Controvérsias sobre a Natureza de Cristo
na Antiguidade cristã
Daniel Alonso de Araujo1
Resumo
Durante o século V, acesos debates agitaram as Igrejas do Oriente a respeito da natureza de
Cristo. As especulações teológicas procuravam responder a questão de como se realizava a união
entre o Logos divino e a natureza humana assumida na incarnação. Na tentativa de responder a
essa questão, duas tendências opostas se formaram nas duas grandes escolas teológicas de
Antioquia e Alexandria, a saber: o difisismo e o monofisismo, respectivamente. Todavia, esses
termos eram vagos, podendo compreender doutrinas condizentes ou não com a tradição cristã,
dependendo do conceito que se fazia do termo physis. No auge das discussões, realizaram-se dois
Concílios a fim de dirimir a questão: o de Éfeso, em 431, e o de Calcedônia, em 451. Embora
tivessem definido a doutrina ortodoxa, algumas regiões não aceitaram as decisões conciliares,
rompendo a comunhão eclesiástica, movidas sobretudo por questões culturais e políticas. Tendo
isso em vista, o presente estudo visa explanar sobre os conceitos-chave que levaram a estas
discussões dentro de seu contexto histórico, bem como suas causas e consequências. Para maior
clareza, serão brevemente expostos os precedentes imediatos: as controvérsias anti-arianas, o
apolinarismo e as escolas teológicas antioquena e alexandrina. Por fim, pretende-se demonstrar o
quanto tais querelas que levaram aos cismas eclesiásticos se fundamentaram num problema de
linguagem e de formulação, sem que a essência do dogma fosse alterada.
Introdução
Foi no século II que o cristianismo tomou contato com a filosofia helênica, quando alguns
convertidos de cultura grega passaram a encarar a sua nova fé com as perspectivas filosóficas. O
Evangelho de São João, bem como as cartas de São Paulo, continham muito material que propunha
um verdadeiro diálogo da fé com a filosofia. Desse modo, os filósofos cristãos passaram a usar a
linguagem filosófica para explanar e refletir o cristianismo, dando sem dúvida um sentido novo a
muitos conceitos e expressões. Um dos intuitos era tornar a doutrina cristã palatável aos pensadores
“pagãos”.
Na tentativa de harmonizar os dados da revelação com os da razão, produziu acirradas
controvérsias referentes aos princípios fundamentais da fé cristã: a unicidade da natureza divina na
1 O autor é formado em Letras Clássicas na área de Língua e Literatura Latina pela Universidade de São Paulo. Sua
linha de pesquisa é Filosofia, História e Literatura Patrística e Medieval, abrangendo a Europa latina, as civilizações
bizantina e islâmica e a cultura judaica. É membro do Grupo de Tradução e Pesquisa/CNPQ “Filosofia Árabe e
História do Pensamento”, liderado pelo Prof. Dr. Miguel Attie Filho, da Área de Língua e Literatura Árabe (USP),
no qual desenvolve uma pesquisa referente à versão latina da Metafísica de Avicena, filósofo muçulmano do século
X. É colaborador da Área de Língua e Literatura Armênia da mesma Universidade.
trindade de pessoas e a incarnação do Logos divino ou na divindade de Cristo. A ideia central estava
em conservar a unicidade da natureza divina tão solenemente proclamado pelo Antigo Testamento e
repetido como uma “profissão de fé” pelos judeus: “Escuta, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o
Senhor é Único”2. Seria o Filho e o Espírito Santo uma mera manifestação do único Deus na relação
com o mundo (modalismo), seria Jesus um simples homem, adotado por Deus e divinizado
(adopcionismo)? Estaria o Filho e o Espirito Santo subordinados ao Pai como deuses inferiores
(subordinacionismo) ou eram meras criaturas do Pai (arianismo)? Estas e outras questões agitaram
os cristãos dos primeiros séculos. A mais forte corrente foi o arianismo, no século IV, que ensinava
que o Logos fora criado pelo Pai e usado como instrumento para a criação do mundo.
No presente estudo, abordaremos as controvérsias cristológicas do século V, que tratam de
como se realizou a união do Logos divino com a natureza humana assumida na incarnação e,
portanto, a questão sobre qual é a verdadeira natureza de Cristo, e suas consequências históricas.
Observamos que adotamos o termo Logos ao invés de “Verbo”, por nos parecer mais
expressivo o termo no original grego que significa “discurso”, “razão”, “pensamento”, quanto que
“Verbo” não tem essa carga significativa, não sendo outra coisa que um nome próprio da segunda
Pessoa divina, perdendo sua carga semântica e teológica original. Nos textos citados respeitamos os
tradutores conservando o termo “Verbo”.
I. Os Precedentes: As controvérsias anti-arianas e o apolinarismo
As controvérsias anti-arianas foram as principais causas dos debates referentes à natureza de
Cristo. Por isso, convém repassar rapidamente pelos dois fatos que precederam esses debates,
criando a condição propícia para que surgissem, a saber: a realização do Concílio de Niceia, a
doutrina de Santo Atanásio e as teses apolinaristas.
I.1. Santo Atanásio e o Concílio de Niceia
O primeiro Concílio ecumênico de Niceia (325) havia definido solenemente a divindade do
Logos e, por conseguinte, a natureza divina de Cristo, condenando as teses arianas que considerava
o Logos apenas uma criatura do Pai, embora fosse a primeira e a mais excelente, mediante a qual
criou o mundo: “Deus nem sempre foi Pai; houve um tempo em que era somente Deus [...] o Verbo
de Deus foi feito a partir do nada; houve um tempo em que ele não existia”3. O Concílio refutou
essas teses afirmando ser Cristo “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado, não criado, consubstancial ao Pai”4.
2 Cf. Dt 6, 5.
3 Fragmenta ex Thalia, in Enchiridion Patristicum, nº 648ss, citado em: BETTENCOURT, E., Curso de
Cristologia. Rio de Janeiro, p. 77.
4 Cf. DS 150.
O arianismo foi uma das maiores crises, senão a maior, enfrentada pelo cristianismo na
Antiguidade. Mesmo condenado, não se diluiu facilmente, tornando-se também uma forte facção
política no interior do Império5. Quase todos os Padres da Igreja desse período o combateram
violentamente, entre outros, Santo Atanásio, Santo Hilário, São Jerônimo e Santo Ambrósio.
Atanásio, bispo de Alexandria, foi praticamente a alma do Concílio de Niceia. Chamado o
“Campeão da ortodoxia nicena”, refutou vivamente o arianismo em seus vários escritos, enfatizando
sempre a divindade do Logos e sua incarnação pela assunção de um corpo:
Assumiu, no entanto, um corpo como o nosso e não o fez simplesmente, mas o quis nascido de
uma virgem sem pecado, imaculada, intacta. Era puro o corpo, inteiramente alheio a qualquer
união humana. Sendo poderoso e criador do universo, edificou para si, na Virgem, qual um
templo, um corpo. Dele se apropriou, fê-lo um instrumento para se dar a conhecer e onde habitar.
E assim, de algo que é nosso, tomou um corpo semelhante ao nosso, e como estamos todos
sujeitos à corrupção da morte, Ele o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai 6.
Querendo responder aos gnósticos, a quem o corpo de Cristo era aparente 7, Atanásio
enfatizou o corpo a fim de evidenciar a realidade da incarnação; insistiu no corpo como instrumento
do Logos, uma peculiaridade de seu pensamento, que na tradição patrística mais antiga só se
encontra em Tertuliano, e que se tornará característica da escola alexandrina, como veremos
adiante. Contudo, seu silêncio à respeito da alma de Cristo, embora não a negasse, teve
consequências nas discussões cristológicas posteriores.
I.2. O Apolinarismo
Os grandes debates cristológicos referentes à natureza de Cristo, que agitaram as Igrejas do
Oriente no decorrer de todo o século V, tiveram, como precedentes, as controvérsias anti-arianas
que ainda estavam bem acesas mesmo após o arianismo ter sido condenado pelo Concílio de Niceia,
em 325. O ponto de partida foi dado por Apolinário quando este reagiu contra polemistas antiarianos antioquenos que realçavam excessivamente a distinção entre as duas naturezas de Cristo.
Apolinário era amigo de Atanásio e fora eleito bispo de Laodiceia (361), na Síria, sua cidade
5 A corrente do arianismo foi um dos muitos elementos de romanização e cristianização dos povos germânicos, em
que o cristianismo já se fazia presente desde muito cedo, como por exemplo, entre os godos. O curioso Wulfila,
cristão grego de cultura goda, tendo sido sagrado bispo por Eusébio de Nicomédia, de tendência ariana, acabou por
aderir ao arianismo e levou a cabo uma grande atividade missionária entre os godos, constituindo até mesmo uma
Igreja gótica ariana, com uma liturgia própria, que mais tarde seria introduzida na Hispânia por ocasião da conquista
visigótica, levando a um forte antagonismo entre a Igreja gótica ariana e a Igreja católica romano-hispânica. Outros
povos, como os burgúndios, os ostrogodos e os longobardos, eram de fé ariana, provocando fortes dissenções com a
população dominada romano-católica. Curiosamente foram bárbaros pagãos, como os francos sálios, mais tarde
convertidos ao catolicismo, em que os galo-romanos, de fé católica, se apoiaram contra as investidas gótico-arianas.
6 ATANÁSIO, S., A Incarnação da Verbo, II, 8, 3-4.
7 Desde os seus primórdios, a Igreja teve de enfrentar a heresia docetista (do grego dókesis, “aparência”), à qual já se
refere escritos do Novo Testamento, que atribuía a Cristo um corpo apenas aparente, negando assim a realidade da
incarnação e consequentemente a redenção.
natal, pela facção nicena. Era exegeta de Sagrada Escritura e seguia a escola antioquena. Ele
sustentava que havia em Cristo uma única physis, isto é, “natureza”, entendida concretamente como
princípio operativo, fonte de ação. Segundo ele, Cristo não poderia ter duas naturezas completas,
pois, a união entre dois perfeitos não pode redundar em verdadeira união, mas apenas numa
justaposição. Levantava-se, então, a seguinte questão: Que tipo de homem é Jesus Cristo, visto ser
ele o Logos incarnado? Apolinário procurava responder da seguinte maneira:
Não confessamos que o Verbo de Deus veio num homem santo, como acontecia com os profetas,
mas que o próprio Verbo se fez carne sem assumir um intelecto humano, um intelecto mutável e
prisioneiro de raciocínios sórdidos, sendo Ele próprio o intelecto divino, imutável e celeste.
O Filho, que é uno, não é duas naturezas, uma adorável e outra não adorável, mas uma só
natureza, a do Verbo de Deus incarnado 8 e adorado, juntamente com a carne dele, numa única
adoração9.
Apolinário radicalizara a doutrina de Atanásio ao afirmar que o Logos assumira uma
natureza incompleta, privada de nous, isto é, do principio de racionalidade ou, em outras palavras,
de uma alma intelectiva ou espiritual. O próprio Logos fazia às vezes de alma racional em Jesus.
Para ele, se Cristo tivesse uma natureza humana completa, não seria impecável, pois, tendo o livre
arbítrio, que é princípio de pecado, não estaria capacitado para realizar nossa redenção. A partir
disso, Apolinário cunhou a fórmula que se tornou a base das disputas que se seguiram: Mía phýsis
tou Theou Lógou sesarkooménee, “uma só natureza do Logos divino incarnado”.
