APONTAMENTOS SOBRE A REVOLUÇÃO BURGUESA EM FLORESTAN FERNANDES Gilcilene de Oliveira Damasceno Barão UERJ/UNICAMP [email protected] I) Florestan Fernandes e a recapturação da teoria da Revolução O período que marca a explicitação da temática da Revolução Burguesa no Brasil na produção de Florestan Fernandes processa-se num incomensurável drama, social, político e moral que marcou toda a sua geração perdida1, especialmente devido às nefastas conseqüências que a ditadura civil-militar instituída na realidade brasileira a partir de 1964 infligiu a todos que não se submeteram ou se adaptaram aos seus padrões de dominação autocrática. Entretanto, este será um período de grande produção e de enfrentamentos teóricos para Florestan. Conforme afirma José Paulo Netto “ a contra-revolução (burguesa), na sua realidade, impôs-se a Florestan como esfinge. Decifrá-la vai lhe demandar um esforço intensivo de pensamento e repensamento” (2004:208). A despeito de todas as dificuldades, como a solidão e a saudade da família no período em que lecionou no Canadá (1970-1973) ou depois, já em terras brasileiras, quando viu-se compelido a pelejar contra o isolamento imposto pela condição de exilado interno, Florestan Fernandes consegue renasce das cinzas2. Este renascer das cinzas não correspondeu a sua capitulação teórica, mas sim a concretização de um conjunto de trabalhos de grande alcance teórico, que embora abandonados ou esquecidos na academia e pela militância dos movimentos sociais e partidários, constitui-se num ponto de referência fundamental e num marco de leitura 1 Título de um ensaio escrito por Florestan que tem como objetivo refletir sobre o legado de um fragmento de geração que ousou enfrentar o imposto pelo golpe militar de 1964. (Florestan, SB, 1980: 216) 2 Um depoimento importante sobre este renascer das cinzas pode ser encontrado no seu livro Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo” no prefácio escrito por Heloisa Fernandes (1979): “ em 1969, você [Florestan] foi premiado por sua dedicação: aposentadoria compulsória. Sei quanto isto foi duro. Mas você que saíra grande da Universidade agiganta-se ainda mais. Sua obra posterior foi crescendo, foram se quebrando as amarras da Academia. O espaço do socialista da apresentação e do cientista do texto se adensou. Hoje socialista e cientista estão fundidos em um só texto. As rachaduras que afligiam foram sendo preenchidas. Você se superou. Você está vivo não só para a Universidade, mas para a sociedade, para a revolução social” (1979:xiv) 1 obrigatório para todos que têm compromisso teórico e prático com a superação da dramática realidade econômica, política, incluindo-se aí certamente os social e cultural da realidade brasileira, educadores que têm como estratégia educacional a construção de uma pedagogia socialista. A produção teórica de Florestan em A Revolução Burguesa no Brasil, e o Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, por exemplo, marca sobremaneira a contribuição e a diferença teórica do autor em relação ao pensamento hegemônico presente nas ciências sociais dos anos 70 e 80. Para Florestan o significado do livro A Revolução Burguesa no Brasil é a recapturação de uma teoria, pois ‘ o uso da violência institucionalizada, da opressão sistemática e do terror organizado na revolução burguesa não constitui uma novidade . Ele aparece de forma endêmica ou transitória em todas as modalidades de revolução burguesa reconhecidas como ‘clássicas’. O que havia ocorrido é que os ‘círculos acadêmicos’ abandonaram o uso do conceito de dominação burguesa, a teoria de classe e, especialmente, a aplicação da noção de revolução à etapa de transição para o capital industrial nas nações capitalistas da periferia. Passou-se a falar, indiscriminadamente, em ‘elites’ e em ‘modernização’, algumas vezes também em ‘transferência de tecnologia e de capital.’’ (Fernandes, 1978: 203) Florestan a partir das armas que dispunha3, ou seja, seu trabalho intelectual, instituiu com seus ensaios um duplo combate: por um lado, explicitava o projeto de dominação e de dupla exploração (interna e externa) que o pólo capital da luta de classes impunha na transformação capitalista dependente e, de outro, se opunha às teses de setores da esquerda, que abrindo mão do referencial marxista, operavam a substituição da temática da revolução pela temática da disputa de hegemonia, e se materializavam pelo 3 De acordo com relato, em uma entrevista, Florestan afirma que foi convidado para ingressar na luta armada. Segundo ele “ de 1964 a 1969 assumi um papel ainda mais ativo. Já havia a Junta Militar, e eu ainda estava lutando. Percorri todo o Brasil, fiz conferências, cheguei a fazer quatro conferências em um dia em Porto Alegre. Houve uma tentativa de me arrastarem para a guerrilha. Enquanto um dos grupos se constituía, me foi oferecida a sua chefia. Aí eu disse: ‘olha, devido à minha visão marxista da luta de classes eu não posso aceitar fazer parte da guerrilha (...) Essas pessoas me procuraram por duas vezes na Faculdade de Filosofia. Formavam um grupo novo, que se aglutinava em termos radicais. Recusei dizendo que, como marxista, eu não podia aceitar, porque se a guerrilha não existisse, a ditadura precisaria criá-la para aprofundar a repressão e a contra-revolução. Não havia condições para uma ruptura no plano político, suficientemente profunda, para que a guerrilha pudesse ser o detonador de uma rebelião das classes trabalhadoras e das massas populares. Então, eu disse: ‘Não, eu não entro nessa.’ Eu respeito muito os companheiros que morreram na guerrilha, porque deram demonstração de valor e altruísmo, sacrificaram a própria vida. Acho que a guerrilha tem chance quando está associada a um movimento de inquietação, de revolta, e nós não tínhamos aquilo. No final de 1968, a ditadura tinha de fazer comigo o que ela fez, porque assim como fui implacável na luta eles tinham de ser implacáveis na repressão” ( Florestan, 1991: 8) 2 silencio em relação à luta de classes e pela ênfase na discussão sobre a sociedade civil versus Estado e/ou no conceito de cidadania. Silva (2003), em sua dissertação defendida em 1995, ao analisar um grupo de intelectuais da USP4, que participaram do seminário d´ O Capital e no qual estudaram a produção de Marx (1958/1964), evidenciou dois nortes teóricos distintos nas pesquisas deles5 . O primeiro norte encontra-se na produção dos anos 1960, com a preocupação central de pesquisar os “caminhos do desenvolvimento econômico (...) a discussão sobre a viabilidade ou não do capitalismo no país” (Silva, op.cit:33) e o segundo norte encontra-se nas produções dos anos 70, onde ênfase recai na problemática da “democracia e a sociedade civil como maneira de contraposição não ao Estado fascista, mas sim ao Estado burocrático e autoritário” (Silva, op.cit:56). Sobre a mudança de eixo teórico afirma Silva (op.cit: 189) “ a postura de intelectuais públicos desse grupo teve papel importante no sentido da configuração de uma nova intelectualidade enquanto ‘sujeito político’, voltada basicamente para os espinhosos temas institucionais. Antes de tudo, seria necessário apresentar os grandes temas e revisões temáticas, tais como sociedade civil em contraposição ao Estado paternalista, distribuição de renda ao invés de antiimperialismo, democracia no lugar de revolução. Os antigos ‘mitos da esquerda’ deveriam ser enterrados, tais como nacionalismo econômico, dependência e estagnação, exclusão social como potencialmente revolucionária, estado fascista “ O contexto deste ‘deslocamento teórico” operado pelo grupo de intelectuais estudados por Silva acontece num novo espaço institucional - o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Este foi criado para oferecer condições de trabalho e pesquisa para um grupo de pessoas que tinham sido afastados da universidade pela Ato 4 Quanto à afirmação polemica, mas tomada como a verdade única, que o marxismo na universidade no Brasil inicia-se com o grupo do seminário d´ O capital, Coutinho afirma que “ falando dos anos 60 (...) o ISEB tem um peso decisivo na formação de nós que não estudamos na USP, porque acho que quem estudou na USP teve outra formação (...) como acho importante lembrar que nenhum de nós, que vivíamos fora de São Paulo, tivemos a menor idéia de que aqui se fazia um seminário sobre O Capital. Acho que os participantes deste seminário valorizam excessivamente o que fizeram. Eu, na Bahia, e Leandro Konder, no Rio, já líamos não só Marx, mas também Gramsci, Luckás, Benjamim” (Garcia et al, 2001:123). José Paulo Netto também, em sala de aula, fez comentários similares. Penso que este embate pode ser um excelente norte para futuras pesquisas sobre marxismo e universidade no Brasil. 