Periscópio – Boletim eletrônico da Fundação Perseu Abramo e
Secretaria Nacional de Formação Política do PT
Edição nº17
São Paulo, junho de 2002
Por que Fernando Henrique
não estabilizou a economia brasileira
A liderança de Lula nas pesquisas e um novo clima de opinião pública
criam condições políticas muito favoráveis para repensar o tema da estabilidade,
da economia do setor público e da soberania nacional através de um novo paradigma.
Em um programa de entrevistas na Rede Cultura, José Serra elegeu os três maiores presidentes
do país e explicou as suas razões: Vargas, por ter criado a indústria siderúrgica; Juscelino, por ter
assentado as primeiras bases da indústria automobilística e Fernando Henrique, por ter
conquistado a estabilidade.
Há, pelo menos, cinco evidências fortes de que a "Era FHC", apesar de ter controlado a dinâmica
inflacionária, levou o país a patamares inéditos de instabilidade econômica na sua história. Mas
mesmo o sucesso no controle da inflação é bem mais relativo do que sugere a propaganda oficial.
Desde os anos 90, a inflação caiu praticamente no mundo inteiro. Como lembra o economista
Paulo Nogueira Júnior, “na verdade, a inflação brasileira de 10% pelo INPC nos últimos doze
meses até janeiro deste ano é bastante superior à inflação ao consumidor na grande maioria dos
“mercados emergentes” nesse período. Num conjunto de 25 mercados, só há um caso de inflação
alta, a Turquia (73% em doze meses até janeiro) e mais quatro com taxas de inflação superior à
brasileira; a Rússia (19%), a Indonésia (14%), a Venezuela (12%) e a Argentina (38% de inflação
anualizada no bimestre janeiro/fevereiro). Todos os demais “mercados emergentes” têm inflação
inferior, em geral bastante inferior, a do Brasil”. (Folha de São Paulo, 7 de março de 2002).
A primeira evidência é o próprio Real, a “moeda forte”, do “Primeiro Mundo”, como se dizia nos
primeiros anos do governo FHC. Do valor artificialmente valorizado, próximo a um dólar, a moeda
brasileira sofreu uma desvalorização de mais de 250%.
A segunda evidência está nas contas externas brasileiras. A balança comercial acumulou um
déficit nos últimos oito anos da ordem de 202 bilhões de dólares. O Brasil na "Era FHC" acumulou
um passivo de obrigações em moeda estrangeira da ordem de 419 bilhões de dólares. Para fechar
a balança de pagamentos este ano, deve obter de 47 a 50 bilhões de dólares em investimentos e
financiamentos externos. O que equivale ao esforço de captar um bilhão de dólares por semana.
Em terceiro lugar, apesar de toda a propaganda sobre responsabilidade fiscal, hoje a dívida bruta
do governo nos três níveis - federal, estadual e municipal - é da ordem de 73% do PIB, segundo
dados do Banco Central. O estoque de títulos federais (excluindo papéis na carteira do Banco
Central) aumentou de 62 bilhões de reais (12% do PIB) no início do primeiro mandato de FHC
para mais de 635 bilhões de reais (51,2% do PIB) em janeiro de 2002. Desse total, 53%
correspondem a papéis referenciados à taxa de juros “over night” e 29% a papéis dolarizados.
Assim, sempre que os juros sobem ou o real deprecia, a dívida pública aumenta.
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O economista Paul Singer lembra, por sua vez, que a vulnerabilidade externa do país tornou-o
extremamente sensível às várias crises que abalaram o mercado internacional, seja na Ásia
(Tailândia em julho de 1997 e a Coréia do Sul em outubro de 1997), na América Latina (México
em março de 1995 e Argentina em março de 2001), além da crise russa de setembro de 1998.