A tese apolinarista provocou oposição de várias partes. O princípio invocado por São
Gregório Nazianzeno converteu-se na divisa da ortodoxia: “O que não foi assumido, não foi
remido”10, isto é, se o Logos não assumiu integralmente a natureza humana, esta não foi
integralmente salva. Atanásio, em diversas obras suas, respondeu a Apolinário segundo os mesmos
princípios:
O próprio Verbo se fez carne, embora continuasse a existir na condição de Deus. Em favor dos
homens, Ele se fez homem segundo a carne em Maria [...] Este Salvador não teve um corpo
inanimado ou carente de sentidos, nem um corpo privado de alma. Não era possível que existisse,
no Senhor feito homem por causa de nós, um corpo sem alma, pois por Ele foi realizada a
salvação não só do corpo, mas também da alma […] Nem devemos distinguir aquele que
ressuscitou Lázaro, e aquele que perguntou a respeito de Lázaro, pois era o mesmo aquele que
disse como homem: “Onde está sepultado Lázaro?” e aquele que, como Deus, o ressuscitou 11.
8
9
10
11
O grifo é nosso. Essa frase será a base para as disputas cristológicas que se seguiram.
Citado em: BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 79.
Cf. Epístola 101,87.
ATANÁSIO, S., Tomo aos Antioquenos, 7.
O apolinarismo foi condenado pelo Sínodo de Alexandria, em 362, como também pelo Papa
Dâmaso I, em 377 e 382, e, em 381, a condenação foi confirmada pelo Concílio ecumênico de
Constantinopla I. Todavia, embora enfraquecido o apolinarismo, a fórmula “uma só natureza do
Logos divino incarnado” foi divulgada pelos discípulos de Apolinário como sendo de autoria de
Santo Atanásio. Isso rebentaria mais tarde na crise monofisita.
II. As Escolas teológicas: Alexandria e Antioquia
Não é unívoco o entendimento do conceito de “escola” quando nos referimos às duas linhas
teológicas que se desenvolveram nos dois grandes centros eclesiásticos do Oriente cristão,
Alexandria e Antioquia. Enquanto que, na primeira, se refere à uma instituição acadêmica sob a
autoridade episcopal, a segunda é, antes de tudo, uma corrente de pensamento que se constitui em
torno de algumas personalidades de relevo, geralmente bispos e monges, não necessariamente
ligados juridicamente à Sé antioquena, mas sob sua zona de influência espiritual, ou seja, as Igrejas
de cultura sírio-helênicas.
Cada uma das duas escolas desenvolveu sua própria cristologia partindo de premissas
relativamente opostas entre si, provocando um certo antagonismo ideológico, que foi a causa das
inflamadas discussões em torno da natureza de Cristo no decorrer do século V. Contudo, a oposição
das duas linhas cristológicas era somente aparente e, portanto, não se excluíam mutuamente, sendo
complementares, porquanto cada qual especulava uma face da questão, ao mesmo tempo que se
utilizavam de métodos distintos. Ao serem radicalizadas, ambas as escolas deram origem a
doutrinas heterodoxas diametralmente opostas.
A fim de deixar mais claro a compreensão dessas querelas teológicas em suas causas e
circunstâncias, faremos uma breve exposição histórica e de conteúdo das referidas escolas,
procurando estruturar seus conceitos e indicar seus métodos e pressuposições e, em seguida,
sintetizar tudo num quadro sinótico com o intuito de facilitar o entendimento de modo ilustrativo.
II.1. Escola de Alexandria
Fundada por Alexandre Magno em 331 a.C., a cidade de Alexandria (Egito) se constituiu no
centro de uma brilhante vida intelectual onde se fundiram as culturas oriental (persa), egípcia e
grega. Lá, a cultura judaica sofreu forte influencia helenística cuja síntese filosófica foi feita por
Fílon, filósofo judeu de Alexandria a quem se reconhece como um dos fundadores do
neoplatonismo.
Sabe-se que o cristianismo se estabeleceu nesta cidade em fins do século I. Atribui-se a
fundação da Igreja alexandrina a São Marcos evangelista, discípulo do apóstolo Pedro e por este
enviado de Roma, o que parece plausível embora pouco documentado 12. O cristianismo aí se
desenvolveu a partir das sinagogas helenistas da grande cidade13, mas foi bem lento, pois, ainda no
século III, parece que a comunidade cristã pouco contava em Alexandria.
Como cidade cosmopolita, uma diversidade de crenças de caráter esotérico e pseudofilosófico pululavam em toda parte. Com o fim de desenvolver uma formação cristã mais sólida, por
volta do século III, foi fundada uma escola catequética sob a autoridade do bispo da Igreja local,
voltada sobretudo aos catecúmenos, isto é, aos que estavam se preparando para receber o batismo.
O mais antigo diretor da escola foi Panteno, tido, por alguns, como o fundador. Contudo, foram
Clemente e Orígenes aqueles que configuraram o método e a linha de pensamento da escola. “O
meio ambiente em que se desenvolveu lhe imprimiu seus traços característicos: marcado interesse
pela investigação metafísica do conteúdo da fé, preferência pela filosofia de Platão e a interpretação
alegórica das Sagradas Escrituras”14.
Os alexandrinos davam preferência à cristologia descendente que, inspirada no Evangelho
de São João, partia da preexistência divina do Logos e da sua incarnação, colocando a natureza
humana (de Cristo) como instrumento da divindade. Sendo assim, a redenção constitui na
divinização do cristão que participa da graça divinizante de Cristo e toda a vida de Cristo é uma
constante santificação da natureza humana.
É nesse contexto que surge na Igreja de Alexandria, já no terceiro século, a festa da
Teofania, isto é, da manifestação divina de Cristo no momento do Batismo por João, manifestação
aos magos e aos pastores, manifestação no primeiro milagre de Caná (a transformação da água em
vinho), fixada a 6 de Janeiro15.
II.2. Escola de Antioquia
Fundada por Seleuco I Nicator, filho de Antíoco, em 300 a.C., a cidade de Antioquia (Síria),
antiga capital da dinastia selêucida, era um grande centro cosmopolita de cultura helênica onde a
12 Antigas tradições que remontam ao século II, e portanto bem próximas dos eventos, supõe a ida de São Marcos a
Alexandria após o martírio de São Pedro no ano 64, ou um pouco antes, por ocasião das perseguições contra os
cristãos movidas por Nero. Marcos teria levado consigo o Evangelho que compôs a partir da pregação do apóstolo
Pedro, por volta do ano 42, ligando as duas Igrejas, Roma e Alexandria, à herança apostólica petrina. Recentes
descobertas arqueológicas tendem a confirmar os antigos relatos.
13 De fato, com a expansão cristã nessa cidade, houve cada vez menos judeus até que, poucos séculos depois, já
haviam desaparecido totalmente.
14 QUASTEN, J. Patrologia I, Madrid, p. 317.
15 Disseminada pouco a pouco em todas as Igrejas orientais e chegada a Roma somente no quarto século quando lá se
estabelecia a festa da Natividade de Cristo (Natal), a 25 de Dezembro, em que se comemorava o nascimento físico
do Salvador, celebrado como a verdadeira “luz do mundo” em franca oposição ao culto pagão do Sol invictus. No
quinto século, a festa do Natal foi formalmente introduzida na liturgia bizantina. Enquanto a Igreja romana
celebrava no Natal o nascimento físico e na Teofania ou Epifania a manifestação aos magos, a Igreja grega
celebrava no Natal a manifestação aos magos e na Teofania, o Batismo de Cristo. A festa do Batismo só seria
introduzida no rito romano no século XX, após a reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II, no domingo
que se segue à Epifania. No caso da Igreja armênia, não foi adotada a festa do Natal, conservando somente a
Teofania a 6 de Janeiro, em que se comemora numa única festividade todo o mistério da incarnação e manifestação
divina de Cristo.
população falava predominantemente o grego e o siríaco. Era uma das cidades mais populosas do
Oriente. Antioquia era chamada também Epidafne, por causa do bosque de Dafne que se encontrava
nos arredores e que constituía um dos principais centros religiosos helenísticos (pagãos).
O cristianismo chegou lá muito cedo, formando-se a partir de judeu-cristãos helenistas
provindos de Jerusalém16. No Livro dos Atos dos Apóstolos, relata-se a conversão de um centurião
romano e sua família pelo Apóstolo Pedro17, os primeiros não judeus convertidos à fé cristã. Foi
nesta cidade que pela primeira vez se usou a alcunha de “cristãos” 18, não se sabe ao certo como e
porque. A primitiva comunidade cristã de Antioquia era mista: conviviam pacificamente fieis
provindos tanto do judaísmo19 como dentre os gregos20 e cujas práticas judaicas foram praticamente
abolidas, provocando um certo desentendimento com a comunidade judaico-cristã de Jerusalém21.
O apóstolo Pedro se fixara em Antioquia por um certo tempo, estabelecendo lá sua sede
antes de se transferir para Roma e o apóstolo Paulo permaneceu um ano lá pregando antes de ser
enviado para suas viagens missionárias. Tudo isso contribuiu para fazer de Antioquia um dos
centros do cristianismo ao lado de Roma e Alexandria, ou seja, o princípio apostólico e petrino.
A escola de Antioquia foi fundada por Luciano de Samósata, em 312, em direta oposição aos
excessos e fantasias do método alegórico de Orígenes e dos alexandrinos. Esta escola centrava
cuidadosamente a atenção no próprio texto e encaminhava seus discípulos para uma interpretação
literal e o estudo histórico e gramatical da Escritura. Utilizava-se dos métodos da filosofia
aristotélica, mais realista e empírica. A escola antioquena atingiu o seu apogeu com Diodoro de
Tarso em fins do século IV. São João Crisóstomo foi seu discípulo mais ilustre e Teodoro de
Mopsuéstia, o mais extremista. A tendência racionalista da escola antioquena foi causa do
surgimento de muitas heresias, por exemplo, Luciano, o fundador, foi o mestre de Ário.
A cristologia antioquena era a ascendente, partia da humanidade de Cristo sob a qual se
velava sua divindade cuja manifestação paulatina se culmina na ressurreição, inspirando-se, desse
modo, na cristologia paulina da redenção. Esta se dá sobretudo pela morte de Cristo, como
sacrifício expiatório, e sua ressurreição pela qual venceu o poder da morte e do pecado. A Escola
antioquena fazia nítida distinção entre a humanidade e a divindade de Cristo.
II.3. Duas fontes do pensamento cristão
Por métodos diferentes, as duas escolas teológicas contribuíram para a formação do
16
17
18
19
20
21
Cf At 11,19-20.
Cf. At 10, 1-48.
Cf. At. 11, 26.
No sentido de povo judeu, nação judaica.
No sentido amplo de não judeus, “pagãos”.
