VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
20 a 24 de setembro de 2010
Natureza humana e teoria do conhecimento em Tomás de Aquino: o corpo como
determinante para a realização do processo intelectivo
André de Deus Berger
UFSCar/ Programa de pós-graduação em Filosofia, mestrado.
Capes/ CNPQ
Resumo: A questão 75 da primeira parte da Suma de Teologia de Tomás de Aquino
abre o tratado do autor sobre a natureza humana, e apresenta os elementos principais
que serão alvo de sua análise até a questão 89 da primeira parte da Suma, que fecha este
tratado. Relacionaremos aqui os dois primeiros artigos da questão 75, que tratam da
essência da alma em si mesma. Segundo Tomás, a alma deve ser entendida como o
primeiro princípio da vida, o motor incorpóreo do corpo, seu ato, que no caso do
homem também pode ser chamada intelecto. Este primeiro princípio é considerado
subsistente por ser parte de um composto (no caso do homem, de corpo e alma),
portanto por ser algo, e por realizar uma operação por si só, a intelecção, que lhe
permite conhecer a natureza dos corpos. Esta operação necessita dos corpos por conta
de seu objeto, que são as representações imaginárias destes corpos. O corpo pode ser
considerado determinante para o processo intelectivo por fornecer ao intelecto seu
objeto, e por se unir a ele no composto humano, o que lhe permite realizar seu ato como
primeiro princípio de vida.
Palavras-chave: Filosofia Medieval, Tomás de Aquino, alma, corpo, intelecção.
Nosso objetivo é apresentarmos uma análise dos dois primeiros artigos da
questão 75 da primeira parte da Suma de Teologia de Tomás de Aquino (doravante ST)
com o intuito de evidenciarmos que estes apresentam o pano de fundo sobre os quais o
autor erigirá suas teses sobre o conhecimento humano no tratado sobre o homem. O
tratado sobre o homem, se estende de ST Iª, 75 até 89. Tomás indica no prólogo deste
conjunto de questões que é preciso considerar a natureza do homem, composto de
substância corporal e espiritual, a partir da consideração sobre a alma: primeiro, no que
se refere à essência da alma, depois o que se refere a sua potência e por fim o que se
refere à sua operação. “Com repeito ao primeiro, ocorre uma dupla consideração: uma
sobre a alma em si mesma e outra sobre a união da alma com o corpo”299. É sobre a
alma considerada em si mesma que a análise tomasiana será iniciada.
Aluno regularmente matrículado no programa de pós-graduação em Filosofia da UFSCar em nível
mestrado sob orientação do Profº. Drº. Carlos Eduardo de Oliveira. E-mail: [email protected].
299
ST, Iª, 75, Prólogo, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 355).
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Como já anunciado no início, nos deteremos sobre os dois primeiros artigos de
ST, Iª, 75, que correspondem, respectivamente, às respostas para as seguintes perguntas:
“1 – a alma é corpo? 2 – a alma humana é algo subsistente?”300.
A resposta ao primeiro questionamento será inicialmente positiva: “Parece que a
alma é corpo”301, e três serão os argumentos elencados para corroborar esta afirmação:
O primeiro argumento se apoiará na relação de movimento entre motor e
movido, afirmando que a alma é um motor que causa um movimento finito e não
uniforme, características dos motores movidos. “[…] Portanto, a alma é motor movido.
[…] todo motor movido é corpo. Logo a alma é corpo.”302.
O segundo argumento afirmará que a alma conhece os corpos por uma relação
de semelhança no processo de conhecimento, e concluirá que “[…], não pode haver
semelhança entre o o corpo e uma coisa incorpórea. […] se a alma não fosse corpo, não
poderia conhecer uma coisa corpórea.”303.
O terceiro argumento retomará a relação entre motor e movido: “[…], é
necessário haver algum contato entre o motor e o que é movido. […], não há contato
senão entre os corpos. […], como a alma move o corpo, parece que ela também é um
corpo.”304.
Em sentido contrário, Tomás tomará a palavra de Agostinho: “[…], 'a alma é
simples em comparação com o corpo, porque sua massa não se estende no espaço
local'.”305.
