UMA ANÁLISE DAS PRÁTICAS JUDAIZANTES NO CRISTIANISMO ANTIGO NOS SÉCULOS I E II D.C.: DIDAQUÉ UM ESTUDO DE CASO Rafael Juvenal Eugenio Orientadora: Profª. Drª Monica Selvatici RESUMO O propósito desta apresentação é investigar a presença de cristãos judaizantes no movimento cristão antigo dos séculos I e II a partir da análise da obra Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos. Ela se insere no quadro de pesquisas do projeto intitulado A Retórica Antijudaica no Cristianismo antigo: Os Cristãos Judaizantes dos séculos I e II d.C., que tem por objetivo maior discutir o desenvolvimento e a relação entre a identidade cristã e a identidade judaica na antiguidade. Os cristãos judaizantes são aqueles de origem não judaica que procuram obedecer aos rituais da Torá que a maioria dos cristãos já havia abandonado. Uma análise das evidências presentes no texto da Didaqué permite o início da pesquisa sobre o contexto social dentro da comunidade cristã primitiva no qual se observa o desenvolvimento da prática judaizante, revelando a complexidade das relações entre a identidade judaica e a identidade cristã nos primeiros séculos da nossa era. Palavras chave: Cristianismo, Judaizantes, Didaqué. 1199 Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos Uma das questões levantadas no estudo dos documentos cristãos tem sido a respeito das comunidades cristãs por de trás de cada texto, pois como historiadores levamos em consideração que o texto possa ter sido escrito por alguém da comunidade e para a comunidade. Partindo dessa curiosidade me proponho a pesquisar numa tentativa de reconstruir o contexto sócio-histórico da comunidade cristã por trás do texto da Didaqué. Quanto à descoberta do documento não há nenhuma discussão a respeito, porém, os estudiosos divergem sobre a data e local de escrita da Didaqué. Segundo a maioria dos teólogos e historiadores o documento foi descoberto pelo metropolita1 grego de Nicomédia, Monsenhor Filoteo Bryennios, na biblioteca do mosteiro do Santo Sepulcro em Constantinopla, em um manuscrito em grego datado do ano 1056. O historiador José Luiz Izidoro afirma que esse documento possivelmente foi muito usado nos séculos II e III d.C., pois encontramos diversas citações da Didaqué em outros documentos cristãos da época. É possível também que ela tenha sido cogitada para entrar no cânon cristão, que começou a ser definido no final do século II d.C. A Didaqué foi um documento escrito no fim do século I e início do século II. Com o título de Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos (∆ιδαχὴ τῶν δωδεκα ἀποστόλων), é geralmente chamada de “A Didaqué”. Quanto ao seu local de origem não há certeza, alguns acham que ela possa ter sido escrita na Síria, Palestina ou Egito onde teriam se refugiado muitos judeucristãos por ocasião da guerra contra os romanos desencadeada pelos zelotas a partir de 66 d.C2. A maioria dos historiadores e teólogos acredita que ela foi escrita em uma comunidade da cidade de Antioquia na Síria. 1 Metropolita é o mesmo que Arcebispo de uma metrópole (Arquidiocese), que tem jurisdição canônica sobre as outras Dioceses e Bispos. 2 A cobrança de altos impostos pelo Império Romano e os conflitos religiosos com os gentios levou a uma grande indignação por parte dos Zelotas a se revoltarem contra o Império Romano. A revolta culminou em 70 d.C. com a tomada da cidade de Jerusalém pelo exército romano e a destruição do Templo de Salomão. Por esse motivo muitos judeus deixaram a 1200 Não há como identificar o autor ou autores, pois possivelmente a Didaqué tenha sofrido várias interpolações. A suposição mais forte é de que a primeira e a mais antiga parte da Didaqué tenha sido escrita por um judeucristão, pois o texto tem semelhança com o texto judaico dos “Dois Caminhos” (Dt 20,15). Essa primeira parte foi escrita por volta do ano 80 ou 90 d.C. Já a sua parte mais tardia foi escrita por volta de 150 d.C. O livro da Didaqué