Os cristãos de Jerusalém eram predominantemente de origem judaica e exigiam que todos os convertidos aceitassem
a circuncisão e as práticas judaicas. Isso levou a uma certa desconfiança para com a comunidade antioquena que
cada vez mais abandonava todas as práticas judaicas e aceitava numerosos gregos, “pagãos”, ao batismo.
pensamento teológico e filosófico do cristianismo antigo, pois, nem todas as suas teses eram tão
antitéticas que não poderiam se complementar e moderar os excessos que uma ou outra parte
poderiam tomar. Enquanto que a corrente alexandrina tendia ao misticismo, a antioquena se
encaminhava ao racionalismo, ambas as tendências igualmente perigosas se radicalizadas e ambas
foram berços das correntes heterodoxas que se digladiavam em torno da questão da natureza de
Cristo e que mais tarde foram agrupadas sob os termos monofisismo e difisismo.
Convém lembrar que essas duas correntes de pensamento não estavam restritas aos
complexos geográficos que lhe deram origem: o Egito e a Síria, respectivamente. Orígenes, o
grande mestre alexandrino, fundou mais tarde uma escola em Cesareia da Capadócia que também se
tornou centro de irradiação do pensamento alexandrino. Os pensadores mais importantes que lá se
formaram, foram: São Basílio, São Gregório Nazianzeno e São Gregório de Nissa, os chamados
Padres capadócios, que juntamente com São João Crisóstomo, de tradição antioquena,
fundamentaram a tradição teológica da Igreja bizantina, sintetizada no século VIII por São João
Damasceno, em pleno domínio islâmico.
Quanto ao pensamento estritamente antioqueno, teve seu desenvolvimento sobretudo entre
os cristãos sírio-orientais da Pérsia por influência da corrente nestoriana, embora não tivessem
adotado exatamente as teses heterodoxas de Nestório. Todavia, a sua preferência pelo cultivo da
filosofia aristotélica e de uma teologia racionalizante esteve na base da formação do mutazilismo 22 e
na origem da recepção das obras filosófico-aristotélica pelos árabes.
Podemos sintetizar o que até aqui foi dito sobre as duas escolas teológicas, alexandrina e
antioquena, no seguinte quadro sinótico:
Escolas Teológicas
Alexandrinos
Antioquenos
Linha exegética
Alegórica
Literal
Método filosófico
Platônico
Aristotélico
Cristologia
Descendente (joaneia)
Ascendente (paulina)
III. Monofisismo x Difisismo
Sob esses dois termos um tanto genéricos, monofisismo e difisismo, colocam-se várias teses,
umas compatíveis, outras não, com a ortodoxia cristã, dependendo de como se entende o termo
grego physis e, consequentemente, como se aplica em relação à pessoa de Cristo. Não sendo o caso
de aprofundar a significação de physis na filosofia helênica, basta para nós, de momento, entendê-la
por “natureza”, enquanto expressão da essência ou condição própria de um ser.
22 Corrente teológica racionalista do Islam que berçou a formação da falsafa, a filosofia entre os árabes.
A questão medular que provocou as grandes discussões cristológicas estava no conceito que
os teólogos heleno-cristãos faziam de physis ou “natureza” humana. Havia duas tendências, não
necessariamente ligadas a uma ou outra escola, que se defrontavam:
a) physis é a natureza em sentido concreto como princípio operativo ou fonte de ação; a
natureza humana consiste num corpo orgânico animado cujo principio vital (psyché, alma) é
idêntico a um nous (intelecto, espírito, mente);
b) physis é a natureza no sentido individual concretamente subsistente num sujeito agente,
num “eu”; acrescenta à definição anterior a noção de subjetividade e nesse sentido physis equivale a
hypostasis (subsistência, subsistente, pessoa).
A partir disso, levantava-se a seguinte questão: a união do Logos divino com a natureza
humana assumida na incarnação resultou em Cristo duas physis (difisismo) ou uma physis
(monofisismo)? A resposta dependia do conceito que se fazia de physis e que podemos reduzir a
quatro teses: duas monofisitas e duas difisistas, em que cada uma apresentava uma tese ortodoxa e
outra heterodoxa e, portanto, havia duas teses ortodoxas e duas heterodoxas. Abaixo serão expostas
as teses em questão.
III.1. O Monofisismo
O termo monofisismo23 foi cunhado muito tardiamente para designar a doutrina da única
natureza de Cristo. Todavia, isso se presta a equívocos, pois, sendo um termo genérico, abarca pelo
menos três teses distintas e, até certo ponto, contrárias: o apolinarismo, o miafisismo e o
eutiquianismo. Pode-se, no entanto, afirmar que o monofisismo não é tanto uma doutrina, mas uma
tendência ligada à escola alexandrina que colocava em evidência a divindade de Cristo em relação à
sua humanidade, vista como instrumento passivo do Logos24.
O ponto de partida das teses monofisitas estava na polivalente fórmula de Apolinário, que
seus discípulos atribuíram a Santo Atanásio: Mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee, “uma
só natureza do Logos divino incarnado”. Como já vimos, Apolinário negava que Cristo possuía uma
alma racional, função assumida pelo Logos, e, portanto, tinha uma natureza humana incompleta.
Quanto ao miafisismo e ao eutiquianismo, estas teses surgiram como réplica às tendências
extremadas dos antioquenos que se ocupavam de tal modo em distinguir a divindade da humanidade
de Cristo, colocando em risco a noção da unidade de pessoa.
III.1.1. São Cirilo de Alexandria e o miafisismo
Cirilo, arcebispo de Alexandria, aceitando a fórmula apolinarista como sendo de Santo
23 Monofisismo, do grego monos, “um só”, e physis, “natureza”.
24 Lembremos que Santo Atanásio considerava o corpo de Cristo como instrumento do Logos.
Atanásio, quis dar-lhe uma interpretação ortodoxa por ocasião da controvérsia nestoriana. Esta
defendia a tese de que, em Cristo, havia duas pessoas distintas, uma divina e outra humana. Cirilo,
entendendo physis como equivalente a hypostasis (pessoa), afirmava que as duas naturezas (physis),
antes da união, resultou da união de ambas em uma só natureza (mia physis) subsistente, uma
hypostasis, o Logos, em que todas as características da divindade e da humanidade se unem
substancialmente num único sujeito, Cristo, Deus e homem.
A fórmula cirílica foi adotada pelo Concílio de Éfeso como doutrina ortodoxa mediante a
qual o nestorianismo foi condenado como heresia. Posteriormente, a doutrina cirílico-efesita foi
denominada miafisismo, aludindo às primeiras palavras gregas da fórmula apolinarista: mía phýsis
tou Theou Lógou sesarkooménee. A seguir, um importante trecho da carta de São Cirilo aprovada
pelo Concílio como expressão da reta fé:
Não afirmamos que a natureza [physis] do Verbo se tenha transformado para tornar-se carne.
Também não afirmamos que a natureza do Verbo se tenha transformado para tornar-se um
homem completo, constituído de corpo e alma. Mas professamos que o Verbo uniu a si
hipostaticamente25 [kath'hypostasin] uma carne animada por uma alma racional e se fez homem
de modo inexplicável e incompreensível, e assim assumiu o título de Filho do Homem não por
simples vontade ou benevolência, nem simplesmente porque assumiu uma pessoa.
Afirmamos, além disso, que, embora as duas naturezas sejam diferentes uma da outra, elas se
uniram em verdadeira união, de tal modo que de ambas resulta um só Cristo e Filho. Isto não
quer dizer que desapareceu a diferença das naturezas por causa da união, mas, sim, que a
Divindade e a humanidade, por um misterioso concurso em prol da unidade, constituem um só
Senhor e Cristo […]
Não se diga que num primeiro momento nasceu da Santa Virgem um homem, no qual, num
segundo momento, desceu o Verbo26. Mas, sim, afirmamos que desde o seio materno o Verbo se
uniu à carne humana numa concepção carnal, de tal maneira que tornou sua a geração carnal […]
E assim os Santos Padres não hesitaram em chamar Theotókos27 a Santa Virgem. Isto não
significa que a natureza do Verbo ou a sua Divindade tenha tido origem no seio da Santa Virgem,
mas, sim, que foi gerado por ela o corpo santo, animado e racional, ao qual se uniu
hipostaticamente28 [kath'hypostasin] o Verbo; em consequência, este foi gerado segundo a
carne29.
III.1.2. O Eutiquianismo ou monofisismo estrito
25 Isto é, “no plano da pessoa”.
26 Refere-se ao ebionismo ou adopcionismo, doutrina herética do século II cuja tese era de que Jesus era um homem
comum e que por ocasião do batismo por João, fora revestido de uma energia divina tornando-se Cristo e sendo
adotado por Deus como Filho.
27 Literalmente: “Aquela que dá à luz Deus”.
28 Isto é, “segundo a pessoa”.
29 DS 250-251.
Em meio aos debates anti-nestorianos, Eutíquio, arquimandrita30 de um mosteiro de
Constantinopla, um monge piedoso, mas pouco versado em teologia, no intuito de seguir São Cirilo,
afirmava que a partir da incarnação do Logos só ficava uma natureza em Cristo, a divina. Segundo
ele, Cristo não era consubstancial com os homens, isto é, não compartilhava da mesma substância
ou natureza com eles, das duas naturezas antes da união, resultava uma natureza após a união, pois a
divina teria absorvido a humana. Por conseguinte, o corpo de Cristo já não seria igual ou
consubstancial ao nosso, pois teria sido divinizado. Para ilustrar essa tese, usava-se da seguinte
imagem: assim como uma gota de mel lançada na imensidão do oceano aí se dissolve totalmente, da
mesma forma a humanidade de Cristo se dissolveu na divindade do Logos, que a assumiu31.
O pensamento de Eutíquio era mais confuso do que errôneo. Faltava-lhe clareza em certos
conceitos, no entanto, sua tese foi condenada por ter negado a realidade humana de Cristo. Mesmo
assim, o eutiquianismo propagou-se rapidamente, especialmente entre os monges e os cristãos mais
simples, pois, tendo Cristo por modelo, propunha-se a divinização de todos os cristãos fieis e,
portanto, uma doutrina mística neoplatonizante.
Por afirmar a única physis (divina) após a incarnação, sem nenhuma noção de dualidade
divino-humana, ao eutiquianismo convém propriamente o termo de monofisismo. Essa corrente
heterodoxa deu origem a numerosas seitas populares, muitas das quais com doutrinas um tanto
extravagantes, que se multiplicaram nas regiões desérticas da Síria e do Egito, e que certamente
estiveram na origem do sufismo32.
III.1.3. Um quadro sinótico dos monofisismos
No intuito de salvaguardar a unidade de Cristo após a incarnação do Logos, os teólogos
alexandrinos, em polêmica com os antioquenos, desenvolveram teses que foram agrupadas sob o
termo monofisismo. O problema central estava na interpretação da obscura fórmula apolinarista:
Mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee, “uma só natureza do Logos divino incarnado”,
atribuída falsamente a Santo Atanásio, dando a ela, desse modo, uma autoridade indiscutível. Sendo
assim, tal fórmula deveria ser interpretada de modo coerente com a fé cristã que, ao mesmo tempo,
se distanciasse do apolinarismo. Daí, duas teses foram formuladas, uma de caráter erudito,
ortodoxa, e outra de caráter popular, confusa e herética: o miafisismo e o eutiquianismo
respectivamente.