A resposta de nosso autor é iniciada com a consideração da necessidade de se
partir do pressuposto de que a alma é o primeiro princípio de vida dos seres vivos, que
por isso são chamados animados em oposição aos que não tem vida, chamados
inanimados. Os seres que tem vida podem manifestar o conhecimento e o movimento, e
a consideração tomasiana é a de que “Os filósofos antigos, […], afirmavam que o
princípio dessas ações era algum corpo. Diziam que somente os corpos eram coisas, e
que nada existia que não fosse corpo. Por isso diziam que a alma é um corpo.”306.
300
Id., Prólogo, (Ibid., p. 355).
301
Id., 1, (Ibid., p. 355).
302
Id., Arg. Ini. 1, (Ibid., pp. 355-356).
303
Id., Arg. Ini. 2, (Ibid., p. 356).
304
Id., Arg. Ini. 3, (Ibid., p. 356).
305
Id., Sed contra, (Ibid., p. 356).
306
Id., Respondeo, (Ibid., p. 356).
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Tomás formula o argumento porém de que a alma não é um princípio vital
qualquer, e sim o primeiro princípio da vida. Um corpo como o coração, pode ser um
princípio de vida, mas não pode ser o primeiro princípio da vida, uma vez que “[…] ser
princípio de vida, ou ser vivo, não convém ao corpo enquanto é corpo, do contrário,
todo corpo seria vivo ou princípio de vida.”307.
A afirmação tomasiana é a de é necessário um ato como primeiro princípio para
que um corpo seja princípio da vida, o que possibilita a afirmação de que “ […] a alma
que é o primeiro princípio da vida não é corpo, mas ato do corpo, assim como o calor,
que é princípio do aquecimento, não é corpo, mas um ato do corpo.”308.
Segundo Pasnau, o movimento do argumento tomasiano é o de uma implícita
volta sobre si: se o ato identificado como primeiro princípio do corpo, é em si um corpo,
se deve, em seguida, voltar ao início do argumento e por ele passar mais uma vez.
Encontraremos mais uma vez alguma realidade mais básica subjacente, e se este
também é um corpo, se repete, em seguida, o argumento uma terceira vez. A estratégia
de leitura é de afirmar uma atualidade sempre anterior a qualquer corpo, por mais
profunda que vá a investigação. Assim, se assume que há um primeiro princípio – o que
Tomás fez desde o início – e este deve ser um ato, não um corpo309.
Tendo negado a resposta inicial de que a alma seria um corpo, Tomás passa
então a responder os argumentos iniciais:
Ao primeiro argumento em favor da alma ser um corpo, apoiado sobre a relação
entre o motor e o movido, é afirmado que esta relação não pode ser levada ao infinito,
tendo-se de admitir que nem tudo o que move é movido. A explicação para esta
admissão está na consideração de que ser movido é passar de potência ao ato, quando o
que move transmite ao movido o que tem. O autor considera então três tipos de
motores: um motor totalmente imóvel, que não se move nem por si nem acidentalmente,
e que transmite ao movido um movimento uniforme. Outro motor que não é movido
por si, como a alma, mas é movido por acidente, o que faz com que este motor não
transmita ao movido um movimento uniforme. Por fim há um motor que se move por si,
e este é o corpo. A afirmação de que a alma é corpo advém dos antigos filósofos, que
307
Id., (Ibid., p. 356 grifo do autor).
308
Id., (Ibid., p. 357 grifo do autor).
309
PASNAU, 2002a, p. 223.
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“[…] não admitiam senão a existência dos corpos, [e] afirmaram que todo motor é
movido e que a alma se move por si e é corpo.”310.
Ao segundo argumento em favor da alma ser um corpo, apoiado na necessidade
de semelhança entre o que conhece e o conhecido, é afirmado que não é necessário que
a semelhança da coisa conhecida esteja em ato na natureza do que conhece, mas em
potência. Isto exclui a necessidade da semelhança em ato entre as coisas corpóreas e a
natureza da alma, mas afirma a necessidade de que a alma esteja em potência para tais
semelhanças311.
A resposta ao terceiro argumento em favor da alma ser corpo afirma a
possibilidade de ocorrência de um duplo modalidade de contato: “[…] de quantidade e
de virtude. No contato de quantidade o corpo não é tocado senão por um corpo. No
contato de virtude, o corpo pode ser tocado por uma coisa incorpórea que move o
corpo.”312.
