Florestan Fernandes e a universidade brasileira: 20 anos depois Diogo Valença de Azevedo Costa* O presente texto se origina de uma palestra proferida no dia 22 de janeiro de 2008 em mesa-redonda intitulada “A escola e a transformação da realidade”, realizada no Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, sob os auspícios da Cátedra José Martí. Na ocasião procurei discutir as relações entre professor e estudantes na sala de aula, na forma como Florestan Fernandes abordava o assunto, porém tangenciando questões críticas referentes ao modelo de departamentos implantado na universidade brasileira. Hoje, dia 10 de agosto de 2015, quando se completam vinte anos da morte de Florestan Fernandes, gostaria de retomar tais reflexões num contexto mais amplo, a fim de debater caminhos para a luta política que deve ir além da universidade. Não seremos capazes de enfrentar os cortes destinados aos serviços essenciais, como saúde e educação, sem desafiar uma estrutura de classes sociais ultraconcentradora da riqueza, do prestígio, da cultura e do poder, típica dos países de capitalismo dependente. É preciso quebrarmos a espinha dorsal do lucro das grandes corporações internacionais, o pagamento dos juros da dívida e as elevadas taxas de remessa de lucros, ou então o suor de nós trabalhadores será revertido para manter o consumo de luxo de nossas elites e o elevado padrão de vida das nações centrais. A obra política de Florestan Fernandes reflete a necessidade de unidade das nossas esquerdas e nos permite identificar os verdadeiros inimigos das classes trabalhadoras. O presente texto é, portanto, uma homenagem a esse brilhante cientista social, que nos legou uma das mais importantes interpretações socialistas da sociedade brasileira. Nascido em 22 de julho de 1920, filho de uma lavadeira analfabeta, Dona Maria Fernandes, o menino Florestan teve que trabalhar desde os seis anos de idade para ajudar sua mãe no sustento da família. Tendo interrompido os estudos aos nove anos, a duras penas conseguiu retornar ao ensino formal e concluir o curso de madureza (como era à época conhecido o Ensino de Jovens e Adultos). Entre os anos de 1941 e 1949, Florestan Fernandes percorreu todos os degraus de sua formação acadêmica, alcançando o título de doutor com uma tese sobre A função social da guerra na sociedade tupinambá, defendida na Universidade de São Paulo (USP). Em 1954 defendeu a tese de livre-docência e em 1964, já em plena ditadura empresarial-militar, apresenta sua tese de cátedra A integração do negro na sociedade de classes. Em 1969 foi aposentado compulsoriamente da Universidade de São Paulo devido a seu envolvimento em prol de uma reforma democrática da universidade brasileira. O seu falecimento ocorre em meio às consequências de sucessivos erros médicos devido a um transplante de fígado. No momento atual de crise do ensino superior no país, em que predominam as instituições privadas financiadas com verbas públicas e o processo de sucateamento das universidades públicas avança a passos largos, é de grande valor político e humano lembrar a militância de Florestan Fernandes no campo da educação. Esses dois setores, o público e o privado, não estão apenas em contradição, mas ambos se associam no grau ** Professor de Sociologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). de superexploração da força de trabalho docente. O desafio seria o de unir as reivindicações dos docentes de ensino superior apartados entre esses dois setores. Farei um breve esforço de apresentar em linhas gerais a perspectiva de Florestan Fernandes sobre a universidade no horizonte de sua interpretação da sociedade brasileira e de suas convicções pedagógicas libertárias. O nosso autor foi um dos críticos da implementação do modelo de departamentos na universidade brasileira. Esse modelo quebrava o convívio entre os diferentes campos do saber e promovia a separação entre os vários centros e departamentos, afastando cursos muito próximos entre si como, por exemplo, pedagogia, ciências sociais, história, geografia, psicologia, serviço social e filosofia. A visão empresarial de divisão por departamentos possuía fortes semelhanças com o tipo de organização das grandes incorporações internacionais instaladas no Brasil com a transição ao capital monopolista. A ditadura sabia muito bem o que estava fazendo quando consentiu a realização de uma “reforma universitária” por um grupo de intelectuais orgânicos da burguesia, os quais se inspiraram no modelo norte-americano, estadunidense, de departamentalização, verticalização e isolamento dos vários cursos. Essa contrarreforma foi implementada em fins da década de 1960 e perdura até hoje na maioria de nossas universidades. Com isso ela