5 As obras dos seguintes intelectuais foram analisadas por Silva (op.cit:14): Fernando Henrique Cardoso, Francisco Correa Weffort, Octavio Ianni, Paul Singer e José Arthur Giannotti. Ao longo de seu trabalho ele diferencia a produção teórica da obra de Ianni dos deslocamentos teóricos assimilados pelos demais intelectuais. 3 Institucional nº 5 (AI-5) imposto pelo governo militar em 1968. Florestan foi convidado e não aceitou fazer parte da CEBRAP, porque a instituição contava com financiamento privado externo(Ford, BID). Percebe-se nesta atitude de Florestan uma intensa coerência entre suas descobertas intelectuais e sua posição política, especialmente porque já no seu trabalho Integração do negro na sociedade de classes (1964) ele encontrou elementos para iniciar a sua compreensão do significado da dominação burguesa no Brasil. Anos depois no livro A Revolução Burguesa no Brasil (1975) Florestan é explícito ao relacionar a forma como o imperialismo entra por estas instituições privadas para harmonizar e fortalecer a sua dupla articulação da dominação burguesa (associação orgânica entre a burguesia interna e a burguesia externa). Em carta a Freitag, datada de 22.4.70, a partir de seu “exílio” de Toronto, Florestan apresenta a seguinte reflexão “o homem é limitado por sua condição humana. Não vou mais longe que os outros e talvez tenha certas limitações incuráveis, que nascem de cicatrizes do passado. São as cicatrizes que me tornam um tanto relutante para aproveitar as vantagens que minha posição me proporciona (como o caso da dotação oferecida pela Fundação Volkswagen, com a qual vou fazer o mesmo que já fiz com as ofertas análogas da Fundação Ford), e que percebo me levam a agir de forma irracional. Um paradoxo. Tentar ser ‘racional’ por vias irracionais. O que fala, porém, é o meu passado, tão vivo em minha consciência crítica, de criança que começou a enfrentar a vida em toda a plenitude com pouco mais de seis anos. Mas, se não me livro do meu passado, não posso ser mais que uma aberração no mundo em que vivemos, no qual as criaturas se ‘valorizam’ através do mercado (como diria o circunspecto Max Weber) e trocam o hoje pelo amanhã e o amanhã pelo depois da manhã” (Freitag, 1996: 148). Embora haja interpretações, como as de Garcia (2002: 22) que avalia a recusa de Florestan em aceitar as oportunidades oferecidas pelo financiamento externo como um puro absurdo. Afirmo que estamos diante de um autor com grandiosa coerência entre suas posições teóricas e suas opções profissionais/pessoais, algo raro nos dias atuais. Portanto, insisto, que esta atitude não tende a ser um absurdo ou simples conflito entre gerações como fica subentendido em Veras (1997), mas uma atitude que marca uma posição política em total conformação com a opção teórica deste intelectual. Observando o conteúdo da carta, a despeito das reflexões conterem angústias pessoais, chama a atenção a justificativa que Florestan apresenta para explicar porque recusou o financiamento externo: primeiro traz à tona o passado, na recuperação dos 4 laços de classe que mantém com o menino ‘Vicente’ trabalhador. Segundo, destaca no presente um homem que recusa aceitar o mercado como o espaço de auto-valorização, porque não é natural e irreversível que a valorização do homem passe pelo mercado e que tenha que adaptar e viver de penhorar o futuro em nome do imediatismo e utilitarista do agora. A opção de Florestan de assumir uma perspectiva teórica contrária ao campo hegemônico das ciências sociais e também de realizar enfrentamentos com as teses defendidas pelos socialistas democráticos “ não é um realização isolada, que possa ser atribuída exclusivamente a um pensamento genial ou brilhante. (...) apresenta-se nesse novo quadro uma radicalização crítica pela esquerda, de diversas organizações e partidos” (Silva, 2006:3) . Dessa forma, no campo do trabalho intelectual a luta de classe se impôs e o intelectual precisou explicitar suas escolhas teóricas. Netto (2006), em entrevista a autora, chama atenção para o