A FORMAÇÃO DE UM DELTA EM 700 ANOS André TORRES Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa Email: [email protected] PALAVRAS-CHAVE Rio IJssel, delta, interacção fluvio-marinha, Holanda RESUMO O delta do Rio IJssel desenvolveu-se durante 700 anos, revelando uma rápida evolução do sistema deltaico e uma morfodinâmica complexa. Neste trabalho foram utilizados dados de sondagens para construir perfis litoestratigráficos tranversais à progradação deltaica e um mapa geomorfogenético de forma a observar as grandes unidades da arquitectura sedimentar do delta. Com base nestes dados foi possível reconstruir um modelo de evolução deltaica, identificando os principais factores envolvidos na sua dinâmica. KEYWORDS River IJssel, delta, fluvio-marine interaction, the Netherlands ABSTRACT The IJssel delta formed in a short period of 700 years, showing a fast evolution and complex morphodynamics. This research used borehole data to build litostratigraphic profiles transversal to the delta progradation and a geomorphogenetic map. The methodology employed made it possible to construct a delta evolution model while identifying the main factors behind the system changes. 1. ENQUADRAMENTO TEMÁTICO E REGIONAL O estudo da evolução morfodinâmica de um delta constitui um instrumento fundamental para o ordenamento do território litoral e para o conhecimento e controlo da dinâmica da água, especialmente no caso da Holanda, país com elevada pressão antropogénica, em que grande parte da planície deltaica se situa abaixo do nível do mar. A detecção do tipo de sedimentos que constroem a planície deltaica é particularmente importante, porque estes: (i) controlam o nível e fluxo da toalha freática; (ii) afectam a construção de infra-estruturas, cujas fundações devem atingir as areias plistocénicas para permitirem construções estáveis, e cuja profundidade de ocorrência deve ser a menor possível para diminuir os custos das obras. 1 Outro aspecto relevante é o estudo e reconstituição temporal das avulsões e do rápido abandono total ou parcial de canais. As consequências na dinâmica fluvial, deltaica e litoral são controladas pela distribuição de sedimentos e pelos caudais, nomeadamente o intervalo de recorrência de canais, a sua densidade e interconectividade. Os estudos de geomorfologia deltaica constituem também uma ferramenta para o controlo de cheias e para a prospecção de recursos naturais. O Rio IJssel é um afluente do Reno com cerca de 125 km de comprimento e controla 1/9 do seu caudal. No seu extremo distal forma um sistema deltaico de pelo menos 6 km, entre a povoação de Kampen até ao Lago IJssel (Fig.1). Este rio é relativamente recente, datando do período Romano, tendo desde então construído um pequeno delta (actualmente com cerca de 3.000 ha), com 6 canais deltaicos, dos quais apenas dois estão actualmente activos (Ganzendiep e Goot). Fig. 1 - Modelo digital de elevação do terreno (LIDAR) do IJsseldelta e área adjacente (Rijkswaterstaat-AGI, 2005). 2. OBJECTIVOS DA INVESTIGAÇÃO A reconstrução evolutiva do delta do IJssel e dos processos mareais e fluviais intervenientes constituem os objectivos da investigação, em que se incluem as flutuações do nível do mar, os níveis da água subterrânea e deposição de sedimentos ao longo do tempo. 2 As questões de partida são: (i) Quais e como os processos marinhos e fluviais são responsáveis pela construção do delta e como são reconhecidos nos depósitos? (ii) Como evolui o delta do IJssel no Holocénico superior? (iii) Existirão indicadores de variações de caudal do Rio IJssel? Para responder a estas questões a investigação baseou-se nos eguintes tópicos: (i) estudo das características sedimentares e idade dos depósitos subsuperficiais distais e proximais do delta, (ii) reconstituição da arquitectura deltaica e sua evolução ao longo do tempo; (iii) a história das avulsões, respectivas localizações e parâmetros identificadores. 