conseguiu quebrar nosso convívio e transformar a especialização acadêmica no equivalente da neutralização da consciência crítica, da promoção de um profissionalismo estreito e da eliminação da própria possibilidade de uma produção cultural autônoma, nos níveis artístico, científico e tecnológico. Precisamos nos livrar urgentemente dessa situação, mas esse não é um processo que caberia somente à universidade. Essa mudança depende da transformação da própria sociedade e de uma revolução profunda de nossas estruturas políticas, econômicas, sociais, culturais e ideológicas. Para Florestan Fernandes, o epicentro de uma revolução social não estaria na universidade, mas na própria sociedade e na força dos movimentos sociais. As instituições de ensino superior podem ser absorvidas nesse processo, mas para isso seria necessária uma reeducação dos seus quadros intelectuais, que na sua grande maioria foram socializados no contexto de uma educação elitista e carregada de preconceitos de raça, classe, de gênero, região, geração e orientação sexual. A velha pergunta de Marx, ao esboçar o sentido mais profundo da práxis revolucionária nas suas teses sobre Feuerbach, quem educa o educador, é fundamental na apreciação desse pensamento crítico. Um tema que considero de suma importância, em especial para debatermos a concepção pedagógica libertária de Florestan Fernandes, é o da relação que se constrói entre o professor e o aluno dentro da sala de aula. Esse tema foi uma preocupação muito forte de Florestan Fernandes e não podemos dissociá-lo do conjunto de sua obra teórica na sociologia e, muito menos, de sua interpretação da emergência e desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Nesse sentido, para discutir a visão pedagógica de Florestan Fernandes seria necessário relacioná-la com a sua síntese política e teórica, de orientação socialista, sobre a sociedade brasileira. Essa síntese, entretanto, nos ajuda a pensar também o conjunto da América Latina. É isso o que nos propomos a partir de agora. Não seria possível realizar aqui uma discussão sistemática sobre o pensamento pedagógico de Florestan Fernandes, bastante rico, complexo e diversificado, que já se inicia com suas reflexões sociológicas sobre os processos educacionais em meados dos anos de 1940, em seus cursos de Introdução à sociologia ou de Sociologia da educação para as turmas de filosofia, pedagogia e ciências sociais da USP. Trata-se, além disso, de uma orientação pedagógica que, ao mesmo tempo, envolve tanto a sua militância em prol da defesa da escola pública e pela democratização das oportunidades educacionais, em fins da década de 50 e início dos anos 60, como também sua atuação parlamentar na Constituinte de 1988 já nos horizontes de uma concepção pedagógica radicalizada em termos proletários, populares, socialistas e anticoloniais. Florestan Fernandes não se julgava um educador, ele não se via nessa condição, porque acreditava que seus conhecimentos e sua condição de sociólogo estavam muito aquém do que seria necessário para que ele tivesse o orgulho de se considerar um pedagogo. Ele tinha um enorme respeito pelos educadores, manteve inclusive vínculos de amizade com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, dois reformadores burgueses na esfera do ensino, que não viram concretizadas suas aspirações de modernização e democratização das oportunidades educacionais na sociedade brasileira (nossa burguesia é tão autocrática e reacionária que mesmo as reformas burguesas da educação, como a ampliação do acesso ao ensino, foram estigmatizadas como um perigo à ordem, à paz social, à moral cristã, à família, à pátria e à estabilidade da aceleração do crescimento econômico), embora as suas concepções pedagógicas sempre tivessem tido, apesar dessa aproximação tática com os ideias políticos de uma visão educacional de cunho mais liberal e democrática, influências marxistas, socialistas, anarquistas e libertárias. Os reformadores burgueses defendiam o amplo acesso à educação como a via da democratização da cultura, mas entendiam o próprio ensino de uma forma elitista, sem questionar o tipo de saber então transmitido. O simples acesso ao ensino se baseia na ideologia de que, por si só, a educação seria capaz de sanar todo o conjunto de problemas da sociedade brasileira. Ora, a própria burguesia brasileira abriu mão de seu projeto educacional, o de democratização e ampliação do ensino público, optando pela reprodução da cultura da ignorância ao alijar os filhos das classes trabalhadoras, na sua grande maioria negra, das oportunidades educacionais. Por isso que a bandeira do acesso à educação continua atual, mas numa perspectiva socialista devemos ir mais longe. Não se trata, nesse