seguinte fato: no mesmo ano que Florestan lança o livro A Revolução Burguesa no Brasil, o seu ex-assistente e amigo, Fernando Henrique Cardoso, lança o livro Autoritarismo e Democratização. Sem dúvida, que a escolha de Florestan foi o campo teórico de explicitação dos limites e da impossibilidade de haver justiça no capitalismo dependente, sendo a alternativa defendida pelo autor foi o compromisso com o socialismo. Concordo com Toledo(1987 e 1998) que Florestan será um dos intelectuais que oferece subsídios teórico para o debate com a ‘esquerda moderna’ que tem imposto equivocadas dicotomia, como por exemplo revolução ou luta pela hegemonia, “ a perspectiva revolucionária conseqüente é aquela que articula as duas estratégias, não dissociando uma da outra” (Toledo, 1987:287). Toledo põe acento na centralidade que o socialismo passa a ter no trabalho teórico e na vida de Florestan, como se este fosse a sua segunda natureza, e conclui afirmando que a sua obra nos ajuda a entender a sociedade brasileira. 5 II) A Revolução em Florestan Fernandes: debates e configurações 2.1) Alguns impactos e debates No tópico anterior pudemos demonstrar que a temática da Revolução Burguesa foi para Florestan uma explicação para o golpe civil-militar de 1964, e também, a recapturação da teoria sobre revolução e a luta de classe. Entretanto esta obra não deve ser dissociada da sua perspectiva teórica anterior, pois esta contém vínculos profundos com as descobertas teóricas e empíricas de suas produções, especialmente com o projeto de pesquisa desenvolvido no CESIT e a pesquisa realizada com Roger Bastide (1951) que resultou, mais tarde, na tese “ Integração do negro na sociedade de classes” (1964), e que permitiu ao autor tornar-se professor titular da cadeira de sociologia I. Hoje fica difícil conceber o impacto teórico que causou a publicação do livro A Revolução Burguesa no Brasil na academia e no meio dos militantes de esquerda. Em entrevista a autora de Netto (2006), na época militante do PCB, a alternativa socialista presente no final do livro, em plena ditadura, foi como um alento para os que consideravam o socialismo como estratégica teórica e política. Para Del Roio (2000:108) este livro foi a “ última grande tentativa de reflexão teórico-político sobre o tema da revolução no Brasil. Contribuiu para catalisar o debate da esquerda marxista que se esforçava para acumular forças no combate à ditadura e estimulou o envolvimento da intelectualidade na militância política para além dos muros da ditadura”6 . Aconteceram, pelo menos, duas oportunidades de discussão coletiva sobre a temática da Revolução em Florestan. A primeira foi na Universidade de Texas, em Austin, através de um debate específico sobre o livro A Revolução Burguesa no Brasil que segundo o sociólogo representou uma “ experiência (...)única na minha vida como professor. Nunca um livro que escrevi fora submetido a um debate tão variado, interessante e criativo. E, mesmo, pouca vezes me vi subjugado por emoções tão profundas” (Fernandes, 1978:200)7. Pode-se constatar, que, apesar dos muitos questionamentos, os diferentes debatedores 6 Florestan segue assim o caminho inaugurado por Otávio Brandão, Nelson Werneck Sobre e Caio Prado Junior de pensar o Brasil a partir do referencial marxista. 7 Parte do debate foi publicado no Brasil pela Revista Encontro com a Civilização Brasileira., v.4, 1978. 6 ressaltaram a obra como uma referência obrigatória para explicar o capitalismo na realidade brasileira. A segunda discussão foi em 1987, na 1ª Jornada de Ciências Sociais da UNESP, quando o conjunto da obra de Florestan foi analisado, onde se estaca as temáticas da Revolução Burguesa no Brasil e Marxismo e Revolução8. A temática da revolução consta também em outro denso ensaio do autor intitulado O que é Revolução (1984). Neste Florestan procura discutir a revolução nos países periféricos como possibilidade histórica que deve ser protagonizado pela classe proletária, e oferece argumentos ácidos sobre as teses defendidas pelos autores, autodenominados, “socialista democrático” que, pare ele, abandonaram a luta de classe e a perspectiva da revolução do horizonte teórico e prático. A fundamentação teórica deste ensaio tem por base Lênin, Rosa, Marx , dentre outros. 