O miafisismo, nome dado à fórmula de São Cirilo, é uma doutrina monofisita somente na
aparência. A doutrina confirmada pelo Concílio de Éfeso, se bem observada no trecho de carta de
30 Arquimandrita, do grego archós, “superior”, mandra, “monastério”, o mesmo que abade nas Igrejas gregas.
31 Cf. BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 85.
32 Sufi, corrente mística islâmica. Vale lembrar que a modalidade de cristianismo conhecida por Maomé e pelos
primeiros muçulmanos foram certamente os monofisitas e nestorianos.
São Cirilo acima exposta, afirma a dualidade divino-humana de Cristo: “Isto não quer dizer que
desapareceu a diferença das naturezas por causa da união, mas, sim, que a Divindade e a
humanidade, por um misterioso concurso em prol da unidade, constituem um só Senhor e Cristo”. A
fórmula apolinarista pseudo-atanasiana, porém, era um obstáculo à afirmação da união de duas
physis em Cristo numa única hypostasis. E, por outro lado, uma afirmação difisista pareceria
incorrer no erro dos antioquenos que afirmavam as duas physis ou pessoas em Cristo. Era
necessário uma maturação das ideias, algo sempre muito arriscado.
Para maior clareza, colocamos no quadro sinótico abaixo, uma síntese das três teses
monofisitas:
apolinarismo
heterodoxo
Monofisismo
(alexandrinos)
ortodoxo
Cristo não possui uma natureza humana completa, uma
alma racional, função assumida pelo Logos.
eutiquianismo A natureza humana de Cristo foi absorvida pela divina na
incarnação, restando apenas uma natureza, a divina.
miafisismo
A divindade e a humanidade realizam uma perfeita união
hipostática, isto é, substancial, na única pessoa do Logos
divino incarnado.
III.2. O Difisismo
O termo difisismo, diofisismo ou diafisismo designa a doutrina da escola antioquena das
duas “naturezas” de Cristo. Possui suas raízes nos primeiros escritos cristãos que distinguem, em
Cristo, um elemento divino (pneuma-logos), e um elemento humano (sarx)33. Com as disputas
contra o paganismo e as heresias dos séculos II e III, reforçou-se a ideia de uma dualidade em
Cristo: Melitão de Sardes falava de duas ousiai, isto é, duas “essências” ou “substâncias”; Origines,
de duas physis ou “atributos” e Tertuliano, de duas substantiae, “substâncias” ou “naturezas”.
A controvérsia anti-ariana contribuiu para o desenvolvimento da concepção de geração
divina distinta da humana, induzindo à elaboração mais acurada dos conceitos das duas naturezas e
das duas consubstancialidades. Levantava-se então o problema de como se realizam a união das
duas naturezas num único Cristo. A escola antioquena procurava ressaltar a natureza humana
distinguindo-a da divina em franca oposição às teses alexandrinas, quer contra o apolinarismo, quer
contra Cirilo de Alexandria.
A tese difisista tem como principais mentores Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuéstia,
discípulo do anterior. Teodoro entendia por physis uma natureza completa subsistente num sujeito
agente. Portanto, reconhecia, em Cristo, duas naturezas distintas e dois sujeitos. Preocupado,
todavia, com o divisionismo que a doutrina poderia redundar e que era criticada pelos apolinaristas,
negava a afirmação de haver dois Senhores e dois Filhos. Ensinava que as duas naturezas estão
33 Termos gregos: pneuma, “espírito”; logos, “razão”, “intelecto”, “pensamento”; sarx, “corpo”.
unidas de modo inefável e eternamente indissolúvel num único prosopon34, que a união não destrói
a distinção das physis, nem a distinção não impede que as duas physis sejam um Cristo.
Na verdade, porém, existem duas teses difisistas distintas: o nestorianismo e a doutrina do
Concílio de Calcedônia, fundada na definição do Papa Leão I, o Grande. A primeira, heterodoxa, é
uma radicalização das teses de Teodoro de Mopsuéstia; a segunda, ortodoxa, assemelha-se à
doutrina cirílico-efesita, dita em termos antioquenos, e se aproxima da fórmula de união assinada
por São Cirilo e por João de Antioquia após o Concílio de Éfeso, que trataremos a seguir.
III.2.1. O Nestorianismo
Nestório, piedoso monge e sacerdote de Antioquia, era discípulo de Teodósio de Mopsuéstia.
Em 427, foi nomeado arcebispo de Constantinopla. Era conhecido por suas excelentes qualidades
de orador e pelos ataques violentos aos hereges. Levando as teses difisistas ao extremo, condenou a
devoção popular, muito difundida entre os monges e os fieis, a Maria “Mãe de Deus”, Theotókos,
pois a considerava apolinarista e não dava, segundo ele, o devido reconhecimento à natureza
humana de Cristo. Ensinava que Maria era Christotókos, “Mãe de Cristo”35, ou seja, Mãe de Jesus
em sua união com o Logos, mas proibia que se dissesse anthopotókos, mãe do homem Jesus, para
se evitar o perigo do adopcionismo. Eis um texto de Nestório:
Com frequência é suscitada entre nós uma dificuldade: “Deve-se falar da Theotókos, isto é, de
uma mulher que tenha gerado Deus, Maria, ou antes se deve falar de uma mulher que deu à luz
um homem, anthropotókos? Mas será que Deus tem mãe?” […] Uma criatura não pode dar à luz
o Criador, mas deu à luz um homem, instrumento da Divindade […] Mas mesmo assim, Jesus é
um Deus para mim, visto que encerra Deus. Adoro o vaso por causa do seu conteúdo, a
vestimenta por causa do que ela cobre36.
A sua preocupação, como bom antioqueno, é a de salvaguardar, contra apolinaristas e
arianos, a integridade da natureza humana de Cristo, entendida como completa personalidade, capaz
de livre iniciativa, enquanto os alexandrinos a reduziam a mero instrumento passivo do Logos. Por
isso, ele mantém cuidadosamente distintas as propriedades das duas naturezas e os nomes que a
estas se referem. Mas, não obstante a distinção, ele recusou a acusação de Cirilo de pregar dois
Cristos, reafirmando constantemente a indivisibilidade e a unidade de Cristo. Para indicar a união
das duas naturezas, ele fala também de “unidade inefável”, mas prefere synápheia, “cunjunção”,
para evitar que a união fosse considerada mistura. Ele adota a terminologia tradicional antioquena e
fala do homem assumido pelo Logos, de templo em que o Logos veio morar, isto é, uma
34 Prosopon, em grego: “aparência”, “aspecto externo”, “figura”, e por extensão, “pessoa”, mas em sentido não
equivalente a hypostasis.
35 Cf. nota 26. Tokein, “parir”, “dar a luz”.
36 Sermão 9. Citado em: BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 81.
terminologia que realçava a distinção entre o homem e Deus.
III.2.2. A Fórmula de União
A fórmula cirílica adotada pelo Concílio de Éfeso não agradara a muitos bispos antioquenos,
aos quais pareceram não fazer clara distinção entre a divindade e a humanidade de Cristo e
consideravam perigosa a fórmula Theotókos por parecer desviar-se do conceito de Deus imutável.
Por isso, em 433, estabeleceu-se um acordo entre João de Antioquia e o arcebispo de Alexandria,
Cirilo, que assinaram uma fórmula dita “de União”, provavelmente redigida por Teodoreto de Ciro.
Essa fórmula procura expressar a ortodoxia de Éfeso em termos antioquenos, afastando-se do
nestorianismo. Eis o seu trecho principal:
Confessamos que nosso Senhor Jesus Cristo, Filho Único de Deus, é Deus perfeito e homem
perfeito, [composto] de alma racional e corpo, gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a
Divindade, e nos últimos dias por nós e pela nossa salvação, nascido da Virgem Maria segundo a
natureza humana. Ele é consubstancial com o Pai por sua Divindade, e é consubstancial conosco
por sua humanidade. Já que havia a união das duas naturezas, confessamos um só Senhor, um só
Cristo e um só Filho. Visto que compreendemos esta união realizada sem confusão de uma parte
com a outra, confessamos que a Santa Virgem é Theotókos, pois o Verbo de Deus se incarnou e
se fez homem, e desde o momento de sua concepção, uniu a si o templo que dela assumiu.
Quanto às expressões dos Evangelhos e dos Apóstolos concernentes ao Senhor, sabemos que os
teólogos ora as usam no singular como referentes à única pessoa de Jesus, ora usam no plural
aludindo às duas naturezas; atribuem à Divindade de Cristo as que se aplicam à Deus, e a sua
humanidade as que exprimem humilhação37.
Esta fórmula, ao expressar a ortodoxia de Éfeso, serve-se de um vocabulário apto a não ferir
os adversários de Cirilo. Assim, por exemplo, não fala de uma união kath'hypostasin, “hipostática”,
mas professa a união, sem confusão, de duas naturezas. Não fala de uma natureza do Logos feito
carne, expressão de Apolinário que Cirilo julgava ser de Santo Atanásio. É perceptível a réplica a
Apolinário na afirmação “Deus perfeito e homem perfeito, [composto] de alma racional e corpo”. A
fórmula fala de duplo nascimento: um a partir do Pai, o outro a partir da Virgem Maria, mas
reconhece um só Senhor, Filho e Cristo. Faz uma alusão também ao Concílio de Niceia quando
menciona a consubstancialidade com o Pai e a consubstancialidade conosco.
III.2.3. São Leão Magno e o Concílio de Calcedônia
Em reação à controvérsia eutiquiana (monofisista), o Papa Leão I dirigiu uma “carta
dogmática” ao arcebispo Flaviano de Constantinopla, conhecida como Tomus ad Flavianum38, em
37 DS 271-273.
38 Epístola XXVIII do epistolário leonino.
que esclarecia a questão das naturezas de Cristo nos termos da teologia latina. Este documento
tornou-se referência à toda Igreja ocidental e base à definição promulgada pelo Concílio de
Calcedônia. Eis um importante trecho:
Salvaguardadas, pois, as propriedades de ambas as naturezas e substâncias, unidas numa só
Pessoa, foi assumida a humildade pela majestade, pela força a fraqueza, pela eternidade a
mortalidade. Para obter o débito de nossa condição, a natureza inviolável uniu-se à passível.
Assim, como remédio conveniente à nossa cura, um só e mesmo mediador entre Deus e o
homem, o homem Cristo Jesus, de um lado podia morrer, e doutro lado não o podia. Nasceu o
verdadeiro Deus com a íntegra e prefeita natureza de um verdadeiro homem, todo o que é seu,
todo inteiro o que é nosso. Por “nosso” entendemos aquilo que o Criador fez em nós no início e
que assumiu para ser reparado [...] O aniquilamento pelo qual o invisível se fez visível e o
Criador e Senhor de todas as coisas quis ser um dos mortais, era compassiva, condescendência
não deficiência de poder. Quem na natureza de Deus criou o homem, fez-se homem na condição
de servo. Cada uma das duas naturezas conservou, sem alteração suas propriedades. Como a
natureza de Deus não eliminou a natureza de servo, assim a natureza de servo não diminuiu a
natureza de Deus [...] Dignou-se o Deus impassível tornar-se homem passível, o imortal
submeter-se às leis da morte [...] Recebeu o Senhor de sua mãe a natureza, mas isenta de culpa. A
natureza humana de nosso Senhor Jesus Cristo, nascido do seio da virgem, não difere da nossa
por ter tido ele admirável natividade. Sendo verdadeiro Deus, é também verdadeiro homem.