Uma quinta evidência, enfim, é o monitoramento do FMI. O governo Fernando Henrique bateu
todos os recordes no tempo de submissão aos protocolos do FMI. Aliás, a avaliação desta
instituição, segundo matéria do jornal Valor Econômico de 19 de abril, é que o Brasil continua
bastante vulnerável a crises externas. Segundo o analista Celso Pinto, é corrente em vários
analistas de New York a opinião de que não são pequenas as chances de o Brasil ter, no mínimo,
de reestruturar a sua dívida interna.
Alternativas de política econômica
A especificidade do caso brasileiro é a mútua configuração entre o déficit na balança de
pagamentos e o déficit fiscal. Isto é, para fazer frente às obrigações externas em dólares, o
governo se endivida, vendendo títulos; o aumento da dívida pública, por sua vez, aumenta a
necessidade de captar dólares.
O elo de comunicação entre os dois déficits é a taxa de juros interna, que institucionalmente
incorpora o Risco Brasil. Entre 23 economias “emergentes”, só a Venezuela pratica juros
superiores aos do Brasil. A taxa de juros real de curto prazo (taxa nominal menos a inflação dos
doze últimos meses) é de 9,7%. A média para as 22 economias é de 2,9%. Nos EUA, é de 0,2%;
na Europa, de 1,1%; no Japão, de 1,1%. A taxa de juros real, mais ou menos equivalente ao
custo de captação dos bancos, equivale a 1/3 da taxa média cobrada pelo sistema financeiro. As
empresas têm pago mais de 40% em taxas nominais por crédito de cerca de 180 dias de prazo;
pessoas físicas, aproximadamente 70% para operações de 314 dias.
Este impasse tem levado economistas do PSDB e da oposição a diferentes propostas de manejo
das variáveis econômicas.
A proposta formulada por Bresser Pereira e Nakano propõe conjugar uma redução brusca da taxa
de juros com uma desvalorização da moeda em torno de três reais, igual a um dólar, com a
geração de superávites fiscais crescentes. A desvalorização do real aliada a um esforço exportador
diminuiria a vulnerabilidade externa; maiores superávites fiscais permitiriam a redução da taxa de
risco do país.
A posição exposta pelo economista Guido Mantega é de que a redução brusca da taxa de juros
numa economia aberta e com reservas escassas, poderia levar à argentinização do país. Propõe,
alternativamente, uma política de diminuição gradual dos juros, combinada com um esforço
agressivo de substituição de importações e um novo dinamismo econômico assentado em setores
de grande prioridade popular e pequena dependência de importações como habitação popular e
saneamento.
O economista Paulo Nogueira Batista Júnior, por sua vez, propõe a introdução de títulos federais,
de prazo superior a um ano, indexados a índices de preço ao consumidor. Seria uma maneira de
estimular um alongamento voluntário da dívida mobiliária e melhorar o seu perfil, reduzindo a
vulnerabilidade das finanças públicas frente às flutuações dos juros e da taxa de câmbio.
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Fundamentos da regulação
Mais do que a discussão das alternativas técnicas macroeconômicas, o debate sobre a superação
da instabilidade crônica e do impasse da economia brasileira parece reivindicar o exame dos
próprios fundamentos através dos quais o Estado organiza e regula a dinâmica financeira. Não é,
deste ponto de vista, desprezível o fato de que até a revista Veja, mesmo no tom conservador que
lhe é característico, tenha em sua edição de 29 de maio estampado em sua capa: “Globalização:
há o que comemorar?” A longa matéria confronta o sucesso de países como a China e a Índia com
as dificuldades do Brasil e o desastre argentino. E termina, abrindo suas páginas para o
economista neokeynesiano, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz.
O que a reportagem da revista não diz é que nem a China nem a Índia pautaram as suas relações
com o mercado financeiro pelo receituário neoliberal. Isto é, ambas fizeram exatamente o inverso:
controlaram o câmbio e alicerçaram o seu crescimento principalmente em poupança interna,
atraindo investimentos externos a partir de uma base econômica mais sólida.