2.2) A noção de Revolução Burguesa no Brasil em Florestan A temática Revolução Burguesa instantaneamente nos transporta à história da Inglaterra, da França, dos EUA e, principalmente, à imagem das lutas da burguesia (moderna) contra os feudos (atrasados), aos confrontos pela igualdade, fraternidade e liberdade, às conquistas democráticas: como educação pública, reforma agrária, enfim, a uma série de fatos que nós fazem olhar para a nossa realidade capitalista como algo deformado e incompleto. Subindo nos ombros de grandes teóricos (Marx, Lênin, Rosa, Trostky, Baran, dentre outros) Florestan nos constrange a pensar as nossas especificidades históricas relacionando-as com a história do capitalismo mundial. Segundo ele “ trata-se (...) de determinar como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura” (Fernandes, 1975: 20). O uso da noção de revolução burguesa em Florestan não busca explicação na história dos povos europeus, mas considera essencial recuperar a categoria revolução a partir da configuração da nossa realidade capitalista. Logo, nos força a refletir sobre as seguintes questões: como explicar a absorção do padrão de transformação capitalista e sua organização da economia, da sociedade e da cultura no Brasil? Quais os entraves para 8 As demais temáticas foram: depoimentos, sociologia e antropologia, Contribuição à história social do Brasil, Universidade e Democracia e uma intervenção final de Florestan . 7 realização do capitalismo em nossa realidade? Nas palavras de Florestan “ falar de Revolução Burguesa, nesse sentido, consiste em procurar os agentes humanos das grandes transformações históricos sociais que estão por trás da desagregação do regime escravocrata-senhorial e da formação de uma sociedade de classes no Brasil” (Florestan, 1975: 20). Ao tratar de conhecer a sociedade de classes no Brasil Florestan nos apresenta a seguinte a justificativa para o uso da noção de Revolução Burguesa: 1) A constituição da Revolução Burguesa tem característica peculiar, pois esta não figurou como um episódio histórico, mas como um fenômeno estrutural. Ou seja, “ um fenômeno estrutural, que se pode reproduzir de modos relativamente variáveis, dadas certas condições ou circunstâncias, desde que certa sociedade nacional possa absorver o padrão de civilização que a converte numa necessidade histórico-social” (Fernandes, 1975:21:21). 2) nesse caso a Revolução Burguesa “se desenrola através de opções e de comportamentos coletivos, mais ou menos conscientes e inteligentes, através dos quais as diversas situações de interesses da burguesia, em formação e em expansão no Brasil, deram origem a novas formas de organização do poder em três níveis concomitantes: da economia, da sociedade e do Estado” (Fernandes, 1975:21) Embora a noção de Revolução burguesa tenha característica estrutural, isso não significa para Florestan que ela tenha um caráter determinante e que as relações de classes sejam determinadas mecanicamente9, pois a sua reprodução é variável e tem relação com as condições e as circunstâncias históricas e portanto permitem alternativas. Por isso, ao longo de suas análises a alternativa socialista é sempre reafirmada, seja como um devir, a ser protagonizado pelo proletariado das sociedades capitalista dependentes, seja como um acontecimento histórico concreto como foi o socialismo em Cuba. Lamentavelmente, na realidade brasileira, o que se concretizou como opção histórica pelas classes em confronto não foi a ruptura mas o aprofundamento e configuração do capitalismo dependente. 9 Silveira apresenta uma analise onde relaciona estrutura e história no livro A Revolução Burguesa no Brasil (1979). 