3. MÉTODOS DE ABORDAGEM 3.1. AMOSTRAGEM SEDIMENTAR E DESCRIÇÃO DE SONDAGENS Foram utilizados dados provenientes de um extenso banco de sondagens existente na Universidade de Utreque, no ano de 2007. Estas foram de dois tipos: manuais, com amostradores Edelman e de sucção Van der Staay (para areias e cascalho fino abaixo da toalha freática, até à profundidade de 15m). As sondagens foram feitas com uma grelha de 100 metros, até à máxima profundidade possível (depósitos plistocénicos), de forma a construir perfis litológicos prédefinidos. Os materiais foram descritos de acordo com Berendsen & Stouthamer (2001), De Bakker & Schelling (1966) e Verbraeck (1984). Os parâmetros de caracterização, distribuição e localização dos sedimentos foram: a textura, a profundidade, o calibre, a cor, o teor em Ca e Fe, a presença de cascalho e de matéria orgânica; a profundidade da toalha freática. A amostragem permite avaliar a distribuição vertical e lateral dos vários tipos de depósitos, bem como a sua geometria no espaço, aspecto fundamental para a reconstrução do delta. Adicionalmente à base de dados original, foram realizadas sondagens (Torres, 2010) com a mesma metodologia, para completar informação em falta e permitir reconstituir a arquitectura do delta. 3.2. UNIDADES LITO-ESTRATIGRÁFICAS E CLASSIFICAÇÃO GEOMORFOLÓGICA Os depósitos foram agrupados em unidades lito-estratigráficas, de acordo com a sua composição litológica e elementos arquitecturais (fácies, definida pelo calibre, estrutura sedimentar dos depósitos, sequência interna e geometria externa), de acordo com Berendsen (1982). A classificação geomorfogenética utilizada no mapa geomorfológico baseia-se nas unidades descritas por Berendsen (1982), posteriormente complementadas e melhoradas. Esta classificação fundamenta-se na génese das meso e microformas formas de relevo presentes, bem como nos seus factores morfogenéticos. Foi também considerada a idade dos depósitos e das unidades morfológicas, de acordo com Berendsen & Stouthamer, 2001. Foi particularmente relevante o estrutura litológica dos primeiros 200 cm devido à sua correspondência directa com as formas de relevo actuais. 3 3.3. OS DADOS HISTÓRICOS Os arquivos históricos são variados, mas de grande valia para estudos deste tipo. Foram utilizados mapas antigos e vários documentos escritos, incluindo registos de navegação e trabalhos de engenharia que permitiram identificar os canais activos, ajudando a reconstruir as idades dos vários componentes do sistema fluvial. A idade das ocupações humanas, nomeadamente instalação de quintas, é muito importante porque permite identificar os pontos mais elevados do delta e não inundáveis. Informação relevante provém igualmente da data de construção dos diques artificiais e de episódios de grande temporal. 4. PERFIS TRANSVERSAIS A informação das várias sondagens permitiu definir as unidades litoestratigráficas, tendo sido construídos quatro perfis transversais à planície deltaica. A correlação inter-sondagens foi estabelecida traçando os limites de cada unidade litoestratigráfica e tendo em conta as características sedimentares disponíveis, o ambiente de deposição e o intervalo temporal relativo de deposição. 5. O MAPA GEOMORFOLÓGICO Os processos fluviais dominam no apex do delta. Os depósitos derivados da progradação do Rio IJssel e seus canais deltaicos dominam as secções superiores do perfil litogenético. Neste sector há vários canais residuais (Fs7 and Fs8), assim como o Gazendiep (ainda activo) e o Noorderdiep (inactivo, mas inundado (Fs9; Fig. 2). Na secção intermédia, os depósitos de acreção lateral, diques naturais e depósitos de barra de meandro (Fs1), localizam-se junto de canais mais antigos, delimitando depósitos de bacia de sedimentação (Fk), nas áreas mais deprimidas. Existem depósitos de barras de desembocadura de canal (Fs3) nos locais onde se observa uma concordância entre a deposição intra-canal e divergência de escoamento. A influência fluvial é limitada por cordões frontais (Lw), que se comportam como colinas que dominam a paisagem deltaica com uma inclinação da superfície topográfica para sul. Há evidências de depósitos de sapal (Lk1, LK2 e Lk3) junto aos cordões frontais e, nos extremos ocidental e nordeste de Kampereiland; os depósitos marinhos penetraram mais para o interior através das áreas deprimidas e canais residuais, entre os cordões frontais, alcançando a área da bacia de sedimentação (Lk3). Nesta área, os canais residuais estão assoreados pelos sedimentos mareais, depositados por acção da maré. Na face exterior dos cordões frontais, os depósitos superiores reflectem um ambiente lagunar, testemunhado por argilas marinhas depositadas pelas marés num ambiente muito calmo de águas pouco profundas (Lk1 e Lk2). Uma das constatações evidenciadas pelo mapa é a da tendência de migração dos pré-canais do IJssel para oriente. Tal facto poderá resultar quer da dominância dos ventos e temporais de oeste, frequentemente de elevada intensidade, quer do desenvolvimento de barras de desembocadura dos canais difluentes e de cordões frontais, criando colinas relativamente elevadas e induzindo a difluência dos canais para oriente, onde o declive era mais favorável. 