A liberalização financeira é o núcleo do receituário neoliberal. As políticas financeiras dominantes
nas décadas de 80 e 90 tiveram por fundamentação os trabalhos de Edward Shaw (1973) e
Ronald Mckinnon (1978), que criticavam a política de desenvolvimento econômico centrada na
intervenção do Estado. A liberalização financeira seria o caminho para elevar a taxa de poupança
interna e externa da economia, gerando mais investimentos e crescimento econômico.
O balanço da adoção destas políticas foi diverso nos países capitalistas centrais e nos chamados
em desenvolvimento. Nestes últimos, não houve em geral uma expansão do segmento primário do
mercado de capitais. Nas correntes de inspiração keynesiana já há toda uma literatura crítica aos
modelos neoliberais de liberalização financeira. Incertezas, falhas no mercado (informações
assimétricas, rigidez de preços etc), bem como limites estruturais dos países em desenvolvimento
(elevada propensão a consumir, decorrente do baixo nível de renda e dependência externa em
relação a bens e capital), justificariam para estes autores uma atuação fortemente reguladora e
mesmo a intervenção direta do governo.
O caso brasileiro é um exemplo notável do desastre macroeconômico gerado pela liberalização
financeira. Após o fim da hiperinflação, no início do Plano Real, o governo brasileiro montou dois
grandes mercados para os grandes capitalistas: o das privatizações e o dos títulos públicos. Este
último tem sido o mais importante.
É através dele que os bancos brasileiros ampliaram seus lucros na década de noventa. De acordo
com fontes do Banco Central, de 1994 a 2001 houve um aumento real de 56,5% das receitas dos
20 maiores bancos que atuam no Brasil com investimentos em títulos públicos. Hoje, 41,1% dos
lucros dos bancos vêm daí.
O retorno às modalidades de regulação do sistema financeiro e de controle cambial afetam, pois,
interesses com forte poder de vocalização e pressão econômica. Como afirma o documento
“Concepção e diretrizes do programa de governo do PT para o Brasil - Lula 2002”, em seu item
68: “Os grandes rentistas e especuladores serão atingidos diretamente pelas políticas
distributivistas e, nessas condições, não se beneficiarão do novo contrato social e serão
penalizados.”
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Há hoje uma legitimidade pública para a elaboração de um novo paradigma que permita o
controle cambial, a regulação financeira e a reorganização institucional dos instrumentos de
poupança interna. Fortalecer esta legitimidade pública é a melhor defesa contra os que especulam
com o destino dos brasileiros.
O Risco Brasil e a tragédia Argentina
Razões de ordem histórico-estrutural e a diferença de tempos e modelos de
liberalização financeira aqui adotados protegem o Brasil da possibilidade de viver
a mesma tragédia argentina. Mas a principal diferença do Brasil com o país vizinho
é a força política da resistência e alternativa ao paradigma neoliberal.
Como uma senha, a idéia de que uma possível vitória de Lula poderia trazer para cá a tragédia
argentina passou da boca do publicitário Nizan Guanaes para o candidato Serra, do ex-ministro
Mendonça de Barros (que chegou a formular, com elegância, uma teoria do looping, de uma
espiral para baixo, da correlação entre o crescimento de Lula nas pesquisas e o desarranjo
financeiro do país) ao historiador Boris Fausto (que afirmou em sua coluna na Folha de São Paulo,
de forma mais crua, “ é preciso dar nome aos bois”) até chegar solene à fala presidencial. Sem
mais credibilidade para anunciar um novo Brasil, o PSDB ameaça os que pretendem com a
imagem do caos lhe negar o voto.
Há aqui não improviso, mas antecipação. Como se afirmou no artigo “Os direitos republicanos
contra a financeirização” (Periscópio número 15), de acordo com a informação da colunista
Cristina Fernandes, do jornal Valor Econômico, a ameaça do Risco Brasil era vista no comando do
PSDB como a principal arma da candidatura Serra na véspera das eleições para estimular a
rejeição de candidatos oposicionistas nos grandes centros urbanos do país. Com o crescimento de
Lula nas pesquisas, a chantagem política foi antecipada.