8 Qual a configuração do modo de produção capitalista na realidade brasileira? E o que representa o capitalismo dependente como configuração específica? Para Florestan muitos dos países periféricos “ não lograram ter um desenvolvimento agrícola entrosado com o desenvolvimento urbano interno e poucos conseguiram um patamar de desenvolvimento industrial capaz de alimentar a formação de um proletariado industrial relativamente denso. Como conseqüência, não conheceram as reformas típicas da revolução burguesa, descrita por muitos historiadores como revolução agrícola, revolução urbana, revolução industrial, revolução nacional e revolução democrática. Essas cinco transformações se encadearam entre si – o exemplo clássico é o da Inglaterra, mas também se consideram como tal os da França e dos Estados Unidos (...)” (Fernandes, 1984: 71) Pode-se caracterizar estes países como aqueles que tiveram uma revolução burguesa clássica, pois realizaram de forma concomitantes as revoluções nacionais e democráticas. Outros paises de burguesias mais ou menos débeis e articuladas a aristocracias poderosas ou a burocracias influentes conduziram a transformação capitalista a níveis igualmente altos, compensando o poder econômico, social e político da burguesia pela centralização política, como aconteceu, de formas distintas, na Alemanha e no Japão- e produziram grandes manifestações dos tempos modernos da civilização industrial moderna. (Florestan, 1984: 71) Estes países não tiveram uma revolução burguesa clássica (democrática e nacional), como os países anteriores, mas implementaram a revolução nacional, isto é, a constituição de um espaço nacional e reprodução de capital nacional. O padrão da concretização da revolução burguesa nestes países aconteceu através do que Lênin denominou como via prussiana ou Gramsci chamou de revolução passiva (Paiva, 1991). No entanto, no caso dos povos de origem colonial ou não partilharam dessa evolução do capitalismo, ficando à margem das verdadeiras vantagens dessa civilização, ou participaram dela como colônias, semicolonias e nações dependentes, o que gerou várias formas de desenvolvimento capitalista controlado de fora e voltado para fora, no sentido de que as estruturas e os dinamismos de suas economias e de suas sociedades estavam sempre nucleados a centros externos, que exerciam ou pelo menos compartilhavam do comando da exploração capitalista. Alguns desses países de origem colonial conheceram o não desenvolvimento, outros o subdesenvolvimento, e todos tiveram enormes parcelas da riqueza nacional transferida para o exterior, alimentando o esplendor do florescimento do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos (ou no Japão). (Florestan, 1984:71) 9 A partir da citação acima é possível tirar duas importantes conclusões sobre a concepção de Florestan sobre o capitalismo dependente no Brasil. Primeiro é que nossas burguesias não tiveram impulsos revolucionários para realizar a revolução nacional e democrática. Segundo, há uma dupla articulação das burguesias internas que são associadas às burguesias externas e elas articulam-se entre si, ou sejam, compõem uma mesma unidade de dominação. A dupla articulação em sua face interna é composta pelos vários grupos das classes dominantes brasileiras e as diversas formas de produção. De acordo com Florestan “o que muitos autores chamam, com extrema impropriedade, de crise do poder oligárquico não é propriamente um ‘colapso’, mas o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia da oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder, pela qual se configurariam, historicamente, o poder burguês e a dominação burguesa” (Fernandes, 1975:203) Por conseguinte, não há superação do moderno pelo arcaico e sim fusão e justaposição. Na introdução ao livro Mudanças Sociais no Brasil Florestan é muito explícito sobre isso “ Ao contrário do que se acredita, através de utopias ‘democráticas-burguesas’ ou de hipóteses específicas, por si mesma, a ordem social competitiva não cria dinamismos suficientemente fortes para destruir o ‘antigo regime’ ou as estruturas econômicas, sociais e políticas ‘arcaicas’, dele remanescentes (p.30) (...) Os interesses investidos na modernização ou na expansão interna de um mercado capitalista moderno e do setor urbano-comercial, estratégico para tais fins, não lutavam pelo controle do espaço ecológico, econômico, sócio-culturais e políticas de origem colonial. Na verdade, eles se superpunham e se agregavam, aos níveis estrutural e histórico, aos interesses investidos neste setor de origem colonial, produzindo-se uma articulação dinâmica entre ambos” (Florestan, 1974:40) Para Florestan a burguesia brasileira “ não assume o papel de paladina da civilização ou de instrumento da modernidade, pelo menos de forma universal e como decorrência imperiosa