Nesta unidade não há mentira, pois mutuamente se coadunam humildade humana e grandeza
divina. Como Deus não se altera por tal misericórdia, o homem não desaparece, absorvido pela
natureza divina39. Age cada uma das naturezas em consonância com a outra, quando a ação é
peculiar a uma delas. O Verbo opera o que lhe é próprio, e a carne executa o que lhe compete.
Uma resplandece pelos milagres, enquanto a outra é sujeita aos opróbrios. Como não se aparta o
Verbo da igualdade da glória paterna, a carne não perda a natureza do gênero humano. Um e o
mesmo, convém repeti-lo, é verdadeiramente Filho de Deus e verdadeiramente filho do homem 40.
São Leão Magno reafirma a consubstancialidade de Cristo com o Pai e a
consubstancialidade do mesmo com Maria, donde resultam duas naturezas completas não mutiladas
nem confundidas entre si. Cada uma dessas naturezas realizou, durante a vida terrestre de Jesus, o
que lhe era próprio. Portanto, uma doutrina difisista. Todavia, o sujeito responsável pelos atos de
uma ou outra natureza, era Deus Filho, o Logos divino. Desse modo, a doutrina do Papa Leão I se
afasta do nestorianismo ou das teses antioquenas extremadas, rejeita o apolinarismo e o
eutiquianismo.
O eutiquianismo foi condenado pelo Concílio de Calcedônia (451), durante o qual foi lida
solenemente o Tomus ad Flavianum, que juntamente com a Fórmula de União, foi base para a
39 Alusão à tese de Eutíquio. O grifo é nosso.
40 LEÃO MAGNO, S., Tomo (28) a Flaviano. In: Sermões, p. 265-267.
composição de uma nova fórmula de fé que, após hesitações e debates, foi aprovada e promulgada
pelo Concílio a 22 de outubro de 451. Eis a fórmula calcedonense:
Seguindo os Santos Padres, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, Senhor
nosso, o mesmo perfeito no tocante à Divindade, e perfeito no tocante à humanidade: Deus
verdadeiro e homem verdadeiro em corpo e alma, consubstancial ao Pai quanto à divindade e
consubstancial conosco quanto à humanidade; semelhante em tudo a nós, exceto no pecado;
gerado pelo Pai segundo a divindade desde todos os séculos, e nos últimos tempos gerado de
Maria Virgem Theotokos, por causa de nós e de nossa salvação. O mesmo e único Cristo, Senhor
e Filho Unigênito em duas naturezas sem confusão, nem divisão, nem mudança, nem separação,
há de ser o termo de nosso reconhecimento, sem que de algum modo desapareça a diferença de
naturezas por causa da união, antes salvando-se as propriedades de cada natureza, embora as
duas se encontrem numa única pessoa e subsistência. Não separado nem dividido em duas
pessoas, mas uma só Pessoa, que é o único e mesmo Verbo, Deus, Filho Unigênito e Senhor
Jesus Cristo41, como em outros tempos nos ensinavam os Profetas a respeito dele, e o próprio
Jesus Cristo ensinou a respeito de si mesmo, e como nos transmitiu o símbolo de fé dos Padres 42.
Uma vez redigidas todas estas coisas com todo cuidado e diligência e em todos os seus aspectos,
este Santo Concílio Ecumênico as define, de modo que a ninguém é lícito professar outra fé, ou
escrever, compreender, sentir ou transmitir outra crença aos seus semelhantes43.
A fim de que fique mais claro o teor da definição conciliar, dispomo-la num quadro sinótico,
que evidenciam bem a natureza divina e a natureza humana num só Cristo44:
“Um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo
Perfeito em sua Divindade, Deus verdadeiro,
Perfeito em sua humanidade, verdadeiro homem,
constando de alma racional e corpo,
consubstancial ao Pai segundo a Divindade
consubstancial a nós segundo a humanidade,
semelhante a nós em tudo, exceto no pecado,
gerado do Pai antes dos séculos segundo a Divindade gerado de Maria Virgem, Mãe de Deus, segundo a
sua humanidade, nos últimos tempos, por causa de
nós e de nossa salvação”
“Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, reconhecido em duas naturezas
sem confusão nem mudança; a diferença de sem divisão, nem separação, unem-se numa só
naturezas não é extinta pela união, mas, ao contrário, pessoa e não em um ser dividido em duas pessoas,
são ressalvadas as propriedades de cada uma das
duas naturezas
mas um só e único Filho Unigênito, Deus, Verbo, Senhor, Jesus Cristo”
41 O grifo é nosso.
42 Refere-se ao Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que sintetiza a definição de fé aprovada pelos dois primeiros
concílios da Igreja, Niceia (325) e Constantinopla (381) e ainda hoje usada e solenemente cantada na Liturgia
dominical em todos os ritos eclesiásticos do Oriente e do Ocidente.
43 DS 301-303.
44 Cf. BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 87-88.
Percebe-se que a primeira parte desta definição confirma o Concílio de Éfeso, professando a
unidade em Cristo. A segunda parte acrescenta a doutrina típica de Calcedônia: as duas naturezas,
sem confusão, nem divisão ou mudança.
A comunicação ou comunhão de propriedades é professada, na medida em que é
reconhecida a unidade de pessoa (de sujeito ou de “eu”). É o mesmo “eu” de Jesus que por sua
natureza humana, chora sobre Lázaro, e, por sua natureza divina, o ressuscita. Evitemos a confusão,
pois, Deus, como Deus, não pode chorar, e o homem, como homem, não pode ressuscitar um morto.
III.2.4. Um quadro sinótico dos difisismos
Diferentemente do que ocorreu com as teses monofisitas, que partem de uma premissa
comum, ou seja, a fórmula apolinarista, as duas teses difisistas se constituíram de modos diferentes
e, até certo ponto, independentes, tendo em comum somente a profissão da união das duas physis
em Cristo, divergindo, porém, no conceito deste termo. Enquanto que para Nestório, uma physis
não tem subsistência, solidez real se não é também uma hypostasis (pessoa), preferindo falar de
união por complacência (tachada pelos adversários de adopcionismo), entendida como união
voluntária do Logos com um homem, para São Leão Magno, physis e hypostasis eram conceitos
distintos e, portanto, poderia falar da perfeita união das duas physis, sem mistura, nem confusão, na
única pessoa (= hypostasis) do Logos.
Em outras palavras, enquanto que Nestório professava dois sujeitos em Cristo, um humano e
outro divino, embora insistisse na unidade perfeita entre ambos, São Leão professava um único
sujeito, o Logos divino que assumiu e uniu a si de modo perfeito e distinto, a natureza humana, e,
portanto, duas naturezas, physis, unidas em um único sujeito, Cristo.
Para maior clareza, colocamos no quadro sinótico abaixo, uma síntese das duas teses
difisistas:
Difisismo
(antioquenos)
Conceito de natureza não se distingue de pessoa, portanto,
heterodoxo Nestorianismo as duas naturezas de Cristo constitui dois sujeitos, a do
Logos divino e a do homem Jesus, unidos por complacência.
ortodoxo
Concílio de
Calcedônia
As duas naturezas, divina e humana, realizam uma perfeita
união, sem mistura, nem alteração, na única pessoa do
Logos divino incarnado.
III.3. Comparação Sinótica do Monofisismo e do Difisismo
A fim de oferecer melhor uma visão de conjunto, colocamos no seguinte quadro sinótico as
quatro teses (nestoriana, miafisista, eutiquiana e leonino-calcedonense), distinguindo-as pelas
correntes (monofisismo e difisismo) e pela situação doutrinal (ortodoxia e heterodoxia):
Monofisismo
Difisismo
O Logos divino uniu a si de modo
substancial um corpo animado por uma alma
racional, isto é, uma natureza humana
Ortodoxo completa, e se fez homem sem deixar de ser
Deus, um único sujeito, Cristo-Logos,
perfeitamente divino e perfeitamente
humano. (Cirílico-efesita ou miafisismo)
As duas physis ou “naturezas”, a divina e a
humana, realizaram uma perfeita união, sem
mistura ou confusão, nem alteração,
permanecendo distintas, mas substancialmente
unidas em um único sujeito, Cristo, verdadeiro
Deus e verdadeiro homem.
(São Leão Magno e Concílio de Calcedônia)
Após a incarnação do Logos divino, a
“natureza” (physis) humana foi absorvida
Heterodoxo pela divindade do Logos, “como uma gota de
mel que se desfaz no oceano”,
permanecendo uma única physis-natureza, a
divina. (eutiquianismo)
As duas physis (“naturezas” = pessoas)
constituem dois sujeitos, o Logos divino e o
homem Jesus, que realizam uma perfeita união
indissolúvel por complacência, distinta, sem
mistura ou confusão, permanecendo, todavia,
dois sujeitos. (nestorianismo)
Como se pode notar, em outros termos, as teses ortodoxas do miafisismo e leoninocalcedonense professam a mesma fé a respeito de Cristo: um único sujeito, o Logos divino, que ao
encarnar-se une a si a natureza humana completa, realizando uma perfeita união das duas naturezas,
divina e humana, “sem mistura ou confusão, nem alteração”, um só Cristo, Deus e homem
perfeitos; uma única Pessoa (divina) em duas naturezas distintas e substancialmente unidas. A
teologia posterior formaria o termo teândrico, isto é, divino-humano (de theós, “deus”, e aneer,
andrós, “homem”), Cristo seria, então, um ser “teândrico”.
As divisões que se deram entre os cristãos que optaram por uma ou outra tese (miafisismo ou
ortodoxia calcedonense) se deram por mal entendidos a respeito dos conceitos que se discutiam, por
rivalidades entre as escolas antioquena e alexandrina, bem como por motivos politico-culturais em
que as regiões sul-orientais do Império bizantino (Egito e Síria oriental) buscavam autonomia frente
a centralização da corte imperial de Constantinopla e a forte helenização das populações semitas ou
de outros grupos dentro do Império (como os armênios), cujos argumentos eclesiásticos e teológicos
eram somente pretexto para os conflitos ocorridos.
IV. O Monenergismo e o Monotelismo
O monenergismo45 e o monotelismo46 são duas teses heterodoxas afins ao monofisismo
propostas pelo patriarca Sérgio de Constantinopla, cuja intenção era reconciliar os monofisitas com
a ortodoxia calcedonense, sem, todavia, atingirem o seu intento.
O monenergismo propunha que em Cristo havia um só princípio de operação ou atividade
(energéia), e este seria o divino. Em outras palavras, no Logos divino estava o princípio de ação de
Cristo, não havendo nada proveniente da natureza humana.
O monotelismo atribuía a Cristo uma só vontade, a divina, que absorvera a vontade humana,
45 Do grego mono, “uma só”, e energéia, “operação”, “atividade”.
46 Do grego mono, “uma só”, theleetee, “vontade”.
ou seja, Cristo era desprovido de uma vontade humana, o querer de Cristo era o querer do Logos
divino, sem cooperação com uma vontade humana.
Sofrônio, patriarca de Jerusalém, reconheceu o perigo dessas duas novas apresentações do
monofisismo e recorreu ao Papa Honório I, que era pouco versado em grego e em teologia
bizantina, não compreendeu a gravidade e sutileza da questão, recomendando somente que se
guardasse a fidelidade ao Concílio de Calcedônia e afirmando que isso era somente uma questão
linguística e não de fé. E acrescentou que em Cristo não havia oposição entre a vontade divina e a
humana e nesse sentido poderia falar de uma única vontade de Cristo. Todavia o papa se referia a
uma unidade moral das duas vontades e não de uma única vontade ontológica, levando a sérias
discussões.