Tanta irresponsabilidade governativa - especular com os destinos do país por cálculo eleitoral - foi
anotada pelo colunista Valdo Cruz (Folha de São Paulo, 26 de maio): “empresários e diplomatas
que chegaram da Europa nos últimos dias trouxeram na bagagem relatos do velho continente que
deveriam merecem um pouco de atenção do governo FHC. Versam sobre o discurso preferido do
momento: o risco de argentinização do Brasil. (...) FHC, Malan, Armínio, José Serra e seus
asseclas estão repetindo com tanto fervor que o Brasil pode se transformar na Argentina que,
entre empresários e acadêmicos europeus, cresce a sensação de que estamos bem perto do caos
do vizinho”. O recado foi ouvido: em nova viagem à Europa, Fernando Henrique Cardoso declarou
que nenhum dos candidatos tem propostas radicais e que as próximas eleições vão consolidar a
democracia brasileira.
Mas, para além dos cálculos eleitorais, é preciso desmistificar a peça dramática do PSDB. O Brasil
tem diferenças histórico-estruturais com a Argentina, seu tempo e modelo de liberalização
financeira foi outro e, mais importante, é profundamente diverso o seu cenário de alternativas
políticas.
As profundas diferenças histórico estruturais entre o Brasil e a Argentina foram tratadas por esta
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publicação nos artigos “Poder e dinheiro” (Periscópio número 3, abril de 2001) e “Argentina: a
soberania popular reivindica seus direitos” (Periscópio número 13, janeiro/fevereiro de 2002). A
Argentina não viveu no século XX um ciclo propriamente nacional-desenvolvimentista (o
peronismo não deixou, como a Era Vargas, um legado industrializante), o seu regime militar foi
mais repressivo e regressivo e, ao contrário do Brasil, não praticou um projeto de modernização
conservadora. Por fim, o paradigma neoliberal foi adotado lá por todo um período histórico de
modo mais profundo, corrompendo o seu sistema político e partidário, sem as mesmas
resistências que no caso brasileiro. Estas derrotas históricas, o nítido sentimento de decadência
que acompanha a nação argentina na segunda metade do século XX, afloram no momento da
crise mais dramática.
As reservas econômicas, políticas, sociais e morais de esperança do país foram sendo dilapidadas
e nas manifestações que há meses agitam diariamente o país há mais revolta e angústia do que
uma alternativa clara de futuro. No dia 29 de maio, o governo de Duhalde teve contra si uma nova
greve geral, que paralisou Buenos Aires, exigindo eleições gerais e o fim das negociações com o
FMI.
O modelo argentino de liberalização
O excelente ensaio da professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Jennifer Hermann, “A experiência argentina de liberalização financeira nos anos 1990:
uma análise crítica”, publicada na revista Economia Aplicada de junho de 2001, ajuda a
compreender os caminhos que levaram à tragédia hoje vivida pelo país.
As reformas financeiras recentes nos países desenvolvidos e em desenvolvimento têm seguido três
princípios: a desregulamentação, gradual eliminação das barreiras legais à atuação de bancos e
outras instituições financeiras em diversos segmentos do mercado doméstico e internacional; a
desintermediação financeira associada à securitização, através da qual o crédito bancário
tradicional é parcialmente substituído por sofisticadas operações de financiamento direto,
passando os bancos a atuarem como corretores e market makers no mercado de capitais;
ampliação do grau de abertura financeira, em especial para a entrada de instituições estrangeiras
no sistema financeiro doméstico.