de seus interesses de classe. Ela se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso: e para ela era vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do ‘atraso’ quanto do ‘adiantamento’ das populações” (Fernandes, 1975:204) 10 Florestan ao afirmar que a oligarquia rural e a burguesia são aliadas na constituição do capitalismo marca uma crítica firme ao “modelo de interpretação dual da sociedade”, que teve no livro Os dois Brasis do francês Lambert (1953), entre outros, um referencial conhecido. Portanto, “ não era apenas a hegemonia oligárquica que diluía o impacto inovador da dominação burguesa. A própria burguesia como um todo (incluindo-se nela as oligarquias), se ajustara à situação segundo uma linha de múltiplos interesses e de adaptações ambíguas, preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa, intransigente e avassaladora” (Fernandes, 1975:205) Ainda explicitando a caracterização da dupla articulação interna na sociedade brasileira, Florestan destaca que: “ o grosso dessa burguesia vinha de e vivia em um estreito mundo provinciano, em sua essência rural – qualquer que fosse sua localização e o tipo de atividade econômica – e quer vivesse na cidade ou no campo sofrera larga socialização e forte atração pela oligarquia (como e enquanto tal, ou seja, antes de fundir-se e perder-se principalmente no setor comercial e financeiro da burguesia).(Fernandes:204) Esta vinculação orgânica e intensa entre oligarquia e burguesia fazia do mandonismo oligárquico a segunda natureza do burguês no Brasil. No entanto essa simbiose não impedia ocorresse conflitos entre oligarquia e burguesia: “ através de discórdias circunscritas, principalmente vinculadas a estreitos interesses materiais, ditados pela necessidade de expandir os negócios. Era um conflito que permitia fácil acomodação e que não podia, por si mesmo, modificar a história. Além disso, o mandonismo oligárquico reproduzia-se fora da oligarquia” (Fernandes, 1975:205). Apesar desta segunda natureza de mandonismo oligárquico, a burguesia brasileira define-se no discurso como revolucionária e democrática encerrando uma contradição histórica entre o proclamado e o realizado, pois : “ em face de seus papéis econômicos, sociais e políticos, como se fosse a equivalente de uma burguesia revolucionária, democrática e nacionalista. Propõe-se, mesmo, o grandioso modelo da Revolução Burguesa nacional e democrática. Essa simulação não podia ser desmascarada: a primeira República preservou as condições que permitiam, sob o Império, a coexistência de ‘duas Nações’, a que se incorporava à ordem civil (a rala minoria, que realmente constituía uma ‘nação e mais iguais’), e a que estava dela excluída (...) As 11 representações ideais da burguesia valiam para ela própria e definiam um modo de ser que se esgotava dentro de um circuito fechado” (Fernandes, 1975:206). A burguesia em seu processo de concretização da revolução constituiu o seu perfil. Ao descrever este perfil Florestan evidencia que em nossa realidade a burguesia tem um comedido “espírito modernizador e que, além do mais, tendia a circunscrever a modernização ao âmbito empresarial e às condições imediatas da atividade econômica ou do crescimento econômico. Saía desses limites, mas como meio não como um fim - para demonstrar sua civilidade10 . Nunca para empolgar os destinos da Nação como um todo, para revolucioná-lo de alto a baixo. A esse ponto-morto, que vinha de fora para dentro” (Fernandes, 1975:206) Sendo o impulso modernizador interno comedido, terminava que: “ o impulso modernizador, que vinha de fora e era inegavelmente considerável, anula-se, assim, antes de tornar-se um fermento verdadeiramente revolucionário, capaz de converter a modernização econômica na base de um salto histórico de maior vulto. A convergência de interesses burgueses internos e externos fazia da dominação burguesa uma fonte de estabilidade econômica e política, sendo esta vista como um componente essencial para o tipo de crescimento econômico, que ambos pretendiam, e para o estilo de ida política posto em prática pelas elites (Fernandes, 1975:207). A dupla articulação interna vai configurar uma sociedade de classes que além da implementação da harmonização entre o “tradicional” e o “moderno”, irá considerar os trabalhadores como inimigos principais. Portanto, deve ser extirpada qualquer possibilidade de oposição organizada deste setor. Podemos concluir que não existe um padrão único de ação das burguesias nos diferentes espaços de concretização do capitalismo.A história demonstrou que determinadas burguesias não puderam unir, simultaneamente, a ‘transformação capitalista’ e a ‘revolução nacional e democrática’. Assim, “ a Revolução Burguesa pode transcender à transformação capitalista ou circunscrever-se a ela, tudo depende das outras condições que cerquem a domesticação do capitalismo pelos homens (Fernandes, 1975:214). No caso dos países 10 A partir desta reflexão podemos entender porque nas diferentes modas pedagógicas a modernização educacional aparece atrelada as demandas e aos avanços realizados no mundo empresarial ou fabril. 12 periféricos cujo capitalismo é dependente “ Revolução Burguesa é difícil- mas é igualmente necessária, para possibilitar o desenvolvimento capitalista e a consolidação da dominação burguesa” (Fernandes, 1975:214). Ao não considerar a oposição oligarquia versus burguesia como fundamento central Florestan explicita a sua crítica aos setores da esquerda e da direita que postulam a tese da aliança com a burguesia para realizar a revolução democrática e nacional. Assim, o sociólogo coloca um ponto final na ilusão do mito da autonomia de uma burguesia nacional Considerações Finais Destacarei dos apontamentos sobre a revolução burguesa em Florestan Fernandes algumas considerações finais. 1) A temática da revolução em Florestan tem por base as suas reflexões sobre mudança social nos anos 60, os desafios postos pela realidade do golpe civil militar de 1964 e os debates explícitos com os setores da “esquerda moderna” ou “socialista democrática” que defendem a ênfase nas temáticas da democracia, sociedade civil e democracia. Destarte, para compreender a recapturação que Florestan desenvolve sobre a teoria da revolução é necessário dialogar com a perspectiva histórica do contexto da guerra fria e as vinculações deste com o trabalho do intelectual que esteja compromissado com a construção do socialismo. 2) Por que um livro como A Revolução Burguesa no Brasil que teve impacto ao ser lançado e é uma das últimas grandes tentativas de explicação da revolução no Brasil não tem sido debatida na universidade? Há várias possibilidades de resposta para esta questão, uns poderão afirmar que o livro não é utilizado devido ao seu estilo literário pesado e difícil, outros dirão que hoje estão superadas as análises de explicações da realidade que trabalhem com categorias como totalidade, modo de produção, imperialismo, etc. No entanto, este trabalho confirma o valor que tem a produção teórica de Florestan, especialmente os elementos que ele aguça ao descrever as especificidades e as 13 configurações do capitalismo dependente no Brasil e que devem ser profundamente estudados pelos educadores comprometidos em intervir na superação do capitalismo na realidade brasileira. 3) Uma última consideração é que a existência da dupla articulação econômica (burguesia interna e burguesia externa) não torna possível a realização de uma revolução nacional protagonizada por nossa burguesia. Essa é uma constatação que impõe para aquelas esquerdas que têm como tática a união nacional na luta antiimperialista, uma série de reflexões e exigências de um novo rumo tático e estratégico. 14 Referência Bibliográfica CARDOSO, Miriam Limoeiro. Sobre a Revolução Burguesa no Brasil. IN: D’INCAO, Maria Ângela (org.). O saber Militante- ensaios sobre Florestan Fernandes.Rio de Janeiro, Paz e Terra; São Paulo, Unesp, 1987, p. 242-249. CARDOSO, Miriam Limoeiro. Florestan Fernandes: a criação de uma problemática. Estudos Avançados. São Paulo, EDUSP, no.10(26), 1996, p.89-128. COSTA, E. V. da A Revolução Burguesa no Brasil. In: Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, v.4, 1978, p.176-185. FERNANDES, Florestan. Sociedade de Classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. FERNANDES, F. Mudanças sociais no Brasil. SP: Difusão européia, 1974. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. FERNANDES, Florestan. 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