sentido, de mero acesso à educação, mas de democratização da forma e conteúdo do próprio ensino, de mudanças nos modelos hierárquicos de relação entre professores e alunos. Sem essa rotação de perspectivas, o professor continuará a reproduzir uma ideologia iluminista de que ele detém o saber e deverá repassá-lo, dentro de um modelo de “educação bancária”, aos jovens alunos, submetidos ao jugo do paternalismo imperante em nossa sociedade. O padrão de ensino informativo, enciclopédico e de mera ilustração é uma herança que recebemos do nosso passado colonial e escravocrata, do qual ainda não nos livramos completamente. Ao participar da Campanha em Defesa da Escola Pública, entre 1959 e 1961, Florestan Fernandes se viu na contingência de defender os ideais republicanos na esfera educacional que, segundo ele, estavam superados e possuíam pleno sentido durante a revolução francesa e não correspondiam às suas posições socialistas. Entretanto, ideais esses que poderiam representar algum progresso diante do atraso da sociedade brasileira e do peso de sua forte herança colonial na esfera educacional, de reprodução de um ensino elitista. No livro A revolução burguesa no Brasil (1975) essa sua esperança é abandonada, pois a transição capitalista havia conduzido o país a uma reatualização do colonialismo e dos privilégios quase estamentais de classe da burguesia. O golpe contrarrevolucionário preventivo de 1964 se encarregou, definitivamente, de acabar com toda e qualquer ilusão de que as reformas burguesas poderiam conduzir, no longo prazo, a transformações mais profundas de nossa sociedade. Nossa burguesia é tão atrasada, reacionária, conservadora, obscurantista e autocrática, que mesmo os ideais modernos da educação e os pioneiros da Escola Nova foram estigmatizados como comunistas (coisa que eles não eram, pois permaneceram presos à visão de mundo burguesa). Seria demais lembrar que um deles, Anísio Teixeira, foi morto em circunstâncias desconhecidas em plena vigência da ditadura dos empresários e militares respaldada pelos Estados Unidos? Devemos também prestar uma homenagem a esse reformador da educação, Anísio Teixeira, reconhecendo a radicalidade de seus ideais, que, apesar de liberais e baseados na filosofia pragmatista norte-americana, detinham elementos socialistas difusos, algo tão importante diante da violência política existente ainda hoje na sociedade brasileira. Pois bem, se a burguesia pró-imperialista e de mentalidade colonial dos países periféricos, subdesenvolvidos e de capitalismo dependente, não consegue aceitar suas próprias utopias, que agora devem ser jogadas na lata de lixo da história e substituídas pela utopia socialista, efetivamente revolucionária, de onde devemos esperar que nasçam e frutifiquem os ideais pedagógicos libertários, autenticamente populares e proletários? Numa época de contrarrevolução e restauração mundiais do capitalismo, pensar as relações entre o ensino e a transformação da sociedade nos marcos da lógica neoliberal, totalitária e hegemônica, seria um profundo contrassenso e uma violência conceitual das mais terríveis. Nos marcos da ordem capitalista, não há mais nada a esperar, a não ser a produção de civilização, luxo e riquezas para uma rala minoria em escala internacional, de um lado, e reprodução sistemática do colonialismo (interno, isto é, dentro dos centros hegemônicos, que possuem suas próprias populações colonizadas e marginalizadas, negros, latinos, árabes, orientais e imigrantes com trabalho precário em geral; e externo, em direção às nações asiáticas, africanas e latino-americanas), da barbárie, da miséria e da pobreza, também em nível mundial, para uma imensa maioria, de outro. Só faz sentido em pensarmos mudanças “dentro da ordem” quando elas forem capazes de acelerar mudanças “contra a ordem”. O capitalismo não irá cair por si só e, por isso, uma pedagogia libertária deve ser entendida como um movimento simultâneo de negação dos valores da educação técnica do capital, de seus nobres ideais de adestramento do trabalhador e de reprodução dos horizontes culturais racistas, colonialistas e aristocráticos das elites das classes dominantes internas e externas (se quisermos raciocinar a partir de uma perspectiva revolucionária adequada às nações periféricas, subdesenvolvidas e dependentes), e construção de novos horizontes de emancipação da sociedade e do indivíduo, de descolonização das mentes e corações e de edificação de uma visão integral da personalidade humana, não mais alienada e apartada de um convívio autêntico, pleno, vivo e verdadeiro com os outros homens, mulheres, raças e etnias. A nova escola deve surgir dos movimentos sociais dos trabalhadores e das camadas populares. É nesses