Diante do impasse, o Imperador Constantino IV, propôs ao Papa Agatão a realização de um
Concílio ecumênico a fim de dirimir a questão, o que este consentiu prontamente. Por vontade do
Papa, realizou-se vários sínodos de bispos no Ocidente a fim de discutirem a questão e por fim, foi
composta uma fórmula de profissão de fé. O Concílio de Constantinopla III realizou-se de 7 de
novembro de 680 até 16 de Setembro de 681 em que foi definido o seguinte:
Este Santo Concílio ecumênico aceita fielmente e recebe de braços abertos a fórmula que propôs
ao mui piedoso e fiel Imperador Constantino o mui santo e bem-aventurado Papa da antiga
Roma, Agatão: rechaçou nominalmente aqueles que proclamavam e ensinavam haver uma só
vontade e operação em Cristo, nosso verdadeiro Deus […] Apregoamos duas vontades em Cristo
e duas operações, sem divisão, sem separação, segundo a doutrina dos Santos Padres, todavia
duas vontades não opostas entre si […] A vontade humana de Jesus segue, sem resistência, nem
oposição, a vontade divina, à qual está sujeita, pois é toda poderosa […] Assim como a carne de
Jesus é a carne de Deus, assim também confessamos que a vontade natural própria da sua carne é
do Verbo de Deus […] Assim como a carne de Jesus, santíssima e sem mancha, não foi extinta
por estar divinizada, mas permaneceu dentro dos seus limites e da sua identidade, assimtambém a
vontade humana não foi extinta por estar divinizada, mas, ao contrário, substitui usufruindo da
salvação47
É de notar que o texto conciliar fala de “carne divinizada” e “vontade divinizada”. O
adjetivo era muito caro aos bizantinos. Está, porém, longe de significar a absorção do humano pelo
divino; indica, antes, o fato singular de que a humanidade de Jesus subsistia por efeito de uma
Pessoa divina; pertencia ao “eu” do Logos.
V. Uma contextualização histórica dos eventos
Como dissemos acima, os grandes debates cristológicos que agitaram os cristãos orientais no
47 Cf. DS 553; 556.
século V foram consequência das controvérsias anti-arianas. O apolinarismo havia levantado a
seguinte questão: como se realizava a união entre o Logos divino e a natureza humana assumida na
incarnação? A tentativa de Apolinário, ao negar a integridade da natureza humana de Cristo, não foi
bem recebida pelos teólogos, pois, estes queriam salvaguardar a integridade das duas realidades
divina e humana de Cristo. Contudo, alexandrinos e antioquenos discordavam quanto ao modo de
entender e colocar os termos. Enquanto os primeiros consideravam a humanidade como instrumento
da divindade, os segundos procuravam distinguir de tal modo as duas naturezas que corriam o risco
de dividir Cristo em dois sujeitos.
A questão explodiu quando um discípulo de Nestório, então arcebispo de Constantinopla, o
presbítero Anastácio, condenou do púlpito o título mariano de Theotókos. Isso levou a uma onda de
protestos, intimidando o arcebispo a desmentir o auxiliar, o que não o fez, confirmando a tese.
Deste modo, veio a tona a tese divisionista de Teodoro de Mopsuéstia. Estalou um verdadeiro
tumulto; fieis protestavam durante as cerimônias litúrgicas, monges e bispos denunciavam o
arcebispo da corte imperial. No Palácio, as princesas que governavam em nome de Teodósio II
olhavam com crescente desagrado, pois encontravam-se indecisas entre o povo devoto da “Mãe de
Deus” e os altos funcionários que as aconselhavam a não exacerbar os ânimos nas províncias da
Síria, onde as teses antioquenas estavam bastante espalhadas.
Alguns clérigos e monges da capital imperial recorreram a Cirilo, arcebispo de Alexandria,
que, em vista da tradicional rivalidade entre Antioquia e Alexandria, via com maus olhos na sede
episcopal de Constantinopla, já então principal sede do Oriente, um antioqueno de prestígio; e sua
impostação cristológica, de tipo alexandrino, que percebia a unidade substancial das naturezas em
Cristo, desconfiava de uma distinção nítida demais de suas propriedades humanas e divinas.
Além disso, São Cirilo era injustamente acusado de ter estado implicado em alguns
incidentes que haviam agitado Alexandria, tais como a invasão da cidade por um bando de monges
que quase conseguiram massacrar o prefeito, e o odioso assassinato, por alguns cristãos fanáticos,
da célebre filosofa Hipácia, cabeça da escola neoplatônica. Assumindo a tarefa de refutar Nestório,
Cirilo libertava-se de todos esses rumores hostis e agia de acordo com sua fé e o seu temperamento.
Após uma correspondência entre os dois arcebispos, mais um pedido de notícias genéricas, a
segunda carta de Cirilo e a respectiva resposta de Nestório, ambas de cunho doutrinal, marcaram as
divergências entre as cristologias das duas escolas. Em meio à polêmica gerada, tanto Cirilo como
Nestório recorreram ao juízo do Papa Celestino I, pois ambos reconheciam a primazia da Sé de
Roma. O Papa reuniu, então, um concílio (regional) em Roma, em agosto de 430, em que as teses
de Nestório foram tidas como heréticas e convidou-o a reconhecer e renegar seus erros. São Cirilo
recebeu delegação do Papa a fim de entregar a Nestório o diktat (decisão) romano e, caso não se
retratasse, o excomungasse e o depusesse de sua sede.
Somente em novembro Cirilo o transmitiu a Nestório, provendo-o com uma série de doze
anematismos que apresentavam a cristologia alexandrina na forma mais radical: ali se falava, entre
outras, da unidade de natureza (hénosis physiké) humana e divina em Cristo. Nenhum teólogo
antioqueno poderia subscrevê-la. Mas, neste ínterim, Nestório, apoiado por bispos antioquenos,
recorreu ao Imperador Teodósio II, solicitando-lhe a realização de um Concílio ecumênico. Este
acedeu e, com o consentimento do Papa Celestino, o convocou para realizar-se em Éfeso.
O Concílio de Éfeso iniciou seus trabalhos a 22 de Junho de 431, na grande basílica da
Virgem Maria, com a participação de cento e sessenta bispos. Logo na primeira sessão, sob a
liderança de São Cirilo, Nestório foi condenado e deposto e foi aprovada uma carta de Cirilo de
Alexandria, tida como confissão de reta fé, e a proclamação de Maria Theotókos, pois, havendo em
Cristo uma só pessoa (divina) e tendo a Virgem gerado a pessoa do Logos unido à natureza humana,
competia-lhe esse título que os fieis já estavam familiarizados. Em represália, nos dias seguintes,
adeptos de Nestório condenaram e depuseram Cirilo, levando o Concílio a uma situação irregular.
Após alguns dias, com a chegada dos legados do papa, os bispos Arcádio e Projeto e o
presbítero Filipe, que traziam consigo cartas de Celestino I, as quais indicava a doutrina a ser
adotada, ratificaram as decisões conciliares tomadas antes de sua chegada, levando à condenação
definitiva das teses nestorianas e a consagração da fórmula cirílica. A última sessão realizou-se a 31
de julho. Contudo, a questão não estava totalmente encerrada, muitos bispos antioquenos não se
sentiram confortáveis com a fórmula cirílica parecendo-lhes um tanto apolinarista.
Teodósio II, aprovou ambas as condenações e deposições, por lhe parecer que tanto Nestório
quanto Cirilo eram responsáveis pelas querelas que perturbavam a paz da Igreja e do Império.
Porém, em relação à Cirilo, que voltara ao Egito, permaneceu inoperante, enquanto que Nestório
renunciou espontaneamente a uma defesa ulterior e retirou-se para um monastério em Antioquia,
sendo sucedido por Ático na Sé de Constantinopla.
Os arcebispos Cirilo de Alexandria e João de Antioquia, após algumas negociações, levaram
à reconciliação entre alexandrinos e antioquenos em abril de 433, ao assinarem uma fórmula de fé
dita “Ato de União”, aprovada por ambas as partes: os antioquenos renunciavam a Nestório,
aprovando sua condenação, enquanto Cirilo renunciava aos doze anematismos. Nestório, então, foi
exilado primeiro para Petra e depois para o grande Oásis, no deserto líbico.
Alguns alexandrinos mais radicais, todavia, acusaram Cirilo de fraqueza por ter assinado a
fórmula de união, o que lhes pareceu aprovar as teses nestorianas. Isso levou à formação de
doutrinas monofisitas extremistas, entre as quais o eutiquianismo, na verdade uma doutrina confusa
de um arquimandrita bizantino pouco versado em teologia, mas que conquistou as massas populares
e numerosos monges de pouca erudição na Síria e do Egito. Influente na corte, Eutíquio conquistou
para suas teses toda a camarilha imperial, exceto a princesa Pulquéria, irmã do Imperador, que,
furiosa por ver a cunhada dominar cada vez mais o seu indolente irmão, se refugiou numa ortodoxia
cada vez mais ferrenha. O caso teve, portanto, desde o início, nítidas ressonâncias políticas.
O celeuma produzido levou o arcebispo Flaviano de Constantinopla a convocar um sínodo
para a capital (448) que resultou na condenação das teses monofisistas e na deposição e
excomunhão de Eutíquio, informando, em seguida, o Papa Leão I do ocorrido. Indignado, o
arquimandrita afirmara não poder trair Santo Atanásio e São Cirilo e o tumulto teológico degenerou
imediatamente: foi o povo contra o Palácio, Alexandria contra Constantinopla. Eutiquio apelou para
o Papa, para Dióscoro de Alexandria, para muitos prelados e para o Imperador. Dióscoro, homem
ambicioso e violento, havia sucedido São Cirilo na Sé de Alexandria (444) e pertencia à ala radical
que recusara o “Ato de União”. Aproveitou-se da situação para impor a sua autoridade contra
Antioquia e Constantinopla, declarou Eutíquio inocente e levou a imperatriz Eudóxia a conseguir do
marido a convocação de um concílio para rever o assunto.
O concílio realizou-se em Éfeso (449), cidade da vitória de São Cirilo, sendo presidido por
Dióscoro de Alexandria. O Papa, bem informado da questão, evitou refutar as teses heréticas e
deixar-se engodar pelas argúcias gregas e, com sua sólida racionalidade latina, limitou-se a escrever
sua famosa “epístola dogmática” dirigida a Flaviano, arcebispo de Constantinopla. Todavia,
Dióscoro impediu que os legados papais participassem da aula conciliar e lessem publicamente o
documento; reabilitou Eutíquio e depôs Flaviano. Este, logo depois, faleceria em consequências de
maus tratos recebidos. Ao ser informado do acontecido, Leão I verberou contra aquilo que chamou
de “latrocínio de Éfeso”.