é divido em três partes e um epílogo: a primeira, que abrange os capítulos 1 ao 6, forma uma parte doutrinal, com orientações catequéticas sobre “o Caminho da vida e o caminho da morte”; os capítulos 7 ao 10 formam a segunda parte sobre ensinamentos litúrgicos; e a terceira parte sobre instruções disciplinares é formada pelos capítulos 11 ao 15; e o capítulo 16 discorre sobre a segunda vinda do Cristo. Contexto sócio-histórico Partindo do pressuposto de que a Didaqué tenha sido escrita na Síria, provavelmente na cidade de Antioquia, comecei então a procurar vestígios em textos de teólogos e de historiadores especialistas em história do Império Romano, a fim de conseguir reconstruir o contexto sócio-histórico da comunidade da Didaqué. Segundo a especialista em cristianismo antigo Susan Ashbrook Harvey, a cidade de Antioquia, capital da província da Síria, era uma espécie de ligação da província com o Império Romano e o centro principal para o início do desenvolvimento do cristianismo devido à força da comunidade judaica que existia na cidade. A cidade de Antioquia foi fundada no fim do século IV a.C por Seleuco I Nicator, era a capital do reino Selêucida e ficava às margens do rio Orontes. Em 64 a.C com a conquista do antigo território selêucida por Roma, a cidade continuou sendo a capital administrativa da província. Judéia para viverem em outras regiões. Já o último foco de resistência judaico foi vencido pelos soldados romanos em 74 d.C., no monte Massada. 1201 A cidade de Antioquia é citada muitas vezes no Novo Testamento devido à passagem por ela dos apóstolos Paulo e Pedro. Alguns historiadores acreditam que o evangelho de Mateus tenha sido produzido na cidade de Antioquia entre os anos 80 e 90 d.C.3 É interessante notar que a maioria dos autores que tentam localizar a Didaqué em Antioquia ou em outras regiões não explicam suas hipóteses para tais ideias. E a partir das descrições da Didaqué e de historiadores que estudam a região da Síria, levanto a hipótese de que a Didaqué possivelmente teria sido escrita em uma região rural próxima a Antioquia. A hipótese de que a Didaqué foi escrita numa região rural próxima a Antioquia ganha força pois alguns preceitos descritos no livro provavelmente não seriam seguidos na cidade, como por exemplo, o batismo em água corrente e as refeições ao ar livre, uma igualdade maior entre a comunidade e a prática de pedir esmolas ou de se abster dos bens. O historiador francês Maurice Sartre fala sobre a sociedade rural da Síria e descreve como era constituída: Estas aldeias, no entanto, desenvolveram instituições comunitárias que muito se assemelham às das cidades vizinhas, apesar de seus magistrados possuírem títulos diferentes, que não são encontrados nas cidades da região: episkopos (guardião/administrador) e pistos (fiel), e também dioiketes (governador), strategos (general) e epimeletes (curador). As inscrições mostram que estas aldeias tinham um tesouro (que é muitas vezes aquele da divindade local), construções públicas e receberam doações de benfeitores.4 3 Como o autor Pablo Richard, em seu texto ‘Origens do Cristianismo em Antioquia’. These villages nevertheless developed communal institutions which greatly resemble those of the neighbouring cities, although their magistrates bore different titles, which are not found in the cities of the region: episkopos, pistos, and also dioiketes, strategos, epimeletes. Inscriptions show that these villages had a treasury (which is on occasion that of the local deity), erected public buildings and received donations from benefactors.” 