Ao recapitularmos o trajeto apresentado por Tomás, concluímos que sua
consideração é de que a alma não é corpo, sendo portanto um incorpóreo. A alma é ato
do corpo, ela é o primeiro princípio de vida do corpo e age como seu motor através de
um contato de virtude, que possibilita que algo incorpóreo toque e mova um corpo.
Segundo Pasnau, o objetivo de Tomás é afirmar a alma como primeiro princípio em
termos de ser, aquilo que é primariamente responsável pela existência de um ser vivo e
também o primeiro a definir propósito de um ser vivo. Trata-se daquilo que é
primariamente responsável por toda a vida, apresentada por Tomás a partir de duas
funções: intelecção e movimento; falar de alma, como o primeiro princípio da vida é
dizer que ele é o principal responsável pela intelecção e pelo movimento313.
De acordo com o comentador, é para conseguir tal objetivo que Tomás inicia
argumentando contra a identificação da alma com o corpo (que equivaleria a um erro),
uma vez que esta identificação leva a investigação sobre o primeiro princípio da vida ao
lugar errado, se detendo sobre os corpos, quando deveriam investigar os princípios de
causalidade de um tipo fundamentalmente diferente; que a alma é, na verdade, a
atualidade de um corpo vivo, e, como tal, deve ser incorpórea. O apontamento de
310
ST, Iª, 75, Ad 1m, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 357).
311
Id., Ad 2m, (Ibid., p. 357).
312
Id., Ad 3m, (Ibid., p. 357).
313
PASNAU, 2002b, pp. 28-29, grifos do autor.
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Pasnau é o de que o final do corpo da resposta de ST, Iª, 75, 1 apresenta um argumento
utilizado para derivar uma teoria incorpórea da alma que poderia igualmente ser usado
para derivar uma teoria incorpórea de calor. Para o comentador, Tomás apresenta a
força de sua teoria ao extrapolar a discussão sobre tipos de alma, e apresentar uma tese
metafísica geral, que se estende por todos os fenômenos naturais, vivos ou não-vivos.
Assim como a alma não é um corpo, assim também o calor não é um corpo. Ambos são
atualidades314.
Tendo estabelecido este ponto, Tomás pergunta, em ST, Iª, 75, 2, se a alma
humana é algo subsistente, e sua resposta inicial, que será apoiada em três argumentos,
é a de que “Parece que a alma humana não é algo subsistente.”315.
O primeiro argumento em favor da resposta inicial será o de que “[…] o que é
subsistente é designado como alguma coisa. […] a alma não é alguma coisa, mas sim o
composto de alma e corpo. Logo, ela não é algo subsistente.”316.
O segundo argumento questionará a capacidade operacional da da alma: “[…],
tudo o que é subsistente pode operar. Ora, não se diz que a alma opera, […] 'Dizer que a
alma sente ou tem intelecção é como se dissesse que ela tece ou edifica.'. Logo, ela não
é algo subsistente.”317.
O terceiro argumento em favor da resposta inicial incidirá novamente sobre a
capacidade operacional da alma:
“[…], se a alma fosse algo subsistente, teria alguma operação sem
corpo. Ora, nenhuma operação sua é sem corpo, nem a própria
intelecção, porque não pode haver intelecção sem as representações
imaginárias, as quais não existem sem corpo. Logo, a alma humana
não é algo subsistente”318.
Na resposta em sentido contrário, Tomás tomará novamente a palavra de
Agostinho, para afirmar que a alma é uma substância incorpórea, e portanto subsistente:
[…], diz Agostinho: 'Quem compreende que a natureza da mente é ser
substância e não ser corpo, compreende que se equivocam aqueles que
314
Ibid., pp 29-30.
315
ST, Iª, 75, 2, (Ibid., p. 358).
316
Id., Arg. Ini. 1, (Ibid., p. 358).
317
Id., Arg. Ini. 2, (Ibid., p. 358).
318
Id., Arg. Ini. 3, (Ibid., p. 358).
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opinam ser ela corpo, porque acrescentam a ela as fantasias dos
corpos, sem as quais não se pode pensar em uma natureza'. Logo, a
natureza da alma humana não só é incorpórea, mas também é uma
substância isto é, algo subsistente319.
