficção o arcaísmo da Didaquê, relegando a época da elaboração à segunda metade do século II (Robinson, Connolly, Muilenburg, Vokes). Audet, bem ao contrário, pretende fixar os limites 7 externos da composição (em dois períodos subseqüentes) entre os anos 50 e 70; contudo, sua tese conta com poucas adesões. A Didaquê é um ordenamento da comunidade, surgido certamente na Síria/Palestina (Egito?) no começo do século II, que em 5 partes (16 capítulos) ensina o comportamento da comunidade relativo à ética., a liturgia, as relações com os profetas itinerantes e cristãos andarilhos, a vida da comunidade e a escatologia. Dessa forma a obra é um testemunho importante, embora não completa e, de uma estrutura bem antiga da comunidade . Os capítulos 1-6 – contêm como a Carta de Barnabé 18-20 – uma doutrina dos dois caminhos. Podemos supor que ambas aproveitaram uma mesma fonte comum de cunho judaico. Diferentemente da Carta de Barnabé, porém, a Didaquê designa os dois caminhos como caminho da vida e da morte (na carta de Barnabé, Luz e trevas) e oferece uma versão mais rica e ordenada de modo mais coerente. Extraordinário para o nosso conhecimento dos ordenamentos litúrgicos no começo do século II é o fato de os mistérios carismáticos (apóstolos, profetas, mestres) ainda ocuparem lugar de tanto realce ao lado dos inícios dos ministérios ordenados do bispo e do diácono, escolhidos pela comunidade. O verdadeiro apóstolo é o profeta itinerante, que deve permanecer numa comunidade apenas um dia e em casos excepcionais dois dias e tem direito ao sustento devido. A eucaristia, ao que parece, é celebrada em público como refeição plena com preces de benção e ação de graças , mas sem citar as palavras da instituição. IV – Didascália A didascália tem como título completo Didascália católica dos doze Apóstolos do Redentor, e é denominada por Epifânio Diatácseis tom apostólon. O autor é um bispo de notais conhecimentos médicos, com muita probabilidade escreveu sua obra talvez já nos primeiros decênios do século III, na Síria setentrional para uso de uma comunidade étnico-cristã. Impugna acerbamente aqueles cristãos que continuavam a considerar as leis cerimoniais judaicas obrigatórias. Em contraste com seus contemporâneos ocidentais (Tertuliano, Hipólito, Cipriano), mostra-se mais indulgente com os pecadores. Todos os pecados, mesmo o de adultério e de apostasia, com exceção do pecado contra o Espírito Santo, podem ser perdoados, supondo-se um período relativamente longo de penitência, depois da excomunhão. Todavia, antes de decidir o bispo acerca da reconciliação, há de impor mais 2-7 semanas de jejum ao pecador, depois de ter provado seu zelo efetivo pele penitência. O efeito da reconciliação é tido por quase equivalente ao efeito do batismo. O autor da 8 Didascália utilizou, além das Escrituras canônicas, a Didaquê, o Evangelho de São Pedro, os Atos de São Paulo, as obras de Santo Inácio, Hermas e Irineu. Excetuados pequenos fragmentos, o texto grego original da Didascália desapareceu; conservaram-se, porém, uma completa tradução siríaca, e particularmente, outra latina (mais ou menos três oitavos). Contém ela um regulamento eclesiástico, referindo-se particularmente aos cônjuges, aos bispos e à administração temporal, ao estado das viúvas, bem como o batismo, as celebrações litúrgicas e à penitência; prescreve um jejum de seis dias, antes da Páscoa. O escrito designado, na tradição árabe e etíope, como Didascália, é um retoque das constituições apostólicas.