4 1202 Segundo Sartre as instituições nas aldeias eram semelhantes àquelas das cidades vizinhas, porém diferenciavam-se nos nomes dos magistrados. Alguns magistrados citados por Sartre como o episkopos, também são citados na Didaqué capítulo XV, porém dentro da comunidade cristã, a tradução do termo grego é ‘bispos’: Escolham para vocês bispos e diáconos dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados, porque eles também exercem para vocês o ministério dos profetas e dos mestres. O significado da palavra episkopos é guardião ou administrador, esses então que cuidavam da comunidade rural. Assim podemos levantar a hipótese de que o episkopos teria a função de administrar a comunidade no âmbito civil e religioso. E que segundo a Didaqué esses bispos e diáconos eram escolhidos pela própria comunidade, e não deveriam ser desprezados ou desobedecidos, pois eles possuíam a mesma autoridade dos profetas e mestres. Outro grupo citado por Sartre eram os pistoi (fiéis) que poderiam ser os cristãos que viviam na aldeia e que participavam dos encontros para a eucaristia e recebiam também os profetas e os mestres que visitavam as aldeias fazendo pregações itinerantes. A Didaqué possui uma seção que orienta no cuidado com a hospitalidade dos profetas e mestres, para que não se receba falsos profetas que pregam outras doutrinas. Isso se deve talvez pelo grande número de pessoas que passavam pela cidade de Antioquia, que era a porta de entrada para o oriente. (Didaqué cap. 12, 1). Acolham todo aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examinem para conhecê-lo, pois vocês têm juízo para distinguir a esquerda da direita. As igrejas em Antioquia não eram uniformes na sua organização e nas suas práticas na região. Algumas apreciavam uma forte 1203 hierarquia, enquanto outras, especialmente nas regiões rurais pelo que mostra a Didaqué, preferiam estruturas mais igualitárias e carismáticas na igreja. Praticamente no mesmo período em que foi escrito a Didaqué que fala de uma estrutura mais igualitária, Inácio bispo de Antioquia reforçava a criação de um episcopado monárquico baseado em Bispo, Presbítero e Diáconos. (Epístola aos Magnésios 2) Portanto, já que tive a honra de vos ver na pessoa de Damas, vosso ilustre bispo, e de vossos ilustres presbíteros, Basso e Apolônio, bem como do diácono Zótio, meu companheiro de serviço, cuja amizade espero sempre possuir - já que ele é submisso ao bispo como à graça de Deus e ao presbitério como à lei de Jesus Cristo. Já o texto da Didaqué, como foi explicitado mais acima, essa estrutura se mostra mais igualitária no sentido de que são apenas bispos e diáconos e é a própria comunidade que os escolhe entre seus pares. Os Cristãos Judaizantes Além da diferença entre as igrejas havia também uma multiplicidade de práticas e crenças entre os cristãos, podemos ver melhor isso na orientação da Didaqué do cuidado com os falsos profetas e com os hipócritas, que possivelmente fossem esses cristãos judaizantes que exigiam o seguimento das práticas judaicas, para que o retorno do Cristo fosse rápido. Nas cartas de Inácio de Antioquia observamos novamente o apontamento ao cuidado com os judaizantes, que no capítulo 6 versículo 1 da carta aos Filadelfos “Se, no entanto, alguém vier com interpretações judaizantes, não lhe deis ouvido. É melhor ouvir doutrina cristã dos lábios de um homem circuncidado do que a judaica de um não-circuncidado.” Anteriormente os pesquisadores pensavam que os judaizantes fossem judeus que estariam tentando fazer com que os cristãos voltassem a 1204 seguir as práticas judaicas. Mas as pesquisas atuais têm mostrado que os judaizantes talvez fossem cristãos de origem não judaica, que estariam procurando obedecer às leis da Torá em suas minúcias. São várias as hipóteses levantadas a respeito dos motivos para que esses cristãos judaizantes estivessem querendo voltar a seguir as leis da Torá. Uma das hipóteses é de que os cristãos estivessem com medo de estarem fazendo algo errado, pois os apóstolos estavam morrendo e o Cristo ainda não havia voltado. Também havia aqueles cristãos que viviam em Jerusalém e que seguiam os ensinamentos de Tiago “irmão de Jesus”; sobre isso vemos na carta de Paulo aos gálatas, Paulo brigar com Pedro e com os emissários de Tiago, pois