O corpo da resposta é iniciado afirmando que o princípio de operação da alma
humana é incorpóreo e subsistente, e que alma humana é o intelecto, pelo qual é
permitido ao homem conhecer a natureza de todos os corpos. Este princípio não poderia
conhecer os corpos se tivesse em si a natureza de algum corpo ou se fosse outro órgão
corpóreo, pois a natureza própria deste órgão ou a inerência de alguma natureza lhe
impediria de conhecer outras coisas, como “[…] a língua de um enfermo, biliosa e
amarga, não pode perceber algo doce, pois tudo lhe parece amargo. […]. Cada corpo
tem uma natureza determinada, sendo, […], impossível que o princípio intelectual seja
corpo”320.
Tomás afirma então que este princípio intelectual opera por si e pode ser
chamado mente ou intelecto. Operar é algo possibilitado somente ao ente em ato, que
opera por si quando também subsiste por si, uma vez que algo opera segundo o modo
como é. “[…] Conclui-se, portanto, que a alma humana, que é chamada de mente ou de
intelecto, é incorpórea e subsistente.”321.
Para Pasnau, a afirmação de que o intelecto e alma humana podem ser ditos
como a mesma coisa não está ainda completamente formulado, uma vez que, segundo
este comentador, Tomás argumenta aqui em termos de princípio da operação
intelectiva, e seu argumento repousa inteiramente sobre a natureza do intelecto. Sem
afirmar ainda que o intelecto é uma parte da alma humana, a conclusão tomasiana se
limitaria cuidadosamente ao princípio intelectual, que deve ser considerado incorpóreo
e subsistente. Mesmo convidados a supor que tudo isto é a alma humana, o comentador
afirma que, em termos estritos, ainda não estamos autorizados a essa suposição322.
Vejamos então as respostas aos argumentos iniciais após a afirmação de que a alma é
subsistente:
Ao primeiro argumento em favor da alma não ser subsistente o autor responde
que dois são os modos pelos quais se pode entender alguma coisa: primeiro de um modo
319
Id., Sed contra, (Ibid., p. 358).
320
Id., Respondeo, (Ibid., p. 358-359).
321
Id., Respondeo, (Ibid., p. 359).
PASNAU, 2002a, pp. 225-226 grifos do autor.
322
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mais geral, significando qualquer subsistência; segundo, de maneira mais particular,
significando uma subsistência completa numa natureza específica. O primeiro modo,
mais geral, exclui os acidentes e as formas materiais; o segundo modo, mais específico,
permite também a exclusão da imperfeição da parte. “[…] como a alma humana é uma
parte da espécie humana, ela pode ser dita alguma coisa no primeiro modo, pois desse
modo o composto de alma e corpo se diz alguma coisa.”323.
O segundo argumento em favor da alma não ser subsistente é afirmado por
Tomás como sendo a opinião dos que diziam que conhecer é ser movido. O autor
argumenta que agir por si é próprio daquele que existe por si, e que existir por si pode
significar algo que não é inerente nem como forma material nem como acidente, mesmo
que seja parte. Subsistir por si se diz daquilo que não é inerente segundo o modo citado
mas também não é parte. “[…]. Por isso também as operações das partes são atribuídas
ao todo pelas partes. […]. Pode-se, por isso, dizer que a alma conhece como os olhos
veem, porém é mais próprio dizer que o homem conhece pela alma”324.
Por fim, a resposta ao terceiro argumento inicial em favor da alma não ser
subsistente afirma que o intelecto não deixa de ser subsistente por necessitar do corpo,
pois esta necessidade ocorre em razão do objeto, “[…], pois as representações
imaginárias estão para o intelecto como a cor para a vista. Pelo fato de necessitar do
corpo, o intelecto não deixa de ser subsistente, do contrário, o animal não seria algo
subsistente, pois necessita de objetos exteriores sensíveis para sentir.”325.
Na recapitulação do trajeto apresentado por Tomás em ST, Iª, 75, 2, concluímos
que sua consideração é de que o princípio da alma humana é subsistente e opera por si, e
que este princípio é intelectual, e por isso a alma também pode ser chamada de mente
ou intelecto. Este princípio não pode conter em si a natureza de todos os corpos, pois
assim seria impossibilitada de realizar sua operação que é conhecer. A realização desta
operação necessita do corpo em função do objeto desta operação, que são as
representações imaginárias que estão para o intelecto como a cor para a vista.