Segundo estes princípios, a Argentina de fato passou por dois processos de liberalização
financeira. O primeiro deles, entre 1977/ 1982, ainda no regime militar, através da Lei das
Entidades Financeiras, que desregulamentou o setor, sendo seguida por reformas complementares
que permitiam a livre entrada de capitais externos no país. O sistema financeiro argentino, após
um período de forte expansão do crédito doméstico e da captação externa, viveu uma grave crise
de liquidez entre 1979-1982. A crise da dívida latino-americana, inaugurada pela moratória
mexicana em setembro do mesmo ano, completou o quadro. Sem contar com um sistema de
indexação dos ativos, como desenvolvido no Brasil, a Argentina viveu entre 1989 e 1990 uma
hiperinflação, acompanhada de fuga em massa de moeda local e dolarização informal.
A segunda experiência de liberalização financeira na Argentina foi levada adiante pelo primeiro
governo Menen, entre 1989 e 1994. Entre as novas medidas figuravam: a Lei de Reforma do
Estado (privatização, inclusive de bancos nacionais e provinciais), a Lei de Conversibilidade
(fixando a taxa de câmbio na paridade de 1 austral, depois peso, 1 dólar) e a nova Carta Orgânica
do Banco Central da República Argentina, definindo-o como autoridade monetária independente,
vetando sua atuação como financiador do Tesouro Nacional e restringindo a limites estreitos seu
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papel de emprestador de última instância para o sistema bancário. Sob condições favoráveis no
plano institucional e externo, o sistema financeiro argentino experimentou um forte período de
recuperação na primeira metade dos anos 90.
O curto boom de crescimento argentino, no entanto, levou a uma forte deterioração da conta
corrente do balanço de pagamentos do país, cujo saldo desabou de um superávit de 4,5 bilhões de
dólares em 1990 para um déficit de 5,5 bilhões de dólares em 1992. Desde então, o regime
cambial argentino passou a viver sob o risco permanente de ataques especulativos.
O Risco Argentina, ao longo da década de noventa, foi sendo internalizado sob duas dinâmicas
casadas e altamente explosivas. Em primeiro lugar, a desnacionalização do sistema financeiro: já
em setembro de 1998, entre os dez maiores bancos privados, sete eram de capital estrangeiro.
Em segundo lugar, o elevado grau de dolarização, especialmente dos depósitos bancários, do
público que buscava proteção na moeda estrangeira. Nos últimos anos, a desnacionalização do
sistema bancário passou a ser a principal “âncora” da estabilidade financeira argentina.
Assim, quando a crise ganhou contornos explosivos, o crash bancário combinou-se com a fuga de
capitais e a fechamento de bancos estrangeiros.
A diferença Brasil
Jennifer Hermann contrasta o caso brasileiro com o argentino em três aspectos essenciais. Em
primeiro lugar, no Brasil, o processo de liberalização e, particularmente, de abertura financeira foi
muito mais lento. Até meados de 2000, apenas as aplicações de investidores institucionais em
ativos negociados no mercado brasileiro tinham sido parcialmente liberadas: eram permitidas,
mas controladas por registros e autorizações (os Anexos I a VI da Resolução 1289 do Banco
Central) que, na prática, limitavam a mobilidade dos recursos entre os mercados de renda fixa e
variável, bem como entre o mercado brasileiro e internacional. A abertura do mercado à entrada
de bancos estrangeiros é também recente, vem sendo incentivada a partir de 19997, não estando,
porém, ainda regulamentada.
Em segundo lugar, ao contrário do que aconteceu na Argentina nos anos 80 e nos anos noventa, o
sistema bancário brasileiro se fortaleceu durante o período de alta inflação e durante o período do
Plano Real, gozando da mais alta lucratividade durante toda a década.
Em terceiro lugar, o Brasil adotou nos últimos anos o regime de flexibilização cambial, caminho
alternativo à dolarização e que tem aliviado a pressão sobre a Balança Comercial do país.
Assim, uma eventual crise cambial no Brasil não teria os mesmos desdobramentos financeiros
argentinos. O país anda dispõe de mais poupança interna, mais instrumentos de política
macroeconômica (inclusive fortes bancos estatais e de fomento), sua estrutura industrial mostrase menos afetada, tem aumentado sua arrecadação tributária, além de ainda contar com fortes
superávits primários nos últimos anos.