4 6. GÉNESE E EVOLUÇÃO DO DELTA O delta do IJssel formou-se num curto período de tempo, com um intervalo temporal de apenas 700 anos entre o início da sua progradação e a sua extensão máxima. O início da sua formação está balizado em 1000 AD, quando o caudal do IJssel aumentou substancialmente devido à avulsão parcial do Reno que ocorreu entre 600 AD e 950 AD (Makaske et al. 2008), tendo sido registado um acréscimo no acarreio de sedimentos, incluindo depósitos grosseiros e mais arenosos do que previamente. Fig. 2 – Mapa geomorfogenético do IJsseldelta e localização dos perfis transversais. O cartão no canto superior direito da figura mostra um modelo que ilustra a separação entre as planícies deltaicas proximal e distal. Durante os sec. XIII e XIV, o volume de sedimentos arenosos da frente deltaica depositou-se no topo dos sedimentos do pro-delta na área de Kampereiland (Fig. 1), à medida que o delta do IJssel progradava do apex, junto à cidade de Kampen, para norte. Em cerca de 1400 AD, a linha de costa situava-se aproximadamente a meia distância entre Kampen e o extremo distal do delta, tendo-se formado barras de acreção lateral ao longo dos canais, usadas depois para instalações humanas. O interface entre os processos fluviais e marinhos iniciou-se com a construção de cordões frontais que constituíam então os pontos dominantes da planície deltaica. Nas áreas ocidentais e nordeste, durante as marés cheias, a água 5 salgada penetra na planície através das barras entre os cordões frontais, criando sapais ao abrigo das ilhas. Do outro lado das ilhas, depositavam-se as argilas marinhas. Depois do séc. XV e especialmente depois do séc. XVII, o Rio IJssel perdeu relevância na sedimentação e progradação do delta, que passou a ser muito mais lenta. Em 1700 AD, o delta estava formado, tendo atingido a sua máxima extensão, a área interior aos cordões frontais deixou de ser atingida pelas marés, excepto durante eventos de grande temporal, tornando-se numa planície deltaica subaérea. Nas áreas exteriores, desenvolveram-se bancos de areia na desembocadura dos canais deltaicos e depósitos marinhos finos colmataram as depressões topográficas, assoreando canais abandonados. Com a construção do Canal Pannendens em 1707, a cerca de 140 km a montante do apex do delta, o Rio IJssel perdeu uma parte substancial do seu caudal e deixou de haver uma dinâmica deltaica na área. Vários diques foram construídos durante o século XIX para proteger Kampereiland da acção do mar. Em 1932, com a construção do Dique de Fecho (Afsluitdijk em neerlandês), a influência marinha deixou de atingir a área do delta do IJssel. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O delta do IJssel foi condicionado na sua localização pelo relevo plistocénico herdado e na sua evolução por alterações no gradiente do prisma deltaico, flutuações de caudal e fornecimento de sedimentos por parte do Rio IJssel. Na arquitectura sedimentar do delta do IJssel foi possível distinguir depósitos pertencentes ao pró-delta, frente deltaica e planície deltaica. A área subaérea do delta foi subdividida em planície deltaica proximal, na qual os processos fluviais foram determinantes e com uma geomorfologia e estrutura dos sedimentos de carácter marcadamente fluvial; e planície deltaica distal que representa o interface fluvio-marinho e o limite máxima da actuação dos processos fluviais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bakker H, Schelling J (1966) Systeem van Bodemclassificatie voor Nederland. Wageningen, Pudoc. Berendsen H J A (1982) De genese van het landschap in het zuiden van de provincie Utrecht, een fysisch-geografische studie. Ph.D. Thesis (with summary in English), Utrechtse Geografische Studies 10, 256 p. Berendsen H J A, Stouthamer E (2001) Palaeogeographic development of the Rhine-Meuse delta, the Netherlands. Assen: Koninklijke Van Gorcum, 268 pp. 3 enclosures and a CD-ROM. Makaske B, Maas G J, van Smeerdijk DG (2008) The age and origin of the Gelderse IJssel. Netherlands Journal of Geosciences / Geologie en Mijnbouw, 76(4): 323-337. Torres A (2010) Holocene Evolution of the IJsseldelta. MSc. Thesis. Department of Physical Geography. Utrecht University. Verbraeck A (1984) Toelichtingen bij de Geologische kaart van Nederland, schaal 1:50.000, bladen Tiel West (39W) en Tiel Oost (39O). Haarlem, Rijks Geologische Dienst. 6