De acordo com Pasnau, em ST Iª, 75, 2, Tomás confirma a caracterização dos
seres humanos anunciada desde o prólogo do Tratado, de que estes seriam compostos de
substância espiritual e corporal: a alma humana é uma coisa, o corpo humano, outra.
323
ST, Iª, 75, 2, Ad 1m, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 359).
324
Id., Ad 2m, (Ibid., p. 359-360).
325
Id., Ad 3m, (Ibid., p. 360).
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Esta leitura parece encontrar confirmação neste artigo, quando Tomás afirma que a alma
humana subsiste por si só. Segundo o comentador, a admissão, na resposta ao primeiro
argumento inicial deste artigo, de que a alma seria uma parte da espécie humana, é um
vislumbre da posição tomasiana sobre o tema326: dois sentidos para subsistência são
apresentadas nesta resposta; um sentido fraco, no qual uma subsistência é parte de algo
maior, que é a própria subsistência; e um sentido forte, no qual uma subsistência é parte
de algo que participa de algo maior que é a própria subsistência e tem a natureza
completa de alguma espécie. Pasnau afirma que, com esta adição, Tomás exclui a
possibilidade de algo que possa subsistir no sentido fraco e ainda ser uma parte de uma
substância completa. Em se tratando da natureza humana, a alma humana, por si só, é
parte de um homem, pois um membro completo da espécie humana deve ter corpo e
alma327.
Obtemos também em ST I ª, 75, 2, uma caracterização do intelecto: Pasnau
afirma que Tomás oferece duas variações sobre um mesmo argumento para mostrar que
(a) o intelecto não é um corpo e (b) a sua operação não se dá por um órgão do corpo.
Cada variação repousa sobre a premissa inicial do corpo da resposta, em versões
intimamente relacionadas a uma segunda premissa: o que pode ter intelecção de certa
coisas não deve ter nada dessa coisa em sua própria natureza, pois mesmo a natureza
determinada de um órgão do corpo humano impediria a cognição de todos os corpos. A
partir dessas premissas, Tomás conclui pela a impossibilidade de o princípio intelectual
ser um corpo e, consequentemente, ser impossível inteligir através de um órgão do
corpo humano. Neste sentido, a comparação entre o intelecto e o sentido é instrutiva; a
visão, como os outros sentidos, é especializado, projetado para detectar apenas uma
parte do mundo físico: as cores. Os órgão responsáveis pela visão refletem essa
especialização: a parte interna do olho não tem cor, porque uma cor interfere na
capacidade do olho de perceber todas as cores. O intelecto, porém, não é especializada
como os sentidos, pois se detém sobre as impressões recebidas através de todos os
sentidos corporais. Cada um dos sentidos tem sua especialidade de aplicação, mas o
intelecto é capaz de refletir sobre o mundo dos sentidos em todas as suas
modalidades328.
326
PASNAU, 2002b, pp. 45-46, grifos do autor.
327
Ibid., p. 49.
328
Ibid., pp. 52-54, grifos do autor.
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Organizemos agora as conclusões de ST, Iª, 75, 1 e ST, Iª, 75, 2, para
finalizarmos:
Os argumentos iniciais de ST, Iª, 75, 1, apresentam as considerações que serão
interpretadas e analisadas por Tomás, e que darão o sentido a toda a argumentação
subsequente: A alma é apresentada como um motor movido (primeiro argumento
inicial), que pode conhecer o corpóreo (segundo argumento inicial) e que está em
contato com o corpo movido (terceiro argumento inicial).
Em ST, Iª, 75, 2, a preocupação de Tomás é a de afirmar a subsistência da alma
humana, e para isso ele terá de considerar que ela é algo (primeiro argumento inicial),
que ela tem uma operação (segundo argumento inicial) e que esta operação ocorre sem o
corpo (terceiro argumento inicial).
Agostinho será elencado em ambos os artigos, para afirmar, contra as respostas
iniciais, que a alma não é um corpo329 e que a alma é algo subsistente330.
No corpo da resposta de ST, Iª, 75, 1, Tomás afirma que a alma não é qualquer
princípio de vida, mas o primeiro princípio vital, o ato incorpóreo do corpo, e que duas
são as manifestações da vida: o movimento e o conhecimento. É na consideração sobre
o conhecimento que está o apoio da tese tomasiana sobre a natureza humana, como
podemos observar pela argumentação do corpo da resposta de ST, Iª, 75, 2, que afirma
que o primeiro princípio da alma humana, incorpóreo e subsistente, é dotado de uma
operação que é o conhecimento dos corpóreos, e que por isso a alma humana pode ser
chamada também intelecto. Este princípio é afirmado como um operador por si, que é a
característica daquilo que é subsistente.