eles queriam seguir as regras de comida judaica. Outra hipótese é de que talvez os cristãos estivessem tentando retornar às práticas judaicas como uma tentativa de fuga das perseguições feitas por cidadãos romanos. Uma fonte do século II que mostra essa perseguição por parte dos cidadãos romanos é a carta de Plínio “o Jovem”, governador da província da Bitínia, ao imperador Trajano, na qual ele diz que os cidadãos estavam pedindo para que ele punisse os cristãos, pois esses não sacrificavam ao imperador e eram acusados de canibalismo. As palavras ‘hipocrisia’ e ‘hipócritas’ aparecem algumas vezes no texto da Didaqué. No capítulo VIII versículo 1 do texto em que é dito como agir nas celebrações litúrgicas, recomenda-se que os cristãos não jejuem como os hipócritas, pois eles jejuam no segundo e no quinto dia e os cristãos devem jejuam no quarto e no dia da preparação (sábado). Nessa passagem podemos supor que os hipócritas (hypokritōn) sejam os judaizantes, pois o jejum judaico possivelmente fosse praticado no segundo e no quinto dia. Também há um aviso sobre a oração no versículo 2 no qual é pedido para que os cristãos não rezem como os hipócritas mas sim como ensinou o Senhor ensinou em seu Evangelho. Na passagem IV,12 da Didaqué que faz parte da primeira parte do livro sobre o caminho da vida, é pedido para que se deteste todo o tipo de 1205 hipocrisia que não agrada ao Senhor. Já no capítulo V,1 a palavra hipocrisia se encontra no caminho da morte, ou seja, todo aquele que for hipócrita não estará no caminho do Senhor que é o caminho de vida. Como já citado acima, no texto da Didaqué são aconselhados certos cuidados com os falsos profetas. (Didaqué cap. 11, 1-2) 1 Se vier alguém até você e ensinar tudo o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido. 2 Mas se aquele que ensina é perverso e ensinar outra doutrina para te destruir, não lhe dê atenção. No entanto, se ele ensina para estabelecer a justiça e conhecimento do Senhor, você deve acolhê-lo como se fosse o Senhor. Durante todo o capítulo XI da Didaqué podemos observar o cuidado com os falsos profetas que nos mostra como era intensa a movimentação de pessoas pela cidade de Antioquia e os seus arredores. Possivelmente os judaizantes estariam inseridos nessa categoria de falsos profetas, pois vemos diversos textos contemporâneos a Didaqué como, por exemplo, as cartas de Inácio de Antioquia e as de Barnabé, que orientam como os cristãos deveriam agir diante das diversas práticas cristãs. A epístola de Barnabé é endereçada aos gentios e provavelmente foi escrita no século II. Nela se percebe uma certa tentativa de se desligar das práticas judaicas, talvez porque haveriam judaizantes também na comunidade a qual é endereçada a carta. A partir dos textos cristãos já citados podemos notar quão múltiplas e dinâmicas eram as práticas no cristianismo antigo. Desfazendo, assim, aquela antiga ideia simplista de que havia apenas um cristianismo que foi fundado por Cristo, e que permaneceu único durante o passar dos tempos. 1206 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS Fontes: Didaqué: o catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. (Trad. Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin) 15ª edição. São Paulo: Paulus, 2008. Epístola de Barnabé, in: Padres Apostólicos. (Trad. Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin) São Paulo: Paulus, 1995. Inácio de Antioquia, in: Padres Apostólicos. (Trad. Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin) São Paulo: Paulus, 1995. Bibliografia: CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram a execução de Jesus. (trad. Barbara T. Lambert), São Paulo: Paulinas, 2004. HARVEY, Susan Ashbrook. Syria and Mesopotamia, in: MITCHELL, YOUNG (orgs). The Cambridge History of Christianity. Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. IRVIN, Dale T.; SUNQUIST, Scott W. 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