Mas tão importante quanto tudo isso é uma consciência pública crescente dos danos do paradigma
neoliberal, que cria uma legitimidade para o país dotar-se de um novo rumo econômico que lhe
permita mais estabilidade frente à especulação financeira internacional e mais soberania no
controle dos seus destinos.
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O fantasma da Sudene e as eleições de 2002
À medida em que se evidencia a crise do paradigma neoliberal, vão ressurgindo os temas mais
caros ao nacional-desenvolvimentismo. Depois de Serra, é Garotinho quem, por cálculo eleitoral,
promete aos nordestinos recriar a Sudene. Mas qual o balanço que se faz da Sudene? E qual o
sentido possível de sua refundação para um programa democrático e popular?
No Periscópio número 4, de maio de 2001, o ensaio “Assalto à tradição” mostrava como o modo
como FHC havia posto fim à Sudene e à Sudam, exorcizando-as como casamatas da corrupção por
Medida Provisória, revelava de modo exemplar como o projeto neoliberal buscava renovar seus
pressupostos, destruindo a memória nacional-desenvolvimentista. Não deixa de ser sintoma da
presença desta tradição o fato de que dois presidenciáveis prometam aos nordestinos sua
recriação. A fundação da Sudene, em dezembro de 1959, foi tanto uma conquista da consciência
nacional sobre a questão nordestina após a gravíssima seca de 1958 quanto um marco na
recuperação da auto-estima e dignidade nordestinas.
No caso de Serra, tal promessa soa, na melhor das hipóteses, como auto-crítica. No programa de
investimentos “Avança Brasil”, segundo informa o site da presidência da República, a agenda de
investimentos em infra-estrutura destaca 70,2 bilhões de reais para o Sudeste e apenas 30,4
bilhões de reais para o Nordeste; no que diz respeito ao desenvolvimento social, o Sudeste leva
35,2 bilhões de reais e o Nordeste 33 bilhões. Isto é, o Nordeste esteve longe de ser prioridade
estratégica para o governo de Fernando Henrique. E a própria idéia de desenvolvimento regional
cedeu lugar à confiança cega nas virtudes dinâmicas da busca das forças do mercado por maior
lucratividade.
Não são, pois, eventuais ou circunstanciais as dificuldades da candidatura Serra em colar-se à
sensibilidade nordestina. Depois de frustrada a escolha de Jarbas Vasconcelos para ocupar o posto
de vice em sua chapa e das denúncias que comprometeram as pretensões do deputado federal do
Rio Grande do Norte, Serra optou por não priorizar o critério regional na sua composição. À
exceção do Ceará, mas que sob a liderança de Jereissatti não converge sem problemas para Serra,
o PSDB é um partido não nordestino e sua cultura, apoiando-se em um viés tradicional que exalta
a modernidade liberal de São Paulo, é, na verdade, anti-nordestina. Quando Bresser Pereira, no
comando da Ciência e Tecnologia, afirmou ser contra verbas para pesquisa nas universidades
públicas nordestinas porque lá só cresce capim, ele estava apenas reafirmando um senso-comum
típico do meio intelectual em que circula.
Como partido que construiu-se na luta contra a injustiça social, o PT, assim como as primeiras
tradições da esquerda brasileira, sempre tenderam a se enraizar no Nordeste, a receber de lá o
sopro popular da emancipação e uma vigorosa inteligência que formou o país desde a sua época
colonial. A questão nordestina não pode ser vista, assim, como indiferente aos esforços do PT em
configurar um novo projeto para o país. Que Lula seja um sobrevivente da imigração nordestina e,
ao mesmo tempo, a principal liderança política do país não é um fato menor de sua biografia.
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As três épocas da Sudene
O espírito e o sentido épico da criação da Sudene estão recuperados por Celso Furtado no torno
segundo da sua obra autobiográfica (“A fantasia desfeita”, Paz e Terra), bem como no pequeno
mas precioso livro “Seca e poder - Entrevista com Celso Furtado”(Fundação Perseu Abramo). A
primeira fase da Sudene vai da sua criação em 1959 a 1964.