Na resposta ao primeiro argumento inicial de ST, Iª, 75, 1, em favor da alma ser
um corpo, apoiado sobre a relação entre o motor e o movido, Tomás afirma que esta
relação não pode ser levada ao infinito, e admite que nem tudo o que move é movido. O
autor considera que ser movido é passar de potência ao ato, quando o que move
transmite ao movido o que tem. Ao afirmar três tipos de motores (um totalmente
imóvel, que não se move nem por si nem acidentalmente, mas transmite ao movido um
movimento uniforme; outro que não é movido por si, mas sim por acidente, o que faz
com não transmita ao movido um movimento uniforme; por fim, aquele motor que se
329
ST, Iª, 75, 1, Sed contra, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 356).
330
Id., 2, Sed contra, (Ibid., p. 358).
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move por si) afirma que o corpo é movido por si331, mas como? A resposta ao terceiro
argumento inicial deste artigo afirma a possibilidade de ocorrência de um contato de
virtude, pela qual algo incorpóreo pode mover o corpóreo332, que garante a formulação
apresentada no corpo da resposta, de que a alma é o primeiro princípio de vida do
corpo333, que o toca por um contato de virtude, mas não explica porque o corpo pode
ser considerado um motor que move a si mesmo.
Para tal, devemos atentar para a resposta ao primeiro argumento de ST, Iª, 75, 2,
no qual o autor afirma dois modos pelos quais se pode entender algo: de modo geral,
que significa qualquer subsistência; ou modo particular, que significa uma subsistência
completa numa natureza específica. A alma humana pode ser dita algo no primeiro
modo, pois desse modo o composto de alma e corpo se diz algo334. Ora, por composto
pode se entender o corpo humano vivo, uma vez que ele é o ente em ato que pode
realizar a operação de conhecer, e pelo qual Tomás afirmou, no corpo da resposta deste
artigo que a alma é algo subsistente, pois opera por si só335. É por esta chave de
entendimento que o segundo argumento inicial deste artigo é respondido, pelo
afirmação de que agir por si é próprio daquele que existe por si; existir por si pode
significar algo que não é inerente, mas é parte, mas subsistir por si se diz daquilo que
também não é parte, e por isso as operações das partes são atribuídas ao todo pelas
partes336. A operação da alma é a operação do composto, e por isso se pode dizer que
que este composto é um motor que move a si mesmo, pois opera por si. O corpo não
pode ser entendido em separado pois deste modo não está unido a seu primeiro
princípio, que lhe dá existência e propósito.
Destacamos por fim a resposta ao segundo argumento inicial de ST, Iª, 75, 1, que
afirma a não necessidade de ocorrência na alma da semelhança em ato da natureza dos
corpóreos para que haja o conhecimento, e sim em potência337, que se conecta às
respostas aos segundo e terceiro argumento inicial de ST, Iª, 75, 2, que afirmam,
331
Id., 1, Ad 1m, (Ibid., p. 357).
332
Id., Ad 3m, (Ibid., p. 357).
333
Id., Respondeo, (Ibid., p. 357 grifo do autor).
334
Id., 2, Ad 1m, (Ibid., p. 359 grifo nosso).
335
Id., Respondeo, (Ibid., p. 359).
336
Id., Ad 2m, (Ibid., p. 359-360).
337
Id., 1, Ad 2m. (Ibid., p. 357).
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respectivamente, que a operação da alma humana é o conhecimento338, e que o objeto
desta operação são as representações imaginárias dos corpos339. Estas teses serão
desenvolvidas no decorrer do tratado sobre a natureza humana, tendo em vista a
consideração apontada sobre o homem ser um composto de alma e corpo, além do papel
do corpo como objeto da operação intelectual através de suas representações
imaginárias.
Bibliografia
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338
Id., 2, Ad 2m. (Ibid., p. 357).
339
Id., Ad 3m. (Ibid., p. 357).
ISSN 2177-0417
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Natureza humana e teoria do conhecimento em Tomás de Aquino