O repúdio a tal assembleia foi geral por parte dos próprios bispos antioquenos e da corte
imperial, havendo intervenções da multidão e da polícia e com grandes perseguições aos ortodoxos
organizadas pelos monges fanáticos adeptos do monofisismo. Salvos por um triz, os legados
levaram ao papa os protestos indignados dos que defendiam a fé ortodoxa. Leão I, sem hesitar,
ordenou a realização de um novo concílio. “Este certamente não teria se realizado se, por sorte,
Teodósio II não tivesse morrido nessa ocasião, e se sua irmã Pulquéria não tivesse assumido o poder
com seu marido Marciano. Subitamente, todos os ambiciosos e todos os intrigantes sentiram
declinar sua fé na natureza única...”48.
O Concílio a princípio fora convocado para Niceia, mas por decisão do Imperador Marciano
foi transferido para Calcedônia, nas imediações de Constantinopla, sendo solenemente aberto a 8 de
Outubro de 451 na Igreja de Santa Eufêmia, com a presença de mais de seiscentos bispos, em sua
grande maioria orientais49, sob a presidência do bispo Pascasino, chefe da delegação papal. Este
procedeu à leitura da “epístola dogmática” do Papa Leão I que, segundo consta nas atas, foi
aclamada pelos Padres conciliares: “Pedro falou pela boca de Leão”. Deste modo as teses
48 ROPS, J-D., A Igreja dos Tempos Bárbaros. São Paulo, p. 158.
49 O Concílio de Calcedônia foi o mais concorrido da Antiguidade cristã.
eutiquianas foram condenadas e Dióscoro, posto em acusação por Pascasino, foi desposto por
unanimidade, bem como Juvenal de Jerusalém e outros bispos de tendência monofisita.
Os comissários imperiais propuseram que fosse aberto o debate sobre questões doutrinais a
fim de compor uma nova fórmula de fé. Isso causou uma certa perplexidade, visto que o próprio
Papa solicitara que não se tocasse nessas questões, pois, o Concílio de Éfeso de 431 proibira o uso
de outra fórmula que não fosse a de Niceia (325) e por haverem muitos pareceres discordantes sobre
a matéria na magna assembleia. Todavia, diante das insistências dos comissários, procedeu-se à
leitura de documentos referentes às controvérsias cristológicas: os textos de São Cirilo e o Tomus
ad Flavianum de Leão. Após alguns dias de discussões, foram confirmados solenemente os
Símbolos de Niceia em conjunto com o de Constantinopla 50, as cartas de Cirilo a nestório e a João
de Antioquia e o Tomus do Papa Leão I. Chegou-se, então, a aprovação de uma nova fórmula cuja
base era o “Ato de União” de Cirilo e João de Antioquia e a Epístola leonina. Nas sessões seguintes
foram reabilitados Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa, condenados e perseguidos por Dióscoro.
Com o encerramento do Concílio e a partida dos legados papais e de outros bispos, alguns
clérigos de Constantinopla fizeram votar o cânon 28, que fazia da Sé de Constantinopla com os
mesmos direitos da Sé Romana, dando-lhe jurisdição sobre todas as Igrejas do Oriente. Isso
causaria uma grande repercussão negativa em toda a Igreja, tornando-se um dos principais motivos
para as cisões que ocorreriam futuramente51.
Dois séculos depois, buscando reconciliar-se com os monofisitas, o patriarca Sérgio de
Constantinopla (610-638) propôs as teses do monenergismo e do monotelismo, que não era mais
que uma nova edição do monofisismo heterodoxo. Refutado por Sofrônio, patriarca de Jerusalém,
ambos apelaram ao Papa Honório I, que, pouco preparado para enfrentar as sutilezas da teologia
bizantina, não entendera a questão, considerando um mero problema de linguagem e dando resposta
evasivas que poderiam ser mal interpretadas e usadas pelos dissidentes. Após décadas de discussões
acirradas, diante do impasse, o Imperador Constantino IV propôs ao Papa Agatão a realização de
um concílio ecumênico. Este consentiu e após a realização de vários sínodos dos bispos ocidentais,
foi redigido uma profissão de fé da Igreja latina que foi enviada ao Concilio de Constantinopla III
(680-681)52.
Este Concílio pôs fim aos debates cristológicos, estabelecendo a fórmula de Calcedônia
indiscutível: em Cristo há um só pessoa (divina) e duas naturezas completas.
50 A partir de então se estabeleceu o Simbolo Niceno-Constantinopolitano que a partir do século VI passou a ser
cantado em todas as liturgias dominicais das Igrejas do Oriente. Nas Igrejas ocidentais seria introduzido mais tarde.
51 O Papa Leão I protestará contra este cânon e não será aceito em no Ocidente por toda a Idade Média. Ele será o
início de um longo processo que separará da Sé de Roma a Igreja de Constantinopla, que carregará consigo toda a
Igreja grega, incluso os patriarcados de Jerusalém e Antioquia, formando a Igreja Ortodoxa grega separada da Igreja
Católica Romana.
52 O Concílio de Constantinopla II se reuniu em 553, mas teve pouca importância cristológica.
VI. As consequências históricas
A condenação das teses nestorianas pelo Concílio de Éfeso (431) levou à ruptura dos
cristãos sírio-orientais do Império Sassânida (persa), que seguiam a escola antioquena - ainda que
não adotassem as teses heterodoxas de Nestório - por lhes parecerem um tanto apolinarista a
fórmula cirílico-efesita. Isso contribuiu para que muitos nestorianos bizantinos emigrassem para as
regiões da Pérsia.
Desde o século IV, a Igreja persa – que se autodenominava de “Igreja do Oriente” mantinha uma certa autonomia, tendo a sua frente o arcebispado de Ctesifonte-Selêucia 53,
localizado ao sul da Mesopotâmia, na confluência dos rios Tigre e Eufrates. Num concílio realizado
em 410, ela declara (ou confirma) formalmente sua autonomia da “Igreja do Ocidente”, isto é, da Sé
arquiepiscopal de Antioquia, da qual era teoricamente dependente, e introduz os cânones do
Concílio de Niceia (325). Nessa mesma ocasião, o arcebispo de Ctesifonte-Selêucia se intitula
“catholicôs”54, fazendo-se, desse modo, chefe da Igreja do Oriente. No concílio de 422, a então
Igreja Assíria do Oriente declara definitivamente sua independência da Igreja de Antioquia e mais
tarde, em 486, rompe a comunhão eclesiástica por não reconhecer as definições do Concílio de
Éfeso55, ocasião em que seu chefe assume o título de “catholicôs-patriarca”. Sem dúvida, causas
políticas tiveram um grande peso nesse cisma, visto que a Igreja sírio-oriental pertencia a um outro
Estado rival do Império romano-oriental (bizantino).
Com o fechamento da escola de Edessa, considerada foco de doutrina nestoriana, seus
teólogos e filósofos se transferem para Nísibis, em território persa. Daí por diante, a Igreja Assíria
do Oriente tem um grande desenvolvimento, seus missionários a expandem desde a Armênia até a
Índia e a China, convertendo muitos curdos e outras tantas tribos mongólicas. Com eles, um grande
patrimônio do pensamento helênico, sobretudo a filosofia aristotélica, com obras em grego e em
siríaco, são conservadas e ensinadas a outros povos, continuando a obra de Alexandre Magno na
disseminação do helenismo em toda a Ásia central. A princípio, os cristãos persas terão forte
prestígio na corte sassânida, mas posteriormente, sofrerão inúmeras perseguições, motivadas pela
influência que pouco a pouco exercerão os jacobitas 56. Isso contribuirá para que os cristãos assírios
apoiem os árabes durante a expansão islâmica na Mesopotâmia e na Pérsia. No período do califado
abássida57, a Igreja Assíria do Oriente será a grande responsável pela transmissão da filosofia
aristotélica ao mundo árabe. Nesse período, a sede patriarcal será transferida para Bagdá58.
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Na ocasião, capital dos sassânidas.
“Catholicôs”, do grego kathólikos, “universal”, “geral”, “supremo”.
Por esse motivo, a Igreja Assíria do Oriente é até nossos dias erroneamente tratada de “Igreja nestoriana”.
Cristãos sírio-antioquenos (ocidentais) não-calcedonenses ou monofisitas ortodoxos (miafisitas).
Dinastia islâmico-pérsica do século IX ao XIII com sede em Bagdá. Período áureo da civilização islâmica.
No século XV-XVI, uma grande parte dos fieis e da hierarquia da Igreja Assíria do Oriente retornarão à plena
comunhão com a Igreja de Roma, criando a Igreja Católica de rito sírio-caldaico com seu próprio patriarca em
Bagdá em plena comunhão com a Sé romana.
Em 543, foi eleito Jacó Baradai para bispo de Edessa, de tendência anti-calcedonense, ou
seja, monofisita ortodoxo (não eutiquiano). Preocupado com os fieis monofisitas que estavam
desprovidos de pastores, conseguiu da Imperatriz Teodora a possibilidade de ordenar padres e
bispos59, criando assim, uma hierarquia monofisita sírio-antioquena (ocidental) sob sua direção.
Embora não fosse sua intenção inicial, com o passar do tempo se constituiu em uma Igreja
patriarcal cismática (antioquena), a Igreja Ortodoxa Síria, chamada vulgarmente de Igreja jacobita
(miafisita). Esta Igreja teve uma grande expansão missionária em todo o Oriente Médio. Teve
muitos teólogos e sábios de renome, tais como Severo de Antioquia, Juliano de Halicarnasso,
Filoxeno de Mabug e Sérgio de Rechaina, que foi um grande médico e um marco entre a ciência
grega e a civilização islâmica. Os jacobitas foram os responsáveis pela transmissão da filosofia
platônica aos filósofos árabes e lutariam ao lado dos muçulmanos quando estes ocuparam as
províncias sírias do Império Bizantino60.
Impossibilitados de participarem do Concílio de Calcedônia por causa das batalhas contra os
persas, os armênios tomaram o partido anti-calcedonense por terem entendido este como prónestoriano e sobretudo por razão do cânon 28 61, que constituía o arcebispado de Constantinopla
como a primeira Sé de jurisdição sobre toda a Igreja greco-oriental, com os mesmos direitos do
Papa da velha Roma. Isso era visto como um meio de centralização do poder imperial que se usava
das estruturas eclesiásticas para promover a helenização forçada de todas as províncias do Império
que tinham outras culturas. Nos concílios de Vagharshapat (491) e de Dvin (527), armênios e
georgianos confirmam sua rejeição pelo Concílio de Calcedônia e se separam da Igreja Universal,
instituindo, no século VI, seus próprios arcebispos-catholicôs62.
59 Ordenou ao todo 27 bispos e muitos padres.
60 Durante as Cruzadas uma parte dos fieis jacobitas reatariam a plena comunhão com a Igreja romana com sua própria
hierarquia. No século XVII, seriam constituídos pelo Papa em patriarcado próprio, católicos de rito sírio-antioqueno.
61 A antiga organização hierárquica da Igreja agrupava as Igrejas locais ou bispados em províncias tendo a frente uma
Igreja metropolitana cujo bispo detinha o título de metropolita e tinha o poder de vigilância sobre os bispos e as
Igrejas de sua província. Roma, Alexandria e Antioquia, por serem Igrejas dos grandes centros urbanos do Império,
pela sua origem apostólica e centro espiritual e mãe das demais, detinham uma grande preeminência, cabendo ao
bispo de Roma, por ser o sucessor de Pedro, a primazia universal. No Concílio de Niceia, cânon 6, reconhecia a
essas três Igrejas, na referida ordem, plenos poderes jurídicos acima dos metropolitas de suas respectivas regiões
(Ocidente, Egito e Síria), adotando o título da arcebispos. No cânon 3 do Concílio de Constantinopla (381), o bispo
da capital imperial, então sufragâneo do metropolita de Heracleia, é feito arcebispo, tendo o segundo lugar depois do
de Roma. Reconheceu-se também o título ao bispo de Jerusalém, sufragâneo do arcebispo de Cesareia da Palestina.