A fundação da Sudene foi literalmente conquistada às classes dominantes nordestinas. Refletiu
uma pressão da opinião pública nacional, incentivada pelas denúncias do jovem jornalista Antonio
Callado no Correio da Manhã, criticando a chamada “indústria da seca”. O semi-árido nordestino
era, então, conhecido como a mais vasta zona de miséria do hemisfério ocidental. Foi fundamental
o apoio de Dom Hélder Câmara e das duas reuniões dos bispos nordestinos, de 1956 em Campina
Grande e de 1959 em Natal, expressando o espírito da Encíclica Rerum Novarum, que questionava
o direito à propriedade socialmente inútil. A crescente gravitação da Sudene em relação às forças
populares ficou evidenciada pelos comícios públicos em favor da provação do seu primeiro Plano
Diretor. Na aguda luta de classes que marcou a região na época, as iniciativas da Aliança para o
Progresso, estimuladas pelo governo Kennedy, buscaram ser um contraponto à vocação reformista
da Sudene.
O que incomodava aos poderes regionais era, em primeiro lugar, o sentido público e antioligárquico da concepção da Sudene. Previsto como um sistema de contrapesos, o Conselho da
Sudene era composto por governadores de nove estados, representantes de ministérios federais e
um secretário executivo, nomeado pelo presidente da República e com amplo poder de iniciativa.
As deliberações do Conselho eram feitas em torno de projetos previamente estudados e
fundamentados pelo secretariado técnico. Foi sintomático, neste sentido, a pressão da maioria dos
governadores da região para a substituição de Celso furtado durante o episódio parlamentarista,
após a renúncia de Jânio e antes do plebiscito que conferiu plenos poderes presidenciais a Jango,
por sua resistência a instrumentalizar o órgão para fins clientelísticos eleitorais.
Em segundo lugar, os planos da Sudene previam algumas alterações importantes na estrutura
agrária da região, com a introdução da agricultura familiar de alimentos na zona da monocultura
de açúcar e com um projeto de colonização, que propunha o assentamento de um milhão de
nordestinos do semi-árido no noroeste do Maranhão e sul da Bahia. O projeto de Lei de Irrigação,
que passou com dificuldade no Conselho da Sudene mas foi derrotado no Congresso, propunha
que, antes dos planos de irrigação, as terras beneficiadas deveriam ser objeto de desapropriação
com finalidade social.
A projeção pública da Sudene foi tanta que sua continuidade foi apoiada pelos dois candidatos à
presidência, o general Lott e Jânio Quadros. Eleito, este último não apenas manteve Celso Furtado
na Superintendência da Sudene como deu ao posto status de ministro. O potencial da Sudene
pode ser revelado por alguns números relativos ao exercício de 1963: seu orçamento mobilizou
115 bilhões de cruzeiros (soma bem superior a todo o Imposto sobre Circulação de Mercadorias
arrecadado pelos nove estados nordestinos); 86 projetos industriais foram aprovados e
incentivados; obras básicas de infra-estrutura como a linha de transmissão de energia a Natal e
de saneamento básico beneficiando 4,3 milhões de pessoas, 55% da população urbana
nordestina; a concessão de 510 bolsas de estudo para universitários e promoção de cursos de
programação orçamentária, administração municipal e gerência de cooperativas para cerca de mil
alunos.