termos, em suma, que devemos entender uma pedagogia libertária e o sentido construtivo das relações entre escola e transformação da sociedade. Uma das frases de Florestan Fernandes, a qual sintetiza tudo isso e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra possui inscrita em suas paredes, aponta para que “façamos a revolução nas escolas, que o povo a fará nas ruas”. Os movimentos sociais são as verdadeiras fontes da mudança social revolucionária. A estrutura burocrática das universidades brasileiras, sua dimensão sociológica de reprodução da estratificação social da sociedade em suas diversas formas, de raça, classe, gênero, geração, região e orientação sexual, bem como o estilo de vida burguês ou pequeno-burguês que acaba afetando inclusive intelectuais críticos, tudo isso afasta a universidade brasileira de uma atuação mais firme junto aos movimentos sociais, desafiando os inimigos mais poderosos das classes trabalhadoras e das camadas subalternas, o grande capital interno e externo. A condição objetiva de classe média de nós professores universitários acaba, no plano subjetivo da consciência crítica, por enfraquecer nossa real capacidade de avaliação das possibilidades concretas de enfrentamento contra a ordem social da dominação e exploração capitalistas. É nesse sentido que Florestan Fernandes falava da necessidade de o intelectual acadêmico passar por um processo de desenburguesamento e proletarização. Esse foi o modo como Florestan Fernandes pensou a questão da escola e da sala de aula, como um movimento de superação e luta contra os nexos de dominação que são reproduzidos no interior mesmo das instituições educacionais. Ora, nossas instituições educacionais reproduzem a própria estratificação social presente no conjunto mais abrangente da nossa sociedade. O ambiente da sala de aula, a escola e a universidade não estão imunes a essa dura realidade. O próprio professor aí atua como agente de perpetuação da ordem, do status quo e de coerção do aluno. Entre 1958 e 1960, Florestan Fernandes orientou uma monografia sobre uma escola primária localizada em um bairro operário da região metropolitana de São Paulo. Essa monografia mostra como a estratificação social se reproduz no interior dessa escola. Trata-se de um estudo de autoria de Luiz Pereira, sociólogo já falecido e atualmente pouco lido e conhecido, o que é um sintoma de que perdemos contato com a produção crítica nas ciências sociais das gerações anteriores. O título do livro é A escola numa área metropolitana (1967). Luiz Pereira simboliza também uma das vertentes teóricas e políticas do marxismo acadêmico produzido na USP e, após a aposentadoria compulsória de Florestan Fernandes, ele será um dos principais responsáveis por continuar o trabalho de formação acadêmica nos horizontes da Escola Sociológica Paulista. Seria ingenuidade querer transformar a sociedade por meio das instituições educacionais com que contamos atualmente. Pode-se atuar dentro delas para tentar melhorá-las ou para tentar transformá-las em uma comunidade verdadeira e autêntica, em que o ser humano possa se doar livre e desinteressadamente aos seus iguais, mas dentro da ordem essa mudança dificilmente irá se concretizar. Na verdade, esse belo sonho seria impossível dentro da ordem. Isso porque, segundo Florestan Fernandes, o professor pode atuar como um... “agente da ordem dentro da escola, então, ele é, também, um fator de coerção social, de limitação da mudança, de subalternização do estudante. Quer dizer, ele vai criar estímulos e incentivos para a capitulação passiva, para que aquele que é educado se pense como subalterno e não como igual, não como o oprimido que se liberta, mas como o oprimido que tem um sentimento de gratidão para com a dominação” (Fernandes, 1989: 248). Florestan Fernandes chegou, provavelmente na década de 1940, a receber influências de um educador libertário pouquíssimo conhecido, de convicções anarquistas, Jakob Robert Schmidt, autor de um livro intitulado O mestre-camarada e a pedagogia libertária (1971[1936]). Esse autor dava uma grande importância à ideia de uma comunidade e de relações igualitárias entre professor e alunos. A escola e a sala de aula, em sua concepção, representariam o lugar principal ou o ponto de partida para a transformação das práticas educacionais, de autoritárias e repressivas, para efetivamente democráticas, populares e libertárias. A sala de aula seria o experimento crucial para uma nova “prática escolar humanizada”, que deveria atuar como uma forma de “liberação do oprimido, de descolonização das mentes e corações dos professores e alunos, de integração de todos nas correntes críticas de vitalização da comunidade escolar e de transformação do meio