Éfeso, Capadócia, Ctesifonte-Selêucia, Sevilha e outras vão assumindo também o título arquiepiscopal. É somente
no século sexto que se cunha o título de “patriarca” e “catholicôs” em substituição do de arcebispo, que tendeu a ser
quase sinônimo de metropolita. Ao bispo de Roma reservou-se o título de Papa, antes comum aos demais bispos.
62 Foi nessa ocasião que os armênios se apropriaram de uma lenda siríaca do século IV que atribuía aos discípulos
Addaí e Mari a evangelização do reino nabateu de Edessa. Segundo a versão armênia, Addaí, erroneamente
identificado com o apóstolo Tadeu, teria evangelizado os armênios. Desse modo, atribuía-se uma origem apostólica
da Igreja armênia, justificando o cisma. Historicamente, registra-se a presença cristã na Armênia desde o século II,
certamente sob o impulso da dinastia edessana. Somente no século IV se daria a definitiva instalação do cristianismo
na Armênia por ação conjunta do Rei Tidart III e de São Gregorio, o Iluminador, de origem persa, que foi o primeiro
bispo da Armênia, então dependente do arcebispado de Cesareia da Capadócia. Não muito tempo depois, a Igreja
Ortodoxa Georgiana retomará a plena comunhão com a Igreja Bizantina. Na Idade Média, a Igreja Armênia buscará
diversas reconciliar-se à Igreja Grega e a Romana, pondo fim ao cisma, porém sempre de duração efêmera. Na
época das Cruzadas, uma parte dos armênios da Cilicia voltarão à plena comunhão com a Igreja de Roma, efetivada
A questão no Egito será mais grave, visto que os dois partidos se sucederão na Sé de
Alexandria até 536 com Teodósio I, quando este é deposto pelo Imperador e substituído por Paulo I,
que iniciará a linha sucessória dos patriarcas greco-ortodoxos de Alexandria, enquanto que Teodósio
permanece até a morte (567) reconhecido pelos não-calcedonenses (monofisitas ortodoxos ou
miafisitas) que elegerão um sucessor dando início à linha sucessória do patriarcado cismático da
Igreja copta63. Esta terá também uma expansão para a Etiópia e Eritreia, que constituirão Igrejas
nacionais oficiais do Estado e no século XX se constituirão em patriarcados próprios 64. Porém, ao
contrário das outras Igrejas, os coptas do Egito tenderão a ser uma Igreja minoritária e quase
desaparecerá sob a pressão dos muçulmanos, tendo pouca importância histórica.
Durante os séculos VII e VIII, os cristãos libaneses que viviam sob a orientação espiritual
dos monges maronitas65, permaneceram afastados de todas as discussões cristológicas, mantendo
certa reserva para com todos os outros grupos, parecendo terem adotado de boa fé o monotelismo
por um certo tempo. Esse distanciamento e autonomia fez que se constituíssem em uma Igreja
patriarcal própria que na época das cruzadas, mais precisamente nos século XII, reatariam a sua
comunhão com a Igreja de Roma.
VII. Diálogo teológico e superação das divergências cristológicas
Como foi demonstrado, não há uma diferença essencial entre o monofisismo ortodoxo
(miafisismo) e a doutrina de Calcedônia, que se reduzem a problemas de formulação e ajustamento
de alguns conceitos. Isso levou a uma série de diálogos teológicos no decorrer dos tempos na
tentativa de superar as divergências doutrinais e por fim aos cismas. A Igreja Armênia foi a que tem
procurado, desde a Idade Média, essa reconciliação com a Igreja Grega e a Igreja Romana. Em sua
Carta Universal dirigida a todos os fieis armênios, o Catholicôs Nersês Shnorhali propõe uma
confissão de fé66, da qual extraímos o seguinte trecho:
Nos últimos tempos, após o alegre anúncio do Arcanjo Gabriel, Ele desceu ao útero de Maria e,
tendo tomado corpo, alma e mente a partir da natureza dela, realizou uma nova e inefável união
com Sua divindade. Após o desenvolvimento no útero por nove meses como uma criança, Ele
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mais tarde em 1445 no Concílio de Florença. No século XVIII, o Papa Bento XIV reconhece a instituição do
Patriarca-Catholicôs dos católicos de rito armênio.
Do árabe, al copta, corruptela do grego aegipiticós, “egípcio”, são os cristãos miafisitas que adotam a velha língua
egípcia e tradições nativas em oposição à cultura helênica vertendo a esta língua os textos litúrgicos e patrísticos.
Colaborarão com os árabes contra os bizantinos por ocasião da expansão islâmica. O cisma entre eles também teve
forte influência política por ser uma região tradicionalmente separatista e ciosa de sua autonomia frente à corte
imperial de Constantinopla. Também entre eles haverá um grupo que se unirá a Roma, constituindo os coptas
católicos com seu próprio patriarcado. Quanto aos greco-ortodoxos de Alexandria e os greco-antioquenos ortodoxos,
terão uma parte que se reunirão à Igreja Romana no século XVIII, constituindo a Igreja greco-melquita católica com
seu patriarcado em comunhão com a Sé Romana.
Que também terão um ramo unido a Igreja Católica Romana.
Monges que seguiam as regras e instituições de São Maron e habitavam as regiões montanhosas do Líbano.
Confissão de fé consiste num documento escrito contendo uma síntese dos artigos fundamentais da doutrina cristã.
nasceu perfeito Deus e perfeito Ser Humano, com essência não confundida e união indivisível,
um Cristo, e sua única Pessoa unida a partir de duas naturezas67.
Na segunda metade do século XX, um diálogo teológico interconfessional entre as diversas
Igrejas dos três blocos, calcedonense (católica e ortodoxa), miafisita (coptas, sírios e armênios) e a
Igreja Assíria do Oriente, vem buscando fórmulas comuns que professem o essencial de sua fé
cristológica. As Igrejas miafisitas, procurando responder às acusações de eutiquianismo,
propuseram a seguinte fórmula, assinada pelo catholicôs armênio e pelos patriarcas sírio-ortodoxo e
copta:
Cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo, Filho de Deus, veio na Sua própria pessoa. Ele
não assumiu uma pessoa humana, mas Ele Próprio por união hipostática68 tomou plena e
perfeitamente a natureza humana, corpo e alma racional, sem pecado, da Virgem Maria, através
do Espírito Santo. Ele constituiu sua própria humanidade numa natureza encarnada e uma
encarnada hipostasia com sua Divindade no exato momento da encarnação através da verdade
natural da união hipostática. Sua Divindade não se separou da sua Humanidade nem por um
momento, nem por um piscar de olhos. Esta união é superior à descrição e percepção. Quando
falamos de “uma natureza encarnada do Verbo de Deus” não queremos dizer Sua Divindade
em separado ou Sua Humanidade em separado, isto é, uma única natureza, mas falamos de uma
união divina-humana natural em Cristo sem mutação, sem mistura, sem confusão, sem divisão e
sem separação. As propriedades de cada natureza não mudam nem são destruídas por causa da
sua união, as naturezas se distinguem uma da outra exclusivamente em pensamento.
No quadro abaixo, exporemos duas declarações conjuntas entre a Igreja Católica e as Igrejas
Copta e Sírio-Orotodxa (jacobita). A primeira, foi assinada em 1973 pelo Papa Paulo VI e pelo
Patriarca copta Shenouda III, por ocasião de sua visita ao Vaticano; e a segunda, pelo Papa João
Paulo II e o Patriarca sírio-ortodoxo Zakka Iwas I, em 1986, também em visita ao Vaticano:
Confessamos que nosso Senhor e Deus, Salvador e
Rei de todos nós, Jesus Cristo, o Verbo incarnado, é
perfeito na sua divindade e perfeito na sua
humanidade. Ele fez da sua humanidade e da sua
divindade uma só coisa; esta união é real, perfeita,
sem mistura, sem interferência, sem confusão, sem
alteração, sem separação. A sua divindade não foi
separada da sua humanidade em nenhum momento,
nem pelo tempo de um piscar de olhos. Ao mesmo
tempo condenamos com o anátema as doutrinas de
Nestório e de Eutiquio. (Paulo VI e Shenouda III)
Queremos reafirmar solenemente nossa profissão de
fé na incarnação de nosso Senhor Jesus Cristo, tal
como a declararam em 1971 o Papa Paulo VI e o
Patriarca Moran Mar Ignatius Jacoub III. Negaram
que exista uma diferença na fé que eles professam no
mistério de Verbo de Deus feito carne e realmente
homem. Por nossa vez, confessamos que Ele se
incarnou por nós, tomando para si um corpo real
com uma alma racional. Compartilhou em tudo a
nossa humanidade, exceto o pecado […] Nele estão
unidas de maneira real, perfeita, indivisível e
inseparável a humanidade e a Divindade, e todas as
propriedades de uma e outra nele estão presentes e
atuantes. (João Paulo II e Zakka Iwas I)
67 O grifo e nosso.
68 União das duas naturezas, humana e divina, na única Pessoa de Jesus Cristo (nota do tradutor).
Conclusão
As querelas teológicas que agitaram as Igrejas na antiguidade cristã se deram sobretudo pela
elasticidade dos conceitos filosóficos que não estavam definidos, podendo ter mais de uma
interpretação, mesmo que opostas entre si. Todavia, essas controvérsias tiveram importante função
na história da filosofia por ter definido conceitos como de “natureza” e “pessoa”, ainda não claros
na filosofia clássica.
Com as divisões eclesiásticas e o consequente surgimento de Igrejas separadas de Bizâncio
contribuiu para a formação de uma reflexão filosófica em língua siríaca, que usava o platonismo e o
aristotelismo em termos cristãos, formando um patrimônio greco-siríaco que estaria na base da
formação da falsafa, isto é, a filosofia em língua árabe desenvolvida na civilização islâmica e que
séculos mais tarde seria vertida ao latim e penetraria no Ocidente cristão contribuindo para os
fundamentos da modernidade.
Questões sociais e políticas tiveram grande peso nesses debates em que determinadas
doutrinas era assumida como um símbolo nacionalista ou étnico contra o imperialismo bizantino,
onde os interesses cristãos pouco contava, levando às grandes divisões que ainda hoje não foram
completamente
superadas,
embora
as
questões
teológicas
foram
reconhecidas
como
desentendimento de linguagem.
As massas sírio-cristãs, quer jacobitas, quer persas, por afinidade racial, por rejeição à
helenização forçada imposta pelo Estado bizantino, receberam os árabes muçulmanos contribuindo
para o estabelecimento do Império Islâmico, tanto polítoco, como intelectualmente, e, desse modo,
concorreram indiretamente para que Bizâncio se convertesse cada vez mais em uma nação grega,
preparando as bases do que seria a Grécia moderna.
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Controvérsias sobre a Natureza de Cristo na Antiguidade