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O golpe militar de 1964 extinguiu a vocação reformista da Sudene, instrumentalizando-a para os
novos planos de modernização conservadora do país. A Lei de Incentivos Fiscais, já desde 1963
aplicável também ao capital estrangeiro, incentivou grandes grupos econômicos a estenderem
suas plantas industriais à região nordestina. Em “Elegia para uma re(li)gião “(Paz e Terra, 1977),
Francisco de Oliveira demonstra que das cem maiores empresas do país - estatais, nacionais,
privadas nacionais, multinacionais - 24 tinham criado suas filiais no Nordeste. O PIB nordestino foi
multiplicado por quase seis vezes de 1960 a 1990, crescendo mais do que a economia do país,
exceto no período do chamado “milagre brasileiro” (1967-1973). Mas o crescimento da economia
nordestina, compatibilizado com as estruturas arcaicas de dominação, não alterou sensivelmente
os vastos bolsões de pobreza da região. Em seu belo livro, “Ensaios sobre o desenvolvimento
brasileiro: heranças e urgências” (Revan, 2000), Tânia Bacelar demonstra que a industrialização
da região reproduziu a dependência e complementariedade com a economia do centro-sul, ficando
na região apenas metade da renda gerada.
Os anos 90, com o predomínio da agenda neoliberal, levaram a Sudene a uma espécie de ponto
morto de sua trajetória: oferecida como balcão de negócios para a coalizão de centro-direita,
reunida em torno a FHC, perdeu até a vocação industrializante da sua segunda fase.
Memória e refundação
Os dados da prévia do Censo de 2000, recém divulgados pelo IBGE, mostram que o Nordeste tem
a pior remuneração do trabalho do Brasil: 46,2% recebem um salário-mínimo. O fosso entre sul e
norte-nordeste do país se alargou em vários indicadores como o acesso à coleta de lixo, aos
telefones de base fixa. A mortalidade infantil, apesar de em queda, continua bastante alta (44,2
em mil nascidos vivos) contra 20 para a região Sudeste.
Razões de ordem humanitária poderiam sustentar uma primeira opinião de que o Nordeste deveria
ser alvo prioritário de políticas públicas. Mas, deste ponto de vista estrito, políticas emergenciais
de assistência bastariam.
Porém, entender a questão nordestina apenas do ponto de vista das políticas sociais é, do ponto
de vista conceitual, um retrocesso. Estudando a sua formação histórica e a fixação de suas
estruturas de poder após a decadência do ciclo da cana de açúcar, Celso Furtado mostrou como o
Nordeste era a expressão de um subdesenvolvimento “em segundo grau”: uma espécie de
periferia (em relação ao centro-sul) de um país periférico (em relação ao centro capitalista
mundial). Configura estruturalmente uma segmentação de acesso ao poder, riqueza e cultura que
impede um desenvolvimento econômico e social integrado. No Império, na República Velha e no
período varguista, o Nordeste, de fato, transferiu renda continuamente para o centro-sul. Por sua
vez, a lógica do mercado leva não apenas à concentração social, mas também regional das
riquezas.
Assim, o Nordeste de hoje está longe de ser o que era quando da criação da Sudene: com um
certo grau de industrialização, acesso à energia elétrica e a uma malha rodoviária, dotado de um
bom sistema universitário e de pelo menos três grandes regiões metropolitanas, apresenta microregiões com forte dinamismo econômico. Mas talvez nunca tenha apresentado, em graus tão altos,
a segmentação de suas estruturas, opondo e compondo entre si o “atrasado” e o “moderno”.
Por fim, a questão nordestina interroga a própria idéia da Nação. Recentemente, o historiador
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Periscópio – Boletim eletrônico da Fundação Perseu Abramo e
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Evaldo Cabral de Mello mostrou, em “A Ferida do Narciso”, como a própria primeira identidade do
Estado nacional em formação, no século XIX, colocou o Nordeste como um “outro”, um não lugar,
marginalizando a força de seus movimentos republicanos e libertários. Se a decadência econômica
precedeu mas foi acelerada pela perda de poder político, a cultura política brasileira veio
assentando desde o século XIX os preconceitos contra o Nordeste. Não é fortuito, assim, o fato de
que a Sudene tenha sido criada no auge da expressão nacionalista: não há como repensar o Brasil
sem rever o lugar do Nordeste em sua formação e seu futuro.
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Por que Fernando Henrique não estabilizou a economia brasileira