social ambiente” (Fernandes, 1989: 23). Florestan Fernandes, portanto, dava uma importância fundamental à experiência concreta da sala de aula, à convivência entre o mestre e os alunos, desenvolvida em termos igualitários e não baseada nas hierarquias de idade, de raça ou de classe, como um fator de transformação da sociedade. No entanto, em sua perspectiva de independência e autonomia das instituições escolares em oposição à burocratização e centralização das decisões educacionais, tomadas exclusivamente no Estado e no topo da sociedade civil burguesa, manter essa nova prática pedagógica nos limites da ordem seria insuficiente para realizar as aspirações populares mais profundas de mudança radical de sua situação de existência. Pode-se e deve-se lutar – faz-se necessário repetir mais uma vez – para a melhoria de nossas instituições educacionais, na tentativa de tentar torná-las mais democráticas e conquistar nelas trincheiras para a participação das classes trabalhadoras, desde que esse combate indispensável esteja vinculado à elaboração de uma pedagogia libertária, em termos anticonservadores e anticapitalistas, como condição de desalienação do colonizado e do trabalhador. Sem levar em conta a mudança de postura dos professores em sala de aula, que acabam por reproduzir nesse microambiente seus preconceitos racistas, de gênero, de geração, região, classe e orientação sexual, não se pode falar de avanços no interior de nossas instituições de ensino, dos níveis fundamental e médio ao superior. Mesmo que haja avanços na democratização das nossas universidades, em parte fomentados pelo processo de interiorização, tais avanços continuarão precários e ameaçados se não conseguirmos manter uma unidade mínima de luta em torno da defesa da democracia no país e contra a ofensiva dos setores privatistas nos diversos campos da economia, da saúde e da educação. A estrutura do Estado burguês concentra muitos poderes nas mãos de uma pequena cúpula e as decisões vitais para nossa coletividade são tomadas sempre em bastidores. Wright Mills (1968) fez essa análise no final da década de 1950 em relação aos Estados Unidos, demonstrando que a “elite do poder” se constitui de um estreito círculo composto pelos magnatas da indústria, pelos militares (os senhores da guerra) e pelos políticos das instâncias executivas. O governo brasileiro hoje tem se limitado a implementar a orientação traçada por essas forças elitistas, administrando o país para o grande capital internacional, interno e externo. No entanto, essa é apenas a ponta do iceberg e bater diretamente no governo não provoca grande estrago. O mais difícil e perigoso seria bater nas reais forças que controlam os rumos da nação. Para avançarmos esse passo, seria preciso construirmos uma unidade mínima das classes trabalhadoras e das forças de contestação da ordem capitalista. O ideal de vida acadêmica acaba por vincular o docente a um estilo de pensamento burguês ou pequeno-burguês, levando-o a ser crítico na esfera do debate público, exercitando aquilo que Florestan Fernandes chamaria de “radicalismo abstrato” (isto é, somos capazes de criticar a tudo e a todos, sem que isso seja capaz de provocar mudanças sociais efetivas e/ou mesmo sem que isso ameace nossas posições de classe média) e a perseguir ideais individualistas de carreira em outro ou a competir com seus colegas por maior prestígio e status no plano institucional. O “radicalismo abstrato” seria o equivalente daquilo que Lênin chamaria de “fraseologia revolucionária” ou de “esquerdismo”, como uma doença infantil do comunismo. As palavras de ordem e de ação estariam desvinculadas das potencialidades concretas da luta de classes, porém muitas vezes revelando um extremismo que se volta contra os inimigos mais próximos. Essa situação acaba por conduzir a lutas fratricidas no interior das universidades, sem percebermos que o nosso verdadeiro inimigo está muito mais distante e não podemos enxergá-lo. O pior é que isso conduz a competições internas entre colegas, cursos e centros não só por recursos de pesquisa, bolsas, financiamentos e pelos símbolos de status aí correlacionados, mas também por posições estratégicas dentro do aparelho burocrático da universidade. Isso resulta na prática de alijamento de pessoas das posições-chaves dentro das instituições universitárias, que acabam se reduzindo a conflitos entre grupos nas organizações burocráticas, perdendo-se de vista o fim essencial da Universidade, o de dar suporte a nosso desenvolvimento cultural autônomo. Quem leu Max Weber poderá entender como esses conflitos se processam e como a lógica da oposição entre grupos dentro das instituições universitárias pode conduzir a um clima de desvirtuamento dos fins primeiros de produção de conhecimento original, nos horizontes das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Perdemos em possibilidades de colaboração intelectual entre diferentes campos do saber e deixamos de produzir a ciência, a tecnologia, o pensamento crítico e a sensibilidade artística indispensáveis ao nosso desenvolvimento social e econômico nos marcos de uma democracia ampliada. O atual movimento grevista só poderá obter algum sucesso, na reivindicação justa e legítima contra os recentes cortes na educação, se ele for capaz de iniciar um caminho de inserção mais radical nos movimentos sociais e construção de uma ampla frente de esquerdas. Essa é a única maneira de fugir do radicalismo abstrato e estéril, a de se vincular aos movimentos sociais. Isso implica, porém, um risco para o intelectual, que passará a ser perseguido pelos aparelhos privados da ideologia dominante e muito provavelmente pelo poder coercitivo de dissuasão do judiciário. Não será apelando à consciência pública, ou tentando aumentar o nível das consciências pela justeza de nossas convicções, que conseguiremos contornar o boicote dos meios de comunicação de massa ao movimento grevista. Marx criticava e ironizava nos neohegelianos a noção de que a simples tomada de consciência representava uma grande revolução na vida e no mundo. O cultivo de um pensamento contrahegemônico é importante, mas insuficiente se isso não está atrelado à luta política que vai além das nossas universidades. Por isso o esforço de superar o momento econômico-corporativo da luta, como diria o marxista italiano Antonio Gramsci, e transformá-la numa greve política deve ser constante. Isso só será possível se nos aliarmos a outras categorias de trabalhadores, em especial os professores das universidades privadas que sofrem o peso cruel da precarização das relações de trabalho na educação. Os intelectuais de esquerda, do movimento negro, marxistas, anarquistas e libertários, devem ter a humildade de reconhecer que o pensamento crítico por eles construído dentro da universidade representa uma pequena gota no oceano da revolução social. Suas contribuições são importantes, mas ficarão no vazio se não receberem o sopro de vida do envolvimento autêntico e honesto com os movimentos sociais, desvencilhando-se aí dos seus vínculos institucionais com a ordem burguesa. Era nesse sentido que Florestan Fernandes falava que a universidade não pode ser o epicentro de uma revolução social, mas poderia ser tragada num processo de mudança social revolucionária. Mesmo no momento atual, quando não temos condições mais imediatas de criar um vínculo mais orgânico com os movimentos sociais, de luta pela reforma agrária, pela moradia, com o movimento negro, feminista, de jovens, associações de bairro e tantos outros, defender o ideal de uma universidade plural, diversa, democrática e socialmente referenciada, procurando-se manter a unidade dos diversos campos do conhecimento, já constitui uma das mais difíceis formas de resistência contra a mercantilização e o processo político em curso de fragmentação, enfraquecimento e deterioração do ensino superior no país. Por outro lado, não devemos procurar a atuação nos movimentos sociais ou junto às comunidades externas à Universidade para defender nossos interesses corporativistas, ou mesmo para buscar apoio às nossas demandas legítimas de melhoria das condições e qualidade do ensino. O desprendimento do intelectual acadêmico, se de fato o seu sentimento de luta for autêntico, deve levá-lo a enfrentar sem hesitações a violência política que se abate sobre todos aqueles que decidem defender a organização das massas e uma democracia de caráter popular. O verdadeiro caminho alternativo – e a ele todos os professores radicais de esquerda, marxistas, socialistas, anarquistas, libertários e militantes do movimento negro e feminista deveriam dar sua adesão – tem sido a autoeducação política dos trabalhadores, camponeses e demais camadas despossuídas, os condenados da terra, levada adiante pelos movimentos sociais anticapitalistas aqui no Brasil, na América Latina e em vários outros países desse mundo “grande e terrível”, para concluir citando Antonio Gramsci, outro educador libertário e revolucionário que nos foi legado pela humanidade. Referência Bibliográfica FERNANDES, Florestan. (1975), A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. ______ (1989), O desafio educacional. São Paulo: Cortez/Autores Associados. MILLS, C. Wright. (1967), A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar. PEREIRA, Luiz. (1967), A escola numa área metropolitana. São Paulo: Pioneira. SCHMID, Jakob Robert (1971), Le maître-camarade et la